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0 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA DA ORDEM NATURAL AO ARTEFATO: a produção da velhice a partir do pensar-fazer-sentir de pessoas com 60 anos e mais CARLOS EDUARDO CORRÊA SANTOS Itajaí (SC) 2006

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA

DA ORDEM NATURAL AO ARTEFATO: a produção da velhice

a partir do pensar-fazer-sentir de pessoas

com 60 anos e mais

CARLOS EDUARDO CORRÊA SANTOS

Itajaí (SC)

2006

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CARLOS EDUARDO CORRÊA SANTOS

DA ORDEM NATURAL AO ARTEFATO: a produção da velhice

a partir do pensar-fazer-sentir de pessoas

com 60 anos e mais

Monografia apresentada como requisito para a

obtenção do título de Psicólogo, na Universidade do

Vale do Itajaí, Centro de Educação Superior de

Ciências da Saúde, sob a orientação da Prof. Katia

Simone Ploner.

Itajaí (SC)

2006

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................06

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA...............................................................................08 2.1 Velhice, envelhecer e velho ...............................................................................08 2.2 O saber/poder e a produção da velhice ...........................................................10 2.3 Modos alternativos de pensar a subjetividade ................................................15

3 METODOLOGIA......................................................................................................17 3.1 Pressupostos epistemológicos ........................................................................17 3.2 Participantes .......................................................................................................18 3.3 Instrumento .........................................................................................................18 3.4 Procedimentos para a coleta de dados ............................................................19 3.5 Procedimentos para a análise dos dados ........................................................21 4 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS.......................................24 4.1 Sobre os conceitos ............................................................................................24 4.1.1 O conceito de velhice........................................................................................24 4.1.2 O conceito de envelhecimento..........................................................................26 4.1.3 O conceito de velho e de idoso.........................................................................28 4.2 Das chaminés da fábrica aos carrinhos de supermerca do (A produção da velhice) ......................................................................................................................30 4.2.1 A velhice a partir de Si......................................................................................31 4.2.2 A velhice e o envelhecer com o outro...............................................................34 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................36

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................38

APÊNDICES...............................................................................................................41

APÊNDICE A – Questões norteadoras para a realização do grupo focal..................42

APÊNDICE B – Convite para a participação no grupo focal......................................43

APÊNCIDE C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido..................................44

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À minha querida tia Raquel Santos

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AGRADEDIMENTOS

À Katia, pelas horas de orientação – muitas mais do que a carga horária a ser

cumprida –, pelo teor com que foram conduzidas, pelas cobranças, recomendações

e piadas, pelo respeito por minhas idéias, por seu senso de humor...

Aos meus pais Humberto e Ivani, à minha namorada Maria Luiza, a minha tia

Helena e a todas as pessoas que considero minha família, por me darem força,

sempre!

Às participantes desta pesquisa, por tornarem possível sua realização.

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DA ORDEM NATURAL AO ARTEFATO: a produção da velhice a partir do pensar-fazer-sentir de pessoas com 60 anos e mais

Carlos Eduardo Corrêa Santos Katia Simone Ploner (Orientadora) Defesa: junho de 2006

RESUMO

O referencial teórico empregado nesta pesquisa articula autores do campo da Gerontologia como Simone de Beauvoir e Guita Grin Debert a estudiosos da subjetividade como Michel Foucault e Félix Guattari. Sua relevância consiste na necessidade de desnaturalização da velhice como categoria do discurso de instituições e especialistas na captura dos processos de singularização. Este trabalho tem como objetivo geral compreender os modos de subjetivação da velhice a partir do pensar-fazer-sentir de pessoas com 60 anos e mais. Para tanto, discute os conceitos de velhice, envelhecimento, velho e idoso e os modos como vem sendo (re)produzidas leituras sobre a velhice. Participaram da pesquisa alunas do UNIVIDA (Curso Superior de Extensão Universidade da Vida- UNIVALI – Itajaí) com 60 anos e mais. A coleta de dados foi realizada através da técnica de grupo focal. Desse modo, a abordagem metodológica qualitativa foi adotada por permitir uma maior aproximação entre pesquisador e participantes. Como resultados, evidenciou-se que a velhice foi compreendida pelas participantes como fase de vida e como tempo de aproveitar, o envelhecimento foi significado como algo a ser aprendido; os conceitos de velho e idoso mostraram-se como opostos. Quanto a sua vivência da velhice, relataram ser esta uma experiência inevitável, embora, por vezes, esta seja atribuída ao outro, e o auto-investimento seja entendido como modo de obter valorização social e diferenciação da velhice em geral. O dispositivo “saúde” foi identificado como forma de enquadre na velhice como positividade ou negatividade . Palavras-chave: Velhice; Subjetividade; Gerontologia.

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1 INTRODUÇÃO

“As velhices”: é sob esta perspectiva de pluralidade da vida em sua

proliferação que Sais (2000) se propõe a refletir o fenômeno do envelhecimento das

pessoas com sessenta anos e mais. Com essa inspiração, buscamos promover

nesta pesquisa, a problematização da realidade e do universo teórico que pretende

dar “conta”, “iluminar”, sobre as vicissitudes da velhice e os segredos da longevidade

“sadia”.

A questão da subjetividade ganha atenção nesta pesquisa, pois, como

argumenta Sais (1997, p.66) “é com a mutação do modo de produção da

subjetividade que a vida poderá continuar se expandindo”. A leitura feita sobre a

expansão, enquanto modo de apropriação do existir, de acolhimento da polifonia, da

processualidade, da qual fala o autor, aproxima-nos da compreensão dos modos

pelos quais a velhice, enquanto conceito genérico-abstrato, pode ser vivenciada

como singularidade e multiplicidade.

Desse modo, o pensar-fazer-sentir opera, nesta pesquisa, modos de

apropriação-mutação da existência, vetores ontológicos do processo de objetivação-

subjetivação, na construção de territórios singulares.

A abordagem qualitativa foi escolhida para este trabalho por permitir maior

aproximação entre pesquisador e participantes, e se propor ao estudo dos

complexos processos de produção da subjetividade.

O objetivo geral dessa pesquisa consistiu em compreender os modos de

subjetivação da velhice a partir do pensar-fazer-sentir de pessoas com 60 anos e

mais. Os objetivos específicos foram: a) discutir os significados dos conceitos:

velhice, envelhecimento, velho e idoso segundo pessoas com 60 anos e mais; b)

discutir como o pensar-fazer-sentir das participantes da pesquisa produz/reproduz

leituras sobre a velhice e a experiência do envelhecer. Para tanto, realizamos um

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grupo focal, tendo como participantes alunas do UNIVIDA1 com idade de 60 anos e

mais. Com esse encontro, buscamos a aproximação com seu modo singular de

vivenciar o envelhecimento.

Esses objetivos foram alcançados através de enlaces entre pensamentos de

estudiosos da subjetividade como Michel Foucault e Félix Guattari; da velhice, como

Simone de Beauvoir e Guita Grin Debert; outros estudiosos que abriram caminho na

invenção de diálogos entre esses intercessores, como Almir Pedro Sais e Regina

Duarte Benevides de Barros, e da colaboração das participantes desta pesquisa.

Este trabalho faz-se relevante, na medida em que, grande parte do

conhecimento ainda hoje produzido em gerontologia e geriatria têm se pautado no

envelhecimento como negatividade, centrado no declínio biológico associado à

idade, na conversão da velhice em patologia (SAIS, 1995). Buscamos, então,

questionar o discurso técnico-científico dos experts na naturalização do humano e

das categorias que objetivam estudá-lo. Discurso, este, predominante nas

informações difundidas no campo midiático, que vem fundamentando a questão da

velhice como problema social e produzindo dietéticas do bem envelhecer, atreladas

a um mercado de consumo e às tecnologias de “rejuvenescimento” (BARROS &

CASTRO, 2002).

1 Curso Superior de Extensão Universidade da Vida - UNIVIDA: oferecido pela UNIVALI desde 2000. Os critérios de participação consistem em que a pessoa tenha quarenta anos e mais e o 1º grau de estudo completo. O objetivo do curso é promover o envelhecimento saudável e atuação voluntária.

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Velhice, envelhecer e velho

Sais (1995) argumenta que velhice, envelhecer e velho, são três conceitos

distintos que se articulam, sendo por vezes utilizados indistintamente, mas que não

podem ser tomados como sinônimos. Na compreensão do autor, a velhice se

constitui como conceito genérico-abstrato que enreda as pessoas com 60 anos e

mais. O envelhecimento é tido como processo que vivenciamos desde o nascimento

até a morte, sendo enfatizada pelos saberes gerontológicos e geriátricos a dimensão

biológica, embora não se restrinja a esta. “Meu velho, o teu velho”, “nossos entes

queridos e/ou nem tanto” (p.8), é assim que o autor percebe o fato de que é

irredutível a experiência de envelhecimento dos indivíduos com 60 anos e mais, a

um indivíduo-velho-médio. Assim, não cabe pensarmos “o velho”, mas

singularidades que vivenciam a modelização de um modo de relação com o mundo,

a “captura permanente de processos de singularização, em favor de totalizações”

(AGUIAR, 1997, p.95).

