Cultura.SUL 85 - 9 OUT 2015

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www.issuu.com/postaldoalgarve 7.798 EXEMPLARES Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO OUTUBRO 2015 n.º 85 RICARDO CLARO Isso é tudo muito bonito, mas… (reflexões sobre Cultura) p. 8 Fábrica dos Sentidos: a arte num discurso insuspeito p. 5 D.R. O Gigante Enterrado - Ou a virtude do esquecimento p. 4 D.R. Missão Cultura: Descobrir o portal das Experiências Culturais p. 2 Esapço ao Património : Museu – Um tra- balho com (e para) as comunidades D.R. p. 10 D.R. Letras e Leituras: Estética, técnica e ética por António Branco p. 11 Da minha biblioteca: D.R.

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• CONHEÇA O CULTURA.SUL DESTE MÊS • Sexta-feira (dia 09/10) nas bancas com o PÚBLICO e o POSTAL • Partilhe o seu caderno mensal de Cultura no Algarve • EM DESTAQUE: > Missão Cultura: Descobrir o portal das Experiências Culturais, por Direcção Regional de Cultura do Algarve > LETRAS E LEITURAS: O Gigante Enterrado - Ou a virtude do esquecimento, por Paulo Serra > PANORÂMICA: Um espaço de arte do outro lado da linha, por Ricardo Claro > ARTES VISUAIS: Qual a importância da cor nas artes visuais? (2), por Saul Neves de Jesus > SALA DE LEITURA: Isso é tudo muito bonito, mas… (reflexões sobre Cultura), por Paulo Pires > UM OLHAR SOBRE O PATRIMÓNIO: Museu – Um trabalho com (e para) as comunidades, por Helga Serôdio > DA MINHA BIBLIOTECA: Estética, técnica e ética: guiados por António Branco, por Adriana Nogueira

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www.issuu.com/postaldoalgarve7.798 EXEMPLARES

Mensalmente com o POSTAL

em conjuntocom o PÚBLICO

OUTUBRO2015n.º 85

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Isso é tudo muito bonito, mas…

(reflexões sobre Cultura) p. 8

Fábrica dos Sentidos:a arte num

discurso insuspeito

p. 5

d.r.

O Gigante Enterrado - Ou a virtude do esquecimento

p. 4

d.r.

Missão Cultura:

Descobrir o portal das Experiências Culturais

p. 2

Esapço ao Património :

Museu – Um tra-balho com (e para) as comunidades

d.r.

p. 10

d.r.

Letras e Leituras:

Estética, técnica e ética por António Branco

p. 11

Da minha biblioteca:d.r.

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Portal das Experiências Culturais

De entre as estratégias ado-tadas pela Direção Regional de Cultura do Algarve para a prossecução das suas compe-tências e o cumprimento dos objetivos definidos no seu plano anual de atividades, assinalam-se a promoção da sensibilização para as artes e para a proteção e valorização do património cultural através de ações educativas, e o refor-ço do valor percebido da cul-tura, promovendo programas multissectoriais com o setor da Educação.

Numa região como o Algar-ve, ainda com assimetrias no acesso à cultura e à fruição dos bens culturais, a definição de uma estratégia conjunta, a ní-vel nacional, entre a educação, as artes e a cultura constitui uma clara oportunidade para estabelecer como objetivo a constituição de uma biografia cultural dos alunos ao longo da sua vida escolar.

Em termos nacionais, a Estratégia Nacional para a Educação e Cultura (ENEC) procura precisamente corres-ponder a essa oportunidade: é

um programa governamental, concebido e desenvolvido em articulação entre o Ministério da Educação e Ciência e o Se-cretário de Estado da Cultura, que procura promover um plano de ação a longo prazo, nas áreas da educação, das ar-tes e da cultura.

A ENEC visa contribuir para uma maior presença das ati-vidades artísticas e culturais em todos os níveis de escola-ridade do sistema educativo, desde a educação pré-escolar

até ao final do ensino secundá-rio. Simultaneamente, a ENEC permite visualizar as ações já em curso, valorizando o seu impacto nas áreas da educação e da cultura, designadamente projetos desenvolvidos em ambiente escolar, programas dos serviços educativos das instituições culturais, inicia-tivas de artistas e formadores de artes.

É neste contexto que foi desenvolvido o «Portal das Experiências Culturais», que

visa estabelecer uma maior proximidade entre os agru-pamentos de escolas e esco-las não agrupadas e os orga-nismos culturais. Trata-se de um recurso tecnológico que articula as ofertas de propos-tas artístico-culturais com os projetos desenvolvidos em contexto escolar, permitindo aos alunos, docentes e agentes culturais, promotores das di-versas iniciativas e registados no portal, partilharem dados e conhecimentos.

Além deste sistema de parti-lha de dados, o «Portal das Ex-periências Culturais» desen-volve-se em dois outros eixos fundamentais: a possibilidade de registo das atividades artís-ticas e culturais realizadas pe-los alunos ao longo do seu per-curso escolar, de modo a criar e a estabelecer um histórico de experiências que permita a emissão de uma biografia cultural do aluno; e a possi-bilidade de recolha e sistema-tização de novos indicadores estatísticos e informação útil para o desenvolvimento de novas políticas públicas nesta área, tendo em conta o perfil cultural dos educandos.

Esta iniciativa, que conta com a colaboração da Direção Regional de Cultura do Algar-ve, é operacionalizada através da Direção-Geral da Educação, da Direção-Geral de Estatísti-cas da Educação e Ciência, do Gabinete de Estratégia, Plane-amento e Avaliação Cultural, da Direção-Geral do Patrimó-nio Cultural, da Direção-Geral das Artes, do Instituto do Ci-nema e do Audiovisual, I. P. e da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas.

Consulte o «Portal das Ex-periências Culturais» em www.educacaocultura.gov.pt. Registe-se! Participe!

Poesia a Sul

Depois de um verão com eventos de grande qualida-de, como o Sai à Rua, Festival de Cores, Noites de Levante, o município entra no último tri-mestre do ano com mais uma grande iniciativa cultural.

Trata-se da primeira edi-ção do encontro Poesia a Sul, uma organização da Câmara Municipal de Olhão.

A iniciativa, comissariada pelo poeta olhanense Fernan-do Cabrita, traz ao concelho nomes nacionais e interna-cionais, como Manuel Ale-gre, Amadeu Batista, Teresa Rita Lopes, Fernando Esteves Pinto, ou Manuel Moya, entre muitos outros, fazendo deste o maior encontro de poesia a sul de Lisboa.

De 1 a 17 de outubro, não pode perder, momentos de

poesia, música, teatro, deba-tes, apresentações, leituras, re-citais, exposições, um pouco

por toda a cidade.Olhão não para, efetiva-

mente! Ao longo dos últimos

anos temos assistido a uma crescente dinâmica do nos-so concelho a vários níveis, nomeadamente a nível da juventude, do desporto e da cultura.

Estão de parabéns o muni-cípio e os seus espaços cultu-rais, cada vez com uma oferta mais abrangente e atrativa, as associações e restantes entida-des que se têm juntado a este “movimento” e contribuí-do para que Olhão seja hoje uma referência nacional, com repercussões no turismo e na economia.

Editorial Missão Cultura

Direção Regionalde Cultura do Algarve

Juventude, artes e ideias

“ATÉ AO FIM”17 OUT | 21.30 | Teatro das Figuras - FaroKatia Guerreiro, voz consagrada do fado, sobe ao pal-co para apresentar um espectáculo cheio de emoções passadas, presentes e futuras. É o disco pelo qual Ka-tia Guerreiro sempre esperou

“A JIGSAW E PEDRO E OS LOBOS”10 OUT | 21.30 | Grande Auditório do TEMPO‘Encontramento’ dá nome ao álbum e ao espectáculo e apresenta-se como o encontro de duas bandas que seguiram diferentes caminhos sem nunca perderem de vista um possível encontro

foto: drcalg

Atividade artístico-cultural efetuada nos Monumentos Megalíticos de Alcalar pelo Teatro Experimental de Lagos (TEL) com a Escola Básica de Alvor,

no âmbito das Jornadas Europeias do Património 2015

Apetece dizer-se que se chega burro e parte-se estúpido.

A capital de distrito tem um dos núcleos históricos intra--muralhas, sem me referir ao restante, dos mais interessantes do Algarve.

Faro tem hoje, cada vez mais, e ainda bem, uma procura turís-tica interessante e que dá sinais de crescer.

A Vila Adentro oferece-se ao visitante como um microcosmos patrimonial e um espaço de frui-ção e lazer de rara beleza e que do qual poucas outras terras na regi-ãos se podem gabar em termos de concentração, numa única zona geográfica especificamente localizada face à malha urbana.

Mas quem visita a Cidade Ve-lha está votado ao quase aban-dono em termos informativos.

