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CUIABÁ, 12 A 18 DE ABRIL DE 2012 CULTURA Por Luiz Marchetti Luiz Marchetti é cineasta cuiabano, mestre em design em arte midia, atuante na cultura de Mato Grosso e é careca. [email protected] Você sobe a Rua Voluntários da Pátria e chega à Rua ZULMIRA CANAVARROS ainda que a prefeitura coloque nas paredes o nome da rua de outra maneira. Ali na antiga Rua do LIVRAMENTO viveu grande nome, raiz importantíssima de nossa história e dessa futura Cuiabá sub sede da copa. A musicista e escritora teatral foi uma das fundadoras do Mixto Esporte Clube e a criadora do hino do clube alvi- negro. No Estado crescem os olhos para homenagearem ruas com nomes de parentes de políticos que muitas vezes imprimem uma gestão não muito desejável e isso é triste. Realmente é um absurdo a ausência de uma pesquisa, de uma campanha para promovermos cidadãos que historicamente fizeram algo por esta região. Nenhuma cidade merece o nome de um parente de político em suas ruas apenas porque o político decidiu. Batismos vergonhosos. Que os netos e filhos desses ninguéns homenageados tenham vergonha das palhaçadas de seus pais políticos - pavões sem ética, sem pesquisa, sem pé nem cabeça. Esse trato urbano como um brinquedo familiar é humilhante pro futuro de uma população que um dia olha para sua historia e vê o nada, apenas a canetada política. Zulmira marcou a história de Mato Grosso com criatividade, inovação e comprometimento apaixonado. Trouxe o rasqueado para o piano, fundou em 1928 o Clube Feminino e em seguida a rádio A Voz do Oeste e o Mixto Esporte Clube. É um descaso o nome errado na rua que a homenageia. Retrato dessa bagunça onde quem nada fez por nós ganha memória popular e quem muito construiu desaparece entre erros e desleixos. Depois da hora do banho, nos finais de tarde, as pessoas puxavam as cadeiras para a calçada e sentavam-se à porta das casas. Cena bem típica de uma Cuiabá que já vai longe, quando Zulmira ainda estava na barriga de sua mãe, Sinhá Luiza, no crepúsculo do século XIX. Siá Dozinha, mãe de Gabriel, pai de Zulmira e, portanto, sogra de Sinhá Luiza, morava com o casal recém-casado e segundo relatos de minha mãe, bisneta de Siá Dozinha, que na verdade é minha trisavó, era uma mulher de língua ferina e afiada. Sempre que podia dava uma espetada pra doer nas pessoas em volta. Com a nora, Sinhá Luiza, não foi diferente. A jovem esposa comeu o pão que o diabo amassou das mãos da própria sogra. Mas sofreu com resignação, sem se queixar, calada. As lágrimas lhe caiam silenciosas e ela preferia deixar que o tempo cuidasse de tudo. Sinhá Luiza era uma mulher belíssima. Alta, magra, pescoço esguio que lhe atribuía um porte elegante natural. Seus vestidos longos de golas altas e plissadas, sempre bem talhados, obras de sua própria confecção de exímia costureira que sempre foi, caíam-lhe como uma luva e conferiam-lhe ares de soberana. Tinha um olhar forte, penetrante e misterioso. O cabelo era preso em coque. Na boca, um sorriso que se ensaiava timidamente no canto dos lábios, mas não ousava se arriscar por toda a face. Era discreta, como deviam ser todas as mulheres da época. E tudo isso eu sei, porque sempre observei com atenção um quadro com o retrato dela, que ficava pendurado na parede da sala do casarão de meu avô, lá na Rua do Livramento (hoje Zulmira Canavarros), esquina com a Floriano Peixoto. Certa vez, num desses finais de tarde, sentadas à porta, passou uma conhecida que parou para um dedinho de prosa com as duas. No meio da conversa, vendo Sinhá Luiza com aquele barrigão, comentou: “E então, Siá Dozinha! Feliz da VISÃO MUITO PARTICULAR DE UM NETO vida com o netinho que vai chegar?” E Siá Dozinha, sem perder tempo, respondeu como uma flecha: “Ah! Isso eu não sei. Porque filho de filha, meu neto é. Agora, filho de filho, será ou não”. Imagino que nesse momento, Sinhá Luiza ouviu calada mais uma vez, deixando o choro para depois na solidão de seu travesseiro. Zulmira nasceu, mas seu pai, o meu