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  • lcool e outras drogas

  • CRP SP | XIII Plenrio (2010-2013)

    DIRetoRIa

    Presidente Carla Biancha Angelucci

    Vice-presidente Maria de Ftima Nassif

    Secretrio Luis Fernando de Oliveira Saraiva

    Tesoureira Gabriela Gramkow

    ConSelheIRoS efetIvoS

    Ana Ferri de Barros, Carla Biancha Angelucci,

    Carolina Helena Almeida de Moraes Sombini,

    Fernanda Bastos Lavarello, Gabriela Gramkow,

    Graa Maria de Carvalho Cmara, Janana Leslo

    Garcia, Joari Aparecido Soares de Carvalho,

    Leandro Gabarra, Luis Fernando de Oliveira

    Saraiva, Maria de Ftima Nassif, Maringela

    Aoki, Maria Orlene Dar, Patrcia Unger Raphael

    Bataglia, Teresa Cristina Lara de Moraes.

    ConSelheIRoS SuPlenteS

    Alacir Villa Valle Cruces, Cssio Rogrio Dias

    Lemos Figueiredo, Jos Ricardo Portela, Lilihan

    Martins da Silva, Luiz Eduardo Valiengo Berni,

    Luiz Tadeu Pessutto, Marilia Capponi, Marly

    Fernandes dos Santos, Rita de Cssia Oliveira

    Assuno, Roberta Freitas Lemos, Rosana Cathya

    Ragazzoni Mangini, Teresa Cristina Endo.

    GeRente GeRal

    Digenes Pepe

    CooRDenao De ComunICao

    Christiane Gomes

    oRGanIzao DoS teXtoS

    Bruno Ramos Gomes,

    Christiane Gomes, Ftima Nassif

    e Marilia Capponi

    RevISo

    Estela Maria Carvalho

    PRojeto GRfICo

    Fonte Design

    C744p Conselho Regional de Psicologia da 6 Regio (org).

    lcool e Outras Drogas./ Conselho Regional de Psicologia da 6 Regio. So Paulo: CRPSP, 2011. 142f.; 23cm.

    Bibliografia ISBN: 978-85-60405-19-0

    1. lcool 2.Drogas 3.Criminologia 3. Dependncia-Tratamento 4. Psicologia I. Titulo CDD 613.83

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA POR: VERA LCIA R. DOS SANTOS BIBLIOTECRIA - CRB 8 REGIO 6198

  • lcool e outras drogasSo Paulo | 2012 | 1 Edio

  • Apresentao

    No momeNto em que a regulameNtao da Psicologia como profisso com-pleta 50 anos no Brasil, o Conselho Regional de Psicologia de So Paulo, reafirmando seu compromisso social, inaugura o selo EM DEBATE, que nasceu da necessidade de divulgao de posicionamentos contra-hege-mnicos sobre temas prioritrios e candentes na sociedade.

    O Sistema Conselhos de Psicologia, composto pelo Conselho Federal e os Conselhos Regionais, constitui-se como autarquia, responsvel por orientar, regulamentar e fiscalizar o exerccio profissional.

    Com o selo EM DEBATE, o CRP SP enfatiza um importante eixo de suas atribuies: a construo de referncias para a atuao profissional do (a) psiclogo (a) em temas que demandam aprofundamento das discus-ses, seja por envolverem disputa de vises e modelos de ateno, por mobilizarem a opinio pblica, ou por no terem a necessria visibili-dade. Estas referncias buscam romper com esteretipos, preconceitos, simplificaes e maniquesmos. Com isso, o CRP SP pretende firmar cada vez mais o protagonismo e a contribuio social da Psicologia, como ci-ncia e profisso.

    No por acaso a publicao lcool e Outras Drogas inaugura o selo EM DEBATE. No que se refere ao consumo de lcool e outras drogas, a discusso ainda atravessada pelo medo e pelo moralismo. preciso desconstruir mitos e abrir espao para reflexes que procurem ir raiz da questo, descortinando os interesses em jogo e analisando criticamente a efetividade dos modelos vigentes.

    A iniciativa do CRP SP em publicar este livro integra uma perspectiva histrica de consolidar diretrizes e delinear caminhos e possibilidades a serem seguidas, a partir da compreenso da singularidade do ser huma-no, enfrentando de maneira clara a complexidade presente na questo das drogas em nossa sociedade, considerando a influncia dos sistemas de valores e crenas presentes nos posicionamentos sobre este tema.

    O posicionamento assumido tanto pelo CRP SP, quanto por todo Sis-tema Conselhos, de que as polticas pblicas de sade para usurios (as) de lcool e outras drogas devem ser coerentes com os princpios da Reforma Psiquitrica, em que a internao o ltimo recurso e a von-tade do (a) usurio (a), como sujeito de direitos, deve ser considerada

  • e respeitada. Estas polticas devem ser necessariamente intersetoriais. Portanto, fundamental que investimentos pblicos sejam feitos nas diversas reas envolvidas, como Sade, Assistncia Social, Educao e Trabalho.

    Faz-se necessria tambm a criao de estratgias para o desafiador exerccio da interdisciplinaridade, o que s possvel por meio de refle-xo sobre os papis e os saberes de cada rea profissional envolvida.

    Ao () psiclogo (a), esperamos que a leitura dos textos traga sub-sdios relevantes para o exerccio profissional. sociedade, esperamos que contribua para a problematizao e adensamento do debate sobre o tema, bem como para o delineamento de novas estratgias de aten-o aos (as) usurios (as), garantindo o direito a projetos individuais e em acordo com os princpios antimanicomiais, com a universalizao do acesso s polticas pblicas e com o pleno exerccio cidadania.

    Maria de Ftima Nassif Vice Presidente do Conselho Regional de Psicologia de So Paulo

  • Sumrio

    9 introduo lcool e outras drogas: novos olhares, outras percepes

    Bruno Ramos Gomes e Marilia Capponi

    61 Crack e mdia: comunicao e propaganda na idade da pedra

    Rodrigo Alencar

    51 Drogas: Aspectos Jurdicos e CriminolgicosCristiano vila Maronna

    15 Drogas e Ser Humano: a preveno do possvelMarcelo Sodelli

    23 Drogas e SociedadeMnica Gorgulho

    35 Intervenes clnicas: o uso, abuso e dependncia de drogas

    Eroy Aparecida da Silva

    67 O enfoque na mudana de mentalidade como arma para suplantar o proibicionismo

    Jlio Delmanto e Marco Magri

    43 Mitos e dados epidemiolgicos a respeito do uso de drogas

    Elisaldo Lus de Arajo Carlini

  • 9 introduo lcool e outras drogas: novos olhares, outras percepes

    Bruno Ramos Gomes e Marilia Capponi

    75 Subjetividade e uso de drogasAblio da Costa-Rosa

    115 Drogas e Juventude: outro caminhoGabriel Medina

    35 Intervenes clnicas: o uso, abuso e dependncia de drogas

    Eroy Aparecida da Silva

    127 Reduo de DanosDenis Roberto da Silva Petuco

    139 Seis Faces de um CAPS ADAriane Cristine Custodio dos Santos; Daniel Vannucci Dobies;

    Fernanda Pastori; Flaviana Rodrigues de Sousa; Juliana

    Hernandes Correa e Viviane Marcondes Nagata

    109 O lugar da Poltica de Assistncia Social na ateno s pessoas que fazem uso abusivo de lcool e outras drogas

    Luciana Bolognini

    93 MeSA-ReDOnDA Polticas pblicas sobre drogas: situao atual, desafios e perspectivas

    Mrcia Aparecida Ferreira de Oliveira

    Adriana Barbosa Scrates

    Dcio de Castro Alves

    121 Reflexes sobre o trabalho com o outro a partir do fenmeno de jovens em situao de vulnerabilidade e de rua

    Claudio Silva Loureiro

    43 Mitos e dados epidemiolgicos a respeito do uso de drogas

    Elisaldo Lus de Arajo Carlini

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    Introduo

    lcool e outras drogas: novos olhares, outras percepes

    Bruno Ramos GomesPsiclogo e Mestre em Sade Pblica, coordenador e

    presidente do Centro de Convivncia de Lei e militante

    da reduo de danos e antiproibicionista. pesquisador

    ligado ao NEIP e ABESUP

    Marilia Capponi Militante Antimanicomial e Conselheira do CRP SP,

    trabalhadora da sade pblica - atualmente coordena

    o CAPS AD e supervisiona o Consultrio na

    Rua de Embu das Artes.

    esta publicao foi coNcebida a partir de uma leitura crtica do panorama atual que cerca o fenmeno do uso/abuso de substncias psicoativas, principalmente as ilcitas. Nos ltimos dois anos, temos visto uma re-tomada da discusso em torno do uso de drogas, principalmente do emergente e, antes localizado, crack. A constante apario deste debate acontece na mdia, que tem alardeado a situao de forma distorcida, e tambm nas campanhas eleitorais, nos discursos de polticos e na defini-o de estratgias de ao e de polticas pblicas. Ao mesmo tempo em que se reacende a discusso sobre o assunto, surpreendente o quo superficial e cheia de preconceitos ela est acontecendo, como se no ti-vssemos nunca lidado com o uso de drogas na histria da humanidade.

  • O debate acerca do uso ou abuso de lcool e drogas ganhou fora no ano de 2011, tendo sido noticiado pelos grandes meios de comunicao de forma estritamente parcial. Nesse mesmo ano houve o lanamento oficial da poltica nacional de ateno aos usurios de lcool, crack e outras drogas, o chamado Plano de Enfrentamento ao Crack, que tem gerado inmeras preocupaes em movimentos e entidades que traba-lham e militam nos campos da reduo de danos, luta antimanicomial, direitos humanos e direitos de crianas e adolescentes. O Plano Crack, como ficou conhecido, contm elementos que desrespeitam avanos j consolidados nas polticas pblicas do pas e traz ameaas aos direitos humanos e sociais dos usurios quando prope a incluso das comuni-dades teraputicas instituies religiosas que trabalham na lgica da moralidade e da segregao e a possibilidade do uso de internaes involuntrias e compulsrias como centralidade de tratamento.

    Um olhar mais atento percebe o quanto a questo est conectada com muitos outros interesses dos que formulam as polticas pblicas. Na cidade de So Paulo, uma das sedes da prxima Copa do Mundo de 2014, as respostas-solues com relao ao uso e abuso de drogas tm servido a interesses privados, como a especulao imobiliria e a priva-tizao das polticas pblicas.

    J no comeo de 2012, as cenas vivenciadas no centro de So Paulo mostraram a violncia policial contra usurios de drogas, em sua maio-ria populao de rua, e internaes involuntrias e compulsrias des-sas pessoas em comunidades teraputicas. Na regio conhecida como Cracolndia, assistimos ao de um efetivo policial com mais de 250 homens agindo violentamente contra pessoas desarmadas, vulnerveis e com srios problemas de sade. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, des-de maio de 2011 aes constantes de internaes e abrigamentos com-pulsrios de pessoas (adultos e crianas) apenas por aparentar serem usurios de crack em situao de rua, so feitas de forma totalmente desrespeitosa constituio e aos direitos dessas pessoas. Essas pes-soas so levadas a espaos de segregao com equipes e infraestruturas precrias e que j receberam denncias de diversos rgos municipais, estadual e federal quanto ao tipo de tratamento que ofertam.

