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UFRRJINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE PS-GRADUAO DE CINCIAS SOCIAIS DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE (CPDA)

DOS LABORATRIOS AOS PONTOS DE VENDA: UMA ANLISE DA TRAJETRIA DOS ALIMENTOS FUNCIONAIS E NUTRACUTICOS E SUA REPERCUSSO SOBRE A QUESTO AGROALIMENTAR

MARCO ANTNIO FERREIRA DE SOUZA

2008

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE PS-GRADUAO DE CINCIAS SOCIAIS EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

MARCO ANTNIO FERREIRA DE SOUZA

Tese submetida como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Cincias, no Curso de de Ps-Graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, rea de Concentrao em Instituies, Mercado e Regulao .

TESE APROVADA EM -----/-----/------

______________________________________ John Wilkinson. (Dr.) UFRRJ/CPDA (Orientador) ____________________________________ George Flexor (Dr.) UFRRJ/IM ____________________________________ Marcelo lvaro da Silva Macedo (Dr.) UFRRJ/DCAC ____________________________________ Lavnia Davis Rangel Pessanha (Dra.) IBGE ____________________________________ Maria Fernanda de A. C. Fonseca (Dra) PESAGRO

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DEDICATRIA Minha me e a luta pela vida. Meu pai e o futebol. Eu e a tese. Dedico esta tese a minha me e meu pai. Infelizmente eles no estaro presentes nesse momento to importante para um dos seus filhos. Filhos de uma viagem que a vida fez abreviar mais cedo do que normalmente esperam os que amam. Mais cedo at do que o mundo merecia, pois eles foram pessoas de dignidade marcante e ainda tinham muitos exemplos a dar. Dona Tininha nos deixou faz 27 anos, mas me deixou um legado de luta e um forte sopro de vida que me acompanha desde que tomei conscincia da sua luta e fora. Mesmo doente, ela continuou indo s aulas no colgio onde procurava estudar para recuperar o tempo que a infncia pobre a roubou. Seu lema era: "sempre em frente". A uma professora ela confessou: "s paro quando a morte chegar". Durante o doutorado procurei exercer essa herana que no me deixa ficar parado ou optar pelo caminho da banalidade e da mediocridade. Me, tentei superar os limites! Acredite, no fugi luta. Seu Antnio Goulart partiu faz 3 anos. Ele pegou o incio da luta que foi fazer esse doutorado sem bolsa e afastamento. Eu quis muito lhe dar este presente. Ele tinha esperana que eu fosse jogador de futebol, que o filho "comesse a bola", como se diz no linguajar boleiro. Eu o frustrei: gostei de estudar, no servi para o futebol. Mas como estudante procurei deix-lo orgulhoso, tentei compensar no estudo o pereba no futebol, j que ele foi craque, "comeu a bola" e no gostava de perder. Pai, posso dizer que me envolvi tanto com esse esforo que eu "comi a tese". Isso mesmo, para saber mais sobre os alimentos funcionais e nutracuticos eu mudei consideravelmente meus hbitos alimentares e passei a com-los. Voc viu como fiquei chato. Eu quis ver na prtica o que isso significava. Hoje sou professor e digo que no jogo que pratico, o de ajudar a desenvolver pessoas, eu tambm no aceito perder: mesmo enfrentando o desleixo desse pas com a educao, estou sempre lutando pela dignidade do time e dos torcedores.

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AGRADECIMENTOS At agora esta foi a maior viagem que me propus fazer. At para entender um pouco mais a vida. Reconheo que aprendi com o doutorado o que Clarice Lispector j nos tinha dito: "no se preocupe em entender a vida: viver supera qualquer entendimento". Navegar necessrio, mas sozinho no se chega a lugar algum. Anglica e Maria Luiza, eis que chego ao porto que lhes falei 4 anos atrs! Virou realidade aquela imagem que as fiz acreditar existir para justificar a escassez de brincadeiras, teatrinhos e passeios. Obrigado por terem partido comigo nesta viagem, por terem comido os alimentos que comi e suportado minha insegurana e inexperincia ao navegar. Amor e coragem. Uma frase me marcou bastante nesta vida: "a simplicidade o ltimo degrau da sabedoria". Com o comandante John Wilkinson eu vi o que isso significa na prtica. Durante toda navegao percebi a importncia dela para tornar o mundo um lugar mais interessante e as viagens mais agradveis e efetivas. Sbio. Marcelo lvaro foi colega de sala de aula. Tive o prazer de conviver com rara inteligncia. Somos colega de trabalho e ganho com sua capacidade de transformar idias em resultados. Agora tive o prazer de ter seus conselhos e crticas na conduo desse trabalho. Passei por guas calmas. Esteio. Conheci George Flexor na condio de aluno. Depois demos aulas juntos. Durante todo o tempo que estivemos juntos ele se preocupou em chamar ateno para a tese e seus temas. Muitos foram os e-mails e os recortes de revistas e artigos. A carta nutica ficou rica. Generosidade. Queridos irmos, a vida continua. Cris, segui seu rumo. Mnica e Giovane, venham conosco, esse mar prspero e a viagem inesquecvel! Um porto lhes espera. Exemplos. Meus alunos foram muito amigos. Deram estabilidade Nau. Sentiram muito, mas relevaram os problemas e o tempo do professor que foi roubado pelo aluno do doutorado. Pacincia. Aos colegas da Rural que acompanharam a luta diria para manter a nau no rumo e ser doutor sem afastamento. Suportaram com bom humor a falta de tato deste candidato. Em especial a esses nobres leitores e crticos da carta nutica: Ktia Tabbai, Bianca e Allan Cardech. Cooperao. Aos amigos e parentes que s me tiveram de corpo, mas poucas vez de alma. Como fui ausente! Como foram presentes! Cada sorriso e abrao um verdadeiro farol. Reciprocidade. Aos professores e demais funcionrios do CPDA. Obrigado por toda ajuda e pacincia nesses quatros anos de curso e vrias cirrgias que me fizeram atrasar tudo. Vocs garantiram a viagem. Profissionalismo.

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RESUMO SOUZA, Marco A.F. de. Dos laboratrios aos pontos de venda: uma anlise da trajetria dos alimentos funcionais e nutrcuticos e da sua repercusso sobre a questo agroalimentar. UFRRJ/CPDA: Rio de Janeiro, 2008. 289p (Tese de Doutorado no Curso de Ps Graduao de Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, rea de Desenvolvimento e Agricultura). Alimentos funcionais e nutracuticos so apresentados como alimentos que, alm de suas funes bsicas nutricionais, demonstram benefcios fisiolgicos e/ou reduzem o risco de doenas crnicas. Eles se afastam dos alimentos ditos convencionais e ficam posicionados como produtos diferenciados e uma alternativa para o processo de cuidado com a sade. Tais alimentos acabam dividindo com alguns produtos da medicina tradicional e alternativa o importante espao simblico de produo de sade. A primeira experincia prtica ocorreu no Japo nos anos 80, quando o governo estimulou a pesquisa e uso de alimentos como aliados na melhoria dos ndices de sade publica do pas. O esforo originou o conceito de alimentos funcionais e estimulou a criao de uma categoria de alimentos classificada como alimentos funcionais, mais tarde modificada para FOSHU ou food for special health purpose. Nos EUA essa experincia foi amplificada e esses alimentos so mais conhecidos como nutracuticos, porm sem reconhecimento formal. Esta nova perspectiva para abordar a relao dieta e sade representa uma mudana significativa no ambiente institucional relativo a produo e promoo de sade pblica, pois concede aos atores do sistema agroalimentar uma primazia at ento permitida apenas s empresas de medicamentos. Esta tese teve como objetivo a construo de um amplo painel de visibilidade da ascenso desses novos alimentos, baseado na descrio da trajetria desses termos e na anlise das repercusses dessa transformao institucional sobre a questo agroalimentar. A questo agroalimentar foi caracterizada a partir da anlise das modalidades correntes de fornecimento de alimento, objetivo alcanado atravs do uso dos conceitos da Economia das Convenes. Para fins de conceituao e descrio da trajetria procurou-se caracterizar o processo de institucionalizao dos novos alimentos, explorando os aspectos cientficos, regulamentares e mercadolgicos. Alm do Brasil foram analisadas as experincias japonesa, americana e europia. Embora represente um novo momento para a questo agroalimentar, verificou-se que a institucionalizao favorece principalmente aos atores associados modalidade industrial de fornecimento de alimentos: indstria processadora e fabricantes de alimentos finais. Em detrimentos aos interesses de projetos alternativos de fornecimento de alimentos com qualidade diferenciada, como os orgnicos e a produo local. Os pases que aderiram a esta reclassificao dos alimentos tm privilegiado a criao de complexas estruturas regulamentares para avaliar e liberar o uso de alegaes de sade para alimentos e o foco sobre substncias e no sobre os alimentos, mesmo aqueles in natura. Para se tornarem realidade, tais alimentos demandam a criao de verdadeiros sistemas de valor que implicam a coordenao de atividades cientficas e produtivas bastante onerosas para pequenas e mdias empresas. Palavras-Chave: alimento funcional; nutracuticos; regulamentao de alimentos; Sistema Agroalimentar; alegao de sade

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ABSTRACT SOUZA, Marco A.F. From Labs to the sales outlets: the raising of functional foods and nutraceuticals and its repercussion on the agrofood question. UFRRJ/CPDA: Rio de Janeiro, 2008. (Tese de Doutorado no Curso de Ps-Graduao de Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, rea de Desenvolvimento e Agricultura). Functional foods and nutraceuticals represent a kind of food that provides physiological and health benefits beside basic nutrition. Far from being conventional food, they are positioned as an alternative for some traditional and complimentary medicinal products. The first appearance of this novel type of food occurred in Japan in the 80s, when some food were researched and used to tackle the progressive increase of health related diseases that promoted drastic drop in public health indices. This experience lead to the creation of a new product category initially called functional food, renamed later as food for special health use or FOSHU. The USA amplified this experience giving to it a remarkable visibility. Although they had not formalized a new product category this food begin to be called as nutraceutical. This new perspective of tackling the diet and health relation meant a significative change in the institutional environment of producing and promoting public health since it offers to agro food system players a primacy up to now permitted only to Pharmaceuticals Company. This thesis searched to provide a wide visibility panel of the raising of this novel type of food and an analysis of its repercussion on the agro food system. It began with the characterization of food provisioning modes considering the centrality exerted by quality over the agro food system competition dynamics. Convention economy concepts were applied to uncover different food quality justifications. An institutionalization approach was assumed in order to provide a deep compreenhension of the meaning of these novel types of food and of its raising. It resulted in a framework that accounted for three different arenas in that the process itself develops: scientific, regulatory and market. The analysis involved the experiences of Brasil, Japan, USA and European Union. Even though this process represent a new momentum for the agro food question, it favors most those player concerned with the industrial mode of food provisioning, mainly the ingredient and final food industry giants. Those players concerned with alternative food initiatives face obstacles related to complex regulatory framework and scientific requirements. These reflect the trend of regulatory framework in focusing on functional substances rather than products, even those in natura. To come into reality functional foods and nutraceuticals demands truly value systems based on the complex coordination of expensive and time-consuming scientific and productive activities. All of them completely adverse for small and medium size companies to cope with.

