Crime de Luxo · 2017-12-18 · Capa: Maria Manuel Lacerda Imagem da capa: Shutterstock ISBN: ......

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Ficha Técnica

Título original: DEATH IN A WHITE TIEAutor: Ngaio Marsh

Capa: Maria Manuel LacerdaImagem da capa: Shutterstock

ISBN: 9789892324906

Edições ASA II, S.A.uma editora do Grupo LeYaR. Cidade de Córdova, n.º 2

2160-038 Alfragide – PortugalTel.: (+351) 214 272 200Fax: (+351) 214 272 201

© 1938, Ngaio Marsh

Licença de edição e comercializaçãoem todo o mundo, exceto no Brasil.

Todos os direitos reservados de acordo com a legislaçãoem vigor

[email protected]

www.leya.pt

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Natural da Nova Zelândia,Ngaio Marsh (1895-1982) éconsiderada uma das Rainhas doCrime, a par de Agatha Christie,Dorothy L. Sayers e MargeryAllingham. Ao longo de umperíodo de cinquenta anos (1932-1982), escreveu trinta e doisromances policiais, quealcançaram a aclamaçãointernacional. Devotada à pinturae ao teatro, incluiu-osfrequentemente nos seus enredos.

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Figura central da obra daautora, o inspetor-chefe RoderickAlleyn, um aristocrata licenciadoem Oxford, é o exemplar«gentleman detective» da eradourada da ficção policialinglesa. Solteiro no início da suacarreira, acabará por casar comAgatha Troy, pintora famosa, terum filho e ascender ao cargo desuperintendente.

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PERSONAGENS

Inspetor-chefe Roderick Alleyn, DICLady Alleyn – a sua mãeSarah Alleyn – a sua sobrinha

debutanteMiss Violet Harris – secretária de

Lady CarradosLady Evelyn Carrados – anfitriã

londrinaBridget O’Brien – a sua filhaSir Herbert Carrados – o seu maridoLord Robert Gospell («Bunchy») –

uma relíquia dos tempos vitorianosSir Daniel Davidson – um médico

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londrino em vogaAgatha Troy, Royal Academy –

pintoraLady Mildred Potter – irmã viúva de

Lord RobertDonald Potter – o seu filho, estudante

de MedicinaMrs. Halcut-Hackett – alpinista socialGeneral Halcut-Hackett – o seu

maridoMiss Rose Birnbaum – a sua protegidaCapitão Maurice Withers («Wits») –

um homem do mundoColombo Dimitri – dono de uma

empresa de catering de renomeLucy, viúva marquesa de Lorrimer –

uma senhora de idade excêntrica

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Um motorista de táxiMiss Smith – uma amiga de Miss

HarrisInspetor-detetive Fox, DICPercy Percival – um jovem sofisticadoMr. Trelawney-Caper – seu amigoJames d’Arcy Carewe – um agente da

políciaFrançois Dupont – criado de DimitriMr. Cuthbert – gerente do MatadorVassily – criado de AlleynReverendo Walter Harris – um clérigo

aposentadoMrs. Walter Harris – a sua mulherO subcomissário

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CAPÍTULO 1

OS PROTAGONISTAS

I – Roderick – disse Lady Alleyn,

olhando para o filho por cima dosóculos –, vou sair.

– Sair? – repetiu o inspetor-chefeAlleyn vagamente. – Sair para onde,mãe? Sair de quê?

– Sair para o mundo. Da reforma.Sair para a temporada. Sair. Valha-meDeus – acrescentou ela confusamente–, uma palavra torna-se absurdaquando a repetimos muitas vezes. Sair.

Alleyn pousou um documento com

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aspeto oficial na mesa do pequeno-almoço e olhou para a mãe.

– De que está a falar? – perguntou.– Não seja estúpido, querido. Eu vou

fazer a temporada de Londres.– A mãe perdeu a cabeça?– Talvez tenha perdido. Eu disse ao

George e à Grace que vou acompanhara Sarah na próxima temporada. Aquiestá uma carta do George e outra daGrace. Casa do Governo, Suva.Ficaram encantados por me teroferecido.

– Santo Deus, mãe – exclamouAlleyn –, a mãe deve estar louca. Sabeo que isso significa?

– Claro que sim. Significa que tenhode arranjar um apartamento em

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Londres. Significa que tenho deprocurar todas as pessoas que poderãojá ter morrido, estar divorciadas ouque tenham voltado a casar. Significaque tenho de dar almoços e festas etrocar croquetes com mães dedicadas.Significa que tenho de me sentar emsalões de baile a elogiar as netas deoutras mulheres e conseguir jovenspara a minha própria neta. Ficareiacordada até às quatro da madrugadacinco noites por semana e receio, meuquerido, que a minha renda preta e meuvestido de gala não resistirão à tensão.Então, além de comprar roupas para aSarah, terei de comprar algumas paramim. E gostaria de saber o que pensa

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sobre isso, Roderick?– Acho que é tudo um absurdo. Por

que diabo não podem o George e aGrace apresentar a Sarah?

– Porque eles estão em Fiji, querido.– Bem, por que razão não pode ela

esperar até que eles regressem?– A nomeação do George é de quatro

anos. Dentro de quatro anos, a suasobrinha terá vinte e dois. Umadebutante demasiado velha.

– Porque é que a Sarah tem dedebutar? Porque não pode elasimplesmente aparecer?

– Isso não lhe sei dizer, mas oGeorge e a Grace certamente saberiam.Devo dizer que prefiro que o faça,Roderick. Uma jovem diverte-se tanto

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na sua primeira temporada. Não hánada igual, nunca mais. E agoravoltámos aos acompanhantes e tudo,parece realmente ter algum do antigoglamour.

– Quer dizer que as debutantesvoltaram a ser tratadas como flores deestufa durante três meses para depoisse aventurarem como plantas perenespara o resto da vida?

– Se quiser pôr as coisas dessamaneira. O sistema tem o seu mérito,querido.

– Pode ser muito admirável, mas nãovai ser um pouco cansativo para si? Apropósito, onde está a Sarah?

– Ela atrasa-se sempre um pouco

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para o pequeno-almoço. Comodormem bem estes jovens, nãodormem? Mas estávamos a falar sobrea temporada, não estávamos? Acho quevou gostar, Rory. E não dará assimtanto trabalho. Esta manhã tive notíciasda Evelyn Carrados. Chamava-seEvelyn O’Brien, sabe. Evelyn Curtis,claro, era o seu primeiro nome, masisso foi há muito tempo, ninguém seimporta. Não é que ela seja assim tãovelha, pobre rapariga. Ainda não deveter quarenta anos. É bastante jovem, naverdade. A mãe dela era a minhamelhor amiga. Debutámos juntas. Eagora chegou a vez de a Evelynapresentar a sua própria filha eofereceu-se para ajudar com a Sarah.

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Não tive muita sorte?– Imensa – respondeu Alleyn

secamente. – Lembro-me da EvelynO’Brien.

– Espero bem que sim. Fiz o quepude para o persuadir a apaixonar-sepor ela.

– E apaixonei-me?– Não. Nunca percebi porquê, ela

era muito bonita e encantadora. Agoraque penso nisso, não tinha muitashipóteses com ela porque ela seapaixonou perdidamente pelo PaddyO’Brien, que voltou de repente daAustrália.

– Eu lembro– me. Um tiporomântico, não era?

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– Sim. Eles casaram-se depois deum curto noivado. Cinco meses depois,ele morreu num acidente de automóvel.Não foi horrível?

– Horrível.– E mais ou menos seis meses

depois nasceu uma menina, a Bridget.A Evelyn deu-lhe esse nome porque oPaddy era irlandês. E então, pobreEvelyn, casou-se com o HerbertCarrados. Ninguém soube porquê.

– Eu não estou surpreendido. Ele émuito maçador. Deve ser bastante maisvelho do que a Evelyn.

– Uns mil anos e tão pomposo que éinacreditável. Conhece-o,evidentemente.

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– Vagamente. É um tipo muitoimportante na City.

Alleyn acendeu o cigarro da mãe e oseu. Foi até à porta envidraçada eolhou para o relvado.

– O seu jardim também se está apreparar para debutar – observou. –Quem me dera não ter de voltar para aScotland Yard.

– Agora, querido? Neste momento?– Infelizmente. É este caso. –

Acenou com alguns papéis na mão. – OFox ligou ontem à noite. Aconteceualgo.

– Que tipo de caso é?– Chantagem, mas não tem permissão

para fazer perguntas.

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– Rory, que emocionante. Quem estáa ser chantageado? Alguém muitíssimoimportante, espero?

– A mãe lembra-se de Lord RobertGospell?

– O Bunchy Gospell, quer vocêdizer? Ele certamente não pode estar aser chantageado. Uma criatura tãoinocente…

– Não, mãe, não é ele. Nem ele échantagista.

– É um homenzinho muito querido –disse Lady Alleyn enfaticamente. – Umhomenzinho extremamente simpático.

– Não é homenzinho nenhum agora.Está bastante gordo e usa uma capa eum sombrero como G.K. Chesterton.

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– A sério?– Deve ter visto fotografias dele nos

seus horríveis jornais ilustrados.Apanham-no sempre que podem. «LordRobert (‘Bunchy’) Gospell conta umadas suas famosas histórias.»

– Sim, mas o que tem ele que vercom a chantagem?

– Nada. Ele é, como a mãe diz, umhomenzinho extremamente simpático.

– Roderick, não seja irritante. OBunchy Gospell tem alguma coisa aver com a Scotland Yard?

Alleyn estava a olhar para o jardim.– Digamos – respondeu finalmente –

que temos um grande respeito por elena Yard. Não é apenas encantador…

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também é, à sua maneira, umapersonagem notável.

Lady Alleyn olhou pensativamentepara o filho durante alguns segundos.

– Vai estar com ele hoje? –perguntou.

– Penso que sim. Porquê?– Ora, querido, para ouvir uma das

suas famosas histórias. II Era o primeiro dia de Miss Harris

no seu novo emprego. Fora contratadacomo secretária de Lady Carradospara a temporada de Londres. Miss

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Harris sabia muito bem o que issosignificava. Não se tratava, de modoalgum, da sua primeira temporadacomo secretária. Era uma jovemcompetente e muito pouco imaginativa,com um cérebro dividido emcompartimentos estanques e uma menteque de certa forma rotulava todas asquestões como «com resposta/tratado»ou «por responder/tratar». Se umaideia especulativa ou poucoconvencional se cruzasse com MissHarris era prontamente tratada ouimediatamente fechada num doscompartimentos estanques e escuros,para nunca mais ver a luz do dia. SeMiss Harris não fora capaz de a tratar

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imediatamente, era porque não tinharesposta e, portanto, não tinhaimportância. Talvez por o seu caráterter sido formado na grande família deum clérigo do Buckinghamshire, MissHarris nunca por um momento seinterrogou por que razão deveriapassar a vida a organizar a diversão deoutras pessoas e ela própria contentar-se com tão pouco divertimento. Issoteria parecido a Miss Harris umaespeculação irrelevante e bastanteestúpida. Um emprego era um conjuntode deveres diligentemente ordenados earquivados, adequado à nossa posiçãona hierarquia social e, portanto,respeitável. Não continha qualqueroutro interesse ético mais elevado.

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Isso não significava que Miss Harrisera insensível. Pelo contrário, erabastante sensível a tudo o que diziarespeito a pontos de etiquetarelacionados com a sua posição nascasas em que trabalhava. O lugar ondealmoçava, com quem almoçava e quemlhe servia a refeição eram questões degrande importância para ela e estavadolorosamente ciente das nuances maissubtis na atitude dos seus patrões.Sentia-se nitidamente otimista nestenovo emprego. Lady Carradosimpressionara-a favoravelmente,tratando-a, de acordo com as suaspróprias palavras, como uma perfeitasenhora. Miss Harris caminhou a

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passos largos ao longo de umapassagem no andar de cima e bateuduas vezes, não muito alto e não deforma demasiado tímida, a uma portabranca.

– Entre – gritou uma voz distante.Miss Harris obedeceu e deu consigo

num grande quarto branco. A carpete,as paredes e as cadeiras eram todasbrancas. Um fogo ardia com lenha decedro sob uma prateleira de fogãobranca em estilo Adam; uma pele deurso branca quase fez com que MissHarris tropeçasse ao atravessar oquarto em direção à grande camabranca onde a sua patroa estavainstalada, apoiada em almofadas. Acama estava coberta com folhas de

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papel de carta.– Ah, bom dia, Miss Harris – saudou

Lady Carrados. – Não imagina comoestou contente por vê-la. Importa-sede esperar um momento enquantotermino esta nota? Por favor, sente-se.

Miss Harris sentou-se discretamentenuma cadeira pequena. Lady Carradoslançou-lhe um sorriso vago e bonito, econtinuou a escrever. Com um únicoolhar inofensivo, Miss Harrisapreendeu cada detalhe da aparênciada sua patroa.

Evelyn Carrados tinha trinta e seteanos de idade, e nos seus melhoresdias parecia ser mais nova. Era umamulher alta, de cabelo escuro e pálida,

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mas de uma palidez bonita. Uma vez,Paddy O’Brien mostrara-lhe umaimagem da Madonna di San Sisto edissera-lhe que ela estava a olhar parasi mesma, o que não era bem verdade.O seu rosto era mais comprido e tinhamais intensidade e caráter do que avirgem complacente de Rafael, mas osgrandes olhos escuros eramsemelhantes, bem como o cabelo lisoapartado ao meio. Depois disso, Paddycomeçara a chamar-lhe «Donna» eEvelyn Carrados ainda guardava assuas cartas que começavam com«Querida Donna». Curiosamente,Bridget, a sua filha, que nuncaconhecera o pai, também lhe chamava«Donna». No dia em que Miss Harris

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fora entrevistada, Bridget haviaentrado no quarto e fora sentar-se nobraço da poltrona da mãe. Uma jovemtranquila com uma voz encantadora.Miss Harris, olhando em frenteenquanto esperava, recordou esseencontro. «Ele ainda não apareceu»,pensou, referindo-se a Sir HerbertCarrados, cuja fotografia a fitava deuma moldura de prata no toucador damulher.

Lady Carrados assinou o nome eprocurou o mata-borrão sobre acolcha. Miss Harris colocouimediatamente o seu próprio mata-borrão sobre a cama.

– Oh – disse Lady Carrados, com um

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ar de espanto satisfeito –, tem um!Muito obrigada. Pronto, já estáresolvido, não está?

Miss Harris sorriu. Lady Carradoslambeu a aba de um envelope e olhoupor cima deste para a sua secretária.

– Vejo que me trouxe o correio –disse ela.

– Sim, Lady Carrados. Não sabia sea senhora preferia que eu abrisse todaa…

– Não, não. Não, por favor.Miss Harris não se mostrou

ofendida, era demasiado competentepara demonstrar algo do género, massentiu-se ferida nos seus sentimentos.Uma pequena alfinetada demortificação odiosa e miserável

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trespassou-lhe a pele fina. Elaultrapassara os limites.

– Muito bem, Lady Carrados – disseMiss Harris educadamente.

Lady Carrados inclinou-se para afrente.

– Eu sei que estou errada –apressou-se a dizer. – Sei que não meestou a comportar como se deve,quando se tem a sorte de dispor de umasecretária, mas, sabe, não estouhabituada a tais luxos e ainda gosto defingir que faço tudo sozinha. Por issovou divertir-me a abrir as minhascartas e a entregá-las a si. O que émuito injusto, mas vai ter de aturarisso, pobre Miss Harris.

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Observou a secretária a sorrir erespondeu com um olhar encantador decompreensão.

– E agora – continuou –, podemostratar de tudo isto, não acha?

Miss Harris colocou as cartas emtrês pilhas organizadas sobre aprancheta e começou logo a anotar emestenografia as respostas que deveriaescrever. Lady Carrados manteve umaespécie de comentário ininterrupto.

– Lucy Lorrimer. Quem é LucyLorrimer, Miss Harris? Já sei, é aquelavelha senhora que fala como se todosfossem surdos. O que é que ela quer?«Soube que a sua filha vai debutar eficaria muito contente se…» Bem,

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vamos ter de ver isso, não é? Se foruma tarde livre teremos todo o gosto.Já está. Agora esta. Ah, sim, MissHarris, esta é muito importante. É deLady Alleyn, uma grande amiga minha.Sabe a quem me refiro? Um dos filhosé um baronete aborrecido e o outro éum detetive. Sabe?

– É o inspetor-chefe Alleyn, LadyCarrados? O famoso?

– É esse mesmo. Muitíssimo bonito edistante. Ele estava no Ministério dosNegócios Estrangeiros quando a guerrarebentou e, em seguida, depois daguerra, tornou-se detetive de repente.Não lhe sei dizer porquê. Não que issoimporte – continuou Lady Carrados,olhando para o rosto atento da

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secretária –, porque esta carta nadatem a ver com ele. É sobre a filha doseu irmão George que a mãe dele vaiapresentar e eu disse que ia ajudar. Porisso, deve lembrar-se, Miss Harris,que Sarah Alleyn deve ser convidadapara tudo. E Lady Alleyn para osalmoços das mães e todas essas coisas.Compreendeu? Aqui está o endereçodela. E lembre-me de lhe escreverpessoalmente. Agora, lá vamos nósoutra vez e…

Parou tão de repente que MissHarris levantou os olhos,surpreendida. Lady Carrados olhavapara uma carta que segurava entre osdedos compridos e brancos. Os dedos

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tremiam ligeiramente. Miss Harrisolhou para eles e para o envelopequadrado com uma espécie defascinação. O silêncio instalou-se noquarto branco – um silêncio quebradoapenas pelo tiquetaque inconsequente eapressado de um relógio de porcelanasobre a lareira. Com um clique sonoroo envelope caiu na pilha de cartas.

– Desculpe, Lady Carrados –interrompeu Miss Harris – , mas está asentir-se mal?

– O quê? Não. Não, obrigada.Pôs a carta de lado e pegou noutra.

Depressa a caneta de Miss Harrisvoava rapidamente sobre o bloco denotas. Ela tomou notas sobre aaceitação, recusa e envio de convites.

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Fez listas de nomes com anotações aolado e entrou numa longa discussãosobre o baile de Lady Carrados.

– Vou contratar o Dimitri, o homemdo catering de Shepherd Market, sabe,para fazer tudo – explicou LadyCarrados. – Parece ser… – fez umapausa estranha – o mais seguro.

– Bem, ele é o melhor – concordouMiss Harris. – Estava a falar dedespesas, Lady Carrados. O Dimitricobra cerca de vinte e cinco xelins porcabeça. Mas isso inclui tudo. Já sabecom o que conta e ele é bom.

– Vinte e cinco xelins? Penso queserão cerca de quatrocentosconvidados. Qual é o custo?

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– Quinhentas libras – disse MissHarris calmamente.

– Oh, meu Deus, é muito, não é? Edepois há a banda. Devíamos terchampanhe no buffet. Livra-nos daprocissão interminável para a sala dejantar que eu acho sempre umamaçada.

– Champanhe no buffet – disse MissHarris secamente. – Receio que issosignifique trinta xelins por cabeça.

– Oh, que horror!– A conta do Dimitri sobe para as

seiscentas libras. Mas, é claro, comolhe digo, Lady Carrados, que será tudoo que terá de pagar.

Lady Carrados olhou para a

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secretária sem responder. Por algumarazão, Miss Harris sentiu-se como setivesse cometido outra gafe. Havia,pensou ela, uma expressão muitosingular nos olhos da sua patroa.

– Julgo que mil libras devem cobrira totalidade da despesa, com a banda etudo o resto – acrescentou elarapidamente.

– Sim, estou a ver – disse LadyCarrados. – Mil libras.

Ouviu-se uma pancada na porta euma voz chamou: – Donna!

– Entra, querida!Uma jovem alta e de cabelo escuro,

trazendo uma pilha de cartas, entrou noquarto. Bridget era muito parecida coma mãe, mas ninguém teria pensado em

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compará-la com a Madonna Sistina.Ela herdara demasiada daluminosidade de Paddy O’Brien paraisso. Os seus lábios eram muito bemdesenhados. Os olhos, separados, eramprofundos sob sobrancelhas fortes.Tinha um ar sereno, mas quando sorriatodo o seu rosto se animava e elaparecia-se mais com o pai do que amãe. «É sensível», pensou MissHarris, num momento de iluminação.«Espero que ela lute contra isso. Éuma maçada quando se tornamnervosas.» Respondeu ao «bom dia»formal de Bridget e observou-a abeijar a mãe.

– Querida Donna – disse Bridget –, é

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tão doce.– Olá, querida – disse Lady

Carrados –, aqui estamos nós a planearcom todas as nossa forças. Miss Harrise eu decidimos que o teu baile será nodia oito. O tio Arthur escreveu a dizerque poderemos utilizar a casa delenessa data. É o general Marsdon, MissHarris. Eu expliquei-lhe, nãoexpliquei, que ele nos cedeu MarsdonHouse em Belgrave Square? Ou seráque me esqueci?

– Sim, obrigada, Lady Carrados.Tenho toda essa informação.

– Claro que sim.– É um mausoléu – disse Bridget –,

mas serve. Recebi uma carta da SarahAlleyn, Donna. A avó dela, a sua Lady

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Alleyn, sabe, vai arrendar umapartamento para a temporada. Donna,por favor, quero que a Sarah sejaconvidada para tudo. Miss Harris foiinformada?

– Sim, obrigada, Miss Carrados.Peço perdão – disse Miss Harris umpouco confusa. – Deveria ter dito,Miss O’Brien, não deveria?

– É claro que sim! Não volte a cairnessa armadilha, faça o que fizer –exclamou Bridget. – Desculpe, queridaDonna, mas francamente!

– Chiu – disse Lady Carrados comsuavidade. – São essas as tuas cartas?

– Sim. Todos os convites. Pus umamarca negra nos que tenciono

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realmente declinar e tudo o restoprecisa de ser resolvido. Ah, ecoloquei um grande Y naqueles quenão faço tenções de perder. E…

A porta abriu-se mais uma vez e afotografia do toucador entrou a coxearna sala.

Sir Herbert Carrados era bom demais para ser verdade. Alto e com umar marcial, tinha uma boa aparência.De cabelos finos e arruivados, umgrande bigode, sobrancelhas espessase olhos claros com uma expressão tola.Não se percebia essa expressão,porque as sobrancelhas lhes davamuma ferocidade falsa. No entanto, elenão era um homem estúpido, apenasmuito vaidoso e pomposo. Orgulhava-

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se por se parecer com um soldado enão como um banqueiro bem-sucedido.Durante a Grande Guerra, ocupara umcargo de desconcertante insignificânciaque o mantivera em Tunbridge Wells eque não prejudicara as suas atividadessólidas e por vezes brilhantes na City.Coxeava um pouco e usava umabengala. A maioria das pessoas partiado princípio de que ele havia sidoferido na perna, e de facto assim era –mas Sir Herbert fora vítima de umcouteiro descuidado. Frequentavareuniões militares com a maiorassiduidade e estava prestes acandidatar-se ao Parlamento.

Bridget tratava-o por Bart, o que ele

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gostava, mas ocasionalmentesurpreendia nos olhos dela uma ironiade que não gostava.

Nesta manhã, trazia o Times debaixodo braço e uma expressão de paciênciaestampada no rosto. Beijou a mulher,cumprimentou Miss Harris com o tompreciso e correto de cordialidade eergueu as sobrancelhas para a enteada.

– Bom dia, Bridget. Pensei que aindaestivesse na cama.

– Bom dia, Bart – disse Bridget. –Porquê?

– Não a vi ao pequeno-almoço. Nãoacha que talvez fosse mais atenciosopara com os empregados se tomasse opequeno-almoço antes de começar afazer planos?

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– Suponho que sim – concordouBridget e aproximou-se da porta.

– Quais são os teus planos para hoje,querida? – continuou Sir Herbert,sorrindo para a mulher.

– Oh… tudo. O baile da Bridget.Miss Harris e eu vamos… vamosincorrer em despesas, Herbert.

– Ai sim? – murmurou Sir Herbert. –Tenho a certeza de que Miss Harris éimplacável com números. Qual é ototal, Miss Harris?

– Para o baile, Sir Herbert? – MissHarris olhou para Lady Carrados, queassentiu um pouco nervosa. – Sãocerca de mil libras.

– Meu Deus! – exclamou Sir Herbert

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e deixou cair o monóculo.– Sabes, querido – começou a

mulher apressadamente –, não vai serpossível fazer por menos. Mesmo coma casa do Arthur. E se vamos terchampanhe no buffet…

– Não vejo a menor necessidade determos champanhe no buffet, Evelyn.Se esses jovens tontos não têm osuficiente para beber na sala de jantar,tudo o que posso dizer é que elesbebem muito. Devo acrescentar –continuou Sir Herbert com um ar dedescoberta – que não entendo amentalidade dos jovens modernos.Jogam de mais, bebem de mais, nãotêm objetivos na vida, olha para ojovem Potter.

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– Se está a referir-se ao DonaldPotter – disse Bridget perigosamente –,eu tenho de…

– Bridgie! – admoestou a mãe.– Está a afastar-se da questão,

Bridget – disse o padrasto.– Eu!– A questão é – disse Sir Herbert,

lançando um olhar martirizado àmulher – que os jovens esperam muitohoje em dia. Champanhe em todas asmesas…

– Não se trata disso… – começouBridget da porta.

– É só que evita que… –interrompeu a mãe.

– No entanto – continuou Sir Herbert

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com um ar de cortesia paciente –, seachares que podes dar-te ao luxo degastar mil libras numa noite, minhaquerida…

– Mas esse dinheiro não é todo daDonna – objetou Bridget. – Metadepertence-me. O meu pai deixou…

– Bridget, querida – disse LadyCarrados –, vai tomar o pequeno-almoço.

– Desculpe, Donna – disse Bridget.– Está bem. – E saiu.

Miss Harris perguntou-se se tambémteria sido melhor ela sair, mas ninguémpareceu lembrar-se que ela estava noquarto e ela não queria recordar-lhes asua presença, fazendo um movimento.Lady Carrados falava rapidamente com

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uma estranha mistura de nervosismo edeterminação.

– Eu sei que o Paddy teria destinadoalgum do dinheiro da Bridgie para serutilizado no seu debute, Herbert. Não écomo se…

– Minha querida – disse Sir Herbertcom um ar de inefável e diplomáticareprovação, lançando um olhar a MissHarris. – Claro. A decisão cabe-teinteiramente a ti e à Bridget.Naturalmente. Não sonharia eminterferir. Sou apenas um velho tonto egostava de ajudar no que puder. Nãodês importância.

Lady Carrados foi salva danecessidade de dar qualquer resposta a

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este discurso constrangedor pelaentrada da empregada.

– Lord Robert Gospell está aqui,minha senhora, e pergunta se…

– Bom dia, Evelyn – disse uma vozextraordinariamente aguda do lado defora da porta. – Subi. Deixe-me entrar,por favor…

– Bunchy! – exclamou LadyCarrados, deliciada. – Que bom!Entre! – E Lord Robert Gospell,ofegando um pouco sob o peso de umenorme ramo de narcisos, entrou nasala em passos vacilantes.

III

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No mesmo dia em que Lord Robert

Gospell visitou Lady Carrados, aprópria Lady Carrados fez uma visita aSir Daniel Davidson no seuconsultório em Harley Street. Faloucom ele durante muito tempo e, ao fimde meia hora, ficou a olhardesesperadamente para os grandesolhos negros do médico, do outro ladoda mesa.

– Estou terrivelmente preocupada,claro, que a Bridgie fique com a ideiade que há algo de errado comigo –disse ela.

– Não há nada de especificamenteerrado consigo – disse Davidson,

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abrindo as suas longas mãos. – Nada,quero dizer, no sentido de o seucoração estar a ser sobrecarregado oude se passar algo com os pulmões, ouqualquer disparate desse tipo. Não meparece que esteja anémica. A análiseao sangue vai tirar isso a limpo.Mas… – inclinou-se para a frente, como dedo apontado para ela – mas estámuito cansada. Está demasiadocansada. Se eu fosse um médicohonesto, aconselhá-la-ia a ir para umacasa de saúde e levar uma vida plácidapor três semanas.

– Não posso fazer isso.– Não é possível a sua filha debutar

no próximo ano? Que tal na temporadamais curta?

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– Oh, não, é impossível. A sério. Omeu tio emprestou-nos a casa para obaile. Ela planeou tudo. Seria quasetão trabalhoso adiar as coisas comoprosseguir. Vou ficar bem, só queparece que tenho uma alforreca em vezde um cérebro na cabeça. Umaalforreca que abana. Por vezes tenhouns ataques vertiginosos estranhos. Esimplesmente não consigo parar de mepreocupar com as coisas.

– Eu sei. E este baile? Suponho queestá a trabalhar arduamente para isso?

– Vou entregar tudo à minhasecretária e ao Dimitri. Espero quevenha. Vai receber um convite.

– Ficaria encantado, mas preferia

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que desistisse dele.– Não posso, acredite.– Há alguma coisa em particular que

a preocupe?Houve uma longa pausa.– Sim – respondeu Evelyn Carrados

–, mas não posso falar sobre isso.– Ah, muito bem – disse Sir Daniel,

encolhendo os ombros. – Les maladiessuspendent nos vertus et nos vices.

Ela levantou-se e Sir Daniel pôs-seem pé de um salto como se EvelynCarrados fosse realeza.

– Vai receber a receitaimediatamente – disse ele, olhandopara ela. – E, por favor, gostaria de aver novamente. Suponho que é melhornão ir a sua casa?

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– Não, por favor. Eu venho cá.– C’est entendu.Lady Carrados deixou-o, desejando

vagamente que ele fosse um poucomenos extravagante e ansiandofervorosamente pela sua cama.

IV Agatha Troy encolheu os ombros,

puxou a boina nova e elegante sobreum olho e entrou na sua exposiçãoindividual nas galerias de Wiltshire emBond Street. Embaraçava-aintensamente o dever de aparecer nas

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suas próprias exposições. As pessoassentiam-se obrigadas a dizer algumacoisa sobre os seus quadros e nuncasabiam o que dizer, e ela, por sua vez,nunca sabia o que responder. A timideztornava-a áspera e a sua incoerênciaera confundida com snobismointelectual. Como a maioria dospintores, tinha dificuldade emexprimir-se sobre o tema do seutrabalho. As frases cuidadosas deapreciação literária com que oscríticos eruditos a enchiam atiravamAgatha Troy para uma agonia deembaraço. Importava-se menos com oslugares-comuns insípidos dos filisteus,embora também tivesse grandedificuldade em encontrar respostas

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adequadas para eles.Entrou discretamente, piscou o olho

ao jovem da receção e esquivou-se deuma grande americana que se abateusobre ele com um dedo de luva brancafirmemente plantado num preço do seucatálogo.

Agatha Troy rapidamente desviou oolhar e a um canto da sala lotada,sentado numa cadeira que não erasuficientemente grande para ele, viuum cavalheiro pequeno e gorduchocom a cabeça inclinada, os olhosfechados e a boca abertapacificamente. Agatha Troy dirigiu-sea ele.

– Bunchy! – disse ela.

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Lord Robert Gospell arregalou osolhos e mexeu os lábios como umcoelho.

– Olá! – respondeu. – Que confusão,não é? Muito bom.

– Você estava a dormir.– Posso ter tirado uma soneca.– Isso é um belo elogio – disse Troy

sem rancor.– Dei uma boa olhadela antes.

Lembrei-me de cá vir – explicou LordRobert. – Passei um bom bocado. –Equilibrou os óculos no nariz, atirou acabeça para trás e com um ar plácidode aprovação contemplou uma grandepaisagem. Sem qualquer vestígio doseu constrangimento habitual, Agatha

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Troy imitou-o.– Muito bom – repetiu Bunchy. –

Não é?Ele tinha um hábito estranho de usar

coloquialismos vitorianos; herança,explicara ele, do seu ilustre pai.«Senhor!», era a sua exclamaçãopreferida. Mantinha pequenas cortesiasvitorianas, deixando sempre um cartãodepois de um baile e muitas vezesenviava flores às anfitriãs dos jantares.As suas roupas eram famosas – umcasaco bastante subido e abotoado ecalças estreitas de dia, um chapéumole e largo e uma capa de noite.Agatha Troy desviou o olhar do seuquadro e fitou o seu companheiro. Elepestanejou através dos óculos e

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apontou um dedo gordo para apaisagem.

– Bonito e ordenado – disse ele. –Gosto deles ordenados. Venha tomarum chá.

– Acabei de chegar – disse a pintora–, mas adoraria.

– Estou com os Potter – disseBunchy. – A minha irmã e o filho.Espere um pouco. Vou buscá-los.

– A Mildred e o Donald? –perguntou Troy.

– A Mildred e o Donald. Eles vivemcomigo, sabe, desde que o pobre Pottermorreu. O Donald acaba de serexpulso por uma ninharia de umasapostas. É um bom rapaz. Não tem um

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pingo de maldade. Só não mencioneOxford.

– Vou lembrar-me disso.– Provavelmente ele vai poupar-lhe

o trabalho e abordar o assunto. Gostode ter os jovens por perto. Alegram-me. Mantêm-nos ativos. Está a vê-losem algum lugar? A Mildred usa umtoque castanho-avermelhado.

– Não é um toque, Bunchy – disseTroy. – Ali está ela. É uma boina roxamuito elegante. Ela viu-nos. Está adirigir-se para nós.

A irmã viúva de Lord Robert abriacaminho através da multidão, seguidapelo filho extremamente bonito.Cumprimentou Agatha Troy semfôlego, mas carinhosamente.

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Donald fez uma vénia, sorriu e disse:– Temos estado a divertir-nos muito.

Tremendamente bom!– Deve perceber imenso do assunto

– disse Troy, bem-humorada. –Mildred, o Bunchy sugere quetomemos chá.

– Gostaria muito – disse LadyMildred Potter. – Olhar para quadros éum passatempo muito cansativo,mesmo quando os quadros são seus,querida.

– Há um restaurante lá em baixo –chilreou Lord Robert. – Sigam-me.

Abriram caminho pela multidão e atéao andar de baixo. Donald, que estavaseparado deles por vários

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desconhecidos, gritou:– Ouça, Troy, sabia que fui expulso?

– Isto teve o efeito de atrair a atençãode todos, primeiro para Donald e, emseguida, para Agatha Troy.

– Sim, já soube – respondeu AgathaTroy severamente.

– Não é horrível? – continuouDonald, alcançando-a e baixando avoz. – O tio Bunch está furioso e dizque eu já não sou «O Herdeiro». Não éverdade, claro. Ele vai deixar-me umafortuna principesca, não é, meuquerido tio Bunch?

– Cá estamos nós – disse LordRobert num tom agradecido quandochegaram à porta do restaurante. –Sentem-se todos. Terei de ser bastante

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rápido. – Tirou o relógio e arregalouos olhos. – Tenho um compromissodentro de vinte minutos.

– Onde? – perguntou Troy. – Vou lálevá-lo.

– Por acaso – disse Lord Robert –, éna Scotland Yard. Vou encontrar-mecom um velho amigo chamado Alleyn.

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CAPÍTULO 2

BUNCHY

– É Lord Robert Gospell para si,Mr. Alleyn – disse uma voz ao telefoneque o inspetor atendeu na suasecretária.

– Acompanhe-o até cá acima, porfavor – disse Alleyn.

Tirou uma pasta da gaveta de cima eabriu-a. Depois ligou ao seusubcomissário.

– Lord Robert acabou de chegar,senhor. Pediu para o informar.

– Tudo bem, Rory, pensando bem,vou deixá-lo para si. O Fox está aquicom o relatório sobre o caso Temple e

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é urgente. Apresente as minhasdesculpas. Diga-lhe que o visitarei nomomento em que ele acharconveniente, se isso for do agradodele. Conhece-o, não é? Pessoalmente,quero dizer?

– Sim. Ele perguntou por mim.– Muito bem, então. Traga-o aqui, se

achar necessário, claro, mas estoucheio de trabalho.

– Muito bem, senhor – respondeuAlleyn.

Um sargento da polícia bateu e abriua porta.

– Lord Robert Gospell, senhor.Lord Robert entrou com os olhos

brilhantes e ligeiramente sem fôlego.– Olá, Roderick. Como está? –

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perguntou ele.– Olá, Bunchy. Isto é muito

simpático da sua parte.– Nem por isso. Gosto de manter o

contacto. Estar dentro dos assuntos,sabe. Sempre gostei. – Sentou-se ecruzou as mãozinhas sobre a barriga. –Como está a sua mãe? – perguntou.

– Está muito bem. Ela sabe que nosíamos reunir aqui hoje e mandou-lhecumprimentos.

– Agradeça-lhe. É uma mulherencantadora, a sua mãe. Lamento estarum pouco atrasado. Tomei chá comoutra mulher encantadora.

– Ai sim?– Sim. Com a Agatha Troy.

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Conhece-a?Houve um curto silêncio.– Sim – respondeu Alleyn.– Senhor, sim. Claro que conhece.

Não tratou do caso em que o modelodela foi esfaqueado?

– Sim, tratei.– Encantadora – disse Lord Robert.

– Não é?– Sim – disse Alleyn –, é

encantadora.– Eu gosto muito dela. A minha irmã

Mildred e o filho Donald foramcomigo à exposição da Agatha Troy.Conhece a minha irmã Mildred, não éverdade?

– Conheço, sim – disse Alleyn,sorrindo.

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– Sim. Um pouco burra, em muitosaspetos, mas uma boa mulher. O rapazé um malandreco.

– Bunchy – disse Alleyn –, você émelhor do que vitoriano, você é daRegência.

– Acha? Digo-lhe uma coisa,Roderick, tenho de sair da minhaconcha e fazer um pouco da temporada.

– Você faz sempre a temporada, nãofaz?

– Dou umas voltas. Divirto-me. Ojovem Donald anda a fazer a corte auma pequena chamada BridgetO’Brien. Conhece-a?

– Isso é curioso – respondeu Alleyn.– A minha mãe vai apresentar a filha

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do meu irmão George e parece que elaé a melhor amiga da Bridget O’Brien.Ela é filha da Evelyn e do PaddyO’Brien, sabe?

– Eu sei. Fiz uma visita à Evelynesta manhã. Casou-se com aqueleidiota do Carrados. Pomposo.Disseram-me que é astuto na City. Euvi a pequena. Uma bela pequena, mashá algo de errado naquela família. OCarrados, suponho. Gosta da pequena?

– Não a conheço. A minha sobrinhaSarah gosta dela.

– Ouça – disse Lord Robert,estendendo as mãos e olhando paraelas com uma leve surpresa. – Ouça.Jante connosco no baile de LadyCarrados. Venha jantar, venha.

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– Meu caro Bunchy, não fuiconvidado.

– Mas a sua sobrinha não vai?– Sim, suponho que sim.– Vou arranjar-lhe um convite. É tão

fácil como piscar um olho. Venha porfavor. A Agatha também vai. O Donalde eu convencemo-la.

– Agatha Troy – disse Alleyn. –Agatha Troy.

Lord Robert olhou atentamente paraele durante dois segundos.

– Deixe lá, se prefere não ir – disseele.

– Não imagina o quanto eu gostariade ir – explicou Alleyn –, mas receioque possa lembrar Miss Troy…

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daquele caso muito desagradável.– Oh, hum. Bem, deixe isso em

aberto. Pense no assunto. Com certezavai receber um convite. Agora… e onosso assunto?

Fez uma careta ansiosa e engraçada,franziu os lábios e com um movimentohábil da mão pôs os óculos no nariz.

– O que se passa? – perguntou ele.– Pensamos que se trata de

chantagem – disse Alleyn.– Senhor – disse Lord Robert. –

Onde?– Aqui, ali e em todo o lado na alta

sociedade.– Como é que sabe?– Bem. – Alleyn pôs a mão fina

sobre a pasta. – Isso é um pouco mais

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confidencial do que o normal, Bunchy.– Sim, sim, sim. Tudo bem. Serei um

túmulo – disse Lord Robert. – Bicocalado. Diga-me os nomes e tudo oresto. Nada dos seus misteriosossenhores e senhoras X.

– Muito bem. Conhece Mrs. Halcut-Hackett? A mulher do velho generalHalcut-Hackett?

– Sim. Atriz americana. Vinte anosmais jovem do que o H-H. Umacriatura linda.

– Essa mesma. Ela veio cá nasemana passada com uma história dechantagem. Está aqui nesta pasta. Vouresumir-lhe o que ela disse, mas vai terde aturar uma Madame X.

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– Ora bolas! – disse Lord Robert.– Ela disse-nos que uma grande

amiga dela lhe havia confidenciadoque estava a ser chantageada. Mrs. H-H não quis revelar o nome destasenhora, daí a sua Mrs. X.

– Hum – disse Lord Robert, nadúvida. – Ou seja, Mrs. Harris?

– Possivelmente – disse Alleyn –,mas esta é a história e estou a contar-lha tal como Mrs. H-H ma contou amim. Mrs. X, que tem um maridoimportante e imperioso, recebeu umacarta de chantagem no primeiro diadeste mês. Foi escrita em papelWoolworth. O autor ou autora da cartadisse que ele ou ela se encontrava na

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posse de uma carta extremamentecomprometedora enviada a Mrs. X porum amigo. O chantagista estavadisposto a vendê-la por quinhentaslibras. Todos os meses a conta de Mrs.X é passada a pente fino pelo marido eela estava com medo de pagar. Na suaaflição (ou assim reza a história),correu ao encontro de Mrs. Halcut-Hackett, que não lhe pôdedisponibilizar as quinhentas libras,mas que convenceu Mrs. X a vir falarconnosco sobre o assunto. Ela deu-nosa carta. Aqui está.

Alleyn colocou a pasta nas pernasrechonchudas de Lord Robert. LordRobert tocou nos óculos e olhou para aprimeira página durante uns bons trinta

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segundos. Abriu a boca, fechou-anovamente, lançou um olhar a Alleyn,tocou nos óculos mais uma vez e,finalmente, leu em voz baixa:

«Se desejar adquirir uma carta

datada de 20 de abril, escrita noBucks Club, dirigida à QueridaDodo e assinada M., poderá fazê-lo, deixando £500 em notaspequenas na sua carteira por trásdo quadro do funeral holandêspor cima da lareira, no salão debaile de Comstock House, nanoite de segunda-feira daqui aquinze dias.»

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Lord Robert olhou para cima.– Essa foi a noite em que os

Comstock deram uma festa debeneficência em que se jogou bridge –disse ele. – Uma coisa em grande.Trinta mesas. Vamos lá ver, foi nasegunda-feira passada.

– Foi. Devido a esta carta, falámoscom os Comstock, contámos-lhes umahistória da carochinha e pedimos-lhespara usar um homem disfarçado deempregado de mesa. Pedimos a Mrs.H-H que fizesse a sua amiga aflitacolocar a carteira cheia de notas, quepolvilhámos com o pó do costume,atrás do funeral holandês. Mrs. H-Hdisse que pouparia à amiga muito

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sofrimento e humilhação fazendo essesacrifício por ela. – Alleyn arqueouuma sobrancelha e brindou LordRobert com uma piscadela deliberada.

– Coitadinha – disse Lord Robert. –Será que ela achou que o convenceu?

– Não sei. Mantive o fingimento. Onosso homem, que posso dizer que éum bom homem, esteve na festa, viuMrs. H-H esconder a carteira eesperou para ver o que iria acontecer.

– O que aconteceu?– Nada. O nosso homem esteve lá

toda a noite e viu uma empregadadescobrir a carteira na manhã seguinte,colocá-la fechada em cima da lareira echamar a atenção de Mrs. Comstock.Mrs. Comstock, na presença do nosso

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homem e da empregada, abriu-a, viu opapel, ficou surpreendida, nãoconseguiu encontrar nada que indicassea identidade do proprietário e disse àempregada para o pôr de lado, casofosse solicitado.

– E o que deduz disso, meu caroRoderick? – perguntou Lord Robert, derepente, abraçando-se com os seusbraços curtos.

– Adivinharam as intenções do nossohomem.

– É um dos criados dos Comstock?– A festa foi totalmente organizada

pelo Dimitri, de Shepherd Market.Sabe de quem estou a falar, é claro.Ele faz a maioria das grandes festas

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hoje em dia. Fornece o serviço, acomida e tudo o resto.

– Um dos homens do Dimitri?– Fizemos investigações minuciosas.

Todos eles têm referênciasesplêndidas. Eu falei com o próprioDimitri. Disse-lhe que recentementetinha havido um ou dois furtos emgrandes eventos e fomos obrigados afazer perguntas. Ele começou a jogarao gato e ao rato, claro, e mostrou-meuma montanha de referências paratodas as pessoas. Verificámo-las e sãogenuínas. Ele emprega os melhores emtodo o mundo. Há uma regra estrita deque todos os objetos encontradosnestes eventos lhe devem ser levadosimediatamente. Ele próprio verifica se

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pode encontrar o proprietário e, nocaso de uma carteira perdida ou umsaco devolve-os pessoalmente, ouentão, depois de ter visto o conteúdo,envia-os por um dos seus homens.Explicou-me que faz isso para protegeros seus funcionários e a si próprio.Pede sempre ao proprietário paraexaminar uma carteira no momento emque lhe é entregue.

– Ainda assim…– Eu sei que não é de maneira

nenhuma irrefutável, mas demo-nos agrandes trabalhos em relação aopessoal do Dimitri e, na minhaopinião, não é provável que haja umhomem com esse perfil entre eles.

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– E o próprio Dimitri?Alleyn fez uma careta.– Não deixaria de ficar

surpreendido, meu caro Bunchy, mas…– Sim, sim, claro, eu compreendo.

Ele é demasiado bom para essesestratagemas, suponho. Mais algumacoisa?

– Estamos preocupados com osrumores de chantagem de outras fontes.Pode ver a pasta, se quiser.Resumindo, todos eles apontam paraalguém que opera da forma sugeridapela Mrs. X de Mrs. Halcut-Hackett.Há uma carta anónima enviada para aYard, presumivelmente por umavítima. Diz simplesmente que existe

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um chantagista a exercer pressão sobrepessoas da alta sociedade. Nada mais.Nós ainda não conseguimos apanhar-lhe o rasto. Então o jovem Kremornsuicidou-se com um tiro no outro dia edescobrimos que ele andava a levantarquantias elevadas em notas de banco,sem motivo conhecido. O criado deledeclarou que suspeitava de chantagemhá algum tempo. – Alleyn esfregou onariz. – É o diabo. E de todos oscrimes sujos, este é, para mim, o maissujo. Não me importo de lhe dizer queestamos num grande sarilho por causadele.

– É muito mau! –disse Lord Robert,arregalando os olhos. – Nojento! Ondeé que eu entro?

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– Em todos os lugares, se quiser.Ajudou-nos antes e ficaremos muitocontentes se nos ajudar novamente.Você vai a todos os lugares, Bunchy –disse Alleyn, sorrindo para o seupequeno amigo. – Você entra e sai detodas as casas elegantes. Senhorasencantadoras confiam em si. Coronéissérios choram no seu ombro. Fiqueatento.

– Não posso trair confidências, vocêsabe, não posso! Partindo do princípiode que me sejam feitas.

– Claro que não, mas pode fazer umapequena investigação tranquila, porsua conta, e contar-nos tanto quanto…– Alleyn fez uma pausa e acrescentou

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rapidamente: – Tanto quanto umhomem de integridade pode contar.Aceita?

– Adoraria! – respondeu LordRobert com grande entusiasmo. – Poracaso, seria muito estranho se fosseuma… coincidência.

– O quê?– Bem. Bem, ouça, Roderick, isto

tem de ficar entre nós. O que aconteceé que, como eu lhe disse, fiz uma visitaà Evelyn Carrados esta manhã. Estavaa passar por ali e vi um sujeito avender narcisos e pensei em levar-lhealguns. É uma mulher muito bonita, aEvelyn, mas… – fez uma careta. –Triste. Nunca superou a morte doPaddy, na minha opinião. É dedicada à

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pequena e a pequena é dedicada a ela,mas na minha opinião o Carrados dá-se um pouco a ares. É um tipopomposo, exigente e melindroso, nãoé? A Evelyn estava na cama. Soterradaem cartas. Também lá estava asecretária. O Carrados no tapete juntoà lareira, com uma expressãomelindrada. A Bridget veio mais tarde.Bem, o Carrados disse que ia para aCity. Aproximou-se da cama e deu-lheo tipo de beijo que uma mulher nãoagradece. Pôs as mãos ao lado dela. Amão direita sob a almofada.

A voz de Lord Robert subiu derepente uma oitava e tornou-se aguda.Ele inclinou-se para a frente, com as

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mãos sobre os joelhos, olhando muitoatentamente para Alleyn. Mexeu oslábios à maneira de um coelho e entãodisse num tom explosivo:

– Foi peculiar. Foi muito estranho.Ele deve ter tocado numa carta porbaixo da almofada, porque quando seendireitou, esta estava na sua mãodireita: um envelope de aspeto comumendereçado numa caligrafia que… asletras pareciam impressas, só quefeitas à mão.

Alleyn olhou rapidamente para apasta, mas não disse nada.

– O Carrados disse: «Oh, uma dastuas cartas, querida», olhando desoslaio para o envelope pelo seumonóculo e, em seguida, colocou-o

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sobre a colcha. «Perdão», ou algoassim. O que acontece é que ela ficouda cor do papel. Juro-lhe pela minhahonra, extremamente pálida. E disse:«É alguém a pedir-me para vir aobaile. Tenho de tratar disto», e afastou-a com as outras. O Carrados foi-seembora e pronto. Eu falei sobre o bailedeles e assim por diante, apresentei osmeus cumprimentos, fingi que não tinhareparado em nada, claro, e, em suma,fui-me embora.

Alleyn continuou em silêncio. Derepente, Lord Robert espetou o dedogordo na carta que estava na pasta.

– O que acontece – disse ele comênfase – é que é o mesmo tipo de letra.

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– Exatamente o mesmo? Quero dizer,pode jurar que se trata da mesmapessoa?

– Não, não! Claro que não. Só tiveum vislumbre do outro envelope, maspercebo bastante de caligrafia, sabe.

– Nós sabemos isso.– Era muito semelhante – disse Lord

Robert. – Muitíssimo semelhante. Pelaminha honra.

– Santo Deus – disse Alleynsuavemente. – Um verdadeiro golpe desorte. A coincidência estende um braçolongo. O mesmo acontece com a lei.«Aperta», diz a coincidência. Não éum braço muito longo, afinal, se estesujeito está a trabalhar apenas entre

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uma classe e parece que sim. –Empurrou uma caixa de cigarros nadireção de Lord Robert. – Tivemos umperito a analisar a carta, a de Mrs. H-H. Papel Woolworth. Ela não nosmostrou o envelope, claro. TintaWoolworth e o tipo de aparo que usampara escrever letras de imprensa. Équadrado, com um depósito. Percebe-se que as letras estão todas bemencaixadas entre as linhas. Isso e oaparo e o facto de as cartas seremcópias cuidadosas de uma impressãonormal eliminam completamentequalquer tipo de individualidade. Nãohavia impressões digitais e Mrs.Halcut-Hackett não tinha reparado nocarimbo postal. Entre!

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Um agente da polícia entrou com ummaço de cartas, colocou-o em cima damesa e saiu.

– Um momento enquanto dou umaolhadela ao meu correio, Bunchy, podeser que haja… sim, por Deus, há!

Abriu um envelope, olhou para umpequeno bilhete, desdobrou-o, ergueuas sobrancelhas e entregou-o a LordRobert.

– Fiiiiuuu! – assobiou Lord Robert.Era uma folha de papel pautado

comum. Três ou quatro fileiras deletras perfeitamente ajustadas entre aslinhas. Lord Robert leu em voz alta:

«Circunstâncias imprevistas

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impediram a recolha na noite desegunda-feira. Por favor, deixe acarteira com a mesma soma entreo assento e o braço esquerdo dosofá azul na sala de concertos,número 57 de Constance Street,próxima quinta-feira à tarde.»

– Mrs. Halcut-Hackett – disse

Alleyn, estendendo o bilhete – explicaque a sua infeliz amiga recebeu estacarta pelo correio de ontem à noite. Oque vai acontecer nesta quinta-feira nonúmero 57 de Constance Street? Sabe?

– Essas novas salas de concerto.Muito elegante. É mais um concerto debeneficência. Há bilhetes à venda emtodo o lado. Três guinéus cada. Música

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de câmara. Bach. O Quarteto Sirmione.Eu vou.

– Bunchy – disse Alleyn –, não deixeque nada o afaste do sofá azul. Falecom Mrs. Halcut-Hackett. Divida osofá azul com ela e quando as delíciasausteras de Bach baterem à porta doseu coração, peço-lhe que não presteatenção mas que observe com todas asforças da sua alma…

– Sim, sim, sim. Não se ponha comcitações agora, Roderick, ou alguémpode pensar que você é um detetive.

– Raios o partam! – disse Alleyn.Lord Robert soltou um pequeno riso

e levantou-se da cadeira.– Vou andando – disse. Alleyn

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acompanhou-o ao corredor. Deram umaperto de mão. Alleyn ficou a observá-lo enquanto ele se afastava com passoscurtos, uma figura antiquada epitoresca, recortando-se contra umajanela no fim do longo corredor. Afigura tornou-se cada vez maispequena, parou por um segundo nofinal do corredor, contornou a esquinae desapareceu.

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CAPÍTULO 3

DEPOIS DE UMA FESTA

Poucos dias depois da sua visita àScotland Yard, Lord Robert Gospellfoi a uma festa dada por Mrs. Halcut-Hackett em honra da sua insípidaprotegida. Ninguém parecia saberquem esta protegida era, mas todospartiam do princípio de que o objetivode Mrs. Halcut-Hackett em apresentá-la à sociedade não era totalmentefilantrópico. Ninguém se lembrava donome da jovem, mas apenas areconheciam como uma espécie decoda para as atividades sociais deMrs. Halcut-Hackett.

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A festa foi um dos primeiros grandesacontecimentos da temporada e haviaduzentos e cinquenta convidados. LordRobert adorava festas de todos ostipos e era, como Alleyn tinhaapontado, convidado para todas.Conhecia intimamente aquele conjuntode pessoas para quem a temporada deLondres era uma espécie de obstáculocolossal a ser enfrentado num saltoemocionante ou com o melhor esforçopossível. Ele era muito requisitadocomo parceiro de uma acompanhante, epodia contar-se com o seu apoio paraajudar com aquelas infelizes jovens dedezassete anos que, apesar de todos osesforços das escolas de boas maneiras,

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costureiras, cabeleireiros,especialistas de cosmética e das suasincansáveis mães, tinham tendênciapara serem vistas sozinhas sorrindonervosamente nas margens dos grupos.Com essas debutantes desafortunadasLord Robert dava-se a cuidadosinfinitos. Contava-lhes pequenashistórias inofensivas e quando elas seriam, ele reagia como se elas própriastivessem dito algo divertido. Os seuspequenos olhos atentos procuravamhomens mais jovens do que ele queatrairia para si e para a menina,formando um grupo à sua volta.Devido à sua reputação de pessoaespirituosa e gentil, os jovensdesconfiados e convencidos

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apreciavam ser vistos a conversar comLord Robert, e rapidamente adebutante seria a única mulher numgrupo de homens que pareciam estar adivertir-se. O seu sorriso nervosodesapareceria dando lugar a umdelicioso sentimento de confiança. Equando Lord Robert via os seus olhosbrilhar e as mãos relaxar, escapava-separa se juntar ao grupo deacompanhantes, onde contava históriasum pouco menos inofensivas eigualmente divertidas.

Mas com a protegida do general e deMrs. Halcut-Hackett foiirremediavelmente derrotado. Ela nãoera apenas insípida mas também

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desastrosamente desinteressante. Cadacentímetro daquela infeliz criança tinhasido preparado para a festa comcuidado apaixonado e com grandesdespesas da parte da sua acompanhante– uma daquelas mulheres americanasimportantes com um rosto lindo e umafigura elegante. Lord Robert foirecebido por Mrs. Halcut-Hackett, queparecia um pouco mais velha do que ohabitual, e pelo seu marido, o general,um notável brigão, que gritava «Oquê!» duas ou três vezes e explodia emgargalhadas surpreendentes, o queconstituía o seu método de alegrar todaa gente. Lord Robert olhou para ele,acenou com a cabeça e entrou na festa.Um criado, que ele reconheceu como o

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mordomo de Halcut-Hackett, deu-lheuma bebida. «Então eles nãocontrataram o Dimitri ou ninguém dogénero», pensou Lord Robert. Olhouem volta. No lado direito da enormesala estavam reunidas as debutantes, eos jovens que, em última análise,poderiam fazer com que as acrobaciasdas melhores bandas de dança emLondres, todos os esforços de todos osDimitris, das Miss Harris e as millibras das Mrs. Halcut-Hackettsparecessem um único gesto impotente.Entre eles encontravam-se os jovensque eram referidos, em diferentesgraus de ironia, como «As Delíciasdas Debutantes». Lord Robert

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suspeitava que o seu sobrinho Donaldera uma das «Delícias dasDebutantes». Lá estava ele, no meiodos outros, com Bridget O’Brien,mostrando-se agradável. Muitopopular, evidentemente. «Ele vai ter deacalmar», pensou Lord Robert. «Édemasiado irresponsável e ele está acomeçar a parecer decadente. Nãogosto disso.»

Viu então a protegida de Mrs.Halcut-Hackett, que acabara deconhecer um trio de debutantes recém-chegadas, levando-as para o ladodireito da sala. Viu como todas elasfalaram educada e agradavelmente comela, mas sem qualquer ar deintimidade. Viu-a demorar-se um

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momento, enquanto elas foram atraídaspara o turbilhão de conversas em vozalta. Então ela virou-se e ficou a olharpara a porta onde a sua acompanhantelidava diligentemente com as pessoasque chegavam. A jovem pareciacompletamente perdida. Lord Robertatravessou a sala e cumprimentou-acom uma vénia antiquada.

– Como passa? Que bela festa –disse ele, com um sorriso radiante.

– Oh! Oh… Fico tão contente.– Sou uma pessoa muito experiente,

sabe – continuou Lord Robert –, ejulgo sempre uma festa pelo tempo quedecorre entre cumprimentar osanfitriões e obter uma bebida. Bem,

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esta noite, foi-me dada esta excelentebebida dois minutos depois de apertara mão do general. Como sou um tiposedento e ganancioso, disse a mimmesmo: «Bela festa.»

– Fico tão contente – repetiu ajovem.

Ela estava a olhar, notou LordRobert, para a sua acompanhante, e viuque Mrs. Halcut-Hackett conversavacom um homem alto e sem barba, comum rosto pesado, olhos mortiços emodos possessivos. Lord Robert olhoufixamente para essa pessoa.

– Diga-me – incitou –, quem éaquele homem com a nossa anfitriã?

A jovem estremeceu violentamentee, sem tirar os olhos de Mrs. Halcut-

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Hackett, respondeu rigidamente:– É o capitão Withers.«Ah», pensou Lord Robert,

«imaginava que fosse». Em voz alta,disse:

– Withers? Então não é a mesmapessoa. Pensei que o conhecia.

– Oh – disse a protegida. Virara umpouco a cabeça e Lord Robert viu queela olhava agora para o general.«Como um coelho assustado», pensou.«Precisamente como um coelhoassustado.» O general aproximara-serapidamente da sua mulher e docapitão Withers. Lord Roberttestemunhou em seguida uma pequenacena curiosa. O general Halcut-Hackett

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olhou por três segundos para o capitãoWithers, que sorriu, fez uma vénia e seafastou. O general falou então comMrs. Halcut-Hackett e de imediato, poruma fração de segundo, o terror – LordRobert decidiu que terror não era umapalavra muito forte – que brilhava nosolhos da protegida refletiu-se nos dasua acompanhante. Apenas por umsegundo, e depois, com o marido, elavirou-se para cumprimentar umarecém-chegada que Lord Robert viucom prazer tratar-se de Lady Alleyn.Seguia-a uma rapariga magra, comcabelos cor de cobre e as sobrancelhasoblíquas que lhe lembraram logo o seuamigo Roderick. «Deve ser asobrinha», decidiu. A jovem ao seu

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lado de repente murmurou umadesculpa e apressou-se a ircumprimentar Sarah Alleyn. LordRobert terminou a sua bebida e foi-lheentregue outra. Em poucos minutos,viu-se cercado de conhecidos elançou-se numa das suas novashistórias. Contou-a tranquilamente eafastando-se no meio da onda de risoscom que o brindaram, foi ao encontrode Lady Alleyn.

– Meu querido Bunchy – disse ela –,é a pessoa que esperava ver. Venha econte-me os mexericos. Sinto-me comouma fénix.

– Parece uma princesa – disse ele. –Porque nos encontramos tão poucas

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vezes? Para onde devemos ir?– Se houver um canto reservado para

as avós, eu devia estar nele. Deus doCéu, como esta gente grita. Quantosanos tem, Bunchy?

– Cinquenta e cinco, minha querida.– Eu tenho sessenta e cinco. Acha as

pessoas hoje em dia muito barulhentasou ainda gosta destas coisas?

– Adoro festas, mas concordo quenão há muito sossego neste tipo deconvívio moderno.

– É isso – disse Lady Alleyn,sentando-se numa cadeira. – Não hásossego. Ainda assim gosto dosmodernos, especialmente dos novatos.Como o Roderick diz, eles fazemaquilo que pensam. Nós só fazíamos

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isso na privacidade dos nossos quartose muitas vezes pedíamos perdão aoCriador. O que acha da Sarah?

– Parece amorosa – disse LordRobert enfaticamente.

– É uma boa criatura.Surpreendentemente descontraída, mastem caráter e, eu acho, é bonita – dissea avó. – Quem são aqueles jovens comquem ela está a falar?

– Bridget O’Brien e o patife do meujovem sobrinho.

– Então é a filha da EvelynCarrados. Ela é parecida com o Paddy,não é?

– É muito parecida com os dois.Tem visto a Evelyn ultimamente?

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– Jantámos lá na noite passada. Oque se passa com a Evelyn?

– Hein?– exclamou Lord Robert. –Já reparou, não já? Você é uma mulhersábia, minha querida.

– Ela está descontrolada. Será que oCarrados a maltrata?

– Maltratar não é bem o termo. Ele émagnânimo e paciente, apesar de tudo.Mas…

– Mas há algo mais. Qual foi a razãopara o seu encontro com o Roderick nooutro dia?

– Então! – apressou-se Lord Roberta protestar. – O que está a tentar fazer?

– Não deixaria que mo dissessemesmo que tentasse. Garanto-lhe –

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disse Lady Alleyn falsamente mas comgrande dignidade – que não sou umamulher curiosa.

– Essa é muito boa.– Não sei o que quer dizer com isso

– disse Lady Alleyn de modoeloquente. – Mas digo-lhe uma coisa,Bunchy. Tenho mulheres neuróticas nocérebro. Mulheres nervosas. Mulheresque estão sempre atentas. É uma coisaextraordinária – continuou, esfregandoo nariz com um gesto que lembrou aLord Robert o filho dela –, mas osolhos pintados da nossa anfitriã têmexatamente a mesma expressão dosolhos naturalmente belos da EvelynCarrados. Ou será que esta bebidaextraordinária me subiu à cabeça?

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– A bebida – disse Lord Robert comfirmeza– subiu-lhe à cabeça.

– Meu querido Bunchy – murmurouLady Alleyn. Os seus olhosencontraram-se e os dois trocaramsorrisos. A festa prosseguiaeducadamente à sua volta. O barulho, ofumo, o odor festivo de flores e álcoolpareciam aumentar a cada momento.Pais redemoinhavam à volta da cadeirade Lady Alleyn. Lord Robertpermaneceu ao lado dela, ouvindo comprazer a sua voz leve e fria eobservando Mrs. Halcut-Hackett pelocanto do olho. Pelos vistos, todos osconvidados haviam chegado. Elacaminhava em direção à sala. Esta era

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a sua oportunidade. Virou-se e deu decaras com o capitão Withers. Por ummomento, olharam um para o outro.Withers era um homem alto e LordRobert foi obrigado a levantar umpouco a cabeça. Withers era umafigura elegante e arrogante, LordRobert uma figura rechonchuda ecómica. Mas por incrível que pareça,Lord Robert pareceu o mais dominantee mais digno destes dois homens, eperante o seu olhar brando o outro derepente parecia furtivo. O seu rostorude e atraente empalideceu. Passaramalguns segundos antes que ele falasse.

– Oh, ah, como está? –cumprimentou o capitão Withers muitocordialmente.

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– Boa noite – disse Lord Robert evoltou para junto de Lady Alleyn. Ocapitão Withers afastou-serapidamente.

– Ora, Bunchy – disse Lady Alleynbaixinho –, nunca o tinha vistodesprezar alguém.

– Sabe quem era?– Não.– Um indivíduo chamado Maurice

Withers. Uma recordação dos meusdias no Ministério dos NegóciosEstrangeiros.

– Ele tem medo de si.– Espero que sim – disse Lord

Robert. – Vou cumprimentar a anfitriã.Foi maravilhoso vê-la. Não quer vir

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jantar comigo uma noite? Traga oRoderick. Pode conceder-me umanoite? Em breve?

– Estou tão ocupada com a Sarah.Posso telefonar-lhe? Se se conseguirarranjar tempo…

– Tem de se conseguir. Au’ voir ,minha querida.

– Adeus, Bunchy.Ele fez a sua pequena vénia e abriu

caminho através da multidão emdireção a Mrs. Halcut-Hackett.

– Estou de saída – disse ele –, masqueria dar-lhe uma palavrinha. Umafesta esplêndida.

Ela focou toda a sua atenção nele.Era, decidiu ele com compaixão, umaatenção falsa. Uma imitação, mas que

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bela imitação. Ela chamou-lhe«estimado Lord Robert» como umagrande dama numa comédia um poucodatada. A sua voz americana, que eleachara encantadora nos seus dias deteatro, era agora muito disciplinada enão a favorecia. A anfitriã perguntouse ele estava a fazer a temporada comminúcia e ele respondeu com o seuhabitual brilho que andava a divertir-se bastante.

– Vai ao concerto nos ConstanceStreet Rooms na quinta-feira à tarde? –perguntou ele. – Mal posso esperar.

Os olhos dela ficaram com umaexpressão vazia, mas ela mal hesitouantes de responder que sim, pensava

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que ia.– É o Quarteto Sirmione – disse

Lord Robert. – São muitíssimo bons,não é verdade? Do melhor que há.

Mrs. Halcut-Hackett disse queadorava música, principalmentemúsica clássica.

– Bem – disse Lord Robert –, vou termuito gosto em procurá-la lá, se não seimportar. Hoje em dia não há muitaspessoas que apreciam Bach.

Mrs. Halcut-Hackett disse queachava Bach maravilhoso.

– Diga-me uma coisa – pediu LordRobert com os modos cativantes dequem aprecia um bom mexerico –,acabei de dar de caras com um sujeitocujo rosto me parecia muito familiar,

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mas não consigo lembrar-me de onde oconheço. É aquele indivíduo ali aconversar com a menina de vermelho.

De repente viu manchas de vermelhodestacarem-se nas bochechas de Mrs.Halcut-Hackett e pensou: «Isto abalou-a, coitada.»

– Está a referir-se ao capitãoMaurice Withers? – indagou ela.

– Talvez. Mas o nome não me diznada. Eu tenho uma memória terrível.Vou andando. Posso procurá-la naquinta-feira? Muito obrigado. Adeus.

– Adeus, querido Lord Robert –disse Mrs. Halcut-Hackett.

Ele saiu contornando vários gruposde pessoas e esperava pacientemente

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pelo chapéu e guarda-chuva quandoalguém ao seu lado disse:

– Olá, tio Bunch, vai para casa?Lord Robert virou-se lentamente e

viu o sobrinho.– O quê? Oh, és tu, Donald! Sim,

vou! Vou apanhar um táxi. Queresboleia?

– Sim, por favor – disse Donald.Lord Robert olhou por cima dos

óculos para o sobrinho e reparou queele parecia um pouco agitado. Pensou:«Que diabo está a acontecer com todaa gente?», mas apenas disse: «Vamoslá então», e saíram juntos para a rua.Lord Robert ergueu o guarda-chuva eum táxi parou junto ao passeio.

– Boa noite, senhor – cumprimentou

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o motorista.– Ah, é você, então? – disse Lord

Robert. – Boa noite. Nós vamos paracasa.

– Cheyne Walk, número duzentos.Muito bem, senhor – arquejou omotorista. Era um homem de olhosesbugalhados, cabelo grisalho, com acara às manchas e um ar truculento ebem-humorado. Fechou-lhes a portacom força, baixou a alavanca dotaxímetro e ligou o motor.

– Toda a gente o conhece, tio Bunch– disse Donald com uma voz que nãoera bem natural. – Até um qualquermotorista de táxi.

– Este tipo costuma circular pelos

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nossos lados – disse Lord Robert.Contorceu-se no lugar e olhou para osobrinho por cima dos óculos. – O quese passa? – perguntou.

– Eu… bem… nada. Quero dizer,porque é que acha que se passa algumacoisa?

– Ora, então – disse Lord Robert. –Nada de embustes. O que se está apassar?

– Bem, por acaso – respondeuDonald, chutando o assento à sua frente–, queria falar consigo. Estou numasituação um pouco difícil, tio Bunch.

– Dinheiro? – perguntou o tio.– Como é que adivinhou?– Não sejas burro, meu rapaz. O que

é?

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– Eu… bem, eu queria saber se seimportaria… quer dizer, eu sei quetenho sido um pouco extravagante.Lamento muito que isso tenhaacontecido. Suponho que fui um tolo,mas estou simplesmente arrependido.Nunca mais!

– Vá lá, vá lá, vá lá – disse LordRobert num tom seco. – O que é?Jogo?

– Bem… sim. Com um ligeiro toquede vida desregrada. Mas jogo,sobretudo.

– Cavalos? Cartas?– Um pouco, mas na verdade, o pior

foi a roleta.– Senhor! – exclamou Lord Robert

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com uma violência surpreendente. –Onde diabo é que foste jogar roleta?

– Bem, na verdade foi numa casa emLeatherhead. Pertence a um homem queestava na festa. Algumas pessoas queeu conheço levaram-me lá. Por sinal,era uma espécie de casa de jogo comuma mesa de roleta e seis tipos a fazerde croupier. Tudo em ordem, sabe.Quero dizer que o fazem apenas pelogozo, e o capitão Witherssimplesmente assume o banco…

– Quem?– O nome da pessoa é Withers.– Quando foi essa festa?– Oh, há mais ou menos uma semana.

Há-as com bastante regularidade. Eupaguei tudo, mas… mas fiquei limpo.

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Tive um azar incrível, na verdade.Consegue acreditar que perdidezassete vezes seguidas? Mau. Muitomau – disse Donald regressando deforma pouco convincente aos seusmodos mais descontraídos. –Desastroso, na verdade.

– Estás a empatar – disse LordRobert. – Qual é o problema real?

– Um dos meus cheques foidevolvido. Estou falido.

– Paguei as tuas dívidas em Oxford edei-te quinhentas libras de subsídioanual. Estás a dizer que já gastaste asquinhentas libras desde que vieste?

– Sinto muito – disse Donald. – Sim.– A tua mãe dá-te quatro libras por

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semana, não dá?– Sim.Lord Robert tirou um bloco de notas

de repente.– De quanto foi esse cheque

devolvido?– Cinquenta libras. Horrível, não é?

– Donald olhou para o perfil do tio eviu que os lábios dele estavamfranzidos como se assobiasse emsilêncio. Decidiu que não era tão mauquanto receara e disse mais ou menosesperançado: – Não é uma maçada?

Lord Robert, de lápis em riste,disse:

– É à ordem de quem?– Wits… Withers… toda a gente lhe

chama Wits. Sabe, eu tinha uma aposta

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adicional com ele.Lord Robert escreveu, virou-se e

olhou por cima dos óculos para osobrinho.

– Vou mandar um cheque ao Withersainda hoje – disse ele.

– Muito obrigado, tio Bunch.– Qual é o endereço?– Shackleton House, Leatherhead.

Ele tem um apartamento na cidade, maso endereço de Leatherhead é melhor.

– Tens outras dívidas?– Em uma ou duas lojas. Estão a

ficar um pouco irritados com isso. Eum restaurante ou dois.

– Chegámos – disse Lord Robertabruptamente.

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O táxi parou diante da casa que elepartilhava com a irmã. Saíram. LordRobert pagou e deu uma gorjeta aomotorista.

– Como está o lumbago? –perguntou.

– Não está muito mau, senhor, muitoobrigado, senhor.

– Ainda bem. Boa noite.– Boa noite, senhor.Entraram em casa em silêncio. Lord

Robert disse por cima do ombro:– Vamos para o meu escritório.Foi à frente, uma figura pequena,

cómica, mas, de alguma forma,bastante resoluta. Donald seguiu-o atéum escritório antiquado. Lord Robert

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sentou-se à secretária e passou umcheque com movimentos afetados dassuas mãos gordas. Passou o mata-borrão meticulosamente e virou-se nacadeira para olhar para o sobrinho.

– Ainda és da mesma opinião sobrea Medicina? – perguntou.

– Bem, essa é a grande ideia – disseDonald.

– Passaste alguns exames para isso,não foi?

– Os exames preliminares – disseDonald descontraidamente. – Sim,passei esses exames.

– Antes de te mandarem embora porperderes o dinheiro da tua mãe. E omeu.

Donald permaneceu em silêncio.

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– Vou tirar-te dessa embrulhada comuma condição. Não sei porquedecidiste ser médico. A nossa famíliaestá na carreira diplomática há um bomnúmero de gerações. Já é altura defazermos outra coisa, atrevo-me adizer. Vais começar a trabalhar emEdimburgo, assim que te aceitarem. Senão for em breve, arranjo umtransporte e vais para Archerytrabalhar. Dou-te o mesmo que umestudante de Medicina normal ganha eaconselharei a tua mãe a não te darmais nada. É tudo.

– Edimburgo! Archery! – A voz deDonald era estrídula de consternação.– Mas eu não quero ir para Edimburgo

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para a minha formação. Quero ir paraSt. Thomas.

– É melhor ficares longe de Londres.Há outra coisa em que devoabsolutamente insistir, Donald. Devesdeixar de te dar com esse Withers.

– Porquê?– Porque ele é um mau tipo. Sei

algumas coisas a seu respeito. Nuncainterferi nas tuas amizades antes, masestaria a negligenciar fortemente osmeus deveres se não interviesse nestecaso.

– Não vou desistir de um amigo,simplesmente porque o tio diz que elenão é bom tipo.

– Dou-te a minha palavra de honraque este homem é um canalha, um

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canalha criminoso. Fiquei espantadoquando reconheci o Withers esta tarde.As minhas informações datam dosmeus tempos no ministério. Sãoincontestáveis. Uma folha de serviçomuito má. Vá, sê sensato. Faz umarutura clara e esquece-o. Archery éuma bela casa antiga. A tua mãe podeusá-la como um pied-à-terre e visitar-te algumas vezes. É apenas a dezasseisquilómetros de Edimburgo.

– Mas…– Lamento, mas é definitivo.– Mas… eu não quero sair de

Londres. Não quero andar de um ladopara o outro com uma data deescoceses circunspetos de sabe Deus

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onde. Quer dizer, o tipo de pessoasque vão para lá é simplesmenteabominável!

– Porquê? – perguntou Lord Robert.– Bem, porque, quero dizer, o tio

sabe o que quero dizer. Eles vão sertipos muito estranhos. Sem dúvida,perfeitamente esplêndidos mas…

– Mas não da mesma classe dejovens que contraem dívidas de honraque não podem pagar e fazem atemporada de Londres com o dinheirodas mães?

– Isso não é justo – gritou Donaldcom veemência.

– Porquê? – repetiu Lord Robert.– Aposto que o tio se meteu no

mesmo tipo de confusões quando tinha

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a minha idade.– Estás enganado – disse Lord

Robert suavemente. – Fiz muitosdisparates, como a maioria dos jovensda minha época. Mas não contraídívidas que era incapaz de pagar.Sempre me pareceu que esse tipo dequestão se assemelhava a roubo. Nãoroubei a roupa ao meu alfaiate, nembebidas do meu hotel, ou dinheiro dosmeus amigos.

– Mas eu sabia que tudo seresolveria no final.

– Queres dizer, sabias que eu iapagar?

– Eu não sou ingrato – disse Donaldcom raiva.

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– Meu caro amigo, não quero quesejas grato.

– Mas não me vou meter nummausoléu abandonado na Escócia ameio da temporada. Há… há a Bridget.

– A pequena de Lady Carrados? Elagosta de ti?

– Sim.– Parece-me uma boa criatura. Tens

sorte. Não é uma dessas tagarelashistéricas. Ela espera por ti.

– Eu não vou.– Meu querido rapaz, desculpa, mas

não tens nenhuma alternativa.O rosto de Donald ficou branco, mas

duas manchas vermelhas ardiam nassuas maçãs do rosto. Os lábios

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tremiam-lhe. De repente, explodiuviolentamente.

– Pode ficar com a porcaria do seudinheiro – gritou. – Por Deus, voutomar conta de mim. Vou pediremprestado a alguém que não seja oraio de uma relíquia eduardianacomplacente, vou arranjar um empregoe pagar como puder.

– Não há por aí empregos assim. Válá…

– Oh, cale-se! – berrou Donald esaiu porta fora.

