Da ciber-religião para a ciber-religiosidade

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    --. Emergncia do cyberespace e as mutaes culturais. ln: Festival de Arte e Cul-tura promovido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, l 994 (palestra).

    MALAGRINO, Cludio. Um pouco da histria da internet. Online Magazine. Banco de dados. Disponvel em: . Aces-so em: 23 maio 2010.

    Marshall McLuhan. Banco de dados. Disponvel em:

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    Mas, alm dessa ressignificao digital das religies e religiosidades j exis-tentes: que sem dvida inaugura novas formas de experimentao religiosa, uma questao_ emerge, qual seja, se no haveria formas inditas de expresso do sagra-d~ s~r~d~s nessa nova ambincia. Em 2012, o reconhecimento formal da Igreja Miss1onana do kopimismo, na Sucia, Igreja nascida nas redes e que reflete seus valores, reacendeu um debate j antigo, que remonta aos primrdios da internet isto , o debate em tomo das chamadas ciber-religies, um conceito terico evoca~ do como chave interpretativa dessa questo, como noo que abarca as supostas novas expresses do sagrado surgidas e vivenciadas no mundo ciberntico.

    O conceito de ciber-religio

    A _discusso acerca deste conceito razoavelmente ampla e heterognea, assu-mindo diversos significados. H0jsgaard (2005) observa, a partir de uma anlise re-

    tr~~pectiva, que o conceito foi definido de muitas formas. Alguns pesquisadores 0 utilizaram de modo muito genrico, designando qualquer tipo de religio media-da pela internet, isto , qualquer tipo de presena religiosa nas redes, tanto como atividade quanto como organizao. Contudo, outros analistas tm percebido o fenmeno de modo mais especfico e exclusivo, no sentido de entend-lo como "organizaes religiosas ou grupos que existem apenas no ciberespao" (DAWSON 2000, apud H0JSGAARD 2005, p. 50).

    J analistas como Karaflogka (2003) operam uma distino entre religion on cyberspace e religion in cyberspace. Pelo primeiro termo se entende o deslocamento de informaes religiosas para as redes e pelo segundo se entendem as manifesta-?es religiosas criadas e existentes exclusivamente no ciberespao. Tais experin-cias gozam de considervel grau de realidade virtual e so entendidas tambm como ciber-religio:

    No primeiro caso, a funo primria da internet mediar informaes sobre os contedos e atividades religiosos que j tenham sido criados ou definidos por v-rias tradies religiosas fora do ciberespao. No segundo caso, a internet funciona como um ambiente criativo ou formativo, promovendo novos contedos religio-sos e atividades on-line (H0JSGAARD 2005, p. SI).

    Para Karaflogka, existem fenmenos intermedirios entre esses dois termos: as cibersinagogas e as ciberigrejas, ambas baseadas em antigas tradies religiosas, mas extremamente conectadas realidade do ciberespao. H0jsgaard reconhece que distines como as de Karaflogka so importantes ao propor uma sistematiza-o pa~a es;e amplo universo. Contudo, a percepo desses investigadores pro-blemtica, [ ... ] o pressuposto epistemologicamente duvidoso dessns definies

    1 )n clber-religio para a ciber-religiosidade 75

    a ideia de que as religies podem ter uma essncia ou existncia prpria, inde-pendente da existncia humana" (H0JSGAARD 2005, p. 51). A base da crtica de l ler>jsgaard consiste em ponderar que os atores sociais no vivem o tempo todo em !rente tela do computador.

    A partir deste estado da arte, H0jsgaard sugere uma reposio para melhor de-limitar o campo de investigaes da ciber-religio. Inerentes a este conceito existem questes fundamentais que precisam ser articuladas: A internet pode gerar religio?.

    ~e sim, quais as particularidades dessas re ligies e de que modo so elas distingu-veis de outras religies ou de outras comunicaes culturais no ciberespao? Para dor conta dessas questes, H0jsgaard prope outro modelo de ciber-religio a partir de trs parmetros analticos por meio dos quais uma experincia pode ser caracte-rizada como ciber-religio: a mediao, o contedo e a organizao.

    A mediao deve ser baseada em plataformas de comunicao digital, isto , n comunicao virtual deve estar no centro do modelo, enquanto a comunicao cm suportes tisicas na periferia. Evidentemente, este critrio no pode funcionar de maneira isolada; neste sentido, H0jsgaard atribui esfera do contedo um sig-nificado importante. O contedo deve refletir a cultura digital, isto , as ciber-rcligies se inspiram no imaginrio das novas tecnologias para criar suas crenas, como a fascinao pela tecnologia, as construes relativas de identidades, as ex-perimentaes e imitaes, bem como uma antipatia pelos credos e rituais predo-minantes, ou seja, h um no espelhamento das tradies religiosas: "O modelo da dimenso do contedo do campo da ciber-religio reflete opostos pontos de vista, colocando no centro do campo os reflexos da cibercultura e na periferia os reflexos das religies tradicionais" (H0JSGAARD 2005. p. 55).

    J a organizao deve refletir a no institucionalizao em oposio com-pleta institucionalizao. Sobre este crit1io, o pesquisador pondera que alguns exemplos de ciber-religio analisados por ele, aps algum tempo, comearam mi-nimamente a se institucionalizar. Assim, a ciber-religio "( .. . ] mediada ou loca-lizada principalmente no ciberespao, o seu contedo reflete as principais carac-tersticas da cibercultura ps-moderna, e apenas moderadamente organizada" (H0JSGAARD 2005. p. 62).