bisavô Gabriel, que exercia o honroso ofício de guarda-livros, não se conformava. Ele queria um filho homem e assim sendo, resolveu contrariar o destino com uma atitude, no mínimo, caprichosa. Percebendo que Sinhá Luiza não lhe daria mais filhos e que, portanto, Zulmira seria sua filha única, Gabriel passou a vestir a menina com roupas de guri. Sinhá Luiza, num primeiro instante, se recusou a confeccionar as tais roupas na sua velha máquina Singer de manivela, obrigando Gabriel a contratar os serviços de um alfaiate, mas logo depois a compreensiva mulher se conformou. Esta situação perdurou por muitos anos da infância de Zulmira. Gabriel, ao contrário de Sinhá Luiza, não era dotado de grande beleza. Tinha um rosto comum emoldurado por um vasto bigode preto e uma pêra triangular minúscula, cuidadosamente aparada, no queixo. O cabelo preto, liso e curto era penteado para trás, deixando exposta a testa avantajada. Gabriel não viveu muito para ver a filha crescer e, logo cedo, começou o tempo de viúva para Sinhá Luiza. Era normal. Naquela época, as mulheres já eram preparadas, de maneira lógica, para o casamento e também para a viuvez. Quando minha avó Zulmira se casou com meu avô Danglars, Sinhá Luiza foi morar com eles, mas o trauma de sogra era- lhe tão grande, que ela se transformou para Danglars na mais divina sogra que já se conheceu. E ele, em troca, lhe devotava grande admiração e apreço. Não se sabe, por nenhum desses inúmeros contadores da história oral de Zulmira Canavarros, de qualquer notícia sobre a menor desavença ou discórdia entre esse genro e essa sogra. O tempo passava e o casal Zulmira e Danglars já estava conformado a viver sem filhos. Minha mãe, Maria Luiza, mais uma filha única na história dessas mulheres únicas, só nasceu dez anos depois do casamento. Mesmo assim, a casa nunca foi silenciosa, nem triste, pelo contrário, a casa de Zulmira sempre foi cheia de gente. Uma festa permanente embalada pela inventividade da dona, que não sossegava um minuto sequer. Piano, amigos, composições, arranjos, costura, trabalhos manuais, alunos, noivas, bolos de casamento, teatro, peças, ensaios, personagens, artistas regionais, nacionais, autoridades, jantares, bailes, rodas de café com biscoitos e visitas o tempo todo. Até o dia de finados era festivo na casa de Danglars e Zulmira, pois morando sempre próximo ao cemitério da Piedade, o mais antigo e tradicional da cidade, a casa se abria para receber os amigos e conhecidos que passavam por ali, depois de visitar o túmulo de seus mortos, para tomar um refresco gelado de limão galego, comer um francisquito e, claro, um dedo de prosa que ia longe. Gente. Essa era a matéria prima fundamental da vida de Zulmira. Como diz o professor Benedito Pedro Dorileo em sua obra biográfica irretocável “Egéria Cuiabana”, sobre Zulmira Canavarros: “Certo é que no seu tempo, na pequenina e pacata cidade, com a primariedade dos meios de comunicação, Zulmira em si era uma instituição de cultura e de lazer, de liderança e de crença”. Mas não nos esqueçamos nunca de meu avô, pois seu comportamento diante de toda essa efervescência feminina foi fundamental para que essa “instituição” se concretizasse. Pergunto: Qual marido, na alvorada do século XX, num Brasil recém saído do sistema monárquico, aceitaria com bondade e alegria o papel de coadjuvante, onde sua mulher seria a dona e senhora das atenções? Danglars Canavarros, o Nonhô, primogênito de uma prole de nove filhos de Pedro e Francisca, foi esse marido. Por isso, eu gosto de destacá-lo e reverenciá-lo nessas citações sobre Zulmira, a Pitu. Esse mesmo marido que morreu de paixão e tristeza, cinco anos após a perda de seu grande amor, pois como disse anteriormente, as mulheres é que eram preparadas para a viuvez, não os homens. E Danglars não suportou essa provação solitária. Pitu Zulmira tinha a mania de trocar o nome das pessoas, não porque os esquecia, mas porque cismava com o verdadeiro nome da pessoa e o rebatizava imediatamente com outro nome que ela