Excepção feita à parca infor-mação panfletária entregue a propósito de uma visita à Sé, num papel de terceira categoria a troco de três euros por cabeça e a umas raras placas informati-vas que nada dizem ou quase, ao visitante diz-se nada!

Passa o comboio turístico com os altifalantes a debitarem infor-mação que espero esteja sincro-nizada com a viagem e apetece nele embarcar para ouvir e sair de um espaço onde nada se ex-plica e nada se diz.

Não há uma única placa com o famoso "i" de informação para - caso existam - se saiba onde ir buscar folhetos infor-mativos. Não há áudio-guias disponibilizados no local ou para descarga on-line. Nada.

Valha a repintura dos arcos da Vila e do Repouso - de cape-la fechada a esconder o interior, e nada mais.

Insuficiente, deficiente e indigno.

Chega-se burro, parte-se estúpido

Ricardo [email protected]

Jady Batista Coordenação do Jornal J

d.r.

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Espaço AGECAL

Este título pode parecer uma au-têntica salada russa, mas abarca as-suntos com alguma similitude como vamos ver. Desdobrando e começan-do pelo chamado “património ge-nealógico”.

Uma pessoa além dos genes (ADN) que recebe dos pais herda também todo um passado, um património genealógico resultante de inúmeras ligações entre famílias diferentes ao longo do tempo. Deste longo soma-tório de gentes fruto naturalmente das escolhas amorosas e sociais feitas pelos nossos antepassados, herda-mos todo um património material e imaterial que nos molda física e culturalmente. Hoje em dia as fa-mílias e as comunidades procuram

redescobrir e estabelecer esta iden-tificação histórica, daí a corrida aos arquivos em busca do conhecimento das origens, em busca da chamada ancestralidade.

Donde vem a nossa família? Quais são as nossas raízes? Como se ligou no passado a nossa família com a terra e com as figuras e alguns factos da história? Quem somos nós? Sim, importa procurar responder a estas questões para um melhor conheci-mento da nossa identidade cultural.

Aqui entra a investigação genea-lógica e o património arquivístico. A vida é sempre efémera, mas é sem-pre possível reconstituir a história de uma pessoa ou de uma família pela pegada documental que deixou. Desde o nosso registo de nascimento até ao nosso registo de óbito, de uma forma direta ou indireta produzimos documentos ou somos mencionados em vários documentos, pois por na-tureza somos seres burocráticos. Por norma a documentação necessária para se fazer genealogia foi recolhi-da em arquivos e já faz parte do pa-trimónio arquivístico nacional. Os diferentes tipos de arquivos (muni-cipais, distritais, o arquivo Nacional

da Torre do Tombo) guardam, tra-tam e disponibilizam assim a nossa memória coletiva. Graças a esta pre-ciosa documentação podemos ma-

pear a nossa ascendência. Sem ovos não se fazem omeletes e sem estas fontes documentais o investigador não faria certamente genealogia /

história da família. Resta-nos tecer algumas conside-

rações sobre o “turismo cultural! Onde se encaixa nisto tudo? Sabe-mos que o moderno e esclarecido turista, no seu tempo de lazer, já não se contenta só com sol, mar e uma boa gastronomia. Neste nível de exigência procura-se a combinação perfeita, tudo o que já foi referido an-teriormente (sol, praia…), enriquecido com um complemento de conhecimen-to cultural. Por exemplo, visitar e apre-ciar o património histórico construído, museus, entre outras atividades. Mas, existe uma pequena tendência neste turismo cultural, o genealogista-turista (um nicho de mercado?). Depois de in-vestigar e documentar a sua ascendência nos arquivos, este procura agora asso-ciar as suas férias ao local onde viveram os seus antepassados, aproveitando para conhecer a região. Ainda recentemente tive oportunidade de conhecer um casal de genealogistas-turistas que vieram a Tavira para visitar as igrejas onde foram batizados os seus ancestrais, assim como os sítios onde moraram. Tor-na-se muito gratificante estabelecer esta ponte entre o passado e o presen-te, entre os mortos e os vivos!

Do património genealógico e arquivístico ao turismo cultural

Óscar Caeiro PintoArquivista / Membro da AssociaçãoPortuguesa de GenealogiaInvestigador convidado da AGECAL

d.r.

Imagem do edifício do Arquivo Distrital de Faro

Grande ecrã

Cineclube de Faro Programação: cineclubefaro.blogspot.pt

CICLO “A CORAGEM ANTE O ABSURDO” | 21.30 HORAs13 OUT | IPJ | TIMBUKTU, Abderrahmane Sissako França/Mauritânia, 2014, 97’, M/14

20 OUT | TMF | TÁXI, Jafar Panahi, Irão, 2015, 82’, M/1227 OUT | IPJ | BANDO DE RAPARIGAS, Céline Sciamma, França, 2014, 113’, M/14

SEDE | 21.30 HORAS | ENTRADA LIVREA TELA AOS SÓCIOS | “EU E O OUTRO OU HUMANIDADE PERDIDA” 22 OUT | PROMESSAS PERIGOSAS, David Cronenberg, EUA/GB/Canadá, 2007, 100’

Cineclube de TaviraProgramação: www.cineclubetavira.com281 971 546 | [email protected]

SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO AN-TÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS

15 OUT | A PIGEON SAT ON A BRANCH REFLECTING ON EXISTENCE (UM POM-BO POUSOU NUM RAMO A REFLECTIR NA EXISTÊNCIA), Roy Andersson – Suécia/Ale-manha/Noruega/França 2014 (101’) M/14

22 OUT | JOÃO BÉNARD DA COSTA: OU-TROS AMARÃO AS COISAS QUE EU AMEI, Manuel Mozos – Portugal 2014 (75’) M/12

29 OUT | INHERENT VICE (VÍCIO INTRÍN-SECO), Paul Thomas Anderson – E.U.A. 2014 (148’) M/16

Confronto com o absurdoRegressa o CCF à programa-

ção de algum do melhor cinema não comercial que entre nós tem estreado, num mês de Outubro cujo mote é o do confronto com o absurdo. É Difícil ser um Deus abre o ciclo, adaptação de uma novela épica de ficção científica dos irmãos Stugarsky, este é o fil-me testamento do cineasta russo Alexei German, projecto que aliás não chegou a ver finalizado em vida. Filme limite indecifrável ro-dado em longuíssimos planos--sequência cheios de movimento interno e de uma intensidade es-magadora, que pretendia ser uma metáfora histórica sobre Estaline, mas que mais parece um retrato dos corredores do poder da Rús-sia actual. Segue-se Timbuktu, um filme com uma forte dimensão política, que encena os efeitos aterradores do fundamentalismo islâmico numa comunidade do Mali, mas também tem a capaci-dade de exaltar um Islão aberto e tolerante. Táxi, de Jafar Panahi, é um dos pratos fortes da progra-mação deste mês, filme interdito

no Irão, de um realizador que foi proibido de filmar durante 20 anos e que continua munido de uma criatividade e de uma resili-ência ímpar a filmar recorrendo a artifícios como o que este Táxi apresenta. Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2014, Táxi é um filme maior, que respira cinema e vive liberdade.

O mês encerra com a estreia de Céline Sciamma nas salas portu-guesas, arrancando um dos mais luminosos e certeiros filmes que estrearam nos últimos meses, falamos de Bando de Raparigas. Este é o cartaz principal, mas é de muitas outras propostas que o “nosso” mês se faz.

Cineclube de Faro

Imagem do filme Táxi, de Jafar Panahi

fotos: d.r.

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Letras e Leituras

O Gigante Enterrado - Ou a virtude do esquecimento

Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasáqui, Japão, em 1945, e reside no Reino Unido desde os seus cinco anos. A Gradiva publicou recentemente O Gi-gante Enterrado, o seu último romance. O autor tem vários livros, todos eles traduzidos e publicados por esta editora, de que se destacam Os Despojos do Dia, o seu primeiro roman-ce de fôlego, e Nunca Me Dei-xes, considerado também uma das suas melhores obras.

Em Os Despojos do Dia (1989), vencedor do Booker Prize e adaptado ao cine-ma, com interpretações de Anthony Hopkins e Emma Thompson, a ação decorre no período pós-guerra em Inglaterra, em 1956, quando Stevens, um mordomo, empre-ende uma viagem de carro que é também o mote para uma digressão ao seu passado. Ao fim de três décadas de serviço incondicional, este mordomo dá por si a rever o seu passado, a sua lealdade para com o se-nhor da casa, Lord Darlington, figura moralmente duvidosa, mesmo que Stevens o tenha servido sempre incondicio-nalmente, procurando igno-rar as falhas do patrão. Este mordomo que procurou ser sempre um modelo de digni-dade e das regras de etiqueta (considere-se, a título ilustra-tivo, essa série de costumes que é Downton Abbey que tão bem procura retratar o modo de vida e os dilemas da criadagem de uma grande casa senhorial) pode parecer ao leitor uma figura pouco simpática, pela sua reserva e conservadorismo, mas cuja verdadeira natureza humana, cheia de dúvidas e remorsos, se vai revelando mais e mais, até ao reencontro entre Ste-vens e Miss Kenton, em que ela lhe confessa como tentou que ele respondesse aos seus sentimentos e afecto.