Lord Robert olhou para a porta que osobrinho não deixara de bater. Oescritório ficou mergulhado emsilêncio. O fogo extinguia-se com umpequeno sussurro de cinzas e o relógio

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de Lord Robert marcava audivelmentea passagem do tempo em cima dalareira. A figura rechonchuda, apenasmeio iluminada pelo candeeiro desecretária, permanecia imóvel, acabeça apoiada na mão. Lord Robertsuspirou, um som triste e ligeiro. Porfim, tirou um envelope e na suacaligrafia miudinha endereçou-o aocapitão Withers, Shackleton House,Leatherhead. Depois escreveu umabreve nota, dobrou-a com o cheque ecolocou-os dentro do envelope. Aseguir, tocou para chamar o mordomo.

– Mr. Donald saiu?– Sim, senhor. Ele disse que não

voltaria.

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– Estou a ver – disse Lord Robert. –Obrigado. Pode mandar enviar estacarta imediatamente?

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CAPÍTULO 4

CHANTAGEM AO SOM DEMÚSICA

Lord Robert estava sentado no sofáazul desde as duas e quinze, mas nãose sentia cansado de ali estar. Gostavade assistir à chegada dos mecenas damúsica e divertia-se fazendoespeculações ociosas sobre o assuntodo snobismo intelectual. Tambémexplorara o sofá azul, passando asmãos cautelosamente sobre asuperfície do assento e para baixoentre o assento e os braços. Tomara aprecaução de deixar as luvas numacadeira à esquerda do sofá e um pouco

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atrás. Algumas pessoas vieram falarcom ele, entre elas Lady Carrados, queestava com um aspeto cansado.

– Está a exagerar, Evelyn – disseele. – Está encantadora, é um vestidomaravilhoso, não é?

– Eu estou bem, Bunchy – disse ela.– Tem uma bela maneira de dizer auma mulher que ela está a ficar maisvelha.

– Nada disso! Não foi o que quisdizer. Por acaso, assenta-lhe bem todaessa elegância, mas está muito magra,sabe. Onde está a Bridgie?

– Numa matinée.– Evelyn, sabe se ela se encontra

com o meu sobrinho?– O Donald Potter? Sim. Sabemos

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tudo sobre esse assunto, Bunchy.– Ele escreveu à mãe, que, sem

dúvida, lhe está a dar dinheiro.Suponho que sabe que ele agorapartilha aposentos com outro tipo?

– Sim. A Bridgie vai visitá-lo.– A Bridgie sabe onde ele está?– Acho que sim. Ela não me disse.– Evelyn, ela gosta do rapaz?– Gosta.– O que acha dele?– Não sei. Ele é encantador, mas eu

gostaria que ele assentasse.– O assunto incomoda-a?– Isso? – Ela susteve a respiração. –

Um pouco, naturalmente. Ah, ali estáLady Alleyn! Nós deveríamos estar

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juntas.– Uma mulher encantadora, não é?

Eu estou à espera de Mrs. Halcut-Hackett.

– Nunca imaginei que fizesse o seugénero – disse Lady Carradosvagamente.

Lord Robert fez a sua cara de coelhoe piscou um olho.

– Entramos em êxtases mútuos porcausa de Bach – disse ele.

– Tenho de me ir juntar a LadyAlleyn. Adeus, Bunchy.

– Adeus, Evelyn. Não se preocupemuito… com nada.

Ela lançou-lhe um olharsobressaltado e foi-se embora. LordRobert sentou-se novamente. A sala

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estava quase cheia e em dez minutos oQuarteto Sirmione subiria ao estradomoderno.

«Estará ela à espera que apaguem asluzes?», interrogou-se Lord Robert.Viu Agatha Troy entrar, tentou chamar-lhe a atenção mas não conseguiu. Aspessoas começavam a instalar-se nasfilas de cadeiras douradas e naspoltronas e sofás desirmanados juntoàs paredes. Lord Robert olhou inquietopara a porta e viu Sir DanielDavidson. Davidson foi direito a ele.Sir Daniel tratara uma indigestão dairmã e Mildred, que era uma mulheremotiva, convidara-o para jantar. LordRobert sentira-se divertido e

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interessado em Davidson. A suatécnica como médico da moda erasoberba. «Se Disraeli tivesseenveredado pela Medicina em vez dasprímulas», afirmara Lord Robert, «eleteria sido um dos seus». E tinhaencorajado Davidson a enveredar peloseu assunto favorito, As Artes, commaiúsculas bastante enfáticas.Superara as citações latinas deDavidson, atirando-lhe com Congreve,e ouviu divertido o médico traçar umparalelo absurdo entre Rubens eDürer. «O extrovertido e o introvertidoda Arte», exclamara Davidson,acenando com as mãos bonitas e LordRobert tinha arregalado os olhos edissera: «Você está a falar de coisas

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demasiado sofisticadas para mim», aoque Davidson respondera: «Eu estou adizer disparates», acrescentandoabruptamente: «e você sabe.» Maspassado um minuto ou dois começarade novo tão extravagante como sempree partira à uma da manhã, muitosatisfeito consigo mesmo e atransbordar de frases.

– Ah – disse Davidson agora aoapertar-lhe a mão. – Poderia teradivinhado que iria encontrá-lo aqui.Fazer a coisa da moda por razões forade moda. Música! Meu Deus!

– O que tem de errado? – perguntouLord Robert.

– Meu caro Lord Robert, quantas

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destas pessoas saberão o que estão aouvir, ou ouvirão sequer? Nem uma emcinquenta.

– Ora, vá lá!– Nem uma em cinquenta! Lá vai

aquele sujeito, o Withers, cujaapreciação do belo é menor que a deum macaco com um realejo. O que estáele a fazer aqui? Repito, nem um emcinquenta destes impostores sabe o queestá a ouvir. E quantos dos quarenta enove têm a coragem de confessar quesão filisteus honestos?

– Um grande número, diria eu –declarou Lord Robert alegremente. –Eu, por exemplo. Tenho tendência aadormecer.

– Ora, porque diz isso? Sabe

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perfeitamente… que se passa?– Desculpe. Estava a olhar para a

Evelyn Carrados. Parece muito abatida– disse Lord Robert. Davidson seguiuo seu olhar até onde Lady Carradosestava sentada ao lado de Lady Alleyn.O médico olhou-a por um momento edepois disse calmamente:

– Sim. Ela está a exagerar. Vou terde a repreender. Parece-me que o meulugar é para ali. – Fez um gesto deimpaciência. – Elas exageram todas,estas mães, e as meninas exageram, eos maridos ficam agitados e os jovensnegligenciam o seu trabalho e, emseguida, há meia dúzia de casamentoselegantes, e outros tantos colapsos

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nervosos e é isto a temporada deLondres.

– Senhor! – disse Lord Robert emvoz baixa.

– É a verdade. No meu trabalho vê-se isto uma e outra vez. Sim, sim, sim,eu sei! Sou um médico elegante doWest End e encorajo todas as mulheresa pensar que estão doentes. Isso é oque você pode pensar, mas asseguro-lhe, meu caro Lord Robert, que vejocasos de esgotamento nervososuficientes para transformar uma jovemingénua numa cínica. E elas são tãoencantadoras, estas mães. Quero dizer,realmente encantadoras. Mulherescomo Lady Carrados. Ajudam-se tantoumas às outras. Não é tudo um

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croquete por um croquete. Mas… – eleestendeu as mãos – para quê tudo isto?De que se trata? As mesmas pessoasque se encontram uma e outra vez comgrande despesa, ao som de ruídosnegroides altos de bandas de jazz. Paraquê?

– Não faço ideia – exclamou LordRobert alegremente. – Quem é o tipoque veio atrás do Withers? O tipo altoe moreno, com umas mãosextraordinárias. Parece-me que oconheço.

– Onde? Ah. – Davidson pegou osóculos que usava com uma fita pretalarga. – Quem é! Eu digo-lhe quem é. Éo tipo da restauração, o Dimitri. Está a

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aproveitar os seus três guinéus de Bachcom o haute monde e, por Deus,aposto o que quiser que ele tem maisbom gosto naquele dedo mindinhoextraordinário, você é muitoobservador, é uma mão estranha, doque a maioria destas pessoas tem nassuas carcaças mimadas. Como está,Mrs. Halcut-Hackett?

Ela chegara tão de mansinho queLord Robert não a vira. Tinha umaspeto magnífico. Davidson, paradiversão de Lord Robert, beijou-lhe amão.

– Veio prestar culto? – perguntou.– Com certeza – disse ela e virou-se

para Lord Robert. – Vejo que não seesqueceu.

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– Como poderia esquecer-me?– Ora, não é agradável? – perguntou

Mrs. Halcut-Hackett, olhando deesguelha para o sofá azul. Lord Robertafastou-se um pouco e ela sentou-seimediatamente, espalhando as peles.

– Tenho de encontrar o meu lugar –disse Davidson. – Eles vão começar.

Dirigiu-se a uma cadeira ao lado deLady Carrados, do outro lado da sala.Mrs. Halcut-Hackett perguntou a LordRobert se ele não achava que SirDaniel era uma pessoa encantadora.Ele apercebeu-se de que o sotaqueamericano dela não foi tãorigorosamente reprimido como erahabitual e que as mãos se mexiam,

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inquietas. Ela fez-lhe sinal para sesentar à sua direita.

– Se não se importar – disse ele –,vou ficar na minha cadeira. Gosto deter as costas direitas.

Viu-a olhar nervosamente para acadeira dele, que estava um poucoatrás do braço esquerdo do sofá. Acarteira permanecia no seu colo. Erauma carteira grande e parecia bemcheia. Ela compôs as peles novamentepara que estas caíssem sobre acarteira. Lord Robert empoleirou-se nasua cadeira terrivelmentedesconfortável. Percebeu que Dimitrise sentara no fim de uma fila deassentos ali perto. Deu por si aobservar ociosamente Dimitri.

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«Gostaria de saber o que ele pensa denós. Sempre a arranjar comida para asnossas festas e ele poderia comprar-nos a todos e não notaria, não meimportaria de apostar. São umas mãosestranhas, não tenho dúvidas. O dedomínimo é do mesmo comprimento queo terceiro dedo.»

Uma revoada de aplausos educadosestalou e o Quarteto de CordasSirmione encaminhou-se para oestrado. As luzes ocultas da sala deconcerto diminuíram até à escuridão,deixando os artistas brilhantementeiluminados. Lord Robert experimentouessa emoção familiar que se segue aoglorioso afinar das cordas. Mas disse a

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si mesmo que não viera para ouvir amúsica e teve o cuidado de não olharpara o estrado, não fossem os seusolhos ficar encandeados pela luz. Emvez disso, olhou para o braço esquerdodo sofá azul. A escuridão diminuíragradualmente e agora ele podiadistinguir o ténue brilho do brocado ea forma escura das peles de Mrs.Halcut-Hackett. Essa forma pareciamover-se. Algo brilhou. Lord Robertinclinou-se para a frente. Mais pertodo que o padrão requintado da música,distinguiu o suave roçagar de doistecidos a tocarem um no outro. Asilhueta de Mrs. Halcut-Hackett ficoutensa e depois relaxou. «Ela escondeu-a», pensou Lord Robert.

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Ninguém se aproximou deles até asluzes se acenderem para o intervalo e,em seguida, Lord Robert percebeu aastúcia do chantagista ao indicar o sofáazul como ponto de entrega, pois aporta lateral que ficava atrás do sofáfora aberta durante o intervalo e, emvez de saírem para o salão pelaentrada principal, muitas pessoaspassaram por detrás do sofá azul e poressa porta lateral. E quando o intervalose aproximava do fim, algumaspessoas entraram e ficaram atrás dosofá trocando mexericos. Lord Roberttinha a certeza de que o seu homemtinha saído para o salão. Iria esperaraté que as luzes diminuíssem e entrar

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com o resto dos retardatários, passarpor trás do sofá e pôr a mão sobre obraço. A maioria dos homens e muitasdas mulheres tinham saído para fumar,mas Lord Robert permaneceudesconfortavelmente colado à suacadeira. Sabia muito bem que Mrs.Halcut-Hackett se debatia sob apressão de desejos contraditórios. Elaqueria estar sozinha quando a carteirafosse levada e adorava um título. Iriater o seu título. De repente, murmuroualgo sobre retocar a maquilhagem,levantou-se e saiu pela porta lateral.

Lord Robert apoiou a cabeça na mãoe dedicou os últimos minutos dointervalo a uma imitação perfeita deum cavalheiro idoso a cair no sono. As

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luzes apagaram-se novamente. Osretardatários voltaram, murmurandodesculpas. Havia um pequeno grupo depessoas ainda de pé na escuridão portrás do sofá. Os artistas voltaram aoestrado.

Alguém tinha avançado por trás LordRobert e ficou ao lado do sofá.

Lord Robert sentiu o seu coraçãosobressaltar-se. Ele havia posicionadoa sua cadeira com todo o cuidado,deixando um espaço entre a mesma e obraço esquerdo do sofá. A misteriosafigura movia-se para este espaço. Eraum homem. Ficou de costas para oestrado iluminado e parecia inclinar-seum pouco para a frente, como se

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procurasse alguma coisa na escuridão.Lord Robert também se inclinou para afrente. Emitiu um ronco muitodelicado. A sua mão direita apoiou acabeça. Pelo intervalo dos dedosgordos observou o braço esquerdo dosofá. Neste pequeno reino decrepúsculo imiscuiu-se a forma de umamão. Uma mão curiosamente fina eLord Robert verificou claramente queo dedo mínimo era tão compridoquanto o terceiro dedo.

Lord Robert ressonava.A mão deslizou para a escuridão e

quando regressou segurava a carteirade Mrs. Halcut-Hackett.

Como se em irónica apreciação, amúsica no estrado subiu num

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crescendo acentuado para um estrondotriunfante. Mrs. Halcut-Hackett voltoude retocar a maquilhagem.

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CAPÍTULO 5

UM SUCESSO ABSOLUTO

O baile dado por Lady Carradospara a sua filha Bridget O’Brien foi umsucesso absoluto. Isso quis dizer que apartir das dez e meia, quando SirHerbert e Lady Carrados assumiram assuas posições no topo da escadariadupla e apertaram as mãos dosprimeiros convidados, até às três emeia da manhã seguinte, quando abanda, pálida e levemente brilhante desuor, tocou o hino nacional, não houveum momento em que não fosse difícilpara um jovem encontrar as debutantescom quem queria dançar e fácil para

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ele evitar aquelas por quem não sesentia atraído. Não houve um rescaldofunesto quando os convidadoscomeçaram a retirar-se para outraspartes, esgueirando-se para outrasfestas com a crueldade incontroláveldos entediados. A elaborada estrutura,minuciosamente elaborada por LadyCarrados, Miss Harris e Dimitri, nãose desmoronou como um castelo deareia ante uma onda deimpopularidade, mas aguentou-secorajosamente até ao fim. Foi,portanto, um sucesso absoluto.

Em matéria de champanhe, LadyCarrados e Miss Harris haviamtriunfado. A bebida corria não só nasala de jantar, mas também no buffet.

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Apesar do facto indubitável de asdebutantes não beberem, os homens deDimitri abriram duas centenas degarrafas de Heidsieck ‘28 naquelanoite, e depois Sir Herbert sentiu umaespécie de orgulho bem-educado aovislumbrar as filas de garrafas vazias,quando passou para ver os bastidores.

Lá fora estava excecionalmente frio.A névoa causada pela respiração dosmirones misturava-se com um levenevoeiro. Ao atravessarem o tapetevermelho que se estendia desde oscarros até à grande porta, osconvidados passavam por entre duasmassas oscilantes de rostos escuros. Eenquanto o calor e o festivo cheiro de

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flores e perfumes caros chegavam aosnarizes dos observadores, através dasgrandes portas entrava o odor danévoa, pelo que os criados novestíbulo diziam de vez em quando unsaos outros que para junho estava umanoite invulgarmente enevoada.

À meia-noite todos sabiam que obaile fora um sucesso e, quando aoportunidade se apresentou, puderamtransmiti-lo a Lady Carrados.Deixando o seu posto no cimo daescadaria, ela entrou no salão, muitobonita, e dirigiu-se à outraextremidade, onde a maioria dasacompanhantes estava reunida. Nocaminho, passou pela filha, quedançava com Donald Potter. Bridget

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sorriu intensamente para a mãe elevantou a mão esquerda em alegresaudação. A sua mão direita estavaesmagada contra o peito de Donald e obraço negro e a mão masculina e durade Donald apertavam as costas deBridget, envolvendo o seu vestidoabsurdamente branco. «Ela estáapaixonada por ele», pensou LadyCarrados. E através do labirinto depensamentos conturbados que aacompanhavam, recordou a suaconversa com o tio de Donald.Perguntou-se, de repente, se asmulheres alguma vez desmaiavam depura preocupação e enquanto sorria efazia pequenas vénias ao longo do

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salão, viu-se de repente a cair entre osdançarinos. Ficaria ali deitada,enquanto a banda tocava, e depoisabriria os olhos e veria as pernas daspessoas e, em seguida, alguém iriaajudá-la a levantar-se e ela implorariaque a levassem rapidamente, antes quealguém reparasse em alguma coisa. Osseus dedos apertavam a carteira.Quinhentas libras! Ela dissera aohomem no banco que queria pagaralgumas das despesas do baile emdinheiro. Fora um erro. Devia terenviado Miss Harris com o cheque enão ter dado nenhuma explicação aninguém. Era meia-noite. Ela iria fazê-lo quando fosse para a ceia. Ali estavaaquela protegida banal de Mrs. Halcut-

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Hackett mais uma vez sem parceiro.Lady Carrados olhou em voltadesesperadamente e para seu alívio,viu o marido a abrir caminho emdireção à jovem. Sentiu uma súbitaonda de afeto pelo marido. Deveria irter com ele hoje à noite e contar-lhetudo? E simplesmente esperar eaguentar o golpe? Devia estar mesmomuito doente para sonhar com umacoisa dessas. Finalmente chegou aocanto das acompanhantes e, graças aDeus, ali estava Lady Alleyn com umacadeira vazia ao seu lado.

– Evelyn! – exclamou Lady Alleyn. –Venha sentar-se, minha querida, emtodo o seu triunfo. A minha neta

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acabou de me dizer que este é opináculo de todos os bailes. Toda agente está a dizer o mesmo.

– Estou muito agradecida. É umasorte hoje em dia. Nunca se sabe.

– É claro que não. Na última terça-feira nos Gainscott, à uma hora, haviaapenas as três meninas Gainscott,alguns casais desesperados que nãotiveram coragem para escapar, e aminha Sarah e o seu par, que eumantive ali por puro terrorismo. Claro,eles não tinham o Dimitri, e devo dizerque acho que ele é um perfeito mágico.Meu Deus – disse Lady Alleyn –, estoua divertir-me.

– Fico tão contente.– Espero que também se esteja a

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divertir, Evelyn. Dizem que o segredopara ser uma boa anfitriã é divertir-senas suas próprias festas. Eu nunca teriaacreditado. As minhas foram sempreum pesadelo para mim e recuso-me aadmitir que foram fracassos. Mas sãotão desgastantes. Suponho que nãoqueira vir até Danes Court comigo etransformar-se numa vaquinhatranquila durante o fim de semana?

– Oh – disse Lady Carrados –, quemme dera poder ir.

– Venha.– Isso é o que Sir Daniel Davidson

disse que eu deveria fazer, levar a vidade uma vaca plácida durante algumtempo.

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– Está decidido, então.– Mas…– Que disparate! Ali está o

Davidson, não está? Aquele homemmoreno, de aparência extravagante, afalar com a Lucy Lorrimer. À minhaesquerda.

– Sim.– Ele é bom? Toda a gente vai ao

consultório dele. Devia mostrar-lhe aminha perna um dia destes. Se nãoprometer que vem, Evelyn, vou chamá-lo aqui e fazer uma cena. Ali vem oBunchy Gospell – continuou LadyAlleyn, lançando um rápido olhar aosdedos trémulos da sua anfitriã –, etenho a certeza de que ele vai pedir-lhe

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para jantar com ele. Ora, se não é aAgatha Troy que vem com ele!

– A pintora? – perguntou LadyCarrados com a voz fraca. – Sim. ABridgie conhece-a. Ela vai pintar-lhe oretrato.

– Ela fez um esboço do retrato domeu filho Roderick. É incrivelmentebom.

Lord Robert, com uma extensão tãogrande de branco sob o queixo que separecia um pouco com Mr. Pickwick,dirigiu-se a elas, sorrindo, com AgathaTroy a seu lado. Lady Alleyn estendeua mão e puxou Agatha Troy para umbanco ao lado dela. Olhou para ocabelo escuro e curto, o longo pescoçoe a elegância e graciosidade de Agatha

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Troy e desejou, não pela primeira vez,que ela fosse a sua nora. Agatha Troyera a mulher que ela própria teriaescolhido para o seu filho, e, assimacreditava, a mulher que ele teriaescolhido para si mesmo. Esfregou onariz, contrariada. «Se não fosse poraquele caso infeliz!», pensou.

– Estou tão contente por a ver, minhaquerida. Ouvi dizer que a exposição éo maior sucesso.

Troy sorriu de esguelha.– Pergunto-me qual de nós está mais

surpreendida por nos vermos –continuou Lady Alleyn. – Saltei dareforma para apresentar a minha neta.

– O Bunchy Gospell trouxe-me –

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disse Troy. – Raramente tenhooportunidade de me vestir assim eestou a gostar bastante.

– O Roderick tinha concordado vir,mas tem um caso complicado entremãos e amanhã tem de se levantar aoromper da aurora.

– Oh – disse Troy.Lord Robert começou a falar

animadamente com Lady Carrados.– Lindo! – exclamou, elevando muito

a voz para se sobrepor à banda que derepente começara a fazer um barulhoterrível. – Lindo, Evelyn! Há muito quenão… soberbo! – Dobrou os joelhos eaproximou o rosto de Lady Carrados. –Ceia – disse num tom agudo. – Digaque vai! Dentro de meia hora ou assim.

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Vai?Ela sorriu e acenou com a cabeça.

Lord Robert sentou-se entre LadyCarrados e Lady Alleyn e deu umapalmadinha a cada uma. A sua mãopousou acidentalmente sobre a carteirade Lady Carrados. Ela moveu-arapidamente. Ele sorria ao salão eparecia perdido num êxtase suave.

– Champanhe! – disse. – Não hánada melhor! Não estou embriagado,minhas queridas, mas, confessoorgulhosamente, um pouco exultante.Acredito que hoje em dia se chamabem obrigado. Como está? Lindo, nãoé?

O general e Mrs. Halcut-Hackett

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fizeram uma vénia. Os seus lábiossorridentes moveram-se numassentimento silencioso. Sentaram-seentre Lady Alleyn e Sir DanielDavidson e a sua parceira, LadyLorrimer.

Lucy, marquesa viúva de Lorrimer,era uma mulher de oitenta anos. Vestia-se quase inteiramente de véus e joiasdesirmanadas. Possuía uma fortunaenorme e era bastante excêntrica. SirDaniel cuidava do seu lumbago. Elafalava agora com ele séria econfusamente, e ele ouvia com um arde atenção extasiada. Lord Robertvirou-se com um pequeno salto e fezduas pequenas reverências na suadireção.

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– Ali está o Davidson – dissealegremente – e Lucy Lorrimer. Comoestá, Lucy?

– O quê? – gritou Lucy Lorrimer.– Como tem passado?– Ando ocupada. Pensei que

estivesse na Austrália.– Porquê?– O quê?– Porquê?– Não me interrompa – gritou Lucy

Lorrimer. – Estou a conversar.– Nunca lá estive – disse Lord

Robert –, a mulher é louca.Os Halcut-Hackett sorriram

desconfortavelmente. Lucy Lorrimerinclinou-se sobre Davidson e gritou:

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– Não se esqueça de amanhã à noite!– Quem? Eu? – perguntou Lord

Robert. – Claro que não.– Oito e meia em ponto.– Eu sei. Apesar de não saber como

é que pôde pensar que eu estava naAustrália…

– Não vi que era você – gritou LucyLorrimer. – Então não se esqueça. – Abanda parou tão abruptamente comotinha começado e a sua voz soouestrídula. – Não seria a primeira noiteem que me teria desapontado.

Inclinou-se para trás rindo-se eabanando-se. Lord Robert olhou para oresto do grupo com um olhar cómico.

– Sinceramente, Lucy! – disse Lady

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Alleyn.– Ele é a criatura mais distraída do

mundo – acrescentou Lucy Lorrimer.– Quanto a isso – disse Lord Robert

–, tenho de discordar. Sou acima detudo uma criatura de hábitos, pelaminha honra. Poderia dizer-lhe, se nãofosse uma história muito aborrecida,exatamente momento a momento o quevou fazer amanhã à noite e como vougarantir a minha chegada pontual àfesta de Lucy Lorrimer.

– De repente lembra-se às oito equarenta e cinco e apanha um táxi –disse Lucy Lorrimer.

– Nada disso.Mrs. Halcut-Hackett juntou-se de

súbito à conversa.

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– Eu posso confirmar a pontualidadede Lord Robert – disse em voz alta. –Ele respeita sempre os seuscompromissos. – Riu-se de uma formaum pouco estridente e por algummotivo inexplicável criou umaatmosfera desconfortável. Lady Alleynolhou-a fixamente. Lucy Lorrimerparou a meio de uma fraseirremediavelmente confusa; Davidsoncolocou o monóculo e olhou. O generalHalcut-Hackett disse «O quê!» numtom alto e inquieto. Lord Robertexaminou as mãozinhas gordas, comum ar de espanto complacente. Atensão inexplicável foi aliviada pelachegada de Sir Herbert Carrados com

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a desinteressante protegida dos Halcut-Hackett. Levou o seu longo lenço dechiffon à cara e olhou com algumdesespero para a sua acompanhante.Carrados, que a segurara pelocotovelo, era o perfeito exemplo docavalheirismo britânico…

– Uma vítima! – disse elemaliciosamente. – Mrs. Halcut-Hackett, receio que vá ficar muitozangada comigo!

– Ora, Sir Herbert! – disse Mrs.Halcut-Hackett – Isso é certamenteuma impossibilidade.

– O quê! – disse o general.– Esta jovem – continuou Carrados,

apertando-lhe o cotovelo – ficou comuma dor de dentes assim que começou

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a dançar comigo. Que azar… para nósos dois…

Mrs. Halcut-Hackett olhou a suaprotegida com algo muito parecidocom desespero furioso.

– Qual é o problema – disse ela –,querida?

– Receio que é melhor eu ir paracasa.

Lady Carrados pegou-lhe na mão.– Isso é azar – disse ela. – Vamos

ver se podemos encontrar algo para…– Não, não, por favor – disse a

jovem. – Acho que é mesmo melhor euir para casa. Tenho a certeza de queseria melhor. A sério.

O general de repente tornou-se

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humano. Levantou-se, pôs as mãos nosombros da rapariga e dirigiu-se a LadyCarrados.

– É melhor ir para casa – disse ele.– O quê? Conhaque e óleo de cravinho.Isso é muito mau. Dá-nos licença? –Voltou-se para a mulher. – Vou levá-laa casa. Tu ficas aqui. Volto para te virbuscar. – Em seguida, olhou para a suaprotegida: – Vamos, filha. Vai buscar oteu casaco.

– Não precisas de voltar por minhacausa, querido – disse Mrs. Halcut-Hackett. – Eu fico bem. Fica com aRose.

– Se me permite – disse Lord Robertnuma voz aguda –, terei todo o gostoem levar a sua mulher a casa, Halcut-

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Hackett.– Não, não – começou Mrs. Halcut-

Hackett –, eu… por favor…– Bem – disse o general. – Parece-

me esplêndido. O quê? Boa noite. Oque foi? – Fizeram uma vénia eapertaram as mãos. Sir Herbert saiucom os dois. Mrs. Halcut-Hackettlançou-se numa longa e educadaexplicação e num pedido de desculpasa Lady Carrados.

– Pobre rapariga! – sussurrou LadyAlleyn.

– Pobre rapariga, de facto –murmurou Agatha Troy.

Mrs. Halcut-Hackett não deraresposta à oferta de Lord Robert.

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Agora, quando ele se virou para ela,ela dirigiu-se apressadamente aDavidson.

– Tenho de levar a pobre inocente aum dentista – disse ela. – Será terrívelse o rosto inchar a meio da temporada.A mãe dela é a minha melhor amiga,mas nunca me perdoaria. Uma grandetragédia.

– Realmente – disse Sir Daniel,secamente.

– Bem – disse Lucy Lorrimer,começando a reunir os seus agasalhos–, espero-o às oito e vinte e sete.Somos apenas eu e o meu irmão, sabe.O que começou a ter dificuldades.Quero comer qualquer coisa. Ondeestá Mrs. Halcut-Hackett? Suponho

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que devo felicitá-la pelo baile, masdevo dizer que acho sempre que é umgrande erro…

Sir Daniel Davidson apressou-se asilenciá-la, falando mais alto.

– Deixe-me acompanhá-la até à salade jantar – sugeriu em voz alta, comum olhar angustiado a Mrs. Halcut-Hackett e Lady Carrados. ConduziuLucy Lorrimer para longe.

– Pobre Lucy! – disse Lady Alleyn. –Ela nunca tem a mais remota ideia deonde está. Quem me dera, Evelyn, queele não a tivesse interrompido. Quedefeito acha que ela estava prestes aencontrar na sua hospitalidade?

– Vamos segui-los, Evelyn – disse

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Lord Robert –, e sem dúvidadescobriremos. Troy, querida , há umjovem a dirigir-se para si. Dançamosoutra vez?

– Sim, claro, meu caro Bunchy –respondeu Agatha Troy, e saiu com oseu parceiro.

Lady Carrados disse que seencontraria com Lord Robert na salade jantar dali a dez minutos. Eladeixou-os, abrindo caminho pelo salãode baile, os dedos segurando nacarteira. No outro extremo, ultrapassouSir Daniel e Lucy Lorrimer.

Lady Alleyn, olhando ansiosamentepara ela, viu-a cambalear um pouco.Davidson aproximou-se delarapidamente e tomou-lhe o braço,

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amparando-a. Lady Alleyn viu-o falarcom ela com um rápido olhar depreocupação. Viu Evelyn Carradosabanar a cabeça, sorrindo para ele.Davidson falou novamente com ênfasee, em seguida, Lucy Lorrimer gritou-lhe e ele encolheu os ombros e afastou-se. Ao fim de um momento tambémLady Carrados deixou o salão.

Lord Robert perguntou a Mrs.Halcut-Hackett se ela dançaria com eleuma vez em volta do salão. Eladesculpou-se, reagindo com algumespalhafato:

– Acho que disse que guardaria estadança para… Lamento… Ah, sim…Ali vem ele agora.

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O capitão Withers tinha vindo dolado mais distante do salão. Mrs.Halcut-Hackett levantou-seapressadamente e foi ao encontro dele.Sem dizer uma palavra, colocou obraço em volta dela e os doisafastaram-se, Withers olhandodiretamente em frente.

– Onde está o Rory? – perguntouLord Robert a Lady Alleyn. –Esperava encontrá-lo aqui esta noite.Ele recusou-se a jantar connosco.

– Está a trabalhar na Yard. Amanhãcedo vai para norte. Bunchy, aqueleera o seu capitão Withers, não era? Ohomem que vimos na festa dos Halcut-Hackett?

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– Sim.– Acha que ela tem um caso com

ele? Eles dão essa impressão.Lord Robert franziu os lábios e

contemplou as mãos.– Não é curiosidade maliciosa –

disse Lady Alleyn. – Estou preocupadacom estas mulheres. Especialmentecom a Evelyn.

– Não está a sugerir que a Evelyn…?– Claro que não. Mas as duas têm o

mesmo ar assombrado. E se não estouenganada, a Evelyn quase desmaiouainda há pouco. O seu amigo Davidsonnotou isso e eu acho que ele lhe deu osermão de que ela precisa. Ela está nolimite das suas forças, Bunchy.

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– Vou buscá-la e levá-la para a salade jantar.

– Faça isso. Vá atrás dela agora,como um homem atencioso. Aí vem aminha Sarah.

Lord Robert saiu apressadamente.Demorou algum tempo a atravessar osalão de baile, contornando pares quedançavam e galgando os pés dosacompanhantes, e de repente ele sentiucomo se um intruso tivesse aberto àforça todas as janelas daquele pequenomundo limpo, inundando-o de uma luzintransigente. A esta luz cruel, viu aspessoas de quem mais gostavaalteradas e rebaixadas. Viu o seusobrinho Donald, que se tinha virado

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de lado quando se encontraram nocorredor, como um menino mimado eegoísta, sem honestidade ou ambição.Viu Evelyn Carrados como uma mulherassombrada por uma memória que eradesonrosa e atormentada por umchantagista. A sua imaginação deu umsalto extravagante, e em muitos doshomens de quem gostava viu algumacoisa da falta de escrúpulos deWithers, a pomposidade de Carrados ea estupidez do velho generalHalcut-Hackett. Mergulhou numadepressão violenta que parecia umaespécie de pesadelo. Quantas daquelasmulheres eram o que ele aindaconsiderava «virtuosas»? E asdebutantes? Tinham voltado para as

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acompanhantes e eram orientadas eguardadas por mulheres cujas própriasvidas privadas ficariam feias àquelaluz dura que inundara o mundo de LordRobert. As meninas eram protegidaspor uma convenção durante três meses,mas ao mesmo tempo ouviam todo otipo de coisas que teria horrorizado econfundido a sua irmã Mildred naquelaidade. E ele perguntou-se se as erasvitoriana e eduardiana não haviampassado de incidentes bizarros nahistória da sociedade e se os seusvalores tinham sido tão artificiaiscomo a pintura nos lábios de umamulher moderna. Esta ideia pareceuabominável a Lord Robert e ele sentiu-

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se velho e solitário pela primeira vezna sua vida. «É esta coisa com oDonald e esta chantagem», pensou aovirar-se para evitar um casal quedançava rumba. Alcançara a porta.Entrou na sala onde desembocava osalão de baile, viu que EvelynCarrados não estava lá e dirigiu-se àescadaria. As escadas estavam cheiasde casais sentados. Lord Robert abriucaminho por entre eles e passou pelosobrinho Donald, que olhou para elecomo se fossem estranhos.

«Não adianta tentar falar com ele»,pensou Lord Robert. «Não aqui. Eleiria reagir mal e alguém poderiareparar.» Sentiu-se miserável,deprimido e cansado, e invadido de

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uma premonição de desastre que osurpreendeu. «Meu Deus», pensou, derepente, «devo estar a ficar doente». E,estranhamente, este pensamentoconsolou-o um pouco. No salãoinferior encontrou Bridget O’Briencom uma jovem aprumada e com um arconfiante, de cujo rosto ele selembrava vagamente.

– Agora, Miss Harris – dizia Bridgie–, tem a certeza de que está a dar-sebem? Já jantou?

– Sim, muito obrigada, MissO’Brien, mas não importa…

Claro, era a secretária de Evelyn.Era simpático da parte de Evelyn tê-laconvidado. Simpático da parte de

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Bridgie ter-se dado àquele trabalho.– Olá, minha querida – disse ele. –

Que baile fantástico. A sua mãe passoupor aqui?

– Está na sala de jantar – disseBridget sem olhar para ele, e LordRobert percebeu que ela tinha ouvido olado de Donald da discussão deles.Disse:

– Obrigado, Bridgie, vou tentarencontrá-la. – Vendo que Miss Harrisestava com um ar de criança perdida,acrescentou: – Gostaria que meguardasse uma dança mais tarde. Fariaisso?

Miss Harris ficou escarlate erespondeu que ficaria «muito feliz,obrigada, Lord… Lord Gospell».

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«Devo ter percebido mal», pensouLord Robert. «Coitadas, elas não sedivertem muito. Gostava de saber oque pensam elas de tudo isto. Nãodevem pensar grande coisa, possoapostar.»

Descobriu Lady Carrados na sala dejantar. Levou-a para uma mesa a umcanto, fê-la beber champanhe e tentouconvencê-la a comer.

– Eu sei como vocês são – disse-lhe.– Não metem nada no estômagodurante o dia e, em seguida, passam anoite com os nervos. Lembro-me que aminha mãe ficava com a melancoliasempre que dava uma grande festa.Recompunha-se sempre a tempo de

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receber os convidados.Continuou a tagarelar, comendo

bastante e ultrapassando a sua própriae inexplicável forma de depressão como seu esforço para ajudar LadyCarrados. Olhou em volta e reparouque na sala de jantar estavam apenasalgumas acompanhantes e os seusparceiros. O pobre Davidson aindaestava nas malhas de Lucy Lorrimer.Withers e Mrs. Halcut-Hackett estavamescondidos a um canto. Ela falava comele num tom sério e, aparentemente,com grande ênfase. Ele olhou para amesa e soltou um riso desagradável.

«Santo Deus», pensou Lord Robert,«ela está a mandá-lo embora. Porqueserá? Medo do general ou de… quê?

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Do chantagista? Será o Withers o temadessas cartas? Será que o Dimitri a viucom ele em algum momento? Juro quefoi a mão do Dimitri que eu vi. Mas oque sabe ele sobre a Evelyn? A mulhercom menos probabilidades no mundode ter um segredo vergonhoso. E, raiosme partam, ali está o tipo a comandaras coisas à vontade.»

Dimitri tinha entrado na sala dejantar. Deu uma olhadela profissionalem volta, falou com um dos seusempregados, deparou com LadyCarrados e curvou-se timidamente; emseguida, voltou a sair.

– O Dimitri é uma grande bênçãopara todos nós – afirmou Lady

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Carrados. Disse-o de uma forma tãosimples que Lord Robert soubeimediatamente que se Dimitri estava achantageá-la, ela não fazia a mínimaideia. Procurava uma resposta quandoBridget entrou na sala de jantar.

Ela trazia a carteira da mãe.Tudo pareceu acontecer ao mesmo

momento. Bridget dizendoalegremente: «Realmente, Donnaquerida, é um caso perdido. Ali estavaa sua carteira, simplesmente cheia comnotas, pousada na secretária no quartoverde. E eu aposto que não sabia ondea tinha deixado.» Depois, Bridget,vendo o rosto da mãe e gritando:«Querida, o que se passa?» LordRobert levantando-se e interpondo o

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seu volumoso corpo entre LadyCarrados e as outras mesas. LadyCarrados meio a rir, meio a chorar, eestendendo a mão freneticamente paraa carteira. Lord Robert dizendo: «Válá, Bridget, eu cuido da sua mãe.» ELady Carrados, num sussurro: «Euestou bem. Corre lá acima, querida, etraz-me os meus sais de cheiro.»

De alguma forma, eles persuadiramBridget a ir. O que aconteceu a seguirfoi que Sir Daniel Davidson pairousobre Evelyn Carrados como umdragão elegante.

– Está tudo bem – disse ele. – LordRobert, veja se pode abrir essa janela.

Lord Robert conseguiu abrir a

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janela. Uma mão húmida pareciapousar no seu rosto. Avistou oscandeeiros de rua desfocados pelanévoa impalpável.

Davidson tomou o pulso de LadyCarrados nos seus dedos longos eolhou para ela com uma espécie deexasperação compassiva.

– Vocês, mulheres – disse ele. –Vocês, mulheres, são impossíveis.

– Estou bem. Senti-me apenas tonta.– Devia deitar-se. Vai desmaiar e

fazer figuras tristes.– Não, não vou. Alguém… ?– Ninguém se apercebeu de nada.

Não quer ir para o seu quartodescansar durante meia hora?

– Não tenho quarto. Não é a minha

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casa.– É claro que não. O bengaleiro,

então.– Eu… sim. Sim, vou fazer isso.– Sir Daniel! – gritou Lucy Lorrimer

do canto.– Pelo amor de Deus volte para junto

dela – implorou Lady Carrados –, ouela vem para aqui.

– Sir Daniel!– Raios! – sussurrou Davidson. –

Muito bem, vou voltar para junto dela.A sua secretária está aqui, não éverdade? Ainda bem. Lord Robert,importa-se de acompanhar LadyCarrados?

– Prefiro ir sozinha. Por favor!

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– Muito bem. Mas, por favor, vá.Davidson fez uma careta e voltou

para junto de Lucy Lorrimer. LadyCarrados levantou-se, segurando acarteira.

– Vamos lá – disse Lord Robert. –Ninguém está a prestar atenção.

Ele tomou-lhe o cotovelo e saírampara o corredor, que estava deserto.Havia apenas dois homens à entradado bengaleiro. O capitão Withers eDonald Potter. Donald olhou em volta,viu o tio e encaminhou-se logo para oandar de cima. Withers seguiu-o.Dimitri saiu do buffet e também subiu.A sala encheu-se com o som da bandae com a densa confusão de vozes e pés

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deslizantes.– Bunchy – sussurrou Lady

Carrados. – Tem de fazer o que eu lhepedir. Deixe-me por três minutos.Eu…

– Eu sei o que está a acontecer,minha querida. Não faça isso. Nãodeixe a sua carteira. Enfrente-o e aodiabo com ele.

Ela apertou a mão contra a boca elançou-lhe um olhar desvairado.

– Você sabe?– Sim, e vou ajudar. Eu sei quem ele

é. Você não sabe, pois não? É que…há um homem na Scotland Yard… eseja o que for…

Uma expressão semelhante a alíviosurgiu-lhe nos olhos.

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– Mas não sabe do que se trata.Deixe-me ir. Eu tenho de o fazer.Apenas desta vez.

Ela puxou o braço e ele viu-aatravessar o vestíbulo e subir asescadas lentamente.

Após um momento de hesitação,seguiu-a.

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CAPÍTULO 6

BUNCHY REGRESSA ÀSCOTLAND YARD

I Alleyn fechou a pasta e olhou para o

relógio. Dois minutos para a uma.Altura de arrumar e ir para casa.Bocejou, esticou os braços cansados,caminhou até a janela e puxou acortina. A fileira de candeeirosparecia um colar de globos suspensosna neblina ao longo da margem doEmbankment.

– Nevoeiro em junho – murmurouAlleyn. – Esta Inglaterra!

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Lá fora, no frio, o Big Ben bateu auma hora. Naquele momento, a trêsquilómetros de distância, no baile deLady Carrados, Lord Robert Gospellsubia lentamente as escadas até aoúltimo patamar e à pequena sala.

Alleyn encheu lentamente ocachimbo e acendeu-o. Amanhãcomeçaria o dia bem cedo, com umalonga viagem, e uma tarefa rotineirapara marcar o final do mesmo.Estendeu os dedos para o aquecedor ecaiu numa longa meditação. Sarahtinha-lhe dito que Agatha Troy iria aobaile. Ela estava lá agora, sem dúvida.

«Oh, bem!», pensou e desligou oaquecedor.

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O telefone tocou na secretária. Eleatendeu-o.

– Estou?– Mr. Alleyn? Pensei que ainda o

encontraria aqui, senhor. É LordRobert Gospell.

– Certo.Uma pausa e, em seguida, uma voz

esganiçada:– Rory?– Bunchy?– Disse que estaria aí até tarde.

Estou num quarto sozinho, no baile dosCarrados. Acho que o apanhei. Vaificar aí por muito mais tempo?

– Posso ficar.– Posso ir aí?

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– Venha!– Primeiro, vou passar por casa,

mudar esta camisa de cerimónia epegar nas minhas notas.

– Muito bem. Fico à sua espera.– É o tipo dos comes e bebes.– Meu Deus! Não mencione nomes,

Bunchy.– Claro que não. Vou à Scotland

Yard. Juro pela minha alma que é piordo que homicídio. Mais valia misturarveneno nas cervejas. E ele está atrabalhar com… Olá! Não dei pela suapresença.

– Está aí alguém? – perguntou Alleynseveramente.

– Está.

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– Adeus – disse Alleyn –, vouesperar por si.

– Muito obrigado – disse a vozaguda. – Agradeço-lhe muito. Nãopodia perder isso por nada. Bomtrabalho, agente. Vou assegurar-me deque recebe a recompensa.

Alleyn sorriu e pousou oauscultador.

II No salão de baile, a banda de

Hughie Bronx arrumava osinstrumentos. O rosto dos músicos

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estava da cor do bacalhau cru ebrilhava com uma cintilação estranha,mas o cabelo permanecia tão lisocomo couro envernizado. Os quatromúsicos que apenas dez minutos antestinham saltitado de braço dado numritmo animado discutiam estafadamentesobre a maneira de ir para casa.Hughie Bronx enxugou o seu famosorosto com um belo lenço e acendeu umcigarro.

– OK, rapazes – suspirou. – Amanhãàs oito e meia e se por acaso houverpedidos para o «My Girl’s Cutie» maisde seis vezes seguidas, vamos parar eaprender hinos.

Dimitri atravessou o salão de baile.– Sua senhoria pediu-me

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especificamente para lhe dizer que háalgo para os senhores no buffet – disseele.

– Muito obrigado, Dim – agradeceuBronx. – Nós vamos para lá.

Dimitri olhou em volta do salão debaile, saiu e desceu as escadas.

Lá em baixo, no vestíbulo reuniam-se os últimos convidados. Tinham umar cansado e um pouco dissoluto masgritavam alegremente, dizendo uns aosoutros que bela festa tinha sido. Entreeles, piscando sonolentamente os olhospor detrás dos óculos, contava-se LordRobert. A sua célebre capa estavapendurada nos ombros e nas mãossegurava o chapéu preto de abas

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largas. Espirais de nevoeiro entravampelas portas abertas. O som de pessoasa tossir, quando saíam para o ar frio,misturava-se com o ruído dos motoresde táxi a trabalhar e das vozes dos quepartiam.

Lord Robert foi um dos últimos a irembora.

Perguntou a várias pessoas, numavoz queixosa, se haviam visto Mrs.Halcut-Hackett.

– Tenho de a acompanhar a casa.Dimitri aproximou-se dele.– Desculpe, senhor, acho que Mrs.

Halcut-Hackett acabou de sair. Elaperguntou-me se eu o tinha visto,senhor.

Lord Robert olhou para ele. Por um

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momento, os olhares de ambosencontraram-se.

– Oh. Obrigado – disse Lord Robert.– Vou ver se consigo encontrá-la.

Dimitri fez uma reverência.Lord Robert saiu para a névoa.A sua figura, um pouco semelhante a

um bobo gorducho de um dos poemasde Verlaine, desceu os degraus largos.Passou por um grupo de retardatáriosque entrava para os táxis. Olhou paraeles, viu-os partir e olhou para os doislados da rua. Caminhou lentamentepela rua fora, pareceu transformar-senum espectro insubstancial, ficouescondido por um momento, por umeflúvio de neblina, reapareceu muito

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mais longe, caminhando firmementepara o vazio, e desapareceu.

III No seu gabinete da Scotland Yard,

Alleyn acordou com um sobressalto,despertando numa clamorosa onda dastrevas do sono profundo. O telefone nasecretária ressoava. Ele estendeu amão para o auscultador, viu o relógio eexclamou em voz alta. Quatro horas!

– Estou? – disse.– Mr. Alleyn?– Sim.Pensou: «É o Bunchy. Que

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diabo…!»Mas a voz do outro lado do fio

disse:– Há um caso a entrar, senhor.

Pensei que seria melhor informá-loimediatamente. Um motorista de táxicom um cliente. O motorista diz que ocliente foi assassinado e veio diretopara cá com o corpo.

– Vou descer – disse Alleyn.Desceu a pensar com consternação

que outro caso seria muitoinconveniente e desejando que omesmo fosse entregue a outra pessoa.A sua mente estava cheia daqueleassunto da chantagem. Bunchy Gospellnão teria dito que tinha encontrado o

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seu homem a menos que tivesse acerteza absoluta. O sujeito dos comes ebebes. Dimitri. Bem, ele teria tidooportunidades, mas que tipo de provasteria Bunchy? E onde andava Bunchy?Um sargento de uniforme esperavaAlleyn no vestíbulo.

– Uma coisa estranha, Mr. Alleyn. Ocavalheiro está morto, disso não hádúvida. Parece-me que teve um ataquecardíaco ou algo assim, mas omotorista insiste que foi homicídio ediz que só fala consigo. Não queriaque eu abrisse a porta. Mas eu abri,apenas para ter a certeza. Pus-lhe omeu relógio em frente à boca e ouvi-lhe o coração. Nada! O velhomotorista foi aos arames. Ele é um

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ponto.– Onde está o táxi?– No pátio, senhor. Eu disse-lhe para

entrar.Os dois saíram para o pátio.– Está húmido – observou o sargento

e tossiu.Perto do rio, o nevoeiro era bastante

denso. Espirais de névoa que quasepareciam chuva flutuavam em voltadeles, colando-se aos seus rostos ecobrindo-os de frias lantejoulas dehumidade. Uma palidez cadavéricasurgiu na escuridão e as formas vagasdos telhados e chaminés esperavampelo amanhecer. A jusante um navio avapor apitou. O ar era húmido e

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insalubre.Uma melancolia pesada e indefinida

invadira Alleyn. Sentia-se ao mesmotempo imperturbável e demasiadosensível. O seu espírito parecia subirlevemente e separar-se do seu corpo.Via-se como um estranho. Era umaexperiência familiar e ele aprendera aconsiderá-la como um precursor domal. «Tenho de me controlar», gritou asua mente e com esse pensamentovoltou ao seu estado normal.Encontrava-se no pátio. As pedrasecoavam sob os seus pés. Um táxirecortava-se vagamente com a figuraenvolta num sobretudo do seumotorista de pé, imóvel, junto à portacomo que de guarda.

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– Está frio – disse o sargento.– São as horas mortas da noite –

retorquiu Alleyn.O motorista de táxi não se mexeu até

chegarem junto a ele.– Então – disse Alleyn –, o que vem

a ser isto?– Bom dia, chefe. – Era a tradicional

voz rouca. O homem parecia ummotorista tirado de uma peça. – Osenhor é um dos inspetores?

– Sou.– Não vou prestar mais declarações

a nenhum agente. Tenho de cuidar daminha vida, compreende? Além domais, o pequeno cavalheiro era umamigo meu, compreende?

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– Este é o inspetor-chefe Alleyn,amigo – disse o sargento.

– Muito bem. Assim, sim. Tenho deme proteger, não tenho? Com o raio deum presunto como passageiro.

De repente, estendeu a mão enluvadae com um movimento rápido abriu aporta.

– Não lhe toquei – disse ele. – Podeligar as luzes?

Alleyn meteu a mão na cabinaescura. Cheirou-lhe a couro, charutos ecombustível. Os seus dedos tocaramnum botão e uma luz fraca acendeu-seno teto do táxi.

O inspetor permaneceu imóvel e emsilêncio durante tanto tempo que,

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finalmente, o sargento disse em vozalta:

– Mr. Alleyn?Mas Alleyn não respondeu. Estava

sozinho com o seu amigo. As mãospequenas e gorduchas sem vida. Ospés virados para dentro pateticamente,como os pés de uma criança. A cabeçapendia para o lado, languidamente,com a mesma inclinação da de ummenino quando está doente. Alleynpodia ver a coroa na cabeça e o cabelofino e despenteado.

– Se olhar pela outra janela – disse omotorista –, vai ver o rosto. Está mortoe bem morto. Assassinado!

– Eu consigo ver-lhe o rosto – disseAlleyn.

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Inclinara-se para a frente e, poralguns minutos, manteve-se ocupado.Depois recuou. Estendeu a mão, comoque para fechar as pálpebras sobre osolhos congestionados. Os seus dedostremiam.

– Eu não lhe posso tocar mais –disse. Baixou a mão e saiu do táxi. Osargento olhava para ele, espantado.

– Está morto – disse o motorista. –Não está?

– … Você! – exclamou Alleyn comviolência. Não posso ver que ele estámorto sem…

Deteve-se e deu três ou quatropassos incertos para longe deles.Passou a mão no rosto e, em seguida,

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olhou para os seus dedos,desorientado.

– Aguarde um pouco, está bem? –pediu.

– Lamento – disse Alleyn finalmente.– Dê-me um momento.

– Quer que mande chamar alguém,senhor? – perguntou o sargento. – É umamigo seu, não é?

– Sim – disse Alleyn. – É um amigomeu.

Virou-se para o motorista de táxi eagarrou-o violentamente pelo braço.

– Venha cá – disse ele e levou-opara a frente do carro.

– Ligue os faróis – ordenou.O sargento meteu a mão na cabina e

logo a seguir o motorista piscou os

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olhos, encandeado pela luz branca.– Agora – disse Alleyn –, porque é

que tem tanta certeza de que foi umassassínio?

– Caraças, chefe – disse o motorista–, é que eu vi com os meus olhos osujeito que entrou com ele, e vi com osmeus olhos como o tipo saiu com acapa e o chapéu de sua senhoria efalou comigo na mesma vozinha agudae estranha, igual à de sua senhoria:«Sessenta e três, Jobbers Row, QueensGate»? E não é que levei o cadáver ocaminho todo até lá, sem saber? Aítem! Você diz que sua senhoria era seuamigo. Também era meu. Isto é umaporra de um assassínio, e eu quero ver

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esse Sr. Esperto, o que me enganou etirou a tosse a um cavalheiro tão bomcomo não há outro, pagar pelo que fez.Quero pois.

– Estou a ver – disse Alleyn. –Muito bem. Vou tomar nota do seudepoimento. Temos de começar atrabalhar. Chame o grupo habitual.Chame-os todos aqui. Chame o Dr.Curtis. Fotografem o corpo de todos osângulos. Tomem nota da posição dacabeça. Procurem sinais de violência.O costume. Um caso de homicídio.Tome nota do nome, por favor. LordRobert Gospell, número duzentos deCheyne Walk…

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CAPÍTULO 7

NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA

I

LORD ROBERT GOSPELL MORREEM TÁXI

Sociedade chocada. Suspeita-se decrime

História completa do baile na página 5 Evelyn Carrados deixou o jornal cair

sobre a colcha e olhou para o marido.– Os jornais não falam de outra

coisa – disse ela rigidamente.– Meu Deus, minha querida Evelyn,

é claro que não! E esta é apenas a

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edição de última hora trazida por umidiota de um criado imberbe com omeu pequeno-almoço. Espera até veresos jornais da tarde! Não é suficiente,meu Deus, que eu tenha sido acordadopor uns burocratas da Scotland Yard,às cinco horas da manhã, e interrogadosobre os meus próprios convidados, eainda por cima ter tudo isto enfiadodebaixo do meu nariz numa porcaria deum jornal qualquer!

Ele coxeou com raiva pelo quarto.– É perfeitamente óbvio que o

homem foi assassinado. Sabes que aqualquer momento teremos um fulanoda Scotland Yard a interrogar-nos eque todos os parasitas em Fleet Streetvão instalar-se à nossa porta dias a

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fio? Dás-te conta…– Acho que ele era talvez o meu

melhor amigo – disse EvelynCarrados.

– Se olhares para os disparatesimpertinentes escarrapachados napágina cinco, verás essa amizade bemanunciada. Meu Deus, é intolerável.Dás-te conta de que a polícia ligoupara Marsdon House às quatro e umquarto, cinco minutos depois de termossaído, graças a Deus!, e perguntou aque horas o Robert Gospell saiu? Umcolega do Dimitri atendeu e agora umjornalista hipócrita ficou a saber.Compreendes que…

– A única coisa que compreendo –

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disse Evelyn Carrados – é que oBunchy Gospell morreu.

Bridget entrou no quarto, com umjornal nas mãos.

– Donna! Oh, Donna… é o nossopequeno e engraçado Bunchy. O nossopequeno e engraçado Bunchy morreu!Donna!

– Querida… eu sei.– Mas, Donna… o Bunchy!– Bridget – disse o padrasto –, por

favor, não fique histérica. A questãoque temos de considerar é…

O braço de Bridget envolveu osombros da sua mãe.

– Mas nós importamo-nos – disseela. – Não vê? A Donna importa-semuito.

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A mãe disse: – É claro que nosimportamos, querida, mas o Bart está apensar noutra coisa. Sabes, o Bart achaque vamos ter problemas terríveis.

– Porquê?Os olhos de Bridget brilhavam no

seu rosto pálido quando se voltou paraCarrados.

– Está a referir-se ao Donald? Está?Atreve-se a sugerir que o Donaldteria… teria…

– Bridgie – exclamou a mãe –, o queestás a dizer!

– Espera um momento, Evelyn –disse Carrados. – O que é que tudo istotem que ver com o jovem Potter?

Bridget levou as costas da mão à

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boca, olhou perturbada da mãe para opadrasto, começou a chorar e saiu doquarto a correr.

II MORREU «BUNCHY» GOSPELL

Morte misteriosa em táxiO que se seguiu ao baile dos

Carrados As mãos bem cuidadas de Mrs.

Halcut-Hackett fecharam-se comogarras sobre o jornal. Os seus lábiosestavam esticados num sorriso queenfatizava as linhas cuidadosamente

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suprimidas das suas narinas até aoscantos da boca. Ela olhava fixamentepara o vazio.

A porta do quarto de vestir dogeneral Halcut-Hackett abriu-se de parem par e o general, vestindo umroupão, e com apenas alguns dentes,marchou para dentro do quarto. Traziaum exemplar de uma edição das dezhoras de um jornal.

– O quê! – exclamou indistintamente.– Vê isto! Por Deus!

– Eu sei – disse Mrs. Halcut-Hackett. – Triste, não é?

– Triste! É revoltante! O quê!– Chocante – disse Mrs. Halcut-

Hackett.

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– Chocante! – ecoou o general. –Que disparate! – E as consoantesexplosivas pronunciadas através daabertura entre os dentes faziam adejaro bigode como uma bandeira ao vento.Os olhos injetados de sanguearregalaram-se para a mulher. Eleapontou um dedo curto e grosso na suadireção.

– Ele disse que te trazia a casa –disparou.

– Ele não me trouxe a casa.– A que horas chegaste?– Não reparei. Tarde.– Sozinha?O rosto de Mrs. Halcut-Hackett

estava branco mas ela olhou fixamente

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para o general.– Sim – respondeu. – Não sejas

disparatado. III

ESTRANHA FATALIDADELord Robert Gospell morre depois de

baileHistória Completa

Donald Potter leu as quatro linhas da

manchete repetidas vezes. O rosto dotio fitava-o a partir do centro dapágina. A beata do cigarro de Donaldqueimou-lhe os lábios. Ele cuspiu-a

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para a chávena vazia e acendeu outro.Tremia como se tivesse febre. Leu asquatro linhas novamente. Na sala aolado alguém bocejou horrivelmente.

Donald inclinou a cabeça para trás.– Wits! – disse ele. – Wits! Anda cá!– O que se passa?– Anda cá!O capitão Withers, vestindo um robe

de seda laranja, apareceu à porta.– Que raio se passa contigo? –

perguntou.– Vê isto.O capitão Withers, assobiando,

caminhou calmamente e olhou por cimado ombro de Donald. Parou deassobiar. Estendeu a mão, pegou no

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jornal e começou a ler. Donaldobservou-o.

– Morto! – disse Donald. – O tioBunch! Morto!

Withers olhou para ele e voltou a lero jornal. Depois, começou a assobiaroutra vez.

IV

MORTE DE LORD ROBERTGOSPELL

Trágico fim de uma carreira distintaCircunstâncias suspeitas

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Lady Mildred Potter bateu com asmãos rechonchudas nas provas doobituário do Evening Chronicle evoltou um rosto lavado em lágrimaspara Alleyn.

– Mas quem poderia querer fazermal ao Bunchy, Roderick? Todos oadoravam. Ele não tinha um inimigo nomundo. Veja o que o Chronicle diz, edevo dizer que acho muito atenciosoda parte deles deixarem-me ver ascoisas que se propõem escrever sobreele, mas veja o que diz. «Estimado portodos os seus amigos!» E era verdade.Ele era assim. Por todos os seusamigos.

– Ele deve ter tido um inimigo,

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Mildred – disse Alleyn.– Não posso acreditar nisso. Nunca

vou acreditar numa coisa dessas. Deveter sido um louco que escapou. – Elalimpou os olhos com um lenço esoluçou violentamente. – Nunca sereicapaz de enfrentar toda essa horrívelpublicidade. A polícia! Não me refiroa si, Roderick, naturalmente. Mastudo… os jornais, todos a intrometer-se. O Bunchy teria detestado tudo isto.Não aguento, não consigo.

– Onde está o Donald?– Ele ligou. Está a caminho.– De onde?– Do apartamento do amigo, onde

quer que isso seja.– Ele está fora de casa?

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– O Bunchy não lhe disse? Desdeaquela tarde terrível, quando ele ficoutão zangado com o Donald. O Bunchynão comprendia.

– Porque é que o Bunchy estavazangado com ele?

– Ele contraiu dívidas outra vez. Eagora, coitado, deve com certeza estarterrivelmente arrependido.

Alleyn não respondeuimediatamente. Foi até à janela e olhoulá para fora.

– Vai ser mais fácil para si – dissefinalmente – quando o Donald cáchegar. O resto da família tambémvem?

– Sim. Todos os nossos velhos

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primos e tias. Já telefonaram. OBroomfield, o sobrinho mais velho doBunchy, sabe, quero dizer, o filho domeu irmão mais velho, está nocontinente. Ele é o chefe da família,claro. Parece que vou ter de tratar detudo… mas estou tão abalada.

– Farei tudo o que puder. Háalgumas coisas que serei obrigado afazer. Receio, Mildred, que terei delhe pedir que me deixe ver as coisasdo Bunchy. Os seus papéis e essascoisas assim.

– Tenho a certeza – disse LadyMildred – de que ele não teria queridomais ninguém, Roderick.

– A Mildred facilita-me muito ascoisas. Pode ser agora?

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Lady Mildred olhou para ele,desamparada.

– Sim. Sim, por favor. Precisa daschaves dele, não precisa?

– Eu tenho as chaves, Mildred –disse Alleyn suavemente.

– Mas… onde… – Ela deu umpequeno grito. – Oh, o meu pobreirmão. Ele levava-as sempre para todoo lado. – Foi-se completamenteabaixo. Alleyn esperou um momento edepois disse:

– Não vou ter a insolência de lheexpressar as minhas condolências compalavras de circunstância. Retira-semuito pouco conforto em rebuscarpequenas migalhas de consolo no meio

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desta confusão. Mas digo-lhe isto,Mildred, nem que me leve o resto davida, nem que me custe o meuemprego, por Deus!, nem que tiver defazer tudo, hei de deitar a mão a esseassassino e vê-lo pagar por isto. – Fezuma pausa e uma careta. – Meu Deus,que discurso! O Bunchy ter-se-ia ridodele. É curioso que quando falamoscom o coração fazemo-loinvariavelmente com péssimo gosto.

Olhou para os cabelos grisalhos deMildred, com um penteado simples efora de moda, apanhados numa rede.Ela olhou para Alleyn por cima dolenço encharcado e ele viu que ela nãoo tinha ouvido.

– Vou continuar com o meu trabalho

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– disse Alleyn, e encaminhou-sesozinho para o escritório de LordRobert.

V

LORD ROBERT GOSPELL MORREEM TÁXI

Tragédia chocante da noite passadaQuem era o segundo passageiro? Sir Daniel Davidson chegou ao seu

consultório às dez e meia. Na porta dafrente, avistou o cartaz das notícias e,pela primeira vez na sua vida,

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comprou um tabloide. Dobrou o jornalcom cuidado e pousou-o em cima damesa. Acendeu um cigarro e olhoupara o seu criado.

– Não vou atender nenhum paciente– disse ele. – Se alguém ligar… estoufora. Obrigado.

– Obrigado, senhor – disse oempregado, e retirou-se.

Sir Daniel sentou-se a pensar.Habituara-se a pensar de formametódica e odiava ideias desleixadastanto quanto desprezava umdiagnóstico vago. Era, como gostavade referir aos amigos, acima de tudo,uma criatura de método e de rotina.Orgulhava-se da sua memória enaquele momento a sua memória estava

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ocupada com acontecimentos comapenas sete horas de vida. Fechou osolhos e viu-se no vestíbulo deMarsdon House às quatro horas damanhã. Os últimos convidados,agasalhados em casacos e peles,gritavam alegremente uns aos outros eatravessavam as grandes portas emgrupos de dois e três. Dimitri estava aopé da escada. Sir Daniel encontrava-seperto da entrada para o bengaleiro doshomens. Estava determinado em evitarLucy Lorrimer, que ficara até o fim, eiria oferecer-se para levá-lo a casa seela o visse. Ali estava ela, a transporas portas duplas. Ele ficou para trás. Onevoeiro entrava a partir da rua.

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Lembrou-se de que enrolara o lençotapando a boca quando se apercebeudo nevoeiro. Fora nesse exatomomento que avistara Mrs. Halcut-Hackett, ataviada em peles, aescapulir-se sozinha pela entrada.Pensou que havia algo um poucoestranho naquilo. A gola da sua estolaia levantada, sem dúvida por causa donevoeiro, e a maneira como ela seescapuliu, se é que uma criatura tãomajestosa poderia escapulir-se,contornando o grupo! Havia algo defurtivo naquilo. E então ele tinha sidoempurrado por aquele sujeito, Withers,que saía do bengaleiro. Withers mal sedesculpou, mas tinha olhadorapidamente em redor do grupo que se

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juntava no vestíbulo e ao longo dasescadas.

Fora nesse momento que LordRobert Gospell descera ao andar debaixo. Sir Daniel rodou o pesado anelde sinete no dedo mínimo e ainda comos olhos fechados, perscrutou a suamemória. Withers tinha visto LordRobert. Não havia nenhuma dúvidadisso. Sir Daniel ouviu mais uma vez abreve inalação de ar e percebeu oolhar rápido antes de o indivíduo abrircaminho sem cerimónias através damultidão e desaparecer na neblina. Emseguida, o sobrinho de Lord Robert, ojovem Donald Potter, saiu do buffetperto da escada. Bridget O’Brien

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estava com ele. Eles quase esbarraramem Lord Robert, mas quando viu o tio,Donald desviou o olhar, disse algo aBridget e depois saiu pela porta dafrente. Restava ainda uma imagem.

Bunchy Gospell a falar com Dimitri,ao fundo das escadas. Foi a últimacoisa que Sir Daniel viu antes detambém ele sair para o nevoeiro.

Imaginou que aqueles momentos novestíbulo seriam considerados pelapolícia como altamente significativos.Os jornais diziam que a polícia queriadeterminar a identidade do segundopassageiro. Claro, uma vez que ele era,obviamente, o assassino! O motoristade táxi descrevera-o como umcavalheiro bem vestido, que, com Lord

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Robert, tinha entrado no táxi cerca deduzentos metros depois de MarsdonHouse. «Foi um dos convidados?»,perguntava o jornal. Isso significavaque a polícia iria receber declaraçõesde todos os que saíram da casa namesma altura que Lord Robert. Aúltima coisa que Sir Daniel desejavaera ser a testemunha principal noinquérito. Esse tipo de publicidade nãoera nada bom para um médico damoda. O seu nome em maiúsculas,quase de certeza, nas primeiraspáginas dos tabloides, e antes que sedesse conta algum idiota diria:«Davidson? Ele não esteve envolvidonaquele caso de homicídio?» Sir

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Daniel poderia até ser obrigado a dizerque viu aquela Halcut-Hackett sair,com Withers no seu encalço. Mrs.Halcut-Hackett era uma das suaspacientes mais rentáveis. Por outrolado, ele seria visto a uma luz muitopouco digna se descobrissem que foraum dos últimos a sair e não seapresentara para comunicar esse facto.Poderia até parecer suspeito. SirDaniel praguejou pitorescamente emfrancês, pegou no telefone e discouWHI1212.

VI

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MISTÉRIO EM MAYFAIRLord Robert Gospell sufocado em táxi

Quem era o segundo passageiro? No seu elegante apartamento de

Cromwell Road, Colombo Dimitrichamou a atenção do criado particularpara as manchetes.

– Que tragédia – disse. – Pode sermau para nós, no início da temporada.Ninguém se sente muito alegre depoisde um assassínio. E ele era tãopopular. É uma grande pena.

– Sim, monsieur – disse o criado.– Devo ter sido quase a última

pessoa a falar com ele – continuouDimitri –, a não ser, claro, que esse

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assassino cobarde o tenha abordado.Lord Robert dirigiu-se a mim nocorredor e perguntou-me se eu tinhavisto Mrs. Halcut-Hackett. Eu disse-lhe que tinha acabado de a ver sair.Ele agradeceu-me e foi-se embora. Eu,claro, permaneci no vestíbulo. Váriosconvidados falaram comigo depoisdisso, lembro-me. E então, uma horamais tarde, quando eu já tinha saído,mas os meus homens ainda estavamocupados, a polícia ligou. Ele era umapersonalidade encantadora. Tenhomuita, muita pena.

– Sim, monsieur.– Seria um gesto amável da nossa

parte enviar flores. Lembra-me disso.Entretanto, nada de comentários, por

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favor. Vou instruir os funcionáriosquanto a este ponto. Insistoabsolutamente nisso. O assunto nãodeve ser discutido.

– C’est entendu, monsieur.– Em relação aos mexericos

maliciosos – acrescentou Dimitrivirtuosamente –, a nossa empresa estána bem conhecida posição da mulherde César. – Olhou para o rosto docriado, que exibia uma expressãoperplexa. – Ela não aparecia emcolunas de mexericos – explicouDimitri.

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VII

MISTÉRIO DO PASSAGEIRODESCONHECIDO

«Bunchy» Gospell mortoQuem era o homem em traje de baile?

Miss Harris terminou a sua chávena

de chá, mas a torrada com manteigapermaneceu intacta no prato. Disse a simesma que não lhe apetecia. Sentia-segravemente perturbada. Deparara-secom uma pergunta para a qual nãosabia a resposta e viu-se incapaz de aarquivar num dos seus compartimentos.A verdade era que Miss Harris sesentia comovida. Tinha encontrado

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Lord Robert várias vezes em casa deLady Carrados e, na noite anterior,Lord Robert dançara com ela. QuandoLady Carrados perguntara a MissHarris se ela gostaria de ir ao baile,ela em momento algum imaginara quedançaria. Esperara antes passar umanoite gratificante, mas extremamentesolitária, a observar os frutos do seutrabalho. As suas expectativas haviamsido realizadas até ao momento em queLord Robert lhe pedira para dançar e,a partir de então, Miss Harrisexperimentara uma espécie dearrebatamento respeitável. Eleencontrara-a no patamar superior, ondeela estava sentada sozinha do lado defora do pequeno quarto verde. Miss

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Harris tinha acabado de sair da casade banho das senhoras e tivera umaexperiência embaraçosa praticamente àporta. Então, sentara-se numa cadeirano patamar para recuperar acompostura e porque não parecia haveroutro lugar para onde pudesse ir. Járecomposta, desceu para o salão debaile. Tentava arvorar um ar feliz enão perdido quando Lord Robertapareceu e lhe recordou o seu pedidopara uma dança. E dançaram, dandovoltas e mais voltas na rápida valsavienense, e Lord Robert afirmara quenão se divertia assim há imenso tempo.Juntaram-se a um grupo de pessoasvertiginosamente «certas» e uma delas,

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Miss Agatha Troy, a famosa pintora,tinha conversado com ela como setivessem sido apresentadas. E então,quando a banda tocou outra valsavienense rápida, porque estavam namoda, Miss Harris e Lord Roberttinham dançado mais uma vez e depoistomaram champanhe no buffet. Issoacontecera muito tarde – pouco depoiso baile chegara ao fim. Ele fora tãoencantador, fazendo-a rir muito esentir-se como uma verdadeira jovemde trinta anos e não uma jovemsubordinada de idade indeterminada.

E agora, ali estava ele, assassinado.Miss Harris sentia-se tão perturbada

que não conseguiu tomar o pequeno-almoço. Olhou automaticamente para o

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relógio. Meio-dia. Devia estar em casade Lady Carrados às duas, caso fossenecessária. Se se apressasse, teriatempo para escrever uma cartaemocionante para casa, no vicariato doBuckinghamshire. A amiga com quemdividia o apartamento ainda estava adormir. Ela trabalhava no turno danoite numa central telefónica. MasMiss Harris não era capaz de conter aterrível notícia no seu peito. Levantou-se, abriu a porta do quarto e disse:

– Smithy!– Hã!– Smithy, aconteceu uma coisa

terrível. Ouve!– Hã?

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– A rapariga acabou de trazer umjornal. É sobre Lord Gospell. Querodizer Lord Robert Gospell. Tu sabes.Eu falei-te sobre ele na outra noite…

– Pelo amor de Deus! – disse MissSmith. – Tens de me acordar outra vezpara eu ficar a saber tudo sobre os teussucessos sociais?

– Não, mas, Smithy, ouve! Ésimplesmente horrível! Ele foiassassinado.

Miss Smith sentou-se na cama,parecendo uma espécie de deusafabulosa com a sua massa de rolos nocabelo.

– Minha querida, não foi nadaassassinado – disse Miss Smith.

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– Minha querida, foi sim! – disseMiss Harris.

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CAPÍTULO 8

TROY E ALLEYN

Quando Alleyn acabou de examinaro escritório, sentou-se à secretária deLord Robert e telefonou para MarsdonHouse. Foi atendido por um dos seuspróprios homens.

– Bailey, Mr. Fox está aí?– Sim, senhor. Está lá em cima. Vou

chamá-lo.Alleyn esperou. Na secretária à sua

frente estava um bloco de notaspequeno e volumoso, e na páginaaberta, leu novamente as notas queLord Robert fizera na sua caligrafiamiudinha sobre aquele caso:

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«Sábado, 8 de maio. Festa em

casa de Mrs. H-H em HalkinStreet. Cheguei às 6h15. Mrs. H-H distraite. Combinei encontropara 3 de junho, no ConstanceStreet Hall. Vi Maurice Withers ,ref. caso de drogas de 1924. Márês. Parece íntimo de Mrs. H-H.Evitou-me. Mem. Contar a Alleynsobre o antro de jogo de W em L.

«Quinta-feira, 3 de junho.Constance Street Hall. Recital doQuarteto Sirmione. Cheguei às2h15. Encontrei Mrs. H-H às2h30. Mrs. H-H sentou-se naponta esquerda do sofá azul (a

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esquerda do ocupante). Sofá acerca de dois metros da entradaprincipal e dois metros e meiopara a direita de quem entra. Sofácolocado perpendicularmente emrelação ao canto direito da sala.Entrada lateral na parede do ladocerca de três metros atrás dosofá. Eu estava na cadeira atrásdo braço esquerdo do sofá. Às3h35, imediatamente após ointervalo, observo carteira deMrs. H-H ser levada da pontaesquerda do sofá onde antes eu atinha visto colocá-la. Ela deixaraa sala durante o intervalo evoltou depois de carteira ter sidolevada. Poderia jurar que a mão

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que levou a carteira foi a deDimitri, da Shepherd CateringCompany. Vi-o lá. Sentou-se porperto. Dedo mínimo do mesmocomprimento do anelar emarcadamente torto. Withersestava lá. N.B. Penso que Mrs.H-H suspeita que sou eu o autorda chantagem. R.G.»

A voz de Fox soou através do

auscultador.– Estou, senhor?– Olá, Fox. Já viu o quarto de onde

ele me telefonou?– Sim. É um quarto no último

patamar. Um dos empregados do

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Dimitri viu-o entrar. Ninguém mexeuno quarto.

– Certo. Mais alguma coisa?– Nada de importante. A casa foi

deixada como estava quando osconvidados saíram. O senhorcertificou-se disso.

– O Dimitri está aí?– Não.– Vá buscá-lo, Fox. Quero vê-lo na

Yard ao meio-dia. De momento será osuficiente. Diga ao Bailey paraanalisar o quarto do telefone para tiraras impressões digitais. Temos dedescobrir quem interrompeu otelefonema à Scotland Yard. E, Fox…

– Senhor?– Pode vir para cá? Gostaria de falar

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consigo.– Estou a ir, senhor.– Obrigado – disse Alleyn, e

desligou o telefone.Olhou de novo para o documento que

tinha encontrado na gaveta central dasecretária de Lord Robert. Era o seutestamento. Um testamento muitosimples. À exceção de um ou doislegados, ele deixava todos os seusbens e juros vitalícios sobre £40 000 àsua irmã, Lady Mildred Potter, quereverteriam a favor do seu filho à datada sua morte e o restante do seupatrimónio, £20 000, ao mesmo filho,o seu sobrinho, Donald Potter. Otestamento estava datado de 1 de

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janeiro daquele ano.«A sua boa ação de Ano Novo»,

pensou Alleyn.Olhou para as duas fotografias em

molduras de couro que estavam nasecretária de Lord Robert. Uma delasera de Lady Mildred Potter envergandoo vestido com que fora apresentada nasua juventude. Mildred era bastantebonita naquela altura. A outra era deum jovem de cerca de vinte anos.Alleyn reparou no típico nariz curtodos Gospell e nos olhos afastados. Aboca era pequena e agradável, oqueixo saliente, daqueles que parecemdeterminados e são muitas vezesmeramente obstinados. Era um rostomuito atraente. Donald tinha escrito o

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seu nome no canto, com a data, 1 dejaneiro.

«Espero bem», pensou Alleyn, «queele possa justificar o seu paradeiro.»

– Bom dia – disse uma voz da porta.Alleyn virou-se na cadeira e viu

Agatha Troy. Estava vestida de verde etinha uma pequena boina de veludo nacabeça escura e luvas verdes nasmãos.

– Troy!– Vim saber se há alguma coisa que

eu possa fazer pela Mildred.– Não sabias que eu estava aqui?– Não até ela me ter dito. Ela pediu-

me para ver se tinhas tudo o quequerias.