achava mais conveniente. Era comum conhecer uma pessoa e dizer: “Você não tem cara de Arnaldo, vou chamá-lo de Inácio. Você não tem cara de Nilce, vou chamá-la de Mirtes.” E era melhor a pessoa se conformar, pois a obstinada Pitu não iria mudar o seu jeito de chamar a pessoa. Até hoje, as pessoas que a conheceram, fazem questão de revelar o nome pelo qual eram chamadas por Pitu Zulmira. Também pudera! Todo mundo se tornava sobrinho torto de tia Pitu e essa questão do nome era o de menos. Assim viveu Zulmira d’Andrade Canavarros. Loucamente, apaixonadamente. Foi ela quem perguntou aos seus alunos: “Por que vocês não gostam de ler?” E os alunos responderam: “Porque os livros são grossos e dá preguiça.” E ela teimosa como sempre, passou a ler os livros grossos e depois resumia e os reescrevia à mão, com uma letrinha desenhada, para os alunos poderem ler em livros mais “finos”, confeccionados artesanalmente com restos de papel que ela solicitava aos donos de papelarias. Ela mesma, com a ajuda de Danglars, montava os livrinhos, com dorso e capa dura feita de papelão e depois encapados e ilustrados com desenhos da própria Zulmira. Tudo isso colado com aquele velho grude feito de trigo. Para isso, os dois ficavam até altas horas trabalhando, às vezes com luz de lampião, para poder ver os alunos crescerem ganhando gosto pela literatura. Foram centenas de livrinhos pacientemente feitos com amor e dedicação. Eu pergunto: Quem mais fez isto? Essa mesma Zulmira, pediu uma vez a Danglars que arrumasse um caminhão para colocar seu piano na carroceria e ir tocar nos bairros distantes do centro, porque ela queria que a música dos grandes compositores chegasse também aos menos favorecidos. (E Arthur Moreira Lima, renomado pianista brasileiro, ainda acha que foi o pioneiro nessa epopeia de colocar piano em cima de caminhão e ir tocar por aí).Zulmira morreu em 1961 e eu nasci em 1960. Quando eu chegava, ela estava indo embora. Uma pena! Pois se ela tivesse vivido pelo menos até a idade com que minha mãe está hoje, poderia ter desfrutado de sua companhia por dezoito bons e afortunados anos. Quanta coisa boa nós faríamos juntos? Já pensou, eu compondo músicas com a minha avó? Encenando peças de teatro com ela? Seríamos uma dupla e tanto. Contento-me em saber que, pelo menos ela me conheceu. Mamãe me conta que em seu leito de morte, já agonizante e sofrendo bastante pela paralisia e esclerose, ela pedia: “Quero água. Quero água de meu neto. Quero água de Gilberto.” Sempre pensei nisso. E nunca pude entender. Que sede poderia eu saciar naquela mulher tão extraordinária? De qualquer maneira, fui seu único descendente que se tornou artista, uma vez que minha mãe abdicou da sua carreira de cantora, apesar de ter conquistado para sempre o título de “O Rouxinol da Cidade Verde”. Desde pequeno invento modas no teatro, na música, na literatura e sou um apaixonado pela arte e suas manifestações. Por isso, na verdade, sou eu que bebo da água de Zulmira, essa fonte inesgotável de cultura, arte, criatividade, vanguarda, vida e luz que foi e é Zulmira Canavarros, a minha Vovó Zulmira, como mamãe sempre fez questão que nós a chamássemos, mesmo não estando mais entre nós. Mamãe preocupou-se em manter a memória dela muito viva entre mim e meus quatro irmãos, falando dela quase todos os dias e contando muitas histórias. Assim, através de mamãe, nós conhecemos Zulmira com riqueza de detalhes. E eu muito mais, pois em cada música que componho ou arranjo, em cada peça de teatro que escrevo ou dirijo, em cada poesia que faço, sinto sempre sua presença, seus conselhos, palpites, ideias. É como se ela estivesse o tempo todo do meu lado me ajudando a “pintar o sete”. É uma honra e um orgulho muito grande poder dizer que descendo de figura tão ilustre e marcante da história desta terra, que foi o universo fascinante da vida dessa personagem que o professor Dorileo tão bem definiu como a Egéria Cuiabana. Gilberto Luiz Canavarros Nasser Neto de Zulmira Canavarros Obra de Gervane de Paula