    O estudioso observa que, assim delimitadas, a maioria das chamadas ciber-reli-14ies tm existncia efmera, isto , os exemplos desse fenmeno "no obtiveram sucesso em atrair seguidores humanos e, portanto, acabaram sendo descartados, es-quecidos ou apagados por todos - exceto nas memrias de alguns arquivos interna-cionais de internet" (H0JSGAARD 2005, p. 56). Sendo a ciber-religio um fenmeno religioso que acontece apenas no ciberespao, reflete as novas tecnologias e no institucionalizado, para H0jsgaard so raros os exemplos: A grande parte das co-municaes religiosas na internet no so ciber-religies; se referem a pessoas reais, verdadeiros lugares, instituies estabelecidas e assim por diante" (2005, p. 60).

    Quando Dawson (2004) ava lia o quadro acadmico dos estudos da religio on-line. observa que a rnriducle e n fragmentao dos estudos acerca da ciber-

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    religio so explicveis pela escassez de fenmenos a ser analisados: "Sustentado e sistemtico trabalho que se preste a anlises comparativas de valor ainda no foi realizado, em parte porque muito poucas verdadeiras ciber-religies existem" (DAWSON 2004, p. 79). Podemos interpretar, como H121jsgaard deixa entender, que o fenmeno da ciber-religio aquele malsucedido, que desaparece aps alguns meses, refletindo a transitoriedade prpria das redes.

    Analisando no s o carter transitrio da ciber-religio, bem como os trs parmetros que construiu para caracterizar o fenmeno, H121jsgaard argumenta que do ponto de vista sociolgico a ciber-religio deveria ser considerada "reli-gio sem religio" ou simplesmente "no religio". Esta classificao talvez seja motivada pelo tom de pastiche, de stira e at muitas vezes de cinismo encontra-do nessas manifestaes, conforme analisa O'Leary (2004, p. 52): "A esttica do pastiche forja uma variedade incrvel de humor; as interaes oscilam rapidamen-te entre reverncia, pseudorreverncia e irreverncia". Zaleski tambm discute a seriedade desse fenmeno: "Se so srias ou no, dificil levar a srio essas reli-gies, porm no podem ser ignoradas. Suas existncias indicam a no satisfao com as religies estabelecidas [ ... ]" (ZALESKI 1997. p. 249).

    Percebe-se que as ciber-religies levantam decisivas questes concernentes autenticidade e, acima de tudo, ao status dessas experincias: "Dada a natureza subjetiva da religio, dificil determinar em certos casos de atividade on-line se so ou no religiosos" (HELLAND 2005, p. 5). Essas dvidas imputadas s chama-das ciber-religies advm, sobretudo, porque tais fenmenos refletem a prpria cultura das redes, distanciando-as das tradies religiosas estabelecidas.

    importante enfatizar que, como assinala H121jsgaard, a fascinao pela tec-nologia uma caracterstica central desses fenmenos, o prprio meio tem sua relevncia mstica, na medida em que percebido como capaz de permitir a su-perao do corpreo e do temporal, no limite, de oferecer uma alternativa reali-dade tisica. Assim, como observa Esterbauer (2001, p. 135), "[ ... ]a realidade virtual mantm um poder de atrao que a transforma em um espao no qual anseios religiosos do mundo real podem ser realizados"; e completa afirmando que"( ... ] o ciberespao experienciado como espao sagrado; para entrar nele necessria uma atitude quase religiosa" (ESTERBAUER 2001, p. 135).

    Nessas novas formas de religiosidade, poderes transcendentes so atribudos internet e aos objetos digitais, como, por exemplo, a imortalidade no mundo virtual, reforando a ideia segundo a qual a mensagem religiosa de uma mdia a prpria mdia e a pessoa que a experiencia tambm transformada: "No apenas se experiencia religiosamente o que h de significativo, mas tambm a prpria pessoa que experiencia transformada pelo meio. Sujeitos religiosos virtuais no tm corpo" (ESTERBAUER 2001, p. 131).

    Um dos grandes exemplos no qual o prprio meio pode consistir cm uma ex-perincia religiosa foi dado pela seita americana Heaven's Gatc: r ... l que o pr-

    llo c1ber-religio para a ciber-religiosidade 77

    prio meio, num sentido mais amplo, pode consistir em religio s ficou claro para o pblico a partir do suicdio de 39 membros da seita americana Heaven's Gate" (l\STERBAUER 2001, p. 130). Heaven's Gate era uma seita digital, porque as cren-ns e as prticas do grupo giravam em tomo das tecnologias: o grupo era financia-' lo a partir do lucro de uma empresa que oferecia servios pela internet; o suicdio 1 m massa foi o resultado da continuao ritualstica de um jogo de computador, e 11 prpria vila da seita foi posta venda na internet, com uma nota ao lado da pro-pticdade alertando que os moradores teriam partido subitamente em viagem.

    Evidente que Heaven's Gate1 no se enquadraria completamente nos par-metros de ciber-religio propostos por H!iijsgaard, afinal no se tratava de uma sei-111 cuja existncia era exclusivamente virtual; havia um lder e um pequeno grupo lormado que convivia presencialmente, e o resultado de suas crenas foi a morte lfsica dos membros. Contudo, Heaven's Gate foi uma religiosidade intimamente ltgada s incipientes tecnologias digitais: "O suicdio em massa dos 39 membros do culto Heaven 's Gate em maro de 1997 destaca a habilidade da internet para abri-gar e promover comunidades espirituais de todo tipo, incluindo as mais perigosas" (ZALESKI 1997, p. 249).