    Ao mesmo tempo em que pesquisa feita pelo instituto Datafolha mostra que os moradores de rua dos centros de grandes capitais so os excludos dos excludos, pesquisas do mesmo instituto mostram que 90% da populao a favor de que se interne fora estas pessoas; e 82% delas concordam com a ao violenta nas cracolndias. O que est acontecendo? Por que este apoio popular a aes to brutais, desrespei-tosas e, acima de tudo, inefetivas?

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    Ao prestarmos ateno ao que veiculado na mdia diariamente so-bre o uso de drogas, a impresso que se tem que a situao mostra-se como uma epidemia: extremamente grave, perigosa e que exige aes rpidas e enrgicas, sob o temor de que o pas seja dominado pelos usu-rios dessa droga, denunciando grave problema de fundo essencialmen-te social. Em situaes de emergncia se formulam respostas rpidas e o debate democrtico, no qual diversos atores sociais tm legitimidade de pensamento e intervenes, no permitido.

    Frente a isso, tem sido deixado de lado o que j havia sido constru-do com relao s polticas pblicas, principalmente ao que se refere Reforma Psiquitrica Brasileira. Ainda no temos uma rede substitutiva de sade mental totalmente implementada. Enquanto isso, vemos o in-vestimento pblico em instituies de cunho religioso, que haviam sido vetadas nas ltimas Conferncias de Sade Mental (2010) e de Sade (2011). Mais grave que defender a excluso escolh-la, quando j se apostou na construo de prticas e polticas pblicas libertrias e cida-ds. Ao proporcionar a banalizao da internao contra a vontade do usurio, se liberou uma nova ordem de violncia contra as populaes mais vulnerveis. Os usurios das chamadas cracolndias, esquecidos por l durante mais de 20 anos, precisam, de repente, ser freados em seu vcio, custe o que custar, numa reedio do higienismo social prati-cado no sculo XIX.

    O crack, por exemplo, apresentado como droga que cria dependn-cia j em seu primeiro uso. Uma substncia que faz com que a pessoa rapidamente abandone sua rotina e comprometa suas relaes pessoais em nome desse uso, o que a levar morte, pois seria quase imposs-vel larg-la. So constantes tambm reportagens mostrando a formao de cracolndias por todo o pas, usurios no meio rural e em cidades de menos de 10 mil habitantes, pintando um quadro apavorante e sem controle. O usurio mostrado como um zumbi, algum que no mais senhor de si, no tem mais juzo ou vontade, sendo perigoso por fazer de tudo em nome de mais uma pedra ou mais um trago. As estimativas sobre a expanso desse uso so muito variadas, indo de 600 mil a 3 milhes de dependentes. Porm o mais surpreendente a um olhar um pouco mais atento , na verdade, a quantidade de estimativas, suposi-es e, principalmente, falta de informao que se tem sobre esse uso. Praticamente nenhuma das informaes acima tem embasamento: so apenas suposies e mitos.

    Enquanto no ltimo levantamento do CEBRID (Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas), de 2005, o crack aparece como tendo sido usado apenas por 0,3% da populao, o lcool surge como sendo consu-

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    mido por 74% da populao brasileira. A estimativa de dependentes de lcool no Brasil chega a 12%. Apesar dessas diferenas to discrepantes entre a incidncia do uso de lcool e do crack, pouco se fala sobre a questo do lcool como grave problema de sade pblica e no vemos nenhum movimento urgente para reduzir seu uso.

    O debate sobre as drogas envolve questes ticas e polticas. Faz-se uma escolha quando decide-se tratar o uso do crack com aes policiais violentas e tratamentos compulsrios e no proporcionar o cuidado do usurio no territrio. tambm uma escolha de toda a sociedade aprovar esta escolha e ver o uso ou abuso do lcool como culturalmente aceito e visto de forma despreocupada e condescendente. Que tipo de sociedade estamos construindo?

    Frente a esse panorama em que o desconhecimento sobre o uso de drogas lcitas e ilcitas no Brasil est encoberto por concepes simplis-tas e carregadas de moralidade que se pensou esta publicao.

    Os textos apresentados despertam a reflexo e promovem o debate sobre o assunto, j que abordam formas diferentes de olhar o fenmeno e apresentam novas prticas de cuidado em diversas reas.

    O texto Drogas e Ser Humano: A preveno do possvel pensa a pre-veno a partir de uma perspectiva no unicamente absentesta. Seis faces de um Caps-AD nos apresenta a experincia do trabalho cotidiano de um CAPS-AD a partir de relatos de casos. J o texto Crack e mdia: comunicao e propaganda na idade da pedra, reflete a mdia e a pro-paganda, retratando o uso de drogas, do crack principalmente, e suas implicaes na sociedade. No texto O lugar da Poltica de Assistncia So-cial na ateno s pessoas que fazem uso abusivo de lcool e outras dro-gas, a autora traz questes relacionadas ao uso de drogas e como isso est presente no mbito SUAS. Reflexes sobre o trabalho com o outro a partir do fenmeno de jovens em situao de vulnerabilidade e situao de rua, o autor, a partir de sua experincia com crianas e adolescentes em situao de vulnerabilidade social que fazem uso de drogas, discute suas dificuldades e os impasses presentes neste complexo cotidiano. Ao fim desta parte, temos o texto O enfoque na mudana de mentalidade como arma para suplantar o proibicionismo, que apresenta o trabalho contemporneo de militncia antiproibicionista realizado pelo Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razo).

    Para finalizar, tambm transcrevemos falas de importantes atores nesse debate, que participaram de eventos organizados pelo CRP SP no ano de 2009. So eles: Mnica Gorgulho, Mrcia Aparecida Ferreira de Oliveira, Eroy Aparecida da Silva, Ablio da Costa Rosa, Adriana Barbosa Scrates, Cristiano vila Maronna, Dnis da Silva Petuco, Dcio de Castro

  • e Elizaldo Lus de Arajo Carlini.A partir dessas experincias e reflexes, fica clara a ineficcia da po-

    ltica proibicionista pactuada por importantes setores da sociedade do capital. Acima de tudo, esta publicao nos mostra que no precisamos mais ficar presos aos velhos mtodos de lidar com os problemas asso-ciados ao uso de drogas, que segregam, estigmatizam e violentam os usurios. Por sua histria no movimento antimanicomial e na defesa dos direitos humanos, a Psicologia, atravs do Conselho Regional de Psicolo-gia de So Paulo, entende que pode colaborar com esta discusso. Para isso, transcrevemos debates promovidos no ano de 2010 que tiveram a presena de importantes atores do campo de prticas responsveis acer-ca das drogas e polticas pblicas. Tambm achamos importante mostrar reflexes e praticas inovadoras no intuito de dar visibilidade a trabalhos com usurios abusivos de drogas que estejam de acordo com as polticas j construdas e que, por respeitarem os direitos humanos, do voz aos usurios e respeitam a lgica do cuidado conquistada em mais de 20 anos de reforma sanitria no pas.

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    Drogas e ser humano: a preveno do possvel

    Marcelo SodelliProfessor e Pesquisador do curso de Psicologia da

    Faculdade de Cincias Humanas e da Sade da PUC-

    SP e Presidente da ABRAMD (Associao Brasileira

    Multidisciplinar de Estudo sobre Drogas)

    discutir sobre a preveNo ao uso de risco e dependncia de drogas evoca muito mais que conhecer somente os aspectos farmacolgicos dos psi-coativos ou novas estratgias/tcnicas pedaggicas. Ao lidar com o fen-meno do uso de drogas somos convocados a pensar sobre ns mesmos, sobre o ser humano e o mundo em que vivemos.

    Porm, a resposta da sociedade complexidade do uso de drogas pode ser caracterizada como um processo de simplificao e reducionis-mo desse fenmeno, o que na rea da preveno representada na pos-tura proibicionista. Projetos preventivos balizados pelo Diga no s Dro-gas trata esta questo de modo idealizado, j que almeja alcanar uma sociedade livre dessas substncias (o que contraria a histria humana, pois no conhecemos sociedade que no tenha algum tipo de uso). Seu objetivo principal fazer com que as pessoas nunca experimentem e que se mantenham sempre na abstinncia. Por certo, um modelo que uti-liza a metodologia amedrontadora. Parte-se do princpio de que o medo faa com que as pessoas no tenham coragem de experimentar as dro-gas. Essa postura, sem dvida a mais presente na realidade brasileira, aquela fundamentada na Intolerncia e Guerra contra as Drogas (Exem-plo: Proerd, Parceira contra as drogas, etc).

    Por outro lado, vrias pesquisas cientficas1 revelam que essa abor-dagem no vem conseguindo responder complexidade desse fenme-no. Nesse sentido, no podemos deixar de mencionar que uma dimen-so esquecida pela referida postura em relao s drogas lcitas (lcool e tabaco). Como pensar o trabalho preventivo ao uso do lcool por meio do proibicionismo, se sabemos por meio dos dados epidemiolgicos que mais de 80% dos jovens j experimentaram essa droga? Ser que a nica estratgia preventiva que temos em relao s drogas lcitas a promo-

    1 Entre outros: SODELLI, 2010; CANOLETTI & SOARES, 2005; MOURA, 2005; TAVARES-DE--LIMA, 2003.

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    o da abstinncia? E em relao s drogas ilcitas (inalantes, maconha, etc.), ser que a metodologia do terror realmente mais segura? E ainda podemos acrescentar: ser que a preveno por meio da instaurao do medo a melhor ao educativa? Esse tipo de abordagem consegue se sustentar eticamente?

    As questes acima nos levam para uma nova postura preventiva, que busca a desconstruo do modelo proibicionista, pois entende que somente a preconizao da abstinncia e a aplicao da metodologia amedrontadora no so as melhores estratgias. Assim, por meio da aproximao do modelo de Reduo de Danos e da noo de Vulnerabi-lidade2 nasce uma nova abordagem na preveno ao uso e dependncia de drogas: Aes Redutoras de Vulnerabilidade.

    A abordagem de Reduo de Danos3 no tem como objetivo principal fazer com que o usurio interrompa o uso da droga, ou que o indivduo nunca a experimente. Sua preocupao no a de acabar com o consu-mo (entende que de algum modo sempre teremos que lidar com isso), mas sim pretende lidar com o modo como este consumo realizado, priorizando, especificamente, diminuir os possveis danos sade.

    Trabalhar a preveno na perspectiva da abordagem de Reduo de Danos compreender que o melhor caminho para lidar com o uso de drogas no o de decidir e definir pelos outros quais so os comporta-mentos mais adequados e corretos. Muito diferente disso, construir, junto com o outro, possibilidades de escolhas mais autnticas e livres, diminuindo vulnerabilidades.

