Da imagem fotográfica à imagem em movimento - Rosângela
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ROSÂNGELA RENNÓ
029
AobradeRosângelaRennóintegraumeixocontemporâneodeaçãoartísticaqueoperarelaçõesdetrân-
sitoesimultaneidadeemespaçoscoletivosecolaborativosquecolocamemdebateosclichêsdasociedade
globalizada.Aartistacriaametáforadonossotempopormeiodaproduçãodemúltiplossentidoseaciona
incessantementeaparticipaçãodoespectador.
Édentrodaidéiademodernidadelíquida,formuladaporZygmuntBauman�,quepodemosreferenciaressa
obra,cujoteorsociopolíticovememclimadedenúncia–sempretenderserporta-vozdadiferença–eprovoca
uma fricção em reação imediata à nossa condição líquida e fluida. Como diria Bauman, “líquido” é um conceito
que define a oposição à idéia de fixidez e de peso da modernidade. A mudança da nossa noção de espaço
etempodeve–seaumacircunstânciadesobreposiçãoeinstabilidade,quevemocorrendodesdeoiníciodo
século20equetemseacirradonaviradadomilênio.Naatualidade,estamosdiantedeumasituaçãouniversal
emtrânsito,feitaconsecutivamentedeaceleraçãoeamnésia,equepromoveoapagamentodamemória.
O assunto “esquecimento e amnésia” tem sido um foco privilegiado de discussão no campo da arte a partir
do advento da globalização no planeta. O uso de jogos que alternam o ficcional e o real produz o que atualmente
chamamos de “modo documental” na arte, que encontramos nas obras de artistas como Walid Raad, a jovem
Alice Miceli e outros, além da própria Rosângela. Cabe, então, indagar como esta artista tem potencializado
essadiscussão.
Eu diria que a obra de Rennó constitui uma espécie de “Arquivo vivo”. Arquivo como fonte de resgate da
memória,paraaconstruçãodahistóriaecomoestratégiadecombateàamnésia.Aqui,arrisconãomedeter
nadescriçãodasuaobra–desdobradapormaisdevinteanosemarquivos,coleções,bibliotecas,diários,
arquivística e vídeos, a partir de fotos, instalações, filmes e objetos – para tentar adentrar o seu percurso em
relaçãoàimagem.
Parece certo que o seu interesse não se atém somente ao campo da fotografia. Tanto é assim que era
difícilnomearasuaatividade.Selheperguntássemosseerafotógrafa,rapidamenteelaseesquivavadessa
nomenclatura;elasediziaartistaefaziaadiferenciaçãoentreasuaatitudeeadosfotógrafostradicionais.
PensoqueocompromissodeRennóécomatrajetóriadaimagemequeelarastreiaumpercursoquevem
da fotografia à imagem em movimento, alcançando a experiência cinemática e atualizando-a por meio do que
hoje denominamos Transcinemas ou cinemas do futuro.
� BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
Da imagem fotográfica à imagem em movimento: RosângelaDaniela Bousso
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Segundo Kátia Maciel, que cunhou esse termo juntamente com André Parente, Transcinema é “o cinema
como interface, isto é, como uma superfície em que podemos ir através” [...] “A invenção do espaço tridimen-
sionalrenascentista,arupturacomesteespaçopelamodernidadeeacriaçãodoespaçoimersivonacontem-
poraneidade indicam o movimento desta idéia no tempo” [...] “se pensarmos na maneira como, no Brasil, o
Neoconcretismoproblematizaaquebradamolduraeaespacializaçãodapintura,esclarecemosumprocesso
que irá resultar na inclusão do espectador na obra” [...] “a variedade de formas a que chamamos de Transcinemas
produzumaimagem–relaçãoqueseconstituiapartirdeumobservadorimplicadoemseuprocessoderecepção.
