Cultura do medo

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Edição Raça Brasil

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Page 1: Cultura do medo

70 | RAÇA BRASIL

provada em um concurso público em 1998 para ser professora na rede pública de ensino do Distrito Federal, ela logo assumiu a direção da escola. Na época, era a única negra com ensino superior. A promoção, porém, lhe causou vários problemas que,

mais tarde, se transformaram em combustível de luta e perseverança em sua vida. “Meus procedimentos e postura incomodou. Alguns

não queriam me enxergar como uma profissional capacitada e sim uma “mulher sensual”, fui colocada em situações vexatórias, sofri assédio sexual e fui vítima de invenções sobre o meu caráter”, conta. Na escola, faziam tudo para que ela deixasse o cargo. Uma grande pressão emocional. Até a geladeira da escola foi desligada para que a carne da merenda escolar estragasse e o responsável – a diretora – fosse punido. Mesmo assim, Márcia procurava ser uma profissional pró-ativa, buscando métodos alternativos de aprendizagem para os alunos, a maioria de classe muito pobre. “Era um trabalho de inclusão social, criei uma biblioteca escolar, realizei um programa de turismo cívico, palestras da Polícia Federal sobre o perigo do uso de entorpecentes. Até merenda escolar, quando não tinha, eu e meu pai comprávamos com recursos próprios. Este trabalho despertou raiva nas pessoas”.

SUPERAÇÃO

Quebrando aCULTURA DO MEDO

A

70 | RAÇA BRASIL

por ANDRÉ REZENDE fotos ARQUIVO PESSOAL | SHUTTERSTOCK

A PEDAGOGA MÁRCIA SEVERINO DE OLIVEIRA, DE 41 ANOS, É PÓS-GRADUADA EM PSICOPEDAGOGIA COM ESPECIALIZAÇÃO

EM COMBATE À VIOLÊNCIA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO E, SOBRE O ASSUNTO, SABE BEM O QUE FALA, POIS VIVEU NA PELE

UMA SÉRIE DE RESTRIÇÕES E HUMILHAÇÕES EM LOCAIS QUE, A PRINCÍPIO, EXISTEM PARA ENSINAR E EDUCARMárcia Severino de

Oliveira, uma das criadoras do Instituto Cultura e Paz

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70 | RAÇA BRASIL

provada em um concurso público em 1998 para ser professora na rede pública de ensino do Distrito Federal, ela logo assumiu a direção da escola. Na época, era a única negra com ensino superior. A promoção, porém, lhe causou vários problemas que,

mais tarde, se transformaram em combustível de luta e perseverança em sua vida. “Meus procedimentos e postura incomodou. Alguns

não queriam me enxergar como uma profissional capacitada e sim uma “mulher sensual”, fui colocada em situações vexatórias, sofri assédio sexual e fui vítima de invenções sobre o meu caráter”, conta. Na escola, faziam tudo para que ela deixasse o cargo. Uma grande pressão emocional. Até a geladeira da escola foi desligada para que a carne da merenda escolar estragasse e o responsável – a diretora – fosse punido. Mesmo assim, Márcia procurava ser uma profissional pró-ativa, buscando métodos alternativos de aprendizagem para os alunos, a maioria de classe muito pobre. “Era um trabalho de inclusão social, criei uma biblioteca escolar, realizei um programa de turismo cívico, palestras da Polícia Federal sobre o perigo do uso de entorpecentes. Até merenda escolar, quando não tinha, eu e meu pai comprávamos com recursos próprios. Este trabalho despertou raiva nas pessoas”.