    A noo de vulnerabilidade foi inicialmente pensada como maneira de fornecer elementos para avaliar, objetivamente, as diferentes chances que todo e qualquer indivduo tem de se contaminar pelo HIV, dado o conjunto formado por certas caractersticas individuais e sociais de seu cotidiano, julgadas relevantes para a maior exposio ou menor chance de proteo diante do problema. Depois se estendeu para outras ques-tes, como a da violncia nas relaes de gnero e ao uso de drogas. Assim, o quadro de vulnerabilidade pode ser compreendido na tarefa preventiva ao uso de risco e dependncia de drogas da seguinte forma:

    Componente individual a maior vulnerabilidade no deve ser en-tendida como uma decorrncia imediata da ao voluntria dos indiv-duos, grupos populacionais ou naes, mas sim relacionada a condies

    2 A noo de vulnerabilidade nos direciona para uma nova atitude preventiva: no acabar com a vulnerabilidade, mas sim, reduzi-la.

    3 A Reduo de Danos teve origem na Inglaterra, em 1926 e ficou conhecida a partir das recomendaes do Relatrio Rolleston, que estabelecia o direito dos mdicos ingleses de prescrever suprimentos regulares de opiceos a dependentes dessas drogas.

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    objetivas do meio natural e social em que os comportamentos aconte-cem, ao grau de conscincia que os indivduos, grupos populacionais ou naes tm sobre esses comportamentos e ao poder de transformao que possuem, a partir dessa conscincia;

    Componente social diz respeito a aspectos de como se d o acesso informao pelos sujeitos ou grupos populacionais, bem como o aces-so aos servios de sade e educao; aspectos sociopolticos e culturais relacionados a determinados segmentos populacionais, tais como: mu-lheres, crianas, idosos, populaes indgenas, entre outros; o grau de liberdade de pensamento e expresso dos diferentes sujeitos;

    Componente programtico (poltico-institucional) se refere a as-pectos como financiamentos previstos para programas preventivos, presena ou no de planejamento das aes, possibilidade de forma-o de redes ou coalizo interinstitucional para atuao, alm do com-promisso expresso das autoridades para tal.

    No que tange preveno, utilizar a noo de vulnerabilidade po-deria se tornar uma ferramenta valiosa, ampliando significativamente o modo de compreender e intervir nesta questo, alm do que ganhar mais relevncia quando resgatamos a sua origem no campo dos direitos hu-manos, que, por sua vez, confere ao Modelo de Reduo de Danos argu-mentos ticos e possibilidades de legitimao para efetiva implementa-o. Assim, a aproximao do Modelo de Reduo de Danos e da noo de vulnerabilidade se d antes de tudo, no plano da tica, da cidadania e dos direitos humanos.

    A compreenso de que ningum vulnervel, mas est vulnervel, re-sultante da dinmica relao entre os componentes individuais, sociais e programticos, provoca novas reflexes sobre a preveno ao uso noci-vo de drogas, particularmente, em relao a projetos desenvolvidos com jovens e crianas. A partir do entendimento de que a vulnerabilidade no algo esttico e pontual, mas dinmico e contnuo, projetos preventivos pontuais, meramente informativos, teriam resultados limitados. Nessa mesma direo, propor a implementao de projetos preventivos apenas para adolescentes negar o carter construtivo e provisrio do quadro de vulnerabilidade. Ora, considerar esta noo reconhecer a importn-cia de possibilitar para o aluno a construo de seu projeto de vida, ou seja, encorajar o poder de transformao, o que estamos nomeando hoje como a possibilidade de construo de sua plena cidadania. Torna-se evidente, assim, que os projetos preventivos que levem em considerao a noo de vulnerabilidade deveriam, preferivelmente, ser iniciados j na educao infantil ou pelo menos no ensino fundamental, percorrendo toda a vida estudantil, chegando ao ensino mdio. nesse sentido que

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    entendemos o entrelace da preveno ao uso nocivo de drogas com a noo de vulnerabilidade e, mais especificamente, no mbito escolar, na possibilidade da construo permanente de uma rede cuidadora entre o professor e o aluno. Isso nos parece fundamental: preveno na escola trabalhar para construir uma rede cuidadora e permanente entre o pro-fessor e o aluno.

    Ao dialogar com outros interesses, sem ser o da proibio e do con-trole, o sentido da prtica preventiva se modifica, assim como o seu modo de dialogar. Portanto, no o tcnico (professor, psiclogo, mdi-co etc.) que determinar como o sujeitoalvo (criana, jovem, professor etc.) deveria se prevenir, mas o prprio sujeito, a partir de uma intensa reflexo, que se colocar em questo, buscando formas e apoio para re-duzir suas vulnerabilidades.

    A partir de nossas consideraes, apresentamos abaixo algumas di-retrizes preventivas na perspectiva das Aes Redutoras de Vulnerabili-dade (SODELLI, 2010):

    Diretrizes Individuais (pessoais): Procurar desenvolver uma postura crtica mera proibio do uso

    de drogas, como tambm em relao abstinncia como o prin-cipal e nico objetivo da preveno;

    Reconhecer que o objetivo da preveno no ditar comporta-mentos e sim contribuir para que cada pessoa, a partir de uma in-tensa e contnua reflexo, encontre modos de lidar e reduzir suas prprias vulnerabilidades, durante toda a sua vida;

    Compreender que a vulnerabilidade ao uso de risco e dependn-cia de drogas no algo inerente s pessoas, mas uma condio que est sempre presente, pois estamos sempre vulnerveis a algo em diferentes graus e dimenses, sendo que essas vulnera-bilidades mudam ao longo do tempo, por tudo isso, o trabalho preventivo deveria estar presente durante todo o percurso da vida;

    Cultivar uma relao de dialogicidade no contato com o outro, no sentido de facilitar a formao de uma conscincia crtica, capaz de identificar possveis riscos;

    Respeitar e ouvir as escolhas das pessoas (pblico-alvo) em re-lao ao modo como lidam com o uso de drogas, cultivando um clima afetivo no qual seja possvel colocar em questo essas de-cises, sempre no sentido de ampliar as possibilidades de ser, de reduzir as vulnerabilidades;

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    No reproduzir de forma alguma a pedagogia do terror (terroris-mo instaurar o medo) e os seus procedimentos de amedronta-mento e intimidao, pautada na exacerbao das advertncias sobre os perigos advindos do uso de drogas;

    Posicionar-se criticamente perante as informaes veiculadas pela grande mdia sobre a questo das drogas;

    No banalizar as discusses sobre o uso nocivo de drogas, mini-mizando as possveis consequncias negativas desse uso.

    Diretrizes Sociais (contexto): As aes preventivas devem ser pautadas em objetivos realistas

    e possveis de serem alcanados; Romper com o imaginrio que possvel uma sociedade sem o

    uso de drogas; Trabalhar a preveno desde a infncia, no sentido de um cuida-

    do que possibilite criana se encontrar consigo mesma, bus-cando o desenvolvimento de um modo de ser prprio e autntico;

    Abordar a preveno ao uso de drogas de maneira ampla, con-templando tanto as drogas lcitas como as ilcitas;

    Considerar no planejamento das aes preventivas os aspectos estatsticos sobre o uso de drogas do pblico-alvo, principalmen-te, sobre a droga mais utilizada atualmente, enfatizando as dro-gas lcitas (por exemplo: o lcool e o tabaco, como tambm os remdios comercializados legalmente);

    Incentivar experincias que incluem o respeito a si mesmo, aos outros e dignidade humana, reforar a autonomia pessoal, in-centivar o desenvolvimento afetivo e social, a integridade moral, o senso de dignidade e de cidadania;

    Desenvolver atividades que possibilitem a reflexo sobre o proje-to de vida dos participantes, encorajando o poder de transforma-o, no sentido da construo de sua plena cidadania.

    Diretrizes Programticas (polticas pblicas, institucionais):

    Considerar sempre que todos os pressupostos enumerados con-tm concepes gerais, a serem adaptadas e contextualizadas, levando em conta as contingncias no mbito em que se preten-de desenvolver o trabalho preventivo;

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    Todo o trabalho preventivo deve ser entendido a mdio/longo pra-zo, por meio de um processo educativo integrador e sistemtico;

    Todas as informaes devem ser transmitidas de maneira fide-digna, objetiva e realista, pautadas no conhecimento cientfico, respeitando a particularidade e capacidade de compreenso de cada pblico-alvo;

    Os procedimentos implantados devem ser passveis de avaliao mltipla, aplicando aos resultados, processos e estruturas, con-siderados durante todo o trabalho, oferecendo, assim, subsdios para novas posturas e correes de aes preventivas;

    As polticas em relao s drogas devem ser integradas s polti-cas sociais mais gerais;

    Integrar as aes preventivas aos programas j existentes, bus-cando parcerias com outras instituies de educao, sade, meio ambiente, etc.;

    A viabilizao dos programas depende da participao de toda a sociedade.

    A insistncia em preconizar o modelo proibicionista e a pedagogia do controle poder custar a todos ns a perpetuao da inexistncia de um autntico trabalho de preveno ao uso nocivo de drogas. Ou seja, o esquecimento de um dos sentidos mais prprios da educao: reduzir vulnerabilidades.

    Referncias BibliogrficasCANOLETTI, B. e SOARES, C. B. Drug consumption prevention programs

    in Brazil: analysis of the scientific production from 1991 to 2001. Interface Comunicao, sade, educao. So Paulo, v.9, n.16, p.115-29, 2005.

    MOURA, R. A. C. O dilogo entre as polticas, as pesquisas acadmicas e a prxis de preveno ao uso indevido de drogas nas escolas. Dis-sertao (Mestrado em Educao: Psicologia da Educao), Faculda-de de Psicologia, Pontifcia Universidade Catlica. So Paulo, 2004.

    SODELLI, M. A. Abordagem Proibicionista em desconstruo: compre-enso fenomenolgica existencial do uso de drogas. In: O Desafio da Drogadico na Sociedade Contempornea. Revista Cincia & Sade Coletiva. Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva, volume 15, n. 3, maio, 2010.

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    ________ Drogas e Preveno: da desconstruo da postura proibicio-nista as aes redutoras de vulnerabilidade. So Paulo, Editora Iglu, 2010.

    TAVARES-DE-LIMA, F. F. Preveno ao uso de drogas: modelos utiliza-dos na educao, suas relaes e possibilidade quanto a atitudes preventivas. Dissertao (Mestrado em Educao: Psicologia da Edu-cao), Faculdade de Psicologia, Pontifcia Universidade Catlica. So Paulo, 2003.