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– Tudo o que queria – repetiuAlleyn.

– Se tiveres – disse Troy –, entãoestá tudo bem. Não vou interromper.

– Por favor – disse Alleyn –, nãopoderias esperar só por um segundo?

– O que se passa?– Nada. Quer dizer, não tenho

nenhuma desculpa para te pedir quefiques, a não ser, e vais-me perdoar, adesculpa de querer olhar para ti eouvir a tua voz por um momento. – Eleergueu a mão. – Nada mais do queisso. Tu gostavas do Bunchy e eutambém. Ele falou sobre ti da últimavez que nos encontrámos.

– Há algumas horas – disse Troy –

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eu estava a dançar com ele.Alleyn foi até às janelas altas...

Davam para o jardim pequeno eencantador, que se estendia até ao rioTamisa.

– Há algumas horas – ele repetiu aspalavras dela lentamente –, o riorespirava névoa. O ar estava carregadode nevoeiro e frio como um túmulo.Isso foi antes de amanhecer. Começavaa clarear quando eu o vi. E olha paraisto agora. Nem uma nuvem. O malditorio brilha à luz do sol. Vem cá, Troy.

Ela foi pôr-se ao lado dele.– Olha lá para baixo, para a rua.

Pela janela lateral. Às três e meia damanhã o nevoeiro do rio parecia umamortalha ao longo de Cheyne Walk. Se

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alguém estivesse acordado a essamaldita hora ou no exterior, nas ruasdesertas, teria ouvido um táxipercorrer Cheyne Walk e parar do ladode fora deste portão. Se alguém nestacasa tivesse tido a curiosidade deolhar lá para fora de uma das janelasdo andar de cima teria visto a porta dotáxi a abrir-se e uma figura singular decapa e chapéu de abas largas sair.

– O que queres dizer? Ele saiu?– O observador teria visto essa

figura a acenar com a mão enluvada etê-lo-ia ouvido dizer ao motorista comuma voz estridente: «Sessenta e três,Jobbers Row, Queens Gate.» Teriavisto o táxi ir embora no meio da

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neblina… e depois… o quê? O que feza figura? Será que correu como umafigura sobrenatural com a capa aadejar, em direção ao rio, para serengolido pelo nevoeiro? Ou caminhouserenamente para Chelsea? Será queesperou por um momento, ficando aolhar para o táxi? Será que o assassinodo Bunchy tirou a capa, dobrou-a e foiembora com ela pendurada no braço?Será que escondeu o seu própriochapéu, debaixo da capa antes de sairdo táxi, e depois voltou a pô-lo? Eonde estão a capa e o chapéu doBunchy, Troy? Onde estão?

– O que disse o motorista do táxi? –perguntou Troy. – Não há nada decoerente nos jornais. Não compreendo.

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– Eu conto-te. O Fox estará aqui embreve. Antes de ele chegar, possopermitir-me alguns minutos paradesanuviar a minha mente, se medeixares. Já fiz isso antes, uma vez,não foi?

– Sim – murmurou Troy. – Uma vez.– Não há melhor ouvinte no mundo

do que tu. Gostaria de ter algo melhorpara te dizer. Bem, aqui vai. Omotorista de táxi levou o Bunchy paraa Yard, às quatro horas da manhã,dizendo que ele foi assassinado. Estafoi a sua história. Ele apanhou oBunchy às três e meia, a cerca deduzentos metros de Marsdon House.Havia uma escassez de táxis e

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supomos que o Bunchy tenha andadoaté ali, com a esperança de apanhar umnuma rua lateral, quando este sujeitoapareceu. O nevoeiro pouco habitualque pairava sobre Londres na noitepassada era muito denso em BelgraveSquare. Quando o motorista seaproximou do Bunchy, viu outra figurade sobretudo e cartola através donevoeiro e que se pôs ao lado dele.Pareciam estar a falar. O Bunchylevantou a bengala. O taxistareconheceu-o e dirigiu-se a ele:

«‘Bom dia, senhor. Duzentos,Cheyne Walk?’

«‘Sim, por favor’, respondeu oBunchy.

«Os dois homens entraram no táxi. O

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taxista não tinha uma visão clara dosegundo homem. Estava de costasquando o táxi se aproximou e, quandoparou, o indivíduo deixou-se ficar paratrás, na sombra. Antes que a porta sefechasse o motorista ouviu o Bunchydizer: ‘Pode levá-lo.’ O motoristalevou-o a Cheyne Walk por CheshamPlace, Cliveden Place, Lower SloaneStreet e Chelsea Hospital eatravessando Tite Street. Ele diz quedemorou cerca de doze minutos. Parouaqui no portão do Bunchy e depoisLord Robert, assim ele supunha, saiudo carro e bateu com a porta. Uma vozguinchou através de um cachecol:‘Sessenta e três, Jobbers Row, Queens

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Gate’, e o motorista prosseguiu.Chegou a Jobbers Row dez minutosdepois, ficou à espera de que opassageiro saísse e, por fim, elepróprio saiu e foi abrir a porta. Foientão que deu com o Bunchy.»

Alleyn esperou um momento, olhougravemente para o rosto pálido deTroy. Ela disse:

– Não havia dúvida…– Nenhuma. O motorista é um velho

obstinado, teimoso, conflituoso, umarelíquia, mas não é parvo. Ele foimuito convincente. Explicou queconduziu uma ambulância no passado esabia certas coisas. Dirigiu-se para aScotland Yard assim que pôde. Umsargento viu-o, viu tudo, certificou-se

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de que… era o que era, e mandou-mechamar. Eu também me certifiquei.

– O que fizeram ao Bunchy?– Queres saber? Sim, claro que

queres. És demasiado inteligente parate preocupares com as tuassensibilidades.

– A Mildred vai-me perguntar. Oque aconteceu?

– Achamos que ele foi atingido natêmpora, atordoado e depois asfixiado– disse Alleyn, sem ênfase. –Saberemos mais quando os médicosterminarem.

– Agredido?– Sim. Com algo que tinha um

contorno muito afiado. Tão afiado

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como a parte de trás de uma lâminagrossa.

– Ele sofreu?– Não muito. Quase nada. Não deu

conta do que aconteceu.– O coração dele era fraco – disse

Troy de repente.– O coração? Tens a certeza?– A Mildred disse-mo outro dia. Ela

tentou convencê-lo a consultar umespecialista.

– Pergunto-me se isso tornou tudomais fácil, para ambos – disse Alleyn.

– Nunca te tinha visto assim – disseTroy.

– O que queres dizer, Troy?Ele virou para ela um rosto tão

repentinamente modificado pela

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doçura que ela não conseguiuresponder-lhe.

– Eu… já passou.– Quando olho para ti, suponho que

todas as outras expressões se perdemnum estado de estupidez geral.

– Como é que eu posso responder aisso? –disse Troy.

– Não respondas. Desculpa. O quequerias dizer?

– Parecias feroz.– É o que sinto quando penso no

Bunchy.– Posso entender isso.– A caça está aberta – disse Alleyn.

– Alguma vez leste nos romancespoliciais sobre o detetive implacável

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que jura que vai apanhar o seu homem,nem que leve o resto da sua vida? Essesou eu, Troy, e sempre pensei quefosse uma ideia falsa. É falsa, de certaforma, também. Os verdadeiros heróisda investigação criminal são osdetetives X, Y e Z, os homens nasfileiras que seguem todos os fiosmonótonos da rotina sem qualquersentimento pessoal ou interesse, quenão fazem juramentos, mas que, noentanto, apanham os seus homens nofinal, e com um pouco de sorte e dacapacidade infinita para o esforço. Osdetetives X, Y e Z vão estarocupadíssimos até este cavalheiro serpreso. Posso prometer-lhes isso.

– Eu não me sinto assim – disse

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Troy. – Quer dizer, não sinto nada emparticular sobre o assassino. Àexceção de achar que ele deve serlouco. Sei que ele tem de serapanhado, mas não posso sentir fúriapor ele. Simplesmente o Bunchy nuncafez mal nenhum neste mundo; malnenhum, e ali ficou morto e solitário.Tenho de ir agora, e ver o que possofazer pela Mildred. O Donald jáchegou?

– Ainda não. Sabes onde estáhospedado?

– Ele não disse à Mildred porquepensou que ela iria contar ao Bunchy, eo Donald queria ser independente. Elatem o número de telefone. Vi-o escrito

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num lembrete no quarto dela. Imaginoque tenhas ouvido falar sobre adiscussão?

– Sim, pela Mildred. Foi por causadas dívidas, não foi?

– Sim. A Mildred sempre estragou oDonald com mimo. Ele não é maurapaz realmente. Vai ficar muitoabalado.

Alleyn olhou para a fotografia.– Viste-o no baile?– Sim. Ele dançou muito com a

Bridgie O’Brien.– Sabes se ele ficou até ao fim?– Eu não fiquei mesmo até ao fim. A

Mildred e eu saímos à uma e meia. Eladeixou-me no meu clube. O Bunchy…o Bunchy… ia acompanhar-nos, mas

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depois perguntou-nos se nosimportávamos de ir sem ele. Disse quese estava a sentir animado.

– Passaste muito tempo com ele?– Dancei três vezes com ele. Ele

estava muito animado.– Troy, reparaste em alguma coisa?

Qualquer coisa que fosse?– Que tipo de coisa?– Parecia haver indício de alguma

coisa por detrás da sua alegria? Comose, sabes, ele estivesse a pensar emalgo?

Troy sentou-se na beira da secretáriae tirou a boina. O sol da manhã entravapela janela e manchava-lhe o cabelocurto e escuro com reflexos azuis.

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Iluminava-lhe o belo ângulo do queixoe das maçãs do rosto. Refletia-se nosseus olhos, fazendo-a semicerrá-loscomo acontecia quando ela pintava.Tirou as luvas verdes e Alleyn viu assuas mãos finas e sofisticadas deslizarpara fora das luvas e pousardelicadamente no pelo verde docasaco. Ele perguntou-se se algumavez recuperaria do seu amor por ela.

– Conta-me tudo o que aconteceuontem à noite, enquanto estavas com oBunchy – disse. – Procura na tuamemória antes que perca a frescura evê se há alguma coisa que parecesseum pouco fora do comum. Qualquercoisa, não importa quão insignificante.

– Vou tentar – disse Troy. – Não

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aconteceu nada, exceto quando nósdançámos… sim. Esbarrámos uma veznoutro casal. Era uma tal Mrs. Halcut-Hackett. Conheces?

– Sim. E então?– É uma coisa pequena, mas dizes

que não importa. Ela estava a dançarcom um homem alto, com umaaparência grosseira. O Bunchydesculpou-se antes de ver quem eleseram. Ele dançava aos saltinhos,sabes, e desculpava-se sempre quandohavia colisões. Depois, virámo-nos evimo-los. Senti a mão do Bunchyapertar-me de repente e olhei por cimado ombro, para eles. O rosto coradodo homem tinha ficado muito pálido e

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Mrs. Halcut-Hackett parecia muitoestranha. Assustada. Perguntei aoBunchy quem era o homem e ele disse:«Um tipo chamado Withers», numa vozesquisita e tensa. Eu disse: «Não gostadele?» E ele: «Não muito, minhaquerida», e depois começou a falarsobre outra coisa.

– Sim – disse Alleyn. – Isso éinteressante. Mais alguma coisa?

– Mais tarde, o Bunchy e eu fomospara o canto dos acompanhantes.Sabes, ao fundo do salão, onde todoseles se sentam. A tua mãe estava lá.Mrs. Halcut-Hackett veio com omarido e, em seguida, a jovem que elaestá a apresentar chegou com aqueleasno do Carrados. A menina tinha uma

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dor de dentes, foi o que ela disse, masreceio que a infeliz não estava a tergrande sucesso. Há algo de muito cruele bárbaro nestes jogos da temporada –disse Troy vigorosamente.

– Eu sei.– A tua mãe percebeu. Nós trocámos

um comentário. Bem, o general Halcut-Hackett disse que levaria a menina acasa e o Bunchy ofereceu-se para levarMrs. Halcut-Hackett mais tarde. Ogeneral agradeceu-lhe, mas ela pareciaextraordinariamente desanimada ecreio que evitou responder. Tenho aimpressão de que ela detestou a ideia.Havia outra coisa. Espera um segundo!O Bunchy iniciou uma conversa sobre

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pontualidade com a velha LucyLorrimer. Conheces?

– Meus Deus, sim. É amiga da minhamãe. Uma tonta.

– Essa mesma. Ela arreliou o Bunchysobre estar atrasado ou algo assim eMrs. Halcut-Hackett disse de repente,numa voz alta e estrídula, que sabiacomo o Bunchy era pontual e poderiaconfirmá-lo. Não parecia nada demais, mas por alguma razão fez comque todos se sentissemdesconfortáveis.

– Consegues lembrar-te exatamentedo que ela disse?

Troy passou os dedos pelo cabelo efez uma careta pensativa.

– Não, não exatamente. Era só que

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ela sabia que ele respeitava sempre osseus compromissos. A tua mãe develembrar-se. Fui dançar logo depoisdisso. A Evelyn Carrados estava lá,mas…

– Mas o quê?– Vais pensar que estou a inventar

mistérios vagos, mas achei que elatambém parecia perturbada. Nada aver com o Bunchy. Parecia doente.Ouvi alguém dizer depois que elaquase desmaiou na sala de jantar. Foi oque me pareceu quando a vi. Percebique as mãos dela estavam tensas.Sempre pensei que gostaria de pintaras mãos da Evelyn. São lindas.Observei-as ontem à noite. Ela tinha

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uma grande carteira no colo. O Bunchysentou-se entre ela e a tua mãe, e deuuma palmadinha a cada uma, à maneiradele. A mão dele tocou na bolsa daEvelyn e ela encolheu-se como se ele ativesse magoado e contraiu os dedos.Ainda estou a vê-los agora, brancos,com os nós em destaque, a apertarem acarteira dourada. Voltei a pensar quegostaria de os pintar e chamar à coisa:«Mãos de uma mulher assustada.» Emais tarde, mas olha – continou Troy–, estou simplesmente a divagar.

– Deus abençoe os teus olhos de boapintora, não estás a divagar. Continua.

– Bem, algum tempo após o jantar,depois de voltar a dançar com oBunchy, sentei-me com ele no salão de

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baile. Estávamos a conversar e eleestava a contar-me uma das suashistorietas, um episódio ridículo sobrea Lucy Lorrimer ter enviado uma coroade flores para um casamento e umgarfo de torrar pão para um funeral,quando de repente ele se calou e olhoupor cima do meu ombro. Eu virei-me evi que ele estava a olhar para a EvelynCarrados. Não havia nada para ver.Ela ainda parecia abalada, e era tudo.O Dimitri, o homem da restauração,sabes, estava a devolver-lhe a carteira.Acho que ela a tinha deixado em algumlugar. Que foi?

Alleyn deixara escapar uma pequenaexclamação.

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– A mesma carteira grande e cheiaem que tinhas reparado no início danoite?

– Sim. Mas não estava tão cheianaquele momento – disse Troyrapidamente. – Agora que penso nisso,estava bastante mole e lisa. Estava aobservar as mãos dela outra vez.Lembro-me me ter passado pelacabeça que parecia uma carteirademasiado grande para aquele vestidode baile. A Mildred apareceu e saímospouco depois. E lamento que seja tudo.

– Lamentas? Troy, não sabes comoés importante.

– Não?Ela olhou para ele com um ar de

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benevolência confusa e o rosto deleiluminou-se imediatamente com aconsciência feroz da presença dela. Osolhos de Agatha Troy encheram-sesubitamente de lágrimas. Ela estendeua mão e tocou em Alleyn.

– Vou-me embora – disse ela. –Lamento tanto.

Alleyn recuou. Deu um murro napalma da sua própria mão e disseviolentamente:

– Pelo amor de Deus, não sejasamável! Que amor intolerável é esteque me obriga a fazer as mesmascoisas que eu desejo evitar com toda aminha alma? Sim, Troy, por favor, vaiagora.

Troy saiu sem mais palavras.

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CAPÍTULO 9

O RELATÓRIO DE MR. FOX

Alleyn caminhava pelo quartopraguejando baixinho. O inspetor Foxfoi encontrá-lo naquele estado quandochegou, com um ar sólido erespeitável.

– Bom dia, senhor – cumprimentouFox.

– Olá, Fox. Sente-se. Encontrei otestamento. Vai tudo para a irmã e osobrinho. O rapaz contraiu dívidas ediscutiu com o tio. Está a viver fora decasa, mas chegará a qualquer momento.Encontrei as notas de Lord Robertsobre o caso de chantagem. Ele disse-

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me, quando me ligou à uma hora damanhã, que passaria por aqui primeiropara trocar de camisa e recolher asnotas. Aqui estão elas. Veja.

Fox pôs os óculos e pegou no blocode notas com o seu enorme punho. Leusolenemente, com a cabeça um poucoinclinada para trás e as sobrancelhaslevantadas.

– Sim – disse quando terminou. –Bem, Mr. Alleyn, é uma prova bastanteinteressante, não é? Põe este Mr.Dimitri sob o que se pode chamar umaluz muito desfavorável. Podemosacusá-lo de chantagem com estasinformações, se a senhora não nosdececionar. Esta Mrs. Halcut-Hackett,quero dizer.

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– Reparou que Lord Robert pensouque ela suspeitava que ele próprioteria levado a bolsa no concerto.

– Sim. Isso é estranho. Pode-se dizerque lhe dá um motivo para ohomicídio.

– Se conseguir imaginar Mrs.Halcut-Hackett, que é o que osnegociantes de roupa chamam umamulher de porte majestoso, a vestir-secomo um homem durante o baile,abordar Lord Robert na rua, fazê-lodar-lhe boleia, pô-lo inconsciente,sufocá-lo, e caminhar para casa à luzdo amanhecer com as calças de outrapessoa.

– Tem razão – disse Fox. – Não

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consigo imaginar isso. Ela pode ter umcúmplice.

– É verdade.– Ainda assim, devo dizer que o

Dimitri me parece mais provável –continuou Fox metodicamente. – Sedescobriu que Lord Robert tinhainformações sobre ele. Mas como éque ele descobriu?

– Ouça – disse Alleyn –, quero quepreste atenção enquanto eu revejo otelefonema. Fiquei a trabalhar até tardena Scotland Yard sobre o casoTemple. Como sabe, hoje devia ter idopara norte se isto não tivesseacontecido. À uma hora Lord Robertligou-me de um quarto em MarsdonHouse. Disse-me que tinha uma prova

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irrefutável de que o Dimitri era onosso homem. Depois disse que viria àScotland Yard. E então… – Alleynfechou os olhos e contraiu o rosto paraum lado. – Quero recordar as palavrasexatas – disse. – Eu sou a minhaprópria testemunha aqui. Espere, orabem, espere. Sim. Ele disse: «Eu vou àScotland Yard. Juro pela minha alma, épior do que homicídio. Mais valiamisturar veneno nas cervejas», e emseguida, Fox, acrescentou esta frase:«E ele está a trabalhar com…» Nãoterminou. Parou e disse: «Olá, não deipela sua presença.» Perguntei sealguém estava lá e ele disse que sim efingiu que tinha telefonado por causa

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de uma coisa que perdera. Ele deve terfeito isso porque percebeu que orecém-chegado o ouviu falar na Yard.Fox, temos de identificar o homem ou amulher que ouviu este telefonema.

– Se é que foi o Dimitri – começouFox.

– Sim, eu sei. Se é que foi o Dimitri!E, no entanto, de alguma forma, elesoou como se estivesse a falar com umamigo. «Olá, não dei pela suapresença.» Poderia muito bem ter sidoo caso. Mas nós temos de descobrir,Fox.

– E ele está a trabalhar com… –citou Fox. – O que acha que ele iadizer? Nomear um cúmplice?

– Não. Ele era demasiado experiente

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para dizer nomes pelo telefone.Poderia ter sido «com alguém», ou«com engenho diabólico». Quem medera saber. E agora, o que fez?

Fox tirou os óculos.– Seguindo as suas instruções –

disse –, fui a Marsdon House. Chegueilá às oito horas. Encontrei dois dosnossos camaradas a tomar contadaquilo, e recebi um relatório deles.Chegaram lá às quatro e vinte, umquarto de hora depois de o táxi terchegado à Yard e cinco minutos depoisde o senhor ter ligado. O Dimitri játinha saído da casa, mas os nossoscamaradas, de acordo com as suasordens, senhor, telefonaram para o

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apartamento dele para se certificaremde que ele estava lá e mandaram umhomem à paisana para o vigiar. Ele vaiser rendido às dez horas pelo tiponovo, o Carewe. Pensei que elepoderia desempenhar essas funções. Éum pouco extravagante de mais para omeu gosto. Bem, voltando a MarsdonHouse. Foram recolhidas asdeclarações dos homens que o Dimitrideixou a limpar a casa, depois forammandados embora, e os colegasficaram até eu chegar lá às oito.Identificámos o quarto de onde LordRobert lhe telefonou. O telefone estevea funcionar ali durante toda a noite.Nós selámos o quarto. Tenho uma listade convidados. Foi um puro golpe de

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sorte, isto. Encontrámo-la no buffet.Nomes e endereços batidos à máquina,muito metódico. É uma cópia a carvão.Suponho que a secretária de LadyCarrados deve ter feito isso. Descobripelos homens do Dimitri os nomes dealgumas das pessoas que saíram maiscedo. O empregado do bengaleiro doshomens ainda estava lá e conseguiulembrar-se de cerca de vinte. Tambémconseguiu recordar a maioria doshomens que partiram no fim. Comeceipor esses. Telefonei-lhes e pergunteise tinham reparado em Lord RobertGospell. Vários deles lembravam-sede o ver no vestíbulo no fim do baile.A maioria das pessoas saiu em grupos

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e fomos capazes de verificar váriosnomes ao mesmo tempo. Descobrimosque o Dimitri estava no vestíbulonaquele momento. Passei peloapartamento dele agora, antes de virpara cá. Vai perceber que ele é umatestemunha de alguma importância,bem como, depois do que acabou deme contar, o principal suspeito. Tenhouma lista, muito provavelmenteincompleta, dos convidados quesaíram sozinhos na mesma altura queLord Robert. Aqui está. Um poucotosca. Elaborei-a a partir de notas acaminho daqui.

Fox tirou um bloco de notas grosso,abriu-o e entregou-o Alleyn, que leu:

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«Mrs. Halcut-Hackett. Vista asair sozinha por criado na porta,Dimitri e outro criado, que seofereceu para lhe chamar um táxi.Ela recusou e foi embora. LordRobert não tinha saído. Dimitridiz que pensa que Lord Robertdesceu nesse momento.

«Capitão Maurice Withers.Visto a sair sozinho por Dimitri,criado e por vários membros deum grupo por quem ele passou noexterior da casa. Recusou umaboleia. Criado pensa que ocapitão W. saiu após Mrs. H-H.Impressão confirmada porDimitri. Lord Robert ao fundo da

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escada.«Mr. Donald Potter. Visto a

despedir-se de Miss O’Brien porDimitri e por dois funcionáriosperto da porta do buffet ao fundoda escada. Dimitri reparou queele encontrou Lord Robert,pareceu evitá-lo e foi embora àpressa.

«Sir Daniel Davidson. Visto asair sozinho, imediatamente apósaquilo, por Dimitri e doiscriados.

«Miss Violet Harris .Secretária de Lady Carrados,vista a sair sozinha pelofuncionário do bengaleiro queestava à porta, a quem ela disse

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boa noite. Mais ninguém a viusair.

«Mr. Trelawney-Caper .Cavalheiro jovem que se perderade Mr. Percy Percival. Perguntouvárias vezes por ele. Deu umanota de dez xelins ao empregadoque se lembra dele. Descrito pelocriado como estando ‘um poucoembriagado, mas não bêbado’.

«Mr. Robert Gospell. Ambosos criados e o empregado à portao viram sair. Um criado diz quesaiu imediatamente após SirDaniel Davidson. O outro diz quefoi alguns minutos depois. Oempregado do bengaleiro diz que

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foi cerca de dois minutos depoisde Miss Harris e cinco depois deSir DD.» Alleyn olhou para cima.– Onde estava o Dimitri, então? –

perguntou. – Parece ter desaparecido.– Eu perguntei-lhe – disse Fox. – Ele

disse que entrou no buffet quando SirDaniel saiu e foi mantido lá por algumtempo. O buffet é ao fundo da escada.

– Há alguma confirmação disso?– Um dos empregados lembra-se

dele lá, mas não posso dizerexatamente quando ou por quantotempo. Estava a conversar com SirHerbert Carrados.

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– Com o Carrados? Estou a ver.Como é que o Dimitri reagiu quandovocê o viu?

– Bem – disse Fox lentamente –, eleé bastante calmo, não é? Estrangeiro,meio italiano, meio grego, mas isso équase impercetível no seu discurso.Respondeu a tudo muito bem e nãoparava de dizer que era tudo muitolamentável.

– Parece-me que ainda vai acharmuito mais lamentável – disse Alleyn evoltou-se para o bloco de notas.

– Os restantes – continuou Fox –saíram após Lord Robert e, tantoquanto pudemos apurar, foi algumtempo depois. Restam apenas três

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nomes e não acho que vão adiantarmuito, mas pensei que seria melhor tê-los.

– Quando é que o grupo dosCarrados saiu? Foram os últimos, éclaro?

– Sim. Sir Herbert e Lady Carradosestavam no topo da escada no patamardo salão de baile a despedirem-se amaior parte deste tempo, mas SirHerbert deve ter ido até ao buffet, se émesmo certo que o Dimitri conversoucom ele lá. Deixei Sir Herbert para si,Mr. Alleyn. Pelo que ouvi dizer dele,vai precisar de um certo tratamento.

– É extraordinariamente gentil da suaparte – disse Alleyn em tom sombrio. –Existe alguma saída do buffet diferente

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daquela que dá para o vestíbulo?– Existe, sim. Uma porta que dá para

umas escadas de serviço que dão paraa cave.

– Portanto, é concebível que oDimitri possa ter saído para a rua poraí?

– Sim – concordou Fox. – É bempossível. E voltar.

– Ele teria estado fora pelo menosquarenta minutos – disse Alleyn –, se éque ele é o nosso homem. Se, se, se!Ele seria capaz de arranjar umacartola? O assassino usava uma. O quediria ele ao Bunchy para o convencer adar-lhe boleia? «Quero falar consigosobre chantagem?» Bem… pode

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funcionar.– Pelo que sabemos – disse Fox –,

pode não ter sido nenhum dosconvidados nem o Dimitri.

– É verdade. Tanto quanto sabemos.Ainda assim, Fox, parece que foi. Nãoé fácil de encaixar um estranho nosfactos que temos. Experimente. Umdesconhecido em traje de baile,vestindo um sobretudo e cartola está àporta de Marsdon House à espera queLord Robert saia e com apossibilidade remota de conseguir umaboleia. Ele não sabe quando LordRobert vai sair, por isso tem deesperar cerca de três horas. Não sabese vai ter a oportunidade de falar comLord Robert, se Lord Robert vai sair

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acompanhado ou sozinho, num carroparticular ou num táxi. Não sabe queum nevoeiro cerrado vai cobrirLondres à uma hora.

– Ele pode apenas ter aparecido –disse Fox e acrescentouimediatamente: – Está bem, está bem,senhor. Não vou insistir. Temos muitocom que trabalhar a partir do interior eé um pouco rebuscado, admito.

– Tudo isto é muito rebuscado, naminha opinião – disse Alleyn. –Estamos diante de um homicídio quefoi quase não premeditado.

– Como chegou a essa conclusão?– Ora, Fox, pelas razões que

acabámos de assinalar. Os movimentos

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de Lord Robert não poderiam serantecipados. Acabo de saber que eletinha a intenção de sair muito maiscedo com a irmã, Lady Mildred Potter,e Miss Troy.

– Miss Agatha Troy?– Sim, Fox. – Alleyn virou-se para o

lado e olhou pela janela. – Ela é umaamiga da família. Eu falei com ela. Elaestá aqui.

– Quem diria – disse Foxdescontraidamente.

– Eu acho – continuou Alleyn depoisde uma pausa – que quando o assassinosaiu da casa iluminada para o arinsalubre talvez soubesse que oBunchy, Lord Robert, regressavasozinho. Pode tê-lo visto sozinho no

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vestíbulo. É por isso que a sua lista éimportante. Se o homem era o Dimitri,ele saiu com a intenção deliberada decometer o seu crime. Se foi um dosconvidados, pode ter decidido naaltura em que teve um vislumbre doBunchy sozinho na neblina, à espera deum táxi. Ele pode ter querido ameaçar,ou discutir, ou implorar. Pode terachado o Bunchy obstinado e numimpulso matou-o.

– Como é que acha que ele levou acabo a tarefa? Com o quê?

– Voltemos à máxima dos juristas –disse Alleyn com um leve sorriso: –Quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur,quomodo, quando?

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– Eu nunca me lembro dessa maneira– disse Fox – , não sei latim. Mas sei acantilena de Gross:

«Qual foi o crime, quem o

cometeu, quando foi cometido eonde?

Como foi feito, e com quemotivo, quem tomou parte noato?»

– Sim – disse Alleyn. – Temos quid,

quomodo e ubi, mas não temos acerteza de quibus auxiliis. O Dr.Curtis diz que a abrasão na têmpora éde seis centímetros e meio decomprimento e dois milímetros de

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largura. Ele pensa que o golpe não foinecessariamente muito forte, mascontundente e extremamente preciso.Que tipo de instrumento lhe sugereisto, Fox?

– Tenho estado a pensar que…O telefone na secretária tocou.

Alleyn atendeu.– Estou?– Mr. Alleyn? Fala da Yard. Sir

Daniel Davidson telefonou e disse quepode ter algo para lhe contar. Vai estardisponível o dia todo.

– Onde é que ele está?– No seu consultório, St. Luke’s

Chambers, Harley Street, númerocinquenta.

– Diga-lhe que irei vê-lo às duas

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horas. Agradeça-lhe – Alleyn colocouo auscultador no gancho.

– O Davidson – disse ele – acha quepode ter algo a relatar. Aposto queteve uma conversa franca consigomesmo antes de se decidir a telefonar.

– Porquê? – perguntou Fox. – Achaque ele se sente receoso?

– Quero dizer que ele é um médicoda moda e eles não gostam do tipo depublicidade que se obtém com estasinvestigações criminais. Se ele éinteligente, e imagino que deve serpara ter conseguido chegar aondechegou, percebeu que foi uma dasúltimas pessoas a ver Lord Robert.Decidiu vir até nós, antes que

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fôssemos até ele. De acordo com assuas notas, Fox, Sir Daniel foi aprimeira das três últimas pessoas asair antes de Lord Robert. As outrasduas foram um jovem cavalheiroelegante e uma secretária. Sir Danielteria visto que Lord Robert estavasozinho e prestes a sair. Ele poderiater esperado lá fora no nevoeiro epedido boleia no táxi tão facilmentecomo qualquer um. Pergunto-me se elese apercebeu disso.

– Nenhum motivo – disse Fox.– Nenhum que eu possa imaginar.

Não devo pôr-me a especular, não é?Maldito jovem Potter, porque é quenão chegou?

– Já terminou aqui, senhor?

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– Sim. Cheguei aqui às cinco horasda manhã, dei a notícia a LadyMildred, e revistei o quarto de vestirde Lord Robert, o quarto e esteescritório. Não encontrei nada, excetoas suas notas e o testamento. Das seteàs dez, procurei uma capa e um chapéumole no jardim, nos jardins vizinhos enas duas direções do Embankment.Sem sucesso. Tenho uma equipa abater o terreno agora.

– Ele pode não ter conseguidolivrar-se deles.

– Não. Pode ter ficado com medo dedeixar algum vestígio de si mesmo. Sefor esse o caso, quererá destruí-los oulivrar-se deles. A maré estava baixa às

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três horas da manhã. Para os deitar aorio, teria de encontrar uma ponte. Quetipo de casa é a do Dimitri?

– É um pequeno apartamento de doisquartos em Cromwell Road. Ele temum criado. Francês, devo dizer.

– Vamos lá ao meio-dia, quando eletiver de se apresentar na Yard, e ver sepodemos encontrar alguma coisa. Vocêjá viu o apartamento. Onde está otelefone?

– No corredor da entrada.– Certo. O melhor é telefonar da

cabine pública mais próxima assimque eu entrar. Mantenha o criado aotelefone tanto tempo quanto possível.Pode fazer uma série de perguntassobre a hora a que o Dimitri chegou,

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pedir os nomes de alguns dos homens,qualquer coisa. Eu vou dar umaolhadela rápida e procurar um possívellocal para esconder um embrulhogrande. Temos de ver os caixotes dolixo, embora não seja provável que elecorra esse risco. Raios partam estesobrinho. Fox, vá e fale com asempregadas domésticas. Não perturbeLady Mildred, mas peça o número detelefone de Mr. Donald. Está escritonum papel no quarto de Lady Mildred,mas elas também podem tê-lo.

Fox saiu e voltou em poucosminutos.

– Sloane 8405.Alleyn pegou no telefone e discou

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um número.– Inspetor-chefe Alleyn, da Scotland

Yard. Quero que me diga a quempertence Sloane 8405 imediatamente,por favor. Eu aguardo.

Ele esperou, olhando distraidamentepara Fox, que lia as suas própriasnotas com um ar de distanciamentocomplacente.

– O quê? – perguntou de repente. –Sim. Importa-se de repetir isso? Muitoobrigado. Adeus.

Desligou a chamada.– O número de telefone de Mr.

Donald Potter – disse – é o do capitãoMaurice Withers, no número cento edez de Grandison Mansions, SlingStreet, Chelsea. O capitão Maurice

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Withers, como deve ter notado,aparece nas notas de Lord Robert. Eleestava na festa de Mrs. Halcut-Hackette «parecia íntimo dela». Estava noconcerto quando o Dimitri levou abolsa dela. Agora olhe para isto…

Alleyn tirou um livro de cheques deuma gaveta da secretária e entregou-oa Fox.

– Olhe para o canhoto do livro. Abraem oito de junho, no último sábado.

Fox manuseou as folhas do canhotoaté encontrar aquela data.

– Cinquenta libras. M. Withers. (D)Shackleton House, Leatherhead.

– Esse foi o dia da festa de Mrs.Halcut-Hackett. Começa-se a desenhar

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um padrão neste caso.Fox, que voltara às notas de Lord

Robert, perguntou:– O que é isto que ele diz sobre o

capitão Withers ter estado envolvidonum caso de drogas em 1924?

– Foi nos meus primeiros anos naYard, Fox, mas eu lembro-me, e vocêtambém. O grupo Bouchier-Watson.Tinham sede em Marselha e Port Said,mas operavam em todo o lado.Principalmente heroína. O Ministériodos Negócios Estrangeiros interveio.O Bunchy trabalhava lá nessa altura eajudou-nos muito. O capitão Withersestava metido naquilo até ao pescoço,sem dúvida, mas nunca tivemos osuficiente para o acusar. Uma pessoa

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muito dúbia. E o jovem Donald correupara ele em busca de proteção. Rapazidiota! Oh, raios! Fox, raios!

– Conhece o jovem, senhor?– O quê? Sim. Oh, sim, conheço-o

vagamente. O que vai sair daqui? Vouter de sondar, como um malditodentista! E muito provavelmente voufazer o jovem Potter contorcer-secomo um nervo na ponta de umaagulha. Supostamente estas pessoassão minhas amigas! Divertido, não é?Está tudo bem, Fox, não fiqueperturbado. Mas se o Donald Potternão aparecer aqui antes…

A porta abriu-se de repente e Donaldentrou no escritório.

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Deu meia dúzia de passos, parou desúbito e olhou para Alleyn e Fox.Tinha um aspeto horrível. Os olhosestavam vermelhos e o rosto pálido.

– Onde está a minha mãe? –perguntou.

– A Agatha Troy está a tratar dela.Quero falar consigo – disse Alleyn.

– Eu quero ver a minha mãe.– Vai ter de esperar – retorquiu

Alleyn.

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CAPÍTULO 10

DONALD

Donald Potter estava sentado numacadeira de frente para a janela. Alleynestava à secretária de Lord Robert.Fox estava sentado na janela, o blocode notas no joelho, o lápis na mão.Donald acendeu um cigarro na beatado outro. Os seus dedos tremiam.

– Antes de começar – disse Alleyn–, gostaria de deixar uma coisa bemclara. O seu tio foi assassinado. Ascircunstâncias em que ele foiassassinado obrigam-nos a investigarprofundamente os movimentos de todasas pessoas que estiveram perto dele

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uma hora antes da sua morte. Tambémachamos que é necessário fazer umainvestigação exaustiva dos seusassuntos particulares, dorelacionamento com os membros dasua própria família, e dos seusmovimentos, conversas e interessesdurante as últimas semanas ou talvezmeses da sua vida. Nada será sagrado.Você, é claro, está ansioso que oassassino seja apanhado?

Alleyn fez uma pausa. Donaldhumedeceu os lábios e disse:

– Naturalmente.– Naturalmente. Vai, portanto, dar-

nos toda a ajuda que puder, custe o quecustar?

– É claro.

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– Com certeza compreende que tudoo que a polícia faz tem um únicopropósito. Se algumas das nossasindagações parecem impertinentes ouirrelevantes não há nada a fazer.Temos de fazer o nosso trabalho.

– É mesmo necessário tudo isto? –disse Donald.

– Eu espero que seja bastantedesnecessário. Quando foi a última vezque falou com o seu tio?

– Há cerca de dez dias.– Quando saiu desta casa?– No mesmo dia – disse Donald

ansiosamente.– Deixou esta casa devido a um

desentendimento com o seu tio?

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– Sim.– Lamento mas terei de lhe pedir

para me falar acerca disso.– Não… não tem nada a ver com

isto… esta coisa terrível. Não é nadaagradável recordar. Prefiro não…

– Sabe – disse Alleyn –, houve umobjetivo no meu discurso de aberturasolene. – Levantou-se, estendeu umamão e tocou no ombro de Donald. –Então – encorajou. – Eu sei que não éfácil.

– Não é que eu não gostasse dele.– Não acredito que alguém pudesse

não gostar dele. Qual foi o problema?As suas dívidas?

– Sim.

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– Então, porque discutiram?– Ele queria que eu fosse para

Edimburgo estudar Medicina.– E não queria ir?– Não.– Porquê?– Pensei que me aborreceria de

morte. Queria ir para St. Thomas. Eletinha concordado com isso.

Alleyn voltou ao seu lugar nasecretária.

– O que o fez mudar de ideias? –perguntou.

– Essa história das minhas dívidas.– Nada mais?Donald esmagou o cigarro com uma

mão trémula e abanou a cabeça.

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– Ele reprovava algum dos seusamigos, por exemplo? – perguntouAlleyn.

– Eu… bem, ele pode ter pensado…Quero dizer, não era isso.

– Ele sabia que se dava com ocapitão Maurice Withers?

Donald lançou um olhar de profundoespanto a Alleyn, abriu a boca, voltoua fechá-la e finalmente disse:

– Acho que sim.– Não tem a certeza?– Ele sabia que eu era amigo do

Withers. Sim.– Ele reprovava essa amizade?– Ele disse qualquer coisa, agora

que penso nisso.

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– Não teve nenhum impacto especialem si?

– Oh, não – disse Donald.Alleyn pousou a mão drasticamente

no livro de cheques de Lord Robert.– Então deduzo que se esqueceu de

um determinado cheque de cinquentalibras – disse.

Donald olhou para a mão comprida efina pousada sobre a capa azul. Umligeiro rubor subiu-lhe até às raízes docabelo.

– Não – respondeu –, eu lembro-me.– Ele pagou esse valor ao Withers

em seu nome?– Sim.– E ainda assim, não lhe causou

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nenhum impacto especial?– Havia tantas dívidas – disse

Donald.– O seu tio soube que o Donald era

amigo deste homem. Ele tinha algumasinformações sobre ele. Eu sei disso.Pergunto-lhe se, de facto, ele não seopôs fortemente à sua amizade com oWithers?

– Se quiser pôr as coisas dessamaneira.

– Pelo amor de Deus – disse Alleyn–, deixe-se de evasivas. Eu quero dar-lhe todas as oportunidades.

– O senhor não acha que eu…– O Donald é herdeiro do seu tio.

Discutiu com ele. Já esteveendividado. Partilha aposentos com um

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homem acerca do qual o seu tio oavisou. Não está em posição de tentarsalvar a face sobre assuntos menores.Quer poupar a sua mãe, tanto quantopossível, não é? Claro que sim,também eu. Peço-lhe muito seriamentecomo amigo, coisa que eu não deveriafazer, para me dizer toda a verdade.

– Muito bem – disse Donald.– Está a viver no mesmo

apartamento do capitão Withers. O quetem feito por lá?

– Eu… eu estava à espera para verse poderia talvez ir para St. Thomas.

– Como conseguiria fazer isso?– A minha mãe ter-me-ia ajudado.

Eu tenho o meu preliminar, e pensei

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que se estudasse um pouco e tentasseganhar algum dinheiro, poderiacomeçar mais tarde.

– Como é que se propunha a ganharalgum dinheiro?

– O Wits estava a ajudar-me, ocapitão Withers, quero dizer. Ele temsido fantástico. Não me importo com oque dizem sobre ele, ele não é umcriminoso.

– Que sugestões fez ele?Donald remexeu-se na cadeira.– Oh, nada de definitivo. Ainda

íamos discutir melhor o assunto.– Compreendo. O capitão Withers

ocupa-se em alguma profissão?– Bem, não exatamente. Ele tem um

bom rendimento, mas está a pensar em

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fazer alguma coisa um dia destes.Odeia estar desocupado, na verdade.

– Importa-se de me dizer, por favor,porque lhe devia cinquenta libras?

– Eu… devia-lhas simplesmente.– Evidentemente. Porquê? Foi uma

aposta?– Sim. Bem, uma ou duas apostas à

parte, na verdade.– Em quê, cavalos?– Sim – respondeu Donald

rapidamente.– Mais alguma coisa?Silêncio.– Mais alguma coisa?– Não. Quer dizer... Não me lembro

exatamente.

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– Tem de se lembrar. Foi no póquer?Jogos de cartas?

– Sim, no póquer.– Há outra coisa – disse Alleyn. –

Donald, não posso exagerar os danosque pode causar se insistir emresponder com evasivas. Não vê quecada nova resposta evasiva coloca oseu amigo a uma luz ainda maisduvidosa do que aquela em que ele jáaparece? Pelo amor de Deus, pense namorte do seu tio e nos sentimentos dasua mãe e na sua própria pele, seuidiota. De que outra forma ficou adever dinheiro ao capitão Withers?

Alleyn viu Donald levantar a cabeça,franzir o sobrolho e pôr os dedos nos

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lábios. Os seus olhos estavam vazios,mas fixos em Alleyn e depois umaexpressão de espanto duvidosoinsinuou-se neles.

– Não sei o que fazer – disse eleingenuamente.

– Quer dizer que deve algo aoWithers. Fez alguma promessa,suponho. É isso?

– Sim.– Para mim, os jovens da sua

geração são bastante desconcertantes.Parecem saber muito mais do que nóssabíamos, e no entanto eu juro quenunca teria sido levado por umcavalheiro vistoso com modospersuasivos e sem ocupação, a não serque gerir um casino clandestino seja

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considerado uma ocupação.– Eu nunca falei em roleta –

apressou-se Donald a dizer.– É realmente uma pena ficar com o

seu dinheiro – replicou Alleyn.Fox deu uma pequena tossidela e

virou uma página do seu bloco denotas.

– O capitão Withers por acasosugeriu que você devia ganhar dinheirohonesto auxiliando-o? – perguntouAlleyn.

– Não posso responder a maisperguntas sobre ele – disse Donaldnuma voz aguda. Parecia prestes a terum ataque de fúria violenta ou rompernum pranto.

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– Muito bem – disse Alleyn. –Quando ficou a saber desta tragédia?

– Esta manhã, pelos primeirosjornais.

– Há cerca de uma hora e meia?– Sim.– Quanto tempo leva a chegar aqui a

partir do apartamento do capitãoWithers? É em Sling Street, Chelsea,não é? Cerca de cinco minutos a pé.Porque demorou tanto tempo a vir paracá?

– Não estava vestido, e emborapossa não acreditar, fiquei em estadode choque quando soube da morte domeu tio.

– Não duvido. Também a sua mãe.

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Admira-me que ela não lhe tenhatelefonado.

– O telefone está desligado – disseDonald.

– A sério? Por que razão?– Esqueci-me de pagar a maldita

conta. O Wits encarregou-me disso.Liguei à minha mãe de uma cabinepública.

– Estou a ver. Fox, um dos nossoshomens anda lá fora. Peça-lhe para irao número cento e dez de GrandisonMansions, em Sling Street, e dizer aocapitão Withers que eu o visitareidaqui a poucos minutos e lheagradeceria se ele permanecesse emcasa.

– Sim, Mr. Alleyn – disse Fox, e

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saiu.– Muito bem – continuou Alleyn. –

Parece-me que foi dos últimosconvidados a sair de Marsdon Houseesta madrugada. Correto?

– Sim.– Quero que me relate exatamente o

que aconteceu pouco antes de sair.Vamos lá, vai tentar dar-me umaexplicação clara?

Donald parecia um pouco mais àvontade. Fox voltou e retomou o seulugar.

– Vou tentar, claro – disse Donald. –Por onde quer que comece?

– Pelo momento em que entrou novestíbulo e se preparou para sair.

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– Eu estava com a Bridget O’Brien.Dançámos a última dança e, emseguida, fomos para o buffet no pisotérreo, para comer sopa.

– Havia mais alguém lá?– O padrasto da Bridget. Eu desejei-

lhe uma boa noite e, depois, a Bridgiee eu fomos para o vestíbulo.

– Quem estava no vestíbulo?– Não me lembro, exceto…– Sim?– O tio Bunch estava lá.– Falou com ele?– Não, quem me dera ter falado.– O que estava ele a fazer?– Tinha vestido a capa. Conhece

aquela peça extraordinária que ele

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usa? Acho que o ouvi a perguntar àspessoas se tinham visto Mrs. Halcut-Hackett.

– O Donald viu-a?– Não a via há algum tempo, parece-

me.– Então não se lembra de ninguém na

sala, exceto o seu tio e Miss O’Brien?– Exatamente. Despedi-me da

Bridgie e fui-me embora.– Sozinho?– Sim.– O capitão Withers não estava no

baile?– Sim, mas tinha-se ido embora.– Porque não foram embora juntos?– O Wits ia a algum lado. Ele tinha

um encontro.

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– Sabe aonde ele foi e com quem?– Não.– Quando saiu de Marsdon House o

que fez?– Algumas pessoas que estavam lá

fora à espera de um táxi convidaram-me para ir com elas ao Sauce Boat,mas não quis ir. Para me livrar delas,fui até à esquina para procurar um táxi.

– Qual esquina?– A primeira à esquerda, quando se

sai de Marsdon House. Belgrave Road,parece-me.

– Alguém o viu?– Não sei. Julgo que não. Estava um

nevoeiro tão denso que parecia umcobertor.

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– Vamos ter de encontrar o seu táxi.– Mas eu não consegui apanhar um

táxi.– O quê?!Donald começou a falar

rapidamente. As suas palavrasatropelavam-se como se todas asportas dos seus pensamentos setivessem aberto de repente.

– Não havia táxis na esquina, entãocontinuei a andar. Andei e andei atéEaton Square. Era tarde, já passavadas três horas. Passaram muitos táxispor mim, claro, mas estavam todosocupados. Eu ia a pensar nas coisas.Na Bridget. Queria mantê-la fora destaconfusão, mas suponho que agora vai

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ouvir tudo. Vai saber-se tudo e… vaiparecer terrível. A Bridgie e… e o tioBunch… o meu exame para médico…e tudo o mais. Mal percebi para ondeia. É esquisito andar no nevoeiro. Osnossos passos soam estranhos. Tudoparecia simples e rarefeito. Não possodescrevê-lo. Continuei por ali fora e jánão havia mais táxis e dei comigo emKings Road, por isso fui para casa.Enveredei pelo Chelsea Palace edepois virei à direita para Sling Street.É tudo.

– Encontrou alguém?– Acho que devo ter encontrado

algumas pessoas. Não reparei.– A que horas chegou a casa?– Não reparei.

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Alleyn olhou gravemente para ele.– Quero que se esforce muito para se

lembrar se encontrou alguém nessacaminhada, por favor, principalmenteno início, logo depois de ter saído deMarsdon House. Não me canso defrisar a importância disso. Tantoquanto pudemos averiguar, o seu tiosaiu de casa poucos minutos depois desi. Também ele caminhou uma curtadistância até à praça. Chamou um táxie no último minuto um homem em trajede cerimónia juntou-se a ele e entrouno táxi com ele. É a identidade dessehomem que estamos ansiosos paradescobrir.

– Não pode pensar que eu faria uma

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coisa dessas!– disse Donald. – Nãopode! Você é nosso amigo. Não mepode tratar assim, como se eu fosseapenas alguém sob suspeita. Vocêconhece-nos! Juro por Deus…

A voz de Alleyn cortou friamente osprotestos de Donald.

– Eu sou um agente de investigaçãoao serviço da polícia. Devocomportar-me como se não tivesseamigos enquanto estiver a trabalharneste caso. Se o Donald pensar umpouco concluirá que é assim que deveser. Correndo o risco de soarpomposo, preciso de ir um pouco maislonge e dizer-lhe que, se pensasse quea minha amizade com o seu tio, a suamãe, ou consigo, estivesse de alguma

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forma a influenciar a minha conduçãodeste caso, sentir-me-ia obrigado aafastar-me. Pediria para serdispensado do caso. Já lhe falei comoum amigo, e não o deveria ter feito. Seé inocente, não corre perigo, a menosque falte à verdade ou mude a suaversão, designadamente em questõesrelativas à sua amizade com o capitãoWithers.

– Você não pode suspeitar doWithers! Porque havia ele de querermatar o tio Bunch? Não tem nada a vercom ele.

– Nesse caso, ele não tem nada atemer.

– Por conta disso, é claro, que não

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tem. Quer dizer… oh, raios!– Onde é que você estava quando

contraiu essa dívida com ele?– Numa casa particular.– Onde fica essa casa?– Algures perto de Leatherhead.

Acho que se chama Shackleton House.– Foi em casa dele?– Pergunte-lhe a ele. Pergunte-lhe a

ele. Porque me está a importunar comtudo isso? Meu Deus, não basta eu terde lidar com o outro assunto! Nãoaguento mais. Deixe-me fora disso.

– Pode ir, então. Haverá umadeclaração para assinar mais tarde.

Donald levantou-se e caminhou até aporta. Virou-se e olhou para Alleyn.

– Quero que apanhem o criminoso

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tanto quanto você. Naturalmente, estoutão ansioso como qualquer um – disseele.

– Ainda bem – disse Alleyn.O rosto de Donald contraiu-se no

tipo de careta que um menino fazquando está a tentar não chorar. Poralguma razão, isso fê-lo parecer muitocom o seu tio. Alleyn sentiu um baqueno coração. Levantou-se, atravessou asala em seis passos largos e agarrouem Donald pelo braço.

– Então! – disse. – Se está inocentenão tem nada com que se preocupar.Quanto a essa outra confusão em quese meteu, diga a verdade e nós vamosfazer o que pudermos para o ajudar.

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Diga à sua mãe que a casa está livre denós por agora. Agora, vá!

Ele virou Donald, empurrou-o pelaporta e bateu com ela atrás dele.

– Vamos lá, Fox – disse. – Arrumeas coisas: o testamento e as notas.Telefone para a Yard e verifique se aautópsia já chegou, diga-lhes parainvestigarem o Withers e, se um dosmeus homens estiver livre, mande-odiretamente para Shackleton House, emLeatherhead. Era melhor ele ter ummandado de busca, mas ele que não ouse sem falar comigo primeiro. Se olugar estiver fechado, ele que fique láe me comunique tudo por telefone.Diga-lhe que queremos provas de umcasino clandestino. Faça isso enquanto

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eu falo aos homens lá fora e depoisvamos embora.

– Para ir falar com o Withers?– Sim. Para ir falar com o capitão

Maurice Withers, que, a menos que euesteja muito enganado, acrescentou umcasino ilegal à sua lista de fontesiníquas de rendimento. Meu Deus, Fox,se alguém queria sangue, por que diabonão puderam incluir o capitão MauriceWithers? Vamos.

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CAPÍTULO 11

O CAPITÃO WITHERS EMCASA

O relatório da autópsia estavapronto. Fox tomou notas ao telefone, eele e Alleyn discutiram-nas a caminhode Sling Street.

– O Dr. Curtis – começou Fox – dizque não há dúvida de que ele foiasfixiado. Encontraram – e aqui Foxconsultou o bloco de notas – manchasde Tardieu nos pulmõescongestionados e no coração. Haviasinais de degeneração gordurosa nocoração. O sangue era de cor escura emuito líquido…

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– Está bem – disse Alleynviolentamente. – Esqueça isso.Desculpe, Fox. Continue.

– Bem, senhor, eles parecem pensarque o estado do coração deve tertornado tudo muito mais rápido. Isto éo que se pode chamar uma coisamisericordiosa, não é?

– Sim.– Sim. À exceção da cicatriz na

têmpora, o Dr. Curtis diz que não hámarcas no rosto. A membrana mucosana parte anterior do palato estácongestionada. A parte posterior estábastante descorada. Mas não há sinaisde violência.

– Eu reparei nisso. Não houve luta.

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Ele ficou inconsciente após o golpe natêmpora – disse Alleyn.

– Isso é o que o Dr. Curtis pensa.– Este assassino sabia o que estava a

fazer – disse Alleyn. – Geralmente ohomicida que mata por asfixia recorrea muita violência desnecessária. Ficammarcas ao redor da boca. O Curtis temalguma ideia do que foi usado?

– Diz que provavelmente a boca e asnarinas foram tapadas com um tecidomacio.

– Sim. Não o lenço do Bunchy. Nãoestava muito amarrotado.

– Talvez o seu próprio lenço.– Não me parece, Fox. Encontrei

vestígios de lã preta muito fina naboca.

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– A capa?– É o que parece. Pode ser. Uma das

razões por que a capa desapareceu. Jáagora, Fox, recebeu um relatório doagente que estava em Belgrave Squarena noite passada?

– Sim. Nada de suspeito.Continuaram, pensando na melhor

forma de conduzir as intermináveisentrevistas. Correlacionaram,classificaram e discutiram cadafragmento de informação. «Encontrar opadrão do caso», chamava-lhe Alleyn.Uma caminhada de cinco minutoslevou-os a Sling Street e a um grandebloco de apartamentos bastantepretensioso, com serviços domésticos

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incluídos. Tomaram o elevador até aonúmero 110 e tocaram à campainha.

– Vou correr alguns riscos aqui –disse Alleyn.

A porta foi aberta pelo capitãoWithers em pessoa.

– Bom dia. Queria falar comigo? –perguntou.

– Bom dia, senhor – disse Alleyn. –Sim. Espero que tenha recebido anossa mensagem ainda há pouco.Podemos entrar?

– Com certeza – disse Withers eafastou-se da porta com as mãos nosbolsos.

Alleyn e Fox entraram.Encontravam-se numa sala de estarigual a muitas outras, mobilada com

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um divã encostado a uma parede, trêspoltronas iguais, uma secretária, umamesa e armários embutidos. Começarapor ser uma réplica quase exata detodos os outros apartamentos desolteiro em Grandison Mansions, masuma vez que é impossível viver numlugar sem deixar alguma marca de simesmo, aquela sala adquirira o cunhodo capitão Maurice Withers. Cheiravaa loção capilar, charutos e whisky.Numa parede estava uma fotografiaemoldurada do tipo anunciado emrevistas como «estudos artísticos donu». Nas estantes, entre guias para ascorridas de cavalos, escondiam-seexemplares surrados de romances que

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o capitão Withers tinha comprado naRiviera e, por alguma razão, se dera aotrabalho de contrabandear para aInglaterra. Numa mesa ao lado do divãhavia três ou quatro livros deMedicina. «Donald Potter», pensouAlleyn. Através de uma portasemiaberta Alleyn teve um vislumbrede um pequeno quarto e uma segundaobra-prima que podia ter sido umestudo artístico, mas parecia ser umexercício de fotografia pornográfica.

O capitão Withers viu o olharbrando de Fox posto naquela imagem efechou a porta do quarto.

– Querem tomar uma bebida? –disse.

– Não, obrigado – disse Alleyn.

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– Bem, sentem-se, então.Alleyn e Fox sentaram-se, Fox com

extrema correção, Alleyn com um ar dequem tinha todo o tempo no mundo.Cruzou as longas pernas, pendurou ochapéu no joelho, tirou as luvas econtemplou o capitão Withers.Formavam um contraste curioso.Withers era o tipo de homem querespira vulgaridade em boas roupas. Opescoço era muito grosso, os dedosmuito chatos e pálidos e o cabelobrilhava demasiado, tinha olheirasmarcadas e pestanas brancas. Noentanto, apesar desses defeitos, era umanimal dominante e poderoso, comuma certa arrogância grosseira que era

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eficaz. Alleyn, pelo contrário, eraatraente, um cruzamento entre ummonge e um nobre da mais elevadaestirpe. O seu rosto e cabeçaenfaticamente definidos, a estruturaóssea claramente delineada. Haviauma certa austeridade no azul frio dosseus olhos e no cabelo preto. AlbrechtDürer teria feito um magníficodesenho, e o esboço do retrato deAlleyn de Agatha Troy era uma dassuas melhores obras.

Withers acendeu um cigarro, soprouo fumo pelo nariz e disse:

– De que se trata?Fox tirou o seu bloco de notas. O

capitão Withers viu as letras PM nacapa e, em seguida, olhou para o

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tapete.– Em primeiro lugar, se me permite

– disse Alleyn –, preciso do seu nomee morada completos.

– Maurice Withers e esta morada.– Pode dar-nos também a morada da

sua casa em Leatherhead, por favor?– Que diabo quer você dizer? –

perguntou Withers num tom bastanteagradável. Olhou rapidamente para amesa perto do divã e, em seguida, emcheio para o rosto de Alleyn.

– A informação – mentiu Alleyn –não vem da fonte em que está a pensar,capitão Withers. A morada, por favor.

– Se quer dizer Shackleton House,não me pertence. Foi-me emprestada.

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– Por quem?– Lamento, mas por motivos

pessoais, não lho posso revelar.– Compreendo. Usa-a muito?– Às vezes peço-a emprestada aos

fins de semana.– Obrigado – disse Alleyn. – Agora,

se não se importa, gostaria de lhe fazeruma ou duas perguntas sobre estamadrugada. As primeiras horas destamadrugada.

– Oh, sim – disse Withers. –Suponho que está a pensar noassassínio.

– Qual assassínio?– Ora, o do Bunchy Gospell.– Lord Robert Gospell era um amigo

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pessoal, capitão Withers?– Não o conhecia.– Compreendo. Porque acha que ele

foi assassinado?– Bem, não foi?– Penso que sim. E o senhor também.

Porquê?– A julgar pelos jornais é o que

parece.– É, não é? – disse Alleyn. – Não se

vai sentar, capitão Withers?– Não, obrigado. O que quer saber

sobre esta madrugada?– A que horas saiu de Marsdon

House?– Depois de o baile ter terminado.– Foi-se embora sozinho?Withers atirou o cigarro com grande

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precisão para um cesto de papéis delatão.

– Sim – disse ele.– Consegue lembrar-se de quem

estava no vestíbulo quando se foiembora?

– O quê? Não tenho a certeza. Ah,sim. Cruzei-me com o Dan Davidson.Conhece-o. O charlatão da moda.

– Sir Daniel Davidson é seu amigo?– Não. Conheço-o, é tudo.– Reparou em Lord Robert no

vestíbulo, quando saiu?– Não posso dizer que tenha

reparado.– Saiu sozinho. Apanhou um táxi?– Não. Tinha o meu próprio carro.

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Estava estacionado em Belgrave Road.– Então virou para a esquerda,

quando saiu de Marsdon House. Isso –disse Alleyn – é o que o assassino, seé que existe, como o senhor afirma, umassassino, deve ter feito.

– É melhor escolher as suas palavrascom um pouco mais de cuidado, nãoacha?– perguntou o capitão Withers.

– Não, não acho. Na minha opinião,o meu comentário enquadra-se bemdentro das regras. O senhor viu algumhomem solitário em traje de cerimóniaquando percorreu a distância deMarsdon House até Belgrave Road?Ultrapassou ou cruzou-se com algumapessoa assim?

Withers sentou-se na beira da mesa e

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abanou o pé. A gordura nas coxas eravisível através das calças de xadrez.

– Pode ter acontecido. Não melembro. Havia nevoeiro.

– Para onde é que foi no seu carro?– Para o Matador.– O clube noturno em Sampler

Street?– Isso mesmo.– Encontrou lá alguém?– Cerca de cento e cinquenta

pessoas.– Eu quero dizer se marcou lá um

encontro com uma pessoa? – disseAlleyn com uma cortesia perfeita.

– Sim.– Posso saber o nome dela?

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– Não.– Vou ter então de descobrir através

da rotina habitual – murmurou Alleyn.– Tome nota disso, sim, Fox?

– Muito bem, Mr. Alleyn –respondeu Fox.

– Pode indicar uma testemunha paraapoiar a sua afirmação de que sedirigiu para o Matador depois de sairde Marsdon House?

O pé que balançava imobilizou-se derepente. Withers esperou um momentoe então disse:

– Não.– Talvez a sua parceira tivesse

esperado no seu carro, capitãoWithers. Tem a certeza de que não a

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levou lá? Lembre-se que há umpaquete no Matador.

– Ai sim?– Então?– Está bem– disse Withers. – Eu

levei a minha parceira ao Matador,mas não lhe vou dar o nome dela.

– Porque não?– O senhor parece-me ser um

cavalheiro. Parte da nova geração daScotland Yard, não é? Seria de pensarque entendesse.

– O senhor é muito bom – disseAlleyn –, mas receio que estejaenganado. Teremos de usar outrosmétodos, mas vamos descobrir o nomeda sua parceira. Alguma vez aprendeuluta-livre, capitão Withers?

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– O quê? O que diabo tem isso a vercom o assunto?

– Peço-lhe que me responda.– Nunca me dediquei a isso. Já

estive no Oriente.– Ju-jitsu?– Sim.– Há algum golpe em que se use o

lado da mão para derrubar um homem?Num dos pontos vulneráveis ou lácomo se chamam? Tal como atêmpora?

– Não faço a mínima ideia.– Tem conhecimentos médicos?– Não.– Vejo alguns livros de Medicina ali

ao lado da cama.

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– Não me pertencem.– Pertencem a Mr. Donald Potter?– Sim, é verdade.– Ele está a viver aqui?– O senhor falou com ele, não falou?

Deve ser muito mau detetive, se nãodescobriu isso.

– Considera que tem uma forteinfluência sobre Mr. Potter?

– Não sou ama seca!– Prefere esfolar cordeiros, talvez?– Isso é uma piada? – perguntou

Withers.– Só se for uma piada sem graça.

Capitão Withers, recorda-se do casoBouchier-Watson, um caso de tráficode drogas de 1924?

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– Não.– Tem sorte. Na Scotland Yard

temos boa memória. Lembrei-me dessecaso esta manhã, ao ler algumasanotações nos papéis privados de LordRobert Gospell. Ele refere o caso emquestão juntamente com informaçãorecente que recolheu acerca de umclube de jogo ilícito em Leatherhead.

As mãos brancas e rudes fizeram ummovimento convulsivo que foiimediatamente controlado. Alleynlevantou-se.

– Há apenas mais uma questão –continuou. – Parece-me que o seutelefone está desligado. O inspetor Foxvai corrigir isso. Fox, não se importa

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de ir ao posto dos correios que fica naesquina? Espere um segundo.

Alleyn tirou o seu bloco de notas eescreveu: «Ponha o Thompson a seguiro W. imediatamente» e mostrou obloco a Fox.

– Dê-lhes esta mensagem, por favor,e trate de que a ligação telefónica docapitão Withers seja restabelecidaimediatamente. Assim que estiverfeito, ligue-me para cá. Qual é onúmero?

– Sloane 8405– disse Withers.– Certo. Depois vou ter consigo,

Fox.– Muito bem, senhor– disse Fox. –

Bom dia, senhor.Withers não respondeu. Fox partiu.

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– Quando o telefone estiver afuncionar novamente – disse Alleyn –,gostaria que telefonasse a Mr. DonaldPotter para sugerir que, uma vez que amãe dele está muito abalada, o senhoracha que seria bom se ele ficasse comela por agora. Irá enviar os seuspertences para Cheyne Walk num táxi.

– Está a ameaçar-me?– Não. Estou a avisá-lo. O senhor

está em terreno bastante incerto nestemomento, sabe?

Alleyn dirigiu-se ao divã e examinouos livros.

– Medicina Legal, de Taylor –murmurou. – Mr. Potter está a pensartornar-se médico-legista?

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– Não faço a mínima ideia.Alleyn folheou as páginas de um

grande volume azul.– Aqui temos todas as informações

relativas à asfixia. Muito interessante.Posso levar este livro emprestado?Depois devolvo-o a Mr. Potter.

– Não vejo nenhum inconveniente.Não tem nada a ver comigo.

– Esplêndido. Vê alguminconveniente em eu deitar uma vistade olhos às suas roupas de cerimónia?

– Nenhum– disse Withers.– Muito obrigado. Se não se

importar de mas mostrar.Withers entrou no quarto e Alleyn

seguiu-o. Enquanto Withers abria o

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guarda-roupa e as gavetas, Alleyndeitou uma rápida olhadela em redordo quarto. Além da fotografia, que erafrancamente infame, o único ponto deinteresse era uma fileira de romancesproibidos com uma sobrecapa,bastante indecentes e sem qualquermérito literário.

Withers atirou com uma casaca, umcolete branco e um par de calças paracima da cama. Alleyn examinou-oscom muito cuidado, cheirou o casaco evirou os bolsos, que estavam vazios.

– Tinha uma cigarreira? – perguntou.– Sim.– Posso vê-la?– Está na sala ao lado.Withers foi para a sala de estar.

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Alleyn, com a rapidez de um gato,espreitou debaixo da cama e abriu aporta de um armário.

O capitão mostrou-lhe uma pequenacigarreira de prata lisa.

– Esta é a única que possui?– É.Alleyn abriu-a. No interior da tampa

estava inscrito: «Maurice de Estelle.»Devolveu-a e tirou outra do bolso.

– Quero que olhe para estacigarreira com atenção, por favor, eme diga se já a tinha visto antes.

Withers pegou nela. Era fina,banhada a ouro, sem inscrições, mascom um pequeno brasão num canto.

– Abra-a, por favor.

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Withers abriu-a.– Conhece?– Não.– Não reconhece o brasão por

acaso?– Não.– Não é o brasão de Mr. Donald

Potter, por exemplo?Withers fez um movimento rápido,

abriu a boca, fechou-a e disse:– Não é dele. Eu vi o brasão dele.

Está nos botões de punho. Andamalgures por aí.

– Posso vê-los?– disse Alleyn,pegando na cigarreira.

Withers caminhou até ao toucador.Alleyn envolveu rapidamente a

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cigarreira no seu lenço de seda emeteu-a no bolso.

– Aqui estão – disse Withers.Alleyn inspecionou solenemente os

botões de punho de Donald edevolveu-os.

O telefone tocou na sala ao lado.– Atenda, por favor– disse Alleyn.Withers entrou na sala de estar.

Alleyn tirou rapidamente a sobrecapade um dos romances proibidos emeteu-a no bolso do casaco com toda acalma. Depois seguiu Withers.

– É para si – disse Withers –, se foro Alleyn.

– Obrigado.Era Fox, avisando numa voz

extremamente baixa que Thompson

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estava já no seu posto.– Esplêndido – disse Alleyn. – O

capitão Withers queria usá-loimediatamente.

Desligou o telefone e virou-se paraWithers.

– Agora, por favor– disse ele –, nãose importa de telefonar a Mr. Potter?Gostaria que não lhe dissesse que asugestão foi minha. Seria mais bemrecebida se viesse de si.

Withers discou o número com toda amá vontade que conseguiu reunir.Mandou chamar Donald, cuja vozchegou com um estalido audível.

– Estou.– Olá, Don, é o Wits.

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– Oh, meu Deus, Wits, estouterrivelmente preocupado, eu…

– É melhor não falares sobre as tuaspreocupações ao telefone. Liguei paradizer que pensei que seria melhor seficasses com a tua mãe durante algumtempo. Ela vai querer que estejaspresente por causa de todo esteproblema. Vou mandar-te as tuascoisas.

– Sim, mas ouve, Wits. Sobre a casade…

– Fica onde estás – disse o capitãoWithers e desligou.

– Obrigado– disse Alleyn. – Serveperfeitamente. Que altura tem, capitãoWithers?

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– Um metro e setenta e oito, demeias.

– Quase a mesma altura de LordRobert – disse Alleyn, observando-o.

Withers olhou fixamente para oinspetor-chefe.

– Suponho que deve haver algumsentido em algumas das coisas que diz– retorquiu.

– Espero que sim. Conseguelembrar-se do que Lord Robert estavaa dizer ao telefone quando entrou noquarto à uma hora da manhã?

– Que quarto?– Em Marsdon House.– Está a exagerar. Eu nunca o ouvi

falar a nenhum telefone.

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– Muito bem, então– disse Alleyn. –Estava no patamar de cima, perto doquarto do telefone por volta da umahora?

– Como diabo é que eu vou saber?Estive lá em cima durante um bombocado.

– Sozinho?– Não. Estive lá com o Don algures

durante a altura do jantar. Estivemosna primeira sala de estar. O velhoCarrados também lá estava.

– Ouviu alguém a telefonar?– Por acaso acho que sim, agora que

fala nisso.– Ah, bom, isso é o melhor que

podemos fazer de momento – disse

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Alleyn, pegando na Medicina Legal,de Taylor. – Já agora, veria alguminconveniente em revistarmos estesaposentos? Só para limpar o seu bomnome, sabe.

– Pode passar tudo ao microscópio,se quiser.

– Compreendo. Muito obrigado.Noutra altura, talvez. Bom dia.

Aproximou-se da porta quandoWithers disse:

– Ouça! Pare!– Sim?Alleyn virou-se e viu um dedo

branco e chato apontado ao seu rosto.– Se pensa – disse o capitão Withers

– que eu tive alguma coisa a ver com amorte desse palhaço, está a perder o

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seu tempo. Não tive nada a ver comisso. Não sou um assassino e se fosse,iria atrás de caça grossa. Não deporcos domésticos.

– Tem sorte – respondeu Alleyn. –No meu trabalho, muitas vezes temosde caçar a presa mais desagradável.Uma questão de rotina. Bom dia.

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CAPÍTULO 12

DECLARAÇÕES DE UM CRIADO

Na rua, Alleyn encontrou o sargento-detetive Thompson, que não se pareciacom um sargento-detetive. Como asjanelas do capitão Withersproporcionavam uma vistadesimpedida de Sling Street, Alleynnão parou para falar com Thompson,mas comentou para o ar enquantopassavam um pelo outro:

– Não o perca de vista.Fox esperava do lado de fora da

estação de correios.– Que tipo desagradável – comentou

quando começaram a andar lado a

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lado.– Quem? O Withers? Acredito em si,

meu velho…– Massacrou-o bem, Mr. Alleyn.– Eu estava numa enrascada – disse

Alleyn. – Gostaria de fazer uma rusganaquele lugar em Leatherhead sem lhedar qualquer aviso, mas o desgraçadodo Donald de certeza que lhe vai dizero que nos contou e o Withers vaiencerrar as suas atividades de jogo. Omelhor que podemos esperar nesseaspeto é que o nosso homem encontrealgo de conclusivo, se entrar na casa.É melhor apanharmos um táxi para ointerrogatório com o Dimitri. A quehoras é que ele tem de estar na Yard?

– Ao meio-dia.

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– São onze e quarenta e cinco. Jádevíamos ter saído. Vamos.

Apanharam um táxi.– E o Withers? – perguntou Fox,

olhando solenemente para as costas domotorista.

– Como suspeito provável? Ele temquase a altura exata. Suficientementebom para enganar o motorista, de capae chapéu. A propósito, não existenenhum sítio no quarto onde elepudesse ter guardado a capa e ochapéu. Eu vi dentro do guarda-roupa eespreitei debaixo da cama e noarmário enquanto ele estava aotelefone. De qualquer forma, o Withersdisse que eu podia examinar o

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apartamento ao microscópio sequisesse e estava a dizer-me para abriro jogo. Se ele tem alguma coisa aesconder é na casa em Leatherhead.

– O motivo não é lá grande coisa –disse Fox.

– Qual é o motivo?– Ele sabia que Lord Robert o

reconhecera e pensava que ele estavano seu encalço. Quer receber odinheiro e sabe que o jovem Potter é oherdeiro.

– Isso são dois dos seus motivos.Mas e então? Raios – disse Alleyn –,quase uma citação! O Bunchy alertou-me contra elas. Associar-se com aaristocracia, é o que dá. Há umacomplicação adicional. Mrs. Halcut-

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Hackett pode pensar que o Bunchy eraum chantagista. Pelas anotações quefez, o Bunchy parece ter dado essaimpressão. Ele estava perto delaquando a carteira foi levada e andousempre colado a ela. Se o Withers estáa ter um caso com a mulher, elaprovavelmente confidenciou-lhe achantagem. O Withers é possivelmenteo tema da chantagem Halcut-Hackett. Acarta a que o chantagista deitou a mãopode ser uma carta de Mrs. H-H para oWithers ou o contrário. Se ela lhedisse que pensou que Lord Robert erao chantagista…

– Isso são três dos seus motivos –disse Fox.

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– Pode dizer isso. Por outro lado, ochantagista pode ser o Withers. Estábem de acordo com a suapersonalidade.

– O melhor motivo de todos – disseFox –, se ele achava que Lord Robert otinha topado.

– Como você gosta de falar, seuvelho diabo. Bem, se quisermos,podemos detê-lo por ter novelasobscenas naquele apartamentohorrível. Olhe para isto.

Alleyn puxou a capa do livro do seubolso. Uma imagem em coresprimárias de uma jovem horrível, semroupas, um cavalheiro muito corado euma prostituta à espreita. Intitulava-se:

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As confissões de uma alcoviteira.– Santo Deus! –disse Fox. – Não o

devia ter trazido.– Você prende-se com cada

pormenor. – Alleyn esboçou umaexpressão aborrecida. – Não o imaginaa devorar isto nalgum buraco da Côted’Azur? Tenho as desagradáveisimpressões digitais dele na minhacigarreira. Vamos ver se ele andou aler o «Taylor» do Donald Potter. Emespecial as partes que lidam comasfixia. Imagino, Fox, que um capitãoWithers que não tinha conhecimentosna arte de asfixia teria cometido o errohabitual de usar demasiada força.Vamos ter de ver se ele deixou algumaimpressão digital na sala do telefone

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em Marsdon House.– A interrupção – disse Fox,

pensativo. – A meu ver, temos dechegar à identidade do indivíduo queentrou enquanto Lord Robert falavaconsigo ao telefone. Se a pessoa éinocente, bem, não haverá dificuldade.

– E vice-versa. Tentei levar oWithers a admitir. Estava certo de queele era o homem.

– E resultou?– Um fracasso completo. Ele nem

piscou os olhos. Pareceu genuinamentesurpreendido.

– Pode ter sido o Dimitri. Pelomenos sabemos que o Dimitri recolheuo suborno. O que queremos saber é se

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ele trabalha sozinho ou tem cúmplices– disse Fox.

– Temos tempo suficiente. O que nostraz de volta à frase inacabada doBunchy. «E ele está a trabalharcom…» Com quem? Ou será com oquê? Olá, chegámos.

O táxi parou em frente a um velho erespeitável prédio de apartamentos emCromwell Road. No passeio opostoestava um jovem a consertar o assentode uma cadeira de vime.

– Aquele é o senhor James D’ArcyCarewe, agente de investigação – disseAlleyn.

– O quê? Ele! – exclamou Fox numavoz escandalizada. – Pois é. Para quese foi embonecar daquela maneira?

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– Está a investigar – explicouAlleyn. – O pai dele é vigário e eleaprendeu a trabalhar o vime noInstituto das Mulheres ou algo assim.Andava ansioso para se disfarçardesde que fez o juramento.

– Que jovem idiota – disse Fox.– É um rapaz brilhante, sabe.– Porque é que ele ainda ali está,

afinal?– O Dimitri ainda não saiu,

evidentemente. Espere um momento.Alleyn fez deslizar a divisória de

vidro do táxi e dirigiu-se ao motorista:– Somos agentes da polícia. Daqui a

pouco, um homem vai sair desta casa enecessitar de um táxi. Deixe-se ficar à

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espera dele. Provavelmente vai pedir-lhe que o leve à Scotland Yard. Se elelhe der qualquer outra morada, queroque a escreva rapidamente neste cartãoquando ele estiver a entrar no táxi.Deixe cair o cartão pela fenda daalavanca no chão. Aqui está um lápis.Pode fazer isso?

– Com certeza, chefe – respondeu omotorista.

– Quero que dê a volta com o carro epasse por aquele sujeito que está aconsertar o assento de uma cadeira. Váo mais devagar possível, percorraduzentos metros e deixe-nos sair.Depois espere pelo seu homem. Aquiestá a bandeirada e o resto.