Para Beauvoir (1990) a relação da sociedade com a imensa maioria dos

velhos é de tamanha miserabilidade que a expressão “velho pobre” constitui quase

um pleonasmo. Neste sentido, Bosi (1999) referencia Sartre para nos dizer sobre os

velhos que escapam da miserabilidade, essa minoria de velhos em situação

econômica mais favorecida, defende-se da perda do sentido de continuidade, do

valor de sua obra, pela acumulação de bens. “Suas propriedades o defendem da

desvalorização de sua pessoa” (p.77). Tentando bifurcar esta discussão, podemos

questionar a “miséria” na reciprocidade do convívio, tomada pela capacidade de

afetar e ser afetado, fazendo com que deparemo-nos com o velho, às vistas da

exterioridade como tendo-sido, ou seja, como algo encerrado num tempo que já não

produz ressonâncias, ou baú que só faz acumular pó, e guardar quinquilharias de

memória. Não há mais espaço para alguém que não tem mais com o que contribuir,

que não partilha das mesmas ambições, não consome dos mesmos valores

culturais.

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Fecham-se os olhos para suas capacidades, saltam aos mesmos olhos as

limitações, “(...) transformando-se esta parcela da população num homogêneo

diluído em representações genéricas e abstratas” (SAIS, 1997, p.68).

Segundo Silva (1983), o desvelar da finitude do homem pela velhice, numa

sociedade que tem como condição de sua manutenção a própria negação da

finitude, torna necessária a instauração de mecanismos de negação. Assim, como

também assinalam Beauvoir (1990) e Messy (1999), a velhice é delegada ao outro,

aquele com o qual evitamos manter relações identificatórias. O olhar sobre a velhice

como doença, tornando-a objeto de saberes que exercem a função de remediar e

alimentar esperanças de cura, também consiste num mecanismo de negação.

Somam-se a estes dois, um mecanismo que a autora considera ser a última defesa.

Diante da impossibilidade de mascarar a presença da finitude, da morte, a crença na

imortalidade da alma, numa outra vida, surge como tentativa de eternizar o ser.

Debert (1988) estudando as representações da velhice, também descreve

mecanismos de resistência que tem por objetivo guardar certa distância entre a

própria experiência e a situação do velho em geral. A autora percebe que há

particularidades entre os mecanismos acionados por mulheres e homens. Assim,

para as mulheres, o físico, principalmente sua aparência, sofre uma transformação

biológica, mas o espírito pode resistir à velhice e manter-se jovem. Para elas é

predominante a idéia de que o envelhecimento passaria pelo baixar armas, pelo não

enfrentamento, pela atitude de auto-convencimento e aceitação de que a natureza

faça sua parte. A resistência ganha ares de “desnaturalização”, implicando na

adoção de comportamentos “inversos” aos de outrora, daí mulheres que sempre se

dedicaram aos “cuidados do lar” tomarem frente em passeios e bailes de “terceira

idade”, enquanto mulheres que tinham outras atividades, fora dos afazeres

domésticos, voltarem sua atenção ao lar. Aos homens, a “diferenciação” entre sua

condição e a de um velho, remete ao fato de estar consciente do momento em que

devem ceder seu lugar a alguém mais jovem, que seja capaz de produzir mais e de

forma mais eficiente. Essa manutenção da lucidez consistiria em saber abrir mão

das coisas e de atividades próprias dos jovens, acreditando obter dessa forma

algum reconhecimento por parte da sociedade. O que, por vezes, sugere a idéia:

abandonar antes de vir a ser abandonado. Pois, se a moral oficial prega o respeito

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ao velho, também quer convencê-lo a ceder seu lugar aos jovens, afastá-lo delicada,

mas firmemente dos postos de direção (BEAUVOIR, 1990; BOSI, 1999).

2.2 O saber/poder e a produção da velhice

As idéias de poder, como também de propriedade, associam-se às

demarcações de territórios rígidos, definindo quem-tem-e-quem-não-

tem, para logo transformar-se em quem-é-e-quem-não-é. Ou seja,

quem pode falar, detém a verdade. E quem pode falar, é quem

“tem”... poder. Importa, então, pensar as instituições, as

organizações, e agentes que veiculam tais mensagem. (LEITÃO,

2002, p.149).

As palavras da autora abrem terreno sugerindo a importância de que

pensemos sobre como os saberes vêm sendo produzidos/instituídos, com quais

finalidades e as relações de poder que implicam esses saberes.

Como afirmam Barros & Castro (2002) o discurso2 científico vem sendo

extremamente valorizado por nossa sociedade como referencial para a adoção ou

não de determinadas atitudes, comportamentos e valores. Temos noção desse fato

observando o crescente espaço que vem tendo os estudos acadêmicos nos campos

midiáticos. Segundo as autoras, o humano vem sendo alvo de minuciosas pesquisas

cujos resultados têm ganhado cada vez mais atenção da mídia, “a fim de divulgar e

produzir modos de existência que ‘garantam’ um viver melhor ou, dizendo de outra

forma, a qualidade de vida” (p.114). Pelbart (2003) considera que a “defesa da vida”

vem sendo constantemente invocada, e que para alguns, isso significa ver nas

forças de vida existentes e na sua diversidade um reservatório infinito de lucro e

pesquisa; para outros, um patrimônio inalienável da humanidade. O autor utiliza-se

do referencial foucaultiano sobre a relação saber/poder e percebe que a condição

contemporânea faz com que nos deparemos com o fato da vida ter se tornado alvo

2 Foucault (2000, p.124) define este termo como “conjunto de enunciados que se apóia em um mesmo sistema de formação”, que fez com que ele pudesse falar “do discurso clínico, do discurso econômico, do discurso da história natural, do discurso da psiquiatria”.

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supremo do capital e, por outro lado, paradoxalmente, a vida mesma ter se tornado

um capital. Este argumento requer que colhamos algumas pistas sobre a

compreensão foucaultiana de poder.

Não nos atentaremos ao fato de Foucault não ter se proposto à formulação de

uma teoria geral do poder, mas à condição mesma que impede tal feito: o fato do

poder não levitar sobre a realidade, não ser um objeto ou uma coisa, e sim relação,

produção, tanto num plano macrofísico/político como microfísico/político, tornando

impensável qualquer tentativa de circunscrevê-lo. Do pensamento foucaultiano sobre

o poder, interessa-nos, nesse momento de nossa discussão, o modo como ele

incide sobre a vida, o biopoder, que na compreensão de Pelbart (2003) se reveste

de duas formas principais, a disciplinar e a biopolítica. Abordadas respectivamente

por Foucault em seus estudos, a forma disciplinar, datada do século XVII, implica na

docilização e disciplinarização do corpo, adestrando-o e otimizando suas forças,

sujeitando-o a uma anátomo-política. Territorializada, essa forma de poder surge nas

escolas, hospitais, fábricas, produzindo e gerindo cada vez mais instituições. No

século seguinte, surge a forma biopolítica, que já não se ocupa do indivíduo, mas da

gestão da vida, incidindo sobre as populações. Centrada não mais no corpo-

máquina, mas no corpo-espécie, ganha ênfase a mecânica do vivente, suporte dos

processos biológicos: os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde e a

longevidade.

Ao contrário do que se pode pensar, esses dois poderes não se excluem,

tampouco independem um do outro, mas articulam-se como dois modos conjuntos

de funcionamento do saber/poder, embora tenham focos, pontos de aplicação,

finalidades e móbeis específicos (FONTANA & BERTANI, 1999). Desse modo, o

poder investe sobre a vida de ponta a ponta (PELBART, 2003).

Como analisa Machado (1981, p.199), “poder e saber se implicam

mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber,

como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder”.

Assim, o exercício do poder e a formação do saber implicam-se sobre o mesmo

ponto em que incidem.

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Faz-se importante mencionar Donzelot (1986) que, estudando o poder

normativo, constatou sua incidência sobre a família e a utilização desta como

instrumento de governo. Para o autor, o poder normativo vem sendo (re)produzido

desde, aproximadamente, o século XVIII e exercido via ascensão de um setor

chamado social formado por trabalhadores sociais da área da saúde, médicos,

educadores, e agentes “psi” (psicólogos, psicanalistas e psiquiatras). Esse setor,

sem se dar conta, realiza a função de vigilância constante dos membros do grupo

familiar, seja pela definição do que é normal e patológico ou por medidas aplicadas

para sanar os problemas diagnosticados.

Com esses subsídios podemos ter ampliados nossos horizontes de estudo ao

ler Debert (2004, p.228):

O discurso gerontológico é um dos elementos fundamentais no

trabalho de racionalização e de justificação de decisões político-

administrativas e no caráter das atividades voltadas para um contato

direto com os idosos. Mesmo quando o poder de decisão não é do

gerontólogo, ele é o agente que, em última instância, tem a

autoridade legítima de definir as categorias de classificação dos

indivíduos e de reconhecer nestes os sintomas e os índices

correspondentes às categorias criadas.