Key words: functional food; nutraceutical, food regulation; agrofood system; health claim

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SUMRIO INTRODUO 1 Primeiros passos: os novos alimentos no Brasil 2 As origens dos alimentos funcionais e nutracuticos 5 A reclassificao dos alimentos: breve mudana de rota no foco da pesquisa 7 A institucionalizao e a questo agroalimentar 8 Diferentes arenas e questes da institucionalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos 11 Premissas para o desenvolvimento do trabalho 13 Objetivos e consideraes metodolgicas 14 Descrio do Trabalho 16 CAPTULO 1 TENDNCIAS NO FORNECIMENTO DE ALIMENTOS 18 1.1 Sistemas, cadeias e redes: uma breve explicao para a linguagem adotada neste trabalho. 19 1.2 Convencional versus alternativo: tendncias no fornecimento de alimentos 24 1.2.1 Redes Convencionais de Suprimento de Alimento (RCSA) 25 1.2.2 Redes Alternativas de Suprimento Alimentar 41 1.3 As diferentes lgicas de inovao que informam as trajetrias competitivas 49 1.3.1 A lgica de inovao baseada na decomposio ou recomposio dos recursos 50 1.3.2. A lgica de inovao baseada na Gerao e Transmisso de Identidade 51 1.4 Worlds of food: a competio pela qualidade como fator de construo de uma nova geografia alimentar e de inovao. 54 1.4.1 O mundo industrial (the industrial world of production) 58 1.4.2 Mundo das relaes interpessoais (The interpersonal world of production) 59 1.4.3 O mundo do mercado (the market world of production) 60 1.4.4 O mundo dos recursos intelectuais (The intellectual resource world of production) 60 1.5 A constituio de diferentes trajetrias competitivas no SAA 61 Concluso 66 CAPTULO 2 ALIMENTOS FUNCIONAIS E NUTRACUTICOS: ASPECTOS CONCEITUAIS. 72 2.1 Alimentos funcionais 73 2.1.1 Japo: a gnese do termo alimento funcional 77 2.2 Nutracuticos 79 2.2.1 Nutracuticos: a gnese de um empreendimento baseado em cincia 80 2.3 Alimentos Funcionais versus Nutracuticos 83 2.4 Aspectos centrais da ascenso de alimentos funcionais e nutracuticos 84 2.4.1 mudanas na viso social sobre os alimentos 84 2.4.2 A importncia dos novos paradigmas cientficos 88 2.4.3 Da healthy-eating revolution functional food revolution 95 2.5 Substncias funcionais 100 2.5.1 Suplementos e os ingredientes 106 2.5.2 Aes institucionais com relao s substncias funcionais 108 2.5.3 O Exemplo Canadense 109 2.5.4 A bem sucedida experincia Finlandesa 111 2.5.5 A realidade brasileira 113 Concluso 115

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CAPTULO 3 ESTRUTURA DE REGULAMENTAO DE ALIMENTOS E O USO DE ALEGAES DE SADE 119 3.1 Os diferentes cenrios da regulamentao de alimentos 121 3.2 Os Sistemas Nacionais de Vigilncia Sanitria 123 3.2.1 O risco sanitrio e a sua regulamentao 124 3.3 O Codex Alimentarius Comission 129 3.3.1 Rotulagem Nutricional 130 3.3.2 O uso de alegaes para alimentos 132 3.3.3 Alegaes de sade 135 3.3.4 Alegaes de sade genricas e especficas para produto 137 3.4 Homogeneizao dos sistemas regulamentares de alimentos 138 3.5 Categorias de produtos reconhecidas pelos sistemas regulamentares de alimentos.....139 Concluso 143 CAPTULO 4 CARACTERIZACO DAS ESTRUTURAS REGULAMENTARES DE ALEGAO DE SADE NO JAPO, ESTADOS UNIDOS E UNIO EUROPIA E BRASIL. 145 4.1 Regulamentao das Alegaes de Sade no Japo 146 4.1.1 Sistema Regulamentar 146 4.1.2 O Sistema FOSHU 148 4.1.3 Alegaes de Sade 152 4.2 Regulamentao de Alegaes de Sade nos Estados Unidos 156 4.2.1 Sistema regulamentar 157 4.2.2 Alegaes de sade 159 4.2.3 Alegaes de contedo de nutriente 164 4.2.4 Alegaes de funo e ou estrutura 166 4.3 Regulamentao de Alegaes de Sade no Brasil 168 4.3.1 Sistema Regulamentar 168 4.3.2 Principais definies do Regulamento 171 4.3.3 Sobre o uso de alegaes 173 4.4 Regulamentao de Alegaes de Sade na Unio Europia 179 4.4.1 Sistema Regulamentar 185 4.4.2 Principais definies do Regulamento (CE) N. 178/2002. 186 4.4.3 Regulamento (CE) N. 1924/2006: estruturando o uso de alegaes de nutrio e sade na Unio Europia 188 4.4.4 Alegao nutricional 190 4.4.5 Alegaes de sade 191 4.4.5 Alegaes de Reduo de um Risco de Doena 193 4.4.6 Processo de avaliao das alegaes nutricionais e de sade 194 Concluses 197 CAPTULO 5 AS ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO DE MERCADO PARA ALIMENTOS FUNCIONAIS E NUTRACUTICOS 5.1 O controverso mercado de alimentos funcionais e nutracuticos 202 5.1.1 Alimentos funcionais 203 5.1.2 O caso das barras de nutrio 209 5.1.3 Alimentos nutracuticos 210 5.2 Abordagens sobre a coordenao das atividades de produo dos novos alimentos ... 213 5.2.1 O exemplo da Nova Zelndia. 213 5.2.2 Abordagem pela perspectiva das empresas 215 5.2.3 A articulao de cadeias de suprimento para os novos alimentos 217viii

5.2.4 Funes-chave e movimentao estratgica na cadeia de suprimento de novos alimentos 5.3 O caso Benecol 5.4 Tendncias no desenvolvimento de produtos 5.4.1 O desenvolvimento de novos produtos 5.4.2 A consolidao de um padro de produto 5.5 Os desafios para montar uma genuna healthful company 5.5.1: Novartis: a fora das farmacuticas no novo mercado 5.5.2 Danone: uma empresa focada em nutrio. 5.6 A receptividade do mercado aos alimentos funcionais e nutracuticos 5.6.1 Fatores respondendo pelo interesse nos alimentos funcionais e nutracuticos Concluso CONCLUSES REFERNCIA IBLIOGRFICA ANEXOS

220 224 228 229 232 235 236 238 241 244 249 252 258 273

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NDICE DE QUADROS Quadro 1: Exemplos de lanamentos de novos alimentos Quadro 1.1 Campos Heursticos para Anlise das RASA Quadro 2.1 Tendncias de comportamento das pessoas com relao alimentao Quadro 2.2 Relao entre a healthy-eating revolution e a functional foods revolution Quadro 2.3 Relao entre doenas e substncias funcionais Quadro 2.4 Descrio das aplicaes funcionais de algumas ervas consumidas internacionalmente Quadro 4.1: Produtos FOSHU aprovados at 2001 Quadro 4.2: Vitaminas e minerais reguladas sob o food With Nutrient Function Claims FNFC Quadro 4.3 Sistema regulamentar de alegaes de sade no Japo aps 2005 Quadro 4.4 Outros minerais regulados sob o Food With Nutrient Function Claims FNFC Quadro 4.5 Alegaes de sade aprovadas sob a NLEA com critrio de significativa Concordncia Cientfica Quadro 4.6: Alegaes de sade aprovadas sob a FDAMA, baseadas em Authoritative Statement Quadro 4.7 Linguagem qualificadora padronizada para alegaes de sade qualificadas Quadro 4.8 Alegaes de sade qualificadas Quadro 4.9 termos usados para descrever uma alegao de contedo de nutriente Quadro 4.10 Limites mximos para nutrientes desqualificados em produtos, pratos e refeies Quadro 4.11 alegaes de estrutura e funo comuns no mercado americano Quadro 4.12 Algumas leis importantes na constituio da Unio Europia Quadro 4.13 Decretos e resolues que regulam os alimentos no Brasil Quadro 4.14 Lista de alegaes permitidas no Brasil Quadro 4.15 Alegaes utilizadas no CODEX, JAPO, EUA, EU e BRASIL. 1 46 86 98 104 106 153 145 155 155 161 162 163 164 165 165 166 168 177 181 199

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NDICE DE TABELAS Tabela 1.1: Diferentes momentos histricos da trajetria da canola. Tabela 1.2: distribuio das publicaes sobre a colza Tabela 1.3: Maiores redes de varejo do mundo em 2006 Tabela 1.4: Exemplos de mudanas de mundo da produo na Noruega Tabela 2.1: Principais compostos funcionais. Tabela 2.2: Nmero de alegaes feitas na Finlndia Tabela 3.1: Relao das categorias de produtos reconhecidas por sistemas regulamentares de alimentos. Tabela 5.1: Tamanho do mercado de alimentos funcionais em regies especficas (US$ bilhes) Tabela 5.2: Volume de vendas mundiais de alimentos funcionais nos ltimos anos Tabela 5.3: Estimativas para alimentos funcionais e nutracuticos para os EUA (US$ milhes) Tabela 5.4: Segmentos de consumo de barras de nutrio Tabela 5.5: Venda dos principais nutracuticos a base de erva nos EUA em 2005 Tabela 5.6 Total estimado de vendas de suplementos base de erva em todos os canais de vendas nos EUA entre 1994 e 2005 Tabela 5.7 Total estimado de venda de suplemento base de ervas no grande varejo americano de 1998-2005 Tabela 5.8: Suplementos base de ervas mais vendidos no grande varejo americano Tabela 5.9: Objetivos na coordenao da cadeia produtiva na Nova Zelndia 30 31 37 65 103 113 139 202 202 204 209 210 211 211 212 214