    Esse ato de suicdio em massa, continuao de um jogo de computador, par-tiu da crena de que o planeta Terra estava prestes a ser reciclado e que a nica c.:hance de sobreviver era deix-lo imediatamente, conforme relatado no vdeo de despedida2, gravado pelo lder da seita. Na viso dos suicidas, para esse abandono da Terra"[ ... ] seria necessria uma viagem virtual que, obviamente, s seria reali-1.vel pela desmaterializao[ ... ]" (ESTERBAUER 2001 , p. 131). O corpo aparecia, 11ssim, como um obstculo a essa viagem, e com o suicdio em massa a possibilida-clc de retorno do mundo virtual foi abruptamente extinta: "Os trinta e nove mem-bros da ciberseita Heaven's Gate deixaram em sua suntuosa residncia do Rancho Snta F apenas seus despojos em decomposio, esses corpos dos quais havia muito tempo tinham perdido o hbito de se servir" (VJRILIO 1999, p. 46). Assim, untes de exemplificar o fenmeno da ciber-religio, as particularidades de Heaven's Cate a caracterizam como uma caricatura de um imaginrio prprio da cibercultu-rn que est presente na maioria das assim chamadas ciber-religies.

    As clber-religies

    Partindo da delimitao proposta por H121jsgaard, empreendemos uma tentativa de mapeamento das iniciativas para uma anlise panormica do fenmeno. O objeti-

    O website oficial da seita (http://www.heavensgate.com) ainda est disponvel e est inalterado desde 1997. ano do suicdio em massa.

    'l, Disponvel no YouTubc: < http://goo.gVubxlKN>. Acesso em: 26 out. 2013.

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    vo verificar a relevncia da proposta de H0jsgaard ou, caso contrrio, a necessi-dade de revisar esses parmetros. Primeiramente, partiremos do levantamento de H0jsgaard, que tambm rene indicaes de outros pesquisadores:

    Tabela 1. Experincias digitais classificadas como ciber-religies

    Nome e URL Na web desde' Ainda disponvel? Church of the Subgenius Dez. 1998 Sim http://www.subgenius.com/ Church of Vrus Jun. 1998 Sim http://www.virus.lucifer.com Cyber-Voodoo Jan. 2001 On-line http://www.cyber-voodoo.com at fev. 2005 Deify Yourselfl Ago.2000 On-line http://www.tftb.com/deify/ at dez. 2005 Digitalism http://www.digitalism.8m.com/

    Nov. 1999 Sim

    HyperDiscordia http://jubal.westnet.com/hyperdiscordia/

    Mar. 1997 Sim

    Kibology Dez. 1998 Sim http://www.klbo.com/ Kemelic Orthodoxy Dez. 2001 On-line http://www.kemet.org/home.html at abr. 201 O Reconnecting.CALM Dez. 1996 On-line http://www.reconnecting.com at jun. 2008 Technosophy Dez. 1996 Sim http://www.technosophy.com/ SpiriTech Virtual Foundation Fev. 1999 On-line http://www.geocities.com/-spiritechuk/ at sei. 2000 The New House Dez. 1998 Sim http://www.thenewhouse.org Virtual Church of Blind Chihuahua Dez. 1998 Sim http://www.dogchurch.org/

    Fonte: H0JSGAARD 2005

    notvel que mais da metade das experincias citadas em 2004 e 2005 ainda estejam disponveis; entretanto, essa observao no invalida a interpretao da transitoriedade das ciber-religies, afinal muitas dessas experincias no so atua-lizadas h muito tempo e ainda esto atreladas a um tipo de experincia ligado ao paradigma da web 1.0, o que sugere que so experincias datadas que no se adaptaram s novas arquiteturas informativas que surgem constantemente e que, se ainda esto disponveis, graas ao baixo custo que isso implica.

    3 Verificado pelo The lniemet Archive. Disponvel em: .

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    Ao observar a Tabela 2, a concluso mais importante foi a confirmao da transitoriedade do fenmeno da ciber-religio; afinal o diretrio do Yahoo, que atualmente conta com apenas seis links, j teve outros treze.

    Outro dado relevante que as experincias mais recentes, de ambas as tabe-las, se referem a 2001, o que para a temporalidade das redes, marcada por rpi-das transformaes e inovaes constantes, consideravelmente antigo. As redes digitais passaram na ltima dcada por transformaes tecnolgicas significativas que, ao que indica o mapeamento, no foram acompanhadas pelos fenmenos da ciber-religio. Coerentemente com a tese de H0jsgaard (2005), parece-nos de fato que o fenmeno malsucedido. Alm disso, fica claro que o surgimento desses fenmenos ficou restrito ao final dos anos 1990, ao paradigma da web 1.0.

    Tambm consultamos o site Religious Worlds, um amplo portal de religies que possui a sesso Religion and Cyberspace, dedicada a listar as experincias religiosas existentes primordialmente nas redes digitais. Muitos dos links do site j esto nas tabelas anteriores e, aps uma consulta, verificamos que os outros sites listados no so de experincias existentes primordialmente nas redes.