É possível constatar a “especialização” do discurso sobre a velhice com Sais

(1995), quando este aponta que muito se tem falado sobre o velho, seja por

publicações especializadas, revistas de generalidades, programas de TV, rádio, etc.,

mas que raramente tem se perguntado aos próprios velhos sobre suas vidas. O

autor afirma que instituições ligadas ao trato do velho, tendo na gerontologia e

geriatria grande aliadas, têm proposto um conjunto de saberes sobre o envelhecer e

a velhice circunscrito as perdas provenientes do declínio biológico associado à

idade, para as quais, a solução estaria na “educação para a velhice”.

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Debert (2004) percebe uma bipolarização no discurso gerontológico sobre o

idoso3: de um lado, um idoso marcado pela condição de miséria e abandono, sendo

alimentado pelo estado; do outro, um idoso fonte de recursos, ativo, autônomo, que,

tendo tomado a juventude como valor, aderiu aos estilos de vida e a parafernália de

técnicas de manutenção corporal veiculadas pela mídia. Tais técnicas, para além de

promessas meia-idade eterna, demarcam a negatividade pela não adesão ao seu

receituário de práticas. A velhice inscreve-se, então, como responsabilidade

individual. (SAIS, 1995).

No contexto em que o envelhecimento se transforma em um

mercado de consumo, não há lugar para a velhice, que tende a ser

vista como conseqüência do descuido pessoal, da falta de

envolvimento em atividades motivadoras, da adoção de formas de

consumo e estilos de vida inadequados (DEBERT, 2004, p.227).

A velhice bambeia sobre o fio, desnorteada pela contradição imanente ao

discurso, pois, se a causalidade é tida pelo saber médico num enquadre biológico,

sua solução, o modo de se chegar a uma velhice feliz, é buscado no social

(HADDAD, 1986). Nesses termos, hora a velhice pende para a patologia, hora

ganha ares de transgressão, pela não adequação a esse regime de verdade/poder.

Debert (2004) percebe que os gerontólogos vêm tendo a tarefa de incentivar

os indivíduos a adotarem modos de combater a deterioração e a decadência.

“Afinados com a burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a saúde

educando o público para evitar a negligência corporal, os gerontólogos abrem

também novos mercados para a indústria do rejuvenescimento” (p.227-228).

Barros & Castro (2002) sugerem que o crescente interesse e notoriedade dos

temas velhice e envelhecer, como objeto de pesquisa e conteúdo de informação

veiculado pela mídia, está relacionado à associação que vem sendo feita entre

envelhecimento e problema social fundamentada por referenciais epidemiológicos,

pela escassez de recursos disponíveis no setor público, alto custo dos

procedimentos médico-cirúrgico para os mais velhos, pela exclusão social deste

3 Partilhamos da compreensão de Messy (1999) e Sais (1995, 2000) de que o termo “idoso”, “a pessoa idosa”, consiste num dispositivo de modelização que captura a experiência do envelhecimento, dissimulando e exprimindo redes homogeneizantes do poder.

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frente a um mercado de trabalho extremamente competitivo, pelas mudanças da

estrutura familiar e pelo impacto econômico gerado pelo aumento da população de

inativos. As autoras apontam para a cumplicidade entre a ética neoliberal e as

práticas de auto-cuidado e auto-responsabilidade, constituindo-se como parte das

estratégias de ordenamento e controle do socius na contemporaneidade.

Nietzsche (2000) já nos falara sobre a questão do “problema”, dizendo que:

Quem quer obter algo difícil de outra pessoa não deve enxergar a

coisa como um problema, mas simplesmente apresentar seu plano

como a única possibilidade; se no olhar do interlocutor despontar a

objeção, a contradição, ele deve saber rapidamente interromper e

não lhe deixar tempo (p.208).

Utilizamos este argumento nietzscheano como contraponto, para sublimar a

própria naturalização do problema. Neste sentido, Deleuze (2005, p.89) nos faz

entender que “o poder, se considerado abstratamente, não vê e não fala”, e por

justamente não ver e não falar, faz ver e falar. Assim, o espontaneísmo sob o qual

tais argumentos do envelhecimento-velhice/problema social estão ancorados tem

em suspenso o fato de que todo o saber é político, produzindo e sendo produto de

práticas sociais.

Com tal estado de coisas, parece não fazer-se necessário questionar que o

velho em nossa sociedade capitalística venha sendo reduzido a seu suporte

corporal, representado como passivo, assexuado, inerte, doente, por vezes ocultado

em asilos para que não tenhamos a vista o resíduo da produção (SILVA, 1983). A

“inaptidão” do velho para as frentes de trabalho, para as linhas de montagem

silencia os questionamentos sobre as condições de trabalho a que um grande

número de pessoas se encontra submetidas.

Esta sociedade que preza tanto a disciplina quanto o controle, justifica a

desvalorização das tradições e da memória pelo ritmo acelerado das inovações, pela

metáfora de globalização que prevê a necessidade de adaptação de países como o

Brasil, eternamente “em desenvolvimento” ao tempo “real” dos ditos países

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desenvolvidos, para que se pretendam competitivos (NEVES, 1999). E, como

demonstra Sais (2000), mesmo quando se tem descoberto o potencial da memória,

converte-se a experiência viva narrada em história oficializada. Estamos novamente

diante da vida como capital.

Esboçam-se assim, algumas pistas sobre os modos como a velhice vem

sendo produzida/reproduzida em nossa sociedade, que responde a pergunta feita

por Sais (2000, p.43), a saber: “Qual o lugar social da velhice no Brasil de hoje?”,

encerrando a vida enquanto produção da existência, sob a reprodução dos papéis

sociais que já estão aí postos. Ocupando a velhice com o lugar do indesejado e não-

desejante, capturando a experiência singularizante da vida.

2.3 Modos alternativos de pensar a subjetividade

O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte

tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não

a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feita

por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de

todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma

lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?

(FOUCAULT, 1995, p.261).

A questão acima deflagrada é o que Barros (1996) denomina modo-indivíduo,

modo de expressão da subjetividade dominante desde, aproximadamente, o século

XVIII. Este modo faz ver e falar sujeito e objeto como totalidades em si. Atravessa de

ponta a ponta o modo como a velhice vem sendo produzida.

Vasculhando a subjetividade, veremos que o indivíduo é apenas um de seus

modos de expressão, cabendo seu questionamento radical como referente geral dos

processos de subjetivação (GUATTARI & ROLNIK, 2005).

Isto pode ser feito partindo-se de que “em cada formação histórica há

maneiras de sentir, perceber e dizer que conformam regiões de visibilidade e

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campos de dizibilidade” (BARROS, 1996, p.100). Rompe-se assim com uma velhice

produzida como universal, que desde sempre e em todo lugar (não) pensa, (não)

age, (mal) sente do mesmo modo, com a mesma intensidade.

O que se coloca em questão é a problematização de uma ordem que se

pretende natural, rumo à compreensão da vida como artefato, como criação.

Para Guattari & Rolnik (2005), a subjetividade “é essencialmente social, e

assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares” (p.42). Sendo

que o modo como os indivíduos a vivem pode variar entre uma relação de alienação

e opressão, com o indivíduo se submetendo a subjetividade tal como a recebe, ou

como expressão e criação, se apropriando dos componentes de subjetividade,

produzindo processos de singularidades.

Tomar a vida como obra de arte implica em nos apropriarmos “do mesmo” e

produzir diferenciação, singularidade (SAIS, 1997), fazendo lembrar que “o mesmo”

nem sempre esteve aí, nem sempre esteve assim. Emerge, então, o sentido lacunar

dessa obra que é nossa vida, que, enquanto criação, escapa as totalizações.

Neste sentido, “sabemos que quando a criação cessa, a subjetividade é

cristalizada em territórios duros onde o desejo é capturado” (idem, p. 67). Por isso

mesmo, faz-se necessária a produção de territórios discursivos, com os quais esta

pesquisa tem intenção de colaborar, pois, mesmo não visando uma intervenção

imediata, mesmo sendo uma pesquisa acadêmica, Heráclito nos faz lembrar que

não se atravessa o mesmo rio duas vezes, e nunca se é o mesmo depois de ter

atravessado o rio.

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17

3 METODOLOGIA

“Há tantos quadros na parede Há tantas formas de se ver o mesmo quadro.”

Humberto Gessinger

3.1 Pressupostos epistemológicos

Esta pesquisa tem como pressupostos que o homem é um ser sócio-

historicamente situado, mediado por outros homens, no processo de construção de

si e do mundo. Sendo que esse processo implica na produção de conhecimentos

historicamente datados, os quais devem prestar contas à realidade, na medida em

que tem como compromisso instrumentalizar a transformação social.