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NDICE DE FIGURAS Figura 1: Atores diretamente envolvidos com a reclassificao dos alimentos Figura 2: arenas de consolidao da explorao do potencial teraputico dos alimentos Figura 1.1: Representao dos diferentes elos de uma cadeia agroindustrial Figura 1.2: Perspectiva sistema agroalimentar e seus subsistemas Figura 1.3: Cadeia agroalimentar comandada pela Cargill e Monsanto Figura 1.4: Cadeia agroalimentar comandada pela Conagra. Fonte Figura 1.5: Cadeia agroalimentar comandada pela ADM e Novartis Figura 1.6: Uso da informao nas diferentes lgicas de inovao Figura 1.7: Esquema analtico dos mundos de produo Figura 1.8: Mundos da produo em funo da tecnologia aplicada Figura 1.9: Migrao de mundos da produo da Ovopel Figura 1.10: Migrao de mundos da produo da Natura Si Figura 1.11: Migrao de mundos da produo em Viterso et al (2005). Figura 1.12: Migraes de mundo da produo em cooperativas da Noruega Figura 1.13: Atores, relaes de fornecimento e foras macro-ambientais no SAA. Figura 2.1: Evoluo das atitudes dos consumidores em relao aos alimentos Figura 2.2: Plano de utilizao da linhaa do Flax Canada 2015. Figura 3.1: Atores com interesse na institucionalizao de alimentos funcionais e nutracuticos. Figura 3.2: Exemplo de revelao dos contedos de um alimento. Figura 4.1: Posicionamento e classificao de medicamentos e no medicamentos no Japo. Figura 4.2: Smbolo dos produtos FOSHU jumping for life Figura 4.3: Estrutura de alegaes permitidas nos Estados Unidos Figura 4.4: Alegaes de sade permitidas na Unio Europia Figura 4.5: Descrio do processo de autorizao de alegao que no seja de reduo de risco de doena e alegaes referentes sade e desenvolvimento de crianas (artigo 13 do regulamento (CE) 1924/2006) Figura 4.6: Descrio do processo de autorizao de alegao de reduo de risco de doena e alegaes referentes sade e desenvolvimento de crianas. Figura 5.1: Projees de mercado para alimentos funcionais. Fonte: Just-food (2006) Figura 5.2: Regularidade na compra de novos alimentos segundo ACNielsen Figura 5.3: Fatores influenciando negativamente a compra destes produtos Figura 5.4: Desempenho de produtos com algumas alegaes nos EUA Figura 5.6: Descrio de uma tpica cadeia de suprimento de alimentos funcionais e nutracuticos Figura 5.7: Estgios da cadeia de suprimento da indstria farmacutica. Figura 5.8: Funes-chave no mercado de funcionais Figura 5.9: Direes seguidas pela internalizao da produo na cadeia de suprimento. Figura 5.10: Diferentes capacitaes de empresas farmacuticas e de alimentos Figura 5.11: Apresentao comercial do benecol Figura 5.12: Rtulo do benecol e da Take Control, margarina da Limpton Figura 5.13: Embalagens de dois sucessos de venda no novo mercado 9 11 22 26 34 35 36 50 56 58 62 63 64 66 70 87 110 122 130 146 152 159 191 195

196

203 207 208 208 218 219 220 221 222 224 226 235xii

Figura 5.14: Leitura da migrao da Danone de mundo de produo Figura 5.15: Relao entre o comportamento da oferta e da demanda em termos de alimento com o passar do tempo.

239 242

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GLOSSRIO DE SIGLAS E ABREVIATURAS Autoridade Europia de Segurana Alimentar Autoridade Europia de Segurana Alimentar Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria Appellation dOrigine Controle Codex Alimentarius Comission Consenso Cientfico Significante Consumer Health Information for Better Nutrition Initiative Centro Nacional para Medicina Alternativa e Complementar Center for Social Public Interest Comisso Tcnico-Cientfica de Assessoramento em Alimentos Funcionais e Novos Alimentos DSA Dietary Supplement Act DSHEA Dietary Supplement Health and Education Act EC Economia das Convenes EU Unio Europia EUA Estados Unidos da Amrica FAO Food and Agriculture Organization FDA Food and Drug Administration FDAMA Food and Drug Administration Modernization Act FFDCA Federal Food Drug Cosmetic Act. FHC Food with Health Claim FIM Foundation for Innovation in Medicine FNFC Food with Nutrition Function Claim FOSHU Food for Specific Health Use GCR Global Corporate Regime GFO Global Food Order GPN Global Production Network GRAS Generally Recognized as Safe IDR Ingesto Diria Recomendada ILSI Internacional Life Science Institute MSTB Ministrio da Sade, Trabalho e Bem-Estar do Japo NBJ Nutrition Business Journal NCE New chemical entities NCE New Chemical Entities NLEA Nutrition Labeling and Education Act NREA Neutraceutical Research and Development Act OMC Organizao Mundial do Comrcio OMS Organizao Mundial de Sade PASSCLAIM Process for the Assessment of Scientific Support for Claims on Foods PDI Protected Geographical Indication PGO Protected Designation of Origin RASA Redes alternativas de suprimento de alimento RCSA Redes convencionais de suprimento de alimento SAA Sistema Agroalimentar SBAF Sociedade Brasileira de Alimentos Funcionais SNVS Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria SNVS Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria FLV Frutas, Legumes e Verdurasxiv

AESA AESA ANVISA AOC CAC CCS CHIBNI CNMAC CSPI CTCAF

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INTRODUO Este trabalho consiste da descrio e anlise de um fenmeno que vem ganhando bastante evidncia nos ltimos anos a emergncia de novos tipos de alimentos e da anlise da sua repercusso sobre a questo agroalimentar. Especificamente, ser dada ateno trajetria dos chamados alimentos funcionais ou nutracuticos, que viraram smbolos desse momento em que fabricantes de alimentos podem alegar que seus produtos fazem bem sade. s vezes, eles so chamados de novos alimentos, um termo que alude a uma categoria de produto j existente, os novel foods, reconhecidos por alguns sistemas regulamentares como alimentos sem histrico de consumo, considerados exticos ou oriundos da aplicao de biotecnologia. Como mostra o Quadro 1, no h menes explcitas aos novel foods, sugerindo que se tratam de categorias distintas, mas parecia necessrio analisar a relao entre esses conceitos. A manifestao mais visvel desse fenmeno o surgimento de produtos com apelos cada vez mais diferenciados (Quadro 1) e que alm de nutrir, trazem um benefcio a mais: produzem sade. comum ver reportagens informando os expressivos resultados das vendas nesse emergente e desconhecido mercado, alm de promissoras perspectivas futuras dos alimentos funcionais e nutracuticos. Quadro 1: Exemplos de lanamentos de novos alimentosi. Iogurte cosmtico: o Essensis um iogurte-cosmtico da Danone. Esse iogurte funcional, que age na pele, composto por ingredientes que atuam diretamente na regio cutnea e ajudam a evitar a perda excessiva de gua, retarda o processo de envelhecimento, e melhora o aspecto e a sade da epiderme. Refrigerante que queima caloria: o Enviga, vendido em latas de 350 mililitros, tem poderes de queimar calorias. Coca-Cola e a Nestl garantem que o consumo de trs latas dirias pode queimar at 100 calorias. O segredo da bebida est em uma substncia chamada epigalocatequina galato (EGCG), presente no ch verde, que vem sendo estudada nos laboratrios da Nestl desde 2002. A EGCG seria capaz de acelerar o metabolismo e provocar maior eficincia na queima de calorias. Para potencializar esse efeito, as duas empresas acrescentaram tambm cafena e clcio. Iogurte para o corao: o iogurte Cardivia, tambm da Danone, ajuda a prevenir doenas cardacas. Rico em mega 3, de fontes marinhas e vegetais, o produto foi lanado em 2006 no Canad. A empresa garante que, apesar de ter leo de peixe na frmula, o gosto e o cheiro so imperceptveis. Salgadinho para o crebro: A Unilever pesquisa um tipo de salgadinho conhecido como brain food, que estimularia a atividade cerebral e aumentaria a concentrao. Antiacne comestvel: O laboratrio holands DMV criou um princpio ativo que aumenta as defesas do organismo e combate a acne. O produto est sendo analisado por vrias indstrias alimentcias. Chocolate anticolesterol: A empresa americana Mars criou um chocolate chamado CocoaVia, que une substncias presentes no cacau e na soja para reduzir o chamado colesterol ruim (LDL).

Alm do desejo de conhecer as origens e caractersticas desse novo mercado, a escolha pelo tema, que se deu em 2005, tambm motivada pelo alarde feito em relao aos benefcios associados ao consumo dos novos alimentos: melhoria dos ndices pblicos de sade; incentivo inovao nas indstrias; incentivos para pesquisas nas universidades;1

incentivo s exportaes dos pases em desenvolvimento. Benefcios chamativos o suficiente para um esforo de pesquisa que ampliasse o entendimento desse fenmeno, demonstrando porque e como eles seriam alcanados. Tambm contribuiu bastante para essa escolha o fato do tema estar, quela poca, completamente ausente da literatura dedicada questo agroalimentar. Chamava-me ateno ver boa parte dos trabalhos estarem voltados ao entendimento da qualidade e do segmento de consumidores como fatores influenciando a dinmica do Sistema Agroalimentar (SAA), e no haver meno expressiva a esse fenmeno. Por se tratar de alimentos diferenciados, parecia relevante posicion-los em relao s questes competitivas na oferta de alimentos no SAA. Sistema que h bastante tempo influenciado pelos movimentos competitivos em torno da oferta de alimentos e das presses por maior segurana e transparncia nas prticas das empresas. Alimentos funcionais e nutracuticos tm sido apresentados como alimentos que, alm de suas funes bsicas nutricionais, demonstram benefcios fisiolgicos e/ou reduzem o risco de doenas crnicas. Desta maneira, eles se afastam dos alimentos ditos convencionais e ficam posicionados como produtos diferenciados e uma alternativa para o processo de cuidado com a sade. Assim, acabam dividindo com alguns produtos da medicina tradicional e alternativa o importante espao simblico de produo de sade. Enfim, surgem como uma nova perspectiva para abordar a relao dieta e sade. A importncia dessa relao comeou a ser devidamente estudada a partir da crescente ocorrncia de doenas cardiovasculares, diabetes, cncer, hipertenso e obesidade, todas relacionadas com a ingesto excessiva de lcool, carboidratos, gorduras, acar, sal e aditivos e conservantes. Por matarem mais que as doenas infecciosas, essas doenas ficaram conhecidas como doenas da afluncia, em contraposio imagem de que doenas infecciosas so associadas pobreza. Como recomendao para o bem estar do indivduo, predominava, inicialmente, o foco sobre os benefcios de uma alimentao rica em frutas, legumes, verduras e cereais e pobres em ingredientes nocivos. Os alimentos processados eram viles e a indstria ficou completamente exposta, gerando iniciativas de exigncia da revelao dos ingredientes dos alimentos. Formou-se um consenso sobre o papel estratgico dos rtulos para promoo da educao da populao, acreditando-se que informaes nutricionais presentes nos rtulos ajudam os consumidores a fazer escolha por alimentos mais saudveis (SILVEIRA. 2006; HAWKES, 2004). Os rtulos viraram ferramentas de poltica pblica. Entretanto, depois de mudanas nos alimentos processados, como a diminuio do nvel de gordura e acar, tornou-se comum na cobertura sobre a relao dieta e sade atribuir os nomes alimentos funcionais e nutracuticos a algumas classes de alimentos que no apenas nutrem, mas produzem sade, como os mostrados no Quadro 1. E so alimentos processados com apelos to ousados que podem deixar no consumidor a impresso de que ele est levando um alimento que, alm de ser muito gostoso, age como um verdadeiro remdio. Primeiros passos: os novos alimentos no Brasil Os primeiros esforos procuraram revelar a ateno dada aos novos alimentos aqui no pas, com o intuito de reunir elementos para determinar o foco que seria dado pesquisa, uma vez que ele tangenciava diversos aspectos, como sade pblica, desenvolvimento econmico, inovao industrial, etc. A reunio das primeiras referncias demonstrou que havia pouco espao dedicado ao tema na rea acadmica. A presena mais forte era nas reas biomdicas. Prevaleciam abordagens com clivagem tcnica, baseadas em evidncias cientficas do potencial teraputico de algumas substncias, os termos alimentos funcionais e nutracuticos, com algumas2