    Tabela 3. Exemplos de religies virtuais listadas no sfte Religious Worlds

    Nome e URL Na web desde Ainda dlsponlvel? Ardue Temple Mar. 2000 Sim http://www.ardue.org.uk/ index.htm Center for Duck Studies Ago. 2000 Sim http://www.jagaimo.com/duck/ First Church oi Cyberspace Jan. 1996 Sim http://www.afn.org/-fcoc/ First Church of Jesus Chrlst, Elvis Jun. 1997 Sim http://jubal.westnet.com/hyperdiscordia/sacred heart elvis.html - -Fusion Anomaly Nov. 1999 Sim http://lusionanomaly.neV Electric Messiah Jun. 1997 On-line http://www.lllusions.com/sodoku/messiah.htm at ago. 2003 Landover Baptist Church Nov. 1999 Sim http://www.landoverbaptist.org/ Summum Dez. 1996 Sim http://www.summum.org The God Paga Nov. 1996 On-line http://www.netstore.de/-god/ at nov. 2003

    Fonte:

    De qualquer forma, importante destacar que os sites da tabela acima no apresentam nenhuma experincia mais inovadora em relao aos j listados. De modo anlogo, so experincias com mais de dez anos de existncia e atreladas ao paradigma da web 1.0, apesar de a maioria ainda estar disponvel.

    On ciber-rellgio para a ciber-religiosidade 81

    Sentimos a necessidade tambm de buscar no Google e em outros mecanismos de busca outras experincias no elencadas nestas listas, experincias mais recentes e que, eventualmente, pudes.sem incorporar novas possibilidades tecnolgicas.

    Tabela 4. Outras ciber-religies

    Nome e URL Na web desde Cyber Aeligion lnternational Jan.2005 http://nOby.de/2/CyberChurch2005.htm lnvisible Pink Unicorn Jul. 1990 http://www.invisiblepinkunicorn.com Church of the Flying Spaghett.I Monster Maio 2005 http://www.venganza.org/ lnlinitism Sei. 2002 http://www.inlinitism.org/index.asp Digital Polytheism Jul. 1997 http://deoxy.org/I digpol.htm The Virtual Sacred Circle Project Informao http://vscproject.ning.com/ no disponivel http://www.blogtalkradio.com/vscproject The Missionary Church of Kopimism Abr. 2011 http://kopimistsamfundet.se

    Certamente, essa nossa pesquisa no esgota o universo da chamada ciber-religio, pois as redes digitais no so passveis de ser examinadas em sua inte-gralidade. De qualquer modo, os resultados alcanados so inexpressivos, com xceo da Igreja Missionria do Kopimismo.

    Clber-religiosidade

    /\creditamos que o conceito de ciber-religio, conforme delimitado por H0jsgaard (2005), nos exige uma reviso crtica e uma reavaliao, pois problemtico em 11lguns pontos, apesar de se tratar de uma proposta pertinente, cujos parmetros de definio so interessantes, e representar, assim, um refinamento importante na compreenso do fenmeno.

    Do ponto de vista emprico, notvel a j destacada irrelevncia quantita-1 iva dessas experincias. A partir da anlise panormica possibilitada pela visua-lizao de nossas tabelas, fica evidente a escassez das ciber-religies. Trata-se de uma presena quantitativamente insignificnntc se comparada ao eno1me universo dus religies nas redes. Outra conclusflo (' o c11rl11rr transitrio e efmero des.sos experincias, afinal as poucas expcrind11s m11p111

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    cibercultura prprio da poca. Alis, so poucas experincias que ainda esto dis-ponveis, e mesmo essas no so atualizadas com frequncia. Por fim, vale destacar que a arquitetura informativa destas experincias est atrelada ainda ao paradigma da web 1.0, geralmente em lngua inglesa, onde as poucas pessoas envolvidas so altamente ligadas tecnologia, sobretudo programadores de informtica.

    Do ponto de vista terico, importante apontar as divergncias quanto ao ca-rter instrumental da mdia adotado e ao emprego do conceito de religio.

    Quando H0jsgaard (2005) afirma que "A internet no gera ou constri a sua pr-pria religio, s as pessoas o fazem" (H0JSGAARD 2005, p. 62), e que tais pessoas so eventualmente influenciadas pelas possibilidades tecnolgicas, o pesquisador revela a adoo de um pensamento instrumental do digital, separando os atores humanos dos atores tecnolgicos. O autor no considera, portanto, que h entre as pessoas e o sagrado um elemento tecnolgico e comunicativo, e que, ao se transformar o supor-te da comunicao, se transforma tambm a prpria representao do sagrado.

    Alm deste importante ponto, chamar essas experincias de religio problem-tico, afinal, como compreende Franco Ferrarotti (2013), a religio a expresso da administrao e da burocratizao do sagrado, isto , a partir de sua estrutura de po-der a religio define o que indefinvel e controla o que desconhecido e imprevis-vel. Religio e sagrado, portanto, no designam a mesma realidade. Limitar o sagrado aos fenmenos religiosos transform-lo numa estrutura burocrtica e de poder.

    Considerando essa definio, as experincias enquadradas nos parmetros de H121jsgaard no so religies, isto , as ciber-religies no so um aparato administra-tivo e burocrtico do sagrado. H121jsgaard sente esse embarao ao identificar a enor-me diferena que h entre as ciber-religies e as religies institucionais, sugerindo inclusive que seria adequado consider-las "religies sem religio" ou mesmo "no religies", ou seja, para o autor trata-se de iniciativas exclusivamente digitais que rei-vindicam o estatuto de religio, mas ao olhar cientfico no so autnticas. Em nosso caso, no temos nem o interesse, muitos menos a pretenso de certific-las como autnticas experincias religiosas ou no.