Éaesteespectadortornadoparticipadorquecabeaarticulaçãoentreoselementospropostoseénestarelação
que se estabelece um modelo possível de situação a ser vivida” [...] “não é o artista que define o que é a obra,
nemmesmoosujeitoimplicado,maséarelaçãoentreestestermosqueinstituiaformasensível.Éaestecine-
ma relação criado de situações de luz e movimento em superfícies híbridas que chamamos de Transcinema.”2
AobradeRennósitua-senocampodosdeslocamentosedosterritóriosexpandidos,dosdesígnioseper-
cursos que, se não cabem na discussão dos meios ou das mídias, ocupam lugares não específicos, espaços
intersticiaisedeindeterminação,nosquaisoespectador,aomodojápropostoporOiticica,transforma-seem
participador da obra. Em qualquer um dos meios em que opera, do colecionismo fotográfico às videoinstala-
ções e às experiências com filmes, o grau de completude da obra dependerá da relação de alteridade, de um
“outro” co–autor, de um desencadeamento mental-imagético, para que a obra cumpra a sua função e atinja a
suamáximapoética,queéovislumbredodevir.
Isso significa operar em tal grau de tensão a ponto de modificar o destino das imagens (devir) encontradas
emálbunsdefamíliarastreadosembrechós,emarquivosprisionais.Visaaapropriação,odeslocamentoea
ressignificação destes, a partir de um ato de intervenção da artista que pressupõe a reintervenção do “outro”.
Por trásdaaparenteobsessãodecolecionarearquivar, revela-seapresençaconstantequeé,emúltima
análise, o fio condutor de toda a sua trajetória: a narrativa. Em tudo ela se metamorfoseia, desde as operações
com o próprio meio fotográfico até seus mais recentes experimentos com filmes. Interessam os desencadeamentos
provocadosnoperceptumdoobservadorquandoemcontatocomaobra.
Aoconstituirnovasnarrativasquecriamimaginárioscinemáticos,aobranosalcançaemnossadimensão
corpórea,herançadominimalismoedoprópriopercursodas instalaçõesapartirdosanos�990naarte.É
quando o cinema evolui para a interatividade, configurando a idéia de Transcinema. A ênfase na evolução do
cinema–caracterizadadesdeosanos�960pelomovimentodocinemaexpandidoligadoaoexperimentalismo,
que altera a condição clássica de recepção de filmes: película e platéia/recepção passiva – transparece em
Experiênciadecinema.
� MACIEL, Kátia. Transcinema e a estética da interrupção em limiares da imagem, Antonio Fatorelli e Fernando Bruno, (org.), Rio de Janeiro: Maud, 2006.
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Nestaobra,quatroseqüênciasde imagens intermitentesaparecemedesaparecem.Aprojeçãoemuma
cortinadefumaçaquemovimentaimagensemgelosecoécriadaapartirdefotosdearquivoorganizadasem
quatroseqüênciasfílmicas,comoitosegundosdeduraçãocada.Ainstalaçãocontacomaespacialidadedas
videoinstalações,masamaterialidadeefêmeradasimagensemmovimentoprojetadasconstituiumaespécie
detelavolátil.Acortinadefumaçaevocaacondiçãofantasmagóricadaslanternasmágicasdoséculo�7e
remontaaosprimórdiosdahistóriadocinema.
Curiosamente, Rennó trabalha com quatro gêneros do cinema nestas seqüências: amor, família, filme de
guerra e policial, cada uma com 31 fotografias. O jogo ficcional entre amor e morte permanece como integrante
desuaobra,juntamentecomanarrativa.Oquenosintrigaépercebercomoestesquatrogênerossoamcomo
clichês da crise no mundo contemporâneo. Existe algo mais assustador e, finalmente, mais recorrente do que
aidéiadamorteedaimpossibilidadedoamorromântico,dasrelaçõesfamiliaresougrupaisnamodernidade
líquida?
SegundoBauman,ospadrõesdeliquefaçãohojesedeslocaramdocampopolíticoparaodavidaprivada,e
oslaçosdedependênciaeinteraçãovêmsendosistematicamentenegados,justamenteparanãomanterema
sua forma por um tempo estendido: tudo tende a se desfazer de forma a se tornar fluido. Tudo que é fluido es-
correesedilui,nosescapa,mastambémnãonoscompromete.E,quantoaosclichêsdaguerraedaviolên-
cia,aindaquepostossobformadevigilânciaepunição,nãoestariaRosângela,emúltimainstância,encetando
umdiscursosobreaopressão?Acadaseqüênciaquesomenafumaça,nãoestamossendocolocadosdiante
doinevitávelescape,dainexorávelevanescênciadetudoquenosconcerneemtemposatuais?