Nunca Me Deixes (2005),

igualmente nomeado para o Booker Prize, conta-nos uma extraordinária história que varia em muito em termos de género das suas obras ante-riores, como é aliás habitual neste autor, incorrendo nos meandros da ficção científica. Alguns críticos encararam a história como chocante, o que não invalidou a sua adaptação ao cinema, contando com in-terpretações de uma geração mais jovem de autores como Keira Knightley, Carey Mulli-gan e Andrew Garfield. O tema do livro é uma visão da humanidade confrontada com a sua própria fragilidade, a sua mundanidade e o seu desejo de imortalidade pois o leitor aperceber-se-á que as persona-gens de Kathy e Tommy, estu-dantes em Hailsham, a melhor e a mais privilegiada das esco-las, sujeitos a uma vigilância constante e a testes médicos semanais, são afinal clones, que vivem vidas breves e va-zias, criados pelo Estado com a função única de gerarem e providenciarem órgãos sau-dáveis aos cidadãos britânicos.

Não contando com os con-tos de Nocturnos (2009), O Gigante Enterrado é o regres-so do autor ao romance, após quase dez anos.

Da mesma forma que a fi-ção científica não tem apenas a ver com naves e robots, mas sim com as grandes questões existenciais da Humanidade e da ausência ou da possibi-lidade de um futuro melhor, quer seja ou não suportado por uma evolução tecnológica, a fantasia e a alegoria permi-tem atentar no real e no ordi-nário tão ou mais eficazmente do que um retrato cruamente realista dessa mesma realida-de. O Gigante Enterrado tem sido considerado como uma obra de fantasia (ressalve-se na capa do romance a citação de um dos mais aclamados contemporâneos autores de fantasia, Neil Gaiman, que es-creveu sobre este romance no The New York Times), onde o mito e a memória, a alegoria e a imaginação, jogam um im-portante papel.

«Teria sido necessário procu-rar muito tempo para encon-trar o género de vereda sinuo-sa ou de prado tranquilo que mais tarde viriam a celebrizar a Inglaterra. (...) Nevoeiros gé-

lidos pairavam sobre rios e pântanos, sendo vantajosos para os ogres que nesse tem-po ainda habitavam a região.» (p. 9). O início do romance re-mete claramente a ação a um passado distante e situa-a na Inglaterra do mito e das bru-mas, esboçando ainda com a referência aos ogres o género de fição aqui explorada, uma fantasia pós-moderna cujos limites são naturalmente es-batidos, que catapulta o leitor para um tempo remoto, em oposição ao futuro explorado no romance anterior.

A bruma referida logo na abertura do romance e que inicialmente parece repre-sentar essa eterna condição climatérica nebulosa da Grã-

-Bretanha, é afinal um nevoei-ro que traz consigo não tanto a falta de visibilidade mas so-bretudo o esquecimento. Por isso mesmo, os protagonistas Axl e Beatrice são um casal de idosos por quem é inevitável sentir profunda simpatia e ca-rinho, dada a sua profunda de-voção um pelo outro, mesmo que eles próprios já não se re-cordem porque permanecem juntos ao fim de tantos anos. E a reforçar esse sentido ale-górico da narrativa pode ler-se que «Talvez esses não fossem os seus nomes exactos ou com-pletos, mas, por uma questão de facilidade, é assim que nos iremos referir a eles.» (p. 10).

Kazuo Ishiguro escreve so-bre um mundo no passado

que não consegue recuperar o seu passado, sem história e sem rumo, condizente com o período medievalizante que retrata, de Idade das Trevas, possivelmente entre os sécu-los V ou VI, num reino outrora governado por Artur, em que Bretões e Saxões convivem pacificamente. Apesar do ne-voeiro desmemoriante que assola esse mundo, Beatrice agarra-se à convição de que ela e Axl tiveram em tempos um filho, que partiu para uma aldeia distante e de quem há muito não recebem notícias, mas que ela sente intensa-mente chamar por eles. En-cetam assim uma viagem por territórios desconhecidos, mas vagamente familiares, num reino de bruxas, ogres, mon-ges e dragões, encontrando pelo caminho cavaleiros que parecem personificar figu-ras lendárias como Beowulf, no caso do guerreiro Wistan, cuja missão é matar o dragão Querig, ou cavaleiros da Távo-la Redonda como Gawain, so-brinho do Rei Artur (e figura assaz quixotesca), cuja missão é defender essa mesma criatu-ra. Mas não confundamos este romance com o género épico patente em A Guerra dos Tro-nos: aqui o ritmo é lento, os diálogos são ritmicamente repetitivos, a ternura entre o

casal de velhotes é símbolo de um amor que vive além do tempo e dos erros do passado, o sentido de honra é premen-te mesmo quando cavaleiros se digladiam entre si ao mes-mo tempo que tecem louvas ao nobre adversário, e o pas-sado espreita sempre sob um primeiro olhar de breve reco-nhecimento. Numa narrativa simples, poética, por vezes com ritmo lento, percebere-mos, num final em aberto, e com algumas surpresas, que nem tudo é assim tão linear, nomeadamente quando se fala nesse barqueiro que no fim da travessia interroga os casais, para apurar se estão realmente unidos pelo amor verdadeiro, ou de como um jovem mordido por um dra-gão se torna num apaixonado do dragão-fêmea, cujo bafo é o responsável pela neblina que embota a memória, e de como o esquecimento tem a grande virtude de permitir perdoar e viver numa paz aparente com o outro. Fica também a dúvida, no final, se o Gigante Enterrado é o dra-gão, o peso do esquecimen-to e do passado, ou talvez a esperança que dá pelo nome dessa Espada que desenterra-da traria os tempos áureos do Rei Artur de volta.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

fotos: d.r.

Kazuo Ishiguro esteve cerca de dez anos sem publicar um romance

Escritor tem várias obras publicadas em Portugal

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Panorâmica

Um espaço de arte do outro lado da linha

A linha do comboio, sempre a linha do comboio.

Em Faro a relação da população com a Ria Formosa e com tudo o que fica para além da linha do comboio é problemática, mas é apenas isso... pro-blemática. É psicológico, muito mais do que real o problema e do lado de lá da linha há já muito a acontecer.

O parque ribeirinho da Faro, com es-paços de lazer e de fruição, nomeada-mente para o desporto, veio em larga medida desformatar a ideia enraizada de que do outro lado da linha é do lado de lá do mundo.

O mesmo faz, dia após dia e desde há dois anos, o espaço “Fábrica dos Senti-dos”, um espaço dedicado às artes e ao fenómeno criativo que aposta numa lin-guagem diferente dos formatos habi-tuais para realizar um discurso artístico junto dos visitantes.

De quinta-feira a domingo, a propos-ta é a de se deixar levar por um ‘open space’, onde pode ver artes várias, tomar um café, comprar peças, beber uma be-bida, ler, estudar, e tudo o mais até mes-mo apenas contemplar.

Situado nas traseiras da estação da CP de Faro, com acesso rodoviário pela pas-sagem de nível do Teatro Municipal ou a pé pela passagem para peões nas tra-seiras da doca, ou mesmo atravessando a linha na estação de comboios, trata-se, de acordo com Mató [Marco António], um dos seus fundadores, de um projec-to cuja ideia fundamental é que “o pa-norama cultural da cidade cresça evolua e mude, mude muito. Desejamos que as pessoas tenham uma maior consciência da nossa história, do nosso património e da nossa cultura, bem como, das novas tendências e ideias que fazem com que a realidade cultural seja sempre evolutiva e criadora”.

“A cultura é fundamental para que nós, portugueses, nos encaremos cada vez mais sem nenhum tipo de fatalismo, sem nenhuma ideia de ‘coitadinhos’ e consigamos perceber o valor real que temos e as nossas potencialidades sem constrangimentos de qualquer ordem”, defende, sublinhando que “este género de projectos serve para criar consciência, abrir novos caminhos, apresentar novas propostas e alternativas credíveis e que um dia podem crescer e maturar”.

Um projecto pensado durante anos, por um colectivo

apostado em fazer

Fazer é a palavra de ordem, criar uma

imposição tão forte como respirar. Pode ser esta a leitura das palavras de Mató, um performer que percorreu o mundo, influenciou e se deixou influenciar sem esquecer a sua terra, as suas origens e uma aposta clara no sítio que o viu nascer.