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CUIABÁ, 12 A 18 DE ABRIL DE 2012

CULTURAPor Luiz Marchetti

Luiz Marchetti écineasta cuiabano,

mestre em design em artemidia, atuante na cultura de

Mato Grosso e é [email protected]

Você sobe a Rua Voluntários da Pátriae chega à Rua ZULMIRA CANAVARROSainda que a prefeitura coloque nasparedes o nome da rua de outra maneira.Ali na antiga Rua do LIVRAMENTO viveugrande nome, raiz importantíssima denossa história e dessa futura Cuiabá subsede da copa. A musicista e escritora teatralfoi uma das fundadoras do Mixto EsporteClube e a criadora do hino do clube alvi-negro. No Estado crescem os olhos parahomenagearem ruas com nomes deparentes de políticos que muitas vezesimprimem uma gestão não muito desejávele isso é triste. Realmente é um absurdo aausência de uma pesquisa, de umacampanha para promovermos cidadãosque historicamente fizeram algo por estaregião. Nenhuma cidade merece o nomede um parente de político em suas ruasapenas porque o político decidiu. Batismosvergonhosos. Que os netos e filhos dessesninguéns homenageados tenhamvergonha das palhaçadas de seus paispolíticos - pavões sem ética, sem pesquisa,sem pé nem cabeça. Esse trato urbanocomo um brinquedo familiar é humilhantepro futuro de uma população que um diaolha para sua historia e vê o nada, apenasa canetada política. Zulmira marcou ahistória de Mato Grosso com criatividade,inovação e comprometimento apaixonado.Trouxe o rasqueado para o piano, fundouem 1928 o Clube Feminino e em seguidaa rádio A Voz do Oeste e o Mixto EsporteClube. É um descaso o nome errado narua que a homenageia. Retrato dessabagunça onde quem nada fez por nósganha memória popular e quem muitoconstruiu desaparece entre erros edesleixos.

Depois da hora dobanho, nos finais de tarde,as pessoas puxavam ascadeiras para a calçada esentavam-se à porta dascasas. Cena bem típica deuma Cuiabá que já vailonge, quando Zulmiraainda estava na barriga desua mãe, Sinhá Luiza, nocrepúsculo do século XIX.

Siá Dozinha, mãe deGabriel, pai de Zulmira e,portanto, sogra de SinháLuiza, morava com o casalrecém-casado e segundorelatos de minha mãe,bisneta de Siá Dozinha, quena verdade é minha trisavó,era uma mulher de línguaferina e afiada. Sempre quepodia dava uma espetadapra doer nas pessoas emvolta. Com a nora, SinháLuiza, não foi diferente. Ajovem esposa comeu o pãoque o diabo amassou dasmãos da própria sogra. Massofreu com resignação, semse queixar, calada. Aslágrimas lhe caiamsilenciosas e ela preferia deixar que otempo cuidasse de tudo.

Sinhá Luiza era uma mulher belíssima.Alta, magra, pescoço esguio que lheatribuía um porte elegante natural. Seusvestidos longos de golas altas e plissadas,sempre bem talhados, obras de suaprópria confecção de exímia costureira quesempre foi, caíam-lhe como uma luva econferiam-lhe ares de soberana. Tinha umolhar forte, penetrante e misterioso. Ocabelo era preso em coque. Na boca, umsorriso que se ensaiava timidamente nocanto dos lábios, mas não ousava searriscar por toda a face. Era discreta, comodeviam ser todas as mulheres da época. Etudo isso eu sei, porque sempre observeicom atenção um quadro com o retratodela, que ficava pendurado na parede dasala do casarão de meu avô, lá na Rua doLivramento (hoje Zulmira Canavarros),esquina com a Floriano Peixoto.

Certa vez, num desses finais de tarde,sentadas à porta, passou uma conhecidaque parou para um dedinho de prosa comas duas. No meio da conversa, vendoSinhá Luiza com aquele barrigão,comentou: “E então, Siá Dozinha! Feliz da

VISÃO MUITO PARTICULAR DE UM NETO

vida com o netinho que vai chegar?” E SiáDozinha, sem perder tempo, respondeucomo uma flecha: “Ah! Isso eu não sei.Porque filho de filha, meu neto é. Agora,filho de filho, será ou não”. Imagino quenesse momento, Sinhá Luiza ouviu caladamais uma vez, deixando o choro paradepois na solidão de seu travesseiro.