– Obrigado, senhor. Muito bem,

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senhor – disse o motorista.O homem virou-se para a frente,

Alleyn fechou o vidro e, quandopassaram pelo homem que consertavaa cadeira de vime, Alleyn inclinou-se edisse:

– Carewe! Venha ter connosco.O homem não prestou atenção.– Eu disse que ele não é tão parvo

quanto parece – disse Alleyn. – Aquiestamos.

Saíram do veículo. O táxi virou maisuma vez. Ouviram a voz rouca domotorista: «Táxi, senhor?», depois otáxi parou, ouviram a porta bater e ocarro arrancar.

– Ele não deixou cair o cartão –

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disse Alleyn, olhando para o táxi.Continuaram a subir Cromwell Road.De repente, um grito irrompeu atrásdeles.

– Cadeiras para consertar!Cadeiras para consertar!

– Pronto! – disse Fox, exasperado. –Olhe para ele a chamar a atenção parasi mesmo! É vergonhoso. É o que é.Vergonhoso.

Viraram-se e encontraram o homemdo vime muito perto deles, seguido porlongas fitas de vime.

– Senhor!– disse o jovem do vime,consternado.

– Diga-me – perguntou Alleyn –,porque anda a gritar os seus pregõesao mundo inteiro?

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– Bem, senhor– disse o jovem –, deacordo com as suas instruções, eucontinuei…

– Certo. Mas por esta altura já deviasaber que a arte do disfarce é muitasvezes desnecessária e deve seratingida por meios mais simples doque aqueles que envolvem uma grandeexibição de galhos de salgueiro epernas em estilo cabriolé. Possoperguntar o que teria feito com todaessa parafernália quando começasse acaça ao homem?

– Há uma praça de táxis na esquina,senhor. Se eu assobiasse…

– E uma bonita figura teria feito –disse Fox, indignado –, a assobiar aos

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táxis nesses preparos. Quandoacabasse de se livrar da tralha eentrasse no carro, o homem teriapercorrido metade do caminho sabeDeus para onde. Se esse é o tipo decoisas que lhe ensinam na…

– Sim, tudo bem, Fox – cortouAlleyn apressadamente. – É verdade.Agora, ouça, Carewe, vá-se embora,tire o disfarce e apresente-se na Yard.Pode regressar de metro. Não ponhaesse ar tão miserável ou as velhinhascomeçam a dar-lhe moedas.

Carewe partiu.– Agora, Fox – continuou Alleyn –,

dê-me alguns minutos no apartamentoe, em seguida, telefone como seestivesse na Yard e mantenha o criado

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do Dimitri ao telefone tanto tempoquanto possível. Espero que tenha umalista de nomes e lugares. Diga que oDimitri lhos deu e que será capaz de osconfirmar. De acordo?

– De acordo, Mr. Alleyn.– Pode usar aquela cabine na praça

de táxis. Depois siga para a Yard emantenha o Dimitri a falar até euchegar. Tome as diligênciasnecessárias para que ele seja seguidoquando sair.

Alleyn dirigiu-se ao apartamento deDimitri, situado no rés do chão. Aporta foi aberta por um homem morenoe magro que exalava quintessência decriado pessoal.

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– Mr. Dimitri está? – perguntouAlleyn.

– Monsieur acabou de sair, senhor.Posso ficar com uma mensagem?

– Ele acabou de sair, foi? – disseAlleyn num tom muito agradável. –Que maçada, não o encontrei porpouco. Sabe se ele foi para a ScotlandYard?

O homem hesitou.– Não tenho a certeza, senhor. Julgo

que…– Ouça – disse Alleyn –, sou o

inspetor-chefe Alleyn. Aqui está o meucartão. Eu andava por estes lados epensei em poupar Mr. Dimitri a umadeslocação. Já que estou aqui posso

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muito bem pedir-lhe que me esclareçaum ou dois pontos. Importa-se?

– Por favor, senhor! De todo, mas éum pouco difícil…

– É sim, aqui fora. Posso entrar? –perguntou Alleyn, e entrou sem esperarpela resposta.

Deu consigo numa sala de estar quetinha um ar um pouco formal, mas semnada de especial. O criado seguiu-o eficou a olhar para as próprias mãos,inquieto.

– Já deve ter adivinhado – começouAlleyn – que estou aqui por motivosrelacionados com a morte de LordRobert Gospell.

– Sim, senhor.– A primeira coisa que tenho a dizer

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é que gostaria que usasse de grandediscrição em discutir este assunto. Naverdade, seria melhor se não odiscutisse de todo, com ninguém.Exceto, é claro, com o próprio Mr.Dimitri.

O homem pareceu aliviado.– Mas entende-se perfeitamente,

senhor. Monsieur já me alertou paraisso mesmo. Serei muito discreto.

– Esplêndido. Sentimos que é nossodever proteger Mr. Dimitri e qualqueroutra pessoa de posição danotoriedade desagradável queinfelizmente acompanhaacontecimentos como estes.

– Sim, com certeza, senhor.

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Monsieur foi bastante explícito.– Tenho a certeza que sim. Também

entende – prosseguiu Alleyn – que énecessário ter diante de nós um relatoclaro dos movimentos de muitaspessoas. Qual é o seu nome?

– François, senhor, François Dupont.– Esteve em Marsdon House ontem à

noite?– Sim, senhor. Por um acaso

invulgar, estive lá.– Como é que isso aconteceu?– Um membro importante da nossa

equipa faltou a M. Dimitri ontem àtarde. Parece que sofreu umaapendicite. M. Dimitri não foi capaz deo substituir de forma satisfatória emtão curto espaço de tempo e tomei o

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seu lugar.– Isso é invulgar?– Sim, senhor. Eu sou o criado

pessoal de M. Dimitri.– Que posto ocupou em Marsdon

House?Um telefone tocou no corredor da

entrada.– Desculpe-me, senhor – disse o

criado. – O telefone.– Está tudo bem– disse Alleyn.O homem saiu, fechando a porta

suavemente atrás de si.Alleyn correu para um quarto

adjacente, deixando a portaentreaberta. Abriu armários embutidos,passou as mãos entre os fatos

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pendurados, entre camisascuidadosamente empilhadas e peças deroupa interior, sem perturbar nada,explorando tudo. Agradecendo às suasestrelas que as gavetas deslizassemfacilmente, moveu-se com economia,rapidez e extrema precisão. O quartoao lado encontrava-se inocentementedespido. O criado de Dimitri cuidavabem dele. Não havia esconderijo parauma capa de pano volumosa. Tudoestava decentemente ordenado. Alleynvoltou em silêncio para a sala de estar.Podia ouvir a voz do criado:

– Estou? Estou? Sim, senhor. Aindaestou aqui. Sim, senhor, é totalmentecorreto. É como diz monsieur Dimitri,senhor. Voltámos juntos às três e meia,

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num táxi. Às três e meia. Não, senhor,não. Às três e meia. Lamento, senhor,vou repetir. Às três e meia voltámos…

O aparador continha apenas garrafase copos, as estantes apenas livros. Asecretária estava trancada, mas erapequena. Dimitri e o criado eramhomens bem organizados, com poucasposses. Alleyn abriu o último armário.Continha duas malas. Inclinou-ascuidadosamente. Nenhum som. Abriu-as. Estavam vazias. Alleyn fechou aporta do armário com cuidado e voltoupara o meio da sala de estar onde sedeixou ficar com a cabeça inclinada, aouvir o criado de Dimitri cuja voztinha subido para um falsete doloroso.

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– Mas estou a dizer-lhe. Permita-mefalar. O seu colega está aqui. Ele estáprestes a fazer-me todas essasperguntas. Deu-me o cartão dele. É oinspetor-chefe All-eyne. Ah, monDieu! Mon Dieu!

Alleyn entrou no corredor.Encontrou François com o pescoçoenterrado nos ombros e a mãodesocupada esboçando gestosdesesperados no ar.

– O que se passa? – perguntouAlleyn. – É para mim?

– Aqui está M. l’Inspecteur! – gritouFrançois para o telefone. – Tenha abondade…

Alleyn pegou no auscultador.

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– Estou!– Estou sim! – A voz de Fox

continha laivos de exasperação.– É você, Fox? Qual é o problema?– Nenhum, espero, Mr. Alleyn–

disse Fox, voltando ao seu murmúrioindistinto.

– Fala Alleyn. Houve um ligeiromal-entendido. Eu desencontrei-me deMr. Dimitri, mas vou regressar o maisrápido possível. Pode pedir-lhe paraesperar? Peça desculpas por mim.

– Espero que tenha tido tempo. Vouregressar à Yard agora.

– Muito bem. Isso está perfeitamentebem – disse Alleyn e desligou.

Voltou para a sala de estar, seguido

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por François.– Um pequeno mal-entendido –

explicou Alleyn suavemente. – O meucolega não estava a percebê-lo muitobem. Ele é, infelizmente, bastantesurdo e está prestes a reformar-se.

François murmurou algo indistinto.– Para retomar a nossa conversa –

disse Alleyn –, ia dizer-me que postoocupou na noite passada.

– Fiquei no último patamar, senhor.A galeria acima do salão de baile. Asminhas funções eram manter oscinzeiros vazios e atender aos desejosdos convidados que ficaram fora dasdanças neste andar.

– Que divisões há nessa galeria?– No cimo da escada, senhor,

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encontra-se uma porta de baeta verdeque leva aos quartos dos empregados,às escadas de serviço e assim pordiante. Ao lado dessa porta há umquarto que ontem à noite foi utilizadocomo sala de estar. A seguir existeuma casa de banho, um quarto e umacasa de banho de serviço que ontem ànoite foi destinada às senhoras. No fimda galeria, existe um boudoir verdetambém usado como sala de estar parao baile.

– Havia um telefone em qualqueruma dessas divisões?

– No boudoir verde, senhor. Foiutilizado várias vezes durante a noite.

– Você é uma excelente testemunha,

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François. Congratulo-o. Agora diga-me. Você foi colocado nesse patamar.Lembra-se dos nomes das pessoas queusaram o telefone?

François beliscou o lábio inferior.– O telefone foi usado por Lady

Jennifer Trueman para perguntar pelafilha, que está doente. Sua senhoriapediu-me para obter o número. Foiusado por um jovem cavalheiro quetelefonou para um número interurbanoe disse que não voltaria para o campo.No início da noite foi atendido por SirDaniel Davidson, que, acho, é ummédico. Ele falou sobre um pacienteque fez uma operação. Foi usadotambém, senhor, por Lord RobertGospell.

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Alleyn esperou um momento. Comuma espécie de surpresa, percebeu queo seu coração estava acelerado.

– Conseguiu ouvir o que Lord Robertdisse?

– Não, senhor.– Notou se alguém entrou no quarto

enquanto Lord Robert estava aotelefone?

– Não, senhor. Imediatamente apósLord Robert entrar nesse quarto, fuichamado por Sir Herbert Carrados quesaiu da outra sala de estar e me falousobre a falta de fósforos. Sir Herbertestava irritado. Mandou-me a essa salapara eu próprio ver e ordenou-me quefosse buscar mais. Não me pareceu que

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houvesse falta de fósforos, mas não lhodisse, claro. Fui buscar mais ao andarde baixo. Quando voltei, fui para oquarto do telefone e encontrei-o vazio.Também limpei o cinzeiro e coloqueifósforos no quarto do telefone.

Alleyn suspirou.– Sim, estou a ver. Não tenho

nenhuma dúvida de que fez um bomtrabalho. Encontrou alguma ponta decharuto no quarto do telefone? É capazde não se lembrar, claro.

– Não, senhor.– Não. François, quem estava na

outra sala de estar e quem estava nopatamar antes de Lord Roberttelefonar? Antes de Sir HerbertCarrados o mandar sair dali. Consegue

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lembrar-se?– Vou tentar, senhor. Havia dois

cavalheiros que também me mandaramsair dali.

– O quê?– Quero dizer, senhor, que um deles

me pediu para ir buscar dois whiskiescom soda. Isso não é de todo umpedido habitual naquelascircunstâncias. Nem sequer é comme ilfaut num baile daquele tipo, onde háchampanhe no buffet e também whisky,pedir bebidas como se fosse um hotel.Fiquei com a impressão de que os doiscavalheiros queriam ficar sozinhos nopatamar. Fui buscar as bebidas, usandoas escadas de serviço. Quando voltei,

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entreguei-lhas. Naquele momento,senhor, Lord Robert Gospell tinhaacabado de subir as escadas e, quandoo viram, esses dois cavalheirosmudaram-se para a primeira sala deestar, que estava desocupada.

– Quer dizer que eles pareciamevitá-lo?

– Fiquei com a impressão, senhor,de que aqueles cavalheiros queriamficar sozinhos. É por isso que eu melembro deles.

– E quais eram os nomes deles?– Não sei.– Pode descrevê-los?– Um, senhor, era um homem talvez

de quarenta e cinco ou cinquenta anosde idade. Era um homem grande com

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um rosto vermelho e pescoço grosso.Tinha uma voz antipática. O outro eraum jovem, moreno, bastante nervoso.Reparei que ele dançou várias vezescom Miss Bridget O’Brien.

– Obrigado – disse Alleyn. – Isso éexcelente. Havia outros?

– Não me lembro de mais ninguém,senhor. Espere! Havia alguém queesteve lá por algum tempo.

François colocou o primeiro dedo noqueixo como uma espécie de leiteirano masculino e olhou para o teto.

– Tiens! – exclamou. – Quempoderia ter sido? Alors, eu sei. Nãotem qualquer importância, senhor. Eraa pequena mademoiselle, a secretária,

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que era conhecida por poucos e,portanto, retirava-se muitas vezes paraa galeria. Lembrei-me também de queSir Daniel Davidson, o médico, veiopara cima. Isso foi antes. Antes deLord Robert aparecer. Acho que SirDaniel procurava uma parceira, porqueele entrou e saiu rapidamente de ambosos quartos e procurou pelo patamar.Lembrei-me agora de que perguntoupor Lady Carrados, mas ela tinhadescido alguns minutos mais cedo. Eudisse isso a Sir Daniel e ele voltou lápara baixo.

Alleyn olhou para suas anotações.– Portanto – disse ele. – Estou certo

ao afirmar isto? As pessoas que, tantoquanto sabe, poderiam ter ido ao

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quarto do telefone enquanto LordRobert o estava a usar foram SirHerbert Carrados e os doiscavalheiros a quem você foi buscar owhisky.

– Sim, senhor. E a mademoiselle.Miss Harris é o nome dela. Creio queela entrou na casa de banho dassenhoras ao mesmo tempo que LordRobert entrou no quarto do telefone.Tenho observado que, quando assenhoras não são muito requisitadasnos bailes, entram frequentemente nacasa de banho. É – acrescentouFrançois com um acesso inesperado dehumanidade – uma circunstância que euacho patética.

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– Sim – disse Alleyn. – Muitopatética. Estou correto, então, ao dizerque, antes de Lord Robert ter ido parao quarto do telefone, você foi buscarbebidas para esses dois homens eimediatamente depois ele começou atelefonar. Você foi mandado ao andarde baixo por Sir Herbert Carrados,deixando-o a ele, a Miss Harris epossivelmente outros, de quem você seesqueceu, no patamar, e os doiscavalheiros na outra sala de estar. SirDaniel Davidson tinha descido algunsminutos antes. Lady Carrados desceuantes de Sir Daniel, que estava àprocura dela. Tem a certeza disso?

– Sim, senhor. Lembro-me porque

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depois de sua senhoria ter ido entrei noquarto do telefone e vi que ela tinhadeixado lá a carteira. Monsieur… Mr.Dimitri… apareceu nessa altura, viu-ae disse que iria devolvê-la a suasenhoria. Eu disse-lhe que ela tinha idolá para baixo e ele desceu, acho, pelasescadas de serviço.

– Ele encaixa-se entre LadyCarrados e Sir Daniel. Ele voltou?

– Não, senhor. Creio que jámencionei todos os que estavam nopatamar. Naquele momento, quasetodos os convidados estavam a cear.Mais tarde, naturalmente, muitassenhoras usaram a casa de banho dobengaleiro.

– Compreendo. Agora, quanto ao

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resto da noite, voltou a ver LordRobert?

– Não, senhor. Fiquei no topo dopatamar até os convidados teremsaído, depois peguei numa bandeja elevei-a a monsieur na despensa.

– Isso foi muito depois de o últimoconvidado ter saído?

– Não, senhor. Para ser correto,senhor, creio que ainda havia um oudois convidados no vestíbulo.Monsieur estava no buffet quandodesci.

– Sir Herbert Carrados estava nobuffet?

– Ele saiu quando eu entrei. Foidepois de ele ter saído que monsieur

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pediu a sua pequena ceia.– Quando é que você foi para casa?– Como já expliquei ao seu colega,

às três e meia, com monsieur. Apolícia telefonou para este apartamentoantes de monsieur ter ido para a cama.

– Carregou a bagagem de monsieurDimitri, sem dúvida?

– A bagagem, senhor? Ele não tinhanenhuma bagagem.

– Certo. Acho que é tudo. Foi muitoatencioso e prestativo.

François recebeu o elogio com umacortesia profissional e acompanhouAlleyn à porta.

O inspetor apanhou um táxi. Olhoupara o relógio. Meio-dia e vinte.Esperava que Fox estivesse a manter

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Dimitri ocupado. Dimitri! A menos queFrançois mentisse, parecia que ashipóteses de Dimitri ser o assassinoestavam a diminuir.

– E o pior de tudo é que – murmurouAlleyn, esfregando o nariz – eu achoque o François, raios partam a suavirtude, não disse nada a não ser averdade.

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CAPÍTULO 13

DIMITRI CORTA OS DEDOS

Alleyn encontrou Dimitri fechadocom Fox, no seu gabinete da ScotlandYard. Fox apresentou-os solenemente.

– Este é Mr. Dimitri; inspetor-chefeAlleyn, que é responsável por estecaso.

– Ai sim? – disse Dimitri, curvando-se numa vénia. – Penso que já nosencontrámos antes.

– Acabo de vir do seu apartamento,Mr. Dimitri – disse Alleyn. – Estavanas imediações e tinha esperanças delhe poupar uma deslocação. Noentanto, foi tarde de mais. Falei com o

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seu criado e aventurei-me a fazer-lheuma ou duas perguntas. Ele foi muitoprestável.

Sorriu agradavelmente a Dimitri epensou: «Ele está mal-humorado. Nãotem uma boa cabeça. É tudo demasiadoestreito. Tem mau aspeto. No entanto,não é parvo. Roupas caras, mãosduvidosas, usa muito óleo no cabelo.Mel e flores. Orelhas muito baixas.Não têm lobos. A distância entre osdois olhos é muito pequena, menos deum olho. Imagino que o monóculo sejafalso. Marcas nas narinas. Dentespostiços. Um cavalheiro untuoso.»

– O seu colega já tinha ligado aomeu criado, Mr. Alleyn.

– Sim – disse Fox. – Acabei de

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verificar a que horas Mr. Dimitri saiu.Estava a explicar, senhor, quecompreendemos que Mr. Dimitri nãoqueira vir aqui mais do que pode serevitado.

– Na minha posição, inspetor-chefe,é muito indesejável – disse Dimitri. –Ando a construir o meu negócio há seteanos e é uma empresa especializada.Compreende que eu tenho umaclientela muito boa. Posso até afirmarque é a melhor. É essencial para o meunegócio que os meus clientes tenhamtotal confiança na minha discrição.Mas é essencial! Na minha posição vê-se e ouve-se muita coisa.

– Não tenho dúvidas disso – disse

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Alleyn, olhando fixamente para ele. –Coisas que uma pessoa menos discreta,menos escrupulosa, pode transformarem vantagens.

– Esse é um pensamento terrível, Mr.Alleyn. Não se pode contemplar comserenidade uma ideia tão vil. Masdevo dizer-lhe que na minha empresa éobservada a maior discrição.

– Também na nossa. Não lhe voupedir para repetir quaisquerescândalos, Mr. Dimitri. Vamoslimitar-nos aos factos mais simples. Osseus próprios movimentos, porexemplo.

– Os meus? – perguntou Dimitri,erguendo as sobrancelhas.

– Se não se importar, por favor.

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Estamos ansiosos por obter um poucode informação sobre um pequenoboudoir verde no topo da galeria deMarsdon House. Existe lá um telefone.Conhece o quarto a que me refiro?

– Certamente. – Os olhos astutossemicerraram-se, a boca fechou-senuma linha fina.

– Entrou nesse quarto em qualquermomento da noite?

– Repetidas vezes. É meu deverinspecionar todas as divisõesconstantemente.

– O momento em que estamosinteressados é cerca da uma hora damanhã. A maioria dos convidados deLady Carrados estava a jantar. O

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capitão Maurice Withers e Mr. DonaldPotter encontravam-se nesse patamar.Assim como o seu criado, François.Lembra-se de ir lá acima nessemomento?

Dimitri estendeu as mãos.– É impossível lembrar-me, lamento

muito. – Tirou o monóculo sem aro ecomeçou a virá-lo entre os dedos e opolegar da mão esquerda.

– Deixe-me tentar ajudá-lo. Soubeque a essa hora o senhor devolveu acarteira a Lady Carrados. Um dosconvidados reparou em si. Ondeencontrou essa carteira, Mr. Dimitri?Talvez isto o ajude.

De repente Dimitri colocou as mãosnos bolsos e Alleyn soube que era um

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gesto estranho. Podia ver que a mãoesquerda ainda estava secretamenteocupada com o monóculo.

– Isso está correto. Parece-me que acarteira estava no quarto que o senhormencionou. Eu tenho regras muitoparticulares sobre essas coisas. Osmeus funcionários não podem tocar emnenhuma das carteiras que sãodeixadas nos quartos. É incrível comomuitas senhoras são descuidadas comas suas carteiras, Mr. Alleyn. Façoquestão de as devolver pessoalmente.Assim – disse Dimitri virtuosamente –eu sou o único responsável.

– Pode ser uma responsabilidadebastante grave. Portanto, a carteira

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estava no quarto verde. Encontrava-selá alguém?

– O meu criado François. Presumoque não deram por falta de nada nessacarteira? – perguntou Dimitri com umar de alarme. – Pedi a sua senhoriapara ter o cuidado de verificar.

– Sua senhoria não fez nenhumareclamação – disse Alleyn.

– Estou muito aliviado. Por ummomento, interroguei-me.

– A questão é esta – disse Alleyn. –À uma hora da madrugada, LordRobert telefonou desse pequeno quartoverde. O meu informante não é o seucriado, Mr. Dimitri. Quero deixar issobem claro. A essa hora penso que eleestava no andar de baixo. O meu

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informante disse-me que o senhorestava no patamar. Talvez fosse logodepois de ter recolhido a carteira deLady Carrados.

– Se estava, não ouvi nada disso –respondeu Dimitri instantaneamente. –O seu informante deve estar malinformado. Não vi Lord Robert nessagaleria. Não reparei na sua presençaaté ele se ter preparado para irembora.

– O senhor viu-o, então?– Sim. Ele perguntou-me se eu tinha

visto Mrs. Halcut-Hackett. Informeisua senhoria de que ela tinha idoembora.

– Isso foi no vestíbulo?

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– Sim.– Viu Lord Robert sair?Houve uma pausa marcada e, em

seguida, Dimitri disse:– Eu já expliquei isso tudo ao seu

colega. Depois de falar com suasenhoria, fui para o buffet no andartérreo. Fiquei lá durante algum tempo afalar com Sir Herbert Carrados.

Alleyn tirou uma folha de papel doseu bloco de notas e entregou-a aDimitri.

– Esta é a ordem de saída dosúltimos convidados. Obtivemos asnossas informações de várias fontes. Asua entrevista ao início desta manhãajudou muito Mr. Fox na compilação

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desta lista. Importa-se de olhar paraela?

Dimitri examinou a lista.– Está correta, tanto quanto me

lembro, até ao momento em que saí dovestíbulo.

– Acredito que o senhor viu oencontro no fundo das escadas entreLord Robert e o seu sobrinho, Mr.Donald Potter?

– Foi apenas um encontro. Eles nãofalaram.

– Ficou com a impressão de que elesse evitavam um ao outro?

– Mr. Alleyn, já falámos danecessidade de discrição. Claro,compreendo que este é um assuntosério. Sim. Fiquei com essa impressão.

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– Certo. Então, antes de ir para obuffet reparou em Mrs. Halcut-Hackett, no capitão Withers, Mr. Pottere Sir Daniel Davidson a saíremseparadamente e por esta ordem?

– Sim.– Conhece o capitão Withers?– Profissionalmente? Não. Ele não

recebe, imagino.– Quem saiu do buffet primeiro, o

senhor ou Sir Herbert?– Na verdade não me lembro. Não

permaneci muito tempo no buffet.– Aonde é que o senhor foi?– Eu estava cansado. Assegurei-me

de que a minha equipa estava atrabalhar bem e, em seguida, o meu

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criado levou-me uma ceia leve àdespensa que eu tinha reservado.

– Quanto tempo foi isso depois deLord Robert sair?

– Realmente não sei. Não muito.– O François ficou na despensa?– Certamente que não.– Alguém entrou enquanto esteve lá?– Não me lembro.– Se, depois de refletir no assunto,

se recordar de qualquer testemunha doseu solitário jantar iria ajudar-nosmuito no nosso trabalho e livrá-lo demais constrangimentos.

– Não entendo. Está a tentarestabelecer o meu álibi desta formalamentável e angustiante? Certamente éóbvio que eu não poderia ter estado

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num táxi com Lord Robert Gospell eno buffet de Marsdon House ao mesmotempo.

– O que o leva a pensar que estecrime foi cometido durante o curtoespaço de tempo em que o senhoresteve no buffet, Mr. Dimitri?

– Nessa altura ou mais tarde, vai darao mesmo. Apesar de tudo, estoupronto para ajudá-lo, inspetor-chefe.Vou tentar lembrar-me se alguém meviu na despensa.

– Obrigado. Julgo que estevepresente no recital de Bach que oQuarteto Sirmione deu em ConstanceStreet no dia três de junho?

O silêncio que se seguiu à pergunta

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de Alleyn foi tão completo que orápido tiquetaque do seu relógio demesa saiu da obscuridade para oquebrar. Alleyn foi acometido por umaideia fantástica. Havia quatro relógiosnaquela sala: Fox, Dimitri, ele eaquele pequeno batimento mecânico nasecretária.

– Eu assisti ao concerto, sim. Sou umgrande apreciador da música de Bach– disse Dimitri.

– Por acaso reparou em Lord Robertno concerto?

Era como se o relógio que eraDimitri tivesse sido aberto, revelandoo pequeno pulsar febril do seu cérebro.Deveria dizer que sim, deveria dizerque não?

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– Estou a tentar lembrar-me. Achoque me recordo de que sua senhoriaestava presente.

– Tem toda a razão, Mr. Dimitri. Elenão estava muito longe de si.

– Presto pouca atenção ao que merodeia quando ouço música bonita.

– O senhor devolveu a carteira aMrs. Halcut-Hackett?

Dimitri deu um grito agudo. O lápisde Fox derrapou ao longo da página doseu bloco de notas. Dimitri tirou a mãoesquerda do bolso e olhou para osdedos. Três gotas de sangue caíram naperna das calças às riscas.

– Tem sangue na mão, Mr. Dimitri –disse Alleyn.

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– Parti a lente – disse Dimitri.– É um corte profundo? Fox, a minha

bolsa está ali no armário. Acho que hálá algumas compressas e ligaduras.

– Não– disse Dimitri –, não é nada.– Passou o lenço de seda fina à voltados dedos e cobriu-os com a mãodireita. Tinha os lábios exangues.

– Ver sangue é-me muitodesagradável – disse.

– Insisto que me permita pôr umacompressa na sua mão – disse Alleyn.Dimitri não respondeu. Fox trouxetintura de iodo, compressas eligaduras. Alleyn desembrulhou a mão.Dois dos dedos haviam sofrido umcorte e sangravam livremente. Dimitri

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fechou os olhos enquanto Alleyn lheaplicava o penso. A mão estava geladae húmida.

– Pronto – disse Alleyn. – E o seulenço para esconder as manchas desangue que tanto o perturbam. Estámuito pálido, Mr. Dimitri. Quer umpouco de conhaque?

– Não. Não, obrigado.– Está recuperado?– Não me sinto bem. Devo pedir-lhe

que me dê licença.– Com certeza. Quando tiver

respondido à minha última pergunta.Alguma vez devolveu a carteira deMrs. Halcut-Hackett?

– Eu não o entendo. Falámos sobre abolsa de Lady Carrados.

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– Agora falamos da carteira de Mrs.Halcut-Hackett que tirou do sofá noConcerto Sirmione. O senhor nega quetenha pegado nela?

– Recuso-me a prolongar esteinterrogatório. Não vou responder amais perguntas sem o conselho do meuadvogado. Isso é definitivo.

Dimitri levantou-se. Alleyn e Foximitaram-no.

– Muito bem – disse Alleyn. – Vouter de o ver novamente, Mr. Dimitri, enovamente, e atrevo-me a dizer denovo. Fox, acompanha Mr. Dimitri lá abaixo?

Quando a porta se fechou Alleynfalou ao telefone.

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– O meu homem está a sair.Provavelmente vai apanhar um táxi.Quem vai segui-lo?

– O Anderson vai render o Carewe,senhor.

– Peça-lhe para nos informar quandotiver oportunidade, mas que não corrademasiados riscos. Isto é importante.

– Certo, Mr. Alleyn.Alleyn esperou pelo regresso de

Fox. Fox entrou a sorrir.– Ele está muito abalado, Mr.

Alleyn. Não sabe se de que terra é.– Temos um longo caminho a

percorrer até o prendermos. Como éque vamos persuadir mulheres comoMrs. Halcut-Hackett a denunciarem os

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seus chantagistas? Nunca, a não serque…

– A não ser o quê?– A menos que a alternativa seja

ainda mais aterrorizadora. Fox, achaplausível que o Dimitri tenha pedidoesse disparate de caviar e champanhe àcusta de Sir Herbert, que o Françoistenha saído da despensa e que oDimitri tenha arranjadoapressadamente um chapéu de seda eum casaco, saído a correr pela portados fundos a tempo de apanhar LordRobert no nevoeiro, pedindo-lheabsurdamente uma boleia edesaparecendo no carro? Consegueengolir esta improbabilidade dotamanho de um camelo e, nesse caso,

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consegue abrir as suas mandíbulaspesadas e maciças ainda mais e engolira ideia do Dimitri concretizar o seuhomicídio e subsequente embuste,regressando a Marsdon House, einstalando-se para o jantar, sem queninguém se apercebesse de nada forado vulgar?

– Quando coloca isso dessa forma,senhor, soa estranho. Mas não sabemosque é impossível.

– Pois não. Ele possui a altura certa.Tenho um pressentimento forte, Fox, deque o Dimitri não está metido nestejogo de chantagem sozinho. Nós nãoestamos autorizados a ter sentimentosfortes, por isso não faça caso. Se

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houver outro canalha metido nisto, elesvão tentar entrar em contacto um com ooutro. Teremos de fazer algo acercadisso. Que horas são? Uma hora, eutenho de me encontrar com Sir Danielàs duas e antes vou ter de falar com osubcomissário. Vem comigo?

– Vou atualizar os registos primeiro.Devemos estar a receber notícias deLeatherhead a qualquer momento. Váalmoçar, Mr. Alleyn. Quando foi aúltima vez que comeu?

– Não sei. Ouça…– Tomou o pequeno-almoço? –

perguntou Fox, colocando os óculos eabrindo a pasta.

– Meu Deus, Fox, eu não sou umaflor de estufa.

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– Este não é um caso comum para si,senhor. É uma questão pessoal, diga oque disser, e não vai conseguir nada debom se tentar trabalhar nele numestado de ansiedade.

Fox olhou para Alleyn por cima dosóculos, molhou o polegar e virou umapágina.

– Oh, meu Deus – disse Alleyn –,assim que as rodas começam a girar, émais fácil esquecer o outro lado. Se aomenos eu não o tivesse visto com tantafrequência. Ele parecia uma criança,Fox. Uma criança.

– Sim – disse Fox. –É um casodesagradável, mesmo pondo ossentimentos pessoais de lado. Se for

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ver o subcomissário agora, Mr. Alleyn,posso acompanhá-lo no almoço antesde irmos falar com Sir DanielDavidson.

– Está bem, maldito seja. Encontre-se comigo lá em baixo dentro de umquarto de hora.

– Obrigado, senhor – disse Fox. –Fico contente.

Cerca de vinte minutos depois, elepresidiu ao almoço de Alleyn com todaa superioridade tranquila de uma ama.Chegaram a St. Luke’s Chambers, emHarley Street, às duas horas em ponto.Sentaram-se numa sala de espera cheiade jornais e revistas. Fox leusolenemente a Punch, enquanto Alleyn,com todo o ar da boa educação atenta,

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examinou uma brochura apelando àdoação de roupas e dinheiro para aMissão Médica na China Central.Passados dois minutos, a secretáriadisse-lhes que Sir Daniel iria recebê-los e levou-os para o consultório.

– Os senhores da Scotland Yard, SirDaniel. Mr. Alleyn e Mr. Fox.

Davidson, que aparentementeestivera a olhar pela janela,aproximou-se e apertou-lhes a mão.

– É muito bom que tenham vindo atéaqui – disse ele. – Ao telefone disseque estava pronto para prestardepoimento na Scotland Yard quandoachassem adequado. Sentem-se.

Sentaram-se. Alleyn olhou em volta

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da sala e o que viu agradou-lhe. Erauma sala encantadora, com paredesverde-maçã, uma lareira estilo Adam ecortinas com estrelas prateadas. Porcima da lareira pendia uma paisagemensolarada da autoria de um pintorfamoso. Um tapete de oração de sedaque não teria desonrado as paredes deum colecionador estava prosaicamentecolocado diante da lareira. A mesa deSir Daniel era uma espineta adaptada,o tinteiro lembrava a época em que opapel espesso era inscrito com frasesaltissonantes numa caligrafia feita comuma pena. Ao sentar-se à secretária SirDaniel via diante de si uma peça decerâmica chinesa, um pequeno cavalode um rosa avermelhado. Um

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consultório bonito e caro, apregoandoem tons tortuosos a gratidão dospacientes ricos. De entre estes, o maisexaltado, se não o mais rico, olhavacom uma magnificência indiferente apartir de uma moldura de prata.

O próprio Sir Daniel, aprumado, emrequintadas roupas de Londres e umagravata um pouco extravagante, comuma aura um pouco exótica sobre a suacabeça escura, parecia que nãopoderia ter outro cenário senão aquele.Sentou-se à secretária, juntou as mãose contemplou Alleyn com francacuriosidade.

– É o Roderick Alleyn? – disse.– Sim.

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– Eu li o seu livro.– Interessa-se por criminologia? –

perguntou Alleyn com um sorriso.– Imenso! Quase não me atrevo a

dizer-lhe isto, porque deve ser muitasvezes vítima do entusiasmo dos tolos.Eu, também! «Oh, Sir Daniel, deve sermaravilhoso ser capaz de olhar para asmentes das pessoas, como o senhorfaz.» As mentes! Meu Deus! Já bastaos estômagos. Mas muitas vezes pensoseriamente que teria gostado de seguirMedicina Legal.

– Perdemos uma grande figura, então– disse Alleyn.

– Isso é muito simpático da suaparte. Mas receio que não seja

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verdade. Sou muito impaciente e emgeral tomo partido. Como neste caso.Lord Robert era meu amigo. Ser-me-iaimpossível olhar para este caso comobjetividade.

– Se está a querer dizer que nãosente qualquer tipo de simpatia peloassassino, nós também não. Não éverdade, Fox?

– É, senhor, não sentimos qualquertipo de simpatia – disse Fox.

Os olhos brilhantes de Davidsonpousaram por um momento em Fox.Com um único olhar pareceu atraí-lopara dentro do círculo caloroso da suaconfiança e respeito. «Apesar detudo», pensou Alleyn, «ele estádesconfortável. Não sabe bem onde

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começar.» E disse:– O senhor teve a amabilidade de

nos telefonar a dizer que talvez possaajudar-nos.

– Sim – disse Davidson –, sim, poisé. – Ergueu um belo pisa-papéis dejade e pousou-o. – Não sei comocomeçar. – Lançou um olhar perspicaze de alguma forma irreverente aAlleyn. – Encontro-me na posiçãopouco invejável de ter sido uma dasúltimas pessoas a ver Lord Robert.

Fox tirou o bloco de notas. Davidsonolhou com desagrado para ele.

– Quando é que o viu? – perguntouAlleyn.

– No vestíbulo. Pouco antes de eu

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sair.– Saiu, pelo que percebo, depois de

Mrs. Halcut-Hackett, do capitãoWithers e de Mr. Donald Potter, quepartiram respetivamente por volta dastrês e meia.

Davidson ficou boquiaberto. Abriuas suas belas mãos.

– Acredite ou não – disse ele –,debati-me com a minha consciênciaantes de me decidir a admiti-lo.

– Porquê? – perguntou Alleyn.Novamente aquele olhar de soslaio

irreverente.– Não queria apresentar-me. De

todo. É muito mau para nós, parasitas,aparecer em julgamentos dehomicídios. A longo prazo, é muito

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mau. Já agora, suponho que é um casode homicídio. Nenhuma dúvida sobreisso? Ou não devo perguntar?

– Claro que pode perguntar. Nãoparece haver nenhuma dúvida. Ele foiasfixiado.

– Asfixiado! – Davidson inclinou-separa a frente, as mãos cruzadas sobre amesa. Alleyn leu no rosto dele amudança subtil que sobrevém a todosos homens quando estes entram nocampo da sua especialidade. – MeuDeus! – exclamou. – Ele não era umaDesdémona! Porque não ofereceuresistência? Está marcado?

– Não há sinais de violência.– Nenhum? Quem fez a autópsia?

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– O Dr. Curtis. Ele é o nossoespecialista.

– Curtis, Curtis...? Sim, claro. Comoé que ele explica a ausência deviolência? Coração? O coração deLord Robert estava em mau estado.

– Como é que sabe disso, SirDaniel?

– Meu caro amigo, fiz-lhe um examecompleto há três semanas.

– Ai sim! – exclamou Alleyn. – Issoé muito interessante. Que descobriu?

– Diagnostiquei um problema muitodesagradável. Sinais de degeneraçãogordurosa. Pedi-lhe para evitarcharutos como a peste, evitar o vinhodo Porto e repousar duas horas todos

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os dias. Estou firmemente convencidode que ele não prestou atençãonenhuma. No entanto, meu caro Mr.Alleyn, não esperaria que esseproblema lhe causasse um ataquecardíaco. A luta poderia certamenteinduzi-lo mas acaba de me dizer quenão há nenhum vestígio de uma luta.

– Deixaram-no inconsciente.– Inconsciente! Porque não me disse

isso antes? Porque eu não lhe deinenhuma oportunidade, claro.Compreendo. E foi asfixiadosilenciosamente? Que coisa horrível eengenhosa.

– O problema do coração poderá teracelerado a morte?

– Sim, sou dessa opinião, sem

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dúvida.De repente Davidson passou os

dedos pelo cabelo extravagante.– Este crime abominável e

indescritível perturbou-me mais do queteria imaginado. Mr. Alleyn, eu tinha omais profundo respeito por LordRobert. Seria impossível exagerar omeu respeito por ele. Ele parecia umafigura cómica, um aristocrata divertidocom uma quantidade de charme fora devulgar. Era muito mais do que isso.Era muito inteligente. Numa conversa,entendia tudo o que ficava por dizer, asua mente era subtil e sólida. Sou umhomem do povo. Adoro todos os meusamigos inteligentes e entendo, Cristo

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mio, como entendo!, os meus pacientesinteligentes! Mas não me sinto, no meuíntimo, à vontade com eles. Com LordRobert eu estava à vontade. Eraexuberante e não me sentiaenvergonhado depois.

– Presta-lhe um grande elogio aoconfessar isso – disse Alleyn.

– Presto? Ouça. Se fosse qualqueroutra pessoa, sabe o que eu devia terfeito? Devia ter ficado quieto e ter ditoa mim mesmo il ne faut pas réveillerle chat qui dort, e esperar que ninguémse lembrasse que eu estava novestíbulo nesta madrugada emMarsdon House e vi Lord Robert aofundo das escadas. Mas o queaconteceu foi que me fiz num oito para

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lhes fornecer informações que járeceberam. Gros-Jean en remontre àson curé!

– Não completamente – disseAlleyn. – Não é inteiramente unevieille histoire. Pode ainda brilharcom uma virtude consciente. Procuroum relato minucioso desses últimosminutos no vestíbulo. Temos a ordemdas saídas, mas não a natureza dasmesmas. Se não se importar de nos daruma versão microscopicamente exata?

– Ah! – Davidson fez uma careta. –Tem de me dar um momento paraorganizar os meus factos. Uma versãomicroscopicamente exata! Espere umpouco. – Davidson fechou os olhos e a

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sua mão direita explorou a superfíciedo pisa-papéis de jade esculpido. Omovimento deliberado dos dedosprendeu a atenção de Alleyn. O pedaçode jade poderia ser quente e estarvivo, tal era a sensibilidade dos dedosque o acariciavam. Alleyn pensou:«Ele ama as suas belas posses.»Decidiu descobrir mais sobre aqueleposeur que se dizia um homem dopovo e salpicava as suas conversascom afirmações em francês e italiano,que era ao mesmo tempo tãofrancamente teatral e tão teatralmentefranco.

Davidson abriu os olhos. O efeito foibastante surpreendente. Eram olhosnotáveis. O cinza claro da íris,

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extraordinariamente grande, orlado depreto, a pupila de um negro profundo.«Aposto que ele usa este truque nosseus pacientes com bons resultados»,pensou Alleyn, e então percebeu queDavidson sorria. «Raios, ele leu-me ospensamentos.» E deu por si a retribuiro sorriso como se ele e Davidsonpartilhassem um segredo divertido.

– Tome nota disto, Fox – disseAlleyn.

– Muito bem, senhor– respondeuFox.

– Como reparou – começouDavidson –, eu tenho um gosto peloteatral. Deixe-me apresentar-lhe estapequena cena como se a víssemos

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desenrolar-se atrás da ribalta. Euapertei a mão dos meus anfitriões ondeos dois lanços de escadas seencontram numa galeria do lado defora do salão. Desci pelo ladoesquerdo das escadas, pensando naminha idade que avançava e a desejara minha cama. No vestíbuloencontram-se grupos dispersos depessoas, com casacos, encapuzados,prontos para irem embora. A grandecasa parece já exausta e um poucodecadente. Sente-se a presença deflores murchas, o odor dos restos dechampanhe. Na verdade, está na horade ir embora. Entre os convidados quepartem reparo numa velha senhora queeu gostaria de evitar. É rica, uma das

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minhas melhores pacientes, mas a suaprincipal queixa é um problema dediarreia verbal crónica, complexa eaguda. Como já tratei desta queixadurante esta noite e não tenho nenhumdesejo de que me ofereça boleia no seucarro, precipito-me para o bengaleirodos homens. Passo lá alguns minutos, àespera. É um pouco estranho porque osúnicos outros homens no bengaleiroestão, obviamente, envolvidos numaconversa extremamente privada.

– Quem são eles?– perguntou Alleyn.– Um certo capitão Withers, que é

novo nestas andanças e aquele jovemsimpático, o Donald Potter. Ambosparam e olham para mim. Eu faço um

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grande alarido para encontrar o meucasaco e chapéu. Converso com ofuncionário do bengaleiro depois delhe ter dado uma gorjeta. Falo com oDonald Potter, mas sou tão malrecebido que, por pura decência, souforçado a sair. Lucy Lorrimer, tiens, lávou eu!

– Está tudo bem – disse Alleyn. –Sei tudo sobre Lucy Lorrimer.

– Que mulher! Ela ainda está aosgritos lá fora. Puxo o meu lenço paracima e deixo-me ficar junto à porta,esperando que ela vá embora. Comonão tenho mais nada para fazer,observo as outras pessoas novestíbulo. O grand seigneur doestômago fica ao pé da escada.

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– Quem?– O homem que preside a todas estas

coisas. Como é que ele se chama?– Dimitri?– Sim, Dimitri. Ele está ali como um

anfitrião de imitação. Um grupo dejovens sai. Em seguida, uma mulhermais velha, sozinha, desce as escadase esgueira-se pelas portas para a ruaenevoada. Foi muito estranho, todoaquele nevoeiro.

– Essa mulher mais velha era Mrs.Halcut-Hackett?

– Sim. Era dela que se tratava –disse Davidson com um pouco dedescontração a mais.

– Mrs. Halcut-Hackett é sua

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paciente, Sir Daniel?– Por acaso é.– Porque saiu ela sozinha? Onde

estava o marido e… ela não tem umadebutante sempre atrás dela?

– A protegida, que é, infelizmente,une jeune fille un peu farouche, foivítima de uma dor de dente no inícioda noite e foi levada pelo general.Ouvi Lord Robert oferecer-se paraacompanhar Mrs. Halcut-Hackett acasa.

– Porque não o fez?– Talvez porque eles se

desencontraram um do outro.– Vá lá, Sir Daniel, essa não é a sua

verdadeira opinião.– É claro que não, mas eu não faço

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mexericos sobre os meus pacientes.– Não é preciso assegurar-lhe que

seremos muito discretos. Lembre-se doque disse sobre a sua atitude emrelação a este caso.

– Eu lembro-me. Muito bem. Maspor favor, se puder evitar o meu nomeem entrevistas posteriores, ficarei maisdo que grato. Vou continuar com o meurecital. Mrs Halcut-Hackett,embrulhada em arminho, dá umaolhadela rápida em volta do vestíbuloe desliza através das portas para anoite. A minha atenção é captada poralgo nos seus movimentos, e enquantoolho para ela alguém me empurra tãoviolentamente que tropeço para a

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frente e por pouco não caio. É ocapitão Withers, que saiu dobengaleiro depois de mim. Viro-mepara ouvir o seu pedido de desculpas edou com ele de lábios crispados e umolhar desagradável, eu desconfio depessoas com pestanas brancas, aarregalar os olhos para o topo dasescadas. Ele nem percebeu como foimal-educado, tem a atenção fixa emLord Robert Gospell, que começou adescer as escadas. A expressão destecapitão Withers é tão singular quetambém eu me esqueci do nossoencontro. Ouço-o suster a respiração.Há uma pausa de um segundo e, emseguida, também ele abre caminho porentre um grupo de jovens tagarelas e

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sai.– Acha que o Withers estava a seguir

Mrs. Halcut-Hackett?– Não tenho nenhuma razão para

pensar isso, mas é o que penso.– E a seguir?– A seguir? Bem, Mr. Alleyn,

recomponho-me e dirijo-me para aporta. Antes de ter dado três passos, ojovem Donald Potter sai do buffet coma Bridget O’Brien. Encontram LordRobert ao fundo das escadas.

– Sim? – disse Alleyn quandoDavidson fez uma pausa.

– O Donald Potter – disse elefinalmente – diz o que é, sem dúvida,uma palavra de despedida a Bridget, e

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então também ele sai pela porta dafrente.

– Sem falar com o tio?– Sim.– E Lord Robert?– Lord Robert pergunta ao Dimitri,

com aquela voz estridente muitopenetrante e característica, se viu Mrs.Halcut-Hackett. Vejo-o e ouço-oagora: a última coisa que vejo ou ouçoantes de as portas duplas se fecharematrás de mim.

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CAPÍTULO 14

DAVIDSON DIVAGA

– Essa foi uma pequena cena muitovívida – observou Alleyn.

– Bem, afinal de contas não foiassim há muito tempo – disseDavidson.

– Quando estava fora da casa, viualgum dos outros, ou já se tinham idotodos embora?

– O grupo de jovens saiu ao mesmotempo do que eu. Havia a azáfamahabitual para os táxis com criados eporteiros. Aqueles criados! Sãorealmente uma ligação com as glóriasdo passado. Quando vemos as luzes

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das suas tochas a cintilar nos rostospálidos dos convidados meio aturdidoscom a dança, quase esperamos verMillamant1 em pessoa a descer osdegraus e todos os táxis a transformar-se em liteiras. No entanto, não devodar largas à minha paixão pelo detalhe.O grupo de jovens entrou em três táxisque tinham sido chamados peloporteiro. Ele estava prestes a chamarum para mim, quando, para meu horror,vi um Rolls-Royce do outro lado daestrada. A janela estava aberta e ali,como uma Sybil, com um ar miserável,estava Lucy Lorrimer. «Sir Daniel! SirDaniel.» Eu encolhi-me ainda mais nomeu lenço, mas foi tudo em vão. Um

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criado diligente grita: «A senhora estáa chamá-lo, senhor.» Nada a fazer anão ser atravessar a estrada. «SirDaniel! Sir Daniel! Eu esperei por si.Isto é muito importante! Vou levá-lo acasa e no caminho posso contar-lhe…»Uma mulher impossível. Eu sei o queaquilo significa. Ela está a sofrer deuma estranha dor interna que acaba dea acometer e agora é o momento paraeu fazer um exame. Tenho de ir comela. Ela está em agonia. Penso comtodas as minhas forças e quando chegoà janela estou preparado. «LadyLorrimer, perdoe-me, não tenho umminuto a perder, o primeiro-ministro,uma indisposição súbita!» e enquantoela ainda está de boca aberta, viro-me

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e fujo como um coelho no nevoeiro!Pela primeira vez desde a tragédia

da noite anterior, Alleyn riu-se.Davidson lançou-lhe um olhardivertido e continuou com a suahistória.

– Corri como já não corria desdeque era um menino em Grenoble,perseguido por aquela voz, que seoferecia sem dúvida para me conduzirvelozmente a Downing Street.Felizmente o nevoeiro intensificou-se.Continuei à procura de um táxi em vão.Ouvi um carro e encolhi-me nassombras. Passou um Rolls-Royce.Espreitei. Finalmente um táxi! Vinhaatrás de mim. Eu podia ver os dois

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faróis toldados pela névoa. Então ouvivozes indistintas. O táxi parou,continuou na minha direção. Ocupado!Mon Dieu, que noite! Continuei aandar, dizendo a mim mesmo que, maiscedo ou mais tarde, teria de encontrarum táxi. Nem sombra deles! Por essaaltura, suponho, o último convidado játinha saído. Sabe Deus que horas erame os poucos táxis que encontreiestavam todos ocupados. Caminhei deBelgrave Square até Cadogan Gardens,e garanto-lhe, meu caro Mr. Alleyn,que nunca gostei tanto de um passeio.Sentia-me como um arlequim de meia-idade em busca de aventura. Que nãotenha encontrado nenhuma não teve amínima importância.

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– A menos que eu esteja muitoenganado – disse Alleyn –, o senhorescapou-lhe por uma margem muitopequena. Aventura talvez não seja apalavra certa. Parece-me que atragédia lhe passou ao lado, SirDaniel, e o senhor não a reconheceu.

– Sim – disse Davidson, e a sua vozadquiriu de repente um tom sombrio. –Sim, acredito que tenha razão. Não énada divertido, afinal.

– Esse táxi. Que direção tomouquando fugiu de Lady Lorrimer?

– Virei à minha direita.– Até onde tinha chegado quando

ouviu o táxi?– Não sei. É quase impossível

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avaliar. Talvez tenha andado unsquatrocentos metros. Não fui muitolonge, porque parei para me esconderde Lucy Lorrimer.

– Afirmou ter ouvido vozes.Reconheceu-as?

Davidson esperou, olhandopensativamente para Alleyn.

– Eu sei que isto é importante –disse por fim. – Estou quase com medode responder. Mr Alleyn, só possodizer-lhe que quando essas vozes…não conseguia distinguir as palavras,lembre-se… me chegaram através danévoa, pensei ao princípio que era umavoz de mulher e depois mudei deideias e pensei que era um homem. Erauma voz estridente.

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– E a outra?– Era definitivamente um homem.– Consegue lembrar-se de mais

alguma coisa, seja o que for, acercadesse incidente?

– Não. Exceto que quando o táxipassou por mim, pensei que osocupantes eram homens.

– Sim. Vai fornecer-nos umadeclaração assinada?

– Sobre o incidente do táxi?Certamente que sim.

– Pode dizer-me quem ficou paratrás em Marsdon House quando saiu?

– Depois de o grupo barulhento sairao mesmo tempo do que eu, restoumuito pouca gente. Deixe-me pensar.

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Havia um jovem muito bêbado. Julgoque o nome dele é Percival e ele saiudo buffet mesmo antes de mim e foipara o bengaleiro. Havia outra pessoa.Quem era? Ah, sim, era uma jovemcuriosa que mais parecia um peixe forade água. Eu já tinha reparado antes.Ela era muito banal e nunca teria dadopela sua presença se ela não estivessequase sempre sozinha. Usava óculos.Isso é tudo o que lhe posso dizer sobreela, exceto… sim… vi-a dançar comLord Robert. Lembro-me agora de queela estava a olhar para ele enquantoele descia as escadas. Talvez sentissealgum tipo de gratidão para com ele.Ela seria patética, se não tivesse um artão sereno. Não me surpreenderia se

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pertencesse ao pessoal da casa. Talvezuma ex-governanta de Bridget ouacompanhante de Lady Carrados. Julgoque me encontrei com ela algures emalgum momento durante a noite. Ondefoi? Esqueci-me!

– O baile foi um grande sucesso, nãoé verdade?

– Sim. Lady Carrados nasceu parareceber. É sempre espantoso para mimporque um baile é um grande sucesso eoutro, com a mesma banda, buffet econvidados, um grande fracasso. LadyCarrados, poder-se-ia afirmar, estavaem desvantagem na noite passada.

– Quer dizer que ela estava doente?– Então já ouviu falar sobre isso.

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Tentámos mantê-lo em segredo. Sim,como todas as mães, ela exagerou noesforço.

– Preocupada com alguma coisa,quer dizer? – perguntou Alleyn e, emresposta às sobrancelhas levantadas deDavidson, disse: – Não perguntaria senão fosse relevante.

– Não posso imaginar, devoconfessar, como é que a indisposiçãode Lady Carrados possa ter qualquerligação com a morte de Lord RobertGospell. Ela está exausta dos nervos esentia a pressão dos seus deveres. –Davidson acrescentou, como se para simesmo: – Este assunto também não lhevai fazer bem nenhum.

– Sabe, num caso deste tipo, temos

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de olhar para qualquer desvio donormal ou do esperado – disse Alleyn.– Concordo que esta pergunta emparticular parece bastante irrelevante.Tal como, lamentavelmente, muitosoutros factos que virão à luz. Se nãopuderem ser correlacionados, serãodescartados. É rotina.

– Sem dúvida. Bem, tudo o queposso dizer é que notei que LadyCarrados estava indisposta, disse-lhepara ir deitar-se no vestiário dassenhoras, que julgo que fica no topo dopatamar, e para mandar a suaempregada chamar por mim seprecisasse. Como não recebi nenhumamensagem, tentei encontrá-la, mas não

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consegui. Ela reapareceu mais tarde edisse-me que se sentia um poucomelhor e que não me preocupasse comela.

– Sir Daniel, chegou a ver o homemdo catering, Dimitri, devolver acarteira a Lady Carrados?

– Penso que não. Porquê?– Ouvi dizer que por alguns

momentos na noite passada ela pensouque a tinha perdido e estava muitoangustiada.

– Ela não me disse nada sobre esseassunto. Isso pode explicar a suaindisposição. Reparei na carteira. Temum fecho de esmeralda e rubi muitobonito, um engaste italiano antigo e éuma peça demasiado fina para ataviar

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aquele disparate de lantejoulas. Mashoje em dia as pessoas não têm sentidode congruência nos ornamentos.Nenhum.

– Tenho estado a olhar para o seucavalo. Pelo menos o senhor aprecia oque é belo. Perdoe-me por esquecer omeu trabalho por um momento, mas…um raio de sol iluminou o cavalinho.Vermelho-rosa e ocre! Tenho umapaixão pela cerâmica.

O rosto de Davidson iluminou-se.Lançou-se avidamente na história decomo adquirira o pequeno cavalo. Assuas mãos tocaram-lhe tãodelicadamente como se fosse uma rosa.Ele e Alleyn recuaram três mil séculos

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até à idade de ouro da cerâmica e oinspetor Fox sentou-se tãosilenciosamente quanto um robustoCortez, com o seu bloco de notasoficial aberto sobre os joelhos e umaexpressão de paciente tolerância noseu rosto grande e solene.

– … E falando de Benvenuto – disseDavidson, que tinha falado até aoRenascimento italiano –, eu vi numquarto de Marsdon House ontem ànoite, a menos que eu seja umcompleto idiota, um medalhão Celliniautêntico. E onde, meu caro Alleyn,imagina que foi? Que uso ignóbilimagina que lhe foi dado?

– Não faço a mínima ideia – disseAlleyn, sorrindo.

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– Foi embutido; embutido, ouça bem,numa caixa dourada de padrãoguilloché com um diabólico fecho dediamante e rodeado de brilhantes. Semdúvida, este aborto sacrílego foiconcebido como um recipiente decigarros.

– Onde estava esse horror? –perguntou Alleyn.

– Numa encantadora sala de estarverde.

– No patamar de cima?– Esse mesmo. Procure essa caixa.

Vale a pena ver, de uma formahorrível.

– Quando visitou esse quarto?– Quando? Deixe-me ver. Deve ter

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sido por volta das onze e meia. Eu tiveum caso urgente ontem e o meuassistente ligou-me para me pôr a parda situação.

– Voltou a lá ir?– Não. Acho que não. Não, não

voltei.– Por acaso não ouviu Lord Robert

telefonar desse quarto? – insistiuAlleyn.

– Não, não, não voltei a ir lá. Masera um quarto encantador. Havia umquadro de Greuze por cima da lareira etrês ou quatro pequenas peçasrealmente bonitas sobre uma mesa detampo recortado e com elas este crimede inspiração infernal. Não poderiaimaginar uma pessoa com gosto

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suficiente para escolher as outraspeças a permitir que tal horror comoum medalhão Benvenuto, e ummedalhão adorável, engastado, semdúvida cimentado, pelo seu reversoperfeito, naquela cigarreira ignóbil.

– É horrível – concordou Alleyn. –Por falar em cigarros, que tipo decigarreira levou na noite passada?

– Olá! – Os olhos extraordinários deDavidson penetraram nos seus. – Quetipo de… – O médico parou e, emseguida, murmurou para si mesmo: –Puseram-no inconsciente, disse. Sim,estou a ver. Na têmpora.

– Isso mesmo – disse Alleyn.Davidson tirou uma caixa de prata

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lisa do bolso. Era muito bem feita, comuma parte que deslizava e os ladosbiselados. A superfície lisa brilhavacomo um espelho entre asextremidades delicadamentetrabalhadas. Entregou-a a Alleyn.

– Eu não desprezo a modernidadefranca, sabe.

Alleyn examinou a cigarreira,passando os dedos sobre osornamentos. Davidson disseabruptamente:

– Pode-se dar um duro golpe comela.

– É possível – disse Alleyn –, mastem vestígios de pó de polir metais nasranhuras e não é o tipo certo, parece-me.

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– Nunca imaginei sentir-me tãoprofundamente aliviado – disseDavidson. Esperou um momento e, emseguida, com um olhar nervoso paraFox, acrescentou: – Suponho que nãotenho álibi?

– Bem, não – disse Alleyn. –Suponho que não tem, mas não deixariaque isso o preocupasse. O motorista dotáxi pode lembrar-se de ter passadopor si.

– Estava um nevoeiro tremendo –disse Davidson, irritado. – Ele podenão ter notado.

– Vá – disse Alleyn –, não deve ficarnervoso por causa da investigação. Hásempre a Lucy Lorrimer.

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– É verdade, há sempre a LucyLorrimer. Ela telefonou três vezes estamanhã.

– Está a ver? Vou ter de meencontrar com ela. Não se preocupe,deu-nos algumas informações muitoúteis, não deu, Fox?

– Sim, senhor. Tornou mais sólido oque já tínhamos.

– Há mais alguma coisa que gostassede perguntar a Sir Daniel, Fox?

– Não, Mr. Alleyn, obrigado. Achoque cobriu as bases muito bem. A nãoser que…

– Sim? – perguntou Davidson. –Vamos lá, Mr. Fox.

– Bem, Sir Daniel, acha que nos

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poderia dar uma estimativa sobrequanto tempo levaria um homem noestado de Lord Robert Gospell amorrer, nestas circunstâncias?

– Sim – disse Davidson e, mais umavez, o tom profissional soou na suavoz. – Sim. Não é fácil dar-lhe o tipode resposta que quer. Um homemsaudável morreria em cerca de quatrominutos, se o assassino cortoucompletamente o acesso do ar aospulmões. Seria muito improvável umhomem com um problema de coração,como acredito que era o caso, viverdurante quatro minutos. A vida podiaextinguir-se em menos de dois. Elepoderia morrer quase imediatamente.

– Sim. Obrigado, senhor.

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– Suponhamos que o assassino tinhaalguns conhecimentos de Medicina eestava ciente do problema de LordRobert, ele seria capaz de perceber opouco tempo de que precisava? –inquiriu Alleyn.

– Essa é uma pergunta muito difícilde responder. Os seus conhecimentospoderiam não incluir a asfixia. Devodizer que qualquer estudante doprimeiro ano provavelmenteperceberia que um coração doentefalharia muito rapidamente nessascondições. Uma enfermeira saberia.Na verdade, seria de pensar que amaioria dos leigos o achasse provável.Poderiam não ter consciência do tempo

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real com a diferença de dois ou trêsminutos.

– Sim. Obrigado.Alleyn levantou-se.– Penso que realmente é tudo. Vamos

enviar-lhe uma declaração para osenhor assinar, se fizer o favor.Acredite em mim, nós compreendemosque é muito difícil para si falar dosseus pacientes nestas circunstânciasextremamente desagradáveis. Vamosredigir o maldito documento tãodiscretamente quanto possível.

– Tenho a certeza que sim. Mr.Alleyn, julgo que me lembro de LordRobert me dizer que tinha um grandeamigo na Scotland Yard. Esse amigo éo senhor? Vejo que é. Por favor, não

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pense que a minha pergunta éimpertinente. Estou certo de quesofreu, como todos os seus amigos,uma grande perda. Não deve fazermuito uso da sua energia nervosa,sabe, na investigação deste caso. Écompletamente inútil para mim dizeristo, mas sou médico e sei algumacoisa sobre nervos. Está a submeter-sea uma disciplina muito severa nestemomento. Não exagere.

– É exatamente o que eu gostaria delhe dizer, senhor – afirmou Foxinesperadamente.

Davidson voltou para ele umacordial expressão de reconhecimento.– Vejo que nos entendemos um ao

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outro, Mr. Fox.– É muito amável da vossa parte –

disse Alleyn com um sorriso –, masnão sou de modo nenhum uma flor deestufa. Adeus, Sir Daniel. Muitoobrigado.

Despediram-se com um aperto demão e Fox e Alleyn saíram.

– Para onde vamos agora?–perguntou Fox.

– Parece-me que é melhor dar umaolhadela a Marsdon House. O Baileyjá deve ter terminado por esta altura.Vou telefonar de lá e ver se consigoobter um encontro com a famíliaCarrados en masse. Vai ser difícil.Não parece haver dúvida de que LadyCarrados é uma das vítimas da

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chantagem. O Carrados é um tipodifícil, é um velho snob terrível e tãovaidoso como um pavão. Umainvestigação policial vai sem dúvidaestimular todas as suas pioresqualidades. É o tipo de homem quefaria qualquer coisa para evitar o tipoerrado de publicidade. Teremos deavançar com cautela, se não quisermosque ele faça de nós idiotas e setransforme num maldito incómodo.

No caminho para Marsdon Housereviram as declarações de Davidson.

– É uma coisa estranha, quando sepensa nisso – refletiu Fox. – Ali estavaSir Daniel a olhar para aquele táxi e adesejar que não estivesse ocupado, e

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lá dentro Lord Robert e o homem quedecidiu matá-lo. Ele deve tercomeçado quase de imediato. Nãotinha muito tempo, afinal de contas.

– Não – disse Alleyn –, o fatortempo é importante.

– Como acha exatamente que eleexecutou isto, senhor?

– Imagino-os sentados lado a lado. Oassassino pega na sua cigarreira, se defacto era uma cigarreira. Talvez tenhadito algo para fazer com que LordRobert se inclinasse para a frente eolhasse pela janela. Ele levanta a mãoe bate em Lord Robert com força natêmpora, com a aresta da cigarreira, aferida parece indicar isso. Lord Robertcai para trás. O assassino põe a mão

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enluvada sobre o nariz e a boca, nãocom muita força, mas com cuidado.Quando a boca se abre, ele empurra omaterial que está a utilizar por entre osdentes e mais e mais para trás emdireção à garganta. Com a outra mãomantém as narinas tapadas. E assimcontinua até estarem quase em CheyneWalk. Quando tira as mãos, não hápulso, não há nenhum movimento aindicar uma tentativa de respiração. Acabeça cai para o lado e ele sabe queestá tudo acabado. – Alleyn apertou asmãos. – Lord Robert poderia ter sidosalvo, mesmo assim, Fox. A respiraçãoartificial poderia tê-lo salvo. Masainda havia o resto do percurso para

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Queens Gate e depois para a ScotlandYard. Impossível!

– A entrevista com Sir HerbertCarrados deve esclarecer esse assuntodo Dimitri – disse Fox. – Se SirHerbert passou algum tempo no buffetcom o Dimitri.

– Vamos ter de ser delicados com oCarrados. Gostaria de saber se asenhora obscura estará presente.Aquela senhora em que ninguémreparou, mas que, uma vez que nãodançou muito, pode ter cumprido opapel tradicional da espectadora.Depois, há a questão dos Halcut-Hackett. Vamos ter de averiguar isso omais rápido possível. Há uma ligaçãoao Withers.

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– Que tipo de mulher é Mrs. Halcut-Hackett? Ela foi falar consigo à Yard,não foi? Acerca da chantagem?

– Sim, Fox, foi. Contou a velhahistória de fingir ser amiga da vítima.Ainda assim, teve coragem para ir.Essa visita marcou o início de todoeste maldito assunto. Pode ter a certezade que não me esqueço disso. Pedi aoBunchy para nos ajudar a encontrar ochantagista. Se não o tivesse feito, eleestaria vivo agora, acho, a menosque... a menos, meu Deus, que oDonald tenha matado o tio pelo queiria receber. Se a chantagem está nabase do homicídio, eu sou diretamenteresponsável.

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– Bem, senhor, se me dá licença, eunão acho que essa observação o leve asi ou qualquer outra pessoa muito maislonge. Lord Robert não lhe teriaagradecido e isso é um facto. Nós nãonos sentimos obrigados a avisar todasas pessoas que ajudam num caso dechantagem que é provável que este dênum homicídio. E porquê? – continuouFox com uma tentativa de animaçãoque Alleyn nunca lhe tinha visto. –Porque até agora nunca aconteceu.

– Está bem, Irmão Fox – disseAlleyn. – Eu calo-me.

E durante o resto do caminho paraMarsdon House ambos se mantiveramem silêncio.

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1 Personagem de The Way of the World, peça deWilliam Congreve, estreada em 1700. (N. do T.)

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CAPÍTULO 15

UM SIMPLES SOLDADO

Marsdon House fora quasecongelada pela polícia. Os homens deDimitri haviam executado algumastarefas de limpeza antes de os homensde Alleyn chegarem, mas em geral agrande casa parecia estar a sofrer asgraves consequências dessecongelamento. Fedia a beatas decigarro, que se encontravam por toda aparte, dobradas em dois, manchadas devermelho, manchadas de castanho, emcinzeiros, lareiras e cestos de papéis;esmagadas no chão do salão, caídasatrás de cadeiras, à espreita em copos

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sujos e a flutuar num estado miserávelde desintegração entre os caules deflores moribundas. Lá em cima, nocamarim das senhoras, estavam entre opó de arroz derramado, e no boudoirverde alguém tinha permitido que umcigarro deixasse uma marca naextremidade da mesa com tamporecortado.

Alleyn e Fox estavam no boudoirverde e olharam para o telefone.

– Foi ali que ele se sentou – disseAlleyn, e mais uma vez citou: – «Otipo dos comes e bebes. Mais valiamisturar veneno nas cervejas. E eleestá a trabalhar com…» Ouça, Fox, eledeve ter-se sentado nesta cadeira, defrente para a porta. Não veria ninguém

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entrar por causa deste bonito biombo.Imagine o nosso intruso a entrarsorrateiramente pela porta. Ouve umapalavra que lhe prende a atenção, parapor um segundo e, em seguida,percebendo o que Lord Robert está afazer, contorna o biombo. Lord Robertolha para cima: «Olá! Não dei pela suapresença», e sabendo que ele acaba demencionar a Yard, inventa a suahistória sobre um objeto perdido edesliga. Deixei instruções na ScotlandYard para que cada nome na lista deconvidados seja localizado e queperguntem a cada convidado assim quepossível se ele ou ela se intrometeu naconversa. Estou a usar muitos homens

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neste caso, mas o subcomissário está aportar-se muito bem, graças a Deus. Váchamar o agente, está bem?

O agente que fora deixado nocomando informou que o sargento-detetive Bailey inspecionara o quartoem busca de impressões digitais e quesaíra para a Yard antes do almoço.

– O telefone ainda está ligado nestequarto?

– Acredito que sim, senhor. Nãotocámos em nada.

– Fox, telefone para a Yard e veja sehá novidades.

Enquanto Fox estava ao telefone,Alleyn vagueava pelo quarto olhandocom algo semelhante a desespero paraas provas de tantos visitantes. Era

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inútil esperar que os esforços deBailey trouxessem algo de conclusivo.Podiam encontrar as impressões deLord Robert no telefone, mas de queserviria isso? Ainda que pudessemseparar e classificar todas asimpressões digitais que haviam sidodeixadas no quarto, isso não osconduziria a lado nenhum.

Fox afastou-se do telefone.– Acabaram de confirmar a lista de

convidados, senhor. Um trabalho muitointeligente. Cinco homens em cincotelefones. Nenhuma das pessoas admiteter ouvido Lord Robert, nem nenhumdos criados.

– Essa é a nossa linha, então.

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Encontrar o intruso. Sempre soube quechegaríamos a este ponto. – Alleyndeambulava pelo quarto. – O Davidsonestava certo, é um espaço agradável.

– A casa pertence a um tio de LadyCarrados, não é?

– Sim, o general Marsdon. Pareceser um homem com bom gosto. OGreuze é encantador. E esses esmaltes.Onde estará a ofensiva conversãoCellini? – Inclinou-se sobre a mesa detampo recortado. – Não há nadaparecido aqui. É engraçado. ODavidson disse que era nesta mesa,não disse? Não está em mais nenhumlugar do quarto. Raios! Deviapertencer a um dos convidados. Nãodeve ser nada. Ainda assim, é melhor

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verificar. Que maçada infernal! Falarcom todos os convidados, novamente,a menos que tenhamos sorte! OFrançois deve ter reparado em algumacoisa, em algum momento, quando seocupou dos cinzeiros. É melhorperguntar-lhe.

Telefonou a François, que disse quenão sabia nada sobre uma cigarreiraextraviada. Alleyn suspirou e tirou assuas notas do bolso. Fox circulavasolenemente pelo patamar superior.

– Eh! – chamou Alleyn ao fim de dezminutos. – Eh! Fox!

– Sim, senhor?– Tenho tentado reconstituir os

movimentos de todas estas pessoas.

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Tanto quanto posso ver, é algo mais oumenos assim. Agora preste atenção,porque é muito confuso e metade dotempo não sei o que estou a dizer. Emalgum momento durante o interlúdiopara a ceia, Lady Carrados deixou acarteira neste quarto. O François viu oDimitri recolhê-la e descer. MissTroy, que dançava com o Bunchy, viu acarteira ser devolvida a Lady Carradosno salão. Miss Troy notou que pareciamuito mais vazia do que antes. Nãosabemos se alguém testemunhou omomento em que ela deixou a carteira,mas não importa. O Bunchy viu-arecebê-la do Dimitri. À uma hora eleligou-me para dizer que tinha uma pistaforte sobre o chantagista e a conversa

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crucial ocorreu então. Bem, de acordocom o François, existem quatropessoas que podem ter ouvido aconversa. O Withers, o Donald Potter,Sir Herbert Carrados e a apagada MissHarris, que pode ou não pode terestado na casa de banho, mas estevecertamente neste patamar. Alguémpode ter ido e vindo, enquanto oFrançois foi buscar fósforos para oenraivecido Carrados. Quandoregressou, o François entrou no quartodo telefone e encontrou-o vazio.Parece mais fácil quando ocondensamos. Muito bem. O nossotrabalho é descobrir se mais alguémpoderia ter vindo cá acima, ouvido o

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telefone e descido novamente enquantoo François estava nas instalações dosempregados. O Withers diz que ouviuo telefone quando estava na outra salade estar. Também diz que o Carradosse encontrava aqui naquela altura;apesar de ser mentiroso, parece quedisse a verdade acerca disso. Vamos,Fox, vamos passear.

A galeria era típica da maioria dasgrandes casas à moda antiga deLondres. O quarto com o telefoneficava no outro extremo, ao lado haviauma casa de banho cujo modeloassentava na época vitoriana, com umapequena antessala e uma atmosfera debrilho e melancolia. A porta interiortinha meio painel de vidro espesso e

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fosco que deixava passar uma luz dodia acinzentada. Para além da portahavia um quarto que fora usado comovestiário das senhoras e por último, notopo da escada, a segunda sala deestar. Ao lado da porta da sala haviaoutra porta coberta com um reposteirode feltro verde que levava aosaposentos dos criados e às escadas deserviço. O outro lado da galeria abria-se sobre o grande vão da casa. Alleyninclinou-se sobre a balaustrada econtemplou a perspetiva das escadasíngremes e em curva quedesembocavam no grande vestíbulodois andares abaixo.

– É um bom posto de observação –

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disse ele. – Vamos descer, agora.No patamar seguinte ficava o salão

de baile. Nada poderia ter um aspetomais desolado do que a grande divisãovazia, as cadeiras que arvoravamaquele ar desconcertante de falaremumas com as outras, a plataforma dosmúsicos cheia de beatas de cigarro eprogramas. Uma poeira fina cobriatudo e o grande salão ecoou os passosde Alleyn e Fox. As paredessuspiraram um pouco, como se o araprisionado atrás delas procurasseescapar incessantemente. Alleyn e Foxexaminaram o espaço à sua volta, masnão encontraram nada que os ajudassee desceram as grandes escadas para ovestíbulo.

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– Ele estava aqui – disse Alleyn –,junto às escadas do lado esquerdo. ODimitri não se encontrava muito longe.Sir Daniel saiu do bengaleiro ali dolado esquerdo. O grupo de jovensbarulhentos estava mais perto daentrada da frente. E por esta porta, aolado bengaleiro dos homens, era obuffet. Vamos dar uma vista de olhos.Você já viu tudo isto antes, Irmão Fox,mas deve permitir que eu deambulepor aqui.

Entraram no buffet.– Fede como uma taberna, não é?

Olhe para as caixas de garrafas dechampanhe vazias do Dimitriarrumadas debaixo das mesas. Alegria

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a dez libras a dúzia. Este é o lugar deonde o Donald e a Bridget saíram napenúltima cena, e onde o Dimitri e oCarrados falaram um com o outropouco antes de Lord Robert sair. E porquanto tempo depois? Olhe, Fox, aquiestá um toque de Sherlock Holmes.Uma ponta de charuto jaz num longotraço das suas próprias cinzas. Umbelo charuto que foi cuidadosamentefumado. Aqui está o copo docavalheiro ao lado do charuto e aqui,no chão, temos a cinta partida. UmCorona-Corona. – Alleyn cheirou ocopo. – Brandy. Aqui está a garrafa,Courvoisier 87. Aposto que não foiservido aos convidados. O maisprovável é ter sido servido ao velho

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Carrados. Fox, ligue ao Dimitri edescubra se Sir Herbert bebeu brandye fumou um charuto quando veio paraaqui depois da festa. E pode tambémperguntar se podemos encontrar-noscom a família Carrados daqui a cercade meia hora. Depois teremos de irfalar com os Halcut-Hackett. A casadeles é aqui perto, em Halkin Street.Vamos ter de voltar a Marsdon House.Quero falar com o Carrados primeiro.Veja se o general e Mrs. Halcut-Hackett nos podem receber daqui aduas horas, está bem, Fox?

Fox dirigiu-se calmamente aotelefone e Alleyn transpôs a segundaporta do buffet e entrou num corredor.

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Ali encontrou a despensa. A bandejada ceia de Dimitri ainda lá estava.«Ele trata-se muito bem», pensouAlleyn, reparando em três ou quatropequenas bolas verde-escuras quemanchavam um prato. «Caviar. E aquiestá a asa limpa de um pássaro.Champanhe, também. O espertalhão deMr. Dimitri, a comer como um gatogordo nos bastidores.»

Reuniu-se a Fox no vestíbulo.– Mr. Dimitri – disse Fox – lembra-

se de servir brandy a Sir HerbertCarrados de uma garrafa especialreservada para ele. Ele julga que SirHerbert fumou um charuto enquantotomava o brandy, mas não tem acerteza absoluta.

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– É melhor recolhermos asimpressões do copo de brandy – disseAlleyn. – Vou pedir ao Bailey paratratar disso e, em seguida, acho que jápodem limpar isto. Como é que sesaiu?

– Bem, senhor. Os Halcut-Hackettvão receber-nos durante a tarde, aqualquer hora.