“Este projecto é muito mais antigo do que o espaço. Antes de mais estive-mos aqui durante cerca de nove meses de porta fechada a torná-lo adequado e habitável para o fim que pretendía-mos dar-lhe, foi um esforço de cerca de 60 pessoas para tornar realidade o espaço físico e é, hoje ainda, um pro-cesso em contínuo que decorre e se vai prolongar”.

Segundo Mató, a Fábrica dos Senti-dos “é um projecto colectivo que envol-ve desde o início muita gente além de mim, uns que estão cá desde a primeira hora, outros que estiveram e foram sain-do, mas que felizmente em grande parte continuam na cidade a desenvolver os seus projectos, e ainda outros que estão sempre a integrar o projecto”.

“Pela minha parte sempre achei que

fazia falta um projecto deste tipo aqui na cidade, nasci no hospital velho, sou de Estoi e vivo em Olhão - sou olhanense de coração - e considerava que tinha a obrigação, já que estive envolvido em outros projectos do género na Europa, de criar na minha terra algo de similar”, reforça.

“Depois, criaram-se as condições para que se tornasse realidade, por um lado uma necessidade de diversas associa-ções, cerca de 20 na fase inicial, de te-rem um espaço para desenvolverem os seus projectos e a crise que fez com que fosse possível ter este espaço a um pre-ço enquadrável nas nossas capacidades financeiras”, recorda, numa retrospec-tiva sobre a aposta que fez o colectivo num espaço pensado para ‘pensar fora da caixa’.

Um espaço sem formatos pré-concebidos

Uma nave industrial ganhou as-sim um ambiente único e singular, discursivamente aparentemente con-

fuso, mas capaz de gerar impressões marcantes e que convida a uma apro-priação descomplexada das mensa-gens artísticas veiculadas.

A Fábrica dos Sentidos não é um sítio formatado onde as pessoas vão ver divisórias entre as diferentes áre-as. Há uma leitura que pode ser feita de forma individualizada num espa-ço que tenta ser uma continuidade de carácter quase orgânico e em plena evolução e mutação.

Segundo Mató, “como disse Da-rwin “the mind is the chaos of deli-ght”. A inexistência de barreiras físi-cas propõe a ideia de inexistência de barreiras psicológicas na leitura que cada um possa fazer do espaço e do que ele contém, mostra e convida a interpretar”.

O convite de um espaço aberto a todos, do público aos artistas

“O processo criativo é tão indivi-dual como colectivo, aqui há espaço para tudo, do mais ao menos formal e apresentam-se ideias que vão de cria-ções maturadas a projectos em pleno desenvolvimento e mesmo em fase de experimentalismo”, refere Marco Antó-nio, que é em grande medida o rosto do espaço.

“Pode ser arte ou comunicação pura e dura, tratam-se de ideias e jogos com a realidade que pretendem abrir leitu-ras e percursos de pensamento e sensa-ções a quem visita o espaço”, diz, tudo numa paleta onde ao mesmo tempo se encontram trabalhos artísticos já con-cebidos em termos finais.

O público alvo são todas as pessoas que tenham interesse por arte em geral e pelo processo criativo, seja do ponto de vista da visita simples do espaço, seja para poder ficar por ali a ler, a tomar um café ou uma bebida ou simplesmente estar.

Por outro lado, diz Mató, “qualquer pessoa de qualquer área que deseje ter um espaço para desenvolver um qual-

quer projecto tem aqui também um es-paço aberto a criar condições para esse processo criativo poder ter uma ‘casa’. Somos um projecto cooperativo aberto à sociedade e que acolhe as ideias sem preconceber resultados, num atitude de absoluta liberdade criativa”.

O público e a realidade actual

“O nosso público actual ainda passa muito pela comunidade estrangeira re-sidente e desde há cerca de ano e meio pela comunidade de turistas que visita Faro e em particular a que está nos mais de 20 hostels que foram abrindo na ci-dade e que lhe deram uma vida comple-tamente nova da qual as pessoas ainda não se apercebem de forma completa, mas que se tornará notória dentro de três a cinco anos”, refere Mató.

“Pela primeira vez Faro tem turismo como nunca teve e um mercado e um público como nunca conheceu que visita e ‘consome’ a produção cultural local”, reforça, reconhecen-do que, “por outro lado, temos uma acentuada presença de alunos de Erasmus que frequentam felizmente a nossa universidade, que tem real-mente apostado nesta ferramenta de atracção de massa crítica para a cida-de, que traz consigo um diversidade cultural de grande relevo”.

Para o artista, “a cidade está a mu-dar num processo que é já irrever-sível, venham as forças de bloqueio que vierem. Pela nossa parte, enquan-to projecto que se desenvolve numa zona da cidade que sendo a mais nobre está desaproveitada, estamos a participar nesse esforço de criar uma nova realidade na cidade”.

E esclarece a ideia: “Em qualquer parte da Europa estes projectos ser-vem para espicaçar zonas degradadas e menos aproveitadas pelas popula-ções e que com o tempo e a atracção de públicos que fazemos vão sendo novamente vividas pelas pessoas. De-pois, vem a especulação imobiliária e prossegue à sua maneira o trabalho de re-inclusão destas zonas na estrutura vivencial da cidade que iniciámos”.

Para Mató, que realiza o projecto sonhado aos 15 anos de idade, agora que tem 41, “este é um processo que deveria ser replicado em várias zonas da cidade, reinventado a utilização dos espaços e a forma como as pes-soas encaram a malha urbana”.

“Os artistas fazem este trabalho de ‘partir pedra e de recuperar’ e depois avançam para novas áreas para reini-ciar o processo com a zona entretanto intervencionada a ganhar a sua vida própria”, refere.

Entretanto, as portas da Fábri-ca dos Sentidos estão abertas para miúdos e graúdos, num convite a viajar pelo pensamento e pelos sen-tidos de forma descomplexada por-que afinal a arte é isso mesmo uma viagem pela vida.

Ricardo ClaroJornalista / [email protected]

A 'Fábrica dos Sentidos' é um espaço dedicado às artes sem formatos pré-concebidos

fotos: ricardo claro

Mató realizou o projecto sonhado aos 15 anos

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09.10.2015 6 Cultura.Sul

Artes visuais

Saul Neves de JesusProfessor catedrático da UAlg;Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

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“OLHÃO DA RESTAURAÇÃO”Até 28 OUT | Biblioteca José Mariano Gago - OlhãoApenas com o auxílio de uma caneta Conceição Pires percorre a cidade de Olhão, traçando com precisão e delicadeza no papel os vários edifícios e locais históricos

“RAPSÓDIA DE PINTURA”Até 29 OUT | Casa dos Condes - AlcoutimAna Bela Silva Vieira reside em Sanlúcar do Gua-diana, onde tem uma galeria de arte. Foi na vizinha povoação espanhola que começou a pintar com mais frequência

Qual a importância da cor nas artes visuais? (2)

Pintura “Luz e Cor (Teoria de Goethe)”, de Turner (1843), parcial

fotos: d.r.

No último número analisá-mos alguns dos principais con-tributos ocorridos até ao século XVIII para compreender a im-portância da cor em artes visuais. Neste número vamos analisar al-guns dos principais contributos ocorridos desde então.

No século XIX decorreram avanços importantes em diver-sos planos do estudo da cor, com influências para o desen-volvimento das artes visuais. Em termos da química da cor, des-taca-se o trabalho do químico Chevreul que, em 1839, publicou “A Lei do Contraste Simultâneo de Cor” e, em 1855, apresentou o seu diagrama cromático, ba-seado no modelo das cores pri-márias RYB (“red, yellow, blue”), mostrando a complementarida-de entre elas.

Por seu turno, o conheci-mento do funcionamento da visão tricromática deve-se aos trabalhos realizados pelo físico James Maxuell e pelos fisiólogos Thomas Young e Herman Hel-mholtz. Em particular, Maxuell, ao definir o fluxo luminoso como radiação eletromagnética, juntou a hipótese fotoquímica com a hipótese fotoeletríca. Apli-cando os princípios que formu-lou, reproduziu pela primeira vez em 1861 aquela que é con-siderada a primeira fotografia colorida, utilizando filtros ver-melho, verde e azul e sobrepon-do as três imagens assim obtidas por síntese aditiva. Desta forma inaugurou o método da seleção de cores, isto é a decomposição das cores naturais nas três cores primárias.