Zulmira nasceu, mas seu pai, o meubisavô Gabriel, que exercia o honroso ofíciode guarda-livros, não se conformava. Elequeria um filho homem e assim sendo,resolveu contrariar o destino com umaatitude, no mínimo, caprichosa. Percebendoque Sinhá Luiza não lhe daria mais filhos eque, portanto, Zulmira seria sua filha única,Gabriel passou a vestir a menina comroupas de guri. Sinhá Luiza, num primeiroinstante, se recusou a confeccionar as taisroupas na sua velha máquina Singer demanivela, obrigando Gabriel a contratar osserviços de um alfaiate, mas logo depois acompreensiva mulher se conformou. Estasituação perdurou por muitos anos dainfância de Zulmira. Gabriel, ao contrário deSinhá Luiza, não era dotado de grandebeleza. Tinha um rosto comum emolduradopor um vasto bigode preto e uma pêratriangular minúscula, cuidadosamenteaparada, no queixo. O cabelo preto, liso ecurto era penteado para trás, deixandoexposta a testa avantajada. Gabriel nãoviveu muito para ver a filha crescer e, logo

cedo, começou o tempo de viúva paraSinhá Luiza. Era normal. Naquela época, asmulheres já eram preparadas, de maneiralógica, para o casamento e também para aviuvez. Quando minha avó Zulmira se casoucom meu avô Danglars, Sinhá Luiza foimorar com eles, mas o trauma de sogra era-lhe tão grande, que ela se transformou paraDanglars na mais divina sogra que já seconheceu. E ele, em troca, lhe devotavagrande admiração e apreço. Não se sabe,por nenhum desses inúmeros contadores dahistória oral de Zulmira Canavarros, dequalquer notícia sobre a menor desavençaou discórdia entre esse genro e essa sogra.

O tempo passava e o casal Zulmira eDanglars já estava conformado a viver semfilhos. Minha mãe, Maria Luiza, mais umafilha única na história dessas mulheresúnicas, só nasceu dez anos depois docasamento. Mesmo assim, a casa nunca foisilenciosa, nem triste, pelo contrário, a casade Zulmira sempre foi cheia de gente. Umafesta permanente embalada pelainventividade da dona, que não sossegavaum minuto sequer. Piano, amigos,composições, arranjos, costura, trabalhosmanuais, alunos, noivas, bolos de

casamento, teatro, peças, ensaios,personagens, artistas regionais, nacionais,autoridades, jantares, bailes, rodas de cafécom biscoitos e visitas o tempo todo. Até odia de finados era festivo na casa deDanglars e Zulmira, pois morando semprepróximo ao cemitério da Piedade, o maisantigo e tradicional da cidade, a casa seabria para receber os amigos e conhecidosque passavam por ali, depois de visitar otúmulo de seus mortos, para tomar umrefresco gelado de limão galego, comer umfrancisquito e, claro, um dedo de prosa queia longe.

Gente. Essa era a matéria primafundamental da vida de Zulmira. Como dizo professor Benedito Pedro Dorileo em suaobra biográfica irretocável “EgériaCuiabana”, sobre Zulmira Canavarros:“Certo é que no seu tempo, na pequenina epacata cidade, com a primariedade dosmeios de comunicação, Zulmira em si erauma instituição de cultura e de lazer, deliderança e de crença”.

Mas não nos esqueçamos nunca demeu avô, pois seu comportamento diante detoda essa efervescência feminina foifundamental para que essa “instituição” seconcretizasse. Pergunto: Qual marido, naalvorada do século XX, num Brasil recémsaído do sistema monárquico, aceitaria combondade e alegria o papel de coadjuvante,onde sua mulher seria a dona e senhora das

atenções? Danglars Canavarros, o Nonhô,primogênito de uma prole de nove filhos dePedro e Francisca, foi esse marido. Por isso,eu gosto de destacá-lo e reverenciá-lonessas citações sobre Zulmira, a Pitu. Essemesmo marido que morreu de paixão etristeza, cinco anos após a perda de seugrande amor, pois como disse anteriormente,as mulheres é que eram preparadas para aviuvez, não os homens. E Danglars nãosuportou essa provação solitária.