SUPERAÇÃO

Quebrando aCULTURA DO MEDO

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70 | RAÇA BRASIL

por ANDRÉ REZENDE fotos ARQUIVO PESSOAL | SHUTTERSTOCK

A PEDAGOGA MÁRCIA SEVERINO DE OLIVEIRA, DE 41 ANOS, É PÓS-GRADUADA EM PSICOPEDAGOGIA COM ESPECIALIZAÇÃO

EM COMBATE À VIOLÊNCIA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO E, SOBRE O ASSUNTO, SABE BEM O QUE FALA, POIS VIVEU NA PELE

UMA SÉRIE DE RESTRIÇÕES E HUMILHAÇÕES EM LOCAIS QUE, A PRINCÍPIO, EXISTEM PARA ENSINAR E EDUCARMárcia Severino de

Oliveira, uma das criadoras do Instituto Cultura e Paz

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“Nós negros, principalmente as mulheres, devemos estar preparados contra armadilhas e nunca deixar de lutar por espaço e oportunidade que temos direito. Infelizmente alguns educadores ainda carregam consigo concepções negativas quanto às pessoas de outras raças e, dentro de nossa cultura, o que geralmente é passado - até mesmo nos livros didáticos - é o negro como subserviente, submisso e com insuficiência intelectual”, alerta.Outro objetivo da professora que ganha força a cada dia é o Projeto Quebrando a Cultura do Medo, que visa a promover a igualdade racial, socializando os direitos humanos sem a distinção de raça, etnia, gênero, classe social ou opções políticas e religiosas. “Meu falecido pai sempre me ensinou que não é necessário ter poder para se chegar ao poder. Cultura do medo é quando as pessoas estão alienadas sobre os seus direitos, pensam que não podem, que não sabem, que não são capazes. É como dizer ‘não é para mim, eu não mereço. Com Zumbi foi assim! Colocaram sua cabeça exposta em praça pública para causar medo, para que ninguém mais fosse corajoso, audacioso ou herói”. Intimidação é a palavra exata! E qual o primeiro passo para se quebrar essa cultura? “Acreditar em seu potencial, mais nada”, responde Márcia.

Mulher negra, inteligente, com formação e consciência social... Um prato cheio para invejosos e preconceituosos. As perseguições e calúnias continuaram até o ponto em que Márcia adoeceu, teve perda de memória, estresse agudo, pânico mesmo! Para voltar a conseguir falar em público fez até um curso de oratória emocional. Era a sua primeira experiência profissional. Antes do concurso público, tinha seu próprio negócio. “Eu não sabia que o ser humano era tão competitivo e mesquinho no campo de trabalho”. O segundo emprego foi em uma biblioteca pública, isso depois de um aperfeiçoamento na área. Novamente recebeu um convite para ser a diretora, mas não aceitou, pois ainda estava traumatizada quanto a ter “títulos”. O bom trabalho, porém, não a livrou de novas perseguições e humilhações do tipo “se você não fizer o trabalho direito irá para o tronco”. Ela deixou o trabalho, entrou em depressão profunda e conseguiu se reerguer graças ao Grupo de Apoio às Vítimas de Assédio Moral no Trabalho (GAVAM). Desde então, o Brasil ganhou uma guerreira contra todas as formas de injustiça, principalmente o combate ao Bullying (no ambiente escolar) e ao Mobbing (no ambiente de trabalho), termos ainda pouco divulgados, mas que podem ser traduzidos como ofensas, perseguições, agressões físicas, assédio moral, preconceito e discriminação. Devido a sua traumática experiência, Márcia, junto a amiga Rosemeiry Rodrigues - também professora e vítima de Bullying, e a primeira mulher no Brasil a ganhar um processo na justiça por causa dele – criaram a Ong Instituto Cultura e Paz (I.C.P), tendo como proposta principal a Campanha Nacional em Combate á Violência nas Instituições de Ensino, com visitas realizadas em escolas e palestras com coordenadores, apoiados pela SEPPIR e outros parceiros. “Trabalhamos diretamente com o corpo docente a conscientização sobre o respeito ao próximo, sem que haja distinção de raça, cor, gênero e classe social. Foi o meu grito de libertação contra qualquer tipo de angústia”, explica Márcia, mais uma a brasileira a lutar contra a perseguição aos negros nas instituições de ensino e no ambiente de trabalho.

UM GRITO DE LIBERDADE

A CULTURA DO MEDO

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