Destaca-se ainda no século XIX o trabalho de Goethe, um conceituado escritor e poeta que se interessou pela questão da cor e que contrariou a teo-ria de Newton. O seu interesse

pelas cores começou após uma viagem a Itália, em 1786, em que teve um contato direto com a pintura renascentista. O livro de cerca de 1.400 páginas sobre a teoria das cores (“Zur Farben-lehre”), de Goethe, foi publicado em 1810. A sua principal obje-ção em relação a Newton era que a luz branca não poderia ser constituída por cores, pois cada uma destas é mais escura que o branco, defendendo que as cores seriam o resultado da interação da luz com a “não luz” ou escuri-dão. Assim, a experiência da luz decompor-se ao passar através dum prisma de vidro foi por ele explicada por o vidro enfraque-cer a luz branca. Outra das suas conclusões foi que os objetos brancos parecem maiores que os pretos. Assim, enquanto Newton estudava as cores como um fenó-meno puramente físico, Goethe evidenciava que as sensações de cores são moldadas pela nossa percepção e pela forma como o cérebro processa as informa-ções. Goethe colocava a questão, “de que vale olhar sem ver?” (cit. em Pedrosa, 2009). Desta forma, retoma a ideia de Kepler, do fi-nal do séc. XVI, o qual separava o problema físico da formação das imagens retinianas (o mun-do visto) dos aspetos psicoló-gicos da percepção (o mundo percebido). Defendia que o olhar é sempre crítico e que ao olhar-mos já estamos a teorizar. A cor não seria apenas a luz, mas tam-bém a paixão do olhar na forma como construímos o mundo visí-vel, a partir do claro, do escuro e da cor. O discurso de Goethe era simultaneamente científico e po-ético, pois considerava que seria esta paixão que tornaria possí-vel que a pintura fosse capaz de produzir, no plano, um mundo visível mais perfeito do que o mundo real (Pedrosa, 2009).

As ideias de Goethe sobre as cores tiveram um importante impacto sobre o trabalho de vá-rios artistas. Em particular, um pintor muito influenciado pelas ideias de Goethe foi Turner, o qual produziu inclusivamente uma pintura intitulada “Luz e Cor (Teoria de Goethe)” (1843). Para além de Goethe, as desco-bertas ocorridas no estudo da

cor no século XIX tiveram uma influência particular sobre os im-pressionistas, com o revolucioná-rio posicionamento dos artistas perante a natureza, procurando mais luz e cor, e com o processo técnico de pequenas pinceladas de cor na tela. Desta forma, os impressionistas opunham-se à arte de ateliê que buscava os seus temas fundamentalmente à his-tória e à mitologia, sendo domi-nada por cores sombrias, numa

iluminação artificial. Como afir-mava Riviere, em 1877: “Tratar um tema pelas cores e não pelo assunto em si é o que distin-gue os impressionistas dos ou-tros pintores” (cit. em Walther, 2006). Os quadros impressionis-tas eram pintados diretamente no local do seu tema, em geral a natureza. Nas palavras de Émile Bernard: “pintar ao natural não é copiar o objeto, é realizar sen-sações” (cit. em Pedrosa, 2009).

Além disso, procurava-se repre-sentar a realidade circundante tal como é vista pelo próprio artista, traduzindo este na tela, não o retrato, mas sim a impres-são do que está a ver, expressan-do na tela essas impressões de luz, cor e movimento. O quadro “Impressão ao nascer do sol”, de Monet (1873), é em geral apon-tado como marcando o início do impressionismo e como tendo dado origem à designação deste movimento artístico. A arte deve-ria ser um prazer para o artista, sendo esta autonomia da cria-ção pessoal cada vez mais im-portante na concepção da “arte pela arte”. De acordo com San-taella (2009), os impressionistas criaram uma nova ordem de vi-sualidade baseada nas impres-sões coloristas constantemente mutáveis. A decomposição das cores impressionistas foi depois transformada num sistema teó-rico pelos neoimpressionistas, em particular a partir do pon-tilhismo ou divisionismo de Georges Seurat, sobretudo in-fluenciado por Chevreul. Neste caso, a imagem numa pintura era conseguida através de pon-tos ou manchas de cor que inte-ragiam no plano ótico, em vez de serem misturadas como pig-mentos, o que se pressupunha permitir conseguir o máximo de luminosidade.

O início do século XX é ple-no de manifestações artísticas em que o uso da cor é também um aspeto essencial. Em 1903,

agrupados em torno de Henri Matisse, os fauves (“selvagens”) intensificaram a independência das cores que irradiam como potência autónoma das formas, enquanto, em 1905, os expres-sionistas alemães proclamaram o “olhar interno” para dar ex-pressão aos efeitos dramáticos que a aparência do mundo des-perta no artista. A cor começa a despontar cada vez mais como linguagem autónoma, inde-pendentemente do motivo, do tema ou da forma. Aprofundan-do as pesquisas da cor como linguagem autónoma, abria--se o caminho para a abstração pictórica com as obras de Frank Kupka, de Paul Klee ou de Vassili Kandinsky, entre outros. Nas pa-lavras deste último, “em pintura cada cor é bela interiormente, porque cada vibração enrique-ce a alma” (Kandinsky, 1954). Ele acreditava que a cor podia ser usada numa pintura como algo autónomo e distanciado de uma descrição visual de um ob-jecto ou de uma qualquer forma. Em 1910 pintou a sua primeira “improvisação” completamente despojada de qualquer referen-cial externo e, entre 1911 e 1914, período em que fez parte do gru-po designado “O cavaleiro Azul”, as suas pinturas foram compos-tas por massas coloridas largas e bastante expressivas, a partir de formas e linhas que já não serviam para delimitá-las. Kan-dinsky estabeleceu paralelismos entre a pintura e a música, acre-ditando que as cores, tal como as melodias e os sons, poderiam provocar diferentes emoções.

Durante o século XX, até à atu-alidade, ocorreram ainda vários contributos relevantes no âmbi-to do estudo da cor para as artes visuais, os quais analisaremos no próximo número.

Este artigo integra o livro “Construção de um percurso

multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus ([email protected]).

Todas as receitas obtidas com a venda deste livro revertem a favor

da compra de uma mesa de gravu-ra para o curso de Artes Visuais da Universidade do Algarve. Pode ser

adquirido na Fnac de FaroPintura “Impressão ao nascer do sol”, de Monet (1873), parcial

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09.10.2015  7Cultura.Sul

Momento

António Zambujo

no Festival FFoto de Ana Omelete

Espaço ALFA

Quando olhamos para a Natureza, parece-nos tudo um bocado desorganizado, mas na verdade ela tem por debaixo da sua pele, uma arquitetura tão precisa que por vezes até assusta quando começamos a pensar verda-deiramente sobre ela. Mes-mo que o Homem plante as suas estruturas na paisagem, ela modifica-se e adapta--se criando equilíbrio, para sustentar um sistema. Este equilíbrio é formado por padrões que se repetem ao longo do tempo, 365 dias por ano, uma vez que o pla-neta Terra roda em função da proximidade da Lua e do Sol. Com tanta precisão no

espaço e no tempo, basta aos fotógrafos aproveitar estes padrões que se repetem de ano para ano para capturar

os seus melhores momentos que podem ser antecipados com uma precisão quase di-ária e nos mesmos sítios do

costume. Não quer dizer que possa carregar a mochila com as suas lentes favoritas e partir para a aventura do

desconhecido encontrando aleatoriamente beleza em sí-tios improváveis, o que será certamente recompensador,

mas também pode ser uma perda de tempo a longo pra-zo e nos tempos que correm, tempo é dinheiro. Já na parte da composição da fotografia de Natureza, tentem sempre preenchê-la com elementos interessantes, obriguem o olhar a descobrir tudo o que vos apaixonou naquele local que visitaram, percam tempo com os seus padrões, texturas, cores e linhas.

Em termos de equipa-mento prefiram objectivas grandes angulares, macro e teleobjectivas de grande alcance. Consultem a Mete-orologia dias antes, utilizem igualmente um referencia-dor GPS para catalogarem locais, adquiram galochas e protecções para a câmara e não se esqueçam dos fil-tros, tripé e flash para com-pensar as sombras quando necessário.

Agora, façam favor de ser curiosos, investiguem os padrões da Natureza e pla-neiem as vossas fotografias com antecipação.

Precisão no tempo e espaço na Natureza

Mauro RodriguesMembro da ALFA

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09.10.2015 8 Cultura.Sul

O futuro da Cultura e a incerteza dos dias...

foto: projecto "troika"]

Ainda vão pairando amiúde sobre (cert)a opinião pública e (cert)o meio político dois fantas-mas/estereótipos (entre outros) em torno do tema “Cultura”: o sector cultural visto sobretudo como fonte de despesa, de em-préstimo, de subsidiodependên-cia; e o eixo Cultura-Criatividade como universo que não gera ri-queza efectiva e que, portanto, não tem expressão/repercussão económicas relevantes.