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    Drogas e sociedade

    Mnica Gorgulho Psicloga clnica, mestre em Psicologia Social, ex-

    representante do Conselho Federal de Psicologia junto ao

    Conselho Nacional sobre Drogas; consultora do International

    Center of Alcohol Policies (EUA); ex-coordenadora da ONG

    Dnamo, Informao Responsvel sobre Drogas e Afins.

    parece que j seNso comum que o problema de drogas, no s no Brasil como no mundo inteiro, est relacionado ao conjunto de trs elementos: o individuo, a substncia e a sociedade onde este encontro acontece. Digo isso porque ainda h algumas escolas, pensamentos e correntes que acabam dando mais nfase questo da substncia do que a essa interao. Talvez seja por isso, como falaremos mais adiante, que a pol-tica de drogas pensada sempre o modelo de guerra s drogas.

    Vale a pena prestarmos um pouco de ateno porque mesmo os profissionais que trabalham com dependncia qumica acabam tendo ideias e informaes nem sempre muito apuradas a respeito do que vem a ser o mundo das drogas e do que falamos quando tratamos dele.

    Trataremos disso e tambm falaremos sobre a sociedade, que o meio onde essa relao se d. Veremos que ela acaba influenciando e diferenciando, s vezes de forma extrema, a resposta que determinado grupo social fornece para esse problema.

    Apresento dados estatsticos do relatrio do UNODC1, falando sobre a presena de substncias psicoativas, especialmente drogas ilegais, no mundo, entre uma populao de 15 a 64 anos. Vejamos:

    Populao mundial estimada em seis bilhes e meio de pessoas; Populao mundial entre 15 e 64 anos de idade: cerca de quatro

    bilhes e 200 milhes de pessoas;

    1 World Drugs Report United Nations Office on Drugs and Crime (escritrio da ONU para drogas e crimes), 2008.

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    Populao entre 15 e 64 anos que j usou droga: 208 milhes de pessoas, ou 4,8% da populao estudada;

    Pessoas entre 15 e 64 anos que fizeram uso de droga no ltimo ms: 112 milhes.

    0,6% da populao mundial, entre 15 e 64 anos, relata ter proble-ma com uso de drogas.

    Esses nmeros nos provocam uma reflexo. Estamos acostumados a dizer que se espera que 10% da populao usuria de drogas apresente problemas com substncias psicoativas. Mas, quando vemos pelas in-formaes desse relatrio que somente 0,6% das pessoas relatam o uso problemtico de drogas, ento temos de comear a questionar as esta-tsticas que consideramos bsicas.

    No fim desse encontro, veremos ainda como tem sido a resposta mundial no que se refere procura por tratamento, o que tem sido efeti-vamente realizado, e veremos que no temos noo de qual a popula-o que realmente precisaria ser tratada. Assim como no Brasil, tambm no resto do mundo existe uma incapacidade de prover o tratamento ne-cessrio para as pessoas que dele necessitam. Como j disse, no temos esse dado com clareza. O que temos essa aproximao relatada pelo UNODC, que costuma fazer estas pesquisas de forma bastante conserva-dora. Isso significa que a realidade s pode ser melhor que essa se no for adequadamente representada por esses dados.

    Vamos passar para outra informao, para comear a pensar um pouco na afirmao do senso comum de que se aumentou muito, nos ltimos tem-pos, o consumo de drogas. Costumamos defender que antigamente o con-sumo era mais contido e que agora todo mundo faz uso dessas substncias.

    Vejam estes dados, que tambm so do UNODC, e que nos mostram que a situao no bem essa:

    Houve uma variao do final da dcada de 90 para 2006. Em 2007, subiu de 180 para 208 milhes de pessoas que se decla-ravam usurias de drogas no mundo, em uma populao de 4 bilhes e 200 mil pessoas.

    Em termos percentuais, houve uma variao de 4,8% para 5% da populao mundial, do final da dcada de 90 at agora.

    Se formos ainda mais adiante, veremos que isso, de forma alguma, significa um crescimento ou uma tendncia de crescimento. No sabe-mos se estes nmeros vo se intensificar, em um futuro prximo. Ao con-trrio, o que temos visto que a situao fica sempre mais ou menos estabilizada nesses patamares.

    importante que esses dados sejam absorvidos para que possamos comear a questionar certas informaes e opinies, difundidas de for-

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    ma geral, com forte respaldo da mdia, porque isso far toda a diferena quando pensarmos em polticas pblicas.

    claro que podemos tratar cada assunto individualmente, quando falamos ou atendemos um grupo pequeno de pessoas, mas polticas pblicas precisam tratar do cenrio mundial, do macrocenrio, e no da-quele que conhecemos da prtica diria no nosso Centro de Atendimento ou daquela pessoa da nossa rua, de quem gostamos tanto e sentimos por ela enfrentar problemas com drogas. Isso no o suficiente para nos preparar para pensar em polticas pblicas.

    Se ainda formos separar as drogas por categorias, das drogas ilcitas veremos que a maconha a mais utilizada no mundo. De qualquer for-ma, ela teve uma variao para mais de 4%, desde o final da dcada de 90 at os anos 2006 e 2007. Esse nmero, no entanto, leva muita gente, inclusive especialistas, a dizer que o uso da erva explodiu no mundo.

    Ocorre que no verdade. Mesmo o prprio relatrio mostra que esse acrscimo de 4% precisa ser olhado com cuidado, porque tambm temos de considerar o crescimento populacional, ou seja, o crescimento geral da populao. Assim, esse aumento de 4% talvez no seja to alar-mante quanto tendemos a pensar que seja.

    Em segundo lugar temos as anfetaminas, com um aumento de 0,6%. Em seguida, a coca os seus derivados cocana, crack, e outros. De-pois, os opiceos com 0,4% de acrscimo.

    Por fim, temos a herona e o ecstasy, que outra droga que tem sido muito falada aqui no Brasil, com medidas muito restritas e duras, mas essas drogas apresentam um aumento de 0,2% a 0,3%, desde o final da dcada de 90 at 2009.

    Se olharmos o Brasil dentro desse quadro geral, veremos que no so-mos dos piores pases nessa questo. Isso acaba, s vezes, criando uma si-tuao muito delicada porque, quando trazemos especialistas estrangeiros para algum evento, esperamos que eles discutam esse cenrio, que quase sempre apresentado como um grande problema do nosso pas. quando muitos deles dizem que ns no temos um verdadeiro problema de drogas no Brasil. que eles consideram nossa posio dentro do cenrio mundial.

    Podemos ver que os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar no que diz respeito categoria de uso na vida para todas as substncias consi-deradas maconha, cocana e anfetaminas. Isso tambm deveria fazer tocar mais um sino em nossa cabea. Os norte-americanos so os que mais investem na poltica de guerra s drogas; os que mais prendem pes-soas por crimes relacionados ao fenmeno drogas produo, comrcio e consumo de substncias psicoativas (SPAs); os que mais promovem essa perseguio aos usurios e dependentes, essa verdadeira caa s

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    bruxas. E toda propaganda a essa posio acaba influenciando outros pa-ses, dentro dos fruns internacionais, contra qualquer poltica ou postura mais humanizada em relao aos usurios de drogas. Porm, mesmo com todas essas polticas restritivas, eles ocupam o primeiro lugar no que diz respeito ao consumo problemtico ou no de SPAs, no mundo.

    Ser, ento, que a guerra s drogas um bom modelo a ser segui-do? Ser que estaremos em uma trilha de sucesso se pensarmos apenas nesta perspectiva para lidar com este assunto de dependncia ou de consumo de substncias qumicas? Ser que no deveramos procurar alternativas, alm das propostas de abstinncia e do proibicionismo, para tratarmos desse fenmeno? algo para refletirmos.

    Esta situao, na qual vivemos hoje em relao s drogas, no existe desde sempre; no uma situao que se d por natureza; ou que venha de imediato, como um dado certo e inquestionvel. Trago alguns exemplos de substncias que usamos hoje, mais do que indiscriminadamente, qua-se que elegantemente, que se constituem como uma exigncia das boas maneiras sociais, mas que j foram consideradas substncias proibidas.

    No tempo do descobrimento das Amricas, o mate foi proibido no Paraguai, por questes meramente econmicas. Muito da proibio das substncias que temos hoje se originam desse mesmo ponto e no nos damos conta disso. Existe um interesse mercantil no narcotrfico atual que, rarssimas vezes nos damos conta, insistindo em continuar a pensar que as drogas so proibidas por que realmente fazem muito mal para as pessoas. Vocs j pararam para pensar o que aconteceria econo-mia mundial se o narcotrfico deixasse de existir? Assim como o narco-trfico, outros comrcios ilcitos so extremamente importantes para a economia internacional como, por exemplo, o comrcio ilcito de armas, envolvendo inmeras organizaes financeiras lcitas (mas que no se preocupam com a natureza de licitude das transaes financeiras que passam pelos seus cofres) no mundo todo.

    Voltando ao carter temporrio de proibies, no tempo da Inquisi-o, tempo das pomadas e poes, se algum fosse encontrado com go-tinhas de beladona assim como hoje algum pode ser encontrado com papelotes de cocana , a pessoa seria condenada morte, fogueira, seria queimada viva. Vocs se lembram da beladona? Eu sempre dei para as minhas crianas, eu mesmo tomo beladona, muitos de vocs devem tomar tambm, e naquela poca era totalmente proibida.

    Por fim, o caf. O consumo de caf na Rssia tambm j foi punido com mutilao do nariz e das orelhas. Em algumas religies, o caf, as-sim como o lcool, proibido.

    Em 1996, eu era membro do Conselho Estadual de Entorpecentes.

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    Ns organizamos um evento em So Paulo, em que havia uma gegrafa falando de uma visita feita ao Amazonas em companhia de seus alunos, para pesquisar coisas completamente diferentes de SPAs. L encontrou uma enorme plantao de papoula. Pasmada, ela, que nunca sups que pudesse existir alguma coisa parecida no Brasil, se questionou: O que fazemos com isso agora? Entregamos a algum? Chamamos a polcia?.

    A fala dela me fez pensar na minha prpria prtica diria. Sempre tive a minha atividade na Psicologia Clnica, trabalhando em consultrio particular, no Proad (Programa de Orientao e Assistncia a Dependen-tes), da Escola Paulista de Medicina, com os indivduos, fazendo todo o meu melhor, tentando entender o porqu da dependncia, com base nos meus estudos de psicoterapia de base psicanaltica.

    Naquele momento, percebi que essa abordagem era muito limitada, porque no nos permite pensar em um universo maior de pessoas, mas sim em apenas uma pequena parte das que precisam de atendimento e de respostas para esse seu comportamento. Por isso comecei a pensar na questo das polticas pblicas e me envolvi com este assunto.

    Fazendo uma pequena digresso, gostaria de provocar uma discusso com vocs sobre o tabaco. O tabaco j foi punido com pena de morte na Alemanha, em pases asiticos e do Oriente Mdio. Estou achando nosso movimento atual contra o uso de tabaco uma coisa muito esquisita. No fumo e nunca fumei. No estou legislando em causa prpria, porque em minha casa ningum fuma. Porm, se pararmos para pensar, talvez che-guemos inadequao das proibies impostas hoje, e nos perguntemos o que est sendo feito com os direitos que j conquistamos. Est certs-simo no fumar em lugares fechados! As pessoas que no fumam, assim como eu, tm todo o direito de se beneficiar dos espaos livres de fumaa.