menes farmacoalimentos e superalimento. A maior ateno era dedicada pela mdia, fato evidente na crescente presena desses termos na cobertura dada para o papel diferenciador da alimentao para a manuteno da sade. Tambm era forte a presena deles nas abordagens sobre recentes tendncias de alimentao e consumo; estas feitas pelos peridicos da rea de negcios. Os termos alimentos funcionais e nutracuticos apareciam designando produtos alimentcios que oferecem benefcios superiores aos dos alimentos presentes no mercado, como mostra o trecho a seguir, extrado de uma reportagem de um conhecido peridico nacional, com o ttulo Revoluo na Mesaii: Primeiro cortaram o acar. E inventaram o diet. Depois reduziram a gordura. Surgiu o light. Agora a vez da terceira onda da mesa saudvel: os alimentos funcionais, aqueles que no apenas nutrem mas so capazes de combater doenas ou corrigir pequenas disfunes no organismo. No mero marketing. So produtos aprovados por publicaes cientficas e com a chancela do Ministrio da Sade dos pases onde so vendidos. Nessa reportagem, como em muitas outras, os alimentos diferenciados so industrializados, capazes de combater doenas e respaldados pela cincia. Essa abordagem contrastava com outras, que os posicionavam como tambm sendo in natura ou um ingrediente essencial disponibilizado para consumo, como mostra esta outra reportagem, intitulada Alimentos Funcionais: Nutrientes do Futuroiii: Enquanto os polmicos transgnicos pretendem revolucionar a cadeia produtiva, outros alimentos chegam mais discretamente s prateleiras dos mercados e vm ganhando espao. So os chamados funcionais ou nutracuticos que so alimentos que, alm de cumprirem sua funo nutricional bsica, contem compostos que trazem benefcios sade, assim como podem auxiliar na reduo de doenas crnico-degenerativas. Na verdade, todo alimento natural (no processado industrialmente) pode ser classificado como "funcional", j que contm, em doses variveis, componentes essenciais nossa sade, como vitaminas, minerais, enzimas, fibras - porm, certos alimentos contm, alm destes, outros componentes com grande capacidade protetora da sade. o caso do extrato de alho, da semente da linhaa, dos cereais, da soja, dos vegetais da famlia dos crucferos, dos produtos lcteos - que tem recebido o "status" de medicamento e tem sido classificados como alimentos funcionais. As primeiras constataes sobre o fenmeno, a partir de material disponvel no Brasil, demonstravam que: a sociedade estava mudando a viso sobre a importncia da dieta, saindo de uma perspectiva de manuteno uma de produo de sade. apesar de todos os problemas de imagem dos produtos industrializados, saudvel tornou-se uma imagem positiva junto ao consumidor desfrutada indistintamente por eles e pelos alimentos in natura. s vezes alimentos funcionais eram vistos como a mesma coisa que nutracuticos; outras vezes, porm, eram alimentos distintos. maior ateno era dedicada ao termo alimento funcional, originrio do Japo, e estava relacionado a um programa de melhoria dos ndices pblicos de sade da dcada de 80. As origens do nome nutracuticos no eram esclarecidas, apenas que era fruto da juno entre nutrientes e farmacuticos.

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no havia harmonizao sobre o que seriam esses novos alimentos, que podiam ser tanto os in natura quanto os processados, em apresentao formal e em formas no convencionais; ou mesmo ingredientes ou substncias como vitaminas. havia uma grande confuso com relao aos aspectos regulamentares, pois, alm de representarem uma verdadeira interseo entre alimentos, cosmticos e medicamentos, algo difcil de ser entendido para um indivduo comum, no havia o reconhecimento formal desses termos na vigilncia sanitria brasileira, que diferencia alimentos de medicamentos e de cosmticos.

parte a questo da mudana do comportamento de consumo de alimentos, algo notado empiricamente, os outros itens informavam que algumas questes precisavam ser equacionadas, entre elas, a qualidade da informao disponvel sobre o tema no Brasil e a organizao dos diferentes conceitos e abordagens feitas. Por exemplo, a reportagem de um dos maiores peridicos nacionais dizia que alimentos funcionais eram produtos aprovados por publicaes cientficas e com a chancela do Ministrio da Sade dos pases onde so vendidos. Um equvoco, j que, poca, no havia meno desses nomes na legislao sanitria brasileira e a reportagem tratava justamente do lanamento desses alimentos no pas! Outro aspecto importante dizia respeito existncia de diferentes interpretaes sobre o tema. Algumas separavam alimentos funcionais de nutracuticos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Alimentos Funcionais (SBAF), um alimento funcional deve continuar sendo um alimento e deve demonstrar os seus efeitos em quantidades que possam normalmente ser ingeridas na dieta: no uma plula ou uma cpsula, mas parte do padro alimentar normal. Por sua vez, a SBAF diz que os nutracuticos so suplementos dietticos que apresentam uma forma concentrada de um possvel agente bioativo de um alimento, presente em uma matriz no alimentcia, e usado para melhorar a sade, em dosagens que excedem quelas que poderiam ser obtidas do alimento normal (exemplo: licopeno em cpsulas ou tabletes)iv. Para fins de montagem de um quadro inicial mais preciso sobre a ascenso dos novos alimentos, mostrava-se alarmante o uso de maneira indiscriminada pelos peridicos no cientficos brasileiros dos termos alimentos funcionais e nutracuticos para abordar a relao dieta e sade. No geral, algumas questes importantes deixavam de ser abordadas no material (inclusive no de recorte acadmico) disponvel no Brasil sobre o tema. Foi ficando claro que as matrias anteriores a 2005 j incorporavam uma caracterstica comum s reportagens mais recentes dedicadas ao tema: a combinao de exaltao do poder teraputico de alguns alimentos, com imagem de pioneirismo e competncia da cincia e com os excelentes resultados de algumas empresas e suas marcas. Tais interpretaes deixavam a impresso de que o surgimento desse novo mercado refletia o proveitoso encontro entre desenvolvimentos cientficos, os desejos de uma sociedade por melhor controle sobre a sade e uma indstria responsiva, gil e perfeitamente capacitada para transformar conhecimento cientifico e desejos em solues de consumo alimentar eficazes e seguras. Embora seja um tema que envolva inovaes e aplicao e desenvolvimento de conhecimentos cientficos, no eram abordadas (i) as capacitaes organizacionais necessrias sua produo e as condies em que esta ocorre, e (ii) os aspectos sanitrios que responderiam por questes como segurana e eficcia dos novos alimentos, dado que so feitos apelos ousados para os produtos. O confuso quadro conceitual e a limitao das abordagens chamavam ateno para o desenvolvimento de uma abordagem de pesquisa que oferecesse uma perspectiva mais ampla, com o mximo de nitidez possvel, que oferecesse uma interpretao da trajetria desses novos alimentos. Isto comeou a se materializar a partir da leitura da reportagem abaixo, intitulada Sade Reclassifica Alimentosv. A reportagem, de 1998, trazia para o centro da4

discusso a questo da transformao internacional da regulamentao de alimentos: A Secretaria de Vigilncia Sanitria do Ministrio da Sade convocou nutricionistas, farmacuticos, mdicos e outros profissionais ligados a rea de alimentao e sade para reclassificar os produtos alimentcios brasileiros segundo padres internacionais. A discusso passa, necessariamente, por uma questo de nomenclatura: alimentos funcionais, nutracuticos, farmalimentos, vrias so as formas propostas. Mas o fundo da questo consiste em saber se tais produtos so remdios ou alimentos. A populao, alheia a esse debate, corre riscos como o uso excessivo e errado de substncias utilizadas como complemento alimentar, fato que preocupa especialistas[ . ]. Os alimentos funcionais ou nutracuticos (nomenclaturas mais usadas no Brasil) so produtos que apresentam grandes concentraes de determinados nutrientes, como aminocidos, sais minerais ou vitaminas. Segundo Mrcia Madeira, professora do Instituto de Nutrio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a denominao "alimento funcional" se d porque ele exerce uma determinada funo no corpo humano [...]. A reportagem reforava a ligao dos termos alimentos funcionais e nutracuticos com a prevalncia de uma abordagem mais ousada para o cuidado com a sade. Alm disso, ela ofereceu outros ngulos para o esclarecimento da ascenso desses alimentos, que ganharam notoriedade em meio ao desenrolar de um processo internacional de reclassificao dos alimentos. E de onde se evidenciava, a priori, apenas um problema de nomenclatura: qual termo escolher entre vrios propostos para nomear os novos alimentos? Fato que estava associado a uma importante inovao regulamentar e que foi superficialmente abordada: a atribuio de propriedades teraputicas aos alimentos. O Brasil, portanto, representava mais um local onde se desenrolava o processo de transformao da legislao sanitria para formalizar o uso do potencial teraputico dos alimentos. Como pano de fundo desse contexto, a crescente mediao da linguagem cientfica, que ocorria por meio da divulgao de resultados de pesquisa e da participao de profissionais acadmicos nas coberturas da mdia. As origens dos alimentos funcionais e nutracuticos O aprofundamento da reviso conceitual mostrou que a emergncia dos novos alimentos est diretamente relacionada com uma experincia japonesa dos anos 80 para uso dos alimentos como aliados na melhoria dos ndices de sade publica do pas, assolado por crescentes gastos com o tratamento de doenas crnicas, como diabetes, acidentes vasculares e do corao, todas relacionadas aos hbitos alimentares e estilo de vida. O governo liderou um grande esforo de pesquisa para identificao das substncias que respondiam pelos benefcios em alimentos usados para fins teraputicos pela populao. O esforo originou o conceito de alimentos funcionais e estimulou a criao de uma categoria de alimentos com propriedades de sade, classificada como alimentos funcionais, mais tarde modificada para FOSHU (food for special health purpose), em funo de presses da indstria de medicamentos. Tais produtos foram definidos como aqueles desenhados e processados a fim de expressar de forma suficiente as funes relacionadas ao mecanismo de defesa do corpo, controle do ritmo corpreo, a preveno e recuperao de doena (KWAK e JUKES, 2001a). E deveriam satisfazer as seguintes condies: Consistir de ingredientes ou composies convencionais e ser consumido nas formas e mtodos convencionais.5

Ser consumido como parte de uma dieta padro. Ser rotulado como tendo controle sobre funes do corpo.