– E o Carrados?– Ele veio ao telefone – disse Fox. –

Recebe-nos se formos lá agora.– Como é que ele lhe soou?

Agressivo?– Se quiser colocar as coisas dessa

maneira, senhor. Deu-me a impressãode estar mais em sofrimento do que

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zangado, e disse alguma coisa sobreesperar que ele soubesse qual o seudever. Mencionou que é um grandeamigo pessoal do subcomissário.

– Oh, meu Deus, meu Deus!Fanfarronice e arrogância! Incerto,dissimulado e difícil de agradar. É-mefamiliar. Fox, devemos continuar acombinar a deferência com umasugestão de importância. Servimos amelhor manteiga e com muitaabundância. Velho miserável é o queele é. Endireite a gravata, endureça ocoração e vamos embora.

Sir Herbert e Lady Carrados viviamem Green Street. Um criado abriu aporta a Alleyn.

– Sir Herbert não está em casa,

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senhor. Gostaria de deixar umamensagem?

– Ele tem um compromisso comigo –disse Alleyn agradavelmente –, porisso espero que ele esteja em casarealmente. Aqui está o meu cartão.

– Peço desculpa, senhor – disse ocriado, olhando para as roupas deAlleyn, que eram admiráveis. – Penseique era a polícia.

– Nós somos a polícia – disseAlleyn.

Fox, que ficara a pagar o táxi,aproximou-se. O olhar do criadoiluminou-se ao ver o seu chapéu decoco e botas.

– Peço perdão, senhor – disse ele –,

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siga-me, por favor.Levou-os até uma biblioteca. Nas

paredes, três retratos de corpo inteirode Carrados de outras eras, a óleo,fitavam o vazio. A luz da lareiraagitava-se sobre uma infinidade delivros uniformemente encadernados,por trás de portas de vidro. SirHerbert, de uniforme oficial, combotas brilhantes e calças magníficas,aparecia numa fotografia no meio deum grupo em Tunbridge Wells, ocentro das suas atividades de guerra.Alleyn examinou-a de perto, mas obelo rosto mostrava-se tãoinexpressivo quanto os joelhos nouniforme justo, separados por mãosenluvadas que descansavam com

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importância constrangedora na parteinterna das coxas. Uma fotografiaestúpida. De ambos os lados haviadois textos iluminados escritos emlouvor a Sir Herbert. Uma magníficacaixa de charutos repousava na mesaao lado. Alleyn abriu-a e observou queos charutos eram iguais ao que haviasido fumado no buffet. Fechousuavemente a tampa e virou-se parainspecionar uma escrivaninha francesaem miniatura.

Fox, completamente à vontade, ficoucomo uma rocha no meio da sala.Parecia estar perdido em pensamentos,mas poderia ter ido embora edescrever a biblioteca com a precisão

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de um perito em memorização.A porta abriu-se e Carrados entrou.

Alleyn deu por si inexplicavelmenterecordado de um membro da realezaenlutado. Sir Herbert mancava umpouco mais do que o habitual e usavauma bengala preta. Deteve-se, colocouo monóculo no olho e disse:

– Mr. Alleyn?Alleyn adiantou-se e fez uma

reverência.– É muito amável da sua parte

receber-nos, senhor – disse ele.– Não, não – disse Carrados –,

devemos cumprir o nosso dever pormuito que nos custe. Temos de nosmanter firmes. Acabei de falar com osubcomissário, Mr. Alleyn. Ele é um

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velho amigo meu… hum… sentem-sepor favor? Mr… hum?

– Este é o inspetor Fox, senhor.– Ah, sim – disse Carrados,

estendendo a mão. – Sente-se, Fox.Sim… – Virou-se novamente paraAlleyn quando todos se sentaram. – Osubcomissário disse-me que o senhor éfilho de outro velho amigo. Euconhecia a sua mãe muito bem há anos,e creio que ela se encontra muitasvezes com a minha mulher. Ela estavaem Marsdon House na noite passada. –Colocou a mão nos olhos e repetiu numsussurro irritante: – Em MarsdonHouse. Ah, bem!

– Lamentamos incomodá-lo, senhor,

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depois do que aconteceu. Receio queesta tragédia tenha sido um grandechoque para si. – disse Alleyn.

Carrados lançou-lhe um sorrisomagoado.

– Sim – disse –, não posso fingir quenão. Lord Robert era um dos nossosamigos mais estimados. Não foi apenasuma grande perda pessoal, mas nãoposso deixar de pensar que abusaramcruelmente da minha hospitalidade.

Esta redução de um homicídio atermos das amenidades sociais deixouAlleyn sem palavras. Sir Herbertparecia considerar o assassínio comouma espécie de gafe imperdoável.

– Imagino – continuou ele – quetenha vindo aqui armado com uma lista

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de perguntas. Se assim é, lamento terde o desapontar. Sou um simplessoldado, Mr. Alleyn, e esse tipo decoisa está muito para além da minhacompreensão. Posso dizer-lhe quedesde manhã somos importunados porum grupo de jovens insolentes de FleetStreet. Fui obrigado a pedir à ScotlandYard, onde o meu nome não édesconhecido, se não havia qualquertipo de reparação para este tipo deperseguição condenável. Falei sobreisso com o seu chefe, que, como achoque já lhe disse, é meu amigo pessoal.Ele concorda que o comportamentodos jornalistas de hoje é intolerável.

– Lamento muito que tenha sido

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importunado – disse Alleyn. – Sereitão breve quanto possível com esteassunto. Tenho uma ou duas perguntas,mas apenas uma ou duas e nenhumadelas extraordinárias.

– Posso garantir que não tenhoqualquer receio de uma investigaçãoda polícia – disse Carrados com umarisada magoada. A sua mão ainda lhecobria os olhos.

– Claro que não, senhor. Queriaantes de tudo perguntar se falou comLord Robert ontem à noite. Quero dizeralgo mais do que a saudação e adespedida. Pensei que se houvessealguma coisa fora de vulgar nos seusmodos, isso não lhe escaparia comoescaparia, infelizmente, à maioria das

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pessoas.Carrados parecia um pouco menos

irritado.– Não me acho mais observador do

que os outros – respondeu ele –, mascomo soldado tive de usar os meusolhos e acho que se houvesse algo deerrado em qualquer lugar não odeixaria passar. Sim, falei com LordRobert Gospell uma ou duas vezes nanoite passada e posso assegurar-lheque ele estava perfeitamente normalem todos os sentidos possíveis. Foimuito simpático e disse-me que, paraele, o nosso baile foi o mais bemsucedido da temporada. Perfeitamentenormal.

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Alleyn inclinou-se para a frente efixou Carrados com um olharreverente.

– Sir Herbert – disse. – Vou fazeruma coisa muito invulgar, e espero queo senhor não faça com que eu sejademitido, como eu tenho a certeza deque poderia fazer facilmente. Voufazer-lhe uma confidência.

Foi agradável ver os ornamentos datristeza abandonarem Carradossuavemente, e assistir à sua mudançade postura da de um soldado feridopara uma réplica exata da fotografia deTunbridge Wells. A sua cabeçaergueu-se. Os joelhos foram afastados,as mãos colocaram-se

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involuntariamente no interior dascoxas. Faltavam apenas as luvas e ascalças. Um notório e sábio filho doImpério.

– Não seria a primeira vez – disseCarrados modestamente – que talconfiança é depositada em mim.

– Claro que não. Esta é a dificuldadecom que nos deparamos: temos razõespara acreditar que a chave para estemistério está numa única frase dita porLord Robert ao telefone em MarsdonHouse. Se pudéssemos obter umverdadeiro relato da conversa queLord Robert teve com uma pessoadesconhecida à uma hora da manhã,acredito que ficaríamos bastante maisperto de fazer uma detenção.

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– Ah! – O rosto de Carradosiluminou-se. – Isso confirma a minhateoria, Mr. Alleyn. Foi um trabalhoexterno. Como vê, estou familiarizadocom a vossa fraseologia. No momentoem que soubemos desta tragédia, eudisse à minha mulher que estavaperfeitamente convencido de quenenhum dos nossos convidadospoderia estar de alguma formaenvolvido. Uma mensagem de telefonedo exterior! Aí tem!

– Eu tinha esperanças – disse Alleynmodestamente – de que o senhorpudesse ter ouvido falar sobre estachamada. Suponho que foi estúpido daminha parte.

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– Quando foi isso?– À uma hora. É tudo o que sabemos.– À uma hora. Uma hora. Deixe-me

ver! – Carrados franziu assobrancelhas pesadas e fez uma caretacom um ar de importante. – Demomento confesso que não consigorecordar…

– A maioria dos seus convidadosainda estava a cear, penso – disseAlleyn. – Falei com o funcionário queestava no topo do patamar e ele achaque se lembra de que o senhor chegoulá acima por volta dessa hora.

As veias roxas nas bochechasvermelhas de Sir Herbert de repentetornaram-se mais nítidas.

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– Por amor de Deus, acho bem que osujeito se lembre, raios partam o seudescaramento. Com certeza que fuipara o patamar de cima e era uma damanhã. Está perfeitamente certo, Mr.Alleyn. Pago a esses malditosfornecedores uma fortuna paraorganizar tudo e espero, não semrazão, um certo padrão de eficiência. Eo que descubro? Que não há fósforos!Não há fósforos na sala de estar dopatamar de cima e o maldito lugar estáa transbordar de cinzas. Um cigarroaceso a queimar a prateleira dalareira! Estava debaixo do relógio. Épor isso que me lembro das horas.Apenas uma hora, como o senhor diz.

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Julgo que sou um tipo razoável,Alleyn, mas devo dizer-lhe que fiqueifurioso. Saí para o patamar e deiàquele sujeito um sermão que ele nãovai esquecer tão cedo. Desatou acorrer pelas escadas como se tivessesido mordido por um bicho. Malditoseja!

– Esteve no patamar todo essetempo, senhor?

– É claro que não estive no patamaro tempo todo! Entrava e saía damaldita sala de estar, caramba. Subi,suponho, à meia-noite e cinquenta ecinco, entrei nessa sala e encontrei-anas condições que descrevi. Teriaentrado no outro quarto, o do telefone,mas vi que havia um casal sentado lá

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dentro. Comportavam-se, posso dizer,mais como um criado e uma empregadadoméstica do que como o tipo depessoas que estou habituado a recebercomo convidados. No entanto, ohomem esgueirou-se no momento emque eu repreendia o maldito criado.Ele deixou-se ficar no patamar. Essesujeito, o Withers, quero dizer. Não seise lhe dei o nome dele antes. Emseguida, a senhora saiu e meteu-se novestiário. Sim, por Deus, senhor, eRobert Gospell subiu as escadas eentrou no quarto do telefone.

Carrados soprou o bigode,triunfante.

– Aí tem! – disse. – Entrou no quarto

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para telefonar.– Esplêndido, senhor. Agora posso

apenas repetir tudo para me certificarde que compreendi bem? O senhor saiuda primeira sala de estar e falou com oempregado. O capitão Withers saiu dosegundo quarto (o do telefone),seguido imediatamente por Mrs.Halcut-Hackett, que entrou novestiário.

– Ouça! – protestou Carrados. – Nãomencionei o nome da senhora, Alleyn.Por amor de Deus, sou um cavalheiro enão menciono o nome de uma senhorafora da ocasião própria.

Alleyn arvorou uma expressão decavalheiro astuto.

– Receio, Sir Herbert, ter tirado

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conclusões precipitadas.– A sério? Quer dizer que é

conversa corrente? É americana, não?Bem, bem, bem, lamento ouvir isso. OHalcut-Hackett é um velho amigo meu.Lamento muito ouvir isso.

Alleyn refletiu ironicamente que SirHerbert estava a gostar daquilo eapressou-se a continuar.

– Nesse momento, quando voltavapara a sala de estar, depois de termandado o empregado ao andar debaixo, e Mrs Halcut-Hackett termergulhado no vestiário, Lord Robertsubiu as escadas. O que fez o Withers?

– Pôs-se a andar e entrou na sala deestar atrás de mim. Tive de fazer

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conversa com o sujeito. O jovemPotter também andava por ali, de mauhumor. Tenho tanta paciência para osjovens como qualquer outra pessoa,Alleyn, mas devo confessar que…

Deteve-se, parecendodesconfortável.

– Sim? – murmurou Alleyn.– Eu… não importa. Atenha-se ao

ponto, hein? O Withers, hein? Sim.Bem, ouça, orgulho-me de me dar bemcom a maioria das pessoas, Alleyn,mas confesso abertamente que nãogostei da companhia do Withers.Denomina-se capitão. Qual era oregimento dele?

– Não sei. Por acaso conseguiu ouvirLord Robert no outro quarto?

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– Não. Não, não conseguia. Agoraque o menciona, parece-me que ouvi acampainha fazer aquele maldito toquede marcação. O facto é que eu nãoaguentava mais a conversa daquelemaldito forasteiro. Desculpei-me edesci as escadas.

– Encontrou alguém a subir?– Acho que não. Mrs. Halcut-Hackett

desceu antes de mim.– Então, enquanto ainda estava na

sala de estar, senhor, qualquer pessoapoderia ter chegado lá acima e entradono quarto onde Lord Robert estava atelefonar?

– Suponho que sim.– Mrs. Halcut-Hackett poderia ter lá

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entrado antes de o senhor descer. Ocapitão Withers ou o Donald Potterpodem ter feito isso depois?

– Sim, por Deus, podem. Se desejaobter um relato da conversa telefónica,pode perguntar-lhes a eles. Não gostode fazer insinuações sobre os meusconvidados, mas juro pela minha almaque o Withers seria capaz de ouviruma conversa particular. Gostava desaber o que espera o jovem Potterconseguir na companhia de um tipovinte anos mais velho. Mais algumacoisa?

– Sim, senhor. Por acaso reparounuma Miss Harris, enquanto estava noandar de cima? O empregado dissealgo…

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– Harris? Quer dizer a secretária daminha mulher? Sim, claro que a vi. Elafugiu para a casa de banho quando eusubi. Não a vi sair.

– Compreendo. Talvez pudesse dar-lhe uma palavrinha antes de me irembora.

– Certamente, mas vai achá-la umpouco difícil. É uma coisinha tímida;pena que não haja mais como ela. Hojeem dia elas não dão a mínimaimportância a quem as vê sair dequalquer porta.

Sir Herbert de repente decidiu quetinha dito algo divertido e desatou àsgargalhadas às quais Alleyn teve ocuidado de se juntar.

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– Pobre Harris – disse Carrados. –Bem, bem, bem!

– Agora – continuou Alleyn quandoo riso se extinguiu –, sobre o fim dobaile. Gostaríamos de reconstituir osmovimentos de Lord Robert, claro.Não sei, senhor, se nos pode darqualquer tipo de ajuda.

– Ah! Sim. Bem, deixe-me ver. Aminha mulher e eu estávamos nagaleria do salão no topo da escada, adespedir-nos dos nossos convidados…aqueles que eram antiquados osuficiente para pensar que é necessárioagradecer aos seus anfitriões. Algunsdos jovens não se dão ao trabalho,posso dizer-lhe. Lord Robert veio, é

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claro, e foi perfeitamente encantador.Deixe-me pensar. Ele desceu asescadas, para o bengaleiro e saiuusando aquela capa extraordináriadele. Lembro-me disso porque vimpara baixo e passei por ele. Fui para obuffet.

– Saiu do buffet antes de LordRobert ter ido embora?

– Não. – Carrados voltou por ummomento à postura do soldado ferido.– Não. Essa foi a última vez que vi oRobert Gospell. Ah, bem! Não meimporto de admitir, Alleyn, que isto meatingiu de uma forma muito dura. Muitodura! Ainda assim, temos de enfrentara situação, não é? O que estávamos adizer? Ah, sim. Eu fiquei no buffet por

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algum tempo. Sentia-me esgotado, nãome importo de o admitir. Fumei umcharuto e bebi um pouco de brandy.Tive uma conversa com esse sujeito, oDimitri, e depois fui para casa.

– Com Lady Carrados e MissO’Brien?

– O quê? Não. Não, meti-as no carromais cedo. A minha mulher estavaabsolutamente em fanicos. Eu queriadar uma vista de olhos. Certificar-mede que tudo estava bem. Não confio emninguém. Estas pessoas são tãonegligentes, deixam cigarros acesos emtoda a parte. Assegurei-me de queestava tudo bem e, em seguida, fui paracasa. O motorista voltou para me vir

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buscar. Ouso dizer que gostaria defalar com ele.

– Não, senhor, muito obrigado. Achoque podemos confiar na sua palavra.

– Não quero ser tratado de formadiferente, mas isso fica à suaconsideração, claro. Mais algumacoisa?

– Se eu pudesse dar uma palavrinhaa Lady Carrados, senhor?

– Não me parece que a minha mulherlhe possa dar qualquer informação,Alleyn. Ela está absolutamenteprostrada com este assunto. RobertGospell era um grande amigo dela eela está muito abalada. De facto, aindanão acordou.

Alleyn ficou em silêncio.

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– Lamento muito – disse, por fim. –É uma pena. Queria evitar queaparecesse no inquérito, se possível.

– Quando é o inquérito?– Amanhã de manhã, senhor.Carrados olhou para ele.– Ela estará certamente muito

perturbada para uma coisa dessas. Voutomar providências para que o médicoo proíba. E é igualmente impossívelpara ela recebê-lo esta tarde. Sei quese fosse incomodá-la, coisa que nãotenciono de modo algum fazer, vistoela estar a dormir, ela recusaria. Isso édefinitivo.

A porta abriu-se e o criado entrou.– Senhor, sua senhoria transmitiu-me

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que teria muito gosto em receber Mr.Alleyn se este tiver alguns minutos.

Esperou, fechando suavemente aporta a um silêncio extremamentedesconfortável.

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CAPÍTULO 16

LADY CARRADOS RECORDA

Alleyn seguiu o criado até ao andarde cima, deixando Fox na biblioteca adesenvencilhar-se de uma situaçãocomplicada.

O criado levou o inspetor a umaempregada que por sua vez o conduziua Lady Carrados. Ela não estavadeitada, estava no seu boudoir, sentadamuito direita numa poltrona azul,ostentando a expressão que levaraPaddy O’Brien a compará-la com aMadonna. Estendeu as mãos quandoviu Alleyn e quando ele as tomou nassuas, uma expressão veio-lhe à mente.

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Pensou: «Ela é uma mulher inglesa eestas são as mãos de uma mulheringlesa, magras, sem volúpia, no fimde braços finos e delicados.»

– Roderick! Posso tratá-lo porRoderick, não posso? – perguntou ela.

– Sim. Há muito tempo que não nosvíamos, Evelyn – disse Alleyn.

– Demasiado tempo. A sua mãe àsvezes fala-me de si. Hoje falámos aotelefone. Ela foi muito simpática ecompreensiva, Roderick, e disse-meque você também o seria. Sente-se efume. Gostaria de sentir que não é umgrande detetive, mas um velho amigo.

– Eu também – disse Alleyn. – Devodizer-lhe, Evelyn, que estava prestes apedir para falar consigo quando recebi

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o seu recado.– Uma visita oficial?– Sim, infelizmente. A Evelyn tornou

tudo muito mais agradável pedindopara falar comigo.

Ela apertou as mãos finas e Alleyn,observando os tons azulados nos nósdos dedos, recordou que Troy queriapintá-los.

– O Herbert não queria que viessefalar comigo? – disse Lady Carrados.

– Ele não ficou muito contente com aideia. Pensou que estava muito cansadae angustiada.

Ela sorriu levemente: – Sim – disse,e foi impossível ter a certeza de quefalava ironicamente. – Sim, ele é muito

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atencioso. O que me quer perguntar,Roderick?

– Todo o tipo de perguntas tristes,infelizmente. Lamento muito. Sei queera amiga do Bunchy.

– Também o Roderick.– Sim.– Qual é a primeira pergunta?Alleyn recapitulou a cena final no

vestíbulo e descobriu que ela não tinhanada de novo a acrescentar. EvelynCarrados respondeu-lhe de formarápida e concisa. Ele podia ver que assuas perguntas não tinham nenhumsignificado especial para ela e que ospensamentos dela se emboscavam,ansiosamente, para o que ainda estavapara vir. Assim que ele começou a

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falar do quarto verde no topo dopatamar, soube que a tocou mais deperto. Alleyn sentiu uma profundaaversão pela sua tarefa. Prosseguiucom firmeza, sem ênfase.

– O quarto verde com o telefone.Sabemos que ele usou o telefone equeremos descobrir se ele foi ouvido.Alguém afirmou que deixou a suacarteira lá, Evelyn. É verdade?

– É.– O Dimitri devolveu-lha?– Sim.– A que horas?– Logo depois de eu ter chegado da

ceia, por volta da meia-noite e meia ouum quarto para a uma.

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– Não à uma?– Não.– Pode explicar-me porque é que

tem tanta certeza disso, por favor?– Porque – disse Lady Carrados – eu

estava a prestar imensa atenção àpassagem do tempo.

– A sério? O pico de um baile desucesso dá-se a uma hora específica?

– Bem, é normal prestar atenção àshoras. Se os convidados nãocomeçarem a sair depois do jantar,parece que vai ser um sucesso.

– Onde estava quando o Dimitri lhedevolveu a carteira?

– No salão de baile.– Reparou se o Bunchy andava por

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lá nessa altura?– Eu… acho… que não me lembro.Apertou mais as mãos, como se estas

guardassem o seu segredo, como seeste pudesse escapar. Os seus lábiosestavam muitos pálidos.

A porta abriu-se e Bridget entrou.Tinha aspeto de quem estivera achorar.

– Oh, Donna – disse ela. – Sintomuito, eu não sabia…

– Esta é a minha filha, Roderick.Bridget, este é o tio da Sarah.

– Como está? – disse Bridget. – Odetetive?

– O detetive.– A Sarah diz que é muito humano.– É muito simpático da parte da

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Sarah – disse o tio, num tom mordaz.– Espero que não esteja a fazer

perguntas difíceis e embaraçosas àminha mãe – disse Bridget, sentando-se no braço da poltrona. Tinha um arde vivacidade determinada.

– Estou a tentar. Talvez nos possaajudar a ambos. Estávamos a falarsobre a noite passada.

– Bem, podia acontecer eu dizer-lhealgo muito importante, sem saber, dealguma forma, não podia?

– Não seria a primeira vez –retorquiu Alleyn com um sorriso. –Estávamos a falar sobre a carteira dasua mãe.

– A que a minha mãe deixou lá em

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cima e que eu encontrei?– Bridgie! – sussurrou Lady

Carrados. – Oh, Bridgie!– Está tudo bem, Donna, minha

querida. Isso não teve nada a ver como Bunchy. Oh… ele estava lá, nãoestava? Na sala de jantar, quando eulhe trouxe a carteira?

Bridget, empoleirada no braço dapoltrona, não podia ver o rosto da mãee Alleyn pensou: «Agora estamos achegar a algum lado.»

– A Bridget devolveu a carteira nasala de jantar? – perguntou.

Lady Carrados recostou-se derepente e fechou os olhos.

– Sim – respondeu Bridget –, eestava simplesmente cheia de dinheiro.

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Mas porquê a carteira? Encaixa-se emalgum lugar terrivelmente subtil? Querdizer, o motivo foi realmente dinheiroe o assassino pensou que a Donna deuo dinheiro ao Bunchy? Ou algo dogénero?

Lady Carrados disse: – Bridgie,querida. Eu estava a meio de umaconversa privada com Mr. Alleyn.

– Oh, a sério, querida? Sinto muito.Vou-me embora. Ainda nos vemosantes de partir, Mr. Alleyn?

– Se fizer o favor, Miss Bridget.– Bem, venha ter comigo ao antigo

quarto das crianças. Eu estarei lá.Bridget olhou para a mãe sentada na

poltrona, que conseguiu sorrir-lhe. Ela

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saiu e Lady Carrados cobriu o rostocom as mãos.

– Não tente contar-me, Evelyn –disse Alleyn suavemente. – Eu digo-lhe o que se está a passar. Vá lá, podenão ser tão terrível, afinal de contas.Ouça. Alguém a está a chantagear. Temrecebido cartas escritas em papelWoolworth. Uma delas chegou namanhã em que o Bunchy lhe trouxeflores de primavera. A Evelynescondeu-a debaixo da sua almofada.Ontem à noite deixou a sua carteira noquarto verde, porque assim ainstruíram. A carteira continha odinheiro que o chantagista exigia.Parece agora que a Bridget encontrou asua carteira, ainda cheia de notas,

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enquanto estava na sala de jantar como Bunchy. Voltou a pô-la no quartoverde? Sim... e depois foi-lhedevolvida, vazia… enquanto estava nosalão de baile?

– Mas… sabe de tudo! Roderick,também sabe o que eles descobriram?

– Não. Não faço a mínima ideia doque eles descobriram. O Bunchysabia?

– Isso é o que me horroriza. OBunchy sabia, pelo menos, que euestava a ser perseguida. Quando aBridgie trouxe de volta a horrívelcarteira na noite passada, eu quaseentrei em colapso. Foi um choquehorrível para mim. Tem toda a razão,

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uma carta como a que descreveuchegou há poucos dias. Houve outras.Eu não lhes dei resposta. Destruí-astodas e tentei não pensar nelas.Imaginei que tudo acabaria se eu nãoprestasse atenção. Mas, na última,faziam ameaças terríveis, coisas quemagoariam tanto a Bridgie… tanto.Dizia que se eu não fizesse o quemandavam, o Herbert e a Bridgieficariam a saber de… tudo. Não fuicapaz de aguentar… Fiz o que elesdisseram. Coloquei quinhentas librasem notas verdes na carteira e pu-la namesinha do quarto verde antes da umahora. E então a Bridgie deve tê-lavisto. Jamais esquecerei o momentoem que entrou na sala de jantar, a rir e

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a segurar na carteira. Eu devo terficado com um aspeto terrível. Estátudo misturado na minha mente agora,como a lembrança de um sonhoterrível. De alguma forma,conseguimos livrar-nos da Bridgie. OBunchy deve ter sido esplêndido. SirDaniel Davidson estava lá. Tenhoandado a consultá-lo ultimamente porcausa da minha saúde e ele disse-mealgo antes, naquela noite. Livrei-medele também, e, em seguida, o Bunchye eu saímos para o vestíbulo e oBunchy disse que sabia o que eu queriafazer com a minha carteira e implorou-me que não o fizesse. Eu estavadesesperada. Deixei-o e fui novamente

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para o quarto verde. Não estava láninguém. Coloquei a carteira na mesaoutra vez. Faltavam vinte minutos paraa uma. Pu-la atrás de uma grande caixadourada de esmalte sobre a mesa.Depois desci para o salão de baile.Não sei quanto tempo passou até quevi o Dimitri entrar no salão com acarteira. No início pensei que tinhaacontecido a mesma coisa, mas quandopeguei na carteira, soube que odinheiro tinha desaparecido. O Dimitritinha encontrado a carteira, disse-meele, e reconheceu-a como minha. Étudo.

– É tudo – repetiu Alleyn. – É muitacoisa. Evelyn, vou perguntar-lhe àqueima-roupa, é possível que o Dimitri

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seja o homem que a está a chantagear?– O Dimitri? – Os olhos dela

arregalaram-se. – Meu Deus, não! Não,não, está fora de questão. Ele nãopoderia imaginar, não teria qualquerforma de saber. Não é possível.

– Tem a certeza? Ele anda dentro efora das casas das pessoas e tem livreacesso aos seus quartos. Temoportunidade de ouvir conversas, deobservar as pessoas quando elas estãoà vontade.

– Há quanto tempo é que ele trabalhaneste ramo?

– Ele disse-me que há sete anos.– O meu segredo tem mais do dobro

desse tempo. «O Segredo de Lady

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Audley»!2 Mas não é nada divertido,Roderick, quando temos de carregar opeso desse segredo. E no entanto, sabe,houve momentos em que quase oesqueci. Aconteceu tudo há muitotempo. Os anos passaram eamontoaram-se como areia em formasbanais e suaves que foram escondendoo passado gradualmente. Pensei quenunca mais seria capaz de dizer isto aalguém, mas, curiosamente, é umgrande alívio.

– Tem consciência de que eu estouaqui para investigar um homicídio?Faz parte das minhas funçõesesclarecer as circunstâncias que orodeiam. Não devo ter nenhuma

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consideração para com os sentimentosde ninguém, se estes se meterem entremim e o meu trabalho. O Bunchy sabiaque foi vítima de um chantagista. Não éa única vítima. Na verdade, ele estavaa trabalhar connosco na informaçãoque tínhamos de outra fonte, mas queaponta diretamente para o mesmoindivíduo. É bem possível, e parece-nos provável que a chantagem possaestar relacionada com o homicídio.Portanto, temos um incentivo duplopara chegar à identidade dochantagista.

– Eu sei o que me vai perguntar. Nãotenho nenhuma ideia de quem ele é.Nenhuma. Já me perguntei várias vezesquem poderia ser.

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– Sim. Sabe, Evelyn, podia usartodos os meus velhos truques, e comalguma sorte, provavelmente obteralgumas pistas sobre esse seu segredo.Podia levá-la a fazer pequenasadmissões e quando saísse daqui,anotava-as, examinava-as e talvezadivinhasse alguma coisa.Provavelmente não haveria umaresposta concreta, por issocomeçaríamos a cavar e a cavar. Avoltar atrás nesses anos que setransformaram em montes de areia eesconderam o seu problema. E, maiscedo ou mais tarde, iria encontraralguma coisa. Seria tudo muitodesagradável e eu iria odiá-lo, e o

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resultado final seria exatamente comose a Evelyn me tivesse contado toda asua história agora.

– Não posso. Não lhe posso contar.– Está a pensar nas consequências. A

publicidade nos jornais. Processosjudiciais. Sabe que não seriam tãomaus quanto está a imaginar. O seunome provavelmente nunca apareceria.

– Madame X – disse Lady Carradoscom um leve sorriso –, e toda a genteno tribunal a saber perfeitamente queera eu. Oh, não é por minha causa. Épela Bridgie. E pelo Herbert.Conheceu o Herbert e deve imaginarcomo ele reagiria a um golpe destetipo. Não consigo pensar em ninguémque se importasse mais.

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– E como é que ele vai reagir sedescobrir por si mesmo? Evelyn,pense! Você era uma das amigas doBunchy.

– Eu não sou uma mulher vingativa.– Meu Deus, não é uma questão de

vingança. É uma questão de deixar umassassino chantagista à solta.

– Não é preciso dizer mais nada,Roderick. Eu sei muito bem o que devofazer.

– E eu sei muito bem que o vai fazer.Olharam um para o outro. As mãos

dela esboçaram um gesto de rendição.– Muito bem – disse Lady Carrados.

– Desisto. Teria sido tudo muito maisdigno se eu tivesse aceitado logo o

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meu dever, não teria?– Não tinha dúvida nenhuma de que

o faria. Sabe, é bem possível que a suahistória nunca venha a ser conhecida.Não lhe posso prometer isso, claro,mas é possível, vamos trabalhar na suainformação, sem a apresentar comoprova.

– Isso é muito amável da sua parte –disse ela baixinho.

– Está a ser irónica – disse Alleyncom um sorriso – e isso mostra quenão se vai importar tanto quantoreceava, ou assim espero. Agora, éalgo sobre a Bridget, não é, eaconteceu há mais de catorze anos. ABridget tem quantos anos? Dezassete?

Lady Carrados assentiu.

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– Penso que não conheci o seuprimeiro marido, Evelyn. A Bridget émuito parecida com ele?

– Sim. Ela herdou a alegria doPaddy.

– A minha mãe disse-me isso. ABridget não se lembra dele, é claro.Começamos por ele?

– Sim. Não precisa de continuar aser delicado, Roderick. Acho que jádeve ter percebido, não já? O Paddy eeu não éramos casados.

– Valha-me Deus, foi muitocorajosa, Evelyn – disse Alleyn.

– Agora acho que sim, mas na alturanão me pareceu. Ninguém sabia. É otema de Jane Eyre, mas eu não tinha a

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integridade moral de Miss Eyre. OPaddy deixou uma mulher num asilo deloucos na Austrália, regressou a casa eapaixonou-se por mim. Como vocêdiria no seu relatório, passámos poruma espécie de casamento e vivemosfelizes e bígamos juntos. Depois oPaddy morreu.

– Não teve medo de que sesoubesse?

– Não. A mulher do Paddy não tinhafamília. – Lady Carrados esperou porum momento. Parecia estar acontemplar seriamente a história quehavia decidido contar. Quando voltoua falar, foi com compostura e até,pareceu a Alleyn, com um ar derelaxamento. Ele perguntou-se se

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muitas vezes não ordenara os factos nasua própria mente e ensaiara a suahistória perante um ouvinte imaginário.A voz calma continuou serenamente: –Ela era uma artista de variedades quefoi abandonada numa pequena cidadeda Nova Gales do Sul. Ele casou-secom ela e levou-a para Sydney. Seissemanas depois, ela ficouirremediavelmente louca. Eledescobriu que a mãe dela estava numasilo de loucos algures nos EstadosUnidos. O Paddy não tinha contado aninguém sobre o seu casamento e nãoprocurou qualquer dos seus conhecidosem Sydney. Quando conseguiu interná-la num asilo, usou o seu nome de

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solteira. Ele investiu dinheiro e osjuros foram suficientes para pagar asdespesas. Deixou tudo nas mãos doúnico homem que sabia a verdade.Anthony Banks, o melhor amigo doPaddy, e estava absolutamente acimade qualquer suspeita, tenho a certeza.Vivia em Sydney e ajudou o Paddydurante todo esse tempo. Ficou comuma procuração do Paddy. Nem elesabia que o Paddy voltou a casar.Ninguém sabia disso.

– E o pároco que os casou?– Lembro-me de que o Paddy me

disse que ele era um homem muitovelho. As testemunhas foram a mulhere a irmã. Sabe, nós falámos de tudocom muito cuidado e o Paddy tinha a

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certeza de que não havia possibilidadede sermos descobertos.

– Há algo mais, não há?– Sim. Algo que eu acho muito mais

difícil. – A voz ainda hesitou por ummomento. Alleyn viu que ela reuniatoda a sua coragem antes de continuar.– Cinco meses depois de noscasarmos, ele morreu. Eu estavagrávida da Bridgie e vim para Londrespara ficar com a minha mãe e consultaro meu médico. O Paddy ia viajar decarro da nossa casa em Ripplecote elevar-me de volta. De manhã recebi umtelegrama dele. Dizia: «A melhornotícia possível do Anthony Banks.»Na viagem, o carro derrapou e colidiu

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com o muro de uma ponte. Foi numapequena aldeia. Ele foi levado para ovicariato e depois para o hospitallocal. Quando cheguei lá, ele estavainconsciente e não sabia que eu estavacom ele quando morreu.

– E a notícia?– Eu tinha a certeza de que só

poderia ser uma coisa. A mulher deledevia ter morrido. Mas não conseguiaencontrar quaisquer cartas outelegramas, por isso ele deve terdestruído a mensagem que recebeu doAnthony Banks. O que aconteceu aseguir foi que os advogados do Paddyreceberam cinco mil libras daAustrália e uma carta do AnthonyBanks a dizer que foram enviadas em

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conformidade com as instruções doPaddy. Entretanto, eu escrevi aoAnthony Banks. Informei-o sobre amorte do Paddy, mas escrevi como sefosse prima do Paddy. Ele respondeucom o tipo habitual de carta. Claro quenão disse nada sobre a mulher doPaddy, mas disse que devia terrecebido uma carta pouco antes demorrer e que, se fosse encontrada, elegostaria que fosse destruída. Sabe,Roderick, o Anthony Banks devia serhonesto, porque ele poderia ter ficadocom as cinco mil libras com bastantefacilidade, quando ela morreu. E elenão sabia que o Paddy voltara a casar.

– Sim, isso é bem verdade. Tem a

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certeza, pelo que conhecia do Paddy,de que ele teria destruído a carta doBanks?

– Não. Sempre pensei que ele a teriaguardado para me mostrar.

– Acha que ele pediu às pessoas novicariato ou no hospital para destruiras cartas?

– Eles encontraram o nome e amorada dele noutras cartas que oPaddy tinha na carteira, portanto nãofoi isso. – Pela primeira vez, a voztranquila vacilou um pouco. –Disseram-me que ele só falou uma vez.Perguntou por mim.

– Lembra-se do nome das pessoas novicariato?

– Não. Eu escrevi a agradecer-lhes

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pelo que eles tinham feito. Era umnome muito comum.

– E o hospital local?– Era em Falconbridge,

Buckinghamshire. Um hospital bastantegrande. Eu encontrei-me com o médicoresponsável. Um homem idoso com umrosto como uma ovelha. Acho que sechamava Bletherley. Estouperfeitamente certa de que não era umchantagista, Roderick. E asenfermeiras foram encantadoras.

– Acha que ele poderia ter deixado acarta na bagagem, ou que poderia tercaído do seu bolso?

– Simplesmente não consigoacreditar que se a conservou, a

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guardaria em qualquer lugar exceto nasua carteira. E a carteira foi-meentregue. Estava no bolso do casacodele. Sabe, Roderick, não é como se eunão tivesse tentado encontrar a carta.Estava desesperadamente ansiosa paraver a mensagem do Anthony Banks.Perguntei novamente se alguma coisapoderia ter sido esquecida no hospitale foram feitas diligênciasintermináveis.

Ela parou por um momento e olhoufixamente para Alleyn.

– Percebe agora por que razão fariaquase qualquer coisa para evitar que aBridget descobrisse isto – disse ela.

– Sim, percebo – disse Alleyn.

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2 Novela sensacionalista da autoria de MaryElizabeth Braddon, publicada em 1862. (N. do T.)

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CAPÍTULO 17

O ELEMENTO DA JUVENTUDE

Alleyn encontrou Bridget no seuantigo quarto de criança, que tinha sidoconvertido numa sala de estar muitoadulta. Ela fê-lo sentar-se numa grandepoltrona e abanou uma caixa decigarros debaixo do seu nariz.

– Não vale a pena ser formal e fingirque não fuma. Eu sei que fuma.

– Ora essa! – exclamou Alleyn,olhando para os dedos que nãoestavam manchados de nicotina. –Como?

– Nota-se o contorno da suacigarreira através do seu casaco.

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Devia dedicar-se à investigação, Mr.Alleyn, é muito interessante.

Alleyn tirou um cigarro.– Apanhou-me – disse ele. – Já

pensou em tornar-se polícia? – Tocouno contorno da cigarreira quesobressaía do seu bolso do peito.

– Suponho que tem de se começarpor baixo – disse Bridget. – Qual é oprimeiro dever de uma mulher-polícia?

– Não sei. Não temos permissãopara conviver com as nossas colegas.

– Que pena! – disse Bridget. – Nãovou candidatar-me. Gostaria queconvivesse comigo, Mr. Alleyn.

Alleyn pensou: «Está a ser umbocadinho audaciosa e encantadora demais. O que se passa com ela? Maldito

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Donald!»– Bem, vou ter de fazê-lo por um

momento. Quero falar consigo sobreontem à noite, se me permitir – disseele.

– Receio que não sirva de nada –disse Bridget. – Espero que encontrequem quer que tenha sido. Está a matara Donna de preocupação, e o Bart estáa ser absolutamente letal acerca doassunto. O Bart é o meu padrasto.Conheceu-o, não conheceu? Todopukka sahib e pingalins. Sabe se umpingalim é pior do que um chicotecomum?

– Conhecia Lord Robert muito bem,não conhecia? – perguntou Alleyn.

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– Sim. Ele era um grande amigo daDonna. Suponho que acha que eu estoua ser dura e fria acerca dele. Ter-me-iasentido mais triste se tivesseacontecido há mais tempo.

– Isso é bastante enigmático – disseAlleyn. – O que significa?

– Não significa que não o lamenteagora. Lamento. Todos nós gostávamosdele e importo-me muito. Masdescobri que realmente não o conheciabem. Ele era mais difícil do que seriade imaginar. De uma forma que tornaas coisas piores; termo-nos afastadoum pouco. Sinto que daria qualquercoisa para ser capaz de lhe dizer queeu… eu… eu… eu lamento muito.

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– Lamenta o quê?– Não ter sido boa para ele na noite

passada. Desprezei-o.– Porque desprezou o pobre Bunchy?– Porque ele era horrível para o

sobrinho, que por acaso é meu amigochegado.

– O Donald Potter? Sim, eu seidisso. Não acha possível que o Donaldtenha sido bastante duro com o tio?

– Não, não acho. O Donald é umhomem agora. Tem de serindependente e decidir as coisas por simesmo. O Bunchy simplesmente nãoentendia isso. Queria escolher osamigos do Donald, decidir carreiradele e tratá-lo exatamente como se

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fosse um rapazinho. O Bunchy erairremediavelmente vitoriano econvencional.

– A Bridget gosta do capitãoWithers? – perguntou Alleyn derepente.

– O quê? – Bridget corou bastante. –Não posso dizer que faça exatamente omeu género. Acho-o pavoroso, mas éum excelente dançarino e pode sermuito divertido. Podemos perdoarquase tudo a alguém se for divertido,não acha?

– Que tipo de diversão oferece ocapitão Withers?

– Bem, quero dizer que ele éanimado. Não é exatamente animado,mas vai a todos os lugares e conhece

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toda a gente, por isso é sempre muitoútil. O Donald diz que o Wits é umótimo homem de negócios. Ele temsido muito bom a aconselhar o Donalde conhece todo o tipo de pessoas quepodem ser úteis.

– Úteis em que sentido? O Donaldvai exercer Medicina, não é?

– Bem… – Bridget hesitou. – Sim.Essa era a ideia original, mas o Witsaconselhou-o a não o fazer. O Donalddiz que não há muito na Medicina hojeem dia e, de qualquer forma, é horrívelser médico.

– Ai sim? – perguntou Alleyn. –Quer dizer que não é muito elegante?

– Não, claro que não – respondeu

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Bridget. Fulminou Alleyn com o olhar.– O senhor é indecente – disse. –Suponho que tenha razão. Odeio coisasmonótonas e respeitáveis e, dequalquer maneira, isto nada tem a vercom o caso.

– Gostava de saber que carreirasugeriu o capitão Withers ao Donald.

– Não está nada definido ainda. Elespensaram em abrir um novo clubenoturno. O Wits tem ideiasmaravilhosamente originais.

– Sim – concordou Alleyn. – Possoimaginar. Ele está a sair-se muito bemcom aquele sítio em Leatherhead, não éverdade? Porque não leva ele oDonald para lá?

Bridget pareceu surpresa.

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– Como é que sabe disso? –perguntou ela.

– A menina nunca deve dizer isso aum polícia – disse Alleyn. – Tira-lhe aoportunidade de brilhar. Por acaso, fuifalar com o Withers e o assunto deLeatherhead surgiu na conversa.

– Bem, atrevo-me a dizer que sabemais sobre isso do que eu – disseBridget. – O Donald diz que é apenasum pequeno clube de homens. Maispara diversão do que para ganhardinheiro. Jogam bridge e essas coisas.Não acho que haja qualquer vaga lá.

– Falou com o Donald desde que otio dele morreu?

Bridget apertou as mãos e bateu com

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raiva nos joelhos.– Claro, ele telefonou-me. Eu tinha

acabado de chegar ao telefone quandoo Bart entrou eriçado como um galovelho da Cochinchina e me tirou oauscultador. Tive vontade de o matar,foi tão irritante! Foi muito paciente eantiquado. Deu as condolências aoDonald e depois disse: «Se não seimporta da franqueza deste velhoamigo, eu acho que seria melhor se nãocomunicasse com a minha enteadadurante algum tempo», e eu disse:«Não! Dê-me o telefone», mas elesimplesmente virou-me as costas econtinuou: «De certeza quecompreende. Lamento, mas tenho de oproibir», e desligou a chamada. Eu

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protestei, mas estávamos no quarto daDonna e ela estava tão perturbada quetive de ceder e prometi que não iriaescrever nem fazer nada do género. Étão horrível, horrivelmente injusto. Etudo isto porque o Bart é um velhosnob e tem medo dos repórteres e doescândalo e tudo o mais. Velho falso ehorrível. E ele é absolutamenteindecente com a querida Donna. Comoé que ela se casou com ele?! Depoisdo meu pai, que deve ter sido tãoalegre e encantador, e que a amavamuito. Como é que ela pôde! E se oBart acha que vou desistir do Donald,vai ter uma surpresa muito grande.

– A Bridget está noiva?

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– Não. Vamos esperar até o Donaldcomeçar a ganhar.

– E quanto deve o Donald ganharantes de ser considerado um bompartido?

– O senhor não é lá muito subtil,pois não? Suponho que acha que eu soudura e moderna e horrível. Atrevo-mea dizer que sou, mas não consigosuportar a ideia de viver uma vidaesquálida e sem graça porque temos denos preocupar com dinheiro. Umapartamento pequeno e feio,restaurantes de segunda categoria,móveis de madeira branca pintadospara terem um aspeto novo e bonito.Uf! Conheço esse tipo de casamentos –

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disse Bridget com um ar experiente –,e sei como são.

– O Donald é o herdeiro do tio,sabe.

Bridget levantou-se com os olhosarregalados.

– Não se atreva – retorquiu –, não seatreva a insinuar que, porque o Donaldrecebe o dinheiro, ele tem algumacoisa a ver com isso. Não se atreva.

– E a menina não ponha ideias nacabeça das pessoas por ficar nadefensiva antes de lhe ter sido dadauma razão para isso – disse Alleyncom muita firmeza. Pôs a mão dentrodo bolso do peito. A ligeira saliênciadesapareceu e surgiu o bloco de notasdo inspetor. No meio da sua fúria, o

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olhar de Bridget caiu nele. Ela olhoudo bloco de notas para Alleyn. Oinspetor arqueou uma sobrancelha econtraiu o rosto numa careta dedesculpa.

– A ideia era magnífica – disse. –Parecia uma cigarreira. Os bordos dasaliência não eram afiados osuficiente.

– O senhor é indecente! – disseBridget.

– Desculpe – disse Alleyn. – Vamoslá então. Três ou quatro perguntasoficiais, se não se importar. E ouça,Miss Bridget, permite-me que lhe dêum conselho muito aborrecido? É onosso conselho habitual para as

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testemunhas inocentes. Não falte àverdade. Não perca a paciência. E nãotente nenhuma mentira, porque se ofizer, tão certo quanto dois e doisserem quatro, vai ser apanhada e apessoa que pensou que estava aproteger vai ficar em muito mauslençóis. Acha que o Donald é inocente,não acha?

– Eu sei que ele é inocente.– Certo. Então não tem nada a temer.

Vamos começar. Esteve no quartoverde, no topo da galeria?

– Sim. Muitas vezes.– Durante a hora da ceia? Entre a

meia-noite e a uma?Bridget refletiu. Enquanto a

observava, Alleyn contemplou a sua

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juventude, maravilhando-se com o seuotimismo. A mente de Bridget saltavade pensamentos de morte parapensamentos de amor. Ela lamentavaque Bunchy tivesse sido assassinado,mas desde que não suspeitassem deDonald, também estava bastanteentusiasmada com a ideia de umainvestigação policial. A suapreocupação com o sofrimento da mãeera genuína e estava pronta a fazersacrifícios em nome de Lady Carrados.Mas pronta para enfrentar toda atristeza, raiva ou medo estava a suajuventude, como uma espécie dearmadura pneumática que recebiaimpressões momentâneas destas

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coisas, mas era instantaneamentepreenchida de novo. Agora, quando elarelatou a indisposição da mãe, faloucom sobriedade, mas era impossívelescapar à impressão de que, no geral, atragédia estimulava Bridget em vez dea pôr nervosa.

– Eu estive lá em cima com oDonald até depois de a maioria daspessoas ter ido para a sala de jantar.Nós os dois descemos juntos. Foiquando devolvi a carteira à Donna. ADonna não se sentia bem. Ela estámuito cansada. Quase desmaiouquando eu a encontrei na sala de jantar.Disse mais tarde que foi do ar abafado.

– Sim?– Foi uma noite estranha, quente

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dentro de casa, mas quando as janelasforam abertas, a névoa entrou e trouxeum frio húmido e desagradável. ADonna pediu-me para ir buscar os seussais de cheiro. Eu corri ao piso decima, ao bengaleiro das senhoras. Acriada da Donna, a Sophie, estava lá.Ela deu-me os sais e corri escadaabaixo. Não consegui encontrar aDonna mas encontrei o Bunchy, quedisse que ela já estava bem. Eu tinhareservado uma dança para o PercyPercival. Ele estava um pouco bêbadoe fez uma cena sobre eu ter tentadoesquivar-me. Então dancei com elepara o calar.

– Voltou a ir ao quarto verde?

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– Não durante algum tempo. ODonald e eu fomos até lá mais para ofinal da festa.

– Deixou a sua cigarreira na mesa detampo recortado naquele quarto, emalgum momento do baile?

Bridget olhou para ele.– Não tenho cigarreira, eu não fumo.

Existe algo sobre uma cigarreira noquarto verde?

– Pode existir. Sabe se alguém ouviuo Bunchy telefonar daquele quarto,cerca da uma hora?

– Nunca ouvi falar sobre isso – disseBridget. Alleyn reparou que acuriosidade da jovem fora despertada.– Já perguntou a Miss Harris? – disse

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ela. – Ela passou muito tempo nopatamar de cima na noite passada. Elaestá algures cá em casa agora.

– Vou ter uma conversa com ela. Háapenas um outro ponto. Lord Robertestava com a sua mãe quando devolveua carteira, não estava? Ele estava láquando ela se sentiu fraca?

– Sim. Porquê?– Ele parecia perturbado de alguma

forma?– Parecia muito preocupado com a

Donna, mas isso era tudo. Sir Daniel, omédico da Donna, foi ter com ela. OBunchy abriu uma janela. Todospareciam querer livrar-se de mim. ADonna pediu os sais de cheiro, porisso fui buscá-los. É tudo. Que história

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é essa da cigarreira? Conte-me.– É dourada, com um medalhão

embutido na tampa e rodeada debrilhantes. Viu-a?

– Isso soa terrivelmente pomposo.Não, acho que não.

Alleyn levantou-se.– É tudo, então – disse ele. – Muito

obrigado, Miss Bridget. Adeus. –Chegou até a porta antes de ela ointerpelar.

– Mr. Alleyn!– Sim?Estava muito direita no meio da sala,

com o queixo levantado e uma mechade cabelo caída sobre a testa.

– Parece estar muito interessado no

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facto de a minha mãe não se ter sentidobem ontem à noite. Porquê?

– Lord Robert estava com ela nessemomento – começou Alleyn.

– Parece igualmente interessado nofacto de eu ter devolvido a carteira daminha mãe. Porquê? Nenhum destesincidentes teve nada a ver com oBunchy Gospell. A minha mãe não estábem e não quero preocupá-la.

– Muito bem– disse Alleyn. – Eutambém não, se puder evitá-lo.

Bridget pareceu aceitar aquelaresposta, mas Alleyn podia ver que elatinha algo mais a acrescentar. O seurosto jovem, muito bem maquilhado eenquadrado por caracóiscuidadosamente penteados, tinha um ar

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assustado.– Quero que me diga – prosseguiu

Bridget – se suspeitar do Donald.– É muito cedo para formarmos

qualquer suspeita definida de alguém –disse Alleyn. – Não deve dar muitaimportância às perguntas eminterrogatórios policiais. Muitas dasnossas perguntas não passam de rotina.Como herdeiro de Lord Robert, não,não me ataque de novo, perguntou-me eeu digo-lhe, como herdeiro de LordRobert, Donald será obrigado aresponder à sua quota-parte deperguntas. Se está preocupada com ele,e eu vejo que está, posso dar-lhe umconselho? Encoraje-o a voltar à

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Medicina. Se ele começar a gerirclubes noturnos, corre o risco de maiscedo ou mais tarde cair nas nossasgarras. E depois o que acontece?

– É claro – disse Bridget, comprudência – que agora vai serdiferente. Poderemos casar-nos muitoem breve, mesmo que ele esteja numhospital ou algo assim durante todo odia. Ele vai ter algum dinheiro.

– Sim, sim – concordou Alleyn.– Quer dizer, não quero ser cruel –

continuou Bridget olhando para elecom toda a franqueza –, mas,naturalmente, não se pode deixar depensar nisso. Lamentamos imenso oque aconteceu ao Bunchy. Nãopoderíamos estar mais tristes. Mas ele

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não era jovem como nós.Na mente de Alleyn veio de repente

a memória de uma cabeça rala,descaída para um lado, de mãosgordas, de pés pequenos virados paradentro.

– Não – disse ele –, ele não erajovem como vocês.

– Acho que ele estava a ser estúpidoe muito cansativo com o Donald –continuou Bridget em voz alta – e nãovou fingir que não, embora mearrependa de não ter sido simpáticacom ele ontem à noite. Mas mesmoassim não acredito que ele se teriaimportado por nós pensarmos nadiferença que o dinheiro faria. Penso

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que teria entendido.– Tenho a certeza de que teria

entendido.– Bem, então não olhe para mim

como se eu fosse dura e horrível.– Não acho que seja horrível e não

acredito que seja realmente dura.– Obrigada por nada – disse Bridget

e acrescentou imediatamente: – Oh,bolas, desculpe.

– Está tudo bem – disse Alleyn. –Adeus.

– Sim, mas…– E então?– Nada. Só que o senhor faz-me

sentir mal e isso não é justo. Sehouvesse alguma coisa que eu pudessefazer pelo Bunchy, eu faria. E o

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Donald também, claro. Mas ele estámorto. Não se pode fazer nada pelosmortos.

– Se eles foram assassinados,podemos tentar apanhar o homem queos matou.

– Olho por olho. – Isso não lhes trazconsolo algum. É apenas selvajaria.

– Deixar que o assassino asfixiealguém, se é isso que ele quer – disseAlleyn. – É essa a ideia?

– Se houvesse qualquer coisa realque pudéssemos fazer…

– Que tal se o Donald fizesse o quetio tanto queria? Tornar-se médico?Isto é – disse Alleyn rapidamente–, anão ser que ele realmente ambicione

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seguir outro caminho. Não os clubesnoturnos do capitão Withers.

– Acabei de dizer que ele pode serum médico, agora, não acabei?

– Sim– disse Alleyn – acabou. Entãoandamos aqui às voltas. – Pôs a mãona maçaneta da porta.

– Seria de pensar – disse Bridget –que, como detetive, tivesse gostado deme fazer falar.

Alleyn riu abertamente.– É muito egoísta – retorquiu –,

ouvi-a durante os últimos dez minutose tudo o que quer dizer é sobre simesma e o seu namorado. Eu entendo,mas não faz o género da polícia. Cuideda sua mãe, que precisa muito de si,incentive o seu jovem a voltar aos

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estudos e, se puder, afaste-o doWithers. Adeus, vou-me embora.

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CAPÍTULO 18

OS EMBARAÇOS DE UMASECRETÁRIA

Quando fechou a porta do quarto dascrianças atrás de si, Alleyn dirigiu-seàs escadas. Se Fox ainda estavafechado na biblioteca com Carrados, aconversa devia estar a ficar um poucotensa. Passou pelo quarto de LadyCarrados e ouviu um ruído distante.

– É insuportável, minha queridaEvelyn, que…

Alleyn fez uma careta e desceu aoandar de baixo.

Foi dar com Fox sozinho nabiblioteca.

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– Olá, Irmão Fox – disse Alleyn. –Perdeu o soldado simples?

– Subiu – disse Fox. – Não possodizer que lamente. Deu-me bastantetrabalho mantê-lo aqui depois que osenhor saiu.

– Como é que se arranjou?– Perguntei-lhe se ele tinha alguma

experiência em investigação policial.Resultou. Começou a falar de comoajudou a polícia a capturar um lacaioque roubou as pérolas de alguém, emTunbridge, e se ele simplesmente nãotivesse reparado no homem que olhavapara a jarra em cima do piano, nuncaninguém teria pensado em procurar nopotpourri da duquesa. É engraçado

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como alguns destes velhos cavalheirossão vaidosos, não é?

– Ostensivamente vaidosos. Pareceque temos esta divisão importante todapara nós, seria melhor ver seconseguimos falar com Miss Harris.Podia ir perguntar…

Mas antes de Fox ter chegado àporta, esta abriu-se e Miss Harrisentrou.

– Boa tarde – disse ela friamente: –Julgo que queriam falar comigo. Sou asecretária de Lady Carrados.

– Íamos mandá-la chamar, MissHarris – disse Alleyn. – Sente-se, porfavor. Chamo-me Alleyn e este é oinspetor Fox.

– Boa tarde – repetiu Miss Harris e

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sentou-se.Ela não era nem simples, nem bonita,

nem alta nem magra, nem morena nemloira. Ocorreu a Alleyn que elapoderia ter vencido o concurso de umjornal para a mulher média, querepresentava o modelo típico dafeminilidade. As roupas eramperfeitamente adequadas ecompletamente destituídas depersonalidade. Ela exalavainsignificância. Não era de admirarque poucas pessoas tivessem reparadonela em Marsdon House. Miss Harrispoderia ter ido a todos os lugares,ouvido tudo como uma espécie deOberon de classe média-alta na festa

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de Teseu3. A não ser que, na realidade,a insignificância chamasse a atençãoem Marsdon House na noite anterior.

O inspetor percebeu que Miss Harrisnão estava minimamente nervosa. Assuas mãos repousavam tranquilamenteno seu colo. Ela colocou um bloco deapontamentos e um lápis no braço dacadeira, exatamente como se estivesseprestes a tomar notas do ditado deAlleyn. Fox pegou no seu própriobloco de notas e esperou.

– Pode dar-nos o seu nome emorada? – perguntou Alleyn.

– Com certeza, Mr. Alleyn – disseMiss Harris friamente. – DorotheaViolet Harris. A morada da cidade ou

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do campo?– Ambas, por favor.– Cidade: Ebury Mews, número

cinquenta e sete, S.W. Campo:Vicariato, Barbicon-Bramley, Bucks. –Ela olhou para Fox. – B-a-r-b-i…

– Obrigado, Miss Harris, acho quejá está – disse Fox.

– Agora, Miss Harris – começouAlleyn –, pergunto-me se me poderádar qualquer tipo de ajuda nesteassunto.

Para seu grande espanto, MissHarris abriu imediatamente o bloco deapontamentos no qual ele pôdevislumbrar uma coluna de hieróglifosem estenografia. Ela tirou da blusa umpince-nez sem aros, preso por um fio.

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Colocou-o no nariz e esperou comcalma pela pergunta seguinte deAlleyn.

– Tem aí algumas notas, MissHarris? – disse o inspetor.

– Sim, Mr. Alleyn. Estive mesmoagora com Miss O’Brien e ela disse-me que o senhor iria precisar dequalquer informação que eu pudessedar sobre os movimentos de LordGospell na noite passada e estamadrugada. Achei melhor preparar oque tenho a dizer. Por isso, só fiz umaspequenas anotações.

– Admirável! Vamos ouvi-las.Miss Harris pigarreou.– Cerca da meia-noite e meia –

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começou ela num tom monótono eincisivo –, encontrei Lord RobertGospell no vestíbulo. Eu estava a falarcom Miss O’Brien. Ele pediu-me paradançar com ele mais tarde na noite.Fiquei no vestíbulo até um quarto paraa uma. Aconteceu eu olhar para o meurelógio. Depois desci para o patamarde cima. Permaneci lá. Período detempo desconhecido, mas fui até aopatamar do salão de baile antes da umae meia. Lord Gospell, quero dizer LordRobert Gospell, pediu-me então paradançar.

A voz de Miss Harris parou por ummomento. Ela mexeu o bloco deapontamentos no braço da cadeira.

– Dançámos – continuou ela. – Três

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danças sucessivas com repetições.Lord Robert apresentou-me a váriosdos seus amigos e depois levou-mepara o buffet no rés do chão. Bebemoschampanhe. Ele então lembrou-se quetinha prometido dançar com a duquesade Dorminster… – Aqui Miss Harrispareceu um pouco perdida por brevesinstantes. Repetiu: – Tinha prometidodançar com a duquesa de Dorminster –e aclarou a voz novamente. – Elelevou-me para o salão de baile epediu-me para dançar a valsa vienenseseguinte. Fiquei no salão de baile.Lord Robert dançou com a duquesa e,em seguida, com Miss Agatha Troy, apintora de retratos, e depois com duas

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senhoras cujos nomes desconheço. Nãode uma vez só, claro – disse MissHarris entre parênteses. – Isso seriaridículo. Eu ainda permanecia nosalão. A banda tocou o «DanúbioAzul». Lord Robert estava num grupode amigos perto de mim. Ele viu-me.Dançámos o «Danúbio Azul» juntos efizemos outra visita ao buffet. Repareinas horas. Tinha intenção de sair muitomais cedo e fiquei surpresa aodescobrir que eram quase três horas.Por isso fiquei até o fim.

Miss Harris olhou para Alleyn como ar impessoal e atento adequado à suaposição. Ele sentia tão precisamenteque ela era, de facto, sua secretáriaque não viu necessidade de reprimir

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um sorriso. Mas lançou um olhar aFox, que pela primeira vez na memóriade Alleyn, parecia realmente perdido.A sua grande mão pairava sobre obloco de notas, confusa. Alleynpercebeu que Fox não sabia se deviaescrever na estenografia de MissHarris ou na sua própria caligrafia.

– Obrigado, Miss Harris. Maisalguma coisa? – disse Alleyn.

Miss Harris virou uma página.– Detalhes de conversas – começou

ela. – Não anotei todas as observaçõesde que lembro. Muitas eram apenascomentários leves sobre temasadequados. Por exemplo, Lord Robertfalou de Lady Carrados e lamentou que

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parecesse tão cansada. Esse tipo decoisas.

– Vamos ouvir o que ele disse sobreesse tópico – disse Alleyn com umagravidade perfeita.

– Com certeza, Mr. Alleyn. LordRobert perguntou-me se eu havianotado que Lady Carrados andavacansada há algum tempo. Eu disse quesim, e que lamentava porque ela eratão simpática para todos. Eleperguntou se eu achava que erainteiramente devido à temporada. Eudisse que sim, porque muitas dassenhoras para quem já trabalheiachavam a temporada muitodesgastante, embora Lady Carradosencarasse o papel de anfitriã com

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muita leveza. Lord Robert perguntou-me se eu gostava de estar ao serviçode Lady Carrados. Respondi que sim,muito. Lord Robert fez-me váriasperguntas sobre mim. Foi muito fácilfalar com ele. Contei-lhe sobre osvelhos tempos na casa paroquial ecomo as coisas deveriam ter corridomuito melhor, e ele foi muito amável.Contei-lhe sobre a família do meu paiem Bucks e ele pareceu muitointeressado no facto de muitos delesserem vigários e de sermos uma velhafamília do Buckinghamshire.

«Oh, meu Deus», pensou Alleynnuma súbita onda de compaixãodolorosa. «E provavelmente são

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mesmo e porque as últimas duas outrês gerações tiveram de descercentímetro a centímetro na escalasocial, os seus filhos vão todos falarassim e ninguém vai sentir nada a nãoser uma incredulidadedesconfortável.»

– Vem de Barbicon-Bramley? –disse. – Isso não é muito longe deBassicote, pois não? Conheço essaparte do Bucks muito bem. O vicariatodo seu pai fica perto de Falconbridge?

– Oh, não. Falconbridge fica acinquenta quilómetros de distância. Omeu tio Walter foi vigário emFalconbridge.

– A sério? Há muito tempo? –perguntou Alleyn.

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– Quando eu era criança. Ele agoraestá aposentado e vive em Barbicon-Bramley. Todos os Harris vivem atéidades avançadas. Lord Robertobservou que acontece muito com osclérigos. Ele disse que a longevidadeera uma das recompensas maisduvidosas da virtude – disse MissHarris, lançando um olhar às suasanotações.

Alleyn podia ouvir a voz esganiçadaproferir este amável epigrama.

– Ele era divertido – acrescentouMiss Harris.

– Sim. Agora ouça, Miss Harris,estamos a chegar a algo muitoimportante. Afirmou que foi até ao

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último patamar entre, digamos, umquarto para a uma e a uma e um quarto.Acha que ficou lá todo esse tempo?

– Sim, Mr. Alleyn, acho que sim.– Exatamente onde?Miss Harris corou com a rapidez de

uma fada de uma pantomima sob umfoco de luz colorida.

– Bem, quero dizer, sentei-me nagaleria, fui ao bengaleiro das senhorasno patamar para arrumar e ver seestava tudo em ordem, e depois volteia sentar-me na galeria e, quer dizer,estava prestes…

– Estava na galeria à uma hora?– Eu… na verdade, não tenho a

certeza se….– Vamos tentar de outra forma. Foi

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ao bengaleiro imediatamente depois dechegar ao patamar?

– Sim. Sim, fui.– Quanto tempo ficou no bengaleiro?– Apenas alguns minutos.– Então estava de volta à galeria

bastante antes da uma.– Sim – disse Miss Harris sem

entusiasmo –, mas…– No momento ao qual estou a tentar

chegar, o capitão Withers e Mr.Donald Potter estavam na galeria, e daímudaram-se para a sala de estar nessepatamar. Sir Herbert Carrados andavadentro e fora da sala de estar e asenhora pode tê-lo ouvido a pedir aocriado de serviço para tratar dos

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cinzeiros e dos fósforos. Lembra-sedisso?

– Não. Não exatamente. Acho queme lembro de ver o capitão Withers eMr. Potter através da porta da salaquando passei para descer. A sala deestar maior, não aquela com o telefone.Lord Robert estava no quarto dotelefone.

– Como é que sabe isso?– Eu… ouvi-o.– Do bengaleiro?– De… quero dizer…– O quarto entre o bengaleiro e o

quarto do telefone, talvez – disseAlleyn, amaldiçoando mentalmente amodéstia extrema de Miss Harris.

– Sim – disse Miss Harris, olhando

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diretamente em frente. A sua derrotafoi tão evidente que o próprio Alleynquase começou a sentir-se tímido.

– Por favor, não leve a mal se eupedir informação muito exata – disseele. – Os polícias são um pouco comoos médicos nestes casos. As coisas nãocontam. Quando entrou na casa debanho das senhoras?

– Assim que cheguei lá acima –disse Miss Harris. – Hum!

– Certo. Agora vamos ver seconseguimos acertar as coisas, estábem? Chegou ao andar de cima,digamos, cerca de dez ou quinzeminutos antes da uma. Foi direta para aporta ao lado do quarto verde com o

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telefone. Viu alguém?– O capitão Withers estava a sair do

quarto verde. Acho que estava umasenhora lá dentro. Vi-a através daporta aberta quando… quando abri aoutra.

– Sim. Mais alguém?– Acho que reparei em Sir Herbert

na outra sala de estar, na primeira, aopassar pela porta. É tudo.

– E então entrou na casa de banhodas senhoras?

– Sim – admitiu Miss Harris,fechando os olhos por um momento eabrindo-os novamente para olhar comalgo semelhante a horror para o lápis ebloco de notas de Fox. Alleyn sentiuque ela se imaginava a ser obrigada a

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responder a estas e outras perguntaspiores berradas por um advogadocélebre no tribunal criminal.

– Quanto tempo permaneceu nessadivisão? – perguntou.

Pálida e com os lábios exangues,Miss Harris soltou uma risadinhalouca. – Oh – disse ela –, oh, algumtempo. Sabe como é.

– E enquanto lá estava, ouviu LordRobert telefonar na sala ao lado?

– Sim, ouvi – disse Miss Harris emvoz alta e com um ar de desafio.

«Ela está a olhar para mimexatamente como um coelho apanhadonuma armadilha», pensou Alleyn.

– Então Lord Robert provavelmente

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subiu antes de si. Acha que a senhoraem quem reparou ainda estava noquarto verde, quando ele começou atelefonar?

– Não. Ouvi-a sair e… e ela…quero dizer que ela tentou… tentou…

– Sim, sim – disse Alleyn –, eupercebo. E foi embora?

– Definitivamente.– E então Lord Robert começou a

telefonar? Estou a ver. Conseguiuouvir o que ele disse?

– Oh, não. Ele falou baixo, claro.Não fiz nenhuma tentativa para ouvir.

– Claro que não.– Não poderia ter ouvido mesmo que

tivesse tentado – continuou MissHarris. – Só podia ouvir o tom da voz,

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e era inconfundível.– Sim? – encorajou Alleyn.

«Estaremos agora finalmente a chegarà questão?», pensou. Miss Harris nãocontinuou, no entanto, mas sentou-secom os lábios a formar um botãoenlouquecedor de retidão deliberada.

– Ouviu o fim da conversa? – disseele, por fim.

– Oh, sim! O fim. Sim. Pelo menosalguém entrou no quarto. Ouvi LordRobert dizer: «Oh, olá!» Foram asúnicas palavras que distingui, e quaselogo a seguir ouvi o tilintar dotelefone, por isso soube que ele tinhadesligado.

– E a outra pessoa? Era um homem?

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– Sim. Sim, um homem.– Seria capaz de reconhecer esse

homem? – perguntou Alleyn num tomcontrolado.

– Oh, não – exclamou Miss Harris,com um ar de alívio. – Não, Mr.Alleyn, não tenho a menor ideia. Sabe,eu realmente não ouvi nada na sala aolado. Absolutamente nada. A sério.

– Voltou para o patamar?– Não imediatamente. Não.– Oh! – disse Alleyn. Não conseguia

pensar em mais nada para dizer. AtéFox parecia ter sido contagiado pelovírus do constrangimento extremo.Pigarreou ruidosamente. Miss Harris,surpreendentemente, desatou numa

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tagarelice estridente, mantendo osolhos fixos na parede em frente eabrindo e fechando as mãos.

– Não. Não por alguns minutos e, emseguida, claro, quando voltei, amboshaviam desaparecido. Quero dizer,quando finalmente voltei. É claro queLord Robert saiu antes e depois… e…de modo que tudo estava bem.

– E o outro homem?– Ele… foi uma pena. Um pequeno

erro. Garanto-vos que não vi quem era.Quero dizer assim que ele percebeuque era a porta errada, saiu.Naturalmente. O facto de metade daporta interna ser de vidro tornou ascoisas ainda mais aborrecidas,embora, naturalmente, a existência de

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dois quartos tenha sido melhor paratodos os envolvidos do que se fosse oarranjo habitual. E quero dizer que elenão me viu, de forma que não teveimportância. Não teve importâncianenhuma. Nenhuma.

Alleyn, ouvindo esta ladainha,recordou o patamar da galeria deMarsdon House. Lembrou-se daantessala vitoriana situada junto aopatamar, e do sombrio santuáriointerior. Os fragmentos caóticos dasobservações de Miss Harris juntaram-se no seu cérebro e em seguidaformaram um padrão definido.

– Não tem importância nenhuma,realmente – repetiu ainda Miss Harris.

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– Claro que não – concordou Alleynnum tom alegre. – Acho quecompreendo o que aconteceu. Corrija-me se estiver enganado. Enquantoainda estava na sala interior, o homemque interrompeu a conversa telefónicade Lord Robert saiu do quarto verde eentrou na porta errada, na antessala dacasa de banho das senhoras. Foi isso?

Miss Harris empalideceu ao ouviristo, mas acenou com a cabeça.

– Porque está tão segura de que era omesmo homem, Miss Harris?

– Bem, porque, porque eu ouvi asvozes deles quando chegaram à portada sala ao lado e, em seguida, a voz deLord Robert no corredor e então…

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então aconteceu. Eu só sabia que eraquem era.

Alleyn inclinou-se para a frente.– Metade da porta interior – disse

ele – é feita de vidro. Conseguiu veresse intruso?

– Vagamente, mal – exclamou MissHarris. – Bastante obscurecido,garanto-lhe. Lamento dizer que meesqueci por alguns segundos dedesligar a minha luz. A outra estavaacesa.

– Então na realidade pôde ver aforma dessa pessoa, emboraobscurecida, através do vidro fosco?

– Sim. Por um segundo ou dois.Antes de ele ter ido embora. Acho quetalvez ele não estivesse a sentir-se

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bem.– Bêbado?– Não, não. Certamente que não. Não

me pareceu nada disso. Era mais comose ele tivesse acabado de sofrer umchoque.

– Porquê?– Ele… o vulto dele pôs as mãos no

rosto e balançou para a divisória devidro e por um momento, amparou-secontra ela. Graças a Deus – disse MissHarris com fervor real –, eu tranquei aporta.

– A silhueta ficou mais clara e bemdefinida quando ele se aproximou daporta?

– Suponho que sim. Sim, ficou.

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– Mas mesmo assim não foi capaz deo reconhecer?

– Não. Nem por um instante.– Suponhamos que eu digo que este

homem era ou Sir Herbert Carrados, ocapitão Withers, o criado no patamar,Mr. Donald Potter, ou Dimitri, ofornecedor. Qual acha mais provável?

– Não sei. Talvez o Dimitri. Não sei.– De que altura era?– Média.– Bem – disse Alleyn –, o que

aconteceu depois?– Ele tirou as mãos do rosto. Virou-

se de costas contra a porta. Eu… tenhoa impressão de que, de repente, elepercebeu onde estava. Depois, a

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silhueta afastou-se e ficou esbatida e,em seguida, desapareceu. Eu ouvi aporta exterior a ser fechada.

– E por fim pôde sair?– Esperei um momento. – Miss

Harris olhou atentamente para Alleyn.Talvez ela tenha visto algo nos seusolhos que a fez sentir que, afinal, o seurecital não tinha sido um assunto tãoterrível.

– Foi estranho, não foi? – disse ela.– Honestamente?

– Honestamente – disse Alleyn –,foi.

3 Personagens de Sonho de uma noite de verão,de Shakespeare. (N. do T.)

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CAPÍTULO 19

O GENERAL

– Então a sua ideia é que esse sujeitona casa de banho é o assassino – disseFox enquanto se dirigiam novamentepara Belgrave Square.

– Sim, Fox, essa é a minha ideia.Não há nenhuma razão possível parauma pessoa inocente não admitirinterromper o telefonema, e ninguém oadmitiu. Infelizmente teremos deverificar novamente toda a gente,convidados, funcionários, todos, paranos certificarmos do terreno quepisamos. E vamos ter de perguntar atodos eles se irromperam pelo limite

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exterior do santuário de Miss Harris.Todos. Graças a Deus, não hánecessidade de interrogar as mulheres,apesar de que, pelo que conheço daminha sobrinha Sarah, nãoencontraríamos muitas facesruborizadas e olhares conscientes entreas debutantes. Se ninguém admitir oincidente do telefone, ou a sequela nacasa de banho, então teremos de seguiroutra direção. Podemos dizer que háuma forte probabilidade de que onosso homem tenha ouvido otelefonema do Bunchy para mim,interrompendo a frase: «e ele está atrabalhar com…», em seguida tenhaesperado no quarto verde até o Bunchyter saído, e depois tenha entrado na

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antessala.– Mas porque faria ele isso? –

perguntou Fox. – Pensou que era a casade banho dos homens ou estava a tentarevitar alguém? Ou o quê?

– É um quadro curioso, não é? Essafigura vaga vista através do vidrogrosso. Mesmo na sua vergonhamortal, Miss Harris percebeu que eleparecia estar agitado. As mãos norosto, o corpo inclinado emomentaneamente apoiado na porta. E,de repente, ele recompõe-se e sai.Parecia, disse Miss Harris, como setivesse acabado de sofrer um choque.Ele tinha acabado de intercetar umachamada telefónica para a Yard de um

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homem que, aparentemente, sabia tudoo que havia para saber sobre as suasatividades de chantagem. Poderiamuito bem sentir necessidade de entrarpela primeira porta que encontrassepara se recompor.

– Sim, é bem possível – concordouFox. – Gostaria de ter algo um poucomais definido para me apoiar, apesarde tudo.

– Também eu, garanto-lhe. Osdomínios detestáveis da conjetura!Como eu os odeio.

– Miss Harris não acrescentou nadaao cenário no vestíbulo.

– As saídas finais? Não. Elasimplesmente corroborou tudo o que jásabíamos.

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– É uma jovem observadora, não é?– disse Fox.

– Sim, Fox, ela não é tonta, apesarde todos os seus escrúpulos. E agoratemos uma tarefa maravilhosa pelafrente. Temos de tentar ludibriar,persuadir ou intimidar Mrs. Halcut-Hackett a denunciar o seu jovem. Umaocupação encantadora.

– Também iremos falar com ogeneral? Lá terá de ser. Acho que osoutros colegas não o devem terabordado. Eu disse-lhes para nãotocarem em nenhum dos nossos.

– Tem razão – disse Alleyn, com umsuspiro. – Iremos falar com o general.E aqui estamos nós em Halkin Street.

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Os Halcut-Hackett de Halkin Street!Uma importante coleção de sonsaspirados e consoantes afiadas.Primeiro, o general, suponho.

O general esperava-os. Fox e Alleynpercorreram um vestíbulo que, emboranão tivesse língua, falava do decoradorde interiores mais caro e em voga deLondres. Foram conduzidos a umescritório que cheirava a couro echarutos e estava decorado com umabonita série de gravuras de corridas decavalos. Alleyn perguntou-se se ogeneral se teria posto com o seu sabrede cavalaria no limiar do escritório,desafiando o decorador da moda paravir e ver o que acontecia. Ou talvezMrs. Halcut-Hackett, sendo americana,

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tivesse feito com que o escritório doseu marido se tornasse agressivamentebritânico. Alleyn e Fox esperaramcinco minutos antes de ouvirem passosmuito firmes e uma tosse forte. Ogeneral Halcut-Hackett entrou noescritório.