A perspectiva qualitativa foi adotada por ir de encontro a muito dos

pressupostos que fundamentam este trabalho. Tendo em vista que essa

metodologia de pesquisa tem, tradicionalmente, se voltado ao estudo dos

fenômenos relacionados às minorias como, por exemplo, gênero, classe e etnia

(KUDE, 1997). Tomando como foco a abordagem qualitativa no estudo da

subjetividade, González Rey (2002) entende que esta se propõe à elucidação, ao

conhecimento dos complexos processos que constituem a subjetividade e não tem

como objetivo a predição, a descrição e o controle. Pois, a realidade estudada é

sempre inesgotável enquanto singularidade, impossibilitando uma leitura absoluta do

fenômeno.

Acreditamos, então, que não cabe ao pesquisador posicionar-se frente à

realidade como sujeito que “(...) vence as limitações de suas condições particulares

de existência instaurando-se na neutralidade objetiva do universal (...)” (MACHADO,

1981, p.198). Desse modo, não nos constrangemos por não utilizarmos da “terceira

pessoa”, pois também não nos ocultamos atrás da “quarta parede”.

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3.2 Participantes

Esta pesquisa foi realizada com 6 alunas do UNIVIDA tendo como critério de

participação que tivessem idade de 60 anos e mais, todas as alunas integravam a

turma VI do curso, estando matriculadas no 3º período do mesmo, e ingressado no

primeiro semestre de 2005, seguindo as recomendações de Roso (1997) sobre a

quantidade de informantes para a realização da técnica de grupo focal (de cinco a

sete participantes). Considerando a possibilidade de desistências, foram convidadas

nove pessoas. Sendo que o número mínimo de participantes para a realização do

encontro seria de cinco pessoas. Embora também tenham sido convidados dois

homens com 60 anos e mais que cursam o UNIVIDA, estes não compareceram ao

encontro. Das mulheres, uma das sete convidadas também não compareceu. Os

nomes atribuídos as participantes foram tomados de empréstimo de pessoas de

meu convívio, buscando assim respeitar o critério ético de anonimato. No quadro

abaixo, segue informações de identificação sobre as participantes da pesquisa:

NOME IDADE SEXO ESCOLARIDADE EST. CIVIL PROFISSÃO Helena 60 anos F Ensino fundamental Casada Do lar Ivani 64 anos F Ensino fundamental Separada Aposentada

Letícia 61 anos F Ensino fundamental Casada Aposentada Luiza 61 anos F Ensino fundamental Separada Aposentada Maria 65 anos F Curso superior Casada Aposentada

Raquel 63 anos F Ensino fundamental Casada Aposentada

3.3 Instrumento

Esta pesquisa utilizou a técnica de grupo focal como instrumento de

investigação para a coleta de dados, por considerar que esta propicia uma maior

proximidade e abertura por parte do investigador na relação com os sujeitos da

pesquisa (ROSO, 1997). Como orienta Vasconcelos (2002), faz-se importante a

maior inserção do investigador, principalmente quando são tratados temas sociais

complexos, ligados a componentes culturais, ideológicos e/ou subjetivos em que as

“pretensões” de neutralidade poderiam reduzir as possibilidades de apreensão do

fenômeno estudado. Pensando a relevância de se trabalhar com grupos focais,

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Guareschi (1996 apud ROSO,1997) expõe que o ponto central de sua utilização,

consiste no movimento que viabiliza a produção de dados e insights através da

interação grupal que tal situação propicia e que seriam difíceis de conseguir fora

deste contato que se processa dentro de um grupo.

As questões norteadoras (APÊNDICE A) foram ordenadas das mais

abrangentes para as mais especificas, buscando permitir que as participantes

desenvolvessem recursos lógicos para o fornecimento de respostas às questões que

envolviam uma relação mais apurada entre conceitos. As temáticas propostas

relacionavam-se a velhice, envelhecimento, o lugar que os velhos têm ocupado na

sociedade. Visamos, assim, responder aos objetivos desta pesquisa. Buscamos,

também, compreender como os participantes produzem relações lógicas entre as

temáticas propostas, e identificar as possíveis contradições presentes no decorrer

de suas elaborações.

3.4 Procedimentos para a coleta dos dados

Realizamos o chamamento dos participantes com nossa ida à sala de aula do

UNIVIDA e, após minha identificação e explicação do motivo por eu estar ali, o

levantamento de alunos com 60 anos e mais interessados em participar da

pesquisa. Nove pessoas se mostraram interessadas, foi pedido que me

acompanhassem até o corredor para que eu pudesse expor a proposta da pesquisa,

que consistiria na realização de um encontro para que conversássemos sobre

algumas temáticas relacionadas a velhice e o envelhecimento. Para cada um deles

foi entregue um convite por escrito (APÊNDICE B). A data do encontro, acertada

naquele momento, ficou para três dias após o convite (março de 2006).

Este trabalho pautou-se nos princípios éticos de sigilo, anonimato, respeito

para com os participantes, pedindo a autorização para que o encontro fosse

gravado, adequando o mesmo a sua disponibilidade de tempo e deslocamento. As

participantes da pesquisa estiveram conscientes de sua atuação através do Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE C), formulado de acordo com a

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resolução CPF 016/2000 e CNS 096/1996 sobre ética para pesquisa com seres

humanos.

O encontro teve início com minha apresentação como estudante de psicologia

e aluno da disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso. Foram relembrados o

tema e a proposta da pesquisa. Após as devidas explicações e assinatura do Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido, pedi que as participantes também se

apresentassem. Em seguida, entreguei a cada uma das participantes uma plaqueta

com seu nome. Esse procedimento auxiliou na execução do grupo e na distinção da

fala de cada uma no momento da transcrição dos dados. Logo depois, expliquei

como o trabalho seria desenvolvido, com o objetivo de que todas pudessem estar se

manifestando e sendo ouvidas e que o importante seria que cada uma expusesse

como pensa, sente e age sobre as temáticas propostas, sem a necessidade de que

se chegasse a um consenso. Pedi ao grupo autorização para que a conversa fosse

gravada, sendo explicada a importância do registro para a fidedignidade dos dados e

transcrição dos conteúdos discutidos.

O encontro respeitou a indicação de Schrimshaw (1986, p.12 apud MINAYO,

1999) de que o tempo de duração do grupo focal não deve ultrapassar de 1:00h

(uma hora) a 1:30h (uma hora e meia). Optou-se pela realização de discussões

sobre as temáticas propostas por um período próximo a uma hora. Ao longo do

encontro busquei fazer com que não houvessem grandes diferenças de

oportunidades de expressão entre as participantes. O movimento discursivo do

grupo permitiu que as fala das participantes abrissem espaço para outras temáticas

e para o questionamento mútuo sobre as opiniões fornecidas.

Nos 30 últimos minutos foram retomadas as idéias desenvolvidas pelo grupo

e o mesmo trouxe mais dados, como exemplos de situações vividas, que auxiliaram

na compreensão sobre os fenômenos abordados. O encerramento do encontro se

deu com meu agradecimento às participantes e o agendamento da data devolutiva

sobre os achados da pesquisa. O tempo de realização do grupo foi de 01:18h (uma

hora e dezoito minutos).

O grupo focal foi realizado nas dependências da UNIVALI (Universidade do

Vale do Itajaí), em uma das salas em que são desenvolvidas as atividades do

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UNIVIDA, a qual, antecipadamente, soube que estaria vaga no dia combinado para

o encontro. As cadeiras formam organizadas em formato de círculo, onde as

participantes foram convidadas a se acomodar, e os dispositivos de gravação foram

colocados no centro. A sala possuía boas condições de luminosidade, no entanto, a

presença de ruídos externos, principalmente de automóveis, e a necessidade de que

fossem ligados os ventiladores da sala devido às condições de calor, dificultou a

transcrição dos dados coletados, requerendo maior número de horas de trabalho

nessa fase da pesquisa.

Mediante aceitação dos participantes da pesquisa, os dados obtidos no grupo

focal foram gravados através de dispositivo eletrônico de gravação de voz de uma

câmera fotográfica e de um gravador de fita magnética. Os dados foram transcritos a

partir do arquivo de áudio obtido pelo dispositivo eletrônico salvos em CD-RW e

executados em microcomputador por aplicativo de programa compatível ao formato

do arquivo de áudio.

3.5 Procedimentos para a análise dos dados

O método utilizado para a análise dos dados obtidos foi o da análise de

conteúdo, por ser esta uma ferramenta constantemente renovada em função da

diversidade dos problemas aos quais vem sendo utilizada como modo de

investigação (MORAES, 1999). Também por este método permitir não apenas a

descrição pura e simples dos dados, mas a interpretação dos significados partindo

da freqüência e da presença de certos elementos no texto, que correspondem a

unidades de análise. Esta ferramenta de investigação não tem um corpo teórico

fechado, apresentando-se numa grande variedade de formas, sendo adaptada a um

vasto campo de aplicação conforme as necessidades emergentes das situações

específicas de cada pesquisa. Utilizamos nesta pesquisa alguns procedimentos

comuns a diferentes autores.