Os fabricantes dos FOSHU, depois de devida comprovao cientfica e escrutnio tcnico por parte do governo, poderiam alegar nos rtulos, e demais esforos de marketing, o bem que o produto fazia sade. Era permitido usar substncias naturais, sintticas ou de origem transgnica. Essa iniciativa do governo japons criou um importante precedente no paradigma de regulamentao dos alimentos: reconhecer formalmente o potencial teraputico dos alimentos e permitir o uso de alegaes de sade nos rtulos e peas de marketing. E o fez pela introduo de uma nova categoria de produtos, que poderia ter a alegao especfica para ela. As justificativas para essa inovao regulamentar foram a melhoria dos ndices de sade pblica e o incentivo inovao na indstria. No que diz respeito aos novos alimentos, o mercado de alimento japons visto como altamente competitivo j que os concorrentes respondem rapidamente aos lanamentos feitos por uma empresa. A recepo a esses produtos tida como boa, dado que a grande maioria dos consumidores bem informada, consciente das questes de sade, inovadora e gosta de variar sua alimentao diria (HEASMAN e MELLENTIN, 2001). Esta experincia de reclassificao dos alimentos disseminou-se pelo mundo dando visibilidade ao conceito de alimentos funcionais, comumente definidos fora do Japo como um alimento que: possui efeitos fisiolgicos comprovados que melhorem a sade ou diminuem o risco de uma determinada doena ou condio de sade, alm de seus valores nutricionais bsicos. similar ao alimento convencional. consumido como parte de uma dieta normal. seguro para o consumo sem a necessidade de superviso mdica. Os Estados Unidos dividem com o Japo os mritos pela disseminao do uso teraputico dos alimentos. Entretanto, essa experincia repercutiu de outra maneira por l, e sob a liderana do mercado (FARR, 1997). O pas no criou uma nova categoria de produtos, como fez o Japo nem reconheceu formalmente o termo alimentos funcionais. A partir de 1990 eles promoveram vrias mudanas na legislao sanitria permitindo o uso de alegaes de sade apenas para substncias, desde que cientificamente comprovada a eficincia das mesmas. As alegaes so franqueadas, com algumas restries, para alimentos convencionais e suplementos alimentares. No pas, os produtos com potencial teraputico so popularmente reconhecidos como nutracuticos, resultante da juno das palavras nutrientes e farmacuticos, mas tambm sem qualquer cobertura formal. O pas no tem qualquer restrio ao uso de substncias transgnicas, mas probe substncias sintticas. Um nutracutico geralmente definido como um produto isolado ou purificado de um alimento, vendido na forma medicinal no usualmente associada com alimentos, como ps, tabletes ou cpsulas. So produtos com benefcio fisiolgico demonstrado ou que oferea proteo contra doenas crnicas (AAFC, 2007). O Brasil comeou se organizar para abordar a questo em 1998, convocando nutricionistas, farmacuticos, mdicos e outros profissionais ligados rea de alimentao e sade para reclassificar os produtos alimentcios brasileiros segundo padres internacionais. A razo foi o grande nmero de pedidos de anlise para fins de registro de diversos produtos at ento no reconhecidos como alimentos, dentro do conceito tradicional de alimento. Com o passar dos anos, alm do aumento do nmero de pedidos, aumentou tambm a sua variedade e os apelos e divulgao nos meios de comunicao desses produtos. Desde 1999 saram vrias6

resolues referentes reclassificao dos alimentos, sem que fosse criada uma nova categoria de produto ou reconhecidos os termos alimentos funcionais ou nutracuticos. Com relao Unio Europia, apenas em 2007 comeou a funcionar uma legislao que harmonizava as prticas de uso teraputico dos alimentos dos Estados-Membros. Como reflexo da disseminao das primeiras experincias de reclassificao dos alimentos, e mesmo sem cobertura formal, os termos alimentos funcionais e nutracuticos ficaram associados com trs tendncias sociais facilmente observadas e que caracterizam a ousadia no cuidado com a sade: mudana de um comportamento voltado ao tratamento de doenas para outro orientado preveno; busca por maior longevidade e beleza e o desejo por produtos e servios com abordagem customizada. Os novos alimentos simbolizam uma importante mudana no paradigma de enfrentamento dos problemas de sade pblica relacionados dieta. Isto porque o comportamento voltado ao tratamento de doenas uma notria conseqncia da chamada healthy-eating revolution, nome dado disseminao pelos pases desenvolvidos de aes governamentais para promoo de recomendaes e novas metas dietticas orientadas populao adulta visando a reduo de doenas, particularmente, as doenas de corao. Faziam parte dessas metas o consumo de alimentos naturais e a reduo do uso de produto industrializado e altamente calrico. Por sua vez, a busca por maior longevidade e beleza e o desejo por produtos e servios com abordagem customizada representam um novo momento social, batizado de functional foods revolution por Heasman e Mellentin (2001). Essa revoluo entendida como a disseminao de um comportamento individual orientado preveno de doenas a partir do uso de produtos e ingredientes funcionais especficos. A reclassificao dos alimentos: breve mudana de rota no foco da pesquisa Uma vez que a criao de novas categorias de alimentos limitou-se experincia japonesa, e que no houve reconhecimento dos termos alimentos funcionais e nutracuticos, as alegaes de sade podiam ser endereadas a alimentos convencionais e suplementos alimentares, de acordo com o interesse de cada pas. Era isso que consistia a reclassificao dos alimentos, fato que conduziu a uma mudana de rota na pesquisa. A questo de pesquisa que se evidenciava era a de investigao do processo de formalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos. A reclassificao dos alimentos bastante influenciada pelo posicionamento das estruturas de vigilncia sanitrias dos pases em relao s inovaes. O elemento central do processo ora estudado a concesso do direito de alegar que um determinado alimento alm de nutrir, pode trazer benefcios especficos sade, como prevenir ou tratar algumas enfermidades e disfunes no organismo. A maior parte dos trabalhos dedicados ao tema aborda a formalizao das health claims, alegaes de sade, que significam qualquer representao, presentes nos rtulos ou peas de comunicao, que afirme, sugira ou implique a existncia de uma relao entre um alimento ou um dos seus constituintes e o estado de sade (HAWKES, 2004). As maiores atenes esto voltadas, porm, para os desdobramentos, pois diretamente relacionadas a este direito, encontram-se questes importantssimas, como: definio do alcance das health claims, dos limites para a divulgao dos benefcios oferecidos pelos alimentos. determinao de que tipos de alimentos e substncias sero beneficiados e as condies de avaliao das alegaes reclamadas.

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O uso teraputico de alimentos uma prtica social histrica que foi perdendo sua importncia com a consolidao da indstria farmacutica, dos medicamentos sintticos e das prticas de pesquisa e clnica mdica, a partir da estruturao da vigilncia sanitria. A reclassificao dos alimentos um processo extremamente complexo e envolve diversos interesses, chamando ateno para o que est por trs dele: uma proposta diferenciada de como as pessoas devem entender e promover os cuidados com a prpria sade. E que se materializa, evidentemente, numa postura preventiva associada ao uso de alimentos especficos. A consolidao das estruturas de vigilncia sanitria pelo mundo, amplamente influenciada por uma presso para harmonizao, tornou o uso de alegaes teraputicas ou mdicas exclusividade de medicamentos. Enquanto que para os alimentos ficou altamente restrito o uso de alegaes, contribuindo para que esses ficassem reconhecidos como tradicional fonte de energia e nutrientes indispensveis sobrevivncia ou mesmo uma deliciosa fonte de prazer. O consenso que as estruturas de Vigilncia Sanitria sempre utilizaram o princpio da precauovi, posicionando-se de forma contrria aprovao de alegaes para alimentos existentes e novos projetos de alimentos at serem totalmente descartados os risco de contaminaes e outros danos. Em sntese, diz Lucchese (2001), esse princpio consiste em fazer uso restrito e controlado das substncias ou processos suspeitos de causar danos at que se obtenham evidncias mais definitivas a respeito da caracterizao de seu risco. Desta maneira, em muitos pases do mundo, se um fabricante de alimento quiser alegar que o produto dele traz benefcio especfico sade, ele tem que submeter as provas ao mesmo processo de avaliao de um medicamento. Se for bem sucedido, ele ter que vender o produto como medicamento e arcar com um extenso e oneroso processo. Esta realidade fez com que o foco dessa pesquisa fosse orientado para a maneira como os pases esto formalizando e materializando o uso do potencial teraputico dos alimentos. Ficou evidente que at que um novo alimento chegue ao mercado, questes regulamentares e cientficas so consideradas j que no so apenas interesses de atores econmicos que esto em jogo. Tambm esto envolvidas questes ticas e profissionais, segurana dos alimentos, segurana alimentar, mudana dos ndices de sade pblica, propriedade e comercializao de conhecimento e a insero dos pases onde esse processo ir se desenrolar no Sistema Agroalimentar mundial. Portanto, para efeito de conduo deste trabalho, essa formalizao chamada de institucionalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos. O termo institucionalizao usado para denotar a complexidade deste processo e a lgica que o mesmo est seguindo enquanto se torna realidade pelos diversos pases. Entende-se que um processo envolvendo vrios atores e uma complexa rede de temas associados suscita diversos questionamentos sobre os possveis caminhos a serem seguidos e suas conseqentes vantagens e desvantagens, ganhadores e perdedores. Outro fato importante que mesmo no plano internacional, a reclassificao dos alimentos no de todo conhecida, permanecendo sob os holofotes a posio destacada dos termos alimentos funcionais e nutracuticos. Realidade visvel em qualquer busca pela internet e nos bancos de dados de trabalhos cientficos. Ainda que esses conceitos sejam completamente distintos e sem reconhecimento formal, segundo a literatura tcnica. A institucionalizao e a questo agroalimentar Por se tratar de alimentos e de substncias presentes em alimentos, natural esperar que a institucionalizao do uso teraputico dos alimentos repercuta sobre a questo agroalimentar. Como o uso de alegaes de sade , acima de tudo, um fator de qualificao8

de um produto, os alimentos que a recebem oferecem oportunidade de diferenciao competitiva nica. A alegao de sade e a imagem da substncia funcional tm o poder de elevar significativamente a imagem de um produto, contribuindo para que ele se afaste do plano das comparaes entre produtos, posicionando-o confortavelmente longe de presses competitivas baseadas em preo. Em funo da promessa de mudanas no muito simples na maneira como as pessoas conduzem aspectos centrais das suas vidas, como as prticas de cuidados pessoais e hbitos alimentares, natural que a institucionalizao do uso teraputico dos alimentos tenha repercusses extremamente significativas. A mais visvel , sem duvida alguma, a destruio daquela fronteira semntica socialmente construda para separar medicamentos de alimentos; aquela fronteira aprendida no processo de educao que delimita o que so, para que servem e quando devem ser utilizados medicamentos, cosmticos e alimentos. So vrios os ngulos para observar essa institucionalizao, pois vrios so os atores envolvidos (Ver Figura 1), mas o que tem chamado maior ateno o da repercusso econmica, isto , das possibilidades de ganhos que emergem.Poder Pblico Sociedade Novos Alimentos Interesses individuais Atores acadmicos Associaes profissionais

