crônica "Nunca acreditei muito"

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De bons conselhos o inferno tá cheio Aldo Maranhão Nunca acreditei muito que as pessoas mudassem lendo um livro. Os poucos livros que li foram somente para passar nas provas e fazer os seminários da faculdade. É porque eu sou do tempo da televisão. Desde que me lembro, qualquer coisa que faz sentido tem que ter voz e tem que ter imagem. Minha mãe conta que quando dei o alarme que ia nascer ela tava assistindo a novela e foi bem na hora que a santinha era beijada pelo filho do demo. Então desde meu nascimento, som, imagem e movimento fazem parte da minha vida, já os livros, não. Mas como tudo muda e nossas concepções estão sempre à prova, há algum tempo atrás me perguntaram qual foi o ultimo livro que li. E quem disse que eu lembrava? Gaguejei, soltei um básico, “nem lembro direito mas acho que foi...” e engatei pra o ultimo filme que assisti. Sim, porque quase sempre os filmes são de livro, né? “Gravidade!” Respondi na bucha. E a criatura do outro lado me lança um olhar suspeitíssimo e tasca a perguntar quem foi o autor? Você leu o roteiro foi? Ou foi o livro? Tem um livro com esse nome?” ... A essa altura, eu já desconcertadíssimo, quase desmascarado e querendo que a Sandra Bullock caísse na cabeça dela, devolvi um você assistiu? Gostasse?... Pronto. A criatura pegou gosto e tome a falar de George Clooney, e foi se empolgando e graças a Deus começamos a falar só de filmes... Mas isso me deixou inquieto. Antigamente esse negócio de livro era coisa de intelectuais assexuados, cdf, revoltados... Agora parece que todo mundo normal anda com um livro. Outro dia mesmo uma menina tava lendo um livro no ônibus Camaragibe/Derby, e não era apostilas de concurso não, viu, era um livro mesmo, desses de amor e sexo. Pelo menos eu acho que era, o título era alguma coisa assim de a paixão do segundo gh, ou coisa parecida... Mas então. Decidi que era na hora de começar a ler livros! E me danei pra uma livraria. Corrigindo, livraria não, supermercado de livros, porque a livraria dali do Paço 1

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Crônica escrita para laboratório de curso de teatro.

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De bons conselhos o inferno tá cheio

Aldo Maranhão

Nunca acreditei muito que as pessoas mudassem lendo um livro. Os poucos livros que li

foram somente para passar nas provas e fazer os seminários da faculdade.

É porque eu sou do tempo da televisão. Desde que me lembro, qualquer coisa que faz sentido

tem que ter voz e tem que ter imagem. Minha mãe conta que quando dei o alarme que ia

nascer ela tava assistindo a novela e foi bem na hora que a santinha era beijada pelo filho do

demo. Então desde meu nascimento, som, imagem e movimento fazem parte da minha vida,

já os livros, não.

Mas como tudo muda e nossas concepções estão sempre à prova, há algum tempo atrás me

perguntaram qual foi o ultimo livro que li. E quem disse que eu lembrava? Gaguejei, soltei

um básico, “nem lembro direito mas acho que foi...” e engatei pra o ultimo filme que assisti.

Sim, porque quase sempre os filmes são de livro, né? “Gravidade!” Respondi na bucha. E a

criatura do outro lado me lança um olhar suspeitíssimo e tasca a perguntar quem foi o autor?

Você leu o roteiro foi? Ou foi o livro? Tem um livro com esse nome?” ... A essa altura, eu já

desconcertadíssimo, quase desmascarado e querendo que a Sandra Bullock caísse na cabeça

dela, devolvi um você assistiu? Gostasse?... Pronto. A criatura pegou gosto e tome a falar de

George Clooney, e foi se empolgando e graças a Deus começamos a falar só de filmes...

Mas isso me deixou inquieto. Antigamente esse negócio de livro era coisa de intelectuais

assexuados, cdf, revoltados... Agora parece que todo mundo normal anda com um livro.

Outro dia mesmo uma menina tava lendo um livro no ônibus Camaragibe/Derby, e não era

apostilas de concurso não, viu, era um livro mesmo, desses de amor e sexo. Pelo menos eu

acho que era, o título era alguma coisa assim de a paixão do segundo gh, ou coisa parecida...

Mas então. Decidi que era na hora de começar a ler livros!

E me danei pra uma livraria. Corrigindo, livraria não, supermercado de livros, porque a

livraria dali do Paço Alfândega mais parece um supermercado de livro de tão grande que é.

Mas eu já sabia o que eu queria. Se era pra falar de livro eu tinha que comprar o que fosse

estouro de bilheteria né? O mais assistido, quer dizer, o mais vendido.