O processo de análise de conteúdo foi marcado por três momentos: pré-

analise, análise do material e tratamento dos resultados, seguindo as orientações de

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Richardson (1999). A pré-análise permitiu a organização dos dados obtidos, tendo

em vista a operacionalização e sistematização das idéias, esquematizando o

desenvolvimento do trabalho e fornecendo os primeiros recursos para a identificação

dos conceitos mais utilizados pelos participantes do grupo focal. A análise do

material foi uma fase longa e cansativa, implicando na codificação e categorização

dos dados. O tratamento dos resultados foi realizado em seguida, através da

discussão promovida entre as categorias obtidas e os recursos teóricos disponíveis.

As categorias foram definidas a posteriori, tendo em mãos os dados já

transcritos. O processo de categorização realizado na segunda fase seguiu os

critérios de: a) homogeneidade, pela reunirão elementos relacionados a um mesmo

princípio ou aspecto do objeto analisado; b) exclusão mútua, pelo respeito ao

agrupamento dos significados comuns, em uma mesma categoria, buscando-se

evitar a criação de categorias imprecisas e a integração do mesmo dado a mais de

uma categoria; c) pertinência, pois as categorias seguiram as informações

disponíveis, evitando-se, desse modo, a criação de categorias sobre temas não

abordados pelos participantes da pesquisa; d) exaustão, em que se buscou esgotar

todos os assuntos abordados pelos participantes relevantes a pesquisa. Esses

critérios são apontados por Rizzini, Castro e Sartor (1999). Foi empregado também o

critério de validade, que implicou no questionamento constante se as categorias

criadas foram significativas e úteis, adequando-se aos objetivos do trabalho. Após

esse processo, cheguei as seguintes categorias:

1 Sobre os conceitos

1.1 O conceito de velhice: nesta categoria evidenciamos a velhice como fase de vida

e como tempo de aproveitar.

1.2 O conceito de envelhecimento: Discutimos nesta categoria o envelhecimento

como algo a ser aprendido

1.3 O conceito de velho e de idoso: Nesta categoria percebemos o velho e o idoso

como opostos

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2 Das chaminés da fábrica aos carrinhos de supermercado (A produção da

velhice)

2.1 A velhice a partir de si: na qual encontramos três sub-categorias principais: a

velhice como experiência do inevitável, a negação como caminho de fuga, e a saúde

como forma de enquadre

2.2 A velhice e o envelhecer com o outro

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4 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.1 Sobre os conceitos

4.1.1 O conceito de velhice

A compreensão da velhice como fase de vida é identificada, principalmente,

nas respostas dadas à questão: “O que significa velhice, para você?”. Sobre esta

pergunta, Raquel (63 anos) respondeu: “é uma fase de nossa vida ”, referindo-se,

ainda, ser esta uma fase muito boa. Para Maria (65 anos) a velhice é um estágio da

vida. E para Ivani (64 anos) a velhice é a fase que as participantes da pesquisa

estão cumprindo. Considerando a velhice uma produção sócio-histórica inserida no

campo dos valores, Birman (1995) identifica a transformação dos momentos da

existência humana em uma ordem necessária como uma invenção recente da

história ocidental. O autor situa esta invenção na passagem do século XVIII para o

XIX, atribuindo à ideologia científica do evolucionismo a divisão do ciclo biológico da

existência humana em faixas etárias bem definidas, sendo a velhice uma delas.

Lenoir (1996) aponta para os estigmas físicos e as particularidades biológicas,

como o sexo e a idade como sendo, quase sempre, critérios de classificação dos

indivíduos no espaço social. Nesse sentido, Ploner (2000, p.114) compreende que

“normalizar parâmetros, regras, padrões, conhecimentos – sejam estes

preconceituosos ou não – é uma necessidade social que estabelece um maior

controle sobre as pessoas”. O enquadramento em padrões rígidos favorece a ilusão

de que se sabe como e quem são as pessoas, antes mesmo de se ter contato com

elas. Gerando, assim, “um falso sentimento de segurança e de controle sobre as

situações e relacionamentos sociais, pois estão pautados em preconceitos e

estereótipos” (idem).

A velhice como tempo de aproveitar também foi identificada. Frases como:

“eu sou velha, mas quero aproveitar ” (Maria, 65) e “(a velhice é) um tempo que a

gente vai aproveitar mais ” (Luiza, 61), aparentemente nos distanciam da ênfase

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dada à velhice como declínio biológico e apontam para um momento privilegiado da

vida para a realização pessoal.

Partindo de uma leitura de Debert (2004), percebemos que esses são

aspectos do antagonismo que tem marcado o debate atual em torno de dois

modelos de pensar velhice e envelhecimento. Por um lado, o declínio biológico,

associado à perda de capacidade de produção, perda de status social, relegando o

velho a pobreza e ao abandono. Por outro lado, um velho considerado fonte de

recursos, a velhice como um momento privilegiado para a realização de projetos, de

reconhecimento da experiência e sabedoria pelos mais jovens.

Atentemo-nos para as limitações desses dois modelos de pensar. O primeiro

modelo, embora carregue elementos de denúncia das primeiras discussões sobre a

velhice, deflagrando as condições em que, ainda hoje, vivem muitos velhos,

fortalece, muitas vezes, a representação do velho como oprimido, como alguém que

precisa de quem fale por ele. Reproduzindo a relação saber-poder que consiste no

alvo mesmo ao qual, pesquisas com esse referencial, buscam se opor. O segundo

modelo, que faz crer no distanciamento da velhice como declínio biológico, em

última instância, deixa em suspenso a própria velhice, tendo tomado a juventude

como um valor a ser alcançado, através da adoção de modos de pensar, agir e

sentir.

A velhice como tempo de aproveitar nos remete a redução voluntária ou

involuntária dos compromissos sociais, e como esta pode ser percebida

positivamente pelas pessoas que vivenciam esta fase da vida. Helena (60 anos)

pensa a velhice como “um tempo que a gente tem mais tempo pra se dedicar a

coisas que a gente, talvez, não tivesse tempo duran te a vida, por precisar

trabalhar ”. No entanto, é preciso lembrar que, em países como o Brasil, onde a má

distribuição de renda é um importante fator que atravessa uma série de outros

problemas sociais, esse modelo de velhice bem sucedida está ao alcance de um

reduzido número de pessoas.

Raquel (63 anos) enfatiza a necessidade das pessoas com 60 anos e mais

saberem aproveitar bem essa fase de suas vidas, o que vai de encontro à fala de

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Helena (60 anos), quando esta diz ser preciso não só colher, mas saber colher o que

a velhice oferece como somatória de experiências e aprendizados. Percebemos

nessa “necessidade de saber” o campo propício de legitimação do objeto de estudo

gerontológico.

Vários autores (HADDAD, 1986; LENOIR, 1996; DEBERT, 2004) discutem a

importância do discurso gerontológico na produção novas modulações da velhice e

do envelhecimento. Tendo esse referencial, Peixoto (2000) aponta para o

surgimento da expressão “terceira idade” como sinônima de uma fase de vida ativa e

independente, relacionada à necessidade de criação de um vocábulo que

designasse mais respeitosamente a representação dos jovens aposentados, tidos

como fonte de renda e mercado de consumo. É operado, assim, um trabalho de

classificação que segundo Lenoir (1977, apud, PEIXOTO, 2000) é indissociável ao

trabalho de eufemização, tendo por objetivo tornar nominável, público, o que até

agora foi rechaçado e não pôde se exprimir. Permite-se, desse modo, “dizer a coisa

sem pronunciar a palavra” (p.384).

No entanto, se as instituições e os especialistas vêm demonstrando

obter sucesso na tarefa de manter o jovem-velho afastado do envelhecimento,

evitam trazer à baila uma questão que até o momento permanece em aberto. Com o

advento da “terceira idade” como nova etapa de vida na qual as perdas biológicas

podem ser contornadas pela adoção de um repertório de comportamentos, vê-se a

sua frente um abismo em que pessoas que chegaram ao limiar de esperança de

vida de sua respectiva população, quedam severamente: a imagem tradicional da

velhice como decadência e incapacidade física, imagem esta que, no Brasil,

começou a ser chamada de “quarta-idade”, pessoas com mais de 75 anos

(PEIXOTO, 2000).

4.1.2 O conceito de envelhecimento

O conceito de envelhecimento, para as participantes da pesquisa é marcado

pelo “saber envelhecer”. Raquel (63 anos) recomenda: “tem que saber

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envelhecer ”. Ivani (64 anos) vê a necessidade de ir se preparando para o

envelhecimento. Essas falas sublinham as perdas atribuídas ao envelhecimento. A

necessidade de preparo nos aproxima de uma compreensão do envelhecimento

como algo que promove o declínio na vida das pessoas. Quando Letícia (61 anos)

diz: “saber envelhecer é muito bom ”, ela sugere se reconhecer como alguém que

consegue re-significar o envelhecimento, identifica a si e as outras participantes da

pesquisa como pessoas que obtém satisfação buscando saber envelhecer. Fazem

isso, por exemplo, através da participação em um curso que tem como objetivo

promover o envelhecimento saudável e mostrando-se interessadas em participar

desta pesquisa.