    Agora, o que est sendo feito com os fumantes um escndalo. As salas de fumo quase que so moldadas como celas de presdio. Nos lu-gares pblicos, onde vejo as reas destinadas aos fumantes, nunca en-contrei um espao que seja minimamente adequado para essa ativida-de. Quem constri aquela sala sabe que ali as pessoas vo fumar, ento, aquele lugar deveria ter, por exemplo, a mnima ventilao adequada a essa prtica. Acho que est havendo uma tendncia a tratar o fumante como criminoso, quando isso ainda no foi estabelecido como crime. Praticamos um cinismo muito grande quando a indstria do tabaco considerada legal, lcita, gera empregos, lucros, impostos, e, de outro lado, os fumantes so tratados como cidados de quinta categoria.

    No estou fazendo lobby para a indstria do tabaco, no trabalho para ela. S que para mim assim: olho uma coisa e quero saber o por-qu disso; por que tem de ser assim?

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    Ento, quem sabe depois da palestra vocs tambm pratiquem o espor-te preferido da populao atualmente que falar que estou completamente errada, que absurdo, as salas de fumante agora tm de ter sof, gua e flor-zinha. Bom, eu responderia: Florzinha no, por que elas no iam aguentar toda aquela fumaa, mas um sof confortvel, gua, ventilao, sem som-bra de dvida acho que deveria ter. A me diriam: Mas quem vai pagar isso? e eu responderia: Olha, poderia pedir para a indstria do tabaco pagar. No estou dizendo que o Ministrio da Sade ou que o Governo Fede-ral tenha de fazer isso. Pode at haver um dilogo com a indstria do tabaco, do tipo Vocs querem..? Ou ento pode aumentar o imposto, e o prprio usurio paga por essas salas. No sei. Mas alguma soluo menos autorit-ria e hipcrita me parece, sem dvida, mais que necessria.

    Ficamos em uma abordagem muito superficial, sem realmente provo-car um debate. Estou ficando um pouco assustada porque daqui a pouco veremos coisa semelhante acontecer em relao ao lcool. Nem quis tra-tar do lcool porque isso j muito batido. Da Lei Seca, ento, nem quis falar. Temos de tomar muito cuidado com o que estamos fazendo, porque acho que estamos entrando novamente em um movimento de tempe-rana e no tem nada que prove a utilidade e eficcia desta abordagem.

    No sei se vocs acompanharam a proibio de bebidas alcolicas nas festas juninas de 20102. Achei um absurdo! Se a simples viso de adultos consumindo, de forma responsvel, uma bebida que faz parte do folclore brasileiro levasse deturpao daquelas crianas e adolescen-tes, ento me parece que deveria haver tambm a proibio de consumo de bebidas alcolicas em qualquer lugar pblico, como restaurantes, porque crianas podem frequent-los.

    Sempre falamos que a melhor forma de lidar com esse assunto edu-cando a populao. Quando se probe, simplesmente, cria-se uma popu-lao obediente. Mas quando a questo colocada com dilogo e deba-te, as motivaes que criaram tais regras e restries ficam claras e uma populao crtica criada. No isso que queremos? Porm temos feito uma escolha, descarada e escandalosa, por uma populao obediente.

    2 Em algumas escolas, no ano de 2010, houve, pela primeira vez, a proibio de venda de bebidas alcolicas, incluindo quento, como forma de proteger menores de idade dos malefcios dessas bebidas. Acontece que, no meu entender, escolas so o espao privile-giado para a discusso no s dos contedos pedaggicos programticos, mas tambm para questes relacionadas cultura, civilidade e cidadania. Quando esse espao prefere se isentar de tal debate, o que sobra para seus alunos? A obedincia pura e simples de regras determinadas por algum grupo que no participa da vida cotidiana daquelas pesso-as. Acho que se perdeu uma grande chance para que essa questo fosse problematizada e que a deciso, quando tomada, pudesse ser realmente incorporada pelo grupo de pais e alunos, uma vez que teria sido fruto de uma deciso coletiva.

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    Pensando historicamente, chegamos a um momento em que essas substncias, hoje consideradas proibidas, fazem parte de uma lista que decidida por pases participantes das Naes Unidas. No sei se vocs conhecem o funcionamento das Naes Unidas. Quando dizemos que todos os pases ou a maioria dos pases signatrios dos documentos da ONU concordam que essas substncias tm de ser prescritas, no estamos afirmando que todos os pases sabem o que esto fazendo. Estamos falan-do de uma presso poltica e econmica que certos pases, uma pequena minoria, provocam sobre a maioria dos integrantes das Naes Unidas.

    Ento, quando ouvimos que algo proibido pelas convenes in-ternacionais, isso no deveria constituir argumento suficiente para que acreditssemos que para ser assim mesmo. Pelo contrrio, deveramos nos questionar a respeito. Porque a maioria dos pases concorda com essa situao quando, na verdade, todos acabam usando substncias de uma forma completamente desregrada.

    Existe uma economista inglesa, que fazia parte da equipe da revista The Economist, Diane COYLE, que causou inquietao mundial quando disse: Economicamente, a soluo para o problema das drogas seria legalizar todas. Essa pessoa escreveu um livro chamado The Economics of Enough: How to Run the Economy as If the Future (A Economia do su-ficiente: como administrar a economia como se o futuro importasse), e integra essa tendncia de tratar questes do cotidiano sob o ponto de vista econmico. Em outro livro, Sexo, drogas e economia3, ela diz: Uma lei que desrespeitada todos os dias por tanta gente, no mundo inteiro, tem de estar errada, e continuamos fingindo que esta lei est certa.

    Em maro de 2010 houve uma Assembleia Geral das Naes Unidas, em Viena, para discutir os dez anos da poltica antidrogas, de reforo represso e de no aceitao da proposta da reduo de danos. Quando essa poltica da ONU foi criada em 1998, provocou a criao de Secreta-rias Nacionais Antidrogas aqui no Brasil, assim como em vrios outros pases da Amrica Latina. Ficou decidido que, dali a dez anos, as pes-soas se reuniriam para reavaliar a poltica, porque a proposta de 1998 era de que, em uma dcada, o mundo estivesse livre das drogas ilcitas.

    No estvamos falando de 1800, mas de 1998. As Naes Unidas decidiram que em dez anos teramos um mundo livre de drogas. Uma dcada depois, em 2010, uma nova Assembleia foi realizada e ficou de-cidido que o mesmo projeto seria retomado: a mesma poltica de reforo represso e de no reduo de danos foi retomada, com a proposta

    3 COYLE, Diane. Sexo, drogas e economia: uma introduo no convencional economia do sculo 21. Traduo Melissa Kassner. So Paulo: Futura, 2003.

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    de buscar um mundo sem drogas consideradas ilcitas. Como que po-demos acreditar em uma instituio que nega os fracassos evidentes de suas propostas? E o que pior: insiste em suas proposies equivocadas como se no precisasse dar maiores explicaes ao mundo!

    No podemos aceitar que seja possvel que outros decidam por ns sobre nossa prpria vida, nossas escolhas. preciso participar deste de-bate. Temos de tomar lugar nele, porque seno vamos continuar sendo comandados. Hoje as substncias que so proibidas esto nesse lugar por um contexto econmico e social.

    Gostaria de fazer um questionamento com todos: quem em algum momento j sentiu qualquer incmodo, qualquer dvida, qualquer estra-nhamento com relao ao mundo de hoje?

    Tem gente que no sentiu. Eu, realmente, morro de inveja de vocs. Pois sofro toda manh quando leio as manchetes do jornal. Fico pssi-ma! O mundo passa hoje por uma renovao, uma reprogramao, uma reavaliao. A ltima grande poca de renovao foi a Revoluo Indus-trial, que trouxe toda uma modificao de valores, costumes e prticas, para as sociedades daquela poca.

    Hoje a revoluo das comunicaes e suas consequncias, como a conectividade constante, traz novamente a necessidade de nos reorgani-zarmos, reprogramarmos, reavaliarmos uma srie de valores, costumes, e verdades que tnhamos considerado como aceitveis at recentemente.

    Esta modificao pela qual estamos passando faz com que mudemos de uma sociedade moralista, de moral mais rgida, para outra de maior flexibilidade, com maiores possibilidades de arranjos individuais. Anti-gamente as regras eram definidas exteriormente. Tnhamos vrias insti-tuies como Famlia, Igreja e Estado que, de alguma forma, respondiam a muitos dos nossos anseios, e serviam mesmo para nos conformar, no sentido de nos dar uma forma.

    Por exemplo, podemos pensar em como era a escola antigamente e como ela agora, quanta segurana sentamos em relao a ela. Novem-bro e dezembro eram meses gloriosos ou avassaladores em nossas vidas, dependendo de termos sido aprovados ou reprovados. Hoje, fao severa crtica aprovao continuada. Muitas crianas sentem-se inseguras ao ser aprovadas custe o que custar. Sabem que vo participar de uma prxi-ma srie, no prximo ano, s que no se sentem seguras em sua capacida-de de acompanhar o que vai ser dado. A criana fica angustiada, e os pais tambm acabam no sabendo se tm ou no de interferir nesse processo, resultando em um nmero cada vez maior de analfabetos funcionais.

    E isso no acontece somente em relao s escolas, obviamente. As famlias tambm j no se sentem to preparadas para educar seus

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    filhos, a Igreja j no consegue atrair o mesmo nmero de pessoas, e quando acontece, no consegue aplacar as dvidas e angstias da maio-ria de seus fiis. Com relao ao Estado, no preciso gastar muito para considerar o quanto a corrupo admitida, ainda que disfarada de ou-tros nomes, impede que os jovens reconheam alguma autoridade nesse meio. As instituies esto enfraquecidas. Testemunhamos diariamente uma sequncia impune de descalabros, desrespeitos, agresses e inva-ses em nossas vidas privadas, que impede aos mais jovens a constru-o de uma relao de causa e efeito em nossos atos. como se para tudo fosse possvel encontrar uma soluo que no passasse pela neces-sidade de nos responsabilizarmos pelo que foi feito. Assim para qual-quer comportamento. Assim tambm tem sido para o abuso de SPAs.

    Essa falta de uma definio mais clara de valores, do cumprimento das regras estabelecidas, de uma permanncia um pouco maior do que foi com-binado, faz com que crianas e adolescentes criem uma ansiedade, uma an-gstia que vo ter de ser extravasada de alguma forma, em algum momento. Aquela sociedade uniforme, modelar, que existiu at mais ou menos a dca-da de 50 do sculo passado, no existe mais. A de hoje outra sociedade.

    O que importa nos darmos conta do que est acontecendo para que possamos agir nessa sociedade e no em uma sociedade ideal. Porque seno estaremos nos comportando exatamente como as Naes Unidas que acreditam ser possvel um mundo sem drogas.