E tinha logo no meio uma gondola (será que eles chamam de gôndola também?) Enfim, no

meio da livraria estavam ali, os mais vendidos! E o mais vendido dos mais vendidos nem era

tão grosso, assim dava menos de dois centímetros de largura! O nome do livro era “O que

procurar quando se quer ajuda: um passo à frente”. 32 reais! Comprei!

E todo feliz, saí, com o nome da livraria estampado na sacola bem à mostra. Cultura! Rodei

pelo Recife Antigo, depois rodei de novo, me sentindo o máximo com aquela sacola ali da

livraria e o povo olhando e deviam também tá com inveja. Cultura!

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Fim do dia, pego o ônibus de volta pra casa. Em pé, ônibus lotado, tiro o livro pra começar a

ler. Claro que desisti na primeira freada que o motorista deu e quase dou com a cara no chão,

num fosse tá tão espremido no ônibus.

E ainda lasquei o livro na cabeça de uma senhora que me foi logo perguntando se eu tava

doido.

Decidi iniciar minhas aventuras leitoreiras em casa. Foi melhor. O livro era excelente. Não

tive dificuldade nenhuma de entender, tudo tão simples tão fácil, as palavras tal qual a gente

usa no dia a dia, nada cheio de frescura. O livro falava sobre nossas vidas e sobre como

buscar ajuda para melhorar. A gente respondia vinte perguntas no final de cada capítulo e ele

dizia que tipo de ajuda se precisava, até mesmo se não precisava de nenhuma.

Essa parte eu não gostei muito mas foi importante. Ao responder os questionários dos sete

capítulos, minhas respostas apontavam que eu precisava de ajuda em seis aspectos da minha

vida: profissional, amoroso, social, financeiro, sexual e espiritual. Eu só não precisava de

ajuda no primeiro capítulo que era justamente o que mandava comprar o livro pra saber se eu

precisava de ajuda. Graças a Deus que eu já tinha comprado o livro, pelo menos em um ponto

eu já tava bom...

E eu segui firme em meu propósito. Eu agora era um homem de leitura, eu lia e muito em

breve eu ia ser uma pessoa completa, sem precisar inventar nomes de livros. E pensar que

esse tempo todo eu não tinha me dado conta de que eu era incompleto. Abençoada Sandra

Bullock que me trouxe pra esse mundo dos livros.

E fui comprar o primeiro livro de ajuda que o livro de ajuda me indicou: “Como tornar-se um

sucesso: o segredo da sua vida profissional”.

Olhe, li esse livro todinho, ele dizia coisas maravilhosas, ensinando como escolher a carreira.

Pra gente fazer o que gosta porque quando se faz o que gosta a vida é mais prazerosa e o

tempo conspira ao nosso favor. Meus Deus, quanta coisa profunda! Porque muitas pessoas

não fazem o que gostam! E o livro ensina a pensar positivo quando se faz o que não gosta

porque também pode ser feliz na vida profissional fazendo o que não se gosta, o segredo é

fazer o que não se gosta pensando que gosta e mentalizar que gosta do que não gosta, aí o

sucesso vem.

Eu fiquei na dúvida. Será que eu faço o que eu gosto? Essa dúvida me consumiu por umas

duas semanas... Eu estava ficando muito impressionado pra descobrir se eu estava fazendo o

que gosto e óbvio que precisava de ajuda para descobrir se faço o que gosto.

Como agora eu era um leitor, eu só precisava de um livro pra me ajudar a descobrir se eu faço

o que gosto. E achei. Tava ali também na prateleira dos mais vendidos: “Você faz o que

gosta?: identificando o gostar diário”

Uma revelação! Isso mesmo. Esse livro foi uma revelação. Meu Deus eu nunca tinha

percebido que quando a gente faz o que gosta a pele fica mais brilhante, a comida não

engorda, a segunda-feira tem cara de domingo e ficamos felizes de comer pizza de rúcula ao

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lado das pessoas amadas porque o sabor da pizza não é importante, mas com quem você está

comendo a pizza. Deeeeuss, como eu era infeliz porque eu vivia fazendo coisas de que não

gosto. E tinha que tomar uma atitude. E tomei!

Fui lá no emprego e disse a meu chefe que nunca mais ia fazer coisas que não gosto e pra

começar não queria mais estar naquele emprego porque minhas segundas-feiras nunca

tiveram cara de domingo, exceto quando era feriado, mas isso não contava! E eu estava gordo

e acima do peso e nunca gostei de pizza de rúcula. E pedi demissão.

E decidi emagrecer. E fiz o que? Claro, comprei um livro maravilhoso “Coma e seja feliz: as

calorias da alegria”.

Vocês não vão acreditar, mas esse livro dizia tudo tudo tudo tudo que eu precisava ouvir

naquele momento: a gente pode comer de tudo que não engorda porque o que engorda é a

falta de mobilidade do corpo. Isso mesmo. Nós somos animais que nascemos para ter

mobilidade então, sem mobilidade, o corpo reclama aumentando o peso, aí temos que voltar à

época das cavernas em que tínhamos que caçar e mudar sempre de lugar pra se movimentar e

gastar a energia que a falta de mobilidade armazena. Mas não dá pra voltar no tempo né? Por

isso “Coma e seja feliz: as calorias da alegria” ensina como: basta trocar as atividades por

outras.