Asapariçõesedesapariçõesdasseqüênciascinemáticascolocamopúblicoemumtipodeexperiência
única,ondeaintermitênciaeainterrupção,alémdeprovocaremnoespectadorasensaçãodeestardiante
dofugaz,daquiloqueescapasempossibilidadedesteintervir,ofazlidarcomummomentodesuspensãoe
estranhamento. Aí é que a artista opera um mecanismo extremamente sofisticado no jogo da percepção. O
intervalodetempoentreumaseqüênciaeoutranostrazasensaçãodoapagamento,daperdadealgoque
permanece em nível subliminar; ficamos, de súbito, diante do impalpável e do inefável, eis a crueldade desta
forma de opressão: quando sentimos que vamos perder algo ou que este algo vai se apagar e se perder no
túneldotempo,aíéquequeremosreterestealgoqueseesvaiantesquepossamoscompreendê-loousequer
tocá-lo.
EmExperiênciadecinema,nãoéaamnésiaemsiquenoscausaassombro,masaimpossibilidadededetê-la,
a sua irreversibilidade. Tudo isso sem falar no caráter inovador do experimento com uma outra forma de fazer
cinema, este cinema expandido ou Transcinema, almejado desde o Surrealismo, passando pelo cinema experi-
mental dos anos 1960 e finalmente chegando à relação de interatividade com o participador entre os anos 1990
e2000.
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Afora isso tudo, Rennó ainda cria uma situação de suspensão e suspense que chega a nos lembrar filmes
comoOdiscretocharmedaburguesiaeOfantasmadaliberdade,deLuisBuñuel,ondeadissociaçãodefatos
erealidadesprovocaemnósasensaçãodetermosqueremontarumquebra-cabeçapararecomporotodo.
AsuspensãodetemporalidadesemExperiênciadecinemanãonospermiteelaboraranarrativa,eaangústia
daurgênciaporoutraseqüênciagera,nointervalo,umsentimentodedesolamentoesolidão.Novamenteen-
traemjogo,agorapeloavesso,ocombateaoapagamentoeàamnésia,umadasmáximasnapoéticadesta
artista.
Em tempo, arrisco pensar que os arquivos, as bibliotecas, as coleções, os álbuns, os personagens “trouvés”
deRosângelaRennóvêmvindo,hámaisdeduasdécadas,para integrarumagrandenarrativa,aindaque
desconstruída.Oseupercursoemrelaçãoàimagemnãoseatémàcondiçãopoética;háumainvestigação
formal que desembocou na experiência da imagem em movimento. O “Arquivo vivo” de Rennó é mais que um
testemunhotransgeneracional,poistemnocentrodosseusexperimentosainteratividadeeaforçasensória
da imagem-relação. Já é, como diriam os cariocas. Sempre foi e já é Transcinema.
DanielaBoussoédoutoraemartesvisuais,comunicaçãoesemiótica.DirigeoPaçodasArtes,emSãoPaulo,
desde�997,eécuradoradoPrêmioSergioMottadearteeletrônica,quecriouem2000.Entreseustrabalhos
comocuradoradestacam-seasexposições Excesso (1996), Arte e Tecnologia (1998), PorqueDuchamp?
(1999-2000), Metacorpos (2003) e Ocupação (2005), todas no Paço das Artes, São Paulo; as Salas Denis
Oppenheim e Tony Oursler, na 24ª Bienal de São Paulo (1998); a Sala Especial Rafael França na Bienal do
Mercosul (2001), Porto Alegre; e a 3ª Paralela à Bienal (2006), São Paulo. Com artigos publicados em revis-
tasdearte,editouoslivrosArtur Barrio: a metáfora dos fluxos 2000/1968 eIntimidade,peloPaçodasArtes.
Especialistaemplanejamentoeestratégiadepolíticaspúblicasparaaartecontemporâneaeartetecnologia,
organizou o I Simpósio Internacional de Arte Contemporânea Padrõesaospedaços,opensamentocontem-
porâneonaarte, no Paço das Artes (2005).