Atores econmicos

Figura 1: Atores diretamente envolvidos com a reclassificao dos alimentos. Para a indstria de alimentos ela representa uma mudana radical, pois significa a oportunidade de novos negcios com a venda de produtos de maior valor agregado. Para as indstrias de cosmticos e medicamentos, ela sinaliza potenciais perdas. Para analisar os reflexos dessa institucionalizao sobre a questo agroalimentar, mostrou-se necessrio acompanhar como pases e empresas esto se articulando. E alguns exemplos j esto disponveis, chamando muita ateno. A empresa francesa Danonevii, dona da linha de produtos Activia, j considerada um modelo positivo desse novo momento da indstria global de alimentos. Os analistas do mercado de novos alimentos dizem que a empresa se reinventou. Provavelmente, essa reinveno diz respeito ao aumento do foco em pesquisa e desenvolvimento, fundamental para o desenvolvimento dos novos alimentos e que, como os medicamentos, consome muito tempo e dinheiro. Com as aquisies da Yakult e Numico, a empresa soma esforos de pesquisa ao centro internacional de pesquisa do grupo (Danone Research Centre Daniel Carasso) na Frana, que gasta anualmente cerca de 1,3 bilhes de dlares. A empresa tem mais de 30 centros de pesquisa e 1000 cientistas espalhados pelo mundo voltados identificao de novas substncias que possam ser incorporadas aos produtos. Estima-se que a empresa leve at dez anos entre a pesquisa da substncia bioativa e os testes clnicos com seres humanos para chegar a um novo alimento funcional. Alguns pases j esto se movimentando para aproveitar os benefcios desse processo9

de reclassificao dos alimentos, como o Canad, que est desenvolvendo o projeto FLAX CANADA 2015viii, que objetiva o reconhecimento do pas como lder global no desenvolvimento e comercializao de produtos de linhaa para melhoria da sade humana no ano 2015. As estimativas so de que o projeto gere benefcios sociedade canadense na ordem de $15 bilhes atravs de sade, bem-estar e sustentabilidade ambiental. O projeto consiste de um grande esforo de pesquisa para descobrir e comprovar o potencial teraputico dos subprodutos da linhaa (flax), e transferir os conhecimentos para empresas privadas desenvolverem alimentos de maior valor agregado. A linhaa reconhecida como uma das poucas fontes vegetais de mega 3, substncia geralmente presente em animais e vegetais de fontes marinhas. Considerando que outros dois processos de institucionalizao significativos para a questo agroalimentar esto envolvidos a dos organismos geneticamente modificados (OGM) e dos alimentos orgnicos evidencia-se um grande choque de interesses entre todos os atores que formam o SAA, dos fornecedores de insumos aos pontos de vendas de produtos finais. Entram no cenrio as empresas de biotecnologia e os supermercados. Algumas questes podem ser destacadas para nortear essa anlise, e se relacionam com questionamentos sobre (i) o tipo de alimento que poder receber alegao de sade (Industrializado ou In natura); (ii) os tipos de substncias que recebero alegaes de sade (naturais, sintticas ou geneticamente modificadas); (iii) as condies para comercializao desses produtos (direta ou com recomendao mdica); (iv) a harmonizao das legislaes, o que influencia as importaes e exportaes. Os itens a seguir oferecem uma breve perspectiva de como interesses do SAA so influenciados por esta institucionalizao: Segurana do consumidor: a mudana na legislao sanitria, ao permitir o uso de alegaes mais ousadas para alimentos, vai flexibilizar os mecanismos de avaliao de segurana e eficcia dos alimentos ou das substncias? Ou vai torn-los to severos quanto os cobrados para medicamentos? Competio no sistema agroalimentar: esta institucionalizao tangencia a consolidao dos organismos geneticamente modificados e a definio das legislaes mundiais sobre os novel foods. importante ressaltar que este processo pode definir os organismos geneticamente modificados como design dominante de produtos alimentcios no SAA. Foco em substncias e no em produtos: esta questo mexe diretamente com os interesses dos atores econmicos. Se o foco em produto industrializado, ele favorece aos atores que lidam com produtos finais. Se o foco sobre substncia, ele favorece bastante empresas processadoras e produtoras de ingredientes e aos produtores de alimentos com qualidade diferenciada. Patentes: a utilizao de alegaes especficas para produto abre o caminho para o uso de patentes, o que por sua vez estimularia maiores investimentos em P&D e abertura de novos negcios. Esta situao favorece mais as grandes empresas do que as pequenas empresas, que seriam desestimuladas em funo dos altos custos para identificar e comprovar a eficcia e segurana dos seus produtos. Comercio internacional: Importaes e exportaes so afetadas pela complexidade regulamentar, prejudicando pases em desenvolvimento em funo das legislaes de novel foods. Polticas pblicas: as polticas pblicas sero remodeladas para acomodar transformaes regulamentares? Este fato implica a redefinio de polticas pblicas para sade, agricultura, educao e pesquisa. Devido sua direta relao com capacitaes em P&D, provvel que esse processo v estimular significativas transformaes nas estratgias de negcio das empresas, o que se10

refletir em mudanas nos modelos de negcios, no padro de relacionamento entre empresas e na maneira de atender ao mercado. De acordo com Wilkinson (2002), a realidade subjacente consolidao dos alimentos funcionais e nutracuticos um desafio mesmo para as grandes empresas de alimentos, dado que nem elas tm todas as tecnologias e habilidades requeridas para a disponibilizao destes produtos para consumo. Diferentes arenas e questes da institucionalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos Como visto, o fenmeno em questo bem mais complexo do que sugerem a maioria dos trabalhos o abordando. Posto de maneira bem simples, os novos alimentos representam excelentes oportunidades para casar o descobrimento cientfico com o crescente interesse do consumidor em alimentos que melhoram a sade. Contudo, experincias como a da Danone sugerem que para os benefcios desse processo se materializar, que o casamento vingue, so necessrias transformaes na maneira como pases e empresas interessadas se organizam no apenas em termos regulamentares, mas tambm acadmica e empresarialmente. No centro de tudo est a complexidade de gerao e coordenao da base de conhecimento demandada, uma vez que este processo exige intensa atividade cientfica e de P&D, mecanismos de transferncia de tecnologia, tecnologia de produo e estrutura de desenvolvimento, testagem, posicionamento e comercializao de produtos. No que diz respeito s empresas, a experincia internacional tem alertado para a necessidade de formao de cadeias de suprimento para viabilizar o aproveitamento dessa oportunidade, dado que dificilmente as competncias e capacitaes demandadas sero encontradas em um nico ator. Com relao aos pases, a tendncia o desenvolvimento de aes governamentais em colaborao com empresas e centros de pesquisas. Esta realidade estimulou o desenvolvimento de uma abordagem diferenciada para que este trabalho contribusse para a ampliao do entendimento desse fenmeno, permitindo sua localizao no tempo e no espao e a anlise das suas implicaes. Ento, optou-se por desenvolv-lo pela perspectiva da descrio e anlise de arenas em que o processo de institucionalizao se desdobra (ver Figura 2). A idia era oferecer uma contribuio mais consistente sobre os eventos e questes presentes no caminho percorrido pelos novos alimentos dos laboratrios aos pontos de vendas. O que, por sua vez, facilitaria a visualizao da sua influencia sobre questo agroalimentar. Como ser visto adiante, os captulos deste trabalho representam as arenas.Novos alimentosArena 1 Dimenso cientfica Arena 2 Dimenso regulamentar Arena 3 Dimenso mercado Sade Pblica? Desenvolvimento? Lucros?

Figura 2: Arenas de consolidao da explorao do potencial teraputico dos alimentos. A investigao bibliogrfica demonstrou que, independente do pas onde ocorra, esta institucionalizao percorre trs arenas intimamente relacionadas cientfica (laboratorial), regulamentar e de mercado e onde a dimenso regulamentar define a sua dinmica. Chegou-se a essa diviso observando a distribuio das abordagens feitas nos trabalhos revisados, quando foi ficando patente a convergncia dos diversos assuntos abordados para as trs arenas selecionadas. Procura-se contemplar estas arenas na estruturao deste trabalho. Devido sua centralidade, a arena 2 envolve fatos relativos transformao dos sistemas de vigilncia sanitria dos pases. Trata-se da transformao das estruturas jurdicas (relativa legislao sanitria) e organizacionais (dos rgos e procedimentos de atuao destes) pensadas para tratar das ameaas sade pblica resultantes do modo de vida11

contemporneo, completamente baseado no consumo. Neste caso, do uso e consumo de novos materiais, novos produtos, novas tecnologias e novas necessidadesix. Tradicionalmente, as estruturas de vigilncia sanitria dividem os medicamentos de alimentos e cosmticos, impondo srias restries s alegaes que os fabricantes de alimentos podem fazer sobre seus produtos, proibindo, inclusive, alegaes medicinais, as que sugerem que um alimento pode ser usado para cura e tratamento de doenas. Aqui tambm so exploradas as modificaes que os paises fizeram em termos de uso de alegaes de sade. As principais definies sobre alegaes de sade so abordadas aqui. Os trabalhos que se encaixam na arena 1 so mais tcnicos, envolvendo, predominantemente, reas das cincias naturais e biomdicas, onde o papel da pesquisa altamente evidenciado na descoberta de novas interaes entre alimentao e sade. Basicamente, so investigadas quais substncias respondem pela mudana do estado de sade de uma pessoa e em que condies elas operam. Do ponto de vista da pesquisa, analisam-se as tendncias em termos de consolidao das trajetrias de inovao. Do ponto de vista prtico, o conhecimento gerado nesta arena leva ao desenvolvimento de novos produtos e conceitos e comprovao da segurana e eficcia dos mesmos. A questo central que emerge se os alimentos sero considerados benficos sade maneira como ocorre com os medicamentos, ou seja, submetidos a anlises epidemiolgicas, de mecanismos biolgicos e ensaios ou interveno clnicas? A maioria dos trabalhos disponveis sobre os assuntos functional foods e nutraceuticals pertence a esta arena. Nela tambm so feitas as principais revises conceituais sobre alimentos funcionais, nutracuticos e substncias bioativas. A dimenso mercado (Arena 3) envolve aspectos de organizao das atividades econmicas e da aceitao desses produtos no mercado. O argumento que uma vez comprovados os benefcios alegados para uma substncia bioativa e contemplada a questo regulamentar, vem o processo de adequao desta s condies de produo e consumo de alimentos, ou seja, sua transformao em produtos. Analisa-se como se conformar e comportar a cadeia de suprimento destes produtos, e como os atores interessados se articulam. Algumas questes so bem evidentes em termos de produto: lanamento e consolidao de novos projetos de produtos e marcas; reposicionamento de produtos e marcas existentes. Em termos estratgicos, analisam-se as movimentaes dos atores para viabilizao dos produtos, isto , dos investimentos, parcerias, fuses, aquisies empreendidas da rea de plantio aos pontos de venda. Esta arena tambm envolve as conseqncias deste processo, suas repercusses em termos de consumo individual e de sade pblica. Conforme mostram alguns estudos pertencentes a esta arena, trata-se de algo que passa pela conquista da confiana da sociedade, pois esta precisa acreditar nos benefcios alegados nos rtulos ou propagandas dos produtos. Alm dos problemas de confuso conceitual e limitao de abordagem, raro encontrar trabalhos dedicados ao tema que o abordem de maneira sistmica, prevalecendo o foco sobre questes especficas: evidncias cientficas; aspectos legislativos; comportamento do consumidor. Desta maneira, deixa-se de fornecer um quadro mais amplo do que seja esse processo, como ela acontece e quais as conseqncias para a sociedade. Devido magnitude dos interesses envolvidos, trata-se de algo extremamente relevante e que justifica esforos de pesquisa que contribuam para o entendimento de como a sociedade brasileira ser afetada pelo mesmo. Portanto, o presente estudo procurou preencher estas lacunas, usando a perspectiva de arenas da institucionalizao para fornecer um amplo painel de visibilidade da disseminao mundial da uso do potencial teraputico dos O uso de alegao de sade para alimentos tem sido pouco estudado no Brasil, prevalecendo os estudos de reas com recorte mais tcnico, como os das reas de biomdica e de tecnologia de alimentos. Os trabalhos de Franco (2006) e Silveira (2006), ambos da rea12