    Dentro dessa avaliao de uma nova organizao social, o filsofo francs Gilles Lipovetsky fala sobre um momento histrico que ele cha-ma de Era do vazio. Na medida em que no temos mais valores cons-trudos de fora para dentro, na medida em que vivemos uma condio em que as escolhas so absolutamente individuais e elas so inmeras, escandalosamente infinitas, temos a possibilidade de tudo. Ns, psic-logos, lembramos das nossas aulas talvez do primeiro ou segundo ano que diziam que: Se pode tudo, na verdade, no pode nada. Ento, se podemos tudo, ficamos sem saber direito o que fazer e fazemos qual-quer escolha, at porque no tem ningum que tenha moral o suficiente moral no sentido tico para nos dizer o que fazer. Por que vou concor-dar com uma poltica proibicionista que o Estado me coloca, me impe, quando vejo o que acontece l dentro do Senado, dentro do Congresso?

    Por que nossos adolescentes, jovens e adultos vo se preocupar com o outro, com o que considerado certo e errado, se o que eles veem todo dia uma constante quebra de regras, de combinaes, de contratos? Por que ns, formuladores de polticas pblicas, temos de esperar que eles se preocupem com isso e respeitem essas regras? No temos moral para defender um ponto de vista desses, mas queremos que os adolescentes e os jovens adultos se

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    comprometam com uma coisa com a qual no nos comprometemos.Essa possibilidade de construo permanente de sentidos e de valo-

    res, que vemos muito na questo da internet, nos d o direito de, todos os dias, a cada hora, definirmos uma nova tica. Ento decidimos pela tica do momento. Em alguns momentos, acho que no devo usar dro-gas, em outros momentos, acho que eu posso, e at, que bem legal.

    Uma vez estava discutindo que no so os adolescentes que esto per-didos, mas sim, seus pais. Quando temos de trabalhar feito condenados, quem que cuida dessa meninada? Quem que d ateno? Quem que escuta? Quem que estabelece um vnculo afetivo com essa meninada? No a escola, porque a Escola no quer saber; no o Estado, uma vez que ele est pouco se lixando; a Igreja faliu; a Famlia sumiu... Como que faz?

    Acho que no estamos sabendo muito bem fazer essa passagem. Falan-do da internet, todos j experimentamos, vez ou outra, a possibilidade de nos apresentar como se fssemos outra pessoa dentro das redes sociais. Por que eu tenho de assumir que estou cinco quilos acima do meu peso, por exemplo? Bobagem! Simplesmente escolho postar uma foto mais antiga na qual apareo melhor, e assim, dou aos outros (quando no me engano a mim mesma) a impresso de que estou muito melhor do que na verdade estou.

    Como j disse, vivemos hoje a substituio de uma moral rigorista e autoritria por uma moral mais flexvel e individual, e encaramos uma nova forma de organizao social em que os comportamentos deixam de ser geridos pelos detalhes e acabam sendo geridos com o mnimo de constrangimento e com o mximo de compreenso. Ou seja, temos nos exigido cada vez menos e nos desculpado, pelo que quer que seja, cada vez mais. Assim tambm os adolescentes usurios de drogas. A maioria deles no compreende o descumprimento da lei (anti drogas) como um delito realmente srio. Foi s na festa, foi s para relaxar, foi s por-que estava todo mundo usando, e assim por diante. mais ou menos como as leis que no pegam. Essa tambm no pegou muito bem!

    O mnimo de constrangimento, concordo; o mximo de compreen-so, no sei muito bem se estou de acordo. Como que isso tem se dado? Tem se dado em uma vida louca. importante refrear um pouco essa histria, diminuir um pouco as velocidades, diminuir um pouco a possibilidade de tarefas mltiplas ao mesmo tempo.

    Antigamente, me orgulhava de dizer que era uma mulher multitarefa, hoje j no sou e no quero ser. Quando estou dirigindo, eu s dirijo. Dei-xei de usar celular h uns dois anos, e isso causou a maior polmica, foi uma revoluo na minha casa, com meus amigos, colegas, todo mundo achou que estava ficando louca. Falei: Mas porque eu estou ficando louca, vou ter que dar uma segurada na onda, eu no vou dar conta. Era

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    uma invaso na minha vida que no suportava mais.No sei como que as pessoas, no geral, lidam com a velocidade,

    mas no me parece que estejam lidando bem. No acho que a revoluo das comunicaes colocou as pessoas para se comunicarem mais, ou melhor. No nos comunicamos, no conversamos entre marido e mulher, mal temos tempo de ficar juntos, criar intimidade, cumplicidade, no nos comunicamos com os nossos filhos, vamos na onda. S que, quando se v, a coisa j passou e nem sabemos mais o que est acontecendo.

    Bem, voltando ao assunto das SPAs, quem que planta a droga? Planta por qu? Planta onde? O quanto planta? O que faz com a produ-o? Quanto dinheiro rende o comrcio? As Naes Unidas chegam a fa-lar de 600, 700 bilhes de dlares anualmente na negociao de drogas ilcitas. O negcio drogas significa a produo, o comrcio e o uso. com esse que mais ou menos com o que nos preocupamos, e deveramos nos preocupar com o abuso e a dependncia de substncias.

    Ento, finalizando, gostaria de dizer que ficaria satisfeita se vocs saissem desse encontro tendo em mente que, quando pensamos em dro-gas, temos de pensar nessas quatro vertentes produo, comrcio, uso e dependncia, no mnimo, para comearmos a realmente ser capazes de dialogar sobre esse tema. Outro ponto que me parece essencial a neces-sidade de uma atualizao constante. Temos de estar sempre tentando saber qual a situao atual, seno ficamos por fora e continuamos a defender pontos que j no representam mais a realidade. Terceiro pen-sar que vivemos esse momento de transio. Vamos assumir isso, vamos pensar nisso, vamos nos angustiar, vamos problematizar essa questo, vamos realmente assumir o nosso compromisso com este momento.

    Ser que d para continuarmos com uma poltica que fez algum su-cesso na dcada de 60? Uma das coisas que me escandaliza que at hoje, internacionalmente, lidamos com a Conveno de 1961, acrescida de alguns adendos (o ltimo de 1990, ou seja, de 22 anos atrs!). E com esse instrumental que continuamos lidando com o uso e abuso de SPAs, na segunda dcada do sculo XXI. Ento, para no pensarmos que est tudo perdido ou que tudo permitido nesse perodo de modificao dos padres da tica e da moral, vamos ter de encontrar um meio termo. E vamos tomar conscincia de que acabou o tempo dos comportamentos padronizados, da obedincia cega, da aceitao inconteste de limites. Vamos ter de encontrar uma forma de lidar com essas possibilidades mltiplas, com essa postura individualista, com os grupos ilimitados que, de to grandes, perdem seus contornos e nos levam a caminhar com passos errantes, meio que s cegas, correndo o risco de ocuparmos um lugar burlesco afirmando que tudo est ou pode vir a ficar sob controle.

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    Intervenes clnicas: o uso, abuso e dependncia de drogas

    Eroy Aparecida da SilvaPsicoterapeuta familiar; pesquisadora na rea de lcool

    e Outras Drogas-Unidade de Dependncia de Drogas

    Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas;

    doutoranda em Cincias Departamento de Psicobiologia

    Universidade Federal de So Paulo (Unifesp)

    apreseNtarei um paNorama geral sobre os tratameNtos para dependncia de drogas, ou seja, intervenes clnicas que se propem a tratar pessoas, grupos ou famlias em que o problema em relao ao consumo provoca prejuzos. Nesse sentido, no podemos deixar de refletir sobre algumas questes gerais em relao ao tema.

    Primeiro, que a droga psicoativa um assunto que traz percepes e sentimentos variveis: curiosidade, temor, estigma, preconceito. Sen-timentos que mobilizam o imaginrio das pessoas de muitas maneiras, mesmo que estas tenham uma srie de informaes sobre os riscos e prejuzos. Ter informao no significa necessariamente ter formao.

    O uso de drogas acompanha a histria da humanidade e foi passan-do por diferentes formas de consumo, manuseio e funo, chegando at nossos dias com inmeros significados, entre eles busca de prazer, alvio imediato, fonte de renda, etc. Assim, entre os inmeros desafios da contemporaneidade em relao ao uso de drogas, est refletir os contextos onde ele est inserido ou mesmo o que o mantm e constri. Assim, necessrio ampliar o olhar para alm da droga. Esta percepo nos convida cada vez mais para a implantao e manuteno de pol-ticas pblicas de incluso e cidadania, para que possamos, cada vez mais, lidar com os desafios da sociedade de modo geral onde a droga est includa. No podemos esquecer que vivemos em uma sociedade sedutora, competitiva e individualista, em que temos inmeros desa-fios: a violncia intra e interfamiliar, o desemprego, os bolses de po-breza (que persistem em inmeras regies brasileiras), e a mdia traba-

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    lhando visivelmente a favor da glamorizao das drogas lcitas, como o lcool. Ento se faz necessria a coragem de abraarmos esse desafio e trabalharmos dentro de uma proposta preventiva de incluso e no de represso. Esta viso tem uma repercusso clara nas nossas prticas, sejam elas preventivas ou clnicas.

    Uma segunda questo a ser discutida ainda neste panorama geral a diferenciao entre o uso, o abuso e a dependncia de drogas. So fenmenos muito diferentes dentro de um mesmo tema, que pedem uma diversidade de intervenes com amplo espectro, passando pela pre-veno, interveno clinica durante e aps o tratamento, o que ainda pouco comum no Brasil. Grandes investimentos so realizados durante o tratamento, mas poucos recursos so despendidos com a preveno e o ps-tratamento incluindo a reintegrao social. Ainda precisamos avan-ar na questo da diversificao destas intervenes, uma vez que os indivduos tm diferentes necessidades.

    O abuso de drogas um comportamento evitvel, mas pode no es-tar circunscrito apenas ao indivduo. Assim, para que possamos evit-lo, necessrio repensarmos as polticas pblicas voltadas para a juventu-de. As prticas de sade e educao para os adolescentes, de maneira geral suscetveis curiosidade e seduo em relao aos efeitos das drogas, carecem de reviso. Estou me referindo a algo mais criativo e interessante que motive os jovens a se interessarem por alguma coisa que no seja o uso de drogas.

    As prticas educacionais nas escolas so chatas e pouco inclusivas. Nesse sentido, necessrio aprimorarmos a linguagem e as formas de tratar o adolescente, que, por vezes, acaba sendo cooptado pelo narco-trfico, em funo de falta de polticas pblicas que o encaminhem para uma proposta de vida mais interessante.

    A dependncia de drogas um problema que, embora complexo e passvel de tratamento, passa uma idia de que difcil de ser solucio-nado. Essa a viso dos prprios profissionais de sade, que tm uma viso estigmatizada sobre essa questo.