A própria palavra “cultura” tem perdido eficácia e parece constituir, ainda hoje, uma es-pécie de amálgama indiferencia-da ou melting pot, difuso e etéreo, cujo impacto se afigura muito subjectivo, não sendo fácil aferir o seu valor intrínseco (o ensaísta e gestor cultural António Pinto Ribeiro insiste há muito nestas ideias). Paralelamente, tem-se vindo a assistir ao longo dos úl-timos anos a uma notória des-valorização da cultura do ponto de vista quer simbólico (extinção do Ministério da Cultura), quer político-ideológico, o que se es-pelha, entre outros aspectos, no peso (leveza?) orçamental da área cultural, no consequente (e patente) subfinanciamento do sector e, acima de tudo, na ausência de uma verdadeira po-lítica cultural. Falta uma estraté-gia e uma prática que realmente coloquem o enfoque: na impor-tância da mediação do sistema de relações entre os cidadãos enquanto principais fruidores e receptores da cultura (refiro-me às economias emocional e simbóli-ca da mesma, e não apenas à sua dimensão friamente numérica/contabilística, pragmática, ma-terial); numa maior autonomia (de programas, gestão, equipa-mentos, etc.); num plano equi-librado e sensato, socialmente justo, de distribuição de recur-sos financeiros e de investimen-tos na cultura; e numa urgente reformulação da linguagem (e do modo explicativo) oficial re-

lativamente ao mundo artístico (criadores, obras, intérpretes, etc.) e aos moldes e condições específicos de apoio e compar-ticipação do mesmo.

Essa banalização do “cultural” (saco onde tudo parece caber com uma coerência por vezes “espantosa”) originou uma visão claramente redutora do campo criativo e artístico, visto politica-mente, a nível do Governo, como algo que aparentemente pode ser equiparado/comparado, de forma indistinta, segundo os mesmos critérios, a áreas de na-tureza muito diferente e diversa como a Saúde, Defesa, Ordena-mento, Agricultura, etc. A visão neoliberal subjacente à gover-nação mais recente é ilustrativa deste estado de coisas, em que o “chip” da Direita assenta clara-mente – como o já aludido Pinto Ribeiro explanou recentemente ao analisar os programas eleito-rais dos principais partidos – na rentabilização patrimonial, no lucro, numa crescente alienação da gestão pública (“chutando a bola” para o mecenato e outros terceiros), no entretenimento; em suma, no “economês”.

Acontece, porém, que a actual Secretaria do Primeiro Ministro para a Cultura (oficialmente: “Secretaria de Estado da Cultu-ra”) apresentou recentemente a primeira Conta Satélite da Cultura 2010-2012 elaborada em Portu-gal, cujos números e conclusões foram divulgados publicamente a 27 de Agosto deste ano. É de

recordar, curiosamente, que esta medida constituía uma das reco-mendações finais, a nível da ver-tente de promoção da qualidade da informação estatística sobre a Cultura, do estudo apresentado em 2010 sobre O Sector Cultural e Criativo em Portugal, então ela-borado pela Augusto Mateus & As-sociados a pedido da ministra da Cultura Isabel Pires de Lima. Na altura, o objectivo foi (de)mo(n)strar, e bem, o importante peso da cultura e da criatividade na economia portuguesa. Alguns números então avançados: no ano de 2006 o sector cultural e criativo originou um valor acres-centado bruto (VAB) de 3,691 milhões de euros e empregou cerca de 127 mil pessoas, sendo responsável por 2,6% do empre-go e por 2,8% da riqueza então criada em Portugal. Entre 2000 e 2006 a Cultura gerou assim cerca de 6500 postos de trabalho.

Os números da recente Conta Satélite – Portugal é o quinto país a ter este instrumento, depois da Polónia, Finlândia, República Checa e Espanha – evidenciam que, para o período entre 2010 e 2012, as actividades económi-cas culturais representaram 2% do emprego nacional, ou seja, cerca de 88 mil pessoas (mais do que as indústrias alimentares, agricultura e seguros), valendo 1,7% do VAB da economia por-tuguesa, o que significou um retorno de 2,7 mil milhões em três anos de crise económica. Os valores são, contudo, muito

díspares conforme o subsector cultural/criativo: no universo au-diovisual e na multimédia as re-munerações são maiores (50,9% acima da média nacional), sendo que no extremo oposto figuram as artes visuais, com um salário 12,5% inferior à média. O sector dos livros é o que emprega mais pessoas (36,6% do total) e gera mais riqueza (33,2%), seguindo--se o audiovisual e multimédia com, respectivamente, 11,7% e 22,6%. Um terço do total das 66 mil entidades culturais analisa-das integra-se na área das artes e do espectáculo. Artes visuais, arquitectura, bibliotecas e arqui-vos são os segmentos que geram menos riqueza com, respectiva-mente, 5%, 4,5%, 2,1% e 1%. Com-parando com o estudo referente ao período 2000-2006, regista-se uma queda de 0,6% em termos de emprego e um decréscimo de 1,1% no tocante à riqueza produ-zida (VAB).

Perante estes dados, o actual Secretário de Estado da Cultu-ra conclui, por um lado, que o saldo é positivo, visto que os re-sultados são a prova inequívoca de que “a cultura existe num ra-ciocínio de receita, de criação de riqueza” (mudando-se, segundo ele, o paradigma habitual rela-tivo ao sector, tradicionalmente encarado numa óptica de des-pesa, e dissipando assim a visão da cultura como bem de mer-cado), afirmando também que é importante que, no futuro, “a cultura tenha a possibilidade de

melhorar o seu orçamento para ser compatível com o desenvol-vimento cultural de Portugal”, sem deixar ainda de, pelo meio, ir ressalvando que a quantifica-ção da cultura, expressa em indi-cadores (como esta conta), acaba necessariamente por ter aspectos positivos e negativos.

Ora, isso é tudo muito bonito, mas… a verdade é que, nas suas principais linhas (naquelas que realmente são decisivas; não nas laterais ou secundárias, que por vezes servem sobretudo/também para alimentar malabarismos e foguetórios retóricos), a “políti-ca” governamental seguida nos últimos anos relativamente à Cultura tem primado, em gran-de medida, pela ausência de pen-samento e acção, isto salvo raras e honrosas excepções. Desinves-timento, desresponsabilização (aliada a uma centralização ex-cessiva e a uma clara redução de competências e recursos impor-tantes ao nível de vários organis-mos de gestão intermédia e peri-férica), paralisia e até retrocesso têm constituído, muitas vezes, a tónica da intervenção cultural estatal mais recente.

Se a ideia da Conta Satélite da Cultura é interessante, útil e meri-tória, já o facto de a actual tutela vir repisar, em véspera eleitoral, uma série de questões-chavões que há muito se sabe serem per-tinentes, reais e inadiáveis (e dos quais os próprios governantes têm, no fundo, plena consciên-cia) não deixa de soar a artificial,

contraditório e até humorístico – daí o título deste texto. Estes es-tudos não podem servir sobre-tudo para “mais do mesmo”, ou para calar momentaneamente as vozes da oposição, ou para de-pois serem colocados na gaveta sem consequência prática em termos de reflexão e acção go-vernativas. De que serve dizer/assumir, na teoria, que a cultu-ra não pode ser mercantilizada nem vista como mais um (entre muitos) sorvedouro de despe-sa, se a prática nos mostra que tem sido esse, em larga medida, o paradigma e modus operandi, implícita ou explicitamente as-sumidos, dos actuais governan-tes? Como diria um provérbio chinês, somente os tolos exigem a perfeição; os sábios contentam--se com a coerência. Ao invés, o que observamos é que, de uma forma aparentemente muito consciente/lúcida mas no fundo artificial e ilusória, a tutela sem-pre vai “dando uma no cravo e outra[s] na ferradura”, acabando por adiar o problema e empurrar o tempo para diante como empurra um atrasado (Almada Negreiros).

Face a este cenário são várias (e até conciliáveis) as leituras possíveis: uma evidente im-preparação e insensibilidade de certas “cabeças pensantes” para a área cultural?; ou uma perigosa banalização e alie-nação públicas relativamen-te àquilo que se entende por “cultura” e “cultural”?; ou uma assustadora amnésia colectiva, uma falta de memória relati-vamente ao passado recente, a qual parece ser transversal a sectores da classe política e da própria comunidade por razões diferentes (aquela já quase por [perverso e útil] au-tomatismo, esta por desinte-resse/indiferença), mas ambas “inquietadoras” (no sentido menos positivo de um adjec-tivo que tem tudo a ver com o que a cultura acrescenta à vida humana)?. O mais preo-cupante é como tudo isto vai propiciando uma gradual sus-pensão da criação (diariamen-te e em permanência) de um futuro para o colectivo, que somos todos nós.

Uma coisa é certa: a cultura, a arte, a criatividade consti-tuem o mais precioso sal que (re)inventa os dias, e a mais silenciosa, invisível e misterio-sa criação humana. Isso, sim, é muito bonito (sem “mas”).