    Dados esses problemas tericos e empricos, propomos a ideia de ciber-reli-giosidade. Empregar o termo religiosidade mais adequado que empregar o termo religio, pois, como destaca Ferrarotti (2013), religiosidade, termo associado ex-perincia do sagrado, est alm das diversas formas de religio institucional; ela antes uma experincia pessoal profunda, desburocratizada, que preserva o carter enigmtico do sagrado.

    Para tentar delimitar essa noo proposta, primeiramente operamos uma dis-tino entre as inmeras possibilidades da presena do sagrado nas redes digitais: h uma sacralidade digital que fruto do deslocamento de representaes do sagrado previamente existentes para as redes, e h outra sacralidade digital, uma sacralidade nativa. As experincias e as representaes dessa sacralidade di1-tit11I nntiva so de-nominadas por ns cibcr-religiosidade. Mesmo certas inid mivns q111 trn si existem

    1 )11 clber-rellgio para a clber-rellgiosidade 83

    11penas nas redes digitais, mas so releituras das principais tradies religiosas, como 11lgumas Igrejas crists exclusivamente virtuais, so entendidas por ns como um 1 h.!slocamento da religio para as redes e no como ciber-religiosidades.

    Acreditamos que delimitando o fenmeno como representaes do sagrado mrtivas das redes digitais, isto , cuja particularidade justamente surgir e ser ex-p rimentadas, de modo desburocratizado, nas arquiteturas informativas digitais, a noo de ciber-religiosidade seja mais frtil do que aquela proposta por H121jsgaard de ciber-religio. Embora seja quantitativamente insignificante comparada sacra-llclade digital fruto de deslocamentos, a ciber-religiosidade um fenmeno funda-mental para a compreenso da relao simbitica entre tecnologia e sagrado.

    A ciber-religiosidade, de fato, reflete a fascinao pela tecnologia, ou melhor, a 1uf01ia e o amor em relao s novas possibilidades tecnolgicas e comunicativas, 11ue ganham contornos msticos. Os exemplos listados mostram que a tecnologia no vista somente em sua dimenso utilitria; h uma partilha de uma crena tan-10 de que a tecnologia possui poderes sobrenaturais quanto de que os valores que 11s novas tecnologias aportam so sagrados. A prpria arquitetura aberta das redes induz a uma autonomia espiritual em relao no s s instituies, mas tambm a tradies, paradigmas, vises de mundo etc. Assim, as propostas de ciber-religiosi-dade so o resultado de combinaes inusitadas e at contraditrias. Porm, mais cio que esse reflexo da arquitetura da informao das redes na autonomia religiosa, o que est em jogo na ciber-religiosidade a prpria sacralizao da tecnologia.

    importante destacar que essa sacralidade tecnolgica no indita. A intro-duo das tecnologias eltricas, como o telgrafo, o rdio, a fotografia etc., suscitou transformaes no imaginrio mstico e induziu, inclusive, a emergncia de novas reli-11iosidades em que a eletricidade em si, independentemente do contedo, tinha uma dimenso sagrada. O espiritualismo do sculo XIX exemplar desse tipo de experin-t1a, que podemos analogamente denominar eletrorreligiosidade. Conforme analisam ,John Peters (2000) e Erik Davis (1999). o espiritualismo resultado direto da recep-

    ~ao do telgrafo e do rdio, que, pela capacidade invisvel de conectar indivduos a distncia, estimulou o imaginrio. As mdias eltricas e eletrnicas poderiam no s conectar vivos, mas conectar os vivos com o mundo dos mortos: o espiritualismo, 11 aite da comunicao com os mortos, modelou-se explicitamente na capacidade do t 'lgrafo de receber mensagens remotas" (PETERS 2000, p. 94). Essa sacralizao da ll'Cnologia se verifica tambm com o digital nas experincias da ciber-religiosidade.

    Outra caracterstica importante a destacar a ausncia nas ciber-religiosidades 1111 imagem de Deus, isto , em geral no so nem religiosidades monotestas, nem t 1mpouco politestas, so religiosidades ateias. Nessas experincias h o destrona-mento da imagem de Deus como trnn~c;cnd ndu. TraLUsc da imanentizao do sa-grado para o interior dos circuitos inform1111vns

    A ausncia da figura do Deus 111111S1 1111cl11111 1 111111 h111inc111l111110. tm1w1t 11sticas de uma religiosidade gnstkn, 1111111llt111111l11111 11 1 lh11 11 llHh11;hl11d1 d1 1111111

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    caricatura do que Erik Davis (1999) denomina techgnosis, termo que assinala as si-milaridades entre o gnosticismo e a tecnocultura contempornea. Para Erick Felinto (2005), o gnosticismo a religiosidade por excelncia do ciberespao, sobretudo pela "infestao" de um imaginrio gnstico no discurso do ciberespao, como bem exemplificado pelas imagens da desmaterializao do corpo e da transcendncia humana. No fundo, argumentam Davis e Felinto, trata-se de antigas fantasias gns-ticas que poderiam ser realizadas a partir das novas tecnologias, num processo de divinizao do sei{ e adorao da tecnologia.

    De fato, muitas dessas fantasias, sobretudo a imagem da superao dos limites humanos pelas tecnologias, esto presentes no imaginrio da ciber-religiosidade. Contudo, nessas novas experincias, a tecnologia no apenas um mero instrumen-to de divinizao do sei(. a prpria tecnologia em si que divinizada, ou melhor, sacralizada. No se trata de processos individualistas de autodivinizao por meio das tcnicas, mas de processos colaborativos nos quais a prpria tecnologia tem uma relevncia mstica, no s revivendo antigas imagens, mas criando novas. O que essas novas religiosidades digitais nos mostram a necessidade da comunho, do estar-jun_to, de partilhar valores sagrados que no so impostos por entidades superiores. E a sacralizao da rede, enquanto um emaranhando conectivo de seres humanos e no humanos, e no uma mera divinizao do indivduo.