Para Haddad (1986), as prescrições feitas pelo discurso gerontológico visam

à reorganização dos comportamentos educativos através de dois eixos distintos,

sendo que são propostas estratégias diferentes para cada um. O primeiro eixo

ocupa-se da difusão dos preceitos bio-médicos, de conhecimentos e técnicas que

conscientizem os velhos do que é clinicamente a velhice. Tem-se, desse modo, a

pretensão de preservação do corpo. O segundo eixo, a autora agrupa sob a etiqueta

de “economia social”, cabendo aqui todas as formas de direção da vida dos velhos

com o objetivo de diminuir o custo social de sua manutenção.

Essas colocações aproximam-se do que Foucault (1988) discute sobre as

formas disciplinar e bio-política do poder. Para o autor, o poder disciplinar centra-se

na anátomo-política, no adestramento do corpo, na ampliação de suas aptidões,

pretendendo maximizar sua utilidade e reduzir sua capacidade de resistência,

garantindo sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos. A bio-

política, cuja incidência faz-se sobre o corpo-espécie, sobre os processos de vida

como a proliferação, os nascimentos, a longevidade, os níveis de saúde e a

mortalidade, implica em intervenções reguladoras que visam à melhora qualitativa

da população. O poder na gestão da vida assume o importante papel de fornecer

uma população qualificada para a produção. É gerado, assim, um mercado de

consumo, que encontra na ciência um agente disposto a oferecer dietéticas de

saúde, de “qualidade de vida”, aos interessados em manter a capacidade produtiva.

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É importante observar, no entanto, que Haddad (1986) identifica dois

repertórios de estratégias executadas pela ideologia capitalista, entendendo que

estes são bem distintos entre si. Foucault (1988) reconhece no poder disciplinar e no

bio-político elementos importantes para o desenvolvimento do capitalismo, e

compreende que estas duas formas de poder se articularam e vem buscando o

controle sobre a vida, desde o século XIX.

Ambos reconhecem a incidência mútua entre o político e o biológico, embora

com ênfases diferentes: na produção do capital, para Haddad (1986); na gestão do

poder sobre a vida, para Foucault (1988). É na relação entre o político e o biológico

que Haddad (1986) localiza o “saber envelhecer”, a “educação para o bem

envelhecer”, como tentativa de administração de um remédio social para o

envelhecimento. Remédio este, que:

Pressupõem que envelhecemos todos de uma mesma e única

maneira, como se o processo de envelhecimento, a velhice e o

ser velho pudessem escapar às complexidades do humano e

se encerrar num conceito objetivo, genérico, universal e

puramente biológico (SAIS, 2000, p.44).

4.1.3 O conceito de velho e de idoso

Para a coleta de dados sobre o conceito de velho e de idoso foram feitas duas

perguntas as participantes da pesquisa. À primeira pergunta “Quem é o velho?”,

foram dadas respostas que descreviam o velho como pessoa sábia/experiente,

“com toda uma trajetória de vida pra contar ” (Helena, 60 anos), “(...) que já viveu

um bom tempo e sabe muito ” (Luiza, 61).

No entanto, diante da realização da segunda pergunta: “Os termos velho e

idoso tem significados diferentes?”, foi possível perceber que o conceito de velho

assumiu novos significados após a inserção do termo idoso na discussão.

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Nesse segundo momento, o termo velho assumiu caráter negativo: “a palavra

velho pisa mais ” (Luiza, 61). Esse “pisa mais” retrata o estereótipo do velho como

incapaz, empecilho, doente, sendo e representando o sujeito da solidão e exclusão,

pelo fato mesmo da perda de autonomia e pelo encarceramento de sua

singularidade num passado caduca.

Por outro lado, as participantes da pesquisa entendem que o termo idoso é

mais suave, mais carinhoso, confere mais respeito. Como analisam Néri & Freire

(2000), a adoção de termos como “terceira idade” e idoso tem como objetivo

subjacente soar bem, mascarando o preconceito e negando a realidade vivenciada

por muitas pessoas. Caso não houvesse preconceito, não seria necessário disfarçar

nada por meio de palavras.

A segunda fala de Helena (60 anos) nos fornece mais argumentos para a

compreensão das relações produzidas pelas participantes com os termos idoso e

velho, no segundo momento: “aquela pessoa acima de 60 anos que tá

participando, que tá junto ainda na vida da família ou da sociedade, não sei,

para mim seria isso: a gente se refere como idoso; sei lá, aquela pessoa mais

velha, mais ranzinza, impertinente, mais egoísta... é meio pejorativo ‘velho’,

mais pra mim seria ”. É interessante observar as pausas, as titubeações em sua

fala. A participante percebe a socialização e o modo como ela se produz como

fatores importantes na diferenciação entre o idoso e o velho.

Outros tijolos foram acrescidos ao muro que divide o idoso e o velho. Raquel

(63 anos) diz: “quando é um pobre, as pessoas falam: ‘aquele velho ali’, quando

é uma pessoa com uma certa condição, aí ele não é v elho, é o idoso ”. A

referência à condição financeira como indicador das diferenças entre os significados

dos termos velho e idoso, nos sugere que o idoso é aquele que tem a possibilidade

de salvaguardar sua pessoa da desvalorização, através de seus bens. Na outra

margem, o velho é aquele que não se preocupou em acumular recursos durante a

vida ou foi explorado de tal modo pelo processo capitalista de produção que os

proventos de seu trabalho permitiram apenas o suficiente para sua sobrevivência

imediata.

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Ivani (64 anos) acrescenta dizendo que, além do poder aquisitivo, o estudo, a

educação, diferenciam o velho do idoso. Pensamos que a educação exerce a

importante função de inserir os indivíduos nas instituições, colocando-os em contato

com os especialistas, imprimindo-lhes suas classificações e normas, seu próprio

valor enquanto organizadora da vida, como lugar onde se aprende a aprender. Tem-

se, desse modo, onde e quem pode ensinar a envelhecer.

Néri e Freire (2000) entendem que, “se as palavras parecem assumir

conotação negativa ou pejorativa, o problema não está nelas, mas nas razões pelas

quais elas tiveram seu significado modificado.” (p.14). A necessidade de

diferenciação produz-se, então, da necessidade de por etiquetas, de rotular um

“novo velho”, melhor dizendo: o idoso. Pois, a modelização operada do idoso ativo e

fonte de recursos tem permitido o vislumbrar de melhores perspectivas para parte

das pessoas que, atualmente, constituem a massa de trabalhadores. Também têm

favorecido às pessoas com 60 anos e mais condições de acesso aos especialistas,

em grande parte responsáveis por esse modo de subjetivação. No entanto, é preciso

lembrar da condição de vida de grande parte da população brasileira com mais de

60 anos, para quem, se assim fosse possível dizer, o “antigo” velho é sua vivência

diária. A condição do velho que, para além das dificuldades físico-social-econômica

debate-se com uma “representação” da velhice, ao tempo em que outros membros

da sociedade passam a vê-lo como incômodo, ocupando espaço, exigindo cuidados

(controle), como todo “bichinho de estimação” (SAIS, 1997).

4.2 Das chaminés da fábrica aos carrinhos de supermerca do (a produção

da velhice)

Buscamos, nesse momento do trabalho, discutir como as participantes da

pesquisa produzem/reproduzem leituras sobre a velhice e de sua própria experiência

de envelhecer. Para tanto, partimos de uma reflexão de Sais (1997):

O mundo, o si mesmo e o outro são construções permanentes,

efeito exatamente do encontro em que ambos se constituem,

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produzindo tanto a realidade objetiva quanto a subjetiva, no

processo de singularização. O encontro não é neutro. Produz

transformações irreversíveis (p.68).

Desse modo, utilizamos como referencial para a compreensão desse

movimento de construção, como as participantes da pesquisa se posicionaram em

relação a sua vivência da velhice. No primeiro tópico (A velhice a partir de Si)

focamos as experiências em que as participantes protagonizaram a situação

narrada. No segundo tópico (A velhice e o envelhecer com o outro) foram

privilegiadas as situações em que as participantes identificaram o outro como

mediador de suas próprias significações e, também, situações em que ocuparam o

lugar “outro” de alguém.

4.2.1 A velhice a partir de Si

“A velhice, a gente sente um pouco. O tempo vai pass ando e dá, assim,

até, às vezes, uma sensação de angústia de pensar: Ah! se eu fosse mais

jovem... ” (Letícia, 61 anos). Essa frase quebra o coro de La vie en rose4, sublinha a

temporalidade na experiência da velhice. O tempo, para as participantes da

pesquisa, é o principal fator de reconhecimento da velhice como algo inevitável. Ele

está expresso na imagem que o espelho reflete (a pele não é mais a mesma), na

memória que falha mais, na solidão que aumenta. (Será que algum dia a pele foi ou

será a mesma?).