– Olá! Boa tarde! O quê! – gritou.O seu rosto era de terracota, o

bigode formidável, os olhos deporcelana azul. Ele era o genuínomilitar de alta patente, o alvo de todasas piadas, benevolentes ou maliciosas,sobre o exército. Era impossívelacreditar que a sua mente estivesse tãovazia como o seu rosto pareciarevelar. Tão típico era ele que teria

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parecido irreal, uma figurabidimensional saída de uma bandadesenhada colorida de um jantarregimental, não fosse um certo ar desolidez e uma espécie de constânciainfantil que era bastante cativante.Alleyn pensou: «Ele, sim, é overdadeiro soldado simples.»

– Sentem-se – disse o generalHalcut-Hackett. – Que horror!Assassino ignóbil e maldito. Isto está aficar pior do que Chicago. O que estãoa fazer acerca disto, rapazes? O quê?Vão apanhar o sujeito? O que foi?

– Eu espero que sim, senhor – disseAlleyn.

– Espero que sim! Por Deus, esperoque você espere que sim. Bem, em que

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vos posso ser útil?– Pode responder a uma ou duas

perguntas, se não se importar, senhor.– Claro que sim. É um maldito

ultraje. O país está a cair aos pedaçose, na minha opinião, isto é apenas maisuma prova disso. Homens como RobertGospell não podem apanhar um táxisem serem sufocados. Ao quechegámos. E então?

– Bem, general, o primeiro ponto éeste. O senhor entrou no quarto verdeno patamar de cima à uma hora damanhã, enquanto Lord Robert Gospellusava o telefone?

– Não. Nunca passei perto desselugar. Próxima!

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– A que horas saiu de MarsdonHouse?

– Entre a meia-noite e a uma.– Cedo – comentou Alleyn.– A protegida da minha mulher teve

uma dor de dentes. Trouxe-a para casa.Aquela maldita festa foi de mais paraela. Mulheres e festas! É tudo em queas pessoas pensam hoje em dia. Postaà prova de manhã à noite. O suficientepara matar um cavalo.

– Sim – disse Alleyn. – É de admirarcomo elas aguentam.

– O seu nome é Alleyn?– Sim, senhor.– Filho de George Alleyn, não é?

Você é como ele. Ele estava no meu

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regimento. Tenho sessenta e sete anos– acrescentou o general Halcut-Hackettcom uma veemência considerável. –Sessenta e sete. Porque não se juntouao regimento do seu pai? Porquepreferia isto? O quê?

– É isso, senhor. O próximo pontoé…

– O quê? Vamos em frente com otrabalho, hein? Muito bem.

– Voltou a Marsdon House?– Por que diabo iria eu fazer isso?– Pensei que talvez a sua mulher

fosse…O general olhou para a segunda

gravura da série e disse:– A minha mulher preferiu ficar. De

facto, o Robert Gospell ofereceu-se

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para a acompanhar a casa.– No entanto, ele não fez isso.– Raios, senhor, a minha mulher não

é uma assassina.– Lord Robert pode ter atravessado

a praça para acompanhar a sua mulher,senhor, e voltado.

– Bem, ele não o fez. Ela disse-meque eles se desencontraram.

– E o senhor? Trouxe a sua filha edepois…

– Ela não é minha filha – disse ogeneral com uma boa dose de ênfase. –Ela é filha de uma amiga da minhamulher. – Franziu o sobrolho emurmurou meio para si mesmo: –Inaudito na minha juventude, este tipo

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de coisa. Faz uma mulher parecer umamaldita treinadora. A menina não émais do que uma poldra assustada emiserável. Bah!

– Sim, senhor. Bem, então, trouxeMiss… – disse Alleyn.

– Birnbaum. Rose Birnbaum,pobrezinha. Chamo-lhe Poppet.

– Miss Birnbaum e depois…– E depois?– Ficou acordado?Para espanto de Alleyn, o rosto do

general passou de terracota a roxo, enão, ao que parecia, de raiva, mas devergonha. Ele soprou o bigode váriasvezes, fez beicinho como um bebé epestanejou. Por fim, disse:

– Juro pela minha alma, não vejo por

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que diabo é importante saber se fuipara a cama à meia-noite ou à uma.

– A pergunta pode soar impertinente– disse Alleyn. – Se assim é, peçodesculpa. Mas, por uma questão derotina da polícia, queremosestabelecer álibis…

– Álibis! – rugiu o general. – Álibis!Meu Deus, vai ficar aí sentado e dizer-me que eu preciso de um álibi? Raiospartam…

– Mas, general Halcut-Hackett –apressou-se a dizer Alleyn, enquanto oarroxeado general inspirava –, todosos convidados de Marsdon Houseprecisam de um álibi.

– Todos os convidados! Todos os

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convidados! Mas caramba, senhor, ohomem foi assassinado num malditotáxi, não num maldito salão de baile.Alguns bolcheviques fascistas imundos– exclamou o general, com grandedificuldade em pronunciar o estranhoconjunto de sibilantes. Deslocouligeiramente a placa de dentessuperior, mas voltou a colocá-laimpacientemente na posição adequada.– Eles são todos iguais! – acrescentouconfusamente. – A maldita corja.

Alleyn procurou uma fraseadequada, numa linguagem que ogeneral Halcut-Hackett entendesse.Olhou para Fox, que fitavasolenemente o general por cima dosóculos.

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– Tenho a certeza de que vaicompreender, senhor – disse Alleyn –,que estamos simplesmente a cumprirordens.

– O quê!«Isto deve resultar», pensou Alleyn.– Ordens! Eu posso acatar ordens

tão bem como qualquer um – disse ogeneral, e Alleyn, lembrando-se de queCarrados usara a mesma expressão,refletiu que, neste caso, provavelmenteera verdade. Podia ver que o generalse preparava para acatar ordens.

– Peço desculpa – disse o general. –Perdi a calma. Acontece-me muitasvezes ultimamente. É da indigestão.

– É o suficiente para fazer qualquer

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um perder a paciência, senhor.– Bem – disse o general –, você

manteve a sua. Vamos lá, então.– Preciso apenas que me confirme

que não voltou a sair depois de terregressado a casa e, se possível,alguém para corroborar essaafirmação.

Mais uma vez o general pareciaestranhamente envergonhado.

– Não posso apresentar-lhe umatestemunha – disse ele. – Ninguém meviu ir para a cama.

– Compreendo. Pois bem, senhor, seme der a sua palavra de que não voltoua sair.

– Mas, raios, eu fui… fui dar… deiuma volta ao redor da praça antes de

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me ir deitar. Faço sempre isso.– A que horas foi isso?– Não sei.– Não me pode dar uma ideia? Foi

muito tempo depois de ter regressado?– Algum tempo. Mandei a menina

para o quarto dela e encarreguei acriada da minha mulher de cuidar dela.Depois vim para aqui e tomei umabebida. Li um pouco. Confesso quedormitei um pouco. Não me conseguiadecidir a ir para a cama.

– Não olhou para o relógio ali emcima da lareira?

Mais uma vez o general pareceuextremamente envergonhado.

– Posso ter feito isso. Imagino que

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sim. De facto, lembro-me agora de quedormitei e acordei sobressaltado. Ofogo tinha-se apagado. Estava muitofrio. – Olhou para Alleyn e disseabruptamente: – Senti-me deprimido.Estou a ficar velho e não gosto damadrugada. Tem razão, eu olhei para orelógio. Eram duas e meia. Fiquei aquisentado nesta cadeira a tentarconvencer-me a ir para a cama. Nãoconsegui. Então fui dar um passeiopela praça.

– Isso é excelente, senhor. Talvezseja capaz de nos dar a informaçãoimportante de que estamos à procura.Por acaso reparou em alguém a rondarpela praça?

– Não.

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– Encontrou alguém?– Um polícia.Alleyn olhou Fox.– O agente Titheridge – disse Fox. –

Nós temos o relatório dele, senhor.– Muito bem – disse Alleyn. – Havia

pessoas que começavam a sair deMarsdon House quando o senhorpassou?

O general murmurou algo como «épossível», parou por um momento eentão disse: – Estava muito escuro.Não conseguia ver nada.

– Uma noite de nevoeiro, sim – disseAlleyn. – Por acaso reparou no capitãoMaurice Withers na névoa?

– Não! – exclamou o general com

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extraordinária veemência. – Não, nãoreparei. Não conheço o sujeito. Não!

Houve uma pausa desconfortável e,em seguida, o general disse: – Receioque é tudo o que lhe posso dizer.Quando voltei a casa, fui direto para acama.

– A sua mulher não tinha chegado?– Não, não tinha – disse o general

muito alto.Alleyn aguardou um momento e

depois disse:– Muito obrigado, senhor. Agora,

vamos preparar uma declaração apartir das notas do inspetor Fox, e senão tiver nenhuma objeção, vamospedir-lhe que a assine.

– Eu… hum… hum… hum… Eu vou

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dar uma vista de olhos a isso.– Sim. E agora, se me permite,

gostaria de dar uma palavrinha a Mrs.Halcut-Hackett.

O general ergueu o queixo. Por ummomento, Alleyn interrogou-se se iriaexplodir de novo. Mas o general disse:«Muito bem. Vou chamá-la», emarchou para fora do escritório.

– Caramba!– disse Fox.– É o Halcut-Hackett – disse Alleyn.

– Por que raio – acrescentou,esfregando o nariz – está aquele velhodiabo tão atrapalhado com o passeiopela praça?

– Parece uma coisa natural para umcavalheiro da sua espécie fazer –

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refletiu Fox. – Não faço ideia. Penseique ele fosse do tipo que quebra o gelono Serpentine, todas as manhãs, e andaà volta da praça todas as noites.

– Mente muito mal, o desgraçado.Será que ele é um desgraçado? Nãoserá talvez um malandreco? Bolas! Porque diabo não podia dar-nos um álibiescorreito e à prova de bala? A metero nariz em Belgrave Square, não nospode dizer exatamente quando ouexatamente porquê, ou exatamente porquanto tempo. O que disse o agente?

– Disse que não tinha notado nada desuspeito. Nunca mencionou o general.Eu vou ter uma conversa com o Sr.Agente Titheridge sobre isso.

– Seria normal ver o general na

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praça, se ele passeia por BelgraveSquare todas as noites – disse Alleyn.

– Sim, mas não às duas e meia damanhã – objetou Fox.

– Tem razão, Fox, tem razão. OTitheridge deve ser chamado àatenção. Que diabo andava o velhoHalcut-Hackett a fazer ontem à noite?Não podemos deixar passar, sabe,porque, afinal, se ele suspeita…

Alleyn calou-se. Ele e Foxlevantaram-se quando Mrs. Halcut-Hackett entrou.

Alleyn, claro, já lhe foraapresentado antes, no dia em que ela sedeslocara ao seu escritório com ahistória de Mrs. X e as cartas de

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chantagem. Refletiu agora que, emcerto sentido, ela tinha começado todoaquele maldito assunto. «Se não fossea visita desta mulher teimosa edesconfiada», pensou, «não teriapedido ao Bunchy para se enfiar numaarmadilha mortal. Oh, meu Deus!»

– Ora, inspetor, não me disseram queera o senhor – disse Mrs. Halcut-Hackett. – Sabe que eu nunca imaginei,naquele dia em que o visitei por causados problemas da minha pobre amiga,que estava a falar com o famoso filhode Lady Alleyn.

Encolhendo-se por dentro sob estereconhecimento deliberadamente snobdo seu estatuto, Alleyn apertou-lhe amão e logo a seguir apresentou Fox,

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com quem Mrs. Halcut-Hackett semostrou insuportavelmente cordial.Sentaram-se todos. Alleyn esperoualguns momentos antes de falar.Observou Mrs. Halcut-Hackett. Viuque, sob a pátina espessa de creme erouge, o seu rosto apresentava umacerta flacidez. Reparou no medo queos seus olhos e as suas mãosdenunciavam.

– Acho que podemos muito bemcomeçar com essa visita à ScotlandYard. O assunto de que falámosnaquela ocasião parece estarrelacionado com a morte de LordRobert Gospell.

Mrs. Halcut-Hackett endireitou-se no

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seu dispendioso corpete e o inspetorsoube que ela estava apavorada.

– Mas isso é absurdo – disse. – Não,honestamente, Mr. Alleyn, não possoacreditar que possa haver algumaligação. Ora, a minha amiga…

– Mrs. Halcut-Hackett – interrompeuAlleyn –, receio que tenha de pôr delado a sua amiga.

Ela lançou um olhar horrorizado aFox e Alleyn respondeu àquele olhar.

– Mr. Fox está totalmentefamiliarizado com toda a história –disse ele. – Ele concorda comigo que asua amiga tinha de desaparecer.Percebemos para além de qualquerdúvida que a senhora foi a vítimadessas cartas de chantagem. Não há

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nenhuma necessidade de se sentirparticularmente angustiada por causadisto. É muito melhor lidar com estetipo de coisas sem o auxílio de umaMrs. X imaginária. Ela provoca umaconfusão desnecessária. Agorasabemos de alguns factos…

– Mas… como é que…?Alleyn decidiu arriscar. Era um

risco sério.– Eu já falei com o capitão Withers

– lançou.– Meu Deus, o Maurice confessou?O bloco de notas de Fox caiu ao

chão.Alleyn, ainda a observar a boca

aberta, delineada a vermelho e húmida,

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disse: – O capitão Withers nãoconfessou nada. – E pensou: «Será queela percebeu os estragos que causou?»

– Mas eu não quero dizer que… –balbuciou Mrs. Halcut-Hackett. – Eunão quis dizer isso. Não é isso. Osenhor deve estar louco. Ele nãopoderia ter feito isso. – Fechou asmãos e bateu com os punhos nosbraços da cadeira. – O que é que elelhe disse?

– Muito pouco, infelizmente. Aindaassim, ficámos a saber que não eraimpossível…

– O senhor deve estar louco parapensar que ele fez isso. Não poderiafazê-lo.

– Não poderia fazer o quê, Mrs.

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Halcut-Hackett? – perguntou Alleyn.– A coisa… Lord Robert... – Ficou

com a boca horrivelmente escancaradae, em seguida, com um gesto rápido evulgar, cobriu a boca com a mãoenfeitada de anéis. Um ar decompreensão e terror estampou-se-lheno rosto.

– O que julga que o capitão Withersconfessou?

– Nada que tenha a ver com isto.Nada que diga respeito a ninguém anão ser a mim. Não quis dizer nada. Osenhor enganou-me. Não é justo.

– Para o seu próprio bem – disseAlleyn –, seria melhor tentarresponder-me. A senhora afirma que

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não queria perguntar se o capitãoWithers confessou o homicídio. Muitobem, eu vou aceitar isso de momento.O que poderia ele ter confessado? Queera o autor da carta que o seuchantagista ameaçou usar. É isso?

– Não vou responder. Não vou dizermais nada. O senhor está a tentarenganar-me.

– Que conclusão devo eu tirar da suarecusa em responder? Acredite emmim, corre um grave risco se serecusar a responder.

– Contou ao meu marido sobre acarta?

– Não. Nem vou fazer isso, se puderser evitado. Vamos lá. – Alleyn afioudeliberadamente todo o seu poder de

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concentração. Viu a sua superioridadecomo uma broca mental a perfurar aresistência flácida de Mrs. Halcut-Hackett. – Vamos lá, então, o capitãoWithers é o autor dessa carta, não é?

– Sim, mas…– Achou que ele tinha confessado

isso?– Ora, sim, mas…– E acha que Lord Robert Gospell

era o chantagista? Desde aquela tarde,quando ele se sentou atrás de si noconcerto?

– Então era o Robert Gospell! – Asua cabeça recuou. Ela pareceuvenenosamente triunfante.

– Não – disse Alleyn. – Isso foi um

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erro. Lord Robert não era ochantagista.

– Era sim. Eu sei que era. Acha queeu não o vi ontem à noite, a observar-nos? Porque me perguntou ele sobre oMaurice? Porque é que o Maurice meavisou acerca dele?

– O capitão Withers sugeriu queLord Robert era o chantagista? –Apesar do seu esforço, uma espécie derepugnância fria transpareceu na vozde Alleyn. Ela deve ter reparado,porque exclamou:

– Porque é que fala dele assim? Docapitão Withers, quero dizer. O senhornão tem o direito de o insultar.

«Meu Deus, isto é que é uma mulherestúpida», pensou Alleyn. Em voz alta,

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disse: – Eu insultei-o? Se assim foi,ultrapassei muito o meu dever. Mrs.Halcut-Hackett, quando perdeu essacarta?

– Há cerca de seis meses. Depois daminha festa de charadas na pré-temporada.

– Onde é que a tinha guardado?– Numa caixa de joias no meu

toucador.– Numa caixa fechada à chave?– Sim. Mas por vezes a chave era

deixada com outras na gaveta dotoucador.

– Suspeitou da sua criada pessoal?– Não. Não posso suspeitar dela. Ela

está comigo há quinze anos. Era a

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minha antiga costureira. Eu sei que elanão faria isso.

– Tem alguma ideia de quem poderiater levado a carta?

– Não faço ideia, só que na festa decharadas eu transformei o meu quartonum buffet, e os homens mudaram tudode lugar.

– Que homens?– Os homens do fornecedor. O

Dimitri. Mas o Dimitri supervisionou-os o tempo todo. Acho que eles nãotiveram oportunidade.

– Estou a ver – disse Alleyn.Ele viu que agora ela o observava

com um tipo diferente de atenção.Alleyn entrevistara um grande númerode mulheres como Mrs. Halcut-

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Hackett. Sabia muito bem que, comaquelas mulheres, ele dispunha de umaarma que estava relutante em usar, masque, no entanto, era eficaz. Essa armaera o seu sexo. Viu com intensaaversão que uma mancha de prazer seentretecia no medo que Mrs. Halcut-Hackett tinha dele. E a lógicainexorável do pensamento apresentou-o a si mesmo, lado a lado com oamante dela.

– Imagine que clarificamos ascircunstâncias. No seu própriointeresse, posso dizer-lhe que járeunimos uma grande quantidade deinformações. Lord Robert estava aajudar-nos no caso da chantagem, e ele

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deixou-nos as suas anotações. A partirdelas e das nossas investigaçõessubsequentes construímos esse cenário.No seu próprio caso, o capitão Withersera o tema das cartas de chantagem.Seguindo o nosso conselho, a senhoraobedeceu às instruções do chantagistae deixou a sua carteira no canto dosofá no Constance Street Hall. Acarteira foi levada. Porque LordRobert se sentou deliberadamente aoseu lado e porque o capitão Withers,como a senhora afirmou, a avisouacerca ele, chegou à conclusão de queLord Robert levou a carteira e era,portanto, o chantagista. Porque nãoinformou a polícia das circunstânciasdo caso no concerto? A senhora tinha

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aceitado fazê-lo. Foi-lhe aconselhadoa esquecer o caso, no que diziarespeito à Scotland Yard?

– Sim.– Pelo capitão Withers?

Compreendo. Isso leva-nos à noitepassada. A senhora diz que percebeuque Lord Robert os observou durante obaile. Devo perguntar-lhe novamentese o capitão Withers concorda com asua teoria de que Lord Robert era ochantagista.

– Ele… ele simplesmente meadvertiu sobre Lord Robert.

– À luz dessas cartas e das somas dedinheiro que o chantagista exigiu, achaaconselhável manter a sua amizade

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com o capitão Withers?– Nós… não havia nada que

pudéssemos fazer… quero dizer…– Como assim? – perguntou Alleyn

severamente.Ela humedeceu os lábios. Mais uma

vez ele viu o olhar de subserviência epensou que, de todas as característicasde uma mulher a envelhecer, aquelaera a mais desagradável e maislamentável.

– A nossa amizade é, em parte, umarelação comercial – disse ela.

– Uma relação de negócios? –Alleyn repetiu as palavras sementender.

– Sim. É que o Maurice, o capitãoWithers, ofereceu-se muito

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amavelmente para me aconselhar e,quero dizer, neste momento, o capitãoWithers tem em mente um pequenonegócio em que estou interessada, e,naturalmente, foi necessário falarsobre as coisas… sabe?

– Sim, eu entendo – disse Alleynsuavemente – Esse empreendimento docapitão Withers é, naturalmente, oclube em Leatherhead, não é?

– Ora, sim, mas…– Muito bem – disse Alleyn

rapidamente –, voltando à noitepassada. Lord Robert ofereceu-se paraa acompanhar a casa, não foi? Asenhora recusou ou evitou dar umaresposta. Foi para casa sozinha?

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Mrs. Halcut-Hackett poderia muitobem ter perguntado a Alleyn o que éque ele sabia, pois o inspetor leu essapergunta nos seus olhos de forma muitoclara. Agradeceu à sua boa estrela terfeito tanto alarde por causa do telefonede Withers. Evidentemente Withersnão lhe telefonara para a avisar sobreo que dizer, com receio de que a suachamada pudesse ser escutada, pensouAlleyn com satisfação, e decidiuarriscar mais uma suposição.

– Encontrou-se com o capitãoWithers após o baile, não é verdade? –disse ele.

– O que o leva a pensar isso?– Tenho todos os motivos para

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acreditar nisso. O carro do capitãoWithers estava estacionado numa ruaao lado de Belgrave Square. Quantotempo esteve lá sentada à espera dele?

– Eu não admito que estive lásentada.

– Então se o capitão Withers me dizque levou uma acompanhante aoMatador ontem à noite depois do baile,devo concluir que não foi a senhora?

– O capitão Withers deve ter queridoproteger-me. Ele é muito, muitoatencioso.

– Não consegue compreender – disseAlleyn – que é muito melhor para si epara ele se puder provar que a senhorae ele se meteram no carro dele e forampara o Matador na noite passada?

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– Porquê? Eu não quero quedigam…

– Mrs. Halcut-Hackett – disseAlleyn –, quer um álibi para si e para ocapitão Withers ou não?

Ela abriu a boca uma ou duas vezes,como um peixe, lançou um olhardesvairado a Fox e começou a chorar.

Fox levantou-se, caminhou até àoutra ponta do escritório e olhou comuma diplomacia forçada para asegunda gravura das corridas. Alleynesperou enquanto umas garrasvermelhas se debateram com umabolsa elaborada, de onde saiu umlongo pedaço de tule com ummonograma. Ela agarrou-se ao lenço

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atabalhoadamente.Algo caiu ao chão. Alleyn

precipitou-se para a frente e apanhou oobjeto.

Era uma cigarreira de ouro com ummedalhão embutido na tampa erodeado de brilhantes.

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CAPÍTULO 20

ROSE BIRNBAUM

Mrs. Halcut-Hackett enxugou ospapos sob os olhos, como se o lençofosse um mata-borrão.

– O senhor assusta-me – disse ela. –O senhor assusta-me muito. Estouaterrorizada.

Alleyn virou a cigarreira nas suasmãos compridas.

– Mas não há nenhuma necessidadede estar aterrorizada, nenhuma. Não vêque, se me puder dar uma prova de quea senhora e o capitão Withers foramdiretamente de Marsdon House para oMatador, isso iliba-os de uma vez por

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todas de qualquer indício decumplicidade na morte de LordRobert?

Ele esperou. Mrs. Halcut-Hackettcomeçou a balançar para trás e para afrente, batendo as mãos e abananado acabeça de um lado para o outro comoum autómato bem conservado.

– Eu não posso. Eu simplesmentenão posso. Não vou dizer mais nada.Não vou dizer nem mais uma palavra.Não adianta de nada. Não vou dizermais uma palavra.

– Muito bem – disse Alleyn, comalguma benevolência. – Não diga. Voutentar de outra maneira. Esta cigarreiraé magnífica. O medalhão é antigo. DoRenascimento italiano, creio. Foi

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trabalhado de uma forma muitorequintada. Quase poderia ter sido opróprio Benvenuto a fazer estesornamentos minuciosos. A senhoraconhece a história deste medalhão?

– Não. O Maurice comprou-oalgures e mandou colocá-lo nacigarreira. Adoro coisas velhas – disseMrs. Halcut-Hackett com um soluçoseco. – Adoro-as.

Alleyn abriu a tampa. Uma inscriçãodizia «E. de MW». Fechou-a, mas nãoa devolveu a Mrs. Halcut-Hackett.

– Não a perca, Mrs. Halcut-Hackett.O medalhão é uma peça decolecionador. Não tem medo de andarcom a cigarreira por aí?

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Ela pareceu ganhar coragem com ointeresse de Alleyn. Enxugounovamente os olhos e disse: – Soumuito descuidada com as minhascoisas. Talvez não devesse utilizá-la.Ontem à noite deixei-a pousada…

– Ai sim? Onde?Mais uma vez, no momento em que

Alleyn lhe fez a pergunta, ela pareceuaterrorizada.

– Algures no baile – disse.– Foi no quarto verde, no patamar de

cima?– Eu… sim… é possível que tenha

sido.– A que horas?– Não sei.

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– Durante a hora da ceia não sesentou nesse quarto com o capitãoWithers?

– Sim. Porque não? Porque nãohaveria eu de o fazer? – Torceu olenço nas mãos e acrescentou: – Comoé que sabe disso? O meu marido… eunão… ele não me mandou vigiar?

– Isso não me passou pela cabeça.Simplesmente aconteceu que sabemosque esteve nesse quarto um poucoantes da uma da manhã. Afirma quedeixou a sua cigarreira lá. Agora,quando saiu desse quarto, o que fez?

– Fui para o bengaleiro para mecompor. Dei por falta da cigarreiraquando abri a minha carteira no

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bengaleiro.– Certo. Quando foi do quarto verde

para o bengaleiro, a duas portas dedistância, reparou por acaso em LordRobert no patamar? Por favor, nãopense que estou a tentar enganá-la.Desejo apenas saber se o viu.

– Ele estava a subir as escadas –disse ela, com a voz e os seus modosagora mais controlados.

– Muito bem. Ouviu o som dediscagem na extensão do telefoneenquanto esteve no bengaleiro?

– Sim. Agora que me fala nisso, sim,ouvi.

– Quando saiu do bengaleiro, voltouatrás por causa da cigarreira?

– Não. Não, não voltei.

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– Porquê?– Porquê? Porque me esqueci.– Esqueceu-se de novo!– Não foi apenas esquecer, mas fui

ao topo da escada e o Maurice estavana outra sala de estar, à saída dasescadas, à minha espera. Eu fui lá, eentão lembrei-me da cigarreira e elefoi buscá-la.

– O telefone já tinha sido pousado? –perguntou Alleyn.

– Não sei.– Havia mais alguém no patamar?– Acho que não.– Não havia, por acaso, uma senhora

pequena e bastante discreta sentadasozinha?

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– Não. Não havia ninguém nopatamar. O Donald Potter estava nasala de estar.

– O capitão Withers demorou-sequando foi buscar a sua cigarreira?

– Não me parece – disse ela,nervosa. – Não me lembro. Euconversei com o Donald. Depoisfomos todos lá para baixo.

– O capitão Withers não disse sehavia mais alguém no quarto dotelefone quando foi buscar acigarreira?

– Não, ele não disse nada sobre isso.– Pode emprestar-me esta cigarreira

durante vinte e quatro horas, porfavor?

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– Porquê? Porque quer ficar comela?

Alleyn hesitou e, finalmente, disse: –Quero ver se mais alguém a reconhece.Confia-me a cigarreira?

– Muito bem – disse ela. – Nãoposso recusar, pois não?

– Vou ter muito cuidado com ela –disse Alleyn. Meteu-a no bolso evirou-se para Fox, que permanecera nooutro extremo do escritório, com obloco de notas aberto na mão.

– Acho que é tudo, não é? –perguntou Alleyn. – Falhou-me algumacoisa, Fox?

– Não creio, senhor.– Então não vamos incomodá-la

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mais, Mrs. Halcut-Hackett –, disseAlleyn, de pé diante dela. Elalevantou-se da cadeira. Ele viu quehavia uma espécie de interrogação nosseus olhos. – Há alguma coisa quegostasse de acrescentar ao queafirmou? – perguntou o inspetor.

– Não. Não. Mas há pouco disse queiria saber a resposta a uma coisa queme perguntou antes de outra maneira.Disse que iria descobri-la de outramaneira.

– Oh – disse Alleyn alegremente –,quer dizer se a senhora foi de MarsdonHouse para o Matador no carro docapitão Withers, e se sim, quantotempo demorou. Sim, nós vamosperguntar ao paquete e ao homem que

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estava de serviço no Matador. Elespodem ser capazes de ajudar.

– Meu Deus, não pode fazer isso!– Porquê?– Não pode fazer isso. Pelo amor de

Deus, diga-me que não o vai fazer.Pelo amor de Deus...

A sua voz elevou-se a um gritohistérico e abafado, terminando numaespécie de gemido. Fox suspirou elançou a Alleyn um olhar paciente.Mrs. Halcut-Hackett respirou fundo. Aporta abriu-se.

Uma jovem simples, vestida parasair, entrou no escritório.

– Oh, peço desculpa. Não sabia… –disse ela.

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Mrs. Halcut-Hackett olhou em voltadela com o ar de um mastodonteencurralado e, finalmente, saiu doescritório tão rapidamente quanto osseus saltos franceses lhe permitiram. Aporta bateu atrás dela.

A jovem simples, que estava muitobem penteada, maquilhada e vestida,olhou de Alleyn para Fox.

– Peço desculpa – repetiu, nervosa.– Não devia ter entrado. Será melhor irver se há alguma coisa que eu possafazer?

– Se eu fosse a si – disse Alleyn –,não ia. Mrs. Halcut-Hackett está muitoperturbada com a tragédia de ontem ànoite e parece-me que prefere ficar

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sozinha. A menina é Miss Birnbaum?– Sim, sou. Os senhores são da

polícia, não é?– É. O meu nome é Alleyn e este é

Mr. Fox.– Oh, como está? – cumprimentou

Miss Birnbaum apressadamente.Hesitou e, em seguida, estendeu-lhes amão. Olhou com ar de dúvida para orosto de Alleyn. Ele sentiu os dedospequenos e frios contraírem-se comoos de uma criança assustada.

– Também se deve ter sentidobastante perturbada, não é verdade?

– Sim – disse ela respeitosamente. –É terrível, não é?– Apertou os dedos. –Lord Robert era muito amável, nãoera? Ele era muito amável comigo.

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– Espero que a sua dor de dentestenha melhorado – disse Alleyn.

Ela olhou para as mãos e, emseguida, para o rosto do inspetor.

– Eu não tive uma dor de dentes –confessou.

– Não?– Não. Eu só queria vir para casa.

Odeio debutar – acrescentou MissBirnbaum com um vigorextraordinário. – Sabia que seria assime foi.

– Isso é má sorte. Porque o faz?– Porque – disse Miss Birnbaum

com uma franqueza devastadora – aminha mãe pagou a Mrs. Hackett, querdizer, Mrs. Halcut-Hackett, quinhentas

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libras para me apresentar.– Espere lá – disse Alleyn –, não

está a falar do que não deve?– O senhor não vai contar a ninguém

que lhe eu disse isto, pois não? Nuncadisse uma palavra sobre isto. Aninguém. Mas o senhor parece ser omeu tipo de pessoa. E eu estouabsolutamente farta. Simplesmente nãosou do tipo social. Meu Deus, é umalívio poder desabafar!

– O que gostaria de fazer?– Quero estudar Arte. O meu avô era

pintor, Joseph Birnbaum. Alguma vezouviu falar dele?

– Creio que sim. Não pintou umacoisa chamada «Sabat judaico»?

– É verdade. Ele era judeu, claro. Eu

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sou judia. A minha mãe não é, mas eusou. Isso é outra coisa de que não devofalar. Tenho apenas dezasseis anos.Acha que pareço mais velha?

– Sim.– Isso – disse Miss Birnbaum – é

porque sou judia. Eles crescem muitodepressa, sabe. Bem, acho que nãodevo fazê-lo perder mais tempo.

– Eu gostaria de perder algunsminutos consigo, se puder.

– Muito bem, então – disse MissBirnbaum e sentou-se. – Suponho queMrs. Halcut-Hackett não vai voltar,pois não?

– Não me parece.– Não me importo tanto com o

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general. É estúpido, claro, mas ébondoso. Mas Mrs. Halcut-Hackettaterroriza-me. Eu sou um fracasso eela odeia isso.

– Tem a certeza de que é umfracasso?

– Oh, sim. Ontem à noite, apenasquatro pessoas me pediram paradançar. Lord Robert, quando cheguei, eum homem gordo e o general, e SirHerbert Carrados.

Rose Birnbaum desviou o olhar porum momento e os seus lábiostremeram.

– Tentei fingir que estava acima dosucesso social – disse ela –, mas não éverdade. Importa-me muito. Se eupudesse pintar e livrar-me de tudo, não

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faria diferença, mas quando estamosnuma coisa é horrível ser um fracasso.Então, tive uma dor de dentes. Devodizer que é estranho confessar-lhesisto.

– O general trouxe-a para casa, nãofoi?

– Sim. Ele foi muito amável.Chamou a criada de Mrs. Halcut-Hackett, que eu odeio mais do queveneno, para me dar óleo de cravinhoe Ovaltine. Ela percebeu tudo.

– Foi dormir?– Não. Tentei pensar numa maneira

de escrever à minha mãe para que elame deixasse desistir. E então comeceia reviver tudo na minha cabeça. Tentei

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pensar em outras coisas, mas todas asfestas falhadas continuavam a vir ao decima.

– Ouviu os outros regressarem?– Ouvi Mrs. Halcut-Hackett chegar.

Era muitíssimo tarde. Ela passou pelaminha porta para ir para o quarto delae tinha fivelas de strass nos sapatosque davam um estalido a cada passo.Antes, tinha ouvido o relógio bater asquatro. O general voltou ao baile?

– Parece-me que ele voltou a sair.– Bem, então deve ter sido o general

que eu ouvi no corredor às três e umquarto. Pouco depois dessa hora. Ouvio relógio bater desde a uma até às seis.Então adormeci. Foi um sono bastanteleve.

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– Sim.Alleyn caminhou de um lado para o

outro no escritório.– Conheceu a Agatha Troy? –

perguntou ele.– A pintora? Ela estava lá na noite

passada. Eu queria muito que alguémnos apresentasse, mas não gosto depedir. Acho que ela é a maior pintorainglesa viva, não acha?

– Sim, também concordo. Ela dáaulas, sabe.

– A sério? Somente génios, suponho.– Acho que só a alunos que têm uma

certa experiência.– Se eu estivesse autorizada a ganhar

uma certa experiência, interrogo-me se

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ela me aceitaria.– Acha que é boa? – perguntou

Alleyn.– Tenho a certeza de que sei

desenhar. Não tenho tanta certezasobre pintar. Vejo tudo em linha. Diga-me uma coisa…

– Como?– Acha que isto vai fazer alguma

diferença para esta coisa de debutar?Será que ela vai ficar doente? Penseinisso muitas vezes ultimamente. Ela étão sanguinária.

– Não diga «ela» e não diga«sanguinária». A primeira é vulgar eMiss Birnbaum é muito jovem para asegunda.

Miss Birnbaum sorriu deliciada.

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– Bem – disse ela –, é o que eu acho.E ela nem sequer é virtuosa. Conheceaquele indivíduo, o Withers?

– Sim.– Ele é amante dela. Não finja estar

chocado. Eu escrevi à minha mãesobre isso, na esperança de a abalarum pouco. O meu pai respondeu eperguntou-me se ele se chamavaMaurice e tinha o aspeto de um porcovermelho, o que é um insulto terrível,sabe, porque se assim fosse, eu não iaficar aqui. Eu gosto do meu pai. Mas aminha mãe disse que, se ele era umamigo de Mrs. Halcut-Hackett, entãoestava tudo bem. Achei isto muitoengraçado. É a única coisa engraçada

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em todo este assunto. Não me pareceque seja muito divertido ter medo donamorado e do marido, pois não?

Alleyn coçou a cabeça e olhou paraMiss Birnbaum.

– Ouça – disse ele –, está a dar-nosuma boa quantidade de informações,sabe. Ali está Mr. Fox com o seu blocode notas. Que lhe parece?

O rosto moreno iluminou-se como seuma fogueira se tivesse acendido noseu interior. Duas linhas distintasapareceram nos cantos dos lábioscheios.

– Quer dizer que ela pode estar emsarilhos? Espero bem que sim. Odeio-a. É uma mulher má. Era capaz dematar alguém que se atravessasse no

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seu caminho. Deve ter querido matar-me com bastante frequência. Diz-mecoisas que me destroem por dentro,que magoam. «Minha querida, comoespera que eu faça alguma coisa por si,se fica aí parada com cara de peixe enunca diz nada?» «Meu Deus, o que fizeu para ter de aguentar um encargocomo este?» «Minha querida, suponhoque não pode deixar de parecer o queé, mas pelo menos pode fazer algumesforço para soar um pouco menos àSoho.» E depois ela imita a minha voz.Ontem disse-me que havia muito adizer sobre o ponto de vista alemão, eperguntou-me se eu tinha familiaresentre os refugiados, pois ouviu dizer

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que um grande número de inglesesestão a empregá-los como criados.Espero que ela seja uma assassina.Espero que o senhor a apanhe. Esperoque lhe ponham uma corda à voltadaquele pescoço velho até ela estarbem morta.

A voz densa e suave deteve-se. MissBirnbaum tremia muito ligeiramente.Uma linha fina de suor perlava-lhe olábio superior.

Alleyn fez uma careta, esfregou onariz e disse:

– Sente-se melhor agora que disseisso?

– Sim.– Diabinho vingativo! Não consegue

ignorar tudo e vê-lo como algo

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intensamente desagradável que não vaidurar para sempre? Já experimentoudesenhar para aliviar toda essairritação?

– Fiz uma caricatura dela. Quandosair daqui, vou mandar-lha, se ela nãoestiver na prisão nessa altura.

– Conhece a Sarah Alleyn?– Ela é um dos sucessos. Sim,

conheço-a.– Gosta dela?– Não é má. Lembra-se de quem eu

sou quando me vê.Alleyn decidiu não falar mais na sua

sobrinha.– Bem, Miss Birnbaum – disse ele –,

ouso dizer que está mais perto de

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escapar do que imagina. Vou-meembora agora. Espero que nosvoltemos a encontrar.

– Também eu. Deve pensar que eusou horrível.

– Está tudo bem. Convença-se deque toda a gente a odeia e será semprefeliz.

Miss Birnbaum sorriu.– O senhor acha que é inteligente,

não acha? – observou ela. – Adeus.Deram um aperto de mão amigável, e

Rose Birnbaum acompanhou-os até aovestíbulo. Alleyn teve um últimovislumbre da jovem morena,atarracada, e truculenta contra umfundo de meios-tons discretos edecorosos e bonitas cortinas pseudo-

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Império.

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CAPÍTULO 21

A DECLARAÇÃO DE LUCYLORRIMER

Eram quase seis horas da tardequando Alleyn e Fox voltaram para aScotland Yard. Foram para o gabinetede Alleyn. Fox começou a trabalharnas suas notas, Alleyn deitou a mãoaos relatórios que tinham chegadodurante a sua ausência. Os doisacenderam os cachimbos e entre elesestabeleceu-se a agradável sensaçãode intimidade não expressa que seestabelece entre duas pessoas quetrabalham em silêncio na mesma tarefa.

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Alleyn pousou os relatórios e olhoupara o amigo. Pensou: «Quantas vezesficámos assim, Fox e eu, a trabalharcomo dois funcionários obscuros nosescritórios do negócio do Juízo Final,classificando e correlacionando oscrimes dos homens. O Fox está a ficarbastante grisalho e há veias roxas daidade nas suas bochechas. Vou voltarpara casa mais tarde, um sujeitosolitário, para o meu próprio buraco.»E nos seus pensamentos imiscuiu-se aimagem de uma mulher sentada numcadeirão azul em frente à lareira, masessa imagem era demasiado doméstica.Em vez disso, ela estava sentada notapete da lareira. As suas mãos

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estariam manchadas de carvão etraçariam belas linhas ao longo de umasuperfície branca. Quando ele entrasse,ela levantaria os olhos do seu desenhoe os olhos de Troy sorririam ouestariam zangados. Ele afastou aimagem da sua mente e deu com Fox aobservá-lo com o seu habitual ar deexpectativa branda.

– Terminou? – disse Alleyn.– Sim, senhor. Estive a tentar

organizar as coisas. Temos o relatóriosobre a limpeza das pratas. O jovemCarewe ficou encarregado disso eparece ter feito um bom trabalho.Disfarçou-se de funcionário dedesratização, foi a todas as casas etravou amizade com os criados. Todas

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as pratas dos Carrados foram limpasesta manhã, incluindo a cigarreira deSir Herbert, que não tem a formacorreta, porque o Carewe viu-a nadespensa. O homem de Sir Daniellimpa as pratas às segundas e sextas,por isso foi tudo limpo ontem. OFrançois faz as coisas do Dimitri todosos dias ou diz que faz. O jovem Pottere o Withers têm serviço doapartamento e só os talheres sãopolidos. Nos Halcut-Hackett sãolimpas uma vez por semana, à sexta-feira, e polidas todas as manhãs. Étudo. O que diz o relatório do Bailey?

– O Bailey não diz muito. Não hánada no táxi. Ele tem as impressões

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digitais do Withers da minhacigarreira, mas, tal como esperávamos,o quarto verde é simplesmente umagrande confusão. Ele encontrou asimpressões digitais do Withers e dojovem Potter nas páginas da MedicinaLegal, de Taylor. Nas páginas que sereferem à asfixia.

– Caramba, isso é alguma coisa.– Não é grande coisa, Fox. Eles vão

dizer-nos que, quando saiu areportagem no jornal, tiveramcuriosidade e consultaram o capítulosobre asfixia, e quem pode chamar-lhes mentirosos? O homem que foipara Leatherhead teve sucesso.Aparentemente o Withers mantém umcasal lá. O nosso homem inventou que

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foi enviado pelo município parainspecionar a instalação elétrica dacasa e conseguiu entrar. Além disso,parece que pôde dar uma boa vista deolhos ao lugar. Encontrou uma roleta eteve a inteligência de a examinar deperto. As casas da dúzia do meioforam ligeiramente abertas. Penso quea ideia é o jovem Donald Potter oualgum outro acólito do Withers tomarconta da dúzia do meio. A rodaparecia nova. Havia uma mais antigaque não mostrou sinais deirregularidade. Havia também váriosbaralhos de cartas que foram tratadascom a famosa pedra-pomes.Felizmente para nós, o casal teve uma

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discussão violenta com o galantecapitão e estavam preparados parafalar. Acho que temos o suficiente parao acusar de jogo ilegal. O Thompsondiz que o Withers ficou em casa o diatodo. O telefone foi desligado assimque nós saímos. As roupas do DonaldPotter foram devolvidas por táxi.Ninguém visitou o Withers. O Dimitrivem a seguir. O Dimitri foi para casadepois de ter saído daqui, indo apenasa uma farmácia para tratar da mão.Também ele se manteve em casa e nãofez telefonemas. Um comportamentoexemplar. Como é que vamosconseguir que as vítimas acusem oDimitri?

– Está a perguntar-me a mim! – disse

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Fox.– Sim. Não há esperança. Bem,

agora, Fox, eu já revi este assuntocondenável, confuso e embrulhado doquarto. Tudo se resume a isto. Aspessoas que poderiam ter ouvido otelefonema de Lord Robert são oWithers, Sir Herbert Carrados, MissHarris, Mrs. Halcut-Hackett e oDonald. Eles estavam todos nopatamar de cima e não teriam de mentirmuito livremente para evitar qualquerreferência a uma breve entrada e saídano quarto do telefone. Mas, mas, mas,e é um maldito mas, é bem possívelque, enquanto Lord Robert telefonou,alguém tenha subido as escadas e

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entrado no quarto do telefone. Mrs.Halcut-Hackett estava no bengaleiro; oWithers, o Donald e o Carrados naoutra sala de estar, Miss Harris nacasa de banho. O Dimitri afirma queestava no andar de baixo, mas quempoderá comprovar isso? Se os outrosestão a dizer a verdade, qualquerpessoa poderia ter subido e descidooutra vez sem ser vista.

– O cavalheiro que invadiu a casa debanho?

– Precisamente. Ele pode até ter-seescondido lá até o caminho estar livre,embora eu não entenda porquê. Não hánada particularmente suspeito em sairde uma sala de estar.

– Ufa! – disse Fox.

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– A meu ver, este caso apresentaagora algumas coisas que se destacam,Fox. A maioria delas parece estarconcentrada em cigarreiras. Duascigarreiras. A do assassino e a de Mrs.Halcut-Hackett.

– Sim – disse Fox.– Depois das cigarreiras vem a carta

perdida. A carta escrita pelo amigo dePaddy O’Brien, na Austrália. A cartaque alguém parece ter roubado hádezoito anos, no Buckinghamshire. Éestranho, não é, que o tio de MissHarris tenha sido outrora vigário deFalconbridge, a aldeia onde PaddyO’Brien teve um acidente? Pergunto-me se Miss Harris ou Lady Carrados

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se deram conta de que há essa ligaçãovaga. Acho que o nosso próximo passodepois do inquérito é ir até Barbicon-Bramley onde poderemos perturbar areforma do tio de Miss Harris. Aívamos ter de mergulhar no passado dohospital de Falconbridge. Mas quepista tão fria! Uma hipótese em mil.

– É uma coincidência estranha MissHarris estar associada aosacontecimentos desta forma, não é? –refletiu Fox.

– Está a imaginar Miss Harris comoa agente de um velho vigário infameque guardou uma cartacomprometedora durante dezoito anose agora a usou? Bem, acho que não éimpossível. Mas não considero uma

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coincidência muito grande Miss Harrister ido parar à casa de Lady Carrados.As coincidências tornam-se cada vezmais surpreendentes à medida queganham importância. Pode-se imaginaralguém a mencionar a Miss Harris oacidente de Paddy O’Brien e MissHarris a dizer que o vigário deFalconbridge era seu tio. Toda a genterefere cansativamente como o mundo épequeno e ninguém pensa muito sobreo assunto. Misture uma cartadesaparecida à história e somos logolevados a considerar a remota ligaçãode Miss Harris a Falconbridge comouma coincidência perfeitamentesurpreendente.

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– Ela não teria mencionado isso tãolivremente – admitiu Fox – se tivessealguma coisa a ver com a carta.

– Exatamente. Ainda assim, vamoster investigar. E, por falar eminvestigar, Fox, há Lady Lorrimer.Temos de verificar o álibi de SirDaniel Davidson.

– Pois temos, senhor.Fox tirou os óculos e colocou-os no

estojo.– Com base no que sabemos, inclina-

se para alguém em especial? –perguntou.

– Sim. Esperei até termos uma pausapara o discutir consigo. Eu queria verse você tinha chegado à mesma

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conclusão por si mesmo.– A cigarreira e o telefonema.– Sim. Muito bem, Fox: «de uma

forma contemplativa e num estado deespírito tranquilo»4, vamos discutir ascigarreiras. Ponto número um.

Discutiram as cigarreiras.Às sete horas Fox disse:– Não estamos perto de fazer uma

detenção. Não com estas provas.– E não se esqueça de que não

encontrámos a capa e o chapéu – disseAlleyn.

– Parece-me, Mr. Alleyn, que vamoster de perguntar a todos os que não têmálibi se podemos fazer uma busca nassuas casas. Uma desgraça.

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– O Carrados – começou Alleyn –, oHalcut-Hackett, o Davidson, MissHarris. O Withers e o Potter estãojuntos. Juro que o chapéu e a capa nãoestão naquele apartamento. Digo omesmo para o Dimitri.

– Os caixotes do lixo – disse Foxsombriamente. – Eu falei aos rapazesnos caixotes do lixo. Mas é tãoimprovável que é o suficiente para nosfazer chorar. O que faria uma pessoacom uma capa e um chapéu, Mr.Alleyn, se quisesse livrar-se deles?Conhecemos todos os velhos truques.Não é possível queimá-los em nenhumdesses apartamentos de Londres. Amaré estava baixa, como o senhor

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apontou, e teriam de ser descartadosda ponte, o que teria sido algo muitoarriscado. Acha que vão tentar deixá-los numa estação de caminhos deferro?

– Teremos de estar atentos. Teremosde mandar um bom homem para vigiaras estações. Parece-me no entanto quenão vai ser um caso de bagagemabandonada, Irmão Fox. Esse métodoteve demasiada publicidade nosúltimos anos. Membros e torsosencontrados em caixas atadas com fiocom uma frequência sinistra, não sónos comboios de Londres, mas tambémnas páginas dos romances policiais. Ahipótese da encomenda enviada pelocomboio agrada-me. Já mandei o

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pedido habitual. Se foi despachadadesse modo, provavelmente aconteceudurante a hora de ponta num dosgrandes escritórios centrais, e teremosmuita sorte se lhe conseguirmos deitara mão. Ainda assim, vamos esperarpor um golpe de sorte, seja ele qualfor.

O telefone na secretária tocou. Derepente, a lembrança dolorosa dotelefonema de Lord Robert assaltouAlleyn. Levantou o auscultador.

A voz da sua mãe perguntou-lhe seele queria ir jantar com ela.

– Não deve ter tempo para sair, meuquerido, mas como este apartamentoestá a apenas cinco minutos de táxi,

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talvez seja oportuno vir até cá.– Eu gostaria – disse Alleyn. – A

que horas?– Às oito, mas podemos jantar mais

cedo, se quiser. Estou sozinha.– Eu vou agora, mãe, e jantamos às

oito. Está bem assim?– Muito bem – disse a voz muito

clara. – Fico muito feliz, querido.Alleyn deixou o número de telefone

de Lady Alleyn, no caso de alguémprecisar dele, e foi de táxi para oapartamento que a mãe alugara emCatherine Street para a temporada deLondres. Descobriu Lady Alleynrodeada de jornais e com os seusóculos de tartaruga.

– Olá, querido – disse ela. – Não

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vou fingir que não estou a ler sobre opobre Bunchy, mas não vamos falarsobre isso, se não quiser.

– Para dizer a verdade – disseAlleyn –, apetece-me muito sentar-menuma poltrona, olhar para o vazio enão falar. Sou uma bela companhiapara si, mãe.

– Porque não toma um banho? –sugeriu Lady Alleyn sem levantar osolhos do jornal.

– Cheiro mal? – perguntou o filho.– Não. Mas acho sempre que um

banho é uma ótima ideia quando sechega à fase de olhar para o vazio. Aque horas se levantou esta manhã?

– Na manhã de ontem. Mas eu já

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tomei banho e fiz a barba desde então.– Não dormiu na noite passada? Eu

tomaria um banho. Vou mandarprepará-lo. Use o meu quarto. Mandeiir buscar uma muda de roupa.

– Santo Deus! – disse Alleyn, edepois: – A mãe é especial no que dizrespeito ao instinto maternal, não é?

Ele tomou um banho. O consolo daágua fumegante envolveu-o numaespécie de transe voluptuoso. Os seuspensamentos, que durante dezasseishoras tinham estado tão fortementeconcentrados, tornaram-se turvos enebulosos. Fora apenas nessa manhãque ele atravessara o pátio em direçãoa um táxi meio escondido por grinaldasde névoa? Nessa manhã! Os seus

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passos soavam ocos no chão de pedra.«Tenho de me proteger, não tenho?»Uma porta abriu-se com um movimentolento e cheio de horror. «Está morto,não está? Está morto, não está?ESTÁ MORTO, NÃO ESTÁ?»«Asfixiado!», arquejou Alleyn eacordou com o nariz cheio de água dobanho.

O seu criado tinha enviado roupainterior e um fato para o jantar. Vestiu-se lentamente, sentindo-se melhor, ejuntou-se à sua mãe na sala de estar.

– Sirva-se de uma bebida – disse elapor trás do jornal.

Alleyn preparou uma bebida esentou-se. Perguntou-se vagamente

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porque se sentia tão cansado. Estavahabituado a perder uma noite de sono ea trabalhar durante vinte e quatro horasseguidas. Deve ser por se tratar doBunchy. E na sua mente desenhou-se aideia de que devia haver um grandenúmero de pessoas àquela hora querecordavam aquela figura cómica comgrande pesar.

– Ele tinha uma grande dose decharme – disse Alleyn em voz alta e avoz da mãe respondeu tranquilamente.

– Sim, uma grande dose de charme.O mais injusto de todos os atributos.

– Não acrescenta: parece-me, àsvezes – disse Alleyn.

– Porque deveria eu acrescentarisso?

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– As pessoas muitas vezes usam essaexpressão para diluir as suas ideias. Amãe é demasiado confiante para a usar.

– No caso do Bunchy, o encantoprovinha do seu caráter e por isso nãoé injusto – disse Lady Alleyn. – Vamosjantar? Foi anunciado.

– Santo Deus – disse Alleyn –, nãoreparei.

Durante o café, ele perguntou: –Onde está a Sarah?

– Foi jantar fora e vai a uma peça,devidamente acompanhada.

– Ela conhece a Rose Birnbaum?– Meu querido Roderick, quem é a

Rose Birnbaum?– É o encargo de Mrs.

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Halcut-Hackett para a temporada. Oencargo profissional.

– Oh, essa pequena! Pobrezinha, sim.Já tinha reparado nela. Não sei se aSarah lhe presta muita atenção.Porquê?

– Gostaria que lhe perguntasse. Nãoé uma companhia muito requisitada.Ela tem um complexo de inferioridadepor causa disso. É um dos maisinfelizes subprodutos da temporada.

– Compreendo. Pergunto-me por querazão aquela mulher particularmentedifícil tomou uma protegida sob a suaresponsabilidade. Os Halcut-Hackettestão com falta de dinheiro?

– Não sei. Creio que ela deve estarneste momento.

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– O Withers – disse Lady Alleyn.– Então sabe tudo sobre o Withers,

não é?– Meu querido Rory, esquece-se de

que eu me sento no canto dosacompanhantes.

– Mexericos – disse Alleyn.– Os mexericos não são tão

maliciosos quanto possa pensar.Sempre fui da opinião que os homenssão maldizentes tão ávidos como asmulheres.

– Eu sei.– Mrs. Halcut-Hackett não é muito

popular, por isso eles não se importamde falar sobre ela no canto dosacompanhantes. Ela é uma oportunista.

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Nunca faz um convite que não lhe tragaalguma vantagem e nunca aceita umque possa diminuir o seu prestígio.Não é uma mulher amável. Éextremamente comum, mas isso nãoimporta. Muitas pessoas comuns sãoencantadoras. Como os patifes. Euacredito que nunca nenhuma mulher seapaixona loucamente por um homem seele não tiver o mínimo toque de patifealgures na sua personalidade.

– Francamente, mãe!– Quero dizer num sentido muito

subtil. Um toque de arrogância. Não hánada como isso, meu querido. Se tivermuita consideração pelos sentimentosde uma mulher, ela pode começar porse sentir grata, mas vai acabar por

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desprezá-lo.Alleyn fez uma careta. – Tratá-las

mal?– Não, mas deixá-las pensar que há

essa hipótese. É humilhante, mas éverdade que noventa e nove mulheresem cem gostam de sentir que o seuamante é capaz de as maltratar. Oitentadessas mulheres iriam negá-lo.Quantas vezes não se ouve uma mulhercasada dizer com uma espécie desatisfação que o marido não a deixafazer isto ou aquilo? Porque é quelivros abominavelmente escritos, comheróis fortes e silenciosos, aindaencontram um grande públicofeminino? O que acha que atrai

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milhares de mulheres num ator decinema com o cérebro de ummosquito?

– A sua habilidade como ator decinema.

– Sim, sim. Não seja cansativo,Roderick. Acima de tudo, a suamasculinidade arrogante. É isso queatrai noventa e nove em cem mulheres,pode apostar.

– Há sempre, felizmente, a mulhernúmero cem.

– E não tenha tanta certeza dela. Eunão sou, espero, uma dessas mulheresabomináveis que menospreza o seupróprio sexo. Sou a favor dasfeministas, mas recuso-me a permitirque as noventa e nove mulheres, meus

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Deus, isto começa a soar como umhino, atirem areia para os meus velhosolhos.

– A mãe é uma acompanhante muitoopinativa, e sabe disso. Mas não penseque pode atirar areia para os meusolhos também. Sugere que eu vá tercom Miss Agatha Troy, a arraste peloestúdio presa pelos cabelos, a ponhadebaixo do meu braço masculino earrogante, e a carregue até ao cartóriomais próximo?

– Igreja, por favor. A Igreja sabe doque estou a falar. Olhe para acerimónia do casamento. A expressãodireta e embaraçosa da selvajariainerente às nossas ideias de

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acasalamento.– Quer dizer que a temporada cabe

na mesma categoria?– De certa forma, eu diria que sim. E

porque não? Desde que reconheçamosos aspetos mais selvagens datemporada, mantemos o sentido deperspetiva e divertimo-nos. Como eu.Completamente. E como o BunchyGospell. Quando penso nele – disseLady Alleyn, os seus olhos brilhantesde lágrimas –, quando penso nele, estamadrugada, a contar os mexericos, tãosatisfeito com o baile da Evelyn, tãoanimado e… e real, simplesmente nãoconsigo perceber…

– Eu sei.– Suponho que Mrs. Halcut-Hackett

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entra em cena, não é? E o Withers?– O que a faz pensar assim?– Ele estava de olho nos dois.

Estavam os dois no baile e na festa dosHalcut-Hackett. O Bunchy sabiaalguma coisa sobre o capitão Withers,Roderick. Eu percebi isso e comenteicom ele. Ele disse-me para não sercuriosa, pobrezinho, mas admitiu queeu tinha razão. Existe algo mais nessahistória?

– Muito mais. O Withers tem umahistória suja e o Bunchy sabia.

– Isso é um motivo para assassínio?– perguntou Lady Alleyn.

– Pode ser. Existem váriasdiscrepâncias. Eu tenho de tentar

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resolver uma delas esta noite.– Hoje à noite? Meu querido, vai

acabar por cair de sono.– Não. Receio que não vai haver

ocasião para adormecer.– A Evelyn Carrados entra neste

cenário?Alleyn sentou-se.– Porque pergunta isso?– Porque percebi que o Bunchy

também estava de olho nela.– É melhor trocarmos de emprego,

querida. A mãe pode ir para a ScotlandYard e ver as pessoas de olhos umasnas outras e eu vou sentar-me no cantodos acompanhantes, atacar os jovensda Sarah e conversar com LadyLorrimer. Terei de falar com ela em

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breve, por falar nisso.– Lucy Lorrimer! Não me diga que

ela está metida nisto. Posso muito bementender que alguém queira assassiná-la, mas não vejo o contrário. Claro queela é louca.

– Ela tem de confirmar uma parte doálibi de Sir Daniel Davidson.

– Deus do Céu, que mais vaiacontecer! Porquê o Davidson?

– Porque ele foi o último a sair antesdo Bunchy.

– Bem, espero que não seja SirDaniel. Estava a pensar em ir consultá-lo por causa da minha perna. Roderick,acho que posso ajudá-lo com LucyLorrimer. Posso facilmente telefonar-

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lhe e convidá-la para tomar chá. Eladeve estar a ferver de excitação e adesejar falar com toda a gente. OBunchy ia jantar com ela hoje à noite.

– Porquê?– Por nenhuma razão em especial.

Mas ela insistiu em dizer que sabia queele não iria, que se esqueceria. Possotelefonar-lhe e ela fala tão alto que sóprecisa de se sentar ao meu lado paraouvir cada palavra.

– De acordo – disse Alleyn –, vamostentar. Pergunte-lhe se ela viu oBunchy quando estava a sair. A mãesenta-se nesta poltrona aqui, e euinstalo-me no braço. Podemos colocaro auscultador entre nós, querida.

O telefone de Lady Lorrimer estava

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persistentemente ocupado, mas por fimconseguiram uma ligação. Suasenhoria, disse uma voz, estava emcasa.

– Diga por favor que é Lady Alleyn.Obrigada.

Durante a pausa que se seguiu, LadyAlleyn olhou para o filho com um arconspiratório e pediu-lhe para lheacender um cigarro. Alleyn fez isso epegou em lápis e papel para tomarnotas.

– Vamos demorar séculos –sussurrou ela, abanando o auscultadorpara lá e para cá como se fosse umleque. De repente, o auscultador emitiuum estalido alto e Lady Alleyn

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levantou-o cuidadosamente a umadistância de dez centímetros da suaorelha direita.

– É você, Lucy?– Minha querida – gritou o

auscultador –, estou tão contente.Estava deserta por falar consigo,claro, você pode contar-nos tudo.Sempre pensei que era uma pena queaquele seu filho tão bem-apessoado setenha tornado polícia, porque, diga oque disser, deve ser péssimo para elestanto tempo na mesma posição,mexendo apenas os braços, e os órgãosinternos a aguentarem toda a tensão,que Sir Daniel me disse ser a causa demetade das doenças das mulheres,embora eu ache que o consultório lhe

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esteja a subir à cabeça. É claro que, nocaso do primeiro-ministro, tudo deveser desculpado.

Lady Alleyn lançou um olharintrigado ao filho, que acenou comcompreensão àquela tagarelicedesenfreada.

– Sim, Lucy? – murmurou LadyAlleyn.

– O que me traz a esta calamidadeterrível – continuou o telefone numasérie de estalidos e assobios. –Demasiado horrível! E você sabia queele ficou de jantar comigo esta noite.Até adiei jantar com o meu irmãoporque senti que não conseguiahabituar-me à ideia de que, valha-nos

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Deus, não me ia sentar à mesa com oBunchy Gospell. Os Seus caminhos sãoinescrutáveis, e quando o vi descer aescada cantarolando para si mesmo,nunca pensei que estava com um pé nacova. Nunca me vou perdoar, claro,por não me ter oferecido para o levare, afinal, com o primeiro-ministro tãomal, eu podia ter feito isso.

– Porque continua a mencionar oprimeiro-ministro nesta história, Lucy?– perguntou Lady Alleyn. Pôs a mãosobre o bocal e disse irritada: – Maseu quero saber, Roderick.

– Está tudo bem – disse Alleyn. – ODavidson fingiu… ouça, querida, elaestá a explicar.

– Não lhe posso descrever a agonia,

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Helena – grasnou o telefone. –Realmente pensei que iria desfalecer.Pensei que Sir Daniel tinha de meexaminar imediatamente, e então disseao meu motorista para ir procurá-lo,porque juro-lhe que estava doente demais para distinguir um homem dooutro. Então vi-o sair. «Sir Daniel, SirDaniel!» Ele não me ouviu e tudoestaria perdido se um dos porteirosnão tivesse reparado na minha afliçãoe não tivesse chamado a atenção de SirDaniel. Ele atravessou a rua e, comopaciente muito antiga, não me importode admitir, Helena, fiquei bastantedececionada, mas, claro, com o paísno estado em que está, devemos fazer

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sacrifícios. Ele estava extremamenteagitado. O primeiro-ministro estavamuito doente. Por favor, não conte aninguém, Helena. Eu sei que é tãodiscreta como um túmulo, mas SirDaniel, sem dúvida, ficaria seriamentecomprometido se isto se soubesse.Naquelas condições eu não podia fazernada a não ser carregar a minha cruzem silêncio e só depois de ele terdesatado a correr é que pensei emlevá-lo a Downing Street. No momentoem que o idiota do motorista ligou ocarro, claro, já era tarde de mais. Semdúvida que Sir Daniel tinha corridopara o primeiro táxi que encontrou e,apesar de eu ter telefonado e usado detodo o tato, o telefone está

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continuamente ocupado, de modo quese teme o pior.

– Louca! – disse Lady Alleyn para ofilho.

– … não imagina com isto me temperturbado, mas sei bem qual é o meudever, Helena, e quando me lembrei deque o seu filho é polícia disse a mimmesma que ele devia saber sobre estehomem extraordinário que estoufirmemente convencida de que é umassassino. Que outra explicação podehaver?

– Sir Daniel Davidson! – exclamouLady Alleyn.

– Meu Deus, Helena, você estálouca? Pelo amor de Deus, diga ao seu

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filho que venha falar comigo para quenão haja nenhum erro. Como poderiaser o meu pobre Sir Daniel, que jáestava a caminho de Downing Street?Eu atribuo a minha terrível condiçãoneste momento ao choque que recebi.Lembra-se de uma peça chamada Orosto na janela? Lembrei-me dela.Garanto-lhe que gritei em voz alta, omeu motorista é minha testemunha. Onariz era chato e branco, e o bigodebastante assustador, como um monstropeludo colado ao vidro. Os olhosreviraram-se, eu não podia fazer nadaa não ser agarrar as minhas pérolas.«Vá embora!», gritei. O meu motorista,um idiota, não tinha visto nada e nomomento em que se levantou, o homem

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tinha desaparecido.Alleyn levantou uma folha de papel

diante do nariz da mãe. Tinha escrito:«Pergunte-lhe quem era.»

– Tem alguma ideia de quem era,Lucy? – perguntou Lady Alleyn.

– Não tenho dúvida nenhuma,Helena, e você também não deveriater. Estes casos terríveis queocorreram! Os jornais estão cheiosdeles. O Mirone de Peckham, emboracomo ele conseguiu ir lá todas asnoites a partir de Halkin Street…

Alleyn abafou uma exclamação.– De Halkin Street? – repetiu Lady

Alleyn.– Não há dúvida de que o

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comportamento terrível da mulher lhedeu a volta à cabeça. Ele suspeitava dopobre Robert Gospell. Você deve terouvido, tal como eu, como ele seofereceu para a acompanhar a casa.Sem dúvida que ele foi à procuradeles. O júri irá recomendarmisericórdia, ou talvez o declaremculpado, mas louco, como sem dúvidaele é.

– Mas, Lucy! Lucy, ouça. De quemestá a falar?

– Não seja tonta, Helena, quem maispoderia ter sido além de GeorgeHalcut-Hackett?

4 Referência a The Gondoliers, ópera de ArthurGilbert e William Sullivan, estreada em 1889. (N. doT.)

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CAPÍTULO 22

CLUBE NOTURNO

– Bem, Roderick – disse LadyAlleyn quando finalmente se livrou deLucy Lorrimer –, você pode terpercebido alguma coisa, mas parece-me que Lucy perdeu o juízo. Acha queo pobre e velho general Halcut-Hacketté o Mirone de Peckham?

– Isso é um caso que a imprensatransformou em história de primeirapágina. Não, claro que não, écompletamente irrelevante. Mas aindaassim, parece que o velho Halcut-Hackett encostou o rosto à janela docarro de Lucy Lorrimer.

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– Mas a Lucy diz que ficou até o fim,e eu sei que ele levou aquela criançainfeliz embora logo após a meia-noite.O que andava a pobre criatura a fazerem Belgrave Square, às três e meia damanhã?

– Ele disse-me que foi dar umpasseio a pé – murmurou Alleyn.

– Disparate. Não se espreita paradentro dos carros de senhoras de idadequando se dá passeios a pé às três emeia da manhã. A coisa toda éabsurda.

– É tão absurda que tenho de aincluir no meu triste programa.Gostaria de ir a um clube noturnocomigo, mãe?

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– Não, obrigada, Rory.– Bem me queria parecer. Tenho

então de ir sozinho ao Matador.Imagino que eles abrem por volta dasonze.

– Ninguém vai antes da meia-noiteou mais tarde – disse Lady Alleyn.

– Como é que sabe?– A Sarah está sempre a importunar-

me para que a autorize a ir ao Matador.Agora espera arranjar umaacompanhante, mas imagino que nãoseja lugar para acompanhantes. Nãofaço qualquer intenção de deixá-la ir.

– É um daqueles lugares queoferecem as atrações de uma pequenapista de dança, uma banda magnífica e

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uma multidão tão densa que passamosa noite a dançar pertinho do parceirode outra pessoa. É tão mal iluminadoque o visitante mais inocente assumeum ar de intriga e o mais culpado tempelo menos uma boa hipótese de nãoser reconhecido.

– Parece extremamente familiarizadocom o sítio – disse a mãe secamente.

– Tivemos o Matador debaixo deolho por algum tempo. Vai ter um detrês destinos. As pessoas elegantes vãocansar-se daquilo e a gerência vaitentar mantê-las relaxando a vigilânciaem matéria de bebida, ou as pessoaselegantes vão cansar-se e vaigradualmente perder o seu prestígio econtinuar a ganhar dinheiro com gente

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de menos classe, mas igualmente rica,ou as pessoas elegantes vão cansar-sedaquilo e o sítio vai falir. Estamosinteressados na primeira contingênciae eles sabem disso. São extremamenteeducados comigo no Matador.

– Vai demorar-se muito lá?– Não. Só quero falar com o paquete

e o secretário. Depois vou voltar paracasa e dormir. Posso usar o seutelefone?

Alleyn ligou a Fox e perguntou se eletinha falado com o agente que fazia oturno da noite em Belgrave Square.

– Sim – disse Fox. – Falei com ele.Ele diz que não relatou ter visto ogeneral porque não viu nada de

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especial, por o conhecer tão bem. Dizque pensou que o general tinha ido aobaile e estava a caminho de casa.

– A que horas foi isso?– Cerca das três e vinte, quando a

maioria dos convidados saía deMarsdon House. O colega diz que nãoreparou no general no início da noite,quando ele levou a jovem a casa. Dizque ainda estava de olho na multidão àporta da frente naquele momento epoderia facilmente ter-lhe escapado.Ele diz que é habitual o velhocavalheiro dar uma volta à noite, masnunca reparou nele a uma hora tãotardia. Eu disse-lhe algumas coisassobre o que se espera dele e por querazão os sargentos são despromovidos

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– acrescentou Fox. – A questão é queele passou a maior parte do tempo emredor da porta da frente de MarsdonHouse. Agora há outra coisa, senhor.Um dos porteiros disse que reparounum homem de casaco preto com umlenço branco puxado sobre a boca, eum chapéu de feltro preto, a rondar pormuito tempo na sombra, na periferia damultidão. O porteiro diz que oindivíduo era alto e parecia umcavalheiro. Acha que usava roupas decerimónia sob o casaco. Acha que eletinha um bigode branco. Ele diz queesse homem parecia não querer queninguém reparasse nele, mas ele olhoupara o homem várias vezes e

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perguntou-se o que estaria ele a tramar.O porteiro acha que este homem aindaestava do outro lado da rua, a cobertodas árvores, quando os últimosconvidados foram embora. Agora,senhor, isso parece-me importante.

– Sim, Fox. Está a sugerir que esseindivíduo à espreita era o general?

– A descrição bate certo, senhor.Pensei em mandar este rapaz, queainda está aqui na Yard, dar umaolhadela ao general e ver se o podeidentificar.

– Faça isso. É melhor levar o seuporteiro para a praça. Veja seconsegue apanhar o general num dosseus passeios. O homem poderá vê-loà mesma luz da noite de ontem.

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– Sim.– Vou ao Matador e depois para

casa. Ligue-me se houver algumacoisa.

– Muito bem, Mr. Alleyn. Boa noite.– Boa noite, Irmão Fox.Alleyn pousou o telefone e olhou

para a mãe.– Parece que a Lucy Lorrimer não é

completamente tonta – disse ele. – Ovelho Halcut-Hackett comportou-se deuma forma muito curiosa na noitepassada. Se, de facto, foi o general, eeu imagino que deve ter sido. Ele foitão incrivelmente evasivo sobre osseus próprios movimentos. Conhece-o?

– Não muito bem, querido. Ele era

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um camarada de armas do seu pai.Penso que era um desses homensgrandes a que o humor regimentaldecretou chamar «Pequeno». Não melembro de alguma vez ter ouvido queele tinha um temperamento violento outomava drogas ou seduziu a mulher doseu coronel ou fez na verdade algumacoisa notável. Ele só se casou com estasenhora horrorosa quando tinha cercade cinquenta anos.

– Ele era rico?– Acho que era bastante rico. Ainda

é, a julgar por aquela casa. Tambémtem uma casa de campo, creio, alguresno Kent.

– Então, por que diabo se preocupaela em apresentar debutantes a troco de

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dinheiro?– Bem, sabe, Rory, se ela quer ser

convidada para todos os lugares efazer tudo, é mais provável ter sucessocom uma coisinha jovem atrás dela.Receberia muitos mais convites.

– Sim. Mas parece-me que háqualquer coisa para além disso. Boanoite, querida. A mãe é o melhor tipode mãe. Demasiado adstringente paraser doce, graças a Deus, mas todaviaconfortável.

– Obrigada, meu querido. Venhaoutra vez, se quiser. Boa noite.

A mãe acompanhou-o à porta comum ar descontraído, mas quando voltoupara a sala de visitas, sentou-se

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durante um bom bocado a pensar nopassado do filho, em Agatha Troy e nasua própria determinação inalterávelde nunca se intrometer.

Alleyn apanhou um táxi para oMatador, no Soho. O paquete doMatador era um gigante desiludidonum uniforme cor de ameixa. Usavaluvas bonitas, uma fileira de medalhase uma expressão de sabedoriamundana. Estava debaixo de umarepresentação em luzes de néonvermelhas de um toureiro, e pagava àgerência vinte libras por ano pelo seutrabalho. Alleyn deu-lhe as boas-noitese entrou no vestíbulo do Matador. Apulsação de saxofones e instrumentosde percussão sentia-se no ar,

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amortecida naquela antessala pelascortinas de seda cor de ameixaapanhadas em dobras clássicas porfileiras de girassóis de latãoprateados. Um porteiro foi ter com elee encaminhou-o para o bengaleiro.

– Conhece o capitão MauriceWithers de vista? – perguntou Alleyn.– Devia juntar-me ao grupo dele e nãotenho a certeza se vim ao lugar certo.Ele é membro deste clube.

– Lamento, senhor. Comecei atrabalhar aqui há pouco tempo e nãoconheço os membros de vista. Seperguntar no escritório, senhor, elesvão dizer-lhe.

Praguejando interiormente contra

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aquela oportunidade falhada, Alleynagradeceu ao homem e procurou abilheteira. Encontrou-a debaixo de umgrande girassol e rodeada de ricasdobras de seda. Alleyn olhou para lá eviu um jovem num bonito smoking, apalitar os dentes taciturnamente.

– Boa noite – disse Alleyn.O jovem abandonou o palito com um

passe de mágica.– Boa noite, senhor – disse ele num

tom animado e numa voz culta.– Posso falar consigo por um

momento… Mr…?O jovem adotou instantaneamente um

ar circunspeto.– Bem… ah… eu sou o gerente. O

meu nome é Cuthbert.

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Alleyn fez deslizar o seu cartãoatravés da vigia. O jovem olhou paraele, tornou-se ainda mais cauteloso, edisse:

– Talvez, se não se importar de irpela porta lateral, Mr… Oh!...Inspetor… ah!… Alleyn. Simmons!

Um funcionário do bengaleiroapareceu. No caminho para a portalateral Alleyn tentou a sua história denovo, mas nem o funcionário dobengaleiro, nem o paquete, que foichamado outra vez, conheciam Withersde vista. O funcionário conduziuAlleyn por caminhos labirínticos atéuma pequena sala escura atrás dabilheteira. Ali ele encontrou o gerente.

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– Não é nada muito importante –disse Alleyn. – Gostaria que medissesse, se souber, a que horas ocapitão Maurice Withers chegou aoclube ontem à noite… ou melhor, estamadrugada?

Viu Mr. Cuthbert olhar rapidamentepara um jornal vespertino no qualaparecia uma fotografia de RobertGospell a um quarto de página.Durante os momentos que se passaramantes que ele respondesse, Alleynouviu novamente o batimento pesadoda banda.

– Lamento mas não faço ideia –disse Cuthbert finalmente.

– É uma pena – disse Alleyn. – Se

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não me pode dizer, suponho que vouter de fazer um grande alarido acercadisso. Vou ter de perguntar a todos osseus clientes se o viram e quando eassim por diante. Terei de insistir emver o livro. Sinto muito. Que maçadapara si!

Mr. Cuthbert olhou para ele com amais viva repulsa.

– Com certeza deve compreender –começou – que, na nossa posição,temos de ser extremamente discretos.Os nossos clientes esperam isso denós.

– Oh, sim – concordou Alleyn. –Mas não haverá nenhuma confusão seme der a informação que eu querodiscretamente, e haverá uma grande

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confusão se eu tiver de começar a fazertodo o tipo de perguntas a todo o tipode pessoas.

M. Cuthbert olhou para a suaprimeira unha e, em seguida, roeu-aferozmente.

– Mas se eu não sei – disse ele,irritado.

– Então estamos com pouca sorte.Vou tentar o seu paquete e… oSimmons, não é? Se isso nãofuncionar, vamos ter de começar afalar com os clientes.

– Oh, raios! – protestou Mr.Cuthbert. – Bem, ele chegou muitotarde. Lembro-me disso.

– Porque é que se lembra, por favor?

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– Porque tivemos alguma gente queveio de… do baile de Marsdon Housecerca das três e meia ou um quartopara as quatro. E depois houve umapausa no movimento.

– Sim?– Sim, bem, e, em seguida, bastante

depois, o capitão Withers assinou oregisto. Ele pediu uma garrafa de ginnova.

– Mrs. Halcut-Hackett vinha comele, não vinha?

– Eu não sei o nome daacompanhante.

– Uma mulher alta e forte, loira, decerca de quarenta, quarenta e cincoanos, com um sotaque americano.

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Talvez não se importasse de chamar…– Está bem, então, está bem. Ela

vinha com ele.– Eram já quatro e meia quando

chegaram?– Eu não… ouça, quero dizer…– É bem possível que não tenha de

ouvir falar mais nisto. Quanto maisexata a sua informação, sabe, menosproblemáticas serão as nossasinvestigações subsequentes.