    Igreja Missionria do Kopimismo

    A Igreja Missionria do Kopimismo o exemplo mais atual e talvez mais evidente das religiosidades das redes, que preferimos chamar de ciber-religiosidades. De for-ma mais evidente e com maior repercusso que as experincias mais antigas, como a Church ofVirus ou a Igreja do Subgenius, o kopimismo toma os valores das redes, sobretudo o compartilhamento, valores sagrados. uma experincia cujo site est no ar desde abril de 2011, mas que ganhou notoriedade em janeiro de 2012 com o reconhecimento do governo sueco, que outorgou oficialmente o status de religio experincia, o que foi suficiente no s para reanimar um debate acadmico, mas para suscitar uma discusso generalizada nas redes digitais.

    Idealizada e iniciada por um jovem sueco estudante de filosofia em 2010 em ' pouco tempo a proposta se proliferou nas redes do mundo todo. Atualmente, h

    websites da Igreja hospedados em quase vinte pases, disponveis, portanto, em vrios idiomas. Essa rpida proliferao ou, por que no dizer, contaminao se explica pelo carter aberto da proposta; assim, a cpia e a remixagem por diversos colaboradores do kopimismo se tomaram frequentes.

    Os sites de todos os pases so parecidos, servem como uma espcie de mani-festo digital em defesa do carter sagrado do compartilhamento da inf 01mao. Na pgina principal h sempre notcias relacionadas ao mundo tccnol1-tico, no direito

    1111 clber-relglo para a ciber-relgiosidade 85

    1i informao, pirataria digital e ao compartilhamento de arquivos. J nas outras obas o interessado pode se informar sobre a proposta e at se tomar membro.

    interessante ressaltar que em todos os idiomas os sites buscam construir um imaginrio de religiosidade dos tempos das redes, expressando certos valores do 1 llgital como sagrados. Toda a proposta centrada na expresso kopime, originria 1 lc copy-me, copia-me, o que nada mais que um convite ao ato de copiar. Para 11s idealizadores, copiar no apenas uma questo poltica, como defendem di-versos grupos ciberativistas; a liberdade de expresso algo mais profundo que Isso, , no limite, uma questo religiosa. Entretanto, apesar da alegao de se tra-lnr de religio, o kopimismo no faz aluses ou apologia a foras sobrenaturais.

    A cpia sagrada porque um ato fundamental da vida, presente nos dinamis-mos do DNA. As informaes compartilhadas fornecem subsdios para novas pers-pectivas, e dessa forma possvel sentir a ligao espiritual com o arquivo recriado ou mesmo copiado. "Copie e semeie" e "Ns somos muitos" so frases que podem

    ~cr interpretadas como um encorajamento espiritual. A informao possui um valor l'm si mesma, e esse valor multiplicado atravs da cpia. Os kopimistas, como so chamados os seguidores, compartilham esses valores, opondo-se monopolizao do conhecimento, como os direitos autorais, acreditando, dessa forma, que toda informao deve ser difundida irrestritamente.

    Para se tomar um membro efetivo da comunidade aconselhvel passar por uma espcie de rito de iniciao, que consiste em preencher um pequeno cadastro e copiar e divulgar o smbolo da Igreja, ilustrado na figura abaixo:

    Smbolo do kopimismo

    ~(Q~~ "Copy and Paste what thou wllt shall be the whole of the law ."

    Fonte: http://kopmistsamfundet.us

    Nota-se no smbolo que as famigeradas teclas de atalho ctrl + c e ctrl i. v, ou co piar e colar, so smbolos sngrndos. O novo membro pode simplesmente copiur o Nh11 bolo ou ainda melhorur, nm11

  • 86 Espiritualidade e Sagrado no mundo ciberntico

    , . De aco.rdo com o site, o kopimismo pode ser descrito a panir de quatro prin-c1p1os ?u axio~as: todo conhecimento a todos; a busca do conhecimento sagra-da; a c~rcula~o do co~hecimento sagrada; o ato de copiar sagrado.

    H~ tambem nos sites a Constituio kopimista, que reafirma os valores elenca-dos ~cima , apro~~dando e_ssas temticas; por exemplo, observando que o ato de ~o~ificar uma copia um npo sagrado de cpia, mais sagrada ainda que a simples c;opia, porque ~ expande e aumenta a riqueza da informao existente. J a internet e. tambm cons1d~r~d~ sagrada, pois o meio ideal para copiar informaes. H amda nessa Consntwao a meno aos inimigos do kopimismo, todos aqueles que b~cam censurar, controlar ou limitar a internet. A Igreja ainda se diz missionria pois entende que tem como misso promover uma troca sem comeo e sem fim. '

    ~oerentem~nte com esses valores, a atuao do kopimismo se d em rede atraves d_esses_ s1t~ e e~ redes sociais digitais, como o Facebooks. A maioria da~ celebraoes sao Virtuais, os membros kopimistas celebram o ato de copiar co-nectando-s~ uns aos outros por meio de servidores enquanto copiam arquivos. Mesmo assim, a proposta de~~ em aberto a possibilidade de qualquer kopimista pr~mover enc~ntros p:esen~1ais de carter religioso. Nesse esphito ocorreu a pri-meira celebraao matnmomal em nome da Igreja, em abril de 2012.