biomdica, fazem uma reviso sobre o tema objetivando a anlise e comparao da legislao brasileira, nos aspectos de desenvolvimento, avaliao e comercializao dos alimentos funcionais, com a legislao de outros pases. Premissas para o desenvolvimento do trabalho Das arenas surgiram questes relevantes para a conduo dessa pesquisa. Neste sentido, um aspecto central analisar como a institucionalizao no Brasil se alinha com os processos ocorridos no Japo e Estados Unidos, devido centralidade destes pases nesse processo. E tambm com a experincia da Unio Europia, muito em funo do seu mercado consumidor, importncia para o comercio internacional e tambm pela reao demonstrada l contra os organismos geneticamente modificados. Ser investigada a possibilidade de harmonizao regulamentar e as possveis conseqncias sobre a dinmica do SAA brasileiro, maneira como ocorreu com os medicamentos. A institucionalizao representa oportunidade nica para que empresas e pases faam seu posicionamento estratgico no SAA mundial. Historicamente pases e empresas tm se posicionado estrategicamente refletindo uma tendncia de diviso internacional do trabalho na produo e fornecimento de alimentos. Observam-se, de um lado, os pases e empresas que produzem tecnologia e produtos de maior valor agregado e, do outro lado, pases e empresas que produzem produtos sem valor agregado e que so importadores de tecnologia. O foco da institucionalizao sobre as substncias bioativas, que efetivamente respondem pelo benefcio sade, abre espao para uma reviso dessas estratgias, a partir do estmulo econmico que ser dado a cultivares at ento fora do mainstream dos produtos alimentcios. Neste caso, h que se analisar como ser conduzido o processo de institucionalizao em cada pas. Isto , se eles iro refletir a existncia de uma abordagem sistmica, envolvendo polticas e aes governamentais consistentes e bem desenhadas ou investimentos em pesquisa e desenvolvimento feitos isoladamente por firmas individuais? Com relao s substncias, importante definir para quais tipos podem ser reclamadas propriedades teraputicas. Alm de afetar aspectos como exportao e importao, esta definio influenciar significativamente as movimentaes competitivas dos atores econmicos do SAA (dimenso oferta) no pas. No caso das substncias, deve-se definir se sero aceitas alegaes apenas para substncias naturais ou se tambm sero permitidas alegaes para substncias obtidas por meio de manipulao gentica ou processos sintticos. No caso dos alimentos, deve-se definir entre os seguintes tipos de alimentosx: que naturalmente contenha quantidade suficiente de uma substncia funcional. P.ex.: aveia com betaglucana. que tenha um componente naturalmente aumentado atravs de tcnicas produtivas ou manipulao gentica. P. ex.: Ovos com teor de mega 3 aumentado atravs de mudana na alimentao do frango ou o Golden Rice, arroz que recebe mudana gentica para ter teor de vitamina A. que tenha formulao alterada para incorporar um ingrediente funcional. P.ex.: Margarina fortificada com esteris vegetais. que a natureza de um ou mais componentes ou sua biodisponibilidade em humanos tenha sido modificada por meio de tecnologias especiais de processamento. P.ex.: Fermentao com bactrias especficas para alcanar peptdeos bioativos. que teve um componente deletrio removido, reduzido ou substitudo por outra substncia com benefcios especiais. P. ex. Goma de mascar adoada com xilitol ao invs de acar.

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Dado que no h duvidas sobre a ocorrncia de repercusses econmicas em funo desta institucionalizao, resta saber quem sero os favorecidos e os prejudicados. As empresas farmacuticas tm muito interesse nessa definio, principalmente se a nova legislao previr a possibilidade de reposicionamento de substncias que j foram medicamentos, como ingrediente de alimento. Todavia, essa perspectiva no interessa s empresas de biotecnologia, mesmo que muitas delas tenham operaes farmacuticas, que ainda apostam no potencial da biotecnologia para produo de substncias diferenciadas. Muito menos s empresas processadoras de alimentos e alguns fabricantes de alimentos finais, altamente especializados em gros e que j desenvolvem substncias extradas desses gros, como o caso da Quaker com aveia e da Bunge com a Soja. Tambm devem ser considerados os interesses dos grandes fabricantes de alimentos, especialistas no desenvolvimento de marcas, como a Unilever e Nestl. Se o foco regulamentar prevalecer sobre as substncias, sugerindo que todo alimento funcional em certa medida, essa posio vai de encontro aos interesses das indstrias de alimentos, pois no gera a possibilidade de exclusividade para alimentos industrializados, isto , sobre produtos especficos. De fato, isso beneficiaria os atores envolvidos com a produo de orgnicos. No que diz respeito ao tipo de substncia, entende-se que o foco deva recair sobre aquelas de ocorrncia natural, favorecendo a rica biodiversidade brasileira. Com relao ao tipo de produto, possvel que aja permeabilidade da legislao para todos os tipos de produto, principalmente, pelo fato do pas ter sido permevel aos organismos geneticamente modificados, sugerindo que os produtos oriundos do uso desta tecnologia devam prevalecer. Num sentindo mais amplo, esta definio influenciar as aes mercadolgicas das empresas com relao ao lanamento de produtos novos para o mundo, novas linhas de produto, novos produtos numa linha j existente ou reposicionamento de produtos existentes. Objetivos e consideraes metodolgicas A adoo da perspectiva de arenas visou a construo de um amplo painel de visibilidade da ascenso dos alimentos funcionais e nutracuticos, com o intuito de esclarecer o que so novos alimentos, as condies em que eles esto sendo apresentados pelo mundo, e as conseqncias para a questo agroalimentar. Especificamente procurou-se com este trabalho: posicionar os novos alimentos nas tendncias de oferta de alimentos no SAA. identificar possveis conseqncias deste processo sobre a estrutura de oferta do SAA, procurando abranger aspectos de estratgia de negcio e de produto. esclarecer os impactos econmicos da produo e consumo dos novos alimentos. demonstrar como Japo, Estados Unidos e Unio Europia promoveram as transformaes da estrutura de vigilncia sanitria e as tendncias de uso de alegaes de sade, assim como os caminhos seguidos pela Brasil neste sentido. Do ponto de vista metodolgicoxi, o trabalho se caracteriza por sua natureza qualitativa. Procurou-se interpretar o fenmeno em questo descrevendo-o e explorando suas principais caractersticas e implicaes. Opta-se por essa abordagem pelo fato dela oferecer um nvel de anlise adequado para a visualizao das possveis conseqncias sobre o funcionamento do SAA. Devido baixa incidncia de estudos da rea de cincias sociais dedicados ao tema, abriu-se mo de abordagens metodologicamente mais complexas que, por um lado, permitiriam controlar caractersticas ou correlacion-las para chegar a um nvel extremamente detalhado de explicao do mesmo, e, por outro, uma interpretao mais aprofundada a partir da aplicao de um arcabouo terico mais sistematizado.14

Como esclarece a rea de mtodos e tcnicas de pesquisa, um acontecimento no deve ser considerado um simples objeto de observao, mas uma oportunidade para se empreender uma anlise emprica de um fenmeno da realidade (referncia). Este foi justamente o intuito que dirigiu este trabalho: abordar os alimentos funcionais e nutracuticos como um fenmeno da realidade recente e desenvolver uma estrutura que proporcionasse maior conhecimento sobre eles. Isto mostrou-se um grande desafio, pois, como mencionado anteriormente, optou-se por uma abordagem diferenciada para que este trabalho contribusse para a ampliao do entendimento desse fenmeno, o que levou perspectiva da descrio e anlise de arenas (dimenses) em que o processo de institucionalizao se desdobra (Figura 2). O uso de uma metodologia muito especfica levaria abstrao tpica do positivismo cientfico e seleo de aspectos especficos do objeto, ou seja, ao isolamento de uma parte do objeto e da concentrao dos esforos para conhec-lo. Em outras palavras, dissec-lo at descobrir mais particularidades dentro de uma realidade j bem segmentada. Outro fator importante foi a falta de contedo relevante sobre o tema na rea de cincias sociais e humanas. Desta maneira, fudamentam esta abordagem os mtodos qualitativo e descritivo de pesquisa. O primeiro mtodo enseja que se estude o objeto no sentido de interpret-lo em termos do seu significado maior, no carecendo de tcnicas quantitativas. Como tpico deste mtodo de pesquisa, procurou-se considerar a totalidade, e no dados ou aspectos especficos da emergncia de novos alimentos no SAA. O mtodo comparativo se realiza pela anlise de sujeitos, fenmenos ou fatos, com o propsito de destacar as diferenas e semelhanas entre eles. Ele fundamentou o desenvolvimento dos captulos sobre a dimenso regulamentar e conduziu ao esforo comparativo das realidades regulamentares do Japo, Unio Europia, EUA e Brasil. Esta pesquisa tambm se caracteriza pelos seus processos exploratrios e descritivos. O primeiro processo d pesquisa exploratria a opo de ser empreendida quando se tem poucos dados disponveis, situao vivida neste trabalho. Assim, procura-se aprofundar e apurar idias e a construo de hipteses. O segundo processo d pesquisa descritiva a caracterstica de buscar enumerao e ordenao de dados, sem o objetivo de comprovar ou refutar hipteses exploratrias, abrindo espao para pesquisas explicativas, aquelas normalmente fundamentadas em experimentao. Espera-se, portanto, que este trabalho contribua para isso. Como informa o mtodo desta pesquisa, no foi utilizado nenhum processo quantitativo no trabalho. Na pesquisa quantitativa a realidade (o fenmeno ou suas partes) expressa em nmeros. O uso de ferramental quantitativo paramtrico ou no paramtrico faz com que os dados sejam analisados de maneira bem objetiva, tornando a abordagem mais emprico-analtica. Ao contrrio dessa, na pesquisa qualitativa a realidade verbalizada. Isto , os dados recebem tratamento interpretativo, com interferncia maior da subjetividade do pesquisador, tornando a abordagem mais reflexiva. Ainda com relao ao tipo de pesquisa, cabe ressaltar o uso de pesquisa bibliogrfica e de estudo de caso. Uma caracterstica central deste trabalho a intensa pesquisa bibliogrfica. Segundo Alyrio (2007), o exerccio bsico na pesquisa bibliogrfica a investigao em material terico sobre o assunto a ser trabalhado. E deve compreender o mximo da bibliografia de domnio pblico em relao ao assunto estudado, considerando livros, publicaes avulsas, boletins, jornais, revistas, monografias, dissertaes, teses etc. Utilizouse neste trabalho pequenos estudos de caso. Neste tipo de pesquisa, o pesquisador dedica-se ao estudo intenso de situaes do passado, que possam ser associadas a situaes presentes, em relao a uma ou algumas unidades sociais: indivduo(s), grupo(s), instituio(es), comunidade(s), como tambm salienta MARTINS (1994).