– Sim, eu sei, mas temos um DEVERpara com os nossos clientes.

– Sabe, na verdade, com a diferençade, digamos, dez minutos, a que horaso casal chegou? Eu acho que sabe. Seassim for, recomendo vivamente quemo diga.

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– Oh, está bem. Por acaso, eramquatro e um quarto. Houve um espaçode tempo tão longo em que ninguémentrou, estávamos praticamente cheiosde qualquer maneira, claro, queaconteceu eu reparar nas horas.

– Isso é esplêndido. Agora, seassinar uma declaração nesse sentido,acho que não preciso de o incomodarmais.

Mr. Cuthbert caiu numa profundameditação. Alleyn acendeu um cigarroe esperou com um ar de amabilidade.Finalmente Mr. Cuthbert disse:

– Acha que serei chamado comotestemunha de alguma coisa?

– Não. Vamos poupá-lo, se

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pudermos.– Eu podia recusar.– E eu – disse Alleyn – poderia

tornar-me membro do seu clube. Osenhor não poderia recusar isso.

– Sentir-me-ia encantado, tenho acerteza – disse Cuthbert, infeliz. – Estábem. Eu assino.

Alleyn escreveu uma declaraçãocurta e Mr. Cuthbert assinou. Mr.Cuthbert tornou-se mais amável eofereceu a Alleyn uma bebida, a qualele recusou com a maior cortesia. Mr.Cuthbert lançou-se num elogioso relatoacerca do Matador e da forma comoera gerido e a loucura dosproprietários de clubes noturnos quetentavam fugir à restrição legal

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imposta sobre a venda de bebidasalcoólicas.

– Nunca compensa – exclamou Mr.Cuthbert. – Mais cedo ou mais tardepodem ser apanhados. Écompletamente idiota.

Um empregado de mesa entrou nasala, observou algo no olhar de Mr.Cuthbert, e saiu novamente. Mr.Cuthbert convidou cordialmente Alleynpara o acompanhar à sala de dança.Foi tão insistente que Alleyn sepermitiu ser conduzido até ao vestíbuloe ao longo de um túnel cor de ameixa.O som da banda avolumou-se numamistura rítmica que tudo penetrava.Alleyn apercebeu-se de mais girassóis

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de prata, de mesas muito perto umasdas outras e rostos mal iluminados apartir do chão, de uma multidãoululante de pessoas à distância, quedeslizavam ao som da banda. Ficou naentrada, tentando habituar os seusolhos àquele cenário, enquanto Mr.Cuthbert tagarelava inocentemente:«Nós só fazemos coisas dentro dalegalidade.» O inspetor estava prestesa virar-se quando soube de repente quealguém olhava para ele. Os seus olhosseguiram este chamamento intangível.Virou-se lentamente para a esquerda e,a uma mesa de canto, estavam BridgetO’Brien e Donald Potter.

Ambos fitavam Alleyn e com talintensidade que ele não pôde deixar de

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sentir que eles tencionavam atrair a suaatenção. Enfrentou deliberadamente oseu olhar e retribuiu-o. Fitaram-sedurante alguns momentos e, emseguida, Bridget fez um gesto rápido,convidando-o a juntar-se a eles.

– Estou a ver ali uns amigos.Importa-se se eu for falar com eles porum instante? – disse.

M. Cuthbert ficou encantado edesapareceu numa onda de delicadeza.Alleyn abriu caminho até a mesa e fezuma reverência.

– Boa noite.– Não se quer sentar por um minuto?

– disse Bridget. – Queremos falarconsigo.

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Um dos empregados de mesa de Mr.Cuthbert trouxe imediatamente umacadeira.

– O que se passa? – perguntouAlleyn.

– Foi ideia da Bridgie – disseDonald. – Eu não aguento mais. Jádisse que faço o que a Bridgie quiser.Suponho que sou um idiota, masdesisto. É o quero, de certo modo.

– Ele não tem nada a temer – disseBridget. – Eu disse-lhe…

– Ouça – interrompeu Alleyn –, estenão me parece um lugarparticularmente bem escolhido para otipo de conversa que têm em mente.

– Eu sei – disse Bridget. – Se a

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Donna ou o Bart descobrirem que euestive aqui, vai haver uma discussãode proporções absolutamentehorríveis. O Matador! Semacompanhante! Com o Donald! Masestávamos desesperados… tínhamosde nos ver. O Bart está a levar-me àloucura, tem sido tão horrível. Euconsegui telefonar ao Donald de umtelefone exterior e combinámosencontrar-nos aqui. O Donald émembro. Conversámos sobre tudo eíamos falar consigo.

– Pode fazer isso agora. O gerentesabe que eu sou polícia, por isso émelhor não sairmos juntos. Aqui está aminha morada. Venham dentro dequinze minutos. Está bem assim?

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– Sim, obrigada – disse Bridget –,não é, Donald?

– Está bem, tudo bem – disseDonald. – Foi ideia tua, querida. Se euacabar na…

– Não vai acabar em lado nenhum anão ser no meu apartamento – disseAlleyn. – Tomou uma decisão muitosensata.

Levantou-se e olhou para eles. «MeuDeus», pensou, «eles são novos.»

– Não faltem. Au revoir – disse, esaiu do Matador.

No caminho para o seu apartamento,perguntou-se se a perda da melhorparte de mais uma noite de sono iriadeixá-lo mais perto de uma solução.

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CAPÍTULO 23

DONALD FALA SOBRE WITS

Alleyn caminhava impacientementena sua sala de estar. Mandara Vassily,o seu velho criado, para a cama. Oapartamento, no final de um beco semsaída atrás de Coventry Street, estavamergulhado no silêncio. O inspetorgostava da sala de estar. Tinha um arcontraditório de conforto monásticoque, se ele tivesse percebido, era umaexpressão direta de si mesmo. As«Mãos em Oração» de Dürer estavamexpostas por cima da lareira. No ladooposto da divisão, uma pintura do caisde Suva, da autoria de Agatha Troy,

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enunciava, em nítidas cores frias, umafrase simples de beleza. Ele tinhacomprado aquela imagem em segredo,numa das suas exposições e Troy nãosabia que Alleyn a tinha penduradonaquela divisão. Havia três velhaspoltronas confortáveis da casa da mãeem Bossicote, a secretária do pai e, emvolta de todas as paredes uma pilha debelos livros que lhe chegava à cintura.Mas nessa noite de junho a sua salaparecia fria. Alleyn riscou um fósforo,acendeu a lareira e colocou trêscadeiras no círculo do seu brilho. Jáestava na altura de aqueles doischegarem. Um táxi percorreu o beco eparou. A porta bateu. Ele ouviu a vozde Bridget e foi abrir-lhes a porta.

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Lembraram-lhe vividamente duascrianças pequenas a entrarem na salade espera de um dentista. Donald era avítima, Bridget a acompanhante poucotranquilizadora. Alleyn tentou dissiparessa atmosfera, instalou-os em frente àlareira, ofereceu-lhes cigarros, elembrando-se que eles eram adultos,ofereceu-lhes uma bebida. Bridgetrecusou. Donald, com um ar pomposo,aceitou um whisky com soda.

– Então – disse o inspetor –, de quese trata? – Sentiu que deveriaacrescentar: «Abra bem!», e quandoentregou a bebida a Donald:«Bocheche, por favor.»

– Trata-se do Donald – disse Bridget

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em voz alta e determinada. – Eleprometeu deixar-me contar-lhe. Elenão gosta, mas eu disse-lhe que não mecaso com ele a menos que o faça, entãoele concordou. E, além disso, ele acharealmente que deveria fazê-lo.

– É uma coisa estúpida – disseDonald. – Não há nenhuma razão, naverdade, para eu me meter nisto. Já medecidi, mas ainda assim não vejo…

– Ainda assim, estás envolvido,querido, por isso não importa muito sevês ou não razão.

– Está bem. Está decidido dequalquer maneira, não está? Nãoprecisamos de discutir. Vamos contar aMr. Alleyn e pronto.

– Sim, vamos. Começo eu?

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– Se quiseres.Bridget virou-se para Alleyn.– Quando nos encontrámos hoje à

noite – começou –, perguntei aoDonald sobre o capitão Withers,porque a maneira como o senhor faloudele esta tarde fez-me pensar quetalvez ele não seja uma boa ideia.Obriguei o Donald a contar-meexatamente o que sabe sobre o Wits.

– Sim?– Sim. Bem, o Wits é um vigarista.

Não é, Donald?– Suponho que sim.– É um vigarista, porque gere uma

casa de jogo ilegal em Leatherhead. ODon diz que o senhor já sabia ou

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suspeitava disso. Bem, é verdade. E oDonald disse que entraria no negócio,só que não sabia como o Wits eradesonesto. E, em seguida, o Donaldperdeu dinheiro para o Wits e nãopodia pagá-lo e o Wits disse que eramelhor associar-se a ele ou as coisasficariam muito difíceis para o Donald,se ele não o fizesse. Com o Bunchy etudo.

– Mas o Bunchy pagou as suasdívidas ao Withers – disse Alleyn.

– Nem todas – disse Donald com orosto vermelho, mas um olhar dedeterminação desesperada («Primeiraextração», pensou Alleyn). – Eu nãolhe contei tudo sobre esse assunto.

– Compreendo.

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– Então o Donald disse que seassociaria ao Wits. E depois, quandodiscutiu com o Bunchy e se mudou paracasa do Wits, descobriu que o Wits eraum vigarista da pior espécie. O Dondescobriu que o Wits recebia dinheirode uma mulher. Tenho de dizer quemera ela?

– Mrs. Halcut-Hackett?– Sim.– Muito dinheiro? – perguntou

Alleyn a Donald.– Sim, senhor – disse Donald. – Não

sei quanto. Mas ela… ele disse-me queela estava interessada no clube deLeatherhead. A princípio pensei queestava tudo bem. Pensei mesmo. É

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difícil explicar. Acho que me habitueià maneira como o Wits falava. Hojeem dia é tudo uma fraude, umavigarice, é o que o Wits diz e eucomecei a pensar da mesma forma.Suponho que perdi o meudiscernimento. A Bridget diz queperdi.

– Ela deve ter razão, não é?– Suponho que sim. Mas… não sei.

De certa forma, foi tudo muitodivertido até… bem, até hoje.

– Quer dizer até ao Bunchy ter sidoassassinado?

– Sim. Mas… sabe…– Deixa-me falar – disse Bridget. –

Sabe, Mr. Alleyn, o Donald ficoubastante desesperado. O Wits ligou e

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disse-lhe para se manter afastado. Issofoi hoje de manhã.

– Eu sei. Foi por minha instigação –disse Alleyn. – Eu estava lá.

– Oh – disse Donald.– Bem, de qualquer maneira – disse

Bridget –, o Donald apanhou umchoque. Com as suas perguntas e oWits sempre a dizer que o Donald iaficar muito bem quando o tio delemorresse.

– O capitão Withers fez isso muitasvezes?

Bridget pegou na mão de Donald.– Sim, fez – respondeu. – Não fez,

Donald?– Qualquer pessoa pensaria, Bridget,

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que tu queres enforcar um de nós osdois, o Wits ou eu – disse Donald ecolocou a mão dela na sua bochecha.

Bridget disse: – Eu vou contar tudo.Tu és inocente, e se és inocente, estásseguro. A minha mãe diria isso. Osenhor diz isso, não é, Mr. Alleyn?

– Sim – disse Alleyn.– Bem, esta tarde – continuou

Bridget –, as coisas do Donald foramdevolvidas do apartamento do Wits.As roupas e os livros. Quando oDonald os desembrulhou, viu quefaltava um livro.

– O primeiro volume de MedicinaLegal, de Taylor?

Donald humedeceu os lábios eacenou com a cabeça.

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– Isso perturbou-o muito – continuouBridget, empalidecendo –, por causade um capítulo do livro. Depois de leros jornais desta manhã o Donald e oWits discutiram quanto tempo levariaa… a…

– Oh, meu Deus! – disse Donald derepente.

– A asfixiar alguém? – perguntouAlleyn.

– Sim. E o Donald consultou esselivro.

– O capitão Withers tocou no livro?Donald olhou rapidamente para

Bridget e disse: – Sim, tocou. Leu umbocado e depois perdeu o interesse.Pensou que levaria mais tempo, disse

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ele.– O Donald estava confuso sobre o

livro não chegar, e acerca de o Witslhe ter dito para não ir ao apartamento– disse Bridget. – Ele pensou nissodurante toda a tarde, e quanto maispensava, menos lhe agradava. Entãofez um telefonema. O Wits atendeu,mas quando ouviu a voz do Donald,simplesmente desligou sem dizer umapalavra. Não foi, querido?

– Sim – disse Donald. – Ligueinovamente e ele não atendeu. Eu.. eunão conseguia pensar com clareza.Senti um frio na boca do estômago. Erasimplesmente horrível cortar relaçõescomigo daquela maneira. Porque nãohaveria ele de falar comigo, porquê?

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Porque não tinha enviado o livro?Ainda esta manhã estávamos no seuapartamento, como amigos. Até quechegou a notícia… depois disso nãoouvi nada do que o Wits disse. Assimque soube que o tio Bunch tinha sidoassassinado não consegui pensar emmais nada. Eu não estava vestidoquando os jornais chegaram. A minhamãe já sabia há horas, mas, com otelefone desligado naquela altura, elanão conseguiria contactar-me. Eu nãolhe dei a minha nova morada. O Witscontinuou a falar. Não ouvi nada. Eentão, quando cheguei a casa, o senhorestava lá, a espicaçar-me, a espicaçar-me. E a minha mãe a chorar, e as flores

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e tudo o resto. E ainda por cima essacoisa de o Wits não querer falarcomigo. Eu não conseguia pensar. Eusimplesmente tinha de ver a Bridget.

– Sim – disse Bridget –, ele tinha deme ver. Mas estás a misturar as coisas,Donald. Devemos mantê-las na ordemcorreta. Mr. Alleyn, estávamos a falardesta tarde. Bem, o Donald ficou tãoabalado com o telefonema e a falta dolivro que, apesar do que o Wits haviadito, ele sentiu que tinha de o ver.Então, depois do jantar, apanhou umtáxi para o apartamento do Wits e viuque havia uma luz sob a persiana, porisso soube que o Wits estava em casa.O Donald ainda tinha a sua própriachave e foi direto ao apartamento.

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Agora continua tu, Donald.Donald terminou o seu whisky com

soda e acendeu um novo cigarro comos dedos a tremer.

– Está bem – disse ele. – Voucontar-lhe. Quando entrei na sala deestar, ele estava deitado no divã. Eufiquei no meio da sala, a olhar paraele. O Wits não se mexeu e nãolevantou a voz. Insultou-me e disse-mepara sair. Eu disse que queria saberporque se comportara ele daquelamaneira. Ele limitou-se a ficar deitadoe a olhar para mim. Eu disse algosobre si, Mr. Alleyn… não sei o quê…e ele levantou-se num ápice. Penseique ia começar uma luta. Perguntou-me

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que diabo lhe tinha eu dito sobre ele.Eu disse que tinha evitado falar sobreele, tanto quanto possível. Mas elecomeçou a fazer todo o tipo deperguntas. Meu Deus, ficou possesso.Muitas vezes lemos sobre as veiasincharem de raiva na cara das pessoas.Foi o que aconteceu às veias dele.Sentou-se na borda da mesa, abalançar um pé e o rosto dele ficoumuito sombrio.

– Sim – disse Alleyn. – Eu possoimaginar o capitão Withers. Continue.

– Ele disse – Donald susteve arespiração. Alleyn viu os seus dedosapertarem-se à volta dos dedos deBridget. – Ele disse que, a menos queeu me mantivesse calmo e tivesse tento

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na língua, ele próprio começaria afalar. Disse que, afinal de contas, eutinha discutido com o tio Bunch, e eu éque contraíra dívidas, e é que era oherdeiro do tio Bunch. Disse que se eleestava metido nisso até aos joelhos, euestava enterrado até ao pescoço. Tiroua mão do bolso e apontou o dedo chatoao meu pescoço. Então disse-me parame lembrar, se eu não quisessecometer suicídio, que, quando ele saiude Marsdon House, meteu-se no carroe foi para o Matador. Eu devia dizerque o tinha visto partir com aacompanhante dele no carro.

– E viu isso?– Não. Saí depois dele. Acho que o

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vi a andar à minha frente em direçãoao carro. Estava estacionado emBelgrave Road.

– Porque é que acha que o Witherstomou esta atitude extraordináriaquando o viu esta noite?

– Ele pensou que eu o tinhadenunciado a si. Ele disse-me isso.

– Acerca de Leatherhead?– Sim. O senhor disse algo sobre…

sobre…– Esfolar cordeiros – disse Bridget.– Sim. É verdade – admitiu Alleyn

alegremente.– Ele pensou que eu tinha perdido a

coragem e falado de mais.– E agora está preparado para falar?– Sim.

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– Porquê?– Já lhe dissemos – começou

Bridget.– Sim, eu sei. Disse-me que

convenceu o Donald a vir falarcomigo, porque achou melhor eleexplicar a sua associação com oWithers. Mas eu acho que há algo maispor trás disso. Estaria errado, Donald,se dissesse que o Donald foi pelomenos incentivado a tomar essadecisão por medo de que o Withers selhe adiantasse e sugerisse que tinhamatado o seu tio?

– Não! Não! Como pode ser tãocruel? Como pode pensar isso doDonald! O Donald! – gritou Bridget.

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Mas Donald olhou fixamente paraAlleyn e quando voltou a falar,mostrou-se grave e com uma certadignidade que lhe assentava muitobem.

– Não, Bridget – disse. – Éperfeitamente natural que Mr. Alleynpense que eu tenho medo de que o Witsme acuse. Tenho medo. Não matei otio Bunch. Acho que gostava mais deledo que de qualquer outra pessoa nomundo, exceto tu, Bridgie. Mas eutinha discutido com ele. Quem me deranão o ter feito. Eu não o matei. A razãopor que estou pronto agora pararesponder a quaisquer perguntas sobreo Wits, mesmo que isso signifique

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implicar-me… – Parou e respiroufundo.

– Sim? – perguntou Alleyn.– É porque depois de me ter

encontrado com o Wits esta noite,acredito que ele matou o meu tio.

Houve um longo silêncio.– Motivo? – perguntou Alleyn,

quebrando o silêncio.– Ele pensou que tem influência

suficiente sobre mim para conseguircontrolar o dinheiro.

– Provas?– Não tenho nenhumas. Só a forma

como ele falou esta noite. Tem medoque eu acredite que ele matariaqualquer um, se tivesse incentivosuficiente.

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– Isso não é prova nenhuma, nemnada parecido.

– Não. Pareceu-me o suficiente parame trazer aqui. Quando poderia termantido o silêncio – disse Donald.

O telefone tocou. Alleyn foi até àsecretária e atendeu.

– Estou?– Roderick, és você?– Sim. Quem fala, por favor?– Evelyn Carrados.Alleyn olhou para a lareira. Viu

Bridget inclinar-se para a frente ebeijar Donald rapidamente.

– Olá! – disse. – Há algumproblema?

– Roderick, estou tão preocupada.

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Não sei o que fazer. A Bridgie saiusem dizer uma palavra a ninguém. Játelefonei ao maior número de pessoaspossível e não tenho a menor ideia deonde ela está. Receio tanto que elatenha feito algo imprudente edisparatado. Pensei que ela poderiaestar com o Donald Potter e queriasaber se me poderia dar o número detelefone dele. Ainda bem que oHerbert está num jantar regimental, emTunbridge. Estou morta depreocupação.

– Está tudo bem, Evelyn – disseAlleyn. – A Bridget está aqui comigo.

– Consigo?– Sim. Ela queria falar comigo. Ela

está muito bem. Eu levo-a a casa…

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– O Donald Potter está aí?– Sim.– Mas porquê? Porque fizeram isso?

Roderick, quero ir aí. Vou buscar aBridget, posso?

– Sim, venha – disse Alleyn e deu-lhe a morada.

Desligou o telefone e virou-se paradar com Bridget e Donald muitoassustados.

– Donna! – sussurrou Bridget. – Oh,caramba!

– É melhor eu ir? – perguntouDonald.

– Talvez seja melhor – disse Alleyn.– Se a Bridgie vai ter sarilhos, eu

prefiro ficar.

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– Não, querido – disse Bridget –, émelhor não, sinceramente. Desde que oBart não descubra, eu fico bem.

– A sua mãe ainda vai demorar unsdez minutos – disse Alleyn. – Ouça,Donald, eu quero um relato completodesse negócio de jogo em Leatherhead.Se eu o colocar noutra sala, escreve-o?Vai poupar-nos uma grande quantidadede tempo e problemas. Deve ser omais claro possível, sem omissões ecom tantas datas quantas puderrecordar. Espero que leve àcondenação do capitão Withers.

Donald parecia desconfortável.– Parece medonho fazer isso. Quero

dizer…

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– Deus do Céu, acabou de me dizerque acha que o homem é um assassinoe, pelos vistos, sabe que é um canalha.Ele usou-o como fantoche e pelo quedepreendo a ideia dele era burlá-lo eficar com o seu dinheiro!

– Está bem – aquiesceu Donald. – Euvou fazer isso.

Alleyn levou-o para a sala de jantare instalou-o ali com papel e caneta.

– Daqui a pouco venho cá para vercomo se está a sair. Terá de havertestemunhas da sua assinatura.

– Vou ser acusado de cumplicidade?– Não me parece. Quantos anos tem?– Faço vinte e um em agosto. Não é

que eu me importe. Seria horrível, não

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é verdade? Mas eu já disse que o fazia.– Pois foi. Não se martirize muito –

disse Alleyn, bem-humorado. Donaldolhou para ele e de repente aexpressão de Lord Robert brilhou nosseus olhos.

– Está bem – disse ele. – Não memartirizo.

Alleyn voltou para junto de Bridget eencontrou-a sentada no tapete dalareira. Parecia muito assustada.

– O Bart sabe?– Não, mas a sua mãe está muito

preocupada.– Bem, isso não é tudo por minha

causa. O Bart está a pô-la louca. Nãoacreditaria se eu lhe contasse como eleé. Honestamente, não me surpreenderia

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se o Bart tivesse uma apoplexia eenlouquecesse.

– Meu Deus – disse Alleyn.– Não, honestamente. Não sei o que

ele lhe disse quando o interrogou, massuponho que não se deixou enganarpela famosa pose dos Carrados, poisnão? Claro que não. Mas pode não terpercebido o mau génio que ele tem. Eunão percebi durante muito tempo. Sódepois dos quinze anos.

– Há dois anos? – perguntou Alleyncom um sorriso. – Fale-me sobre isso.

– Foi simplesmente terrível. ADonna estava doente e andava a dormirmuito mal. Perguntaram ao Bart se elese importaria de ir para o quarto de

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vestir. Eu não percebi na altura, masagora sim, que era isso que o irritava.Ele fica sempre ofendido quando aDonna está doente. Toma-o como umaespécie de insulto pessoal e sendo umvelho vitoriano irascível a ideia doquarto de vestir pô-lo absolutamentefora de si. Está chocado?

– Suponho que não – disse Alleyncom cautela. – Continue, por favor.

– Bem, não está chocado. E então elefoi para o quarto de vestir. E emseguida a Donna ficou muito doente eeu disse que tínhamos de chamar SirDaniel, porque ela estava tão doente eele é um anjo. E o Bart telefonou-lhe.Bem, eu queria encontrar Sir Danielprimeiro para lhe falar sobre a Donna

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antes do Bart. Então desci para oescritório do Bart porque disse aomordomo para levar Sir Daniel paralá. O Bart estava lá em cima com aDonna a dizer-lhe como se sentia«abatido», mas que não importava, elanão devia dar atenção. E então Sir Danchegou e foi angelical e eu falei-lhesobre a Donna. Reparou que noescritório há uma escrivaninhafrancesa?

– Sim.– Bem, Sir Dan adora coisas antigas

e viu-a e ficou encantado, dizendo queera uma bela peça e quando foi feita ecomo costumavam, por vezes, colocarpequenas gavetas secretas naquelas

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peças, bastava tocar num parafuso e asgavetas abriam-se. Ele disse que erauma peça de museu e perguntou-me seeu não achava que algumas dassenhoras desaparecidas podiam voltare abrir as gavetas secretas com dedosfantasmagóricos. Então eu quis ver, equando Sir Dan foi ver a Donna, tenteimexer nos parafusos com um lápis e,finalmente, uma pequena gaveta abriu-se, de esguelha, mais ou menos. Haviauma carta lá dentro. Eu não lhe toquei,naturalmente, mas enquanto estava aolhar para a gaveta, o Bart deve terentrado. O que foi que disse?

– Nada – disse Alleyn. – Continue.– Não imagina como ele estava.

Ficou louco, sinceramente. Segurou-me

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no braço e torceu-o tanto que eu gritei.Ele empalideceu e chamou-mebastarda. Eu pensei que ele me ia baterse Sir Dan não tivesse descido. Achoque Sir Dan me ouviu gritar e deve terpercebido o que tinha acontecido,porque bastou-lhe olhar para o meubraço, eu estava de mangas curtas, eem seguida disse numa voz perigosa efantástica: «Está a ver se me arranjaoutra paciente, Carrados?» O Bartbateu com a pequena gaveta, começoua gaguejar e a tentar pensar numaexplicação. Sir Daniel limitou-se aolhar para ele através dos óculos,aqueles com a fita preta. O Bart tentoufingir que eu escorreguei no chão

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polido e ele me apanhou pelo braço.Sir Daniel disse: «Muito curioso, defacto», e examinou o meu braço.Receitou-me algumas coisas para pôrno braço e foi tremendamenteatencioso comigo, e não fez perguntas,mas simplesmente ignorou o Bart. Foihorrivelmente constrangedor ter deouvir o Bart a tentar fazer aquelenúmero do soldado simples para cairnas boas graças de Sir Dan. E quandoele se foi embora, o Bart pediu-medesculpa e disse que andava muitonervoso e doente e que nuncarecuperara da guerra, o que foi muitobom porque ele passou-a emTunbridge Wells. Isso foi o pior detudo, ter de o ouvir pedir desculpas.

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Ele disse que havia uma carta da suamãe na gaveta que era sagrada. É claroque me senti mal. Ele nunca meperdoou e eu nunca mais esqueci.Acredito no meu íntimo que haviaalguma coisa sobre o seu passadomiserável naquela gaveta.

A voz de Bridget finalmente parou.Alleyn, que estava sentado na suacadeira, ficou em silêncio durante tantotempo que, finalmente, ela deixou defitar o fogo e olhou para o rosto doinspetor.

– É uma história estranha, não é? –disse ela.

– Muito estranho, na verdade – disseAlleyn. – Alguma vez falou sobre isso

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com alguém?– Não. Bem, só com o Donald. – Ela

mexeu-se desconfortavelmente notapete da lareira. – É engraçado –disse ela. – Suponho que deveria termedo de si, mas não tenho. Porque éque a Donna vem cá?

– Ela quer vir buscá-la e falarcomigo – disse Alleyn distraidamente.

– Toda a gente quer falar consigo. –Ela apertou as mãos sobre os joelhos.– Não quer? – insistiu.

– Por nenhuma razão lisonjeira,infelizmente.

– Bem, acho que o senhor érealmente como um cordeiro – disseBridget.

– Diga-me – disse Alleyn –, acha

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que mais alguém conhece o segredo daescrivaninha francesa?

– Acho que não. Nunca o descobririaa menos que alguém lho mostrasse.

– Nenhum dos criados?– Não tenho a certeza. O Bart bateu

com a gaveta para a fechar, assim queSir Daniel entrou.

– Sir Daniel já esteve sozinhonaquele escritório?

– Sir Dan? Deus do Céu, certamentenão pensa que o meu angelical Sir Dantem alguma coisa a ver com a malditacarta do Bart?

– Quero apenas esclarecer as coisas.– Bem, por acaso, acho que ele não

voltou a entrar no escritório, antes ou

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depois, e ele nunca esteve sozinho alinaquele dia. Quando Sir Dan vai lá acasa, os criados levam-no sempre parao andar de cima. O Bart odeia que oseu escritório seja usado para asvisitas.

– E o Dimitri, o homem do catering,alguma vez esteve sozinho naqueleescritório?

– Bem… não sei. Sim, agora quefala nisso, ele falou com a Donna lá,cerca de um mês antes do nosso baile.Eu desci primeiro e ele estava sozinhono escritório.

– Quando foi isso? Conseguelembrar-se da data?

– Deixe-me ver. Vou tentar. Sim.Sim, consigo. Foi no dia dez de maio.

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Nós íamos a Newmarket e o Dimitriveio ao início da manhã por causadisso.

– Pode jurar que ele esteve lásozinho?

– Sim, sim. Mas, por favor, o que éque isso quer dizer?

– Ouça – disse Alleyn. – Quero queesqueça tudo isto. Não fale disto aninguém, nem mesmo ao Donald.Entendido?

– Sim, mas…– Quero que me prometa.– Está bem, eu prometo.– Solenemente?– Solenemente.A campainha da porta tocou.

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– Aqui está a sua mãe – disseAlleyn.

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CAPÍTULO 24

A DANÇA REVELA-SE

Quando Alleyn abriu a porta aEvelyn Carrados, viu-a como umafigura escura recortada contra a luz darua. O seu rosto estava completamentena sombra e era impossível recolherqualquer impressão a partir dele. Demodo que quando ela entrou na sala deestar, Alleyn não estava preparadopara a sua extrema palidez, os olhosassombrados e a rigidez nervosa dasua boca. Lembrou-se de que ela tinhaido para o quarto antes de dar pelafalta de Bridget, e percebeu comcompaixão que Evelyn Carrados havia

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retirado a maquilhagem e não asubstituíra. Talvez Bridget tenhasentido o mesmo, pois deu um grito ecorreu para a mãe. Lady Carrados,arvorando a expressão dolorosa detodas as mães com o espíritoperturbado, recebeu Bridget nos seusbraços. As suas mãos finas eramextraordinariamente expressivas.

– Querida – murmurou ela. Com umaespécie de intensidade apressada,beijou o cabelo de Bridget. – Como éque pudeste dar-me um susto destes,Bridgie, como?

– Eu pensei que não descobriria.Donna, não. Está tudo bem, a sério queestá. Foi apenas por causa do Donald.Eu não queria preocupá-la. Sinto

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muito, querida Donna. – LadyCarrados soltou-se delicadamente doabraço e virou-se para Alleyn.

– Venha sentar-se, Evelyn – disseele. – Não há nada com que sepreocupar. Eu teria levado a sua filha acasa, mas ela tinha novidadesinteressantes e achei que ma iriaconfiar por meia hora.

– Sim, Roderick, é claro. Se eutivesse sabido. Onde está o Donald?Pensei que ele estava aqui.

– Está na sala ao lado. Vamosmandar a Bridget juntar-se a ele poruns instantes?

– Por favor.– Não o interrompa – disse Alleyn

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quando Bridget ia a sair.– Está bem.A porta fechou-se atrás dela.– Costuma tomar brandy, Evelyn?–

perguntou Alleyn.– Não, porquê?– Vai tomar agora. Está exausta.

Aqueça as mãos na lareira enquanto euo vou buscar.

Ele convenceu-a a beber um poucode brandy, e riu-se do estremecimentodela.

– Então – disse ele –, não hánenhuma necessidade de se preocuparcom a Bridget. Ela tem sido, em geral,uma jovem muito sensata e seu únicodefeito é ter dado a uma visita comumo ar de uma fuga secreta.

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– Os meus nervos deram de si, acho.Comecei a imaginar todos os tipos decoisas horríveis. Até me perguntei seela suspeitava que o Donald tinhacometido este crime.

– Pelo contrário, está absolutamenteconvencida da inocência do Donald.

– Então porque é que ela fez isto?– É melhor eu contar-lhe toda a

história. A verdade, Evelyn, é que elesque estavam desejosos por se verem.A Bridget queria convencer-me dainocência do Donald. Ela tambémqueria que ele me revelasse algumascoisas sobre uma terceira pessoa quenão importa neste momento. Elesmarcaram encontro, muito

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repreensivelmente, no Matador.– No Matador! Roderick, que

impertinência a deles! As debutantessimplesmente não fazem isso. Não, foirealmente muito atrevido.

Alleyn sentiu-se aliviado e surpresoao descobrir que esta quebra deetiqueta das debutantes tomou umaprecedência momentânea em relaçãoaos outros problemas de LadyCarrados.

– Parece-me que eles tinhamacabado de chegar quando eu osencontrei. O lugar estava apenas meiocheio, Evelyn. Era demasiado cedopara as pessoas elegantes. Acho quemais ninguém os viu. Trouxe-os paracá.

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– Ainda bem que o trouxe – disseela, hesitante.

– Era com isso que estavapreocupada?

– Não. É o Herbert. Ele tem estadomuito estranho, Roderick, desde queaconteceu esta tragédia. Fica em casa odia todo e nunca tira os olhos de mim.Eu estava com medo de que fossedesistir do jantar de hoje, mas, graçasa Deus, não desistiu. A seguir há obaile regimental anual e ele tem deentregar troféus ou algo assim, isso vaimantê-lo ocupado até muito tarde. Eutambém deveria ter ido, mas não fuicapaz. Não conseguiria aguentar maisuma hora com ele. Ele anda sempre a

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fazer insinuações estranhas, como se…Roderick, quase como se elesuspeitasse de alguma coisa.

– Conte-me o que ele diz.Ela recostou-se na cadeira e

descontraiu-se um pouco. Alleynrefletiu, não pela primeira vez, queestava a desempenhar o papel deconfidente. «Um papel estranho paraum homem do DIC», pensou, «e umpapel bem útil». Sentou-se para ouvir.

– Tudo começou logo depois davossa visita. Enquanto tomávamos chá.Tomámos o chá no meu boudoir. Eupedi à minha secretária, Miss Harris,para se juntar a nós, porque pensei quea presença dela poderia tornar ascoisas mais fáceis. Naturalmente, mas

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infelizmente, a pobre Miss Harriscomeçou a falar com a Bridget sobre oBunchy. Disse que estava a ler umlivro sobre julgamentos famosos e apalavra «chantagem» de alguma formaveio à baila. Eu… assustei-me e deixeique percebessem. Só a palavra erasuficiente, como pode imaginar. Olheipara cima e deparei com os olhos doHerbert fixos em mim, com umaexpressão de… como hei de descrevê-la?... de pavor de quem sabia algo. Elenão foi com os outros depois do chá,deixou-se ficar no meu quarto aobservar-me. De repente, disse: «Erasmuito amiga do Robert Gospell, nãoeras?» Eu disse: «Claro que era.» A

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seguir ele pediu-me para lhe mostrar omeu livro de cheques. Pareciaperfeitamente louco, logo após a suaoutra pergunta. Quase engraçado, comose suspeitasse que eu estava a manter opobre Bunchy. Mas não teve graçanenhuma. Aterrorizou-me. Em geral, oHerbert nunca se preocupa com o meudinheiro. Faz até questão de não ofazer, porque, além da mesada que eleme dá, eu tenho os meus rendimentos, eo que o Paddy me deixou. Eu sabia quese ele visse o meu livro de chequesperceberia que levantei somasavultadas, quinhentas libras, paracumprir as exigências do…

– As quinhentas libras que pôsnaquela carteira grande na noite

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passada? Como é que as levantou,Evelyn?

– Algumas levantei-as eu. Com umcheque de quinhentas libras. Não meparece que o Herbert soubesse, ou quepudesse ter suspeitado da verdade, sesoubesse. É tudo tão angustiante. Eudisse-lhe que não sabia do livro decheques, que pensava que o tinhadevolvido ao banco. Ele não me ouvia.De repente, perguntou-me se o Bunchyjá me tinha visitado quando eu estavafora. Parecia uma perguntaperfeitamente imbecil. Eu disse quenão sabia. Ele ficou a olhar para mimaté eu ter vontade de gritar, e entãodisse: «Ele sabia alguma coisa sobre

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móveis antigos?»Alleyn lançou-lhe um olhar rápido: –

Móveis antigos?– Pois é! Parece uma loucura, não é?

Repeti o que ele disse, tal como oRoderick, e o Herbert disse: «Bem,antiguidades. Peças como aescrivaninha no meu escritório», e emseguida inclinou-se para a frente edisse: «Achas que ele sabia algumacoisa sobre isso?», e eu disse:«Herbert, de que estás a falar?», e ele:«Acho que não aguento mais. Sinto quetenho estado rodeado pela traição todaa minha vida!» Parece um disparate,mas assustou-me. Perdi a calma eperguntei-lhe como podia ele falarassim. Comecei a dizer que a Bridget

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sempre foi leal, quando ele desatou arir. «A tua filha», disse ele, «leal! Atéque ponto achas que a sua lealdade alevaria? Gostarias de colocá-la àprova?»

Lady Carrados apertou as mãos.– Ele nunca gostou da Bridgie.

Sempre teve ciúmes dela. Lembro-meque uma vez, deve ter sido há doisanos, eles tiveram uma discussãoqualquer e o Herbert chegou a magoá-la. Torceu-lhe o braço. Eu nunca teriadescoberto se não tivesse ido aoquarto e visto as marcas. Acho que elevê alguma coisa do Paddy. Roderick,achas que o Herbert pode saber sobreo Paddy e eu? Há alguma

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possibilidade de que o chantagista otenha contactado?

– É possível, claro – disse Alleynlentamente –, mas não se encaixa bemdentro do cenário. Diz que essamudança extraordinária no Carradoscomeçou depois de Miss Harris e de aBridget falaram em chantagem e de aEvelyn se ter mostrado assustada?

– Sim.– Acha que a sua perturbação óbvia

pode ter sugerido ao Herbert que aEvelyn estava a ser vítima dechantagem?

– Não sei. Certamente sugeriu algomuito sinistro – disse Lady Carrados,esboçando um sorriso. – Ele está numestado de espírito muito estranho, que

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me aterroriza.– Quando é que se casou com ele,

Evelyn?– Quando? Dois anos após a morte

do Paddy. Ele queria que eu mecasasse com ele antes. O Herbert eraum velho amigo da minha família.Sempre foi muito ligado a mim.

– Ele nunca deu qualquer sinal dessetipo de comportamento antes?

– Não deste tipo. Claro, é um poucodifícil às vezes. Muito melindroso. Édezoito anos mais velho do que eu eodeia ser lembrado disso. Temos deser bastante diplomáticos. Acho queele é vaidoso. A Bridgie pensa assim,eu sei.

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A voz suave, com o seu tomtranquilo e equilibrado, hesitou por ummomento, e depois continuou. –Imagino que queira saber porque mecasei com ele, não é?

– Sim. Talvez tenha sentido queprecisava de segurança. Teve a suagrande aventura.

– Foi exatamente por isso. Mas foium erro, vejo isso agora. Não foi justo.Embora o Herbert soubesse muito bemque não era o meu grande amor, e eramuito cavalheiresco e humilde acercadisso, ele realmente não conseguiuresignar-se a esse facto e foidesempenhando cada vez mais o papeldo mártir. É pateticamente infantil às

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vezes. Tenta chamar a minha atençãopara os seus pequenos males. Põe umaespécie de ar paciente. Isso irritamuito a Bridgie, o que é uma pena. Eno entanto, apesar de o Herbertparecer simples, não é. É umaamálgama de repressões epensamentos confusos e estranhos.Sabe, eu acho que ele ainda tem muitosciúmes da memória do Paddy.

– Viam-se muito antes de o Paddymorrer?

– Sim. Pobre Herbert, ele continuoua considerar-se o amigo fiel e distinto,e continuou a adorar-me muitohonradamente depois de eu me tercasado. Ainda penso em mim como amulher do Paddy. Costumávamos

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convidar o Herbert para jantar combastante frequência. Ele aborrecia oPaddy de morte, mas… bem, o Paddyachava muita graça a algumas daspeculiaridades do Herbert. Contava-asaos nossos amigos. Era muito maldosoda parte dele, mas ele era sempre tãoalegre e tão encantador que tudo lheera perdoado. Tudo.

– Eu sei.– O Herbert realçava o caráter de

sacrifício da amizade deles e, claro, oPaddy reparou nisso, e costumavaarreliar-me. Mas tinha muita estimapor ele. Não, ele não era tãomelindroso naquela altura, coitado.Sempre foi muito amável, de facto.

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Receio que tanto o Paddy como eutenhamos abusado um pouco dele.

– Tem a certeza que ele nãosuspeitava de nada?

– Absoluta. De certa forma, ele era onosso maior amigo. Já lhe contei,Roderick, que estava com a minha mãequando o Paddy sofreu o acidente. Elaligou ao Herbert quando soubemos danotícia. Quase instintivamente,voltámo-nos para ele. Em poucosminutos ele estava connosco. De certaforma, devo ao Herbert ter conseguidover o Paddy antes de ele morrer.

Alleyn abriu a boca e fechou-anovamente. Lady Carrados olhava paraa lareira e não deu nenhum sinal de terpercebido o significado da última

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afirmação. Por fim, Alleyn disse:– Como é que isso aconteceu?– Eu não lhe contei esta tarde? Foi o

Herbert quem me levou até aovicariato de Falconbridge no dia emque o Paddy morreu.

Era uma hora da manhã quandoAlleyn meteu Lady Carrados, Bridget eDonald num táxi, fechou a porta,agradecido, e foi para a cama. Haviamdecorrido menos de vinte e quatrohoras desde que Robert Gospellencontrara a sua morte, e nesse curtoespaço de tempo todos os segmentosde um dos mais complicados casos dehomicídio de que ele já tinha tratadohaviam sido postos nas suas mãos, à

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exceção de um. Enquanto esperavapelo sono tantas vezes adiado, viu osprotagonistas como uma companhia dedançarinos movendo-se numacoreografia tão elaborada que opadrão da sua mensagem quase seperdia na confusão dos gestos de cadaum. Donald e Bridget encontravam-see avançavam pelo centro do labirinto,depois Withers, marchando naperiferia, virava-se para encontrarMrs. Halcut-Hackett. Evelyn Carradose o marido dançavam de costasvoltadas em direção ao coração dadança. Sir Daniel Davidson, como umaespécie de mestre de cerimónias daaldeia, com uma roseta gigantesca nalapela, rodopiava lentamente. Dimitri

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deslizou como um ladrão para a dança,oferecendo uma taça de champanhe acada protagonista. Miss Harrissaltitava de uma forma decorosa emvolta da figura do centro, mas o velhogeneral Halcut-Hackett, olhandoansiosamente para cada rosto, pareciaprocurar a sua parceira. As figurasflutuavam para lá e para cá, de formacada vez mais rápida e estonteante, atéque a confusão se tornou insuportável.Então, com uma brusquidãoaterrorizante, congelaram-se naimobilidade, e antes de cair no sono,Alleyn viu o padrão da dança numúnico lampejo.

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CAPÍTULO 25

A CONTRIBUIÇÃO DE UMCLÉRIGO

O inquérito sobre Lord RobertGospell foi realizado às onze horas damanhã seguinte. Destacou-se pelacircunstância notável de ter sidorecusada a entrada a muito maispessoas do que em qualquer outroinquérito anterior no mesmo edifício.O juiz de instrução era um homemirascível, com a pior opinião possívelda sociedade com um «s» minúsculo eum ódio perfeitamente vitriólico dasociedade com «S» maiúsculo. Sofriade dispepsia crónica e uma convicção

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indeterminada mas feroz de que alguémestava a tentar levar a melhor sobreele. Os trabalhos foram pontuadospelos seus esforços para depreciar ocaso quando ele pensava na assistênciaelegante, e maximizá-lo ao refletir queaquele tipo de coisa era o resultadodireto do comportamento desse tipo depessoas. No entanto, para além destaidiossincrasia pessoal, era um bomjuiz de instrução. Chamou Donald, que,muito pálido, prestou depoimentoformal de identificação. Em seguida,ouviu o testemunho do motorista detáxi, mostrando-se exigente com ashoras, o local e o percurso, e chamouAlleyn.

Alleyn descreveu a sua primeira

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visão e subsequente exame do corpo.Em frases formais relatou comprecisão os ferimentos que encontrarano cadáver do amigo. Seguiu-se o Dr.Curtis com o relatório da autópsia. Umdos homens de Dimitri testemunhousobre as horas a que Lord Robertdeixara Marsdon House. O juiz deinstrução lançou um olhar vingativo aopúblico e disse que não via nenhumarazão para apresentar mais provas,dirigiu-se ao júri em palavras que osdeixou sem dúvidas possíveis quantoao veredito com que deviam voltar equando o júri voltou, o juiz ordenouum adiamento. Em seguida, fixou umolhar azul e maligno na parede mais

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distante e pronunciou uma expressãode pêsames dirigida aos parentes. Oprocesso todo durou vinte minutos.

– Bolas! – disse Fox, quando sereuniu a Alleyn na rua. – É o velhozás-trás-pás e já está. Mais rápido éimpossível, não é, senhor?

– Ainda bem. Fox, vamos aBarbicon-Bramley. Pedi emprestado ocarro da minha mãe e tenho imensascoisas para lhe dizer, e parece-me queo encanto está pronto.

– Senhor?– Tem toda a razão, Fox. Nunca

citar, e se o fizer, certamente nãoMacbeth.

O carro de Lady Alleyn estavaestacionado numa rua secundária. Fox

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e Alleyn entraram e dirigiram-se paraUxbridge Road. No caminho, Alleynrelatou as histórias de Bridget, Donalde Lady Carrados. Quando terminou,Fox resmungou e ambos permaneceramem silêncio durante dez minutos.

– Bem – disse Fox, por fim –, tudoaponta para a mesma coisa, não é, Mr.Alleyn?

– Sim, Fox, de uma forma duvidosa.– Ainda assim, eu não vejo como

podemos excluir os outros.– Nem eu, a menos que consigamos

alguma coisa definitiva destas pessoas.Se necessário vamos ter de ir aohospital de Falconbridge, mas tenhoesperança de que o tio de Miss Harris

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saia da sua reforma e volte aos seusalegres dias de juventude no vicariatohá dezassete anos.

– Que esperança! – disse Fox.– Como você referiu, as hipóteses

são remotas.– Se não encontraram a carta desse

tipo chamado O’Brien no local, comopodemos esperar que a encontremagora, ao fim de dezassete anos?

– Bem observado, Irmão Fox, bemobservado. Mas acho que agorasabemos coisas que eles não sabiam.

– Oh, bem – admitiu Fox. – Talvez.Mas mesmo assim eu não apostarianada nisso, essa é que é essa.

– Estou um pouco mais otimista.Bem, se falharmos aqui, vamos ter de

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continuar a insistir noutro lado.– Há a capa e o chapéu.– Sim. Chegou algum relatório esta

manhã do pessoal dos correios?– Não. Segui a sua sugestão e pedi-

lhes para tentarem verificar asencomendas para o estrangeiro deontem. Os nossos colegas examinaramo lixo e não encontraram nada. Oslatões do lixo de Chelsea e Belgraveforam esvaziados esta manhã e não hácapas ou chapéus em qualquer umdeles. Claro que podem encontrar algode mais longe.

– Não me agrada essa coisa do lixo,Fox. É muito arriscado. Por algumarazão, ele queria que essas coisas

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desaparecessem completamente. Porcausa do óleo no cabelo, talvez. Sim,pode ser por causa do óleo no cabelo.Receio, sabe, que teremos de pedir atoda essas pessoas autorização paraprocurar nas suas casas.

– O Carrados vai certamente opor-se, senhor, e não quer ter de pedirmandados de busca já, pois não?

– Eu acho que podemos assustá-lodizendo que vamos pedir para fazerbuscas nas casas do Dimitri, doWithers, do Davidson, do Halcut-Hackett e de Lady Potter. Ele vaiparecer um pouco ridículo se serecusar depois disso.

– Acha que a capa e o chapéu aindapodem estar escondidos em… bem, na

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casa do culpado?– Não, raios. Acho que ele se livrou

deles ontem, antes de termos coberto aprimeira fase da investigação.

– Por correio?– Bem, consegue pensar num método

melhor? Em Londres? Decidimos queo rio está fora de questão por causa damaré. Publicitámos a maldita coisabem o suficiente, as coisas não foramenfiadas na área de ninguém. Jáprocurámos por todo o Embankment.Os homens ainda estão ocupados nisso,mas acho que não vão encontrar nada.O assassino não teria tido tempo paranada muito elaborado, e em todo ocaso, se estivermos certos, está fora da

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sua área de ação.– Para onde os enviaria? – ruminou

Fox.– Ponha-se no lugar dele. Que

morada colocaria numa encomendaincriminadora?

– Ao cuidado do soldado Hoo FlungDong, quadragésimo segundo batalhão,Chop Suey, Mah Jong, Manchúria, semcaráter urgente – sugeriu Fox, irritado.

– Algo parecido – disse Alleyn. –Algo muito parecido, Irmão Fox.

Percorreram em silêncio o resto docaminho para Barbicon-Bramley.

A aldeia natal de Miss Harrisrevelou-se pequena e de uma timidezpitoresca. Havia uma atmosfera deVelha Inglaterra nas poucas lojas e

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uma boa dose do estilo pseudo-Tudornas casas vizinhas. Pararam na estaçãode correios e Alleyn pediu que oinformassem da direção a tomar para acasa do senhor reverendo WalterHarris.

– Eu sei que não é ele o vigário, maso seu irmão.

– Oh, sim – concordou a senhora doscorreios, chocalhando os botões depunho e exibindo um sorriso. – Está areferir-se ao velho cavalheiro. Umapersonalidade na zona. Primeira àesquerda em Oakapple Lane e emfrente até ao fim. «O Telhado deColmo.» É inconfundível. A últimaresidência à esquerda, com um terreno

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independente.– Muito obrigado – disse Alleyn.Descobriram «O Telhado de

Colmo», como ela havia previsto, semqualquer dificuldade. O terrenoindependente à volta da casa eramquinhentos metros quadrados de umjardim encantador. Alleyn e Foxpercorreram metade do caminho depedra quando se depararam com doistraseiros virados para cima atrás dearbustos altos de alecrim e alfazema. Oprimeiro envergava calças remendadasde um cinzento clerical, o segundo umadecente saia de sarja azul-escura.Ervas fragrantes escondiam o resto dosdois jardineiros.

– Boa tarde, senhor – disse Alleyn,

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tirando o chapéu.Com um movimento lento, o vigário

e Mrs. Walter Harris voltaram àposição vertical e viraram-se defrente.

– Oh! – disseram eles amavelmente.– Boa tarde.

Eram de facto muito idosos e tinhamuma certa semelhança marital quetantas vezes se estabelece entre umhomem e uma mulher que trabalharamjuntos a vida inteira. Os seus rostos,embora diferentes em configuração,ecoavam a expressão do outro. Ambostinham a pele curtida pelo tempo, olhoscinzento-claros rodeados por uma redede rugas suaves, e em repouso, cada

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uma das suas bocas se curvara numsorriso de dúvida. Na cabeça, Mrs.Harris trazia um grande chapéu dejardinagem com um buraco por ondeespreitavam algumas madeixas decabelo grisalho. O marido tambémusava um chapéu de jardinagem, umvelho panamá com uma fita verdedesbotada, que quase lhe tapava onariz. O seu longo pescoço de um tomcrepe estava rodeado por um colarinhoclerical, mas em vez do habitualcasaco cinzento envergava um blazerde All Souls College incrivelmentedesbotado que parecia pendurado nosseus ombros magros. Ele inclinou acabeça para trás a fim de olhar paraAlleyn sob a aba e através dos óculos

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pousados a meio da cana do nariz.– Lamento incomodá-lo, senhor –

disse Alleyn.– Não tem importância – disse Mr.

Harris –, não tem importância. – A suavoz tinha o autêntico tom eclesiástico.

– Não há nada mais irritante do queser interrompido quando estamos numabela tarde de jardinagem – acrescentouAlleyn.

– Erva daninha! – disse Mr. Harrisviolentamente.

– Desculpe?– Erva daninha! É a maldição da

minha vida. Cresce como verdadeirosdente-de-dragão e garanto-vos que émuito mais difícil de arrancar. Três

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carrinhos de mão cheios desde aúltima quinta-feira de manhã.

– Walter – disse a mulher –, estessenhores querem falar contigo.

– Só lhe tomaremos alguns minutos,senhor – disse Alleyn.

– Sim, querida. Para onde devolevá-los?

– Para o teu refúgio – disse Mrs.Harris, como se o marido fosse umdevorador carnívoro.

– Claro, claro. Venham. Venham –disse Harris na voz paciente ehospitaleira do vicariato. – Venhamcomigo.

Conduziu-os por uma portaenvidraçada até uma sala vermelha umpouco descolorida, onde fotografias

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antigas e desbotadas de jovens debatina estavam penduradas ao lado defotografias antigas e desbotadas decatedrais famosas. As prateleirasestavam cheias de volumesempoeirados de sermões e das obrasde Mrs. Humphry Ward, CharlesKingsley, Charlotte M. Yonge, Dickense Sir Walter Scott. Entre umcomentário e a Imitação de Cristohavia um exemplar de O Martírio doHomem, truculentamente sólido. Mr.Harris fora outrora um estudante sérioe enfrentara coisas. Era uma velha salagasta e acolhedora.

– Sentem-se, sentem-se – disseHarris.

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Ele recolheu apressadamenterevistas paroquiais, o Church Times ecatálogos de sementes do assento dascadeiras. Com os braços cheios dessespapéis, andou de um lado para o outrono escritório, com um ar perdido.

Alleyn e Fox sentaram-se nascadeiras de crina de cavalo.

– Muito bem – disse Harris. Deixoucair todos os papéis ao chão e sentou-se.

– Agora, a que devo o prazer…?Hum?

– Primeiro, senhor, devo dizer-lheque somos da polícia.

– Meu Deus – disse Harris –, não épor causa do jovem Hockley outra vez,

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espero. Tem a certeza de que não é omeu irmão que procura? O vigário deBarbicon-Bramley? Ele está muitointeressado no caso e disse-me que seo pobre rapaz não for acusado podearranjar-lhe um emprego através dealgumas almas caridosas que estãodispostas a esquecer…

– Não, senhor– interrompeu Alleynsuavemente –, é consigo que queremosfalar.

– Mas eu estou reformado – disseHarris, arregalando os olhos. – Já mereformei há muito, sabe.

– Vou pedir-lhe que regresse aosdias em que era vigário deFalconbridge.

– Falconbridge! – Mr. Harris sorriu-

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lhes. – Isto é um verdadeiro prazer.Vocês vêm da saudosa Falconbridge!Deixe-me ver, não lembro das vossascaras, claro, já faz quinze anos queestou reformado e a minha memórianão é o que costumava ser. Agoradigam-me os vossos nomes.

– Mr. Harris, nós não somos deFalconbridge, somos da ScotlandYard. O meu nome é Alleyn e este é oinspetor Fox.

– Como está? Espero que não sepasse nada de errado na velha aldeia –exclamou Mr. Harris ansiosamente. Derepente, lembrou-se do panamá earrancou-o da cabeça, revelando umacareca rosa brilhante, com uma aura de

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cabelo branco e fofo espetado.– Não, não – apressou-se a dizer

Alleyn. – Pelo menos nãorecentemente.– Lançou um olharvenenoso a Fox, que sorriaabertamente. – Estamos a investigar umcaso, senhor, e estamos ansiosos paralocalizar uma carta que acreditamos tersido perdida em Falconbridge há cercade dezassete ou dezoito anos.

– Uma carta! Valha-me Deus, receioque se era dirigida a mim há muitopouca esperança de a recuperar. Aindaesta manhã descobri que me esquecionde pus uma carta muito importantede um velho amigo muito querido, ocónego Worsley, de All Saints emChipton. É extraordinário aquela carta

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ter desaparecido. Lembro-me de a terposto no bolso de um casaco e…

Enfiou as mãos nos bolsos lateraisdo seu blazer e tirou um conjunto decordéis, pacotes de sementes, lápis epedaços de papel.

– Ora, aqui está! – exclamou,olhando para um envelope que tinhacaído ao chão. – Afinal está aqui!Estou pasmado.

– Mr. Harris – disse Alleyn em vozalta. Mr. Harris inclinouimediatamente a cabeça para trás eolhou para Alleyn através dos seusóculos.

– Há dezoito anos – continuouAlleyn muito rapidamente –, houve um

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acidente de automóvel na ponte aolado do vicariato de Falconbridge. Ocondutor, o capitão O’Brien, ficougravemente ferido e foi levado para ovicariato. Lembra-se?

Mr. Harris abriu a boca de espanto,mas não disse nada. Continuou a olharpara Alleyn, boquiaberto.

– O senhor foi muito bom para ele –continuou Alleyn –, manteve-o novicariato e mandou buscar ajuda. Elefoi levado para o hospital e morreu láalgumas horas depois.

Fez uma pausa, mas a expressão deMr. Harris permanecia inalterada.Havia algo extremamenteconstrangedor na sua postura e nosilêncio inesperado.

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– Lembra-se? – perguntou Alleyn.Sem fechar a boca, Mr. Harris

abanou lentamente a cabeça de um ladopara outro.

– Mas foi um acidente tão grave. Ajovem mulher do condutor veio decarro, de Londres. Ela foi ao hospital,mas ele morreu sem recuperar aconsciência.

– Coitado! – disse Mr. Harris na suavoz mais profunda. – Pobre rapaz!

– Consegue lembrar-se, agora?Mr. Harris não respondeu, mas

levantou-se, foi até à portaenvidraçada e gritou para o jardim.

– Edith! Edith!– Que se passa? – respondeu uma

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voz ali perto.– Podes vir aqui por um momento?– Já vou.Mr. Harris afastou-se da janela e

sorriu-lhes.– Agora não devemos demorar –

anunciou.Mas quando Alleyn viu Mrs. Harris

percorrer o caminho do jardim cheiade bonomia e um pouco vacilante,dificilmente partilhou dessa visãootimista. Todos se levantaram. Elaaceitou a cadeira de Alleyn e tirou asluvas de jardinagem das velhas mãos.Mr. Harris contemplou-a como se elafosse um triunfo raro e pessoal.

– Edith, minha querida – disse eleem voz alta –, contas a estes senhores

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sobre um acidente?– Que acidente?– Isso eu não sei, querida. Na

verdade, estamos a contar contigo paranos informar.

– Não te entendo, Walter.– Eu também não me entendo muito

bem, devo admitir, Edith. Acho tudomuito confuso.

– O quê? – perguntou a mulher.Alleyn percebeu então que ela eraligeiramente surda.

– Confuso – gritou Mr. Harris.– A memória do meu marido não é

muito boa – explicou Mrs. Harris,sorrindo suavemente a Alleyn e a Fox.– Ele ficou muito abalado com o

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acidente de bicicleta há alguns meses.Imagino que tenham vindo por causado seguro.

Erguendo a voz, Alleyn lançou-semais uma vez no seu recital. Desta vez,não foi interrompido, mas comonenhum dos Harris deu qualquer sinalde compreensão, era impossível dizerse falara ou não em vão. Quandoacabou, Mr. Harris tinha adotado a suaanterior expressão desconcertante.Mrs. Harris, no entanto, virou-se parao marido e disse:

– Lembras-te do sangue no tapete,Walter? Na saudosa Falconbridge?

– Meu Deus, sim. Isso é o que euestava a tentar recordar. Claro que era.Coitado. Pobre rapaz. Pobre rapaz!

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– Então, o senhor lembra-se? –exclamou Alleyn.

– Na verdade, sim – disse Mrs.Harris reprovadoramente. – A pobreviúva escreveu-nos uma carta tãoencantadora, agradecendo-nos pelopouco que fomos capazes de fazer porele. Eu teria gostado de lhe responder,mas, infelizmente, o meu maridoperdeu a carta.

– Edith, encontrei a carta do velhoWorsley. Estava no meu bolso.Imagina!

– Claro que imagino, querido.– Por falar em cartas – disse Alleyn

a Mrs. Harris. – Por acaso lembra-sede uma carta que se perdeu por

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ocasião do acidente do capitãoO’Brien? Penso que lhe perguntaramse a encontraram no vicariato.

– Receio não estar a entender.Alleyn repetiu.– Acho que sim – disse Mrs. Harris.

– Perfeitamente.– Não conseguiu dar qualquer

informação sobre essa carta?– Pelo contrário.– O quê?!– Pelo contrário – repetiu Mrs.

Harris com firmeza. – Eu mandeientregá-la.

– Entregá-la a quem? – berrou Fox,e até Mrs. Harris deu um pequenosalto. – Peço imensa desculpa, senhor– disse Fox apressadamente –, não sei

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o que me deu. – Abriu o bloco de notasum pouco atrapalhado.

– Mrs. Harris – disse Alleyn –,conte-nos tudo o que se lembrar sobrea carta, por favor?

– Sim, por favor, Edith – disse omarido de forma inesperada. – Ela vaiencontrá-la para si – acrescentou numaparte. – Não se preocupem.

– Bem – começou Mrs. Harris. – Foihá muito tempo e receio estar umpouco baralhada. Deve ter sido depoisde o terem levado, imagino, que aencontrámos debaixo do sofá noescritório. Foi quando reparámos namancha do tapete, lembras-te, Walter?Primeiro pensei que era uma das cartas

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do meu marido, claro, porque nãoestava num envelope. Mas quandoolhei para ela, percebi imediatamenteque não era, porque começava com«Querido Daddy5» e nós não temosfilhos.

– «Querido Daddy» – repetiuAlleyn.

– Depois pensei que talvez fosse«Querido Paddy», mas como o nomedo meu marido é Walter Bernard nãofazia sentido. «Ora», disse eu, ouqualquer coisa do género. «Ora, deveter caído do casaco do pobre homem,quando o homem da ambulância oexaminou.» E… claro, lembro-meagora tão claramente como se fosse

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ontem… e eu disse à pequena Violet:«Pega na tua bicicleta e vai entregá-laao hospital o mais rápido que puderes,querida, porque eles podem estar àprocura dela.» Então, a pequenaViolet…

– Quem era ela, por favor? –perguntou Alleyn quase sem fôlego.

– Desculpe?– Quem era a pequena Violet? –

exclamou Alleyn.– A minha pequena sobrinha. A

terceira filha do irmão do meu marido.Ela veio passar as férias connosco.Agora já é adulta e tem um empregomaravilhoso em Londres, com LadyCarrados.

– Obrigado – disse Alleyn. – Por

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favor, continue.

5 Papá, em inglês. (N. do T.)

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CAPÍTULO 26

ALLEYN PLANEIA UMDESENLACE

Mas não havia muito mais a dizer.Pelos vistos, Violet Harris tinha ido debicicleta com a carta de PaddyO’Brien e voltara a dizer que a tinhaentregado ao cavalheiro que conduziraa senhora no carro. O cavalheiroestava no carro, à porta do hospital.Tanto quanto Mrs. Harris poderiaafirmar, e ela e o marido entraramnuma confusa história de família paraprovar a sua ideia, Violet teria poucomais de quinze anos de idade na altura.Alleyn redigiu a sua declaração,

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despojada dos intermináveisparênteses, e ela assinou. Ao longo daentrevista, nem ela nem o maridodemonstraram o menor sinalcuriosidade. Pelos vistos, nenhumdeles achou estranho que o interessenuma carta perdida dezoito antes derepente fosse reanimado a tal pontoque os agentes do CID considerassemnecessário ir buscar declaraçõesassinadas ao coração doBuckinghamshire.

O velho casal insistiu em mostrar ojardim a Alleyn e Fox. Alleyn não tevecoragem de recusar e além dissogostava de jardins. Mrs. Harris deu acada um ramo de alfazema e alecrim,cujas flores, ela disse, eram mais

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discretas para os cavalheiros do que asflores mais alegres do verão. A visãode Fox a agarrar solenemente nopequeno ramo com o seu enorme punhoe a examinar o canteiro de amores-perfeitos transplantados foi quase demais para o seu oficial superior. Eramduas horas quando a visita ao jardimfoi concluída.

– Têm de vir visitar-nos quandopassarem por cá – disse Mrs. Harris,olhando cordialmente para Alleyn –, eeu vou ter em conta o que o senhor medisse sobre o jardim de ervasaromáticas da sua mãe.

– Sim, sim – concordou Mr. Harris.– Sempre que passarem por cá. Claro.

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Qualquer pessoa da saudosaFalconbridge é duplamente bem-vinda.

Ficaram lado a lado na porta aacenar como duas crianças, quandoAlleyn deu a volta com o carro e sedirigiu para Oakapple Lane.

– Bem! – exclamou Fox. – Bem!– Nem mais uma palavra – disse

Alleyn –, até chegarmos ao pub nosarredores de Barbicon-Bramley. Já sedeu conta de que não almoçámos?Recuso-me a pronunciar outra palavraaté beber uma boa cerveja.

– E um pouco de pão e queijo epickles – acrescentou Fox. – Picklescom muita cebola.

– Meu Deus! Meu Deus! Fox, queescolha! No entanto, agora que penso

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nisso, parece-me muito bom. «Pão equeijo e pickles», Fox, é do queprecisamos. Pão branco e fresco,queijo de pôr nas ratoeiras, picklescaseiros e cerveja.

– É essa é a ideia, Mr. Alleyn. Osenhor é um grande gourmet – disseFox, que tinha aprendido francêssozinho –, e não pense que eu nãogostei de alguns desses jantares que meofereceu e em que tudo parecia cairpara dentro de alguma coisa. Gostei.Mas quando estamos famintos nocampo inglês, nada supera pão, queijoe pickles.

O pub serviu-lhes essas iguarias. Arefeição demorou cerca de um quarto

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de hora e em seguida partiram.– Então – disse Alleyn.– A única coisa que me intriga –

disse Fox, limpando o pequeno bigodecom o lenço – é a pequena Violet.Sabíamos que ela era sobrinha destevelho cavalheiro, mas, caramba, nãosabíamos que ela estava hospedada lánaquela altura.

– Não, Irmão Fox, não sabíamos.– Acho que ela própria pode não o

saber – continuou Fox. – Quero dizer,Miss Violet Harris pode não perceberque Lady Carrados era esta Mrs.O’Brien cujo marido foi levado para ovicariato do tio quando ela era umagarota de quinze anos.

– É muito possível. Espero que ela

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se lembre do passeio de bicicleta.Vamos ter de lhe avivar a memória.

– Sim. Agora parece-me, pelo queouvimos, que foi o Carrados que ficoucom a carta da pequena Violet. OCarrados, sentado no carro à porta dohospital, enquanto o pobre homem quetinha recebido a carta da Austráliaestava a morrer lá dentro. E depois,mais tarde, quando há todo aquelealarido acerca da carta em falta, o queé que ele faz?

Alleyn sabia que esta questão erapuramente retórica e não interrompeu.

– Diz à viúva – continuou Fox –, dizà viúva que perguntou em todo o lado eque a carta não existia.

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– Sim – concordou Alleyn. – Não hádúvida de que ele lhe disse isso.

– Certo. Agora, por que razão ofaria? Eu acho que é porque SirHerbert Carrados é o que se podechamar um cobarde moral, com umaespécie de deformação de espírito. Oque esses psicocoisos chamamrepressão ou qualquer coisa assim. Ameu ver, ele não queria admitir tervisto a carta, porque na realidade eleleu-a. Esse tipo australiano sabia que ocapitão O’Brien se tinha casado comuma louca e escreveu para dizer queele ficou viúvo. Se o que LadyCarrados lhe disse a si estava corretoe Sir Herbert gostava dela há muito

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tempo, essa carta deve tê-lo abaladoum pouco. Agora talvez ele tenhadecidido, sendo um tipo snob eorgulhoso e ainda apaixonado por ela,que iria deixar o passadoimperturbado.

– Deixar o assunto morrer? Sim. Issoparece-me plausível. Condiz com ocaráter dele.

– Isso é o que eu quero dizer – disseFox numa voz satisfeita.– Mas, mesmoassim, ele não destruiu a carta. Oudestruiu?

– Isso é exatamente o que nós temosde descobrir – disse Alleyn.

– Bem, senhor, nós temos as nossassuspeitas, não temos?

– Sim. Antes desta noite, Fox, quero

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confirmar as nossas suspeitas.– Caramba, Mr. Alleyn, teremos

feito um belo trabalho neste caso. Nãodeitar foguetes antes da festa, bem sei,mas se conseguirmos fazer umadetenção dois dias após o crime, numcaso complicado como este, não nosestamos a sair nada mal.

– Suponho que não, velho soldado,suponho que não. – Alleyn deu umcurto suspiro. – Quem me dera… –disse. – Oh, meu Deus, Fox, quem medera que ele não tivesse morrido. Nãovale a pena pôr-me a divagar. Tambémgostaria muito que tivéssemos sidocapazes de encontrar algum vestígio dealgo, qualquer coisa que fosse no táxi.

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Mas nada.– O funeral é amanhã às três horas,

não é? – perguntou Fox.– Sim. Lady Mildred pediu-me para

pegar no caixão. É muito estranho,dadas as circunstâncias, mas eugostaria de o fazer. E também gostariade pensar que apanhámos o nossoassassino nessa altura. Quandovoltarmos, Fox, vamos ter de tomarmedidas para que essas pessoasvenham à Scotland Yard. Vamosconvocar Miss Harris, BridgetO’Brien, a sua mãe, o Carrados, oDavidson, o Withers, o Dimitri e Mrs.Halcut-Hackett. Vou falar com LadyCarrados sozinho antes. Querosuavizar o choque um pouco, se isso

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for possível.– Para que horas devemos convocá-

los, senhor?– Serão quatro horas quando

chegarmos à Scotland Yard. Acho queteremos de o fazer esta noite. Diga àsnove horas. Vai ser diabolicamentecomplicado. Estou a contar que oDimitri perca a calma. Ele é muitocalmo e pode não perder o juízo. Porfalar em juízo6, teremos de lidar com ogalante capitão. Diabos me levem se oDonald Potter não me deu o suficientena sua declaração para fechar o galantecapitão atrás das grades por um longoe agradável período. Isso éreconfortante, em certa medida.

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Permaneceram em silêncio atéchegarem a Cromwell Road e, emseguida, Fox disse: – Suponho queestamos no caminho certo, Mr. Alleyn.Sei que parece uma coisa estranha paradizer neste momento, mas é um aspetopreocupante e isso é um facto. É o tipomais complicado de provas com quealguma vez me deparei. O nosso casoparece assentar no tipo de coisas quenormalmente tratamos com uma boadose de desconfiança.

– A quem o diz. Não, Fox, eu achoque tudo se vai aguentar firmemente.Depende do que disserem essaspessoas nos seus segundosinterrogatórios hoje à noite, é claro. Se

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conseguirmos estabelecer os factossobre as duas cigarreiras, a gavetasecreta, a chamada telefónica e a cartaroubada, estamos certos. Meu Deus,isto soa como uma lista de títulos dasantigas histórias de Sherlock Holmes.Acho que parte do encanto dessesexcelentes contos reside nasreferências casuais, mas cativantes, deWatson a casos de que não voltamos aouvir falar.

– As duas cigarreiras – repetiu Foxlentamente –, a gaveta secreta, achamada telefónica e a carta roubada.Sim. Sim, é isso. Podemos afirmar quependuramos o nosso caso nestes quatroganchos.

– A palavra «pendurar» – disse

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Alleyn sombriamente – é extremamentepertinente. É verdade.

Ele conduziu Fox para a ScotlandYard.

– Vou subir consigo para ver se háalguma novidade – disse.

Havia relatórios dos agentes queestavam no terreno. Os homens quevigiavam Dimitri informaram queFrançois tinha ido à papelaria local ecomprara um exemplar do Times dessamanhã. Na papelaria disseram aoagente da Yard que Dimitri por normacomprava o Daily Express.

Alleyn pousou o relatório.– Arranje um Times, Irmão Fox.Fox saiu. Demorou algum tempo.

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Alleyn atualizou as suas notas eacendeu o cachimbo. Depois ligou aLady Carrados.

– Evelyn? Liguei-lhe para lhe pedirque a Evelyn, o seu marido e a Bridgetvenham à Scotland Yard hoje à noite.É um pouco para pormos este caso emordem. Se possível, gostaria de falarconsigo primeiro. Prefere que sejaaqui ou em sua casa?

– No seu gabinete, por favor,Roderick. Seria mais fácil. Devo iragora?

– Se quiser. Não se preocupe.Desculpe tê-la incomodado.

– Eu vou já – disse a voz fraca.Fox voltou com o Times, que

colocou na secretária de Alleyn.

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Apontou um dedo curto e grosso para acoluna de anúncios pessoais.

– Que acha do terceiro a contar decima? – disse.

Alleyn leu-o em voz alta.– «Coração Doce. Figos inteiros

quebraram umbigo. Enfaixado. Quandoumbigo inteiro estiver. Tudo ótimo.Dono Dedicado». Hum – disse Alleyn.– Será que o Dono disse mais algumacoisa ao Coração Doce durante aúltima semana ou assim?

– Não durante a última quinzena, dequalquer maneira. Eu procurei nosarquivos.

– Não há mais nada na coluna deanúncios pessoais. Os outros são

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velhos amigos, não são?– Sim.– É melhor ir perguntar ao Times

acerca do Dono.– Vou tratar disso – disse Fox – e

vou começar a chamar as pessoas paraesta noite.

– Obrigado, Fox. Já tratei de LadyCarrados, que vem falar comigo agora.Se você tiver tempo, gostaria que seencarregasse dos outros. Devia ir verLady Mildred por causa do funeral deamanhã.

– Vai ter tempo para isso mais tarde.– Sim. Tenho de falar com o

subcomissário antes desta noite. Vou láagora, acho, ver se ele está livre.Peça-lhes para trazer Lady Carrados

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para aqui, Fox, e avise-me quando elachegar.

– Muito bem, Mr. Alleyn.Alleyn dirigiu-se à secretária do

subcomissário, que o conduziu aogrande homem. Alleyn colocou a pastaem cima da mesa. O subcomissário nãolhe pegou.

– Bem, Rory, como vai isso? Ouvidizer que tem metade da Yard achapinhar na lama do Embankment emChelsea e a outra metade a seguir aaristocracia. O que se passa? –perguntou o subcomissário, que fotamantido perfeitamente ao corrente docaso, mas adorava fingir-se ignorante.– Suponho que você quer que eu leia

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esse maldito disparate? – acrescentou,pousando uma mão na pasta.

– Se o senhor quiser. Eu fiz umresumo no fim. Com a sua aprovação,estou a reunir as pessoas relevantesaqui esta noite e se os interrogatórioscorrerem bem, espero ser capaz defazer uma detenção. Se o senhorconcordar, gostaria de ter um mandadoem branco.

– Você é um tipo muito calmo, nãoé? – resmungou o subcomissário. – Ese os interrogatórios derem para otorto, você devolve o mandado e pensanoutra coisa? É isso?

– Sim, senhor. É isso.– Ouça, Rory, a nossa posição neste

caso é que nós temos de ter a certeza.

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Se o seu freguês se safar com este tipode provas, o advogado dele vai fazerde nós um alvo de chacota. É tudomuito incerto. Não consegue imaginaro que o velho Harrington-Barr faráconsigo, se ele for contratado?Esmagá-lo-á como um ovo, meu bomhomem, a menos que você tenha umaconfissão ou duas para mostrar ao júri.E todo este assunto de chantagem.Como vai conseguir que qualquer umadessas pessoas apresente queixa contrao chantagista? Sabe como são aspessoas a respeito de chantagem.

– Sim, senhor. Eu espero conseguiruma confissão.

– Ai sim, por Deus?! Está bem, está

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bem. Traga-os para cá. No meugabinete. É melhor eu ficar já a saberdo pior. – Fez uma careta a Alleyn. –Tudo isto o tocou muito, não éverdade? Lord Robert era seu amigo,não era?

– Era, sim, senhor.– Ufa! Ele era um bom homem.

Parece que o Ministério dos NegóciosEstrangeiros está a fazer um inquéritocauteloso. Para o caso de uma potênciaestrangeira se lembrar dele a andar deum lado para o outro há vinte anos eter decidido assassiná-lo. Idiotas.Bem, lamento muito a sua perda, Rory.Não me parece que o tenhaatrapalhado. Foi um trabalho rápido,se estiver correto.

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– Se! – disse Alleyn. – Espero quenão nos tenhamos enganado.

– A que horas é o desenlace, hoje ànoite?

– Às nove horas, senhor.– Muito bem. Traga-os aqui.

Obrigado, Rory.– Obrigado, senhor.Quando regressou ao seu gabinete,

encontrou Fox à sua espera.– Lady Carrados está lá em baixo,

senhor.– Traga-a para cima, Fox, por favor.Fox virou-se antes de sair.– Falei com os do Times – disse. –

Foram um pouco circunspetos sobre oassunto, mas eu conheço um dos tipos

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que lida com os anúncios e conseguifalar com ele. Ele disse-me que a coisado Coração Doce chegou por correiocom um vale postal com o dobro dastaxas e um pedido para que o anúnciofosse publicado precisamente naedição desta manhã. A nota dizia que oanunciante iria lá para receber o troco,se houvesse, e foi assinada WAKSmith, a morada da estação central decorreios, Erith.

– Carimbo?– Perderam o envelope, mas ele vai

procurá-lo. A caligrafia – disse Fox –era letra de imprensa em papel decarta.

– Ai sim? – murmurou Alleyn.– Há outra coisa – disse Fox. –

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Chegaram os relatórios sobre oscorreios. Um funcionário do distritoocidental diz que durante a hora deponta de ontem alguém deixou umpacote no balcão. Ele encontrou-omais tarde. Era mole, com o peso certoe tinha cinco xelins em selos de doispence, mais do que era necessário. Elelembra-se que o endereço era alguresna China e que estava escrito em letrade imprensa. Assim, o meu soldadoHoo Flung Dung pode ter sido umasuposição justa. Fomos até ao centrode distribuição de Mount Pleasant emas era tarde de mais. Esta tarde saiuum carregamento de encomendas paraa China.