Por exemplo, se para comer carne tínhamos que caçar, no tempo das cavernas, agora não

precisa caçar, basta dar duas voltas completas em qualquer hipermercado. Isso para cada bife

do tamanho de punho! Se for dois bifes, quatro voltas... E por aí vai.

Para cada coisa que comemos basta pensar em nossos ancestrais das cavernas, o que eles

fariam para conseguir esse alimento?... Muito fácil! Às vezes parece difícil porque tem coisas

que não tinham no tempo das cavernas como coca-cola, mas aí você pensa, coca-cola vem da

coca, coca tem que plantar, plantar tem que arar, então pra cada coca-cola que se toma a gente

da uma volta no parque, como se tivesse arando. Me diga, num é fácil?

Pessoal, vocês podem não acreditar, mas eu estava feliz! Muito feliz! Nunca antes tinha me

sentido tão feliz; e só fazendo o que gosto!

Essa minha felicidade era tanta que eu tinha até medo dela acabar. Era um medo sem

explicação, que foi me tirando o sono, me inquietando... E eu tinha que fazer alguma coisa.

Claro né?! Fui na livraria, que tinha a resposta pra tudo. “A ansiedade do medo: como

exterminá-los”. Comprei! Quer dizer, tentei comprar...

Chego no caixa, gentilmente a balconista me diz “o senhor deve estar tendo algum problema

com a senha pois não foi autorizado, vou tentar de novo”.

A essa altura meu medo já era pavor! Acabou-se o limite de crédito? Como? O mês tava só

começando, todas minhas contas são debito automático, como assim? Fui assaltado. Ah meu

Deus, invadiram minha conta! Isso, tinham invadido minha conta pela internet. Os Black

Bloc tinham feito um protesto com o meu dinheiro. Invadiram e destruíram minha conta

bancária!!!

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E corro pra o banco né. Afobado. Não. Desesperado!!!

Procuro a atendente e me explico. Ela me manda procurar o gerente, aí de novo me explico e

digo que os Black Bloc invadiram minha conta e levaram meu dinheiro porque não pude

comprar meu livro porque não tinha autorizado porque meu saldo tava zeradinho da silva.

O gerente mexe pra lá, mexe pra cá, digita num sei que, digita de novo e pacientemente me

diz que o dinheiro que eu tinha na conta não deu pra quitar as despesas do mês, eu já tinha

usado tudo que estava disponível na poupança, explicando que há cinco meses não entrava

nenhum dinheiro na conta, só saía, e agora não tinha mais...

(É Dilma... Não foram os Black Bloc... )

Meu Deus! Sem dinheiro! Como ia pagar água, luz, internet, gás, livraria. E meu querido

livro “A ansiedade do medo: como exterminá-los” como ia comprar? Meu medo, que virou

pavor, que virou desespero, agora desilusão.

E EU PRECISAVA ME AJUDAR COM O LIVRO DE AUTO-AJUDA! E COM

URGENCIA!

Fiquei sem rumo. Podia ficar sem dinheiro mas como abrir mão da ajuda magica e poderosa

do meu livro “a ansiedade do medo: como exterminá-los”? Impossível.

Ia ler na livraria, isso mesmo, cada dia eu lia um pedacinho.

Mas como ia anotar as coisas no livro, grifar, responder os testes? Não. Definitivamente ler

na livraria não era solução.

E fui ficando triste, sem vontade de sair, de falar, de comer, de tomar banho, de ver Graça

Araújo meio-dia e caí numa depressão profunda que durou infinitos dois dias!

Depois de dois dias me levantei e resolvi dar a volta por cima.

Ia começar contando pra todo mundo que essa historia de ler num é coisa que preste não.

Mas pensei melhor. Achei que devia partilhar minhas experiências com as pessoas. Dizer a

todo mundo o que senti. Compartilhar. E escrevi um livro que também tem dois pontos no

título, “Além da autoajuda: porque de bons conselhos o inferno tá cheio”.

Pois é. Meu livro está há mais de 54 semanas na lista dos mais vendidos da Veja. Já foi

traduzido para mais de 50 idiomas e recentemente abri a feira de livros de Frankfurt. Lá na

Alemanha!

Então, posso dizer de verdade que ler mudou minha vida. E que realmente, livros de

autoajuda ajudam muuuuuito e muito bem.

E quando sair daqui, pense positivo, tenha uma meta na cabeça e dinheiro no bolso para

comprar meu livro “Além da autoajuda: porque de bons conselhos o inferno tá cheio”.

Se sua vida vai mudar? Isso eu não sei... Mas a minha...

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