    Dependncia vem de uma palavra latina que significa dependere, ou seja, estar intrinsecamente ligado a algo ou algum, no caso droga. um vnculo desequilibrado que o indivduo estabelece com as diferentes substncias psicoativas, um conjunto de sinais que caracterizam a sn-drome da dependncia. um fenmeno complexo, que exige um olhar para o indivduo em diferentes fases da sua vida, dentro de um contexto onde pode fazer o uso de uma ou vrias substncias lcitas, ilcitas ou ambas. Ento, no vamos olhar para a droga somente, mas para todo o contexto pessoal, social e psicolgico da pessoa.

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    Outro ponto que precisa ser discutido a questo de que, quando nos referimos s intervenes clnicas ou tratamentos para a dependn-cia de drogas, estamos voltados para um conjunto de procedimentos que envolvem, de maneira geral, um alto custo e uma equipe multidisciplinar capacitada. O que est na base da interveno clnica o modelo terico e prtico da etiologia da dependncia. Vale ressaltar que ele veio se trans-formando e avanou no decorrer do tempo. So eles: o modelo moral, o mdico e o da sndrome de dependncia e do comportamento aprendido.

    Assim surge outro desafio que divido didaticamente em uma trade: demanda do tratamento para dependncia; o terapeuta ou cuidador; e o lugar da instituio que est oferecendo a interveno. sobre essa ques-to que irei tratar, pois ela est diretamente relacionada a nossas prticas.

    Em qualquer interveno clnica, independente da abordagem, exis-te um pedido para o tratamento, do prprio usurio, da sua famlia, de ambos ou do judicirio. Por isso necessrio termos uma escuta sens-vel em relao demanda do tratamento, pois muitas vezes os profissio-nais esto to voltados para o que tm a oferecer, que se esquecem de questionar se aquela pessoa, de fato, ir se beneficiar da interveno que est sendo oferecida.

    Na outra ponta do tringulo, temos a pessoa do cuidador. Quem essa pessoa? Como as instituies ou o Estado fazem para cuidar do seu cuidador? Sabemos como desafiador trabalhar na linha de frente com dependentes de drogas e suas famlias. Invariavelmente, trabalhamos tambm com outras questes como a violncia, doenas sexualmente transmissveis, problemas legais ou ilegais como, por exemplo, o trfico de drogas, a falta de locais para internaes quando estas se fazem ne-cessrias, entre muitas outras. Assim, os profissionais recebem todo o impacto da demanda e no so adequadamente cuidados pelas institui-es, gerando muito vezes afastamento, absentesmo ou desmotivao em relao ao exerccio de suas atividades profissionais.

    Na ponta do tringulo est outro desafio: de que lugar terico os pro-fissionais esto falando? Qual teoria embasa a prtica teraputica? Que modelo etiolgico a instituio tem sobre a dependncia?

    Como j mencionado anteriormente, em nenhum momento da hist-ria humana existiu uma civilizao livre de qualquer substncia. Sabe-mos que, aps a Revoluo Industrial, o uso de drogas foi mudando a sua funo. De um uso ritualizado, ligado a prticas religiosas, para um uso mais hedonista, individualista, de busca de prazer para o alvio de diferentes dores, sejam elas fsicas ou psquicas.

    A droga no um fenmeno isolado, no podemos buscar culpados em relao essa questo. necessrio ampliarmos o nosso olhar para

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    a transdisciplinaridade e trabalhar cada vez mais com responsabilidade social e com polticas de incluso e, se pensamos nas intervenes por conta dessa complexidade, estas intervenes precisam e devem respei-tar essa diversidade. impossvel o enfrentamento deste problema sem a construo de polticas publicas inovadoras, criativas e efetivas para o seu enfrentamento.

    Uma das dificuldades que temos no Brasil em relao s interven-es clnicas na rea de lcool e outras drogas a de conviver com a diversidade de abordagens e avaliar a sua efetividade. importante ressaltar que no existe tratamento melhor ou pior, e sim pessoas que se adaptam melhor a uma ou outra abordagem. Entretanto todas elas necessitam de avaliao e mudanas que possam ir ao encontro de uma prtica constantemente adaptada s demandas sob a perspectiva das construes e ampliaes das redes sociais de parceira e cooperao.

    O que existe hoje no Brasil, do ponto de vista de poltica pblica so-bre sade na rea de drogas, um grande investimento financeiro nos tratamentos e pouca ateno na preveno e cuidados ps-tratamento. A grande maioria das propostas trabalha intensivamente na questo da interrupo do consumo (que necessria), mas dedica pouca ateno manuteno do comportamento de mudana. Nesse sentido, neces-sria a construo de redes de polticas sociais que realmente garantam que esse indivduo possa voltar a beber moderadamente ou parar de fa-zer o consumo definitivamente de uma determinada droga, ou mesmo ser reinserido dentro de um programa social que o inclua como cidado, trabalhador e protagonista de sua prpria vida. Se isso no acontecer, ele tem srios riscos de recair e ficar entregue ao fenmeno anacrnico da invisibilidade social, despatriado da sua histria.

    Quando e como intervir? Hoje, dentro de uma viso ps-moderna da evoluo do conceito de dependncia, temos a questo do consumo e de problemas que podem ir tanto de nenhum at o pesado, entendendo isso como um continuum e no mais como uma viso unitria da questo.

    Portanto, necessrio ateno nas trs fases: preventivamente, quando ainda no existe o problema; em uma fase intermediria, em que as inter-venes breves tm apresentado resultados encorajadores; e, finalmente, as intervenes clnicas para os dependentes de lcool e outras drogas.

    As intervenes clnicas incluem tratamentos comunitrios, interna-es, frmacos e psicoterapias. Dentro das propostas psicoteraputicas existem diferentes modalidades de interveno: individual, grupal e fa-miliar. Atualmente reconhecida a importncia da incluso da famlia no tratamento para dependentes, porm a cultura de tratamento enfatiza mais o usurio do que sua famlia.

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    Na evoluo do conceito de dependncia, temos trs conceitos b-sicos que certamente embasam os modelos de tratamento. O modelo moral que foi substitudo por um modelo mdico, inicialmente dentro de uma viso unicista de doena. A partir da dcada de 70, a viso unicista, ou seja, ser ou no ser dependente se ampliou e passou a ser conside-rado como uma sndrome. Isso propiciou o surgimento de vrias aborda-gens de tratamento da dependncia de drogas, entre elas a cognitivo/comportamental. A dependncia de drogas compreendida atualmente como fenmeno biopsicossocial de mltiplas causas cujas propostas de tratamento so variveis. O tratamento aqui compreendido como um conjunto de procedimentos que envolvem cuidados clnicos, supor-tes sociais, psicoterapia, equipe clnica. Entretanto vale ressaltar que, sem suporte financeiro para os projetos clnicos, fica difcil o desenvol-vimento de intervenes clnicas efetivas envolvendo as psicoterapias e internaes domiciliares (IDs). As internaes domiciliares surgiram como uma proposta devido s dificuldades em relao s vagas para as internaes dos dependentes. Nas IDs a famlia orientada em relao ao programa de desintoxicao.

    Costumo apresentar as intervenes clnicas para dependentes de drogas comparativos a uma rvore que, aps o tronco, apresentam mui-tos galhos que esto se desenvolvendo e outros se ampliando.

    Dentro das psicoterapias, nos deparamos com vrias propostas inter-ventivas com diferentes referenciais tericos e modalidades: a cognitivo--comportamental, a preveno de recada, a terapia motivacional, a psi-codinmica, a terapia individual, a de grupo e a de famlia. Esta ltima vem ganhando fora na rea do tratamento de dependentes de drogas no Brasil.

    As intervenes breves tambm chamam ateno para a importncia de detectar precocemente o problema na rede bsica de ateno sa-de. Pois muitas vezes a pessoa est em fase intermediria do problema e dificilmente buscar tratamento em um servio especializado para dro-gas. Vrios resultados com intervenes breves apontam que estas no so menos efetivas do que as intervenes mais longas, principalmente se a pessoa ainda no desenvolveu a dependncia.

    Vale ressaltar a necessidade de avaliarmos a efetividade do trata-mento. No basta apenas o tratar ou como tratar, mas tambm quais so os resultados que estamos obtendo com este tratamento. No Brasil, os servios para dependentes se dedicam pouco avaliao dos resulta-dos, ou seja, s evidncias.

    Atualmente a psicoterapia cognitivo/comportamental, associada ou no tratamentos farmacolgicos, tem apontado resultados encorajado-

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    res no tratamento da dependncia de lcool e de outras drogas. A entre-vista motivacional do dependente e de sua famlia tambm importante, pois existem evidncias que apontam que as pessoas motivadas apre-sentam melhores resultados no tratamento. Entretanto, sabemos que muitas vezes a pessoa, quando busca o tratamento, no necessariamen-te est motivada, por isso, a ateno e cuidados em relao motivao deve ser meta do tratamento.

    O princpio bsico de qualquer abordagem que inclua interveno cl-nica na rea de drogas o diagnstico. Conhecer o conceito sobre o uso de droga do paciente e da sua famlia, planejar o tratamento e realiz-lo.

    O processo deve seguir um planejamento, que deve comear ime-diatamente aps o diagnstico. Definido o problema e com o panorama geral do consumo, vem o momento de estabelecer os objetivos e metas do tratamento; reconhecer as situaes de risco e proteo; criar estrat-gias de enfrentamento; e aprender novas habilidades para lidar com as fissuras e prevenir recadas.

    Para finalizar, destaco a necessidade do cuidado em relao equipe clnica que trabalha na linha de frente de tratamento com dependentes de drogas. A capacitao sistematizada e contnua fundamental, assim como as supervises clnicas. As principais funes desses profissionais so de facilitadores e colaboradores teis. necessrio, a todo o momen-to, cuidar da nossa sndrome de salvador ou desejo ilimitado de fazer tudo. Nosso papel o de motivar e encorajar o indivduo e a famlia no resgate ou construo de suas competncias sem rotular e estigmatizar. Estabelecer limites claros, evitar confrontos e, principalmente, identificar e dominar as nossas reaes e os nossos prprios preconceitos.

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    Mitos e dados epidemiolgicos a respeito do uso de drogas

    Elisaldo Lus de Arajo CarliniProfessor-titular aposentado e orientador de ps-

    graduao do Departamento de Psicobiologia da Unifesp;

    diretor do Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas

    Psicotrpicas (Cebrid) do Departamento de Psicobiologia

    da Unifesp.

    O primeiro mito no qual todos embarcamos, imprensa, governo e socie-dade, aquele de que o problema da droga o submundo, o trfico, a questo das substncias ilcitas. Temos de mostrar que isso no ver-dade. Se pegarmos todas as drogas ilcitas e lcitas (incluindo o lcool e o tabaco) que so consumidas pelo ser humano, no caso o brasileiro, teremos um quadro extremamente curioso.

    Tenho dados do consumo de drogas no Brasil que chamo de uso na vida. Isso se refere quelas pessoas que experimentaram e que podem ter usado as substncias algumas vezes. Temos a maconha com 8,8% e a cocana com 2.9 %. O total de uso na vida de drogas ilcitas, que o que mais preocupa, est em 13,8%. onde a imprensa focaliza, e a polcia e a justia esto atrs.