O caráter inevitável da velhice em sua irreversibilidade ganha nuances de

dever cumprido e superação das perdas quando as participantes refletem sobre as

experiências que marcaram suas vidas: a infância como tempo de liberdade, o

trabalho, o marido e os filhos assumem destaque em suas falas. Aproximam-se da

idéia de que a pessoa realizada é aquela que teve um filho, plantou uma árvore e

escreveu um livro, tendo firmado seu valor por garantir a continuidade da espécie,

4 A vida em cor-de-rosa”, referência ao título da música cantada por Edith Piaf.

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contribuindo para o bem-estar das futuras gerações, dando continuidade também a

seu legado espiritual para além da morte física (NERI & FREIRE, 2000).

As participantes referem-se, principalmente, ao fato de terem criado seus

filhos e de vivenciarem, atualmente, sentimentos que se confundem entre a

satisfação por tê-los preparado para a vida e a solidão por eles terem seguido suas

vidas, não tendo na mesma intensidade o retorno do investimento afetivo. Nesse

sentido, é interessante mencionar que Lenoir (1996) identifica o saber gerontológico

como principal agente responsável pela legitimação de uma ética de auto-

investimento do velho, tendo em vista atender a demanda por não culpabilização

dos outros membros da família perante a sociedade, pela não manutenção de

relações e afeição que, anteriormente incumbia aos filhos.

No entanto, “se é inevitável você estar na velhice, então, não v ai adiantar

pensar: ‘Não, eu vou ficar em casa esperando... ’” (Maria, 65 anos). Como analisa

Debert (1988), resistência à velhice permite que as participantes da pesquisa

separem sua situação pessoal da velhice em geral. Mais do que isso, essa

resistência, tal como é operada, implica numa forma de reforçar estereótipos, de

fechamento sobre territórios rígidos, na medida em que as múltiplas possibilidades

de experiência da velhice são encerradas no já conhecido conceito genérico-

abstrato. Estamos novamente diante da bipolarização da velhice, e deparamo-nos

com a sobrecodificação da subjetividade, com a captura das forças de criação pelo

arsenal estratégico do capitalismo contemporâneo. Este faz uso perverso do

potencial de invenção da vida em favor da venda de um território-padrão-

mercadoria. Cujo consumo tem a propriedade de apaziguamento da angústia gerada

pela necessidade produzida de reconhecimento e notoriedade social, e as tentativas

de adequação a velocidade de criação de novas “ondas”/modas/técnicas-de-

rejuvenescimento levam ao que Rolnik (2002) denominou de toxicomania de

identidade.

Atentando-nos ainda para a separação da situação pessoal em relação à

velhice em geral, esta aponta para os mecanismos de negação operados pelas

participantes. Para Letícia (61 anos) a velhice é quando ela chegar aos 75 ou 80

anos. Raquel (63 anos) deflagra a situação “o velho, quando a gente era criança,

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uma pessoa de 40 ou 50 anos, na nossa cabeça, ele j á era velho. Aí a gente vai

chegando perto dessa idade, aí aquela idade já não é mais velho. A gente vai

jogado pra frente ”. Para Messy (1999) a resposta à pergunta: “Quando é que se

fica velho?” não é nada fácil. “Porque, olhando um pouco mais de perto, o lugar de

velho, que evito, é ocupado por mim, apesar de mim, no olhar de outros mais

jovens.” (p.14). Para o autor, somos sempre o velho de alguém, do mesmo modo

que, uma pessoa com cinco ou dez anos a mais que nós pode ser considerada

velha. Ploner (2000) entende que:

Ter 70 ou 80 anos não é sinônimo de condizer com o

estereótipo da velhice: estar esperando a morte chegar ou ser

apenas uma pessoa com a memória do passado – ou com

problemas de memória -, assim como não significa cansaço,

desânimo ou que tenha doenças e tantos outros problemas

atribuídos aos/às velhos/as.

Quando Raquel (63 anos) diz: “é o nosso físico que envelhece, a nossa

cabeça não pode envelhecer ”, percebemos a dicotomização entre corpo e mente,

cabendo ao primeiro sofrer o processo de degeneração biológica e ao segundo

manter-se conservado. Percebemos, também, como a representação de saúde

serve como dispositivo de orientação ao auto-reconhecimento das participantes de

seu enquadramento ou não na velhice.

Helena (60 anos) diz: “eu tenho me preparado pra minha velhice: cabeça,

saúde, ocupando meu tempo de uma forma legal pra ev itar a solidão que,

infelizmente, é uma decorrência da velhice ”. Essa preparação, esse cuidado de

si, tendo como objetivo a valorização social é entendido por Giddens (1992, 1992a

apud DEBERT, ca.2000) como próprio da experiência contemporânea na definição

do eu, de quem sou, devendo ser conquistada a partir de esforços individuais.

A solidão como decorrência da velhice, pode ser compreendida a partir de

Debert (2000) quando esta afirma a necessidade de rompimento com uma

psicologia do desenvolvimento que concebe o curso de vida como seqüência

unilinear de etapas evolutivas, pelas quais, apesar das particularidades sócio-

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culturais, todos os indivíduos passam. Entende que a idade não corresponde a um

fator explicativo dos comportamentos humanos, tampouco há comportamentos

universalmente atribuíveis a uma determinada idade. Para Ploner (2000) “a velhice

não carrega em si mesma ‘propriedades substanciais que os indivíduos adquirem

com o avanço da idade cronológica’ (DEBERT, 1998, p.51)”.

4.2.2 A velhice e o envelhecer com o outro

Ivani (64 anos) nos conta: “eu tive a experiência da minha mãe, que,

quando chegou nos 50 anos ela achou, disse assim: ‘agora eu só tô descendo

os degraus’, e começou a cuidar da vida dela como s e ela fosse uma velhinha.

Eu acho que ela, vivendo o estágio de vida que agor a nós estamos vivendo,

levou um choque muito grande ”. Debert (1988) considera que a velhice, para as

mulheres, tende a passar por uma questão de auto-convencimento, que envolveria

um entregar-se sem resistência a um processo considerado geralmente natural.

Quando Ivani (64 anos) diz achar que sua mãe levou um choque muito grande

quando vivenciou o estágio de vida que, agora, ela está vivendo, sugere que, para

ela, esse estágio não tem significado um choque, ou seja, sugere que ela pensa não

estar somente descendo os degraus. Sua justificativa para o choque sofrido por sua

mãe é “porque em vez dela aproveitar, ela só pensou na vel hice ” (Ivani, 64

anos). Como já foi discutido, aproveitar a velhice, para as participantes da pesquisa,

consiste em perceber positivamente a redução de compromissos sociais em favor da

realização de projetos pessoais. Para isso, as participantes entendem que é preciso

saber envelhecer, dispondo do conhecimento de especialistas, e das tecnologias de

rejuvenescimento, como forma de cuidado de si. Desse modo, Ivani (64 anos)

sugere que sua mãe deixou-se convencer pelas perdas provenientes do

envelhecimento sem resistir.

Para Luisa (61 anos) “hoje em dia a pessoa com 60 anos, ela não

representa 60 anos. Antigamente uma pessoa de 60 an os era mais judiada,

mais velha. Hoje em dia, uma pessoa de 60 anos não aparenta mais a idade. As

pessoas mais antigas tinham uma vida mais difícil, de lá para cá, já tá tudo

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mais fácil ”. Com essa fala, a participante da pesquisa estabelece um paralelo

baseado no referencial de idade. O argumento de, hoje em dia, uma pessoa de 60

anos não representar mais a idade, tem como fundamento o estereótipo de que as

pessoas com 60 anos, no passado, viveram uniformemente uma condição de

sofrimento, sugerindo, também, que o desenvolvimento de novos recursos

materiais/intelectuais tem permitido facilidades à vida de todas as pessoas.

Entendemos, assim, que a idade cronológica passa a ter a função de limitar a

experiência humana segundo padrões (PLONER, 2000).

Raquel (63 anos) relata: “a minha vizinha, ontem, tava dizendo assim: ‘Ah!

agora eu vou ficar um mês com a minha mãe... não te nho saco pra agüentar

isso, por que ela não faz um tricô, não faz crochê, não vê televisão, ela não lê

um livro, ela só fica reclamando e vai pra cama, e aí se ela tem uma dorzinha

qualquer, ela quer ir pro médico imediatamente, mas eu não vou fazer isso,

isso é manha dela’, mas nem sempre, né!? ‘Não’, ela disse: ‘a minha mãe é

chata, velha e ranzinza ’”. Levando a diante a discussão sobre a modelização da

velhice, acreditamos que Debert (2000) contribui ao afirmar que “as representações

sobre a velhice, a posição social dos velhos e o tratamento que lhes é dado pelos

mais jovens ganham significações particulares em contextos históricos, sociais e

culturais distintos” (p.50). Discutindo a necessidade de se aprender a envelhecer,

aprender a ser velho, Sais (1995) nos propõe a pergunta: “pra quem o ‘aprender a

envelhecer’ é bom?” (p.12). Percebemos nesse relato, como o velho ao confrontar-

se com a expectativa do outro por uma velhice ativa, tem capturada sua

singularidade. É insuportável a velhice, tanto quanto é insuportável pensarmos que,

se pretendemos viver muito tempo, estaremos a sua mercê.