    Matrimnio kopimista

    Fonte:

    ~eri~nia carregada de simbolismo, o manimnio religioso entre uma romena e um Italiano em Belgrado foi conduzido por um homem usando uma mscara de Guy Fawkes .- personagem criado por Alan Moore, cuja mscara passou a ser sm-bolo do moV1mento dos indignados, entre outros-, que teve a voz distorcida por um m~dulador. ~m sacerdote sem identidade, que encarna somente os valores que esses fiis compartilham. Segundo a Constituio kopimista, o sacerdote da Igreja tem um

    s Disponvel em: < http://www.facebook.conv'Kopimlsm.CtrlC.CI ri V .

    l ln dber-rellgio para a ciber-religiosldade 87

    p11pcl secundrio e chamado de operador. Trata-se de um indivduo que dedica .1111 vida ao compartilhamento de arquivos e luta pelo livre acesso informao.

    A Igreja do kopimismo tambm est presente no Brasil. Como podemos cons-l 11t 11 r no site brasileiro6, uma dezena de pessoas fundou a representao nacio-11111 dessa nova religiosidade das redes na cidade de Curitiba, exatamente no dia 1/) 12/2012, s 12h 12, quando alegam que ocorreu a chamada "revelao". O site l 1r11sileiro destaca todos os valores defendidos internacionalmente e acrescenta novas nuances.

    Para os kopimistas brasileiros, o advento das redes digitais quebrou definitiva-"' nte a distino entre um mundo dito real e o mundo virtual - trata-se de um 111 'Smo ambiente complexo no qual preciso defender e at venerar o elemento 111incipal para a plena existncia nesse ambiente: o companilhamento da informa-1,,.10. Assim, se h grupos sociais que discutem essa questo, isto , uma esfera pol-11ca, necessrio haver tambm uma esfera mstica. A atuao do grupo nas redes 111mbm carregada de humor e de stira em relao s grandes religies; assim, normal os membros disniburem bnos e pragas de acordo com a postura em rela-110 liberdade da informao, por exemplo: "que os dados estejam sempre convos-"" ou "que seus dados no se corrompam" so bnos enviadas aos simpatizantes, 11 outras, como "que seu e-mail se encha de spam", so enviadas aos inimigos.

    Como na esfera internacional, a Igreja no restringe sua atuao s redes. As-'>1m, durante o festival Campus Party Brasil, edio de 2013, ela realizou seu primei-' o culto pblico. O grupo tambm realiza periodicamente intervenes urbanas, ~obretudo na cidade de Curitiba, sempre em defesa da liberdade de informao. Os locais dos cultos so sempre praas ou outros espaos da cidade ameaados 1 lOr alguma poltica pblica. O grupo ento ocupa esse espao ou, no jargo dos membros, realiza a kooptao, isto , proclamam-no ponto de interao kopimista 1 '. consequentemente, proclamam sua sacralidade e sua inviolabilidade. Nesses rultos presenciais, a carga simblica grande; sempre h no plpito improvisado /c1props, o smbolo da Igreja, e bandeiras piratas.

    A recorrente controvrsia da autenticidade religiosa, que surge em todo fe-nmeno de deslocamento religioso para as redes e, com mais intensidade, nessas l'Xperincias de ciber-religiosidade, tambm aparece no caso do kopimismo. Logo 1ps a oficializao na Sucia, a repercusso do kopimismo nas redes e na imprensa t'm geral foi considervel, no faltaram crticas de especialistas ou religiosos decre-111ndo ser o kopimismo uma falsa religio, criada apenas para proteger um grupo de 111uao poltica - afinal, uma religio legalizada goza de certos privilgios jurdicos tm ce1tos pases, como na Sucia - , ou ainda dizendo que tudo isso no passa de 11ma forma de propaganda dessas ideias e desses valores das redes, ao mesmo tem-po cm que promove uma c1itica humorada e irreverente das religies tradicionais.

    /1 Disponvel cm: .

  • 88 Espiritualidade e Sagrado no mundo ciberntico

    Enfim, nada de novo em relao s crticas das antigas ciber-religiosidades. Os crticos destituem de seriedade as experincias e as classificam como meras brincadeiras ou jogo juvenil; no limite, entendem que so falsas religies. Nosso papel aqui no decretar a autenticidade dessa ou daquela experincia. Con-sideramos mais til obsetvar a recorrncia desse fenmeno: em sua maioria, as experincias parecidas surgiram nos anos 1990, no incio da internet, mas poucas continuaram ativas, o que parece indicar que se tratava de um fenmeno isolado e irrelevante. Contudo, o advento do kopimismo ressignifica e atualiza esse fen-meno, refletindo um certo imaginrio atualizado das redes, prprio da web 2.0, que possui uma mstica prpria.

    Consideraes finais

    No buscamos neste artigo a comprovao emprica da hiptese levantada por cientistas da religio segundo a qual a internet criou as condies de possibilidade para o surgimento de novas re ligies, afinal no entendemos que papel do pes-quisador chancelar a autenticidade de certos fenmenos e tachar outros de falsas religiosidades. Nossa inteno foi lanar o olhar a uma questo de nosso tempo, marcado pela sinergia entre o mstico e o tecnolgico, explorando e descrevendo as supostas formas inditas de representao do sagrado advindas exclusivamente das novas tecnologias digitais. A representatividade quantitativa desse fenmeno o que menos impotta, pois entendemos que suas caractersticas nos fornecem chaves de leitura importantes para o entendimento de qual tipo de experincia com o sagrado a tecnologia digital favorece ou a t mesmo possibilita.