Isso é tudo muito bonito, mas… (reflexões sobre Cultura)

Sala de leitura

Paulo PiresProgramador culturalno Município de Louléhttp://escrytos.blogspot.pt

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09.10.2015  9Cultura.Sul

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

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“CONCERTO PELOS AL MOURARIA”31 OUT | 21.30 | Teatro Municipal de PortimãoGrupo vai apresentar ‘Fado World Music’, um con-certo no qual tocarão temas que fizeram parte dos álbuns anteriormente editados, assim como alguns clássicos

“A DANÇA DO EXISTIR”Até 31 OUT | Biblioteca Municipal de LouléExposição faz uma retrospectiva, em imagens, do trabalho coreográfico de Vera Mantero

Outubro

Pedro [email protected]

«Poesia a Sul»

A poesia ocorre no encontro «Poesia a Sul» - Olhão’15, até 17 de outubro e conta com a presença de Manuel Alegre, Nuno Júdice, Tere-sa Rita Lopes, Manuel Moya, Amadeu Baptista, Fernando Cabrita, Fernando Esteves Pinto, entre muitos outros.

Recitais de poesia, debates, apresentações de poetas e livros, feira do livro, música ao vivo, po-esia na rua e nos bares, exposições de pintura.

Atrevam-se, apareçam, e vão descobrir todo um mundo fascinante de palavras e amizade que perderam todos estes anos só porque a pa-lavra poesia vos tem assustado desde a infância como o bicho papão. É com ela, pelo contrário, o mais próximo que se pode estar da liberdade, em tempos de crises.

Segundo verão

A sul é ainda tempo de viver no segundo verão que se deixa ficar nos dias que já se en-curtam de sol, mas aquecendo nas horas que

sobram. Aproveitando essa réstia de ar ameno, de céus despejados, unicolores, que dão segu-rança, estabilidade, ao olhar por entre o deslizar no fio da vida.

Transição

Custa-me esta transição a que a natureza me traz (como) sujeito que é o privar-me desta li-berdade ainda que aparente que o estio me dá. De me perder nos dias, errar nas horas, esquecer nos minutos. Estar aliviado de relógio e pesado de nada fazer. Transportar o corpo em roupas leves e levá-lo para junto do mar.

Afastar

No arrefecer das noites e das manhãs pres-sentimos a vida imaginária dos meses prévios a afastar-se do quadro dolente, suave e imperma-nente com que preenchíamos os dias nas horas de sul – onde deixamos os corpos ao acaso no

areal, os livros espalhados pelos espaços do dia, e o sorriso pachorrento que não conseguimos disfarçar. Neste recuar do litoral, o rosto sente--se já mais organizado no olhar que procura os relógios. As mãos arrumam os livros em pi-lhas, e os espaços fechados tomarão conta do pensamento.

Sol de pedra, rio transparente

Mesmo debaixo de um sol assim de pedra viu nascer a esplendente flor. Ao atravessar o rio transparente perdeu a sandália ao deparar-se com uma palavra eterna.

Aquela máquina

A manhã refresca-se ao som metálico e seco da máquina de escrever premidas as suas teclas.

Sons já digeridos, descatalogados, perdidos no século de antes. Caio assim bem no passado. Não é saudade ou nostalgia. Mas só de lá se vem mais preparado para o futuro.

Dia novo

Na abertura do dia novo, no enlevo da ma-nhã mais fresca e cinzenta, temos a visão de tudo continuar a acontecer na nossa presença, embora esta pareça uma razão tão forte como qualquer outra na abertura de um dia novo.

125 anos de Álvaro de Campos

Decorrem este mês de outubro na sua terra na-tal, as comemorações do nascimento do poeta Álvaro de Campos (Tavira, 15 outubro de 1890), com diversas actividades culturais espalhadas por vários espaços da cidade, mas com gran-de parte dos acontecimentos centrada na sede da associação Casa Álvaro de Campos – Tavira, situada na rua da galeria, 9-C (antigo posto de turismo). Exposições de pintura, recitais de po-esia e música, e ainda a presença de Teresa Rita Lopes e Manuel Moya, grandes especialistas na obra de A. Campos.

fotos: d.r.

Page 10: Cultura.SUL 85 - 9 OUT 2015

09.10.2015 10 Cultura.Sul

Museu – Um trabalho com (e para) as comunidades

Os museus são espaços por excelência de transmissão de conhecimento do património cultural. As questões da educa-ção e da mediação cultural são fundamentais para a valorização do trabalho de investigação dos museus. Estas duas áreas têm permitido ao longo das últimas quatro décadas que as coleções transcendam as vitrinas e intera-jam com o público.

Através das coleções lêem-se as práticas, as representações, ex-pressões, conhecimentos e saber--fazer de um período histórico e de uma comunidade – o que re-centemente vimos apelidando de Património Cultural Imaterial, com a Convenção para a Salva-guarda do Património Cultural Imaterial (2003) da UNESCO e que Portugal ratifica em 2008.

Os museus são os parceiros privilegiados neste trabalho so-bre o Património Cultural Ima-terial. Nesse sentido, o Museu Municipal de Loulé tem vindo a trabalhar na sua investigação e valorização. Queremos par-tilhar convosco quatro desses projectos.

1. A inscrição no Inventário Nacional do Património Cultu-ral Imaterial da manifestação religiosa Mãe Soberana é um trabalho que foi submetido com sucesso à Direção-Geral do Pa-trimónio Cultural. Um processo verdadeiramente participativo e colaborativo, tendo feito par-te desta inscrição a paróquia de São Sebastião, Homens do An-dor, Banda Filarmónica, Museu Municipal de Loulé e a comuni-dade louletana no seu todo. No âmbito desta inscrição foram de-senvolvidas atividades junto dos alunos da Escola Mãe Soberana em que uma dessas atividades consistiu na introdução do KIT PCI, promovido pela DGPC/PCI, cujo objetivo passa pela sensibi-lização das gerações mais jovens para a valorização do patrimó-nio imaterial, nomeadamente na identificação e caracterização das tradições da sua comunida-de e da sua divulgação on-line

através da Base de Dados Kit de Recolha de Património Imaterial, assim como uma exposição em torno do culto da Mãe Soberana.

2. “Desculpe, como me Cha-mo” é outra iniciativa que tem contribuído para a aproxima-ção de novos públicos. Trata-se de um encontro mensal, que decorre na primeira quarta-feira de cada mês, em torno da iden-tificação de rostos que se foram retratando ao longo de quarenta anos num dos mais frequenta-dos estúdios de fotografia loule-tanos – Estúdio Guerreiro Padre – tem fidelizado um público “sé-nior”. Estes encontros decorrem ao sabor de chá e biscoitos, onde o público participa, discutindo as identidades daqueles rostos e noutro momento, os presentes identificados nas sessões ante-riores relatam as suas estórias em torno da sua fotografia. Esta atividade tem tido sucesso, na medida em que os participan-tes evocam as suas memórias com certa emoção e acabam por, elas próprias, trazer novos parti-cipantes. Desta forma conquis-támos três objetivos: através da dinamização de uma coleção em reserva na Fototeca do Museu, que conta com cerca de 70 mil fotografias em diversos forma-tos, conseguimos a identificação de alguns rostos e a relevância que estes tiveram na comunida-de; a recolha de testemunhos na primeira pessoa de como eram as vivências e os costumes entre a população nesse período (regis-tados em vídeo e por escrito). E com este, fica também atingido um dos objetivos comuns aos museus, que é a sua constante renovação a partir de novas di-nâmicas e de novos públicos.

3. “No meu tempo…” é uma rubrica divulgada na Agenda Municipal, de edição mensal

gratuita e com uma tiragem de 10 mil exemplares. Sendo esta publicação um veículo de comunicação por excelência, dado que a sua versão impres-

sa chega a todos os recantos do concelho e a todo o tipo de pú-blico, apostámos nesta iniciati-va, que publica bimestralmente uma fotografia doada ao nosso arquivo fotográfico. Esta inicia-

tiva tem tido uma boa adesão do público, cujas contribuições à Fototeca têm vindo a crescer e desta forma temos conseguido, não só enriquecer o acervo do

nosso arquivo fotográfico, como também cativar a comunidade a colaborar com o museu. Des-ta forma, conquistámos a nossa posição junto da comunidade ao mesmo tempo que estamos

a despertar o seu interesse para este património que é de todos.

4. A revista RAIZES (foram edi-tados três números) pretende promover e divulgar as tradições, estórias, lugares e pessoas loule-tanas que contribuíram para a construção coletiva da identida-de da nossa comunidade. Temos, com esta iniciativa, conseguido uma aproximação da comunida-de local, que ao ver-se retratada na revista, tem vindo a despertar o seu interesse para as iniciativas desenvolvidas pelo museu e com elas colaborado.