Pitu Zulmira tinha a mania de trocar onome das pessoas, não porque os esquecia,mas porque cismava com o verdadeironome da pessoa e o rebatizavaimediatamente com outro nome que elaachava mais conveniente. Era comumconhecer uma pessoa e dizer: “Você não temcara de Arnaldo, vou chamá-lo de Inácio.Você não tem cara de Nilce, vou chamá-lade Mirtes.” E era melhor a pessoa seconformar, pois a obstinada Pitu não iriamudar o seu jeito de chamar a pessoa. Atéhoje, as pessoas que a conheceram, fazemquestão de revelar o nome pelo qual eramchamadas por Pitu Zulmira. Tambémpudera! Todo mundo se tornava sobrinhotorto de tia Pitu e essa questão do nome era

o de menos.Assim viveu Zulmira d’Andrade

Canavarros. Loucamente,apaixonadamente. Foi ela quemperguntou aos seus alunos: “Por que vocêsnão gostam de ler?” E os alunosresponderam: “Porque os livros sãogrossos e dá preguiça.” E ela teimosacomo sempre, passou a ler os livrosgrossos e depois resumia e os reescrevia àmão, com uma letrinha desenhada, paraos alunos poderem ler em livros mais“finos”, confeccionados artesanalmentecom restos de papel que ela solicitava aosdonos de papelarias. Ela mesma, com aajuda de Danglars, montava os livrinhos,com dorso e capa dura feita de papelão edepois encapados e ilustrados comdesenhos da própria Zulmira. Tudo issocolado com aquele velho grude feito detrigo. Para isso, os dois ficavam até altashoras trabalhando, às vezes com luz delampião, para poder ver os alunoscrescerem ganhando gosto pela literatura.Foram centenas de livrinhos pacientementefeitos com amor e dedicação. Eupergunto: Quem mais fez isto?

Essa mesma Zulmira, pediu uma vez aDanglars que arrumasse um caminhãopara colocar seu piano na carroceria e irtocar nos bairros distantes do centro,porque ela queria que a música dosgrandes compositores chegasse tambémaos menos favorecidos. (E Arthur MoreiraLima, renomado pianista brasileiro, aindaacha que foi o pioneiro nessa epopeia decolocar piano em cima de caminhão e irtocar por aí).Zulmira morreu em 1961 e eunasci em 1960. Quando eu chegava, elaestava indo embora. Uma pena! Pois seela tivesse vivido pelo menos até a idadecom que minha mãe está hoje, poderia terdesfrutado de sua companhia por dezoitobons e afortunados anos. Quanta coisaboa nós faríamos juntos? Já pensou, eucompondo músicas com a minha avó?Encenando peças de teatro com ela?Seríamos uma dupla e tanto. Contento-me

em saber que, pelomenos ela me conheceu.

Mamãe me contaque em seu leito demorte, já agonizante esofrendo bastante pelaparalisia e esclerose, elapedia: “Quero água.Quero água de meuneto. Quero água deGilberto.” Sempre penseinisso. E nunca pudeentender. Que sedepoderia eu saciarnaquela mulher tãoextraordinária?

De qualquermaneira, fui seu únicodescendente que setornou artista, uma vezque minha mãe abdicouda sua carreira decantora, apesar de terconquistado para sempreo título de “O Rouxinol daCidade Verde”. Desdepequeno invento modasno teatro, na música, naliteratura e sou umapaixonado pela arte esuas manifestações. Porisso, na verdade, sou euque bebo da água de

Zulmira, essa fonte inesgotável de cultura,arte, criatividade, vanguarda, vida e luzque foi e é Zulmira Canavarros, a minhaVovó Zulmira, como mamãe sempre fezquestão que nós a chamássemos, mesmonão estando mais entre nós. Mamãepreocupou-se em manter a memória delamuito viva entre mim e meus quatroirmãos, falando dela quase todos os diase contando muitas histórias. Assim, atravésde mamãe, nós conhecemos Zulmira comriqueza de detalhes. E eu muito mais, poisem cada música que componho ouarranjo, em cada peça de teatro queescrevo ou dirijo, em cada poesia quefaço, sinto sempre sua presença, seusconselhos, palpites, ideias. É como se elaestivesse o tempo todo do meu lado meajudando a “pintar o sete”. É uma honra eum orgulho muito grande poder dizer quedescendo de figura tão ilustre e marcanteda história desta terra, que foi o universofascinante da vida dessa personagem queo professor Dorileo tão bem definiu comoa Egéria Cuiabana.

Gilberto Luiz Canavarros NasserNeto de Zulmira Canavarros

Obra de Gervane de Pau la