    Analisando terica e empiricamente o conceito de ciber-religio, entende-mos que deveramos avanar na proposta e sugerimos a noo de ciber-religio-sidade, que consideramos mais frtil para interpretar tais manifestaes inditas. Para tanto, operamos uma distino no que denominamos sacralidade digital: h uma sacralidade fruto do deslocamento de religies e religiosidades previamente existentes para as redes e h uma sacralidade digital nativa.

    As experincias e as representaes dessa sacralidade digital nativa so deno-minadas por ns ciber-religiosidade, cuja patticularidade justamente surgir e ser experimentada, de modo desburocratizado e no institucional, nas arquiteturas informativas digitais. So experincias que so nativas das redes, mas no devem necessariamente se restringir a um mundo on-line, at porque rejeitamos a distin-o entre on-line e off-line: toda a nossa ambincia contempornea digital. So experincias que refletem a tecnologia, no tanto na esfera do contedo, mas no modo de experimentao mstica e na sacralizao da tecnologia.

    Consideramos a Igreja do Kopimismo um dos exemplos mais contemporneos de ciber-religiosidade. No kopimismo, toda uma cultura do colnbom11vismo e da co-

    1111 clber-religio para a ciber-religiosidade 89

    1 wcLividade se reflete diretamente no imaginrio espiritual dos ativistas digitais que plt)pem essa nova religiosidade. Entre os kopimistas, a tecnologia no mero ins-1111mento, eles a consideram para alm da sua funo de uso; no limite, consideram-"" parte da prpria constituio do ser. No kopimismo no h Deus nem deuses, mas l 1I essa necessidade de partilhar valores sagrados, tanto visando a uma atuao social ,, poltica quanto, sobretudo, como pretexto para comunho, ao estar-junto ps-mo-d1mo (MAFFESOLI 2013). O kopimismo exemplar da sacralizao da tecnologia 1 ll1~1al, da mstica da acessibilidade absoluta, de uma nova religiosidade tecnosfica e 1,1 m Deus, vivenciada em um habitar no qual nos deslocamos informaticamente.

    Entendemos que so esses fenmenos que aportam os aspectos mais inova-dores no campo religioso contemporneo; afinal, mesmo havendo uma significa-tiva presena da religio institucional nas redes e essa presena no sendo neutra,

    11~ instituies, em geral, estabelecem relaes instrumentais com as novas mdias, 11ouco diferindo do uso das mdias tradicionais. As instituies buscam sempre man-11 r o controle da definio do sagrado, mesmo num ambiente to pouco propcio 110 controle como o digital, o que provoca certas contradies entre instituies e li is conectados.

    Assim, conclumos este artigo com a provocativa interpretao de que o am-l 11cnte digital antirreligioso, embora no seja dessacralizado. A ps-modernidade t marcada pela sinergia do arcaico e do tecnolgico; logo, as novas tecnologias 1Cm papel fundamental neste processo de reencantamento do mundo, como nos ll'mbra Michel Maffesoli (2013). Entretanto, isso no significa que o digital favo-rea uma espcie de retomo da religio; ao contrrio, a arquitetura das redes dificulta o controle da definio e a administrao do sagrado pelas hierarquias l11stitucionais, enfraquecendo ainda mais a religio.

    As redes digitais favorecem antes uma postura aberta a inmeras e imprevis-HIS atualizaes do sagrado, at as mais estranhas e pitorescas formas, aproximan-do-se mais da religiosidade do que da religio. Liberado do controle institucional, o sagrado nas redes no s vivenciado como algo interior e ntimo, mas sobretu-do como uma experincia colaborativa. No se trata da divinizao do indivduo, mas da sacralizao da rede.

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  • 90 Espiritualidade e Sagrado no mundo ciberntico

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    O novo tempo espiritual e religioso nas redes sociais do ciberespao Valter Lus de Avellar

    Introduo

    Hm tempos ps-modernos, a secularizao no impediu que a vivncia religiosa 't extinguisse. Essa religiosidade inerente ao ser humano se manifesta de outras lmmas e em outros ambientes. A internet tem sido utilizada como um vefculo de m municao que viabiliza uma sociabilidade com estmulos religiosos de caracte-rsticas prprias. Redes sociais como o Facebook e o Twitter esto entre os inme-1 os recursos desse ambiente, que possui a caracterstica de integrar pessoas a co-1 nunidades virtuais em tomo de um tema. Dessa forma, podemos encontrar vrias 11des de amigos virtuais que esto compartilhando assuntos relacionados trans-1 ndncia, religiosidade e s humanidades. A necessidade de postar mensagens muitas vezes est relacionada transmisso da experincia mstica vivenciada. A ldtura dos assuntos compartilhados pode levar ao encontro do sagrado ou a uma reflexo ou mudana de atitude de conotao teraputica logoterpica. Alm dis-

    ~o. podemos perceber tambm que nos processos sociais das redes sociais muitos padres tm suas origens no fenmeno religioso.

    A sociedade secularizada

    No cenrio ps-moderno, a definio de secularizao sofreu algumas alteraes: 11 pe rspectiva do declnio da religio institucional permaneceu, m as a redefinio 111ovou ao trazer o aparecimento de uma nova forma de religiosidade voltada para 11 mstica e a espiritualidade. Essa tendncia religiosa mais individualista e de fraca 1n.;1itucionalidade se adapta be m ao ritmo de vida ps-moderno. O individualismo