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5 CONSIDERACÕES FINAIS

Como as tecnologias do saber-poder incidem sobre a vida? Esta é a questão-

motor desta pesquisa. Inicialmente, quando ainda me debatia em busca de um/a

supervisor/a, meu questionamento planava sobre temas, não menos marginais que

a velhice, abordados por Michel Foucault, ou por estudiosos que seguem seu

referencial.

Não foram poucas as recusas e/ou inviabilidades de professores-supervisores

de trabalharem temas como loucura e a racionalidade das instituições de tutela. Meu

encontro com a Professora Kátia num dos corredores do Bloco de Psicologia fez

acender na minha cabeça a lampadinha: Kátia=Velhos. Melhor dizendo: já tinha

conhecimento de que ela supervisionava trabalhos com temas relacionados à

velhice. Depois de algumas conversas, a idéia estava formada: fazer um contraponto

entre o modo como é pensado o desenvolvimento humano numa instituição de tutela

da infância e da velhice, tinha em mente vários desdobramentos... um estudo de

caso com uma pessoa que tenha vivido nesses dois contextos, legal! (seria esta

uma sugestão de estudos futuros?) Mas, ops...! Minha futura supervisora trabalha

com velhice... então, como faço com a infância? Estudo de caso... onde eu vou

encontrar uma pessoa que tenha vivido num abrigo e num asilo? Não vai dar tempo!

Pensando bem, fica pro mestrado! Talvez fique pro mestrado também o

aprofundamento da discussão velhice x “terceira idade”, na medida em que os

significados dos conceitos velho e idoso indicaram oporem-se e os conceitos de

velhice e “terceira idade” (este último discutido apenas teoricamente, por não fazer

parte dos objetivos iniciais desta pesquisa) sugerirem uma relação próxima àquela

discutida.

Alunos do UNIVIDA – grupo focal – pesquisa qualitativa – análise de

conteúdo, ainda bem que eu consegui trabalhar com Foucault! Brincadeira, a Kátia

me mostrou que, caso eu não me dedicasse ao tema que propus trabalhar, caso

ficasse divagando sobre as articulações entre o pensamento complexo e a teoria

sócio-histórica, estaria jogando fora a possibilidade de empregar esse referencial em

meu fazer como “aprendiz de pesquisador”.

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Entendendo isso, pude entender também que a subjetividade, fabricada e

modelada no registro do social (GUATTARI, 2005) é (re)produzida e vivenciada

quando, por exemplo, Raquel (63 anos) nos conta: “eu tive uma experiência muito

interessante com o meu sobrinho-neto, eu tinha cabe lo branco, bem branco, aí

ele perguntou: ‘Por que a tia tem cabelo branco?’, ‘Ah! porque a tia já tem 50

anos e a tia já é velha, então, a tia já tem cabelo branco’, depois eu pintei o

cabelo, ele disse assim, era criança, né... ‘sim, a tia ficou nova, agora?’, sabe,

então, na visão da criança a minha aparência mudou o arco da minha vida,

porque eu voltei para uma idade mais nova. Então, é isso aí: quando a gente se

cuida mais, aí a gente é mais valorizada, se a gent e não se cuidar, aí a gente

vira velha mesmo ”.

Percebi que a teoria não se esgota em si mesma, que referir-se a Si como

velha por ter cabelo branco e 50 anos, usar tintura para cabelo como forma de

demonstrar cuidado, na tentativa de sentir-se valorizada, podem ser modos de

objetivação/subjetivação. Percebi também, que as velhices, como as infâncias (ou o

modo como a participante da pesquisa se refere a seu sobrinho-neto como criança

não nos sugere que perdoemos sua ingenuidade?), podem ser produzidas no

diálogo entre tia-avô e sobrinho-neto, entre mãe velha e ranzinza e filha que não

quer se submeter a suas manhas, entre o velho-de-antigamente e o velho-de-hoje-

em-dia, tanto quanto por instituições e especialistas, na verdade, estas são

construções que implicam-se mutuamente e que, espero, renderão ainda muitas

cartografias.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A

QUESTÕES NORTEADORAS PARA O GRUPO FOCAL

1 O que significa velhice, para você?

2 Velhice é diferente de envelhecimento?

3 Quem é o velho?

4 Os termos velho e idoso tem significados diferentes?

5 Como você percebe que são vistas as pessoas com 60 anos e mais em nossa

sociedade?

6 E como percebe que as pessoas vêem você, considerando que você tem 60 anos

ou mais?

7 Você identifica comportamentos específicos a pessoas com 60 anos e mais? (Em

caso afirmativo) Quais são esses comportamentos? O que faz com que eles sejam

específicos a pessoas com 60 anos e mais?

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APÊNDICE B

CONVITE Sr. (a) __________________________________________________________ Gostaria de convidá-lo (a) para participar de uma pesquisa cujo objetivo é

compreender os modos de produção da velhice a partir do pensar-fazer-sentir de

pessoas com 60 anos e mais.

Sua tarefa consistirá na participação em uma entrevista em grupo que por

necessidades metodológicas será gravada para posterior transcrição. Para isso,

serão respeitados os aspectos éticos citados abaixo.

Quanto aos aspectos éticos, gostaria de informá-lo (a) que:

a) seus dados pessoais serão mantidos em sigilo, sendo garantido o seu anonimato;

b) os resultados desta pesquisa serão utilizados somente com finalidade acadêmica

podendo vir a ser publicado em revistas especializadas, porém, como explicitado

no item (a) seus dados pessoais serão mantidos em anonimato;

c) não há respostas certas ou erradas, o que importa é a sua opinião;

d) a aceitação não implica que você estará obrigada a participar, podendo

interromper sua participação a qualquer momento, mesmo que já tenha iniciado,

bastando, para tanto, comunicar aos pesquisadores;

e) você não terá direito a remuneração por sua participação, ela é voluntária;

f) esta pesquisa é de cunho acadêmico e não visa uma intervenção imediata;

g) durante a participação, se tiver alguma reclamação, do ponto de vista ético, você

poderá contatar com o responsável por esta pesquisa.

Horário:

Local:

Data:

Muito obrigado.

Carlos Eduardo Corrêa Santos

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APÊNDICE C

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

APRESENTAÇÃO

Gostaria de convidá-lo (a) para participar de uma pesquisa cujo objetivo é

compreender os modos de produção da velhice a partir do pensar-fazer-sentir de

pessoas com 60 anos e mais;

Sua tarefa consistirá na participação em um grupo focal que será gravado e

que posteriormente transcrito obedecendo aos aspectos éticos citados abaixo.

Quanto aos aspectos éticos, gostaria de informá-lo (a) que:

a) seus dados pessoais serão mantidos em sigilo, sendo garantido o seu anonimato;

b) os resultados desta pesquisa serão utilizados somente com finalidade acadêmica

podendo vir a ser publicado em revistas especializadas, porém, como explicitado

no item (a) seus dados pessoais serão mantidos em anonimato;

c) não há respostas certas ou erradas, o que importa é a sua opinião;

d) a aceitação não implica que você estará obrigado a participar, podendo

interromper sua participação a qualquer momento, mesmo que já tenha iniciado,

bastando, para tanto, comunicar aos pesquisadores;

e) você não terá direito a remuneração por sua participação, ela é voluntária;

f) esta pesquisa é de cunho acadêmico e não visa uma intervenção imediata;

g) durante a participação, se tiver alguma reclamação, do ponto de vista ético, você

poderá contatar com o responsável por esta pesquisa.

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IDENTIFICAÇÃO E CONSENTIMENTO

Eu, _______________________________________________________________

___________________________________________________________________

Declaro estar ciente dos propósitos da pesquisa e da maneira como será realizada e

no que consiste minha participação. Diante dessas informações aceito participar da

pesquisa.

Assinatura: _________________________________________________________

Data de nascimento: ______________________

Pesquisadora responsável: Prof. Katia Simone Ploner

Assinatura: ___________________________________

E-mail: [email protected]

Telefone: (047) 341-7679 (UNIVALI)

Endereço: UNIVALI – CCS – Curso de Psicologia

Rua Uruguai, 438 – bloco 25B – sala de supervisão de estágio junto à coordenação

do curso de psicologia.

Pesquisador: Carlos Eduardo Corrêa Santos

Assinatura: __________________________________

E-mail: [email protected]

Telefone: (047) 9932-4782 (celular)

Endereço: Rua Heitor Liberato n. 1500, Itajaí – SC