    Agora, se pegarmos as drogas ou medicamentos lcitos, ou seja, substncias legalizadas e aprovadas pelo Governo, temos um nmero que praticamente o dobro, se comparado aos 13,8%: 24,3%, dado que no entra no mrito do lcool e do tabaco.

    Vejamos os solventes, que apesar de seu uso ilcito, tm sua venda per-mitida e esto em primeiro lugar, com 6,1% da populao nacional entrevis-tada. Fizemos uma enquete domiciliar nas 108 maiores cidades do Brasil.

    Em segundo lugar, os benzodiazepnicos, que so medicamentos, portanto, lcitos. Certamente, muitos de ns at j os usaram para dor-mir, inclusive eu. Existem tambm os Orexgenos, substncias para abrir o apetite, mais consumidos pelos jovens, mas que trazem alteraes

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    mentais: 4,1%. Os estimulantes, principalmente as anfetaminas anorti-cas, usadas para tirar o apetite, so lcitas, mas de uso ilcito.

    Opiceos so todas as drogas e substncias oriundas do pio, entre elas, a herona e a morfina. So as grandes drogas de abuso no mundo todo, mas, felizmente, de pouco uso no Brasil.

    Porm temos a codena e algumas substncias para a tosse, como o tilex, que uma substncia que tem codena e paracetamol. Assim, na verdade, somando tudo isso, h 24,3% de uso no mdico. Esse o primeiro mito que gostaria que ficasse claro.

    Se vocs olharem na imprensa, para os cursos que so dados e tudo o que feito no Brasil sobre drogas, vo perceber que o real problema no Brasil so as drogas lcitas. Se contarmos o lcool, ento, nem deveramos falar de outras substncias.

    Ser que o jovem o grande problema? Vejam esta frase e tentem imaginar qual seria a poca em que foi dita: Um jovem se aproximou de mim: estava barbudo, com a roupa suja, usava uma espcie de bata. Tipo que realmente detesto. As ideias (de certos filsofos) tm sido empalmadas por tais preguiosos, embora no tenham eles nenhum in-teresse pela filosofia... Esses malandros zombam de tudo, inclusive da verdade, usando a mscara da filosofia para esconder licenciosidade irresponsabilidade. Tenho essa frase desde o tempo em que o Estado brasileiro era um regime militar.

    Vocs so capazes de dizer o nome desse jovem? Ah, era o Erasmo, o Erasmo, disse um secretrio de segurana pblica de So Paulo na poca. Mas o autor dessa frase foi o imperador Juliano, no sculo IV d.C.

    Isso algo que ocorre permanentemente. Achamos que esses jovens que predominavam naquela poca, barbudos, cabelos compridos, era aquilo que estava sendo descrito pelo imperador romano no sculo IV d.C.

    Um pouco mais tarde, surge em So Paulo um declogo para o pai saber se o filho ou a filha estava usando drogas. Eram dez regras: Se seu filho ou filha tem chegado em casa aborrecido, vai direto para o quarto e l se tranca, tome cuidado; Se seu filho fica trancado ouvindo umas msicas que voc no sabe bem o que , tome cuidado; Se seu filho de vez em quando tem uns papis escondidos e, de repente, o papel est vazio, tome cuidado.

    E por a vai. Ou seja, uma simples crise de adolescncia leva a famlia a acreditar que aqueles so sinais de uso de drogas.

    Vejam que interessante este texto extrado da revista Querida, que minha filha mostrou: um ou uma adolescente escreveu para a revista: Tenho um grande problema, eu acho que o meu pai est consumindo drogas. Achei um monte de saquinhos plsticos no armrio. Alm disso,

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    tem desaparecido dinheiro de nossa casa e ele est sempre dando uns telefonemas estranhos, falando baixinho. Volta e meia, depois de uma das ligaes, ele inventa um compromisso urgente, sai e s volta de tar-de. Ainda no toquei no assunto com a minha me, pois no quero deix--la apavorada, e nem com ele, porque tenho medo que v ficar zangado.

    Isso algo que, muitas vezes, acaba ocorrendo: a distoro por quem ouve uma mensagem que no tem nenhum sentido a princpio. O jovem incorporou alguns comportamentos do pai, achando que ele tinha pro-blemas de drogas, mostrando a inutilidade de muitas das coisas que in-vertemos para fazer um programa antidrogas, pensando sempre que o jovem o grande envolvido.

    Fizemos dois levantamentos domiciliares, j publicados. O primeiro foi em 2001; o segundo, em 2005. H ainda um terceiro, para ser inicia-do. Uma das perguntas do nosso questionrio sobre o uso regular de alguma substncia. Pelo que apresentei, o grande problema no Brasil o lcool. O restante, cocana, maconha, ecstasy, coisa de criana em ter-mos de seriedade. Nosso ltimo levantamento domiciliar diagnosticou 12,3% de pessoas, nas 108 maiores cidades do Brasil, com problemas que sugerem, ou concluem, a dependncia do lcool.

    A pergunta que fizemos foi sobre o uso regular de lcool, se faz o con-sumo de bebidas alcolicas pelo menos de trs a quatro dias por sema-na, incluindo aqueles que bebem diariamente. Fizemos uma distribuio por faixas etrias.

    Se esse uso frequente ou no, o jovem que mais consome? No. Na faixa etria de 12 a 17 anos, encontramos apenas 0,1%, que bebe pelo menos de trs a quatro vezes ou diariamente. O nmero vai au-mentando junto com a faixa etria: a partir dos 25 anos, 6,3%, e, acima de 35 anos, 7,4%.

    Ento, na verdade, beber diariamente no um diagnstico de de-pendncia. Existem outros critrios a considerar. A pessoa pode at be-ber um pouco mais e no ser dependente. O ltimo levantamento feito em 2005 apresentou 10,3% de dependentes no Brasil. Podemos tirar da cabea que o lcool o grande problema do jovem no Brasil.

    Discuto muito esse problema de critrio com meus alunos. O fato de uma pessoa se encaixar em critrios que classificam a dependn-cia no significa, na prtica, que ela seja dependente. Ela pode ter as caractersticas, mas, de acordo com as circunstncias mltiplas que existem para contornar o uso de drogas, pode no haver dependncia nenhuma.

    Tambm procuramos saber a facilidade que tem o jovem para procu-rar droga. A pergunta: Voc acha ser muito fcil conseguir maconha?

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    impressionante: todos acham muito fcil, desde as crianas de 12 a 17 anos, que so 54%, at aqueles com mais de 35 anos, 56%.

    Isso nos traz uma questo: ou as crianas ouvem falar muito disso, porque pregoado dia e noite na mdia e, por isso, acabam repetindo uma ideia, ou elas tiveram contato com pessoas que usam e sabem ser fcil conseguir. De qualquer maneira, revela, no mnimo, um descuido quando falamos do trip. Para a ao em termos de drogas, seria a ento a reduo da oferta ou represso.

    Procuramos saber tambm como os jovens adultos responderiam questo sobre se seria ou no um risco grave usar drogas. Perguntamos se era um risco grave beber um ou dois drinques por semana. Cerca de 29,6% dos jovens de 12 a 17 anos, que bebem uma ou duas vezes por semana, consideram o lcool um assunto preocupante. Quase um tero da populao consultada acha que beber uma ou duas vezes por semana um risco grave.

    Porm, se um risco grave, por que essas pessoas consomem al-cool? Por que no Brasil temos 12.3% de dependentes? Isso outro pon-to fundamental. Mais importante que esses nmeros saber por que, apesar da conscincia de que beber um ou dois drinques por semana perigoso, as pessoas seguem bebendo.

    Vou comentar a famosa tcnica da pedagogia do terror que nunca deu resultado em lugar nenhum e o que todo mundo tem feito no Brasil. Exageram, em demasia, os perigos da droga e negam que ela produza prazer. Com essa atitude, se nega a veracidade da mensagem.

    O fato de saber que tem perigo sem dar uma mensagem completa, a meia verdade ou, como se diz, a pedagogia do terror, no tem levado nenhum sucesso aos programas de preveno.

    Perguntamos, e a maconha? Surpreendente que 40% dos entrevistados, independentemente da idade, acham que fumar uma ou duas vezes na vida um grande perigo.

    A pergunta foi feita com o propsito de saber de um risco suave, um risco moderado, um risco grave. Isso mostra tambm que a campanha da pedagogia do terror funciona: avisa que pode ser grave, mas no eficaz do ponto de vista prtico.

    No terceiro lugar, comparamos, diante dessas informaes, o que ocorre com as internaes. Temos dados de mais de 20 anos. A ltima publicao que fizemos foi em 1999. Temos, inclusive, informaes de hospitais psiquitricos.

    Vimos por idade tambm. Desde 1999, 36.912 pessoas foram inter-nadas por problemas agudos de intoxicao ou dependncia de lcool. A faixa etria das internaes predominou acima de 30 anos. O alcoolismo

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    , realmente, algo que atinge as pessoas no decorrer dos anos.Com todas as outras substncias psicoativas juntas maconha, co-

    cana, ecstasy, mescalina d pouco mais de 6.400 pessoas, predomi-nando na faixa etria de 18 a 30 anos de idade. Ou seja, muito menos que s o lcool. Esse conhecimento tambm nos faz concluir algumas coisas mais teis em termos de preveno. Por exemplo, h uma faixa etria mais prpria para se falar de lcool, que poderia ser logo no co-meo, para evitar que mais tarde isso acabe ocorrendo. No jovem, a faixa etria em que mais o problema mais ocorre entre os 18 e 30 anos. Isso deveramos imaginar, ento, como algo que seria importante para o es-tudo a respeito de programas futuros.

    Fomos ao Instituto Mdico Legal de So Paulo, Santos e Natal. Em So Paulo, em 2002, conseguimos os laudos de todos os casos de mor-te nonatural e sem causa definida, como assassinato e atropelamento. Nessas pessoas, fizemos exames no sangue por lcool e droga. De cerca de 2.612 laudos cadavricos, s 499 eram negativos para o lcool; 2.074 cadveres j tinham alguma quantidade quase inacreditvel de lcool.

    Aproveito e fao um comentrio breve a respeito da atual Lei Seca no Brasil. Dizem que est dando resultados, que est funcionando. Graas a Deus, preciso mesmo que se ache algo que funcione. Mas h um as-pecto curioso: essa lei enfatiza o no dirigir, ela no enfatiza no beber ou beber adequadamente.

    Isso para mim um erro gravssimo, porque o que no foi estudado ainda, e eu gostaria que fosse, o que ocorre com o indivduo que chega de carro a um bar e que, depois de beber demais, deixa o carro l e volta de txi. Mas, se ele no tiver dinheiro suficiente, voltar a p. Vocs j imaginaram o que um bbado na rua andando? O perigo que ele cor-re muito maior do que dirigir. J imaginaram um bbado entrando em um nibus noite e criando caso? So coisas que a lei no prev. No pensamos em coisas assim, bvias. Mas preciso.

    Preocupamo-nos muito tambm co