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– Raios! – disse Alleyn.– Vou buscar sua senhoria – disse

Fox.Enquanto esperava por Lady

Carrados, Alleyn recortou o pequenoanúncio do Times. Depois de ummomento de reflexão, tirou a cigarreiradourada de Mrs. Halcut-Hackett dagaveta da sua secretária. Abriu-a ecolou cuidadosamente o anúncio aointerior da tampa.

Fox acompanhou Lady Carradospara dentro do gabinete e saiu.

– Lamento, Evelyn – disse Alleyn. –Estive fechado no gabinete do meusuperior. Já chegou há muito tempo?

– Não. O que se passa, por favor,

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Roderick?– É isto. Quero que me permita dar

um passo que pode parecer bastantedrástico. Eu quero que me dêpermissão para falar com o seumarido, à sua frente, acerca do PaddyO’Brien.

– Quer dizer… revelar-lhe que nãoéramos casados?

– Se for necessário.– Não posso.– Não o faria se não fosse

extremamente necessário. Nãoacredito, Evelyn, que ele… – Alleynhesitou. – Que ele vá ficar tão chocadocomo imagina.

– Mas eu sei que ele vai ficar muitochocado. É claro que vai.

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– Acho que lhe posso prometer quenão tem nada a temer de tal decisão.Quero dizer que a atitude do Carradospara consigo e para com a Bridget nãosofrerá grandemente.

– Eu não posso acreditar nisso. Eunão posso acreditar que ele não fiquemuito magoado. Até mesmo violento.

– Garanto-lhe que acreditosinceramente que isto pode ajudar-vosaos dois a entenderem-se melhor.

– Se eu pudesse acreditar nisso!– Vai com certeza ajudar-nos a fazer

justiça ao seu chantagista. Evelyn, eunão quero ser pretensioso, masacredito que é seu dever fazer isto.

– Eu quase me decidi a contar-lhe

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tudo.– Ainda bem. Vá lá. Olhe para mim!

Vai deixar-me lidar com isto?Ela olhou para ele. Alleyn usou

deliberadamente toda a força daquilo aque as pessoas chamam personalidade,e da qual sabia – como poderia nãosaber? – ter uma boa dose. Impôs a suavontade sobre a de Evelyn Carrados,tão certo como se fosse um instrumentotangível. E viu-a ceder.

Ela levantou as mãos e deixou-ascair frouxamente no colo.

– Muito bem, estou tão confusa eperplexa, não sei, desisto. A casa estáa vir abaixo. Faço o que achar melhor,Roderick.

– Não precisa de dizer muito. – Ele

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entrou em detalhes. Ela ouviuatentamente e repetiu as suasinstruções. Quando acabou, elelevantou-se e olhou para ela. –Lamento – disse. – Não vale a penatentar aligeirar as coisas. É um assuntomuito perturbador para si. Mascoragem. A Bridget não precisa desaber, embora eu ache que se fosse a silhe contaria. Ela tem muita coragem eos jovens de hoje não dão tantaimportância a isso como nós dávamos.A minha sobrinha Sarah farta-se defalar sobre as pessoas nascidas dentroe fora do casamento como se houvessecinquenta por cento de hipótese de issoacontecer. Dou-lhe a minha palavra de

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honra, Evelyn, de que eu não ficariasurpreso se a sua filha achasse essahistória que tanto se esforça poresconder dela uma coisa muitoromântica.

– Isso seria quase engraçado, não é?– Lady Carrados fitou os olhos cheiosde compaixão de Alleyn. Ela estendeua mão e ele tomou-a firmemente entreas suas.

– Roderick – disse ela –, quantosanos tem?

– Quarenta e três, minha querida.– Eu tenho quase quarenta – e

distraidamente, Evelyn Carradosacrescentou, como as mulherescostumam fazer: – Não é horrível?

– Terrível – concordou Alleyn,

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sorrindo para ela.– Porque é que ainda não se casou?– A minha mãe diz que tentou fazer

com que nós os dois nos casássemos.Mas o Paddy O’Brien apareceu e eunão tinha a menor hipótese.

– Isso parece estranho, agora, não é?Se é verdade. Eu não me lembro de medar qualquer atenção especial.

Ele viu que ela tinha alcançado acalma que por vezes se segue à tensãoemocional extrema. Faloudespreocupadamente com um eco dahabitual alegria suave. Soou como se asua mente se tivesse descontraído tantocomo a mão fina que Alleyn aindasegurava.

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– Devia casar – disse ela vagamente,e acrescentou: – Tenho de ir.

– Vou consigo. Acompanho-a aocarro.

Quando ela foi embora, Alleyn ficoua olhar para ela por um segundo oudois, e depois abanou a cabeça, emdúvida, e partiu para Cheyne Walk.

6 Jogo de palavras com «wits», que significa «juízo»e Wits, nome da personagem. (N. do T.)

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CAPÍTULO 27

INTERLÚDIO DE AMOR

Alleyn perguntou-se se era apenasporque sabia que o corpo do seu amigotinha voltado para casa que sentia asua presença. Talvez a casa nãoestivesse mais tranquila do queestivera naquela manhã. Talvez osmortos na verdade não lançassem umfeitiço tão profundo à sua volta. Eentão ele cheirou os lírios e o friosilencioso da morte cerimonial fechou-se sobre o seu coração. Virou-se parao antigo mordomo de Bunchy, que seencontrava na condição tãofrequentemente vista nos fiéis

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servidores do melodrama vitoriano.Estivera a chorar. Tinha os olhosvermelhos e o rosto riscado delágrimas, os lábios tremiam. ConduziuAlleyn até Mildred, na sala de estar.Quando ela se aproximou, nas suasroupas pretas sem brilho, o inspetorvislumbrou no seu rosto a mesmareflexão desagradável de tristeza.Mildred arvorava a expressão habitualde luto e, embora Alleyn soubesse queera uma marca de luto sincera, sentiuuma espécie de impaciência. Asformalidades da morte causavam-lheuma profunda aversão. Um cadávernão era nada, nada além de umacaricatura intolerável de algo quealguém tinha amado. Era uma

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recordação de indignidades indizíveis,e ainda assim as pessoas rodeavam osseus mortos de solenidade e pediam,como Mildred lhe estava a pediragora, numa voz baixa e especial, paraolhar para eles.

– Eu sei que gostaria de o ver,Roderick.

Ele seguiu-a para uma sala no andartérreo. O cheiro impiedoso de floresera tão pesado ali que pairava comonevoeiro no ar frio. A sala estavacheia de flores. No centro, em trêscavaletes, o corpo de Robert Gospellrepousava no seu caixão.

Era o rosto de um bebé idoso,dignificado pela posse de um segredo

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terrífico. Alleyn não se sentiuincomodado pelo rosto. A face detodos os mortos tinha aquele aspeto.Mas as mãos pequenas e gordas, queem vida se moviam com gestosenfáticos, haviam sido obedientementeunidas, e quando ele as viu, os seusolhos toldaram-se de lágrimas que ocegaram. Tateou no bolso do casaco àprocura de um lenço e os seus dedosencontraram o pequeno ramo dealecrim e alfazema do jardim de Mr.Harris. As hastes verde-cinza eramduras, prosaicas e cheiravam a sol.Quando Mildred se virou para o lado,ele deu o ramo ao seu amigo.

Alleyn seguiu-a de volta para a salade estar e ela começou a contar-lhe

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sobre as providências que tomara parao funeral.

– O Broomfield, que, como vocêsabe, é o chefe da família, tem apenasdezasseis anos. Está no estrangeirocom o tutor e não pôde voltar a tempo.Nós não vamos alterar os planos dele.Por isso eu e o Donald somos os maischegados. O Donald é perfeitamenteesplêndido. Tem sido um confortodurante todo o dia. Está muitodiferente. E a querida Agatha Troyveio para ficar comigo e respondeu atodas as cartas e fez tudo.

A sua voz, ainda com aquele tomvelado especial, continuou, mas ospensamentos de Alleyn haviam sido

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cativados pela notícia sobre Troy e eleteve de se esforçar para ouvir Mildred.Quando ela terminou, o inspetorperguntou-lhe se ela queria saberalguma coisa sobre o seu lado daquestão e descobriu que Mildredestava a afastar todas as circunstânciasda morte do irmão para longe. Tinhaadotado uma atitude de avestruz paracom o homicídio e ele teve aimpressão de que ela tinha esperançasde que o assassino nunca fosseapanhado. Queria esquecer o assunto eele pensou que era muito inteligente eagradável que ela fosse capaz de oreceber tão cordialmente como umamigo e não prestar atenção a ele comopolícia.

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Ao fim de alguns minutos parecianão haver mais nada a dizer a Mildred.Alleyn despediu-se dela, prometeu iràs exéquias fúnebres às onze e fazer asua parte no funeral. Saiu para ovestíbulo.

À porta encontrou Troy.– Olá, chegas mesmo a tempo. Vais

salvar a minha vida – ouviu-se dizer.– Como assim?– São quase cinco horas. Dormi seis

horas nas últimas cinquenta e oitohoras. Isso não é nada para nós,polícias duros, mas por alguma razãoestou a sentir pena de mim próprio.Vens tomar um chá ou uma bebida, oupossivelmente as duas coisas comigo?

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Pelo amor de Deus diz que vens.– Está bem, onde iremos nós?– Pensei – disse Alleyn, que até

àquele momento não tinha pensadonada de semelhante – que talvezpudéssemos tomar chá no meuapartamento. A menos que te oponhas.

– Não sou uma debutante – disseTroy. – Não preciso de proteger aminha reputação. No teu apartamentoserá.

– Ótimo – disse Alleyn. – Tenho ocarro da minha mãe. Vou avisar o meucriado, e a Yard, para que me possamencontrar. Achas que posso usar otelefone?

– Tenho a certeza que podes.Ele precipitou-se para o telefone e

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voltou ao fim de poucos minutos.– O Vassily está muito animado –

disse ele. – Uma senhora para o chá!Vamos.

No caminho Alleyn encheu-se de umespanto tão grande por se encontraragradavelmente a sós com Troy quecaiu num transe do qual só despertouquando estacionou o carro à porta doseu apartamento. Não se desculpoupelo seu silêncio: sentiu na pintorauma tranquilidade que aceitou, equando entraram em casa, ficouencantado ao ouvi-la dizer: «Isto ésossegado», e ao vê-la tirar a boina esentar-se num banquinho diante dalareira.

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– Vamos acender a lareira? –perguntou Alleyn. – Diz que sim. Nãoestá um dia quente.

– Sim, vamos – concordou Troy.– Acendes enquanto eu trato do chá?Ele saiu da sala para dar a Vassily

uma série de ordens um poucoconfusas, e quando voltou, Troy estavadiante do fogo, com a cabeçadescoberta, estranhamente familiar.

– Então ainda aqui estás – disseAlleyn.

– É uma sala agradável, esta.Ele colocou uma caixa de cigarros

no chão ao lado dela e tirou ocachimbo. Troy virou-se e viu o seuquadro de Suva no outro extremo da

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sala.– Oh, sim – disse Alleyn –, ali está

ele.– Como o arranjaste?– Alguém o comprou por mim.– Mas porque…– Não sei porque fui tão dissimulado

acerca isso, exceto por querer muitoficar com o quadro por razões que nãoeram puramente estéticas, e pensei quetu as perceberias se eu o comprassepessoalmente.

– Teria ficado um poucoenvergonhada, suponho.

– Sim. – Alleyn esperou ummomento e então disse: – Lembras-tecomo eu te encontrei naquele dia, apintar e a praguejar? Foi mesmo

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quando o navio saía de Suva. Aquelascolinas mal-humoradas e o céu sinistroatrás de ti.

– Tivemos uma discussão, não foi?– Tivemos.O rosto de Troy corou.– Na verdade – disse Alleyn –, não

há praticamente ocasião em que nosencontremos em que não tenhamosdiscutido. Porque é que achas que issoacontece?

– Sempre estive na defensiva.– A sério? Durante muito tempo

pensei que simplesmente não gostavasde mim.

– Não. Conseguiste penetrar asminhas defesas.

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– Se não fosse aquele maldito caso,as coisas poderiam ter corrido melhor– disse Alleyn. – Que pena é nãopodermos, por vezes, reagir àssituações como personagens deromances menos honestos. O cenárioteria sido ideal, sabes. Um homicídioem tua casa. Tu com motivo apenassuficiente para ter uma «situação forte»e não o suficiente para te comprometerseriamente. Eu, como o detetivesombrio, com um comportamentosemelhante ao de Mr. Rochester. Ter-te-ias sentido irremediavelmenteatraída para o amor, Troy. Em vezdisso, adotei uma espécie de atitudedesagradável e pós-moderna. Se

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pintasses um quadro surrealista demim, eu seria feito de blocos de notasda Polícia Metropolitana, com um olhoa espreitar pelo buraco de umafechadura, as minhas mãos estariamocupadas com a correspondênciaprivada de outra pessoa. O fundo seriauma morgue e tudo seria envolto emGrinaldas de fita azul e corda de forca.O que foi?

– Que disparate – disse Troy.– Suponho que sim. Sim. A vaidade

do homem que tenta encontrar razõesextraordinárias para um fenómenoperfeitamente natural. Acontece quenão me amas. E por que diaboamarias?

– Acontece que não entendes – disse

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Troy em breve –, e por que diaboentenderias?

Ela pegou num cigarro e levantou orosto para ele lho acender. Umamadeixa do seu cabelo curto e escurocaiu-lhe sobre a testa. Alleyn acendeuo cigarro, atirou o fósforo para alareira e compôs-lhe a madeixa decabelo.

– Mulher abominável – disse eleabruptamente. – Estou tão contente quetenhas aceitado o meu convite.

– Quero dizer-te uma coisa – disseTroy com bonomia. – Sempre tivemedo de tudo isso. Amor e assim pordiante.

– Do lado físico?

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– Sim, isso, mas muito mais do queisso. Tudo. A quebra de todas asbarreiras. A intimidade física bemcomo a mental.

– A minha mente para mim um reinoé.

– Eu sinto que não seria – disseTroy.

– Eu sinto que ainda assim seria.Não achas que mesmo na união maispróxima possível deve sempre havermomentos em que uma pessoa se sentecompletamente separada,completamente sozinha? Certamentedeve ser assim, caso contrário, nãoficaríamos tão espantados nas rarasocasiões em que lemos os pensamentos

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uns dos outros.Troy olhou para ele com uma

espécie de determinação tímida que fezo seu coração revolver-se.

– Lês os meus pensamentos? –perguntou ela.

– Não de forma muito clara, Troy.Não me atrevo a desejar ter acapacidade de os ler.

– Eu leio os teus, às vezes. Essa éuma das coisas que faz subir as minhasdefesas.

– Se pudesses lê-los agora – disseAlleyn –, talvez te assustasses.

Vassily entrou com o chá. Ele,Alleyn viu de relance, correraanimadamente à sua delicatessenpreferida, na esquina, e comprara

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caviar. Tinha feito uma pilha detorradas com manteiga, havia cortadomuitos limões e fizera chá num enormebule Stuart de Lady Alleyn, que o seufilho tinha apenas trazido emprestadopara mostrar a um colecionador.Vassily também tinha arranjado tempopara vestir o seu melhor casaco. O seurosto estava engalanado de sorrisoscom significados embaraçosos.Murmurou para si mesmo enquantodispunha o extraordinário festim sobreuma mesa baixa em frente a Troy.

– Por favor, por favor – disseVassily. – Se houver mais algumacoisa, senhor. Devo talvez…

– Não, não – apressou-se a dizer

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Alleyn –, assim está admirável.– Caviar – disse Troy. – Oh, estou

tão feliz… um chá divinal.Vassily soltou uma gargalhada,

desculpou-se e fez uma vénia, saindo efechando as portas atrás de si com adissimulação de uma criada numacomédia francesa.

– Deste uma grande alegria ao velhotolo – disse Alleyn.

– Ele é de onde?– Um russo, uma herança de um dos

meus casos. Quase acabou na cadeia.Consegues mesmo comer caviar ebeber chá russo? Ele pôs-lhe um poucode leite.

– Eu não quero leite e vou comercaviar – disse Troy.

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Quando terminaram e Vassily tinhalevantado a mesa, Troy disse: – Tenhode ir.

– Não vás ainda.– Não devias estar na Scotland

Yard?– Eles telefonam-me se precisarem

de mim. Terei de lá ir mais tarde.– Não falámos do Bunchy – disse

Troy.– Não.– Hoje vais conseguir deitar-te mais

cedo?– Não sei, Troy.Alleyn sentou-se no banquinho ao

lado da cadeira de Agatha. Ela olhoupara a cabeça apoiada nas mãos longas

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e finas.– Não fales sobre o caso, se não te

apetecer. Só quero que saibas que sequiseres, eu estou aqui.

– Estás aqui. Estou a tentar habituar-me a isso. Achas que vais voltar?Sabes que jurei a mim mesmo que nãoiria proferir uma palavra de amor nestaabençoada tarde? Bem, talvez sejamelhor falar sobre o caso. Voucometer uma indiscrição hedionda edigo-te que talvez possa fazer umadetenção esta noite.

– Sabes quem matou o Bunchy?– Acreditamos que sim. Se o

espetáculo de hoje à noite correr bemdevemos estar em posição de prendero assassino.

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Ele virou-se e olhou para o rostodela.

– Ah – disse –, o meu trabalhonovamente! Porque te revolta tanto?

– Não é nada razoável, nada que eupossa tentar justificar – disse Troy. –Simplesmente abomino a pena capital.Nem sei se concordo com osargumentos conhecidos contra isso. Éapenas uma daquelas coisas horríveis.Como a claustrofobia. Costumavaadorar as Lendas de Ingoldsby quandoera criança. Um dia deparei comaquela sobre Lord Tomnoddy e oenforcamento. Causou uma impressãoextraordinária em mim. Sonhei comisso. Não conseguia tirá-la da minha

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cabeça. Costumava virar as páginas dolivro, sabendo que iria encontrá-la,temendo-a, e ainda assim… tinha de aler. Até fiz um desenho.

– Isso deve ter ajudado.– Não me parece. Suponho que a

maioria das pessoas, mesmo os menosimaginativos, tem um papão no fundodas suas mentes. Esse sempre foi omeu. Nunca tinha falado nisto antes. Eassim podes perceber que quando tu eeu nos conhecemos por causa daqueleoutro assunto, e acabou contigo aprenderes uma pessoa que euconhecia… – A sua voz vacilou. – Edepois houve o julgamento e… o fim…

Com um movimento nervoso, elatocou na cabeça de Alleyn.

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– Não és tu. E no entanto, importo-me tanto que sejas tu.

Alleyn pegou na mão dela e levou-aaos lábios.

Houve um momento de silênciocompleto. Tudo o que ele já haviasentido, cada frisson, a mais profundatristeza, o mais profundo pesar, omenor aborrecimento, a maior alegriae o mais pequeno prazer haviam sido apreparação para o momento em que amão dela se derreteu contra os seuslábios. Ele inclinou-se sobre ela.Ainda segurava a sua mão como umtalismã e falou contra a palma.

– Isto tem de ser verdadeiro. Juroque tem de ser verdadeiro. Não posso

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estar a sentir isto sozinho. Troy?– Agora não – sussurrou Troy. –

Mais não, agora. Por favor.– Sim.– Por favor.Ele inclinou-se, tomou-lhe o rosto

entre as mãos e beijou-a com paixão.Sentiu que os lábios dela ganhavamvida sob os seus. Em seguida, soltou-a.

– Não penses que vou pedir para meperdoares – disse ele. – Não tens odireito de deixar isto passar. Ésdemasiado especial, minha querida. Eusou o teu homem e tu sabes.

Olharam um para o outro.– Isto é o que se diz às tropas –

acrescentou Alleyn. – O machoarrogante.

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– O pavão arrogante – disse Troycom voz trémula.

– Eu sei, eu sei. Mas pelo menos nãofoi insuportável para ti. Troy, peloamor de Deus, não podemos sersinceros um com o outro? Quando tebeijei, senti que vieste ao meuencontro como uma chama. Imagineiisso?

– Não.– Foi como se gritasses com todo o

teu corpo que me amavas. Como possonão ser arrogante?

– Como posso não ficar abalada?Quando ele viu que ela estava

realmente muito abalada, uma ondaintolerável de compaixão afogou os

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seus pensamentos. Gaguejou: –Desculpa, desculpa.

Troy começou a falar devagar.– Deixa-me ir embora agora. Quero

pensar. Vou tentar ser sincera. Juro-teque não acreditava que te amava.Pareceu-me que não poderia amar-te,pois sempre que nos encontrávamosparecias estar a exigir-me algo, e euressentia-me disso. Não entendo oamor físico. Não sei o que significa.Estou simplesmente assustada, e isso éum facto.

– Deves ir embora. Vou chamar umtáxi. Espera um momento.

Alleyn saiu e chamou um táxi.Quando voltou, ela estava de pé emfrente à lareira, segurando a boina na

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mão. Parecia pequena e perdida. Eletrouxe-lhe o casaco e colocou-lhodelicadamente sobre os ombros.

– Fui muito fraca – disse Troy. –Quando aceitei o teu convite penseique iria manter tudo muito tranquilo eimpessoal. Parecias tão cansado eperturbado e foi tão fácil fazer isso. Eagora vês o que aconteceu?

– Os céus abriram-se e as estrelascaíram. Sinto-me como se tivessecorrido o mundo na última hora. Eagora tens de me deixar.

Ele acompanhou-a ao táxi. Antes defechar a porta, disse: – O teu maisdedicado pavão.

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CAPÍTULO 28

ALLEYN REÚNE OSPROTAGONISTAS

O relógio do subcomissário bateu asoito e quarenta e cinco da noite quandoAlleyn entrou na sala.

– Olá, Rory.– Boa noite, senhor.– Como sem dúvida deve ter

observado com o seu olho treinado, aminha secretária não está presente.Então pode deixar o tom oficial. Sente-se e acenda o seu cachimbo.

– Obrigado – disse Alleyn.– Sente-se um pouco inseguro?– Um pouco. Vou parecer um idiota

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rematado, se não conseguirmos nada.– Sem dúvida. É um grande caso,

inspetor-chefe.– E eu não sei, senhor!– Quem vem primeiro?– Sir Herbert e Lady Carrados.– Já chegou alguém?– Todos, exceto o Dimitri. O Fox

espalhou-os. O seu gabinete, o meu, asala de espera e a sala de comando.Assim que o Dimitri chegar, o Foxavisa-nos.

– Certo. Entretanto, vamos rever oplano de ação novamente.

Os dois passaram o plano de açãoem revista.

– Bem – disse o subcomissário –, édelicado, mas pode funcionar. A meu

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ver, tudo depende da maneira comolidar com eles.

– Obrigado, senhor – disse Alleynsombriamente –, por essas palavrastranquilizadoras.

O relógio do subcomissário bateu asnove. Alleyn apagou o cachimbo.Alguém bateu à porta e Fox entrou.

– Estamos todos prontos, senhor –disse ele.

– Muito bem, Mr. Fox. Mande-osentrar.

Fox saiu. Alleyn olhou para as duascadeiras debaixo da lâmpada do teto edepois para o subcomissário, sentadoimóvel à sombra do candeeiro verdena sua secretária. Alleyn estava parado

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diante da lareira.– Aos vossos lugares – disse a voz

calma atrás do candeeiro verde. – Eagora sobe o pano.

Houve um breve silêncio e depois aporta abriu-se mais uma vez.

– Sir Herbert e Lady Carrados,senhor.

Eles entraram e Alleyn avançou,cumprimentou-os formalmente e depoisapresentou-os ao subcomissário. Aatitude de Carrados ao apertar-lhe amão era uma mistura extraordinária dacondescendência de um vice-rei e aforça moral de um mártir cristão.

O subcomissário foi frontal comeles.

– Boa noite, Lady Carrados. Boa

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noite, Sir Herbert. De acordo comcertas informações que recebeu, oinspetor-chefe Alleyn e eu decidimosconvidá-los a vir falar connosco.Como o caso está nas mãos de Mr.Alleyn, vou deixá-lo conduzir aconversa. Não se querem sentar, porfavor?

Eles sentaram-se. A luz do teto batianos seus rostos, lançando sombrasfortes debaixo dos olhos e das maçãsdo rosto. Duas cabeças viraram-se emuníssono para Alleyn.

– A maior parte do que tenho paradizer é dirigida a si, Sir Herbert –disse Alleyn.

– A sério? – disse Carrados. – Bem,

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Alleyn, como lhe disse ontem à tarde,estou deveras ansioso para o ajudar aesclarecer este assunto infeliz. Comoanfitrião de Lord Robert naquela noitefatídica…

– Sim, nós entendemos. A sua atitudeencoraja-nos a pensar que o senhor vaientender, ou em todo o caso desculpar,que eu volte a temas antigos, e tambémpise terreno novo. Eu estou em posiçãode lhe dizer que temos seguido umapista muito estranha desde ontem. Umapista que nos levou a algumasconclusões notáveis.

Carrados virou os olhos, mas não acabeça, para a mulher. Não falou.

– Temos razões para acreditar –continuou Alleyn – que o assassínio de

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Lord Robert Gospell é resultado dechantagem. O senhor disse algumacoisa?

– Não. Não! Não estou a perceber…– Eu vou ser mais claro daqui a um

momento, espero. Agora, por razõesem que não preciso de entrar, a ligaçãoentre este crime e a chantagem leva-nos a uma de duas conclusões. Ou LordRobert era um chantagista, e foi mortopor uma das suas vítimas, ou,eventualmente, por alguém que queriaproteger a sua vítima…

– O que o leva a afirmar isso? –perguntou Carrados com voz rouca. –É impossível!

– Impossível? Porquê?

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– Porque Lord Robert, Lord Robertnão era… é impossível imaginar… temalguma prova de que ele era umchantagista?

– A alternativa é que Lord Roberttinha descoberto a identidade dochantagista, e foi assassinado antes quepudesse revelá-la.

– Afirma isso – disse Carrados, semfôlego –, mas não fornece nenhumaprova.

– Peço-lhe simplesmente que aceitea minha afirmação de que, com ou semrazão, acreditamos que o nosso casoassenta numa dessas hipóteses.

– Não tenho a pretensão de ser umdetetive, Alleyn, mas…

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– Só um minuto, senhor, se não seimporta. Gostava agora que recuassecomigo na sua memória até um dia háquase dezoito anos, quando levou LadyCarrados a uma aldeia chamadaFalconbridge, no Buckinghamshire. Osenhor ainda não era casado nessaaltura.

– Eu levava-a frequentemente decarro para o campo naqueles tempos.

– Então não terá dificuldade emrecordar esta ocasião. Foi o dia emque o capitão Paddy O’Brien teve oacidente.

Alleyn esperou. Viu os olhosredondos de Carrados brilharem à luzdo candeeiro mais forte.

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– E então? – disse Carrados.– Recorda-se desse dia? – perguntou

Alleyn.– Mas, Herbert – disse Lady

Carrados –, é claro que te recordas.– Sim. Mas não estou a ver…– Por favor, senhor! Irei direto ao

assunto dentro de um momento.Lembra-se?

– Naturalmente.– Lembra-se de que o capitão

O’Brien foi levado primeiro para ovicariato e de lá, numa ambulância,para o hospital, onde morreu poucashoras depois?

– Sim.– Lembra-se de que, depois de ele

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morrer, a sua mulher estava muitoangustiada, porque acreditava quedeterminada carta que o capitãoO’Brien trazia com ele se tinhaperdido?

– Eu não tenho nenhuma lembrançadisso.

– Deixe-me ajudá-lo. Ela disse queprovavelmente o capitão O’Brienlevava a carta no bolso e que deve tercaído, que estava muito ansiosa para arecuperar. Estou certo, Lady Carrados?

– Está… sim.A sua voz era baixa, mas

perfeitamente neutra. Ela olhava paraAlleyn com um ar de perplexidadechocada.

– A senhora perguntou a Sir Herbert

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se ele havia inquirido em todos oslugares por esta carta em falta?

– Sim.– Lembra-se agora, Sir Herbert?– Eu acho… que me lembro… de

qualquer coisa. Foi tudo muitoangustiante. Tentei ser de algumautilidade, acho que fui útil.

– O senhor conseguiu encontrar acarta?

– Eu… penso que não.– Tem a certeza?Um pequeno fio de suor escorreu-lhe

de cada lado do nariz para o bigodefino.

– Tenho quase a certeza.– Lembra-se de estar no seu carro à

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porta do hospital, enquanto LadyCarrados estava com o capitãoO’Brien?

Carrados não falou durante um longomomento. Depois virou-se na cadeira edirigiu-se à figura silenciosa junto aocandeeiro verde.

– Não vejo qualquer razão possívelpara este procedimento extraordinário.É muito angustiante para a minhamulher, e posso dizer, senhor, que meparece terrivelmente ofensivo e foradas atribuições do seu cargo.

– Eu não concordo, Sir Herbert –disse o subcomissário. – Aconselho-oa responder a Mr. Alleyn.

– Posso dizer-lhe – começouCarrados – que sou amigo íntimo do

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seu superior. Ele vai ficar a saberdisto.

– Espero bem que sim – disse osubcomissário. – Continue, Mr. Alleyn.

– Lady Carrados – disse Alleyn –, éverdade que deixou Sir Herbert nocarro quando entrou no hospital?

– Sim.– Sim. Agora, Sir Herbert, enquanto

esperava, lembra-se de uma jovem decerca de quinze anos, numa bicicleta?

– Como é que me vou lembrar deuma jovem numa bicicleta há dezoitoanos?

– Apenas porque ela lhe entregou acarta de que estamos a falar.

Evelyn Carrados soltou um grito

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abafado. Virou-se e olhou para omarido, como se o visse pela primeiravez. Por sua vez, ele olhou-a com oque Alleyn pensou ser um dos olharesmais extraordinários que já tinha visto– acusação, humilhação, até mesmouma espécie de miséria triunfante, tudoisto estava expresso nele, era o rostode um mártir cruel. «A máscara dociúme», pensou Alleyn. «Não há nadamais lamentável ou mais degradante.Meu Deus, se alguma vez eu…»Afastou aquele pensamento, e começoude novo.

– Sir Herbert, pegou na carta dajovem na bicicleta?

Ainda com uma espécie de sorrisonos lábios, Carrados virou-se para

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Alleyn.– Eu não me lembro disso – disse

ele.Alleyn acenou a Fox, que saiu do

gabinete. Esteve ausente durante cercade dois minutos. Ninguém falou. LadyCarrados baixara a cabeça e pareciaolhar com profunda atenção para asmãos enluvadas, firmemente apertadasno colo. De repente, Carrados limpouo rosto com a palma da mão e emseguida tirou o lenço. Fox regressou etrouxe Miss Harris consigo.

– Boa noite, Miss Harris – disseAlleyn.

– Boa noite, Mr. Alleyn. Boa noite,Lady Carrados. Boa noite, Sir Herbert.

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Boa noite – concluiu Miss Harris comum olhar sereno para o subcomissário.

– Miss Harris – disse Alleyn –,lembra-se de ficar com o seu tio, Mr.Walter Harris, quando ele era vigárioem Falconbridge? Tinha quinze anosna altura.

– Sim, Mr. Alleyn, claro –respondeu Miss Harris.

Carrados praguejou em voz baixa.Lady Carrados disse: – Mas… o quequer dizer, Miss Harris?

– Claro que me lembro, LadyCarrados – disse Miss Harris num tomanimado.

– Nessa altura houve um acidente decarro fatal – disse Alleyn.

– O do capitão O’Brien. Perdoe-me,

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Lady Carrados. Sim, Mr. Alleyn.– Meu Deus! – exclamou Alleyn,

involuntariamente. – Quer dizer quepercebeu que…

– Eu sabia que o capitão «Paddy»O’Brien foi o primeiro marido de LadyCarrados, naturalmente.

– Mas – disse Alleyn – nunca pensouem contar a Lady Carrados que houveessa, bem, essa ligação entre as duas?

– Oh, não – disse Miss Harris –,naturalmente que não, Mr. Alleyn. Nãoseria próprio de mim abordar esseassunto. Quando me deram a lista devagas na associação de beneficência,eu pensei que este cargo era o maisadequado, e… por favor, Lady

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Carrados desculpe-me… fiz perguntas,como é habitual, sabe. E disse à minhaamiga, Miss Smith: «Que coincidênciaextraordinária», porque quando eusoube do antigo nome de LadyCarrados, percebi que devia ser omesmo, e disse à Smithy: «Acho quedeve ser um sinal», de modo que mecandidatei ao emprego.

– Estou a ver – disse Alleyn –, elembra-se de Sir Herbert, também?

– Oh, sim. Não tinha muita certezaao início, mas depois sim. Sir Herbertera o cavalheiro no carro. Talvez eudeva explicar?

– Por favor, explique.– Eu cheguei a falar com ele. – Ela

olhou para Carrados como que

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pedindo desculpa. – Tenho a certezade que Sir Herbert se esqueceu hámuito, porque eu na altura era apenasuma menina desajeitada.

– Já chega, Miss Harris – disseCarrados violentamente. – Nãoresponda mais a quaisquer perguntas,por favor.

Miss Harris parecia extremamenteassustada, corou e arregalou muito osolhos. Cerrou os lábios num botãoprudente.

– Prossiga, Miss Harris – disseAlleyn.

– O que deseja que faça, LadyCarrados? – perguntou a secretária.

– Acho que é melhor continuar –

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disse a voz fraca.– Muito bem, Lady Carrados. Sabe,

eu tive o prazer de devolver a cartaque havia sido deixada no vicariato.

– Isso é uma mentira absoluta – disseCarrados, em voz alta.

– Perdoe-me – disse Miss Harris –,mas não posso deixar isso passar. Euestou a dizer a verdade.

– Obrigada, Miss Harris – disseAlleyn rapidamente. – Importa-se deesperar lá fora por um momento? Fox.

Fox conduziu-a para fora dogabinete.

– Meu Deus! – começou Carrados. –Se acredita na palavra de uma…

– Espere um momento – disse Alleyn–, acho que vou continuar com a minha

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história. O caso, Sir Herbert, é que osenhor recebeu, de facto, essa carta e,por algum motivo, nunca a devolveu àsenhora que mais tarde se casouconsigo. O caso é que, depois de ler acarta, guardou-a durante dezoito anosna gaveta de uma escrivaninha emminiatura no seu escritório.

– Protesto. Nego absolutamente…– Também nega isso?– É absurdo! Aviso-o já, senhor, se

eu tiver alguma influência…– Só um momento – disse Alleyn –,

Lady Carrados está a falar.A atenção deslocou-se para a

mulher. Ela estava ali sentada como separticipasse numa reunião de alguma

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sociedade em que estivesseinteressada. As suas peles, roupascaras e elegantes, as luvas, amaquilhagem discreta poderiam serinterpretadas como símbolo de umaeducação controlada e de boasfamílias. Foi a rigidez feroz da suafigura que deu expressão à suaemoção. A sua voz quase não vacilou.Alleyn percebeu que ela estava alheiaao que a envolvia e à presença deoutras pessoas na sala, e isso parecia-lhe ser a indicação mais importante dasua angústia. Ela falou diretamentepara o marido.

– Tu sabias! Todos estes anoscomigo e a saberes o quanto eu sofri.Porque me escondeste a carta? Porque

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te casaste comigo, sabendo a minhahistória passada? Parece-me que devesser louco. Agora entendo porque meobservavas, porque nunca tiraste osolhos de mim, desde que aconteceuesta coisa horrível. Tu sabias. Sabiasque eu estava a ser chantageada. –Recobrou o fôlego e voltou-serigidamente até estar de frente para omarido. – Foste tu – sussurrou. – Fostetu. Estás louco e fizeste isto para metorturar. Sempre tiveste ciúmes doPaddy. Desde que eu te disse quenunca seria o mesmo com outra pessoa.Estavas com ciúmes do fantasma doPaddy.

– Evelyn – disse Alleyn suavemente.

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Ela fez um leve gesto de impaciência,mas continuou a falar apenas paraCarrados.

– Foste tu quem escreveu essascartas. Foste tu.

Carrados olhou para ela como umidiota. Tinha a boca aberta, assobrancelhas levantadas numa espéciede espanto imbecil. Abanou a cabeça.

– Não – disse ele. – Não, Evelyn,não.

– Obrigue-o a confessar, Roderick –disse ela, sem virar a cabeça.

– Sir Herbert – disse Alleyn. – Negaque guardou a carta na gaveta secretada sua escrivaninha?

– Sim.Fox olhou para Alleyn, saiu e entrou,

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depois de mais um silêncio extremo,com Bridget.

Lady Carrados deu um pequeno gritode dor e pegou na mão da filha.

– Miss O’Brien – disse Alleyn –,pedi-lhe para vir cá com o objetivo derelatar ao subcomissário o episódioque me contou ontem. Disse que numaocasião, quando estavam sozinhos noescritório da casa do seu padrasto, amenina examinou a escrivaninha emminiatura que está naquela divisão.Disse-me que quando pressionou umminúsculo parafuso de uma gavetatriangular, essa gaveta abriu-se e haviauma carta lá dentro. Isso é verdade?

– Donna? – Bridget olhou

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ansiosamente para a mãe.– Sim, sim, querida. Conte-lhes. Seja

o que for, conte-lhes.– É verdade – disse Bridget.– O seu padrasto entrou no escritório

nesse momento?– Sim.– Qual foi a sua reação quando viu o

que tinha feito?– Ele ficou muito zangado.– E o que fez?– Torceu-me o braço e deixou-o

marcado.– Mentira. Esta criança sempre me

odiou. Tudo o que eu tentei fazer porela… mentira, uma mentira perversa evenenosa!

– Fox – disse Alleyn –, peça a Sir

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Daniel para entrar.Sir Daniel, ao que parecia, estivera

sentado no gabinete da secretária, poisentrou quase imediatamente. Quandoviu os dois Carrados e Bridget,cumprimentou-os exatamente como sefossem convidados numa festa. Depoisapertou a mão do subcomissário evirou-se para Alleyn.

– Sir Daniel – disse Alleyn. – Pedi-lhe para vir pois segundo sei foitestemunha de uma cena que MissO’Brien acaba de nos descrever.Ocorreu há cerca de dois anos.Lembra-se de Miss O’Brien o mandarchamar e pedir-lhe para ir ver a mãeque estava doente?

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– Isso aconteceu mais de uma vez –disse Davidson.

– Nesta visita em especial o senhorentrou no escritório e falou com MissO’Brien sobre uma pequenaescrivaninha francesa.

Davidson franziu as sobrancelhas.– Ai sim?– Lembra-se?– Lembro. Muito bem.– Disse a Miss O’Brien que havia

provavelmente uma gaveta secreta naescrivaninha. Depois subiu para verLady Carrados.

– Sim. Acho que foi isso.– Quando voltou, Miss O’Brien e Sir

Herbert estavam juntos no escritório?

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– Sim – disse Davidson e os seuslábios formaram uma linhaextremamente firme.

– Pode descrever o que aconteceu aseguir?

– Lamento, mas não, Mr. Alleyn.– Porquê?– Digamos que por razões de ética

profissional.Lady Carrados disse: – Sir Daniel,

se está a pensar em mim, imploro-lheque lhes diga o que eles querem saber.Eu quero saber a verdade. Se nãosouber a verdade agora, vou desfazer-me em pedaços.

Davidson olhou para ela comespanto.

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– Quer que eu lhe conte sobre aquelatarde?

– Sim, sim, quero.– E você, Carrados? – Davidson

olhou para Carrados como se ele fosseuma espécie de curiosidade.

– Davidson, imploro-lhe quemantenha a calma. Tenho a certeza deque você não viu nada que pudesse serinterpretado… que pudesse serconsiderado como prova… que…Davidson, você conhece-me. Sabe queeu não sou um homem vingativo. Vocêsabe.

– Vá lá – disse Alleyn –, vamosacabar com isto. Sir Daniel, examinouo braço de Miss O’Brien quando

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voltou ao escritório?– Sim – disse Davidson, virando as

costas a Carrados.– O que encontrou?– Um braço com uma pequena

contusão, por isso prescrevi a loção.– A que causa atribuiu essa

contusão?– A contusão sugeria que o braço

tinha sido apertado com força etorcido.

– Em que posições se encontravamSir Herbert e a sua enteada quandoentrou no escritório?

– Ele estava a agarrá-la pelo braço.– Seria correto dizer que ele estava

enfurecido com ela?Davidson olhou cordialmente para

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Bridget. Trocaram meios sorrisos.– Ele estava a gritar bastante, sem

dúvida – disse Davidson secamente.– Reparou na escrivaninha?– Acho que não, reparei nela na

segunda vez que entrei no escritório.Percebi que Sir Herbert Carradosestava a falar sobre isso quando euentrei…

– Sim. Obrigado, Sir Daniel. Osenhor e Miss O’Brien esperam láfora, por favor? Vamos chamar Mr.Dimitri, por favor, Fox.

Davidson e Bridget saíram da sala.Dimitri entrou a seguir a Fox. Estavamuito elegante, com um curativo limpoem volta do dedo ferido, o cabelo

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penteado com óleo, e perfume. Olhoupelo canto dos olhos e fez véniasprofusas.

– Boa noite, minha senhora. Boanoite, meus senhores.

– Mr. Dimitri – começou Alleyn –,tenho…

– Pare.Carrados levantara-se. Estava de pé

com a mão erguida diante do rosto,num gesto curioso, meio defensivo,meio declamatório. Depois estendeulentamente o braço e apontou paraDimitri. A ação foi ridícula ealarmante.

– Qual é o problema, Sir Herbert? –perguntou Alleyn.

– O que é que ele está a fazer aqui?

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Meu Deus, agora sei… eu sei…– Então, Sir Herbert? O que é que

sabe?– Pare! Eu conto-lhe. Fui eu! Fui eu!

Confesso. Confesso tudo. Fui eu!

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CAPÍTULO 29

CLÍMAX

– O senhor fez o quê, Sir Herbert?Era a voz do subcomissário, muito

calma e pragmática.– Eu fiquei com a carta. – Carrados

olhou diretamente para a mulher. – Tusabes porquê. Se alguma vez metivesses falado dele, se alguma vez metivesse comparado a esse indivíduo, seeu tivesse descoberto… tu sabesporquê.

– Sim – disse Lady Carrados. – Eusei.

– Pelo amor de Deus – disseCarrados –, pelo amor de Deus,

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cavalheiros, não permitam que esteassunto vá mais longe. É um assuntoprivado entre a minha mulher e eu.

– Já foi muito mais longe do que isso– disse Alleyn. – Não escreveuefetivamente cartas para chantagear asua mulher apenas com o objetivo de atorturar? Não fez isso?

– Seu idiota! – gritou Carrados. –Seu idiota! Eu é que sofri. Eu é quetemia o que poderia acontecer. A cartafoi roubada. Foi roubada. Foi roubada.

– Parece que agora estamos a chegarà verdade. Quando deu pela falta dacarta?

Carrados olhou de um rosto para ooutro. Por um momento terrível, Alleynpensou que ia desatar a chorar. Os seus

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lábios tremiam. Ele parecia um homemvelho. Começou a falar.

– Foi quando voltámos deNewmarket. Nessa noite, eu estavasozinho no meu escritório. A Bridgettinha sido muito pouco atenciosadurante todo o dia, deixando-nos esaindo com um rapaz que eu nãoaprovava. A minha mulher tinhatomado o partido dela contra mim. Euestava sozinho no meu escritório. Deipor mim a olhar para a escrivaninhafrancesa. Havia algo diferente nadisposição das peças. Fui reorganizá-las e experimentei a gaveta secreta.Estava vazia! Asseguro-lhes que acarta estava lá no dia anterior. Eu vi-a

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lá. No dia anterior eu estive muitoirritado com a minha mulher. Ela foicruel para mim. Eu sou muito sensívele os meus nervos estão desfeitos. Estousozinho. Terrivelmente só. Ninguém seimporta com o que me acontece. Elaera tão descuidada e cruel. Por isso eulia a carta, porque me reconfortava.Estava lá na noite anterior. E sabequem esteve sozinho no meu escritóriono dia nove de maio?

– Sim – disse Alleyn. – Ainda bemque também se lembra. Foi Mr.Colombo Dimitri.

– Ah – disse Carrados com voztrémula. – Ah, agora estamos a chegarà verdade. Agora, estamos a chegar àverdade.

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– Receio não estar a compreender –disse Dimitri. – Sir Herbert estaráporventura doente?

Carrados voltou-se e mais uma vezapontou para Dimitri.

– Você roubou-a, seu dago7 imundo.Eu sei que você a roubou. Suspeiteidesde o início. Eu não podia fazernada… nada.

– Desculpe, Mr. Alleyn – disseDimitri –, mas julgo que posso acusarSir Herbert Carrados de calúnia comesta afirmação. Não é assim?

– Não o aconselho a fazê-lo, Mr.Dimitri. Por outro lado, aconselhovivamente Lady Carrados a acusá-lode chantagem. Lady Carrados, é

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verdade que na manhã do dia vinte ecinco de maio, quando Lord RobertGospell lhe fez uma visita, a senhorarecebeu uma carta de chantagem?

– Sim.– Acredita que a única fonte de onde

o chantagista poderia ter obtido a suainformação era a carta perdida no diado acidente do capitão O’Brien?

– Sim.Alleyn tirou um envelope do bolso e

entregou-lho.– A carta que a chantageava estava

escrita num estilo semelhante a este?Ela olhou para o envelope e desviou

o olhar.– Era exatamente como esse.– Se eu lhe disser que a senhora a

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quem é dirigida esta carta foiigualmente alvo de chantagem e quetemos provas de que o homem queescreveu esta morada foi ColomboDimitri, a senhora está preparada parao acusar de chantagem?

– Sim.– É completamente falso – protestou

Dimitri. – Vou acusá-los de calúnia edifamação.

O seu rosto estava pálido. Levou amão enfaixada aos lábios e apertou-acontra eles.

– Antes de continuarmos – disseAlleyn –, acho que devo explicar queLord Robert Gospell estava acolaborar com a Scotland Yard no que

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se refere a estas cartas de chantagem.Ele estava a trabalhar para nós nestecaso. Temos a sua declaração assinadaque não deixa dúvida de que Mr.Dimitri recolheu uma quantia emdinheiro num concerto realizado noConstance Street Hall, na quinta-feira,dia três de junho. Lord Robert viu Mr.Dimitri recolher o dinheiro.

– Ele… – Dimitri inspirou fundo, osseus lábios estavam repuxados,deixando os dentes à mostra numaespécie de esgar. – Eu nego tudo –disse ele. – Tudo. Quero chamar o meuadvogado.

– Terá oportunidade de o fazer, Mr.Dimitri, quando eu tiver terminado. Nodia oito de junho, há duas noites, Lady

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Carrados deu um baile em MarsdonHouse. Lord Robert estava lá. Como jásabia muito sobre Mr. Dimitri, pensouem descobrir um pouco mais. VigiouMr. Dimitri. Agora sabia qual ométodo empregado. Também sabia queLady Carrados foi vítima dechantagem. É assim, Lady Carrados?

– Sim. Eu tive uma conversa com elesobre isso. Ele sabia o que eu ia fazer.

– O que ia fazer?– Colocar a minha carteira com

quinhentas libras num determinadolugar no quarto verde do andar decima.

– Sim – disse Alleyn. – Lord Robertviu Mr. Dimitri devolver a carteira a

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Lady Carrados pouco antes da uma damanhã. À uma hora ele telefonou-me edisse-me que agora tinha provassuficientes. A conversa foiinterrompida por alguém que deve terouvido pelo menos uma frase muitosignificativa. Duas horas e meia maistarde Lord Robert foi assassinado.

O silêncio da sala foi estilhaçadopor um berro aflitivo. Dimitri tinhagritado como uma mulher, com a bocaescancarada. Este alvoroço chocantedurou um segundo e parou. Alleyntinha na mente a imagem de ummaquinista a puxar uma corda e, emseguida, a largá-la. Dimitri, ainda coma boca escancarada, abanava o dedo nadireção de Alleyn.

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– Vamos lá acalmar, vamos láacalmar – disse Fox e aproximou-sedele.

– É falso! – disse Dimitri, estalandofreneticamente os dedos na cara de Foxe, em seguida, abanando-os como seestivessem queimados. – É falso! Osenhor acusa-me de assassínio. Eu nãosou um assassino. Eu estou inocente.Cristo mio, eu estou inocente,inocente, inocente!

Por um momento, parecia que ele iatentar fugir do gabinete. Dimitriassemelhava-se a um tenor a cantarpessimamente numa ópera italiana desegunda categoria. Vociferou contraAlleyn, puxou o cabelo, deixou-se cair

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numa cadeira e começou a chorar.Sobre os cinco ingleses no gabinetedesceu uma aura pesada de embaraço.

– Estou inocente – soluçou Dimitri. –Inocente como uma criança. Os santosabençoados são testemunhas da minhainocência. Os santos abençoados sãotestemunhas…

– Infelizmente – disse Alleyn –, otestemunho deles não é aceite numtribunal. Se se acalmar por ummomento, Mr. Dimitri, podemoscontinuar com o nosso assunto. Peça aMrs. Halcut-Hackett para entrar, porfavor, Fox.

O intervalo foi animado pelo som deDimitri a roer as unhas e a soluçar.

Mrs. Halcut-Hackett, vestida como

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se fosse a um restaurante de luxo e como aspeto de um acidente cosmético,entrou no gabinete. Fox trouxe-lhe umacadeira. Ela sentou-se e endireitou obusto até este parecer umasuperestrutura apoiada numa baserígida. Então viu Lady Carrados. Asduas mulheres trocaram um olharextraordinário. Era como se tivessemdito uma à outra: «Também tu?»

– Mrs. Halcut-Hackett – disseAlleyn –, disse-me que depois de umafesta que deu em dezembro, descobriuque um documento de valor tinhadesaparecido de uma caixa de joias noseu toucador. Este homem, ColomboDimitri, teve oportunidade de estar

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sozinho nesse quarto?Ela virou a cabeça e olhou para

Dimitri, que agitou as mãos na suadireção.

– Ora… sim – disse ela. –Certamente que teve.

– Lord Robert sentou-se perto de sino concerto do Quarteto Sirmione, nodia três de junho?

– Sabe perfeitamente que sim.– Lembra-se de que este homem,

Colombo Dimitri, se sentou não muitolonge de si?

– Ora, sim.– A sua carteira foi roubada nessa

tarde?– Foi, sim. – Ela olhou novamente

para Lady Carrados, que de repente se

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inclinou para a frente e tocou na suamão.

– Lamento – disse ela. – Eu também.Na verdade não tem nada a temer denós. Nós também sofremos. Decidi quenão ia esconder nada. Podemos contarcom a sua ajuda, também, nãoescondendo… nada?

– Oh, minha cara! – murmurou Mrs.Halcut-Hackett.

– Não precisamos de lhe pedir muitomais – disse Alleyn. – Teria sidopossível ao Dimitri ter pegado na suacarteira enquanto esteve fora da salade concertos?

– Lord Robert poderia ter visto –disse Mrs. Halcut-Hackett.

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– Lord Robert viu – disse Alleyn.– Os mortos – exclamou Dimitri. –

Eu não posso ser acusado pelosmortos.

– Se isso fosse verdade – disseAlleyn –, como muitas vezes é, quemotivo para o assassínio! Digo-lhe quetemos uma declaração, escrita eassinada pelo falecido.

Dimitri soltou uma espécie degemido e encolheu-se na cadeira.

Alleyn tirou do bolso a cigarreiracom o medalhão.

– Isto pertence-lhe? – perguntou aMrs. Halcut-Hackett.

– Sim. Eu já lho tinha dito.– Deixou-a na sala de estar verde em

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Marsdon House?– Sim. Apenas durante alguns

minutos.– Um ou dois minutos, não mais,

depois de ter saído da sala, ouviu otilintar da ligação do telefone?

– Sim.– Tinha visto Lord Robert chegar lá

acima?– Sim.Alleyn acenou a Fox, que mais uma

vez saiu do gabinete.– Depois de se ter juntado ao seu

parceiro na outra sala de estar, asenhora descobriu que perdeu acigarreira?

– Sim, foi o que aconteceu.– O seu parceiro foi buscá-la.

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Ela humedeceu os lábios. Dimitriouvia avidamente. Carrados afundara-se na cadeira com o queixo apoiado nopeito. Alleyn sentia que ele estava afazer, para qualquer pessoa que tivessetempo para reparar nisso, umarepresentação silenciosa de um homemquebrado. Lady Carrados, com asmãos cruzadas no colo, pareciaexausta. O subcomissário permaneciaimóvel por trás do candeeiro verde.

– Bem, Mrs. Halcut-Hackett? O seuparceiro foi buscar a sua cigarreira aoquarto verde, não é verdade?

– Sim.A porta abriu-se e Fox entrou com

Withers. O capitão trazia as mãos nos

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bolsos e piscou as pestanas brancas.– Espera lá! – disse ele. – Qual é a

ideia?– Eu pedi-lhe para vir aqui, capitão

Withers, para que o subcomissáriopudesse ouvir a sua declaração sobreos seus movimentos na noite do baileem Marsdon House. Descobri que,apesar de ter deixado Marsdon Houseàs três e meia, o senhor não chegou aoMatador antes das quatro e quinze. E,portanto, não tem álibi para ohomicídio de Lord Robert Gospell.

Withers olhou para Mrs. Halcut-Hackett com uma espécie de desprezo.

– Ela pode fornecer-mo – disse ele.Mrs. Halcut-Hackett olhou para ele e

falou para Alleyn. A sua voz era

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desprovida de expressão.– Já me convenci de que se viria a

saber. Entre o momento em que deixouo baile e chegámos ao Matador, ocapitão Withers andou a passearcomigo no seu carro. Eu estava commedo do meu marido. Já o tinha visto aolhar para mim. Eu queria falar com ocapitão Withers. Tive medo de o dizerantes.

– Estou a ver – disse Alleyn. –Confirma isto, capitão Withers?

– É verdade.– Muito bem. Agora, voltemos a

Marsdon House. O senhor declarouque à uma hora estava na sala de estarno topo da escada.

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– Assim é.– Não me disse que também esteve

no quarto do telefone.Withers olhou para Mrs. Halcut-

Hackett. Ela fitava-o como um animalassustado, mas assim que ele olhoupara ela, ela desviou o olhar.

– Porque havia de dizer? – disseWithers.

– Esteve no quarto do telefone comMrs. Halcut-Hackett antes de ir para aoutra sala. Depois voltou lá para irbuscar isto.

Alleyn levantou o braço longo. Setecabeças seguiram o movimento. Setepares de olhos estavam concentradosna cigarreira de ouro com o medalhão

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rodeado de brilhantes.– E depois?– Onde encontrou esta cigarreira?– Numa mesa no quarto com o

telefone.– Quando eu lhe perguntei ontem se

ouviu Lord Robert telefonar nessequarto, como sabemos que ele fez àuma hora, o senhor negou.

– Não estava ninguém no quartoquando fui buscar a cigarreira. Eudisse que ouvi o tilintar de marcaçãodo telefone um pouco antes disso. Seera o Gospell, suponho que deve tersaído antes de eu lá ter ido.

– Há alguma razão para que alguém,digamos Mr. Dimitri ali no canto, nãotivesse entrado no quarto do telefone

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depois de o senhor ter saído com Mrs.Halcut-Hackett, e antes de lá tervoltado para ir buscar a cigarreira?

– Nenhuma razão, tanto quanto eusaiba.

– Dimitri – disse Alleyn –, já viuesta cigarreira antes? Olhe para ela. Jáviu isto antes?

– Nunca. Nunca vi isso. Não seiporque me está a perguntar. Eu nuncavi isso.

– Pegue nela. Olhe para ela.Dimitri obedeceu.– Abra-a.Dimitri abriu-a. De onde Alleyn

estava podia ver o pequeno recortetirado do Times. Dimitri também o viu.

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Os seus olhos arregalaram-se. Acigarreira caiu-lhe das mãos e foiparar ao chão. Ele apontou um dedotrémulo a Alleyn.

– O senhor deve ser o Diabo empessoa – sussurrou.

– Fox – disse Alleyn –, pode passara cigarreira por todos, por favor?

A cigarreira foi passada de mão emmão. Withers, Evelyn e HerbertCarrados examinaram-na. Witherspegou-lhe como se já o tivesse feitoantes, mas pareceu bastante indiferenteao recorte. Os Carrados olharam paraela sem perceber e passaram acigarreira. Mrs. Halcut-Hackett abriu-ae olhou para o pedaço de papel.

– Isto não estava aqui antes – disse

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ela. – O que é isto? Quem pôs istoaqui?

– Lamento – disse Alleyn. – Nãocausou nenhum dano. Vai sair muitofacilmente.

Ele pegou na cigarreira.Dimitri levantou-se de repente. Fox,

que não tirara os olhos dele, mudou-separa a frente da porta.

– Sente-se, Mr. Dimitri – ordenouAlleyn.

– Vou-me embora. O senhor nãopode reter-me aqui contra a minhavontade. Acusa, ameaça, mente! Nãoposso suportar isto por mais tempo.Sou um homem inocente, um homem derespeito, com uma clientela de grande

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excelência. Quero falar com umadvogado. Meu Deus, deixe-mepassar!

Ele precipitou-se para a frente.Alleyn agarrou-o por um braço. Foxpelo outro. Dimitri debateu-seviolentamente. O subcomissáriopremiu uma campainha sobre a mesa, aporta foi aberta pelo lado de fora edois homens à paisana entraram nasala. Do outro lado, no gabinete bemiluminado da secretária, três rostosassustados, Bridget, Davidson e MissHarris, espreitavam por cima dosombros de mais homens da Yard eatravés da porta.

Dimitri, aos gritos e ofegante, foidominado por dois agentes.

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– Vamos lá – disseram. – Vamos lá.– Lady Carrados – disse Alleyn –,

vai acusar formalmente este homem?– Vou acusá-lo.– Daqui a pouco – disse Alleyn a

Dimitri –, será levado para a sala decomando, mas antes de falarmos sobrea natureza exata da queixa… – eleespreitou pela porta – Sir Daniel?Vejo que ainda aqui está. Possoincomodá-lo novamente por ummomento?

Davidson, com um ar muitoassustado, entrou.

– Meu Deus, Alleyn! – disse ele,olhando para Dimitri. – O que sepassa?

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– Creio que pode dar-me a provafinal num caso extremamentecomplexo. Está a ver esta cigarreira?

Davidson pegou nela.– Meu caro amigo – disse ele –, isto

é o aborto. Eu falei-lhe sobre isto. Fazparte da coleção de Marsdon House.Lembra-se?

Aproximou-se da luz e depois lançouum olhar assustado a Dimitri, queestava perfeitamente imóvel e o fitoucomo uma alma perdida, Davidson pôsos óculos e examinou a cigarreira.

– Sabe, acho que é Benvenuto –disse ele, olhando por cima dos óculospara Alleyn.

– Sim, sim, também acho. Vai dizer-

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nos onde a viu?– Entre uma coleção de objets d’art

numa mesa de tampo recortado, numadivisão no andar de cima de MarsdonHouse.

– A que horas, Sir Daniel?– Meu caro Alleyn, eu já lhe disse.

Cerca das onze e meia. Talvez maiscedo.

– Jura que não reparou nela depoisdas onze e meia? – insistiu Alleyn.

– Mas é claro que juro – disseDavidson. – Eu não voltei ao quarto.Estou pronto para jurar isso.

Segurou na cigarreira na sua belamão.

– Juro que vi esta cigarreira em cimada mesa do quarto verde às onze e

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meia. Está bem assim?O silêncio foi quebrado apenas pela

respiração ofegante de Dimitri.E em seguida pela voz de Mrs.

Halcut-Hackett, surpreendentementeclara e firme:

– Mas isso não pode ser verdade.– Pode abrir a cigarreira? – disse

Alleyn.Davidson, que olhava com espanto

para Mrs. Halcut-Hackett, abriu acigarreira e viu o recorte de jornal.

– Importa-se de ler o recorte? –disse Alleyn. – Em voz alta, por favor.

A voz expressiva e grave leu amensagem absurda.

– «Coração Doce. Figos inteiros

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quebraram umbigo. Enfaixado. Quandoumbigo esiver. Tudo ótimo. DonoDecicado.» O que diabo vem a seristo?

– Acreditamos que é a mensagem deum assassino – disse Alleyn. –Achamos que este homem, o Dimitri,pode traduzi-la.

Davidson fechou a caixa com umestalido.

Algo se passava com as suas mãos.Tremiam tão violentamente que osdiamantes na cigarreira de ouropareciam ter ganhado vida.

– Então o Dimitri é um assassino –disse ele.

– Cuidado! – gritou Alleyn.Dimitri atirou-se para a frente com

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uma violência tão extrema e repentinaque os homens que o prendiam foramapanhados de surpresa. As suas mãosapertaram o pescoço de Davidsonantes de os agentes o terem conseguidodominar novamente. Num ápice, a salaencheu-se de homens a lutar. Cadeirascaíram ao chão, uma mulher gritou. Avoz de Fox gritou com urgência: «Válá. O que estão a fazer?» Houve umtropel concertado contra a borda dasecretária. O candeeiro verdeestilhaçou-se no chão.

– Assim está melhor – disse a voz deAlleyn. – Vamos, junte as mãos.

Um estalido agudo, um grito deDimitri e as figuras dispuseram-se

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numa espécie de quadro: Dimitri,algemado e retido por três homens,contra a secretária; Davidson no centroda sala com Alleyn, Fox e um agente àpaisana a segurar os braços do médicoatrás das costas, o subcomissário entreos dois grupos, como uma espécie deárbitro distinto.

– Assassino! – gritou Dimitri. –Assassino traiçoeiro e imundo! Euconfesso! Senhores, eu confesso!Trabalhei para ele durante sete anos eagora, agora, agora ele vai ficar delado e deixar-me ir para a forca pelocrime que ele próprio cometeu. Voucontar-lhes tudo. Tudo.

– Dê a ordem, Rory – disse osubcomissário.

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– Daniel Davidson – disse Alleyn –,está preso pelo homicídio de LordRobert Gospell, e aviso-o…

7 Termo ofensivo utilizado para designar italianos,espanhóis e portugueses. (N. do T.)

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CAPÍTULO 30

CONFISSÕES DE AGATHATROY

– Pensei que gostaria de ficar asaber imediatamente, Mildred – disseAlleyn.

Lady Mildred Potter abanou acabeça, não tanto em desacordo masmais numa espécie de desalento geral.

– Ainda bem que veio, Roderick.Mas simplesmente não posso acreditar.Sir Daniel sempre foi encantador paraos dois. O Bunchy gostava muito dele.Ele disse-mo. E não há dúvida de queSir Daniel fez maravilhas com a minha

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indigestão. Praticamente a curou. Tema certeza de que não está enganado?

– Absoluta, infelizmente, Mildred.Sabe, o Dimitri confessou que oDavidson manteve uma espécie deparceria infame com ele durante seteanos. O Davidson sabia algo sobre oDimitri, para começar. Foiprovavelmente assim que eleconseguiu exercer o seu domínio sobreo Dimitri. O Davidson tem sidoextremamente cuidadoso. Encontrou ainformação, mas deixou o Dimitrirealizar o trabalho prático. ODavidson viu a gaveta aberta e a cartano escritório do Carrados. O Davidsoninterrompeu a cena entre o Carrados ea Bridget. Teve o cuidado de nunca ser

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deixado sozinho no escritório, masfalou ao Dimitri na gaveta secreta einstruiu-o sobre como roubar a carta.Disse-lhe que poderia haver algointeressante ali. O Dimitri fez todo otrabalho sujo. Recolheu as carteirasdas senhoras chantageadas. Escreveuas cartas. Às vezes, tinha as ideias. Acaixa de joias de Mrs. Halcut-Hackettfoi uma das suas mais brilhantesinspirações.

– Estou completamente perdida,Roderick. Troy, querida, entende?

Alleyn olhou para Troy, sentada nochão aos pés de Mildred.

– Acho que começo a entender –disse Troy.

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– Bem, continue, Roderick – disseMildred tristemente.

– Havia três coisas que eu nãoconseguia encaixar no padrão – disseAlleyn, e falou mais para Troy do quepara Mildred. – Ao princípio, penseique se o Dimitri ouviu o telefonema,tinha um motivo esmagador. Nóssabíamos que ele era um chantagista esabíamos que o Bunchy estava no seuencalço. Mas descobrimos que oDimitri literalmente não poderia tercometido o homicídio. O seu álibiimpôs-se e confirmou-se.

«O Withers é má rês, e o Bunchytambém sabia disso, mas de algumaforma, eu não conseguia ver o Withers

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como o assassino. Ele é duro,desconfiado e completamentedestituído de escrúpulos. Se algumavez cometesse um assassínio seriadeliberadamente e com premeditação.Seria tudo trabalhado até ao últimosegundo. Acreditamos que este casonão foi premeditado até duas horas emeia antes da sua execução. Aindaassim, tinha de considerar o Withers.Havia uma lacuna no seu álibi. Agorasei que ele passou essa lacuna apassear o seu joguete no carro, paradiscutir uma situação que se tornaracrítica. Foi aqui que entrou, e maisuma vez imploro o vosso silêncio,porque eu certamente não deveria falarsobre isto, o velho general Halcut-

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Hackett como um arlequim idoso aserpentear no nevoeiro de BelgraveSquare, no momento crucial, quando osconvidados deixavam Marsdon House.Ele, é claro, estava à procura da suamulher. Em seguida, chegou a vez deCarrados. O velho Carrados é umchatarrão de primeira. O seu álibi, quese sobrepunha ao do Dimitri, erasólido, mas o seu comportamento eramuito mau. Só depois de ter ouvidofalar de um incidente ocorrido hádezoito anos consegui encaixá-lo nopadrão. E durante todo esse tempohavia três coisas acerca do Davidsonpara as quais só existia uma únicaexplicação. Ele disse-me que viu uma

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certa cigarreira no quarto verde, cercadas onze e meia. Não mais tarde doque isso, quase de certeza.Descobrimos que a cigarreira emquestão só esteve nesse local durantequatro minutos, cerca da uma hora,altura em que a conversa telefónicaocorreu. Porque haveria o Davidson dementir? Ele pensou que a cigarreirafazia parte da coleção de MarsdonHouse, não percebeu que erapropriedade pessoal de um dosconvidados. Declarou enfaticamenteque não ouviu a conversa e certamentenão voltou ao quarto depois das onze emeia. Mas há um ponto curioso sobre aconversa telefónica. O Bunchy disse-me: ‘Mais valia misturar veneno nas

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cervejas.’ O Davidson deve ter ouvidoesta frase porque ela foi dita poucoantes de o Bunchy cortar a ligação. OBunchy estava a falar do Dimitri, éclaro, mas acredito que o Davidsontenha pensado que se referia a ele. Afrase interrompida: ‘com engenhodiabólico’, ou algo deste tipo. ODavidson provavelmente pensou que apróxima palavra que Bunchy iria dizerseria o seu nome. É estranho, não é?

«Quanto à figura que Miss Harris viuatrás do painel de vidro, era semdúvida o Davidson. De cabeçaperdida, ele deve ter irrompido pelaporta mais próxima e lá, suponho,recompôs-se e decidiu matar o Bunchy.

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«Depois, há a outra cigarreira.»Alleyn olhou para Lady Mildred. A

sua cabeça acenava, como ummandarim. Voltou-se para Troy e falouem voz baixa.

– Refiro-me à arma. Na manhãseguinte ao crime, pedi para ver acigarreira do Davidson. Ele mostrou-me uma que era certamente demasiadopequena para o trabalho e afirmou queera a que tinha levado na noiteanterior. Notei que estava imaculada,inspecionei-a com todo o cuidado eencontrei vestígios de pó de limparpratas na cinzelagem dos ornamentos.Descobrimos que as cigarreiras doDavidson foram limpas na manhã

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anterior ao baile e ninguém lhes tocaradepois do baile. Pareceu-me queaquela cigarreira não fora de todousada. Brilhava como um espelho e euseria capaz de jurar que não tinha sidousada desde que fora colocada nobolso. Era um pouco arriscado, masparecia que ele estava a mentir quandodisse que era a cigarreira que levou aMarsdon House. E depois havia acondição… a Mildred adormeceu?

– Sim – disse Lady Mildred. –Importa-se muito, querido Roderick, seeu for para a cama? Nunca vouentender, sabe, e estou realmente muitocansada. Acho que a tristeza é uma dascoisas mais cansativas, não é? Troy,minha querida, cuide do pobre

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Roderick. O Donald vai chegar tarde enão sei onde ele está agora.

– Acho que foi levar a BridgetO’Brien a casa – disse Alleyn, abrindoa porta a Mildred. – A Evelyn e omarido queriam ficar sozinhos e oDonald estava na sala de espera comum ar esperançado.

– Ele parece estar muito ligado a ela– disse Mildred, detendo-se na porta eolhando para Alleyn com lágrimas nosolhos. – Roderick, ela é uma boarapariga?

– Muito boa. Acho que ela vai tomarconta dele. Boa noite, Mildred.

– Boa noite.Alleyn fechou a porta atrás dela e

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voltou para junto de Troy.– Posso ficar um pouco mais?– Sim, por favor. Quero ouvir o fim.

– Troy olhou de lado para ele. – Tensolhos de lince! Para reparar nos grãosde pó de limpar prata na cinzelagem deuma cigarreira; é admirável. Em quemais reparaste?

– Reparei que, apesar de os teusolhos serem cinzentos, têm pequenasmanchas de verde e a íris é orlada depreto. Reparei que quando sorris, o teurosto fica torto. Reparei que o terceirodedo da tua mão esquerda tem umapequena mancha de vermelhão nointerior, onde um anel poderiaescondê-la; e a partir disso, MissTroy, deduzo que pinta óleos e que não

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sente tanto orgulho como deveria sentirdos seus dedos encantadores.

– Por favor, conta-me o fim do caso.– Prefiro contar-te que desde esta

tarde, nos poucos momentos de folgaque tive, considerei o teu caso e decidimandar pedir um mandado para a tuadetenção. A acusação que impendesobre ti é impedir um agente da lei daexecução do seu dever.

– Não sejas tão espirituoso – disseTroy.

– Está bem. Onde é que eu ia?– Tinhas chegado ao terceiro ponto

contra o Davidson.– Sim. O terceiro ponto foi o método

utilizado para cometer o crime. Acho

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que o Bunchy não se importaria sesoubesse que, mesmo enquantodescrevo o seu pobre corpo, penso namulher com quem estou a falar. E tu?Ele era uma pessoa tão compreensiva,não era, com a quantidade certa deironia? Tenho a certeza de que elesabia quão curta a primeira pontada datristeza realmente é se ao menos aspessoas o confessassem. Bem, Troy, ohomem que o matou sabia como erafácil asfixiar pessoas e não me pareceque muitos assassinos saibam disso. Aúnica verdadeira marca de violênciafoi a cicatriz deixada pela cigarreira.Um médico iria perceber a poucaquantidade de força necessária e omédico do Bunchy saberia que teria um

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grande aliado num coração fraco. ODavidson contou-me sobre o estado docoração, porque sabia que eu iriadescobrir que ele examinou o Bunchy.Manteve a calma maravilhosamentequando eu o interroguei, este SirDaniel. Ele é muito inteligente.Estamos a fazer uma busca na casadele esta noite. O Fox está lá agora.Acho que não vamos encontrar nada,exceto, talvez, a cigarreira letal, masestou mais esperançado na secretáriado Dimitri. Ontem não pude tratardisso.

– E a capa e o chapéu?– Isso leva-nos a um episódio muito

curioso. Andamos à procura da capa e

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do chapéu desde as quatro horas damanhã de ontem e não os encontrámos.Cumprimos a nossa rotina habitual, dara volta a todos os caixotes do lixo eassim por diante, e tambémnotificámos os escritórios do serviçode encomendas postais. Esta tarde,tivemos notícias de uma encomendaque foi deixada no escritório principaldo distrito ocidental durante a hora deponta de ontem. Tinha selos a mais eera dirigida a algum lugar na China. Acaligrafia era em letra de imprensa,que era o meio de expressão favoritodo nosso chantagista. A encomendadesapareceu, infelizmente, mas achoque existe uma hipótese de alocalizarmos. É uma hipótese muito

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remota. Agora quem é provável quetenha um suprimento ilimitado de selosde dois pence, minha menina?

– Alguém que passa recibos?– Raios me partam se não é uma

menina inteligente. Tens razão, comode costume. E quem deve passarrecibos a não ser Sir Daniel, o médicoda moda? Quem senão ele?

– O Dimitri, por exemplo.– Lamento dizer que é perfeitamente

verdade, querida. Mas quando euestava na sala de espera do Davidson,vi várias dessas coisas que acho quese chamam folhetos ilustrados.Apelavam à dádiva de roupas velhaspara a Missão Médica na China

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Central, sabe Deus onde. É nossaintenção, minha querida Troy, obter umdesses folhetos e escrever para aMissão da China Central a solicitarmais informações.

– Acho que pode resultar –murmurou Troy.

– Também eu, podes apostar. Háoutro ponto que foi gentilmenteelucidado pelo choroso Dimitri. Estamanhã, ele mandou o criado particularcomprar o Times. Quando soubemosdisso, também tivemos de olhar para oTimes. Encontrámos o aviso na colunade anúncios pessoais de que faleiquando a pobre Mildred estava a tentarnão adormecer, e antes de te poderdizer quanto gosto da maneira solene

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com franzes a testa quando me escutas.Agora, o anúncio dizia assim:«Coração Doce. Figos inteirosquebraram umbigo. Enfaixado. Quandoumbigo estiver. Tudo ótimo. DonoDedicado.» Uma confusão, pensámos,e percebemos à nossa maneirabrilhante que as letras iniciais queriamdizer «CD. Fique quieto. D.D.» quepode ser uma elaboração não muitocaprichosa de «Colombo Dimitri, fiquequieto, Daniel Davidson.» E, de facto,Mr. Dimitri confessou este expedientepouco imaginativo. Foi combinado,disse ele, para o caso de aconteceralguma coisa desagradável,inesperada. O Davidson comunicaria

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com o Dimitri precisamente dessamaneira. Foi uma coisa pobre, mas SirDaniel não tinha muito tempo. Ele devetê-lo composto assim que chegou acasa após o trabalho da noite. Maisalguma coisa?

– E quanto ao Dimitri e ao Withers?– Foram levados para a sala de

comando, e devidamente acusados. Umde chantagem, o outro de gestão deuma casa de jogo ilegal. Explico-te acasa de jogo noutra altura. Sãoindivíduos extremamentedesagradáveis, mas se o Dimitri nãotivesse sido um sujeito tãodesagradável, não teríamos tidohipótese de o assustar a ponto de ofazer contar toda a história sobre o

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Davidson. Eu joguei com isso, e meuDeus, Troy, era uma aposta arriscada.

– O que teria acontecido se o Dimitrise tivesse mantido calmo, embora eleachasse que ias prendê-lo porhomicídio?

– Tê-lo-íamos detido por chantagem,e teríamos de continuar com oDavidson usando aquilo que tínhamos.Mas o Dimitri percebeu que o caso erasólido na acusação de chantagem. Elenão tinha nada a ganhar em proteger oDavidson.

– Achas que ele realmente sabe queo Davidson executou o assassínio?

– Acho que vamos descobrir que oDavidson tentou avisá-lo para que não

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recolhesse a carteira da EvelynCarrados no baile. O Davidson viu queo Bunchy estava com a Evelyn, quandoa Bridget voltou com a carteira pelaprimeira vez.

– Não me falaste disso.Alleyn pô-la ao corrente.– E não é que cheguei ao fim? –

disse.– Sim. Isso é tudo.– Troy, eu amo-te mais do que

qualquer coisa na vida. Tentei ahumildade, Deus sabe que eu souhumilde. E tentei o descaramento. Senão me podes amar, diz-mo, e porfavor, não nos vamos encontrar mais,porque não consigo estar contigo amenos que seja para te amar.

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Troy levantou um rosto branco eolhou solenemente para ele.

– Finalmente tomei uma decisão –disse ela. – Não poderia não o fazer.

– Querida, querida Troy.– Amo-te. Amo-te verdadeiramente.– Maravilha do mundo! – exclamou

Alleyn, e tomou-a nos braços.

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EPÍLOGO

Por um caminho de terra batida

queimado pelo sol que atravessava amais remota de todas as aldeias daMissão Médica Chinesa, no Norte daManchúria, caminhava um chinês baixoe anafado. Era seguido por seisrapazinhos em cujos rostos se via umaexpressão de devoção enlevada e amais animada inveja. Se o seu rosto epernas fossem visíveis, ter-se-ianotado que o suor escorria por elesprofusamente. Mas o seu rosto estavaescondido por um chapéu preto, e aspernas pelas dobras volumosas de uma

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capa de espadachim. Havia glória nosseus passos.

No escritório da receção da missão,um jovem inglês cansado olhou comperplexidade para um telegrama com adata do mês anterior. Fora enviado apartir da sede e fizera a ronda damaioria das aldeias. O telegrama erada New Scotland Yard, em Londres.

O jovem inglês olhou fixamente pelaporta aberta para a pequena procissãono caminho batido pelo sol.