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Descrio do Trabalho Conforme mencionado anteriormente, a estruturao do trabalho priorizou a produo de uma descrio mais abrangente do fenmeno, dividindo este em arenas. No captulo 1 apresenta-se uma breve descrio de como anda a questo agroalimentar, para analisar como a institucionalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos repercute sobre a dinmica desta questo. O captulo traz uma breve descrio das tendncias no fornecimento de alimentos e na organizao das respectivas atividades produtivas. Esta abordagem influenciada pela nfase dada pela literatura ao que aqui ser chamado de contnua transformao da questo agroalimentar. Diferentes conceitos foram utilizados para fornecer um amplo painel de visibilidade sobre a oferta de alimentos e os interesses dos atores com ela envolvidos; e de onde se destaca o papel diferenciador que a qualidade tem desempenhado. O captulo tambm oferece uma descrio do ambiente de negcio a partir da identificao dos comportamentos estratgicos dos atores econmicos e da anlise de como estes se consolidaram com o tempo, inspirados num contexto em que a qualidade e sua relao com as movimentaes (reaes) dos consumidores assumem significativa importncia. No captulo 2 analisa-se a emergncia dos termos alimentos funcionais e nutracuticos e sua relao com o processo de reclassificao dos alimentos. Esta primeira dimenso do processo de institucionalizao desses alimentos denominada cientfica devido centralidade exercida por este tipo de conhecimento nas anlises disponveis sobre a relao entre dieta e sade. Ele comea com a reviso da literatura que define o que so alimentos funcionais e nutracuticos, explica os contextos em que os mesmos emergem e ganham visibilidade, e apresenta as principais definies subjacentes aos interesses de formalizao dos mesmos como novas categorias de produto alimentcio. Tambm so abordados exemplos de como os pases esto se mobilizando para dar conta dessa oportunidade, uma vez que os ativos de produo de conhecimento so caros e os resultados da pesquisa demandam tempo para aparecer. O captulo 3 dedicado primeira parte da segunda arena do processo de institucionalizao. Explica-se o que a estrutura de regulamentao dos alimentos, o significado do processo de reclassificao dos alimentos em curso e como est repercutindo as experincias japonesas e americanas. Recupera-se os principais conceitos de alegaes de sade e como est constitudo o ambiente internacional de regulamentao dos alimentos. O captulo 4 complementa a investigao sobre a terceira arena do processo de institucionalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos. O captulo anterior demonstrou como funciona a estrutura de regulamentao de alimentos, os tipos de alimentos existentes e como repercutiu a experincia japonesa e americana pelo mundo. Especificamente, foram demonstradas e explicadas os conceitos que respaldam as alegaes que podem ser feitas e no que elas implicam em termos de polticas pblicas e incentivos atividade econmica. Este captulo explora como que os SNVS japons, americano, brasileiro e europeu incorporaram tais conceitos. Em suma, descreve-se como se encontra nestes pases o ambiente regulamentar do emergente mercado de novos alimentos. A escolha desses pases justificada pelo fato da reclassificao dos alimentos ter comeado no Japo e ter ganhado significativo impulso nos EUA; pela conhecida centralidade econmica, poltica, tecnolgica, cientfica deles e a importncia dos seus mercados de produo de alimentos e de consumo. No captulo 5 descreve-se o que est ocorrendo na terceira arena do processo de institucionalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos: a dimenso mercadolgica. Procura-se oferecer um panorama do mercado de novos alimentos, apresentando-se nmeros das vendas. Faz-se, especificamente, uma descrio ampla de como so desenvolvidas as atividades produtivas dos chamados alimentos funcionais e nutracuticos considerando a perspectiva de paises e empresas. Em geral, a literatura dedicada aos temas dessa arena16

salienta que a materializao de todo potencial e promessas do novo mercado que produtos e servios novos, promissores, seguros e com credibilidade estejam disponveis para consumo depende da competncia de governos e empresas para lidar com desafios impostos pelo desenvolvimento e aplicao de novos e confiveis conhecimentos e com a construo de credibilidade para os novos produtos.

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CAPTULO 1 TENDNCIAS NO FORNECIMENTO DE ALIMENTOS Para analisar como a institucionalizao do uso do potencial teraputico dos alimentos repercute sobre a questo agroalimentar, este captulo traz uma breve descrio das tendncias no fornecimento de alimentos e na organizao das atividades produtivas. Esta abordagem influenciada pela nfase dada pela literatura ao que aqui ser chamado de contnua transformao da questo agroalimentar. Os trabalhos dedicados a este tema demonstram os rumos que a atividade de fornecimento de alimentos est seguindo, contemplando transformaes ocorridas desde os tempos em que produo e consumo de alimentos eram atividades domsticas correlatas, de expresso local. O paradigma predominante na literatura o da anlise do funcionamento de um complexo sistema de proviso de alimentos, onde diversos atores econmicos formam subsistemas que desempenham distintas tarefas desde a propriedade rural at os pontos de venda de alimentos. Sistema usualmente chamado de Sistema Agroalimentar (SAA). Esta interpretao da questo agroalimentar, principalmente a relacionada viso da economia poltica, produz um conjunto de imagens muito rgido do SAA. Uma possvel representao dessas transies da questo agroalimentar aponta para a existncia de um SAA global constitudo de complexas cadeias de fornecimento de alimentos e com alcance cada vez mais longo. Este sistema predominantemente marcado pela hegemonia da padronizao na produo e consumo de alimentos, onde grandes corporaes de insumos agropecurios, produo agropecuria e processamento de alimentos articulam complexos contratos de produo de produtos agropecurios fornecidos para grandes corporaes de alimentos finais especializadas no desenvolvimento de produtos de consumo e de marcas. Por sua vez, estas empresas interagem com grandes corporaes especializadas na distribuio de alimentos contribuindo para que estes sejam consumidos cada vez mais distantes de onde foram produzidos. Por outro lado, outras interpretaes acadmicas chamam ateno para uma representao da questo agroalimentar com imagens menos rgidas: a da fragmentao da proviso de alimentos. D-se destaque a um padro de organizao das atividades produtivas que se aproxima bastante das caractersticas basilares da questo agroalimentar: expresso local, no mximo regional; incorporao seletiva de tecnologias de gesto e produo; maior proximidade entre produtores e consumidores e a nfase no consumo de produtos naturais e frescos. Apesar do carter puramente representativo dos trechos expostos acima, eles possibilitam inferncias sobre as trajetrias seguidas pelos atores envolvidos com a produo e consumo dos alimentos at chegar neste contexto em que os produtores de alimentos podem alegar abertamente que seus produtos modificam o estado de sade humano. Neste sentido, o esforo terico aqui envidado objetivou dar mais substncia e realismo a estas representaes, analisando quem so os atores envolvidos com a proviso de alimentos, como se organizam e as apostas que fazem, para identificar como a reclassificao dos alimentos os influencia. Diferentes conceitos foram utilizados para fornecer um amplo painel de visibilidade sobre a oferta de alimentos e os interesses dos atores com ela envolvidos; e de onde se destaca o papel diferenciador que a qualidade tem desempenhado. Este captulo tambm oferece uma descrio do ambiente de negcio a partir da identificao dos comportamentos estratgicos dos atores econmicos e da anlise de como estes se consolidaram com o tempo, inspirados num contexto em que a qualidade e sua relao com as movimentaes (reaes) dos consumidores assumem significativa importncia. Contextos em que limites globalizao do SAA tm sido crescentemente demarcados por questes locais, nacionais e regionais, como mostram Nygard e Storstad18

(1998), ou simplesmente pelas lacunas deixadas pelo incompleto processo de substituio ou apropriao dos ciclos orgnicos da natureza como apontaram Goodman et al (1987). Contextos e lacunas de onde emergem diferentes vises se como pensar, gerenciar e propor polticas para a questo agroalimentar. Para alcance dos objetivos propostos ser dada maior nfase aos atores envolvidos na produo e disponibilizao dos alimentos, ou seja, dimenso oferta, mais especificamente s suas modalidades. 1.1 Sistemas, cadeias e redes: uma breve explicao para a linguagem adotada neste trabalho. O desenvolvimento deste captulo foi baseado numa abordagem terica que endossa o argumento de Wilkinson (1997) de que abordagens que ampliem o entendimento sobre a crescente valorizao da qualidade no alimento oferecem maiores recursos para anlise da dinmica da reestruturao do SAA. A leitura dos trabalhos que procuram explicar o comportamento de produo e consumo de alimento corrente aponta para certa leveza do conceito de qualidade, dado que o mesmo est sujeito a interpretaes e apropriaes bem distintas. Por um lado tem-se a abordagem da qualidade industrial, uma resultante do aprimoramento dos mtodos de produo e controle dos processos produtivos. Por outro, tem-se a abordagem da qualidade artesanal, uma resultante da preservao de prticas histricas de manipulao dos alimentos e da produo de alimentos menos complexos. Assume-se neste trabalho que a dinmica de fornecimento de alimentos ser influenciada pelo constante jogo entre atores advogando pelas diferentes abordagens de qualidade para mostrar quem tem mais autoridade ou legitimidade para propor elementos prticos e conceituais que definem qualidade nos alimentos. Assim, dado que o uso de alegaes qualifica os alimentos, fica mais fcil entender como que o processo de reclassificao dos alimentos influenciar a questo agroalimentar. Neste sentido, espera-se oferecer uma anlise mais completa dos princpios e questes que: informam a diferenciao de produtos pela qualidade como a dinmica central do fornecimento de alimentos. posicionam a inovao nos formatos organizacionais (modelos de negcios) e nas formas de coordenao da atividade produtiva como sada estratgica para lidar com o acirramento da competio num contexto de crescente globalizao e concentrao de capital. Do trabalho de Storper (1997) foi extrado o conceito de Worlds of production para explorar quais so os mundos da produo de alimentos. Para dar conta da relevncia da qualidade como fator competitivo diferenciador, Storper e muitos autores recorrem contribuio da Teoria ou Economia das Convenes (EC) pelo fato desta perspectiva terica oferecer conceitos diferenciados para um melhor entendimento da maneira como a realidade econmica produzida (WILKINSON, 1997; MURDOCH e MIELE, 1999, MURDOCH et al, 2000; STRTE, 2004; VITTERS et al, 2005; PARROT et al, 2002). Alm do padro de articulao de interesses de diversos atores, tambm possvel analisar os eventos pelas perspectivas temporal e espacial. Ao contrrio do mainstream da economia poltica, a EC no fica centrada apenas nas robustas cadeias de commodities para explicar a questo agroalimentar: ela abre espao para a legitimao de