5. Por fim, resta referir que todo este trabalho contribui para o projeto Loulé Criativo e, espe-cificamente, o Turismo Criativo, sendo Loulé a primeira cidade portuguesa a integrar a Rede Internacional de Turismo Criati-vo. Aqui o Património Cultural Imaterial é trabalhado como motor de desenvolvimento eco-nómico e social da comunidade.

Terminamos inspirados nas palavras de Pais de Brito (2009): “Que vozes guardam os museus? Que vozes ele dei-xa ouvir? Com que vozes fala, comunica? E, ao fazê-lo, como constrói o lugar que ocupa, os lugares do mundo que habita-mos?”. São estes os desafios diá-rios que se nos colocam e é para lhes dar resposta e fazer novos questionamentos que continua-mos a trabalhar na preservação, construção e valorização do pa-trimónio cultural imaterial do concelho de Loulé.

Helga SerôdioTécnica Superior (inventário) do Museu Municipal de Loulé

Workshop "À Roda do Oleiro"

fotos: d.r.

Festa da Mãe Soberana

Ficha Técnica:

Direcção:GORDAAssociação Sócio-Cultural

Editor:Ricardo Claro

Paginaçãoe gestão de conteúdos:Postal do Algarve

Responsáveis pelas secções:• Artes visuais:

Saul de Jesus• Espaço AGECAL:

Jorge Queiroz• Espaço ALFA:

Raúl Grade Coelho• Espaço ao Património:

Isabel Soares• Da minha biblioteca:

Adriana Nogueira• Grande ecrã:

Cineclube de FaroCineclube de Tavira

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Desculpe Como me Chamo

Page 11: Cultura.SUL 85 - 9 OUT 2015

09.10.2015  11Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Adriana NogueiraClassicistaProfessora da Univ. do [email protected]

Esta página tem tido poucos artigos sobre obras de não-fic-ção, mas hoje reequilibro um pouco, ao escrever sobre o livro que António Branco (professor da Universidade do Algarve e seu atual reitor) publicou recen-temente, intitulado Visita Guia-da ao Ofício do Ator: um Método (Grácio Editor).

Esta obra tem duas partes distintas: uma primeira, em que contextualiza a sua experiência teatral, a criação de um mestra-do nessa área e consequente criação de um grupo de teatro, a assunção de pertença a uma determinada linhagem, da qual é um dos seus elos, estruturada sob a figura tutelar de Fernando Amado, através da atriz Manue-la de Freitas. Aí se apresentam e discutem conceitos fundamen-tais, como os de genealogia, li-nhagem, autenticidade, ética, estética, técnica, mas também descrições de exercícios e ou-tros aspetos práticos do ofício de ator, próprios de uma visita guiada (algo diferente de um manual).

A segunda parte é composta por todos os documentos pos-síveis de obter sobre a atriz Ma-nuela de Freitas, desde entrevis-tas que deu na televisão ou em encontros vários e que aqui são transcritas pela primeira vez, a textos por ela escritos e disper-sos. Ficamos a saber muito so-bre a sua vida como atriz e quais os valores sobre os quais fundou a sua postura no teatro.

A Peste

Apesar de ter estado cerca de 23 anos sem fazer teatro, Antó-nio Branco nunca perdeu a von-

tade de voltar. Só não o fez mais cedo, porque não tinha conse-guido reunir as condições que ele próprio exigia: ter um grupo de teatro e não um grupo onde ir fazer teatro. Um grupo que fosse constituído não por «uma massa informe, mas por indiví-duos o mais distintos possível, assim se tornando num coletivo onde ‘cada um tem de ser sem-pre melhor e exprimir-se cada vez melhor, para melhor servir a comunidade’, o que necessaria-mente ‘implica permanente vi-gilância e disponibilidade, estar sempre a começar do princípio, a percorrer sempre caminhos desconhecidos de relacionamen-to, de autoconhecimento e de expressão’». Com a criação, em 2006, do grupo A Peste (acróni-mo de Associação de PESquisa TEatral), resultante da vontade de vários alunos que tinham ter-minado o Mestrado em Educa-ção Artística e de outros que se lhes juntaram, as condições es-tavam criadas para que pudesse voltar a ser ator, vindo a exercer ainda outras funções, como as

de encenador, di-retor de atores e dramaturgista (responsável, entre outras coisas, pelo estudo e preparação do tex-to a ser levado à cena).

A linhagem teatral – uma «visita guiada»

As palavras atrás citadas per-tencem à atriz Manuela de Frei-tas, uma personalidade rara no panorama nacional a quem este livro presta uma homenagem, chamada pelo autor de «mestra».

Manuela de Freitas é também conhecida como poetisa, autora de numerosos poemas cantados pelo fadista Camané, mas a sua vida foi dedicada ao teatro e ao cinema, tendo entrado em fil-mes de Manoel de Oliveira, Jor-ge Silva Melo e, principalmente, de João César Monteiro.

Mas o que é isto de linhagem e de mestres (e, necessariamente, de discípulos)?

António Branco explica como a sua genealogia teatral remonta a Stanislavski, autor (encenador

e ator russo, falecido em 1938), que desenvolveu um «sistema» de interpretação para atores, a partir do qual muitos outros foram criando escolas. A mais conhecida é a americana Actors Studio, fundada por Lee Stras-berg (autor do «método»), pela qual passaram alunos como Marilyn Monroe, Alec Baldwin ou Uma Thurman.

A partir de Stanislavski gerou--se uma «constelação», da qual faz parte a linhagem onde Antó-nio Branco se insere, que remon-ta a Hedy Crilla (1898-1984, atriz austríaca exilada na Argentina, que aprendeu o «sistema» atra-vés dos livros do autor russo), com quem Adolfo Gutkin (nas-cido em 1936 em Buenos Aires e naturalizado português) traba-lhou e que foi uma das grandes referências de Manuela de Freitas que, por sua vez, foi (é) a mestra de António Branco. Para este método de Manuela de Freitas, é decisivo o encontro inicial com Fernando Amado (uma história

contada no livro, com muita gra-ça). António Branco esclarece as três linhas de força que forma-ram a atriz: «um princípio ético começa por ser ensinado por Fer-nando Amado; depois, Adolfo Gutkin ensina a operacionalizá--lo através de uma técnica; final-mente, João Mota dá-lhe uma configuração estética» (p.88). Sobre a «visita guiada» que pro-porciona aos seus alunos e que partilha connosco, o autor es-clarece que foi dirigida por uma conceção «ética, estética e técnica do Teatro, baseada na conjuga-ção dos ensinamentos de vários criadores e mestres do séc. XX: Gordon Craig, Constantin Stanis-lavski, Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Fernando Amado, Jerzy Grotowski, Peter Brook, Adolfo Gutkin e Manuela de Freitas» (p. 167).

Autenticidade

O que se procura com esta linhagem teatral? Situar-se

numa «constelação», aceitar que essa é a sua origem, sem que por isso deixe de encon-trar um caminho próprio.

Uma das questões funda-mentais (à qual este livro dá um importante relevo) é a da autenticidade (ou jogo autên-tico), ideia que se opõe a fin-gimento. Um exemplo curio-so que nos é relatado por António Branco passou-se com Stella Adler (1901-1992 – professora que, original-mente, trabalhou com Stras-berg, mas depois de conhecer pessoalmente Stanislavsi, em 1934, afasta-se do «método» e cria o seu próprio conserva-tório, onde estudaram atores como Marlon Brando, Dustin Hoffman ou Robert De Niro) e exemplifica esta diferença: «Corre a seguinte lenda sobre Marlon Brando, a propósito de uma improvisação realiza-da durante uma aula: um dia, Stella Adler pediu aos seus alunos que se comportassem como galinhas, acrescentando, em seguida, que uma bomba estava prestes a cair sobre eles. A maior parte dos alunos começou a correr desespera-damente de um lado para o outro, mas Marlon Brando sentou-se, calmamente, a pôr um ovo. Quando, no final do exercício, Stella Adler pediu a Marlon Brando que explicas-se o seu comportamento, ele terá respondido: «Sou uma ga-linha: que sei eu de bombas?».

Este livro é único no panora-ma português e não poderá ser desconhecido daqueles que estudam teatro, pois através dele poderão aprender «um conjunto de princípios e prá-ticas extintos no teatro profis-sional português, mas que, em determinado período, estive-ram fulgurantemente vivos». Mas não só: para além dos pro-fissionais da área, também se dirige «a todo o tipo de pesso-as que queiram levar consigo uma conceção da arte que per-segue as grandes questões da vida» (p.206). Levarei.

António Branco publicou recentemente um livro sobre teatro

foto: josé bandeira

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