Da Vitoria Tecnologica Ao Perigo Da Profundidade

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Da vitória tecnológica ao perigo da profundidade* Folha de S.Paulo 22 de janeiro de 1991 - S.P. Sudeste

As novidades tecnológicas da guerra do golfo Pérsico parecem mínimas se comparadas às conseqüências estratégicas do conflito. Com efeito, seja qual for seu resultado, de uma coisa poderemos ter certeza: as relações de força internacionais já não serão as mesmas.

O mundo não tinha superado a perplexidade provocada pelos acontecimentos do Leste Europeu, quando o conflito no golfo já mostrava uma configuração de forças, não apenas inédita, mas impensável, meses atrás. As duas superpotências (os EUA e a URSS), que até a pouco tempo polarizavam suas forças, alinhadas contra um inimigo paradoxalmente armado por ambas -obviamente por motivos diversos. A URSS, com suficientes problemas domésticos, teve uma justificativa para o não envio de tropas ao golfo, embora tenha aprovado as ações bélicas dos aliados (posição que poderá acarretar dificuldades para o Kremlin). Estava claro que o relaxamento do conflito principal, (Leste Europeu) permitiria o reaparecimento de conflitos tidos com resolvidos. Entre eles, a criação do Estado de Israel continuará a ser um complicador na zona do golfo Pérsico, reaparecendo em qualquer conflito regional.

Em contato com às primeiras informações da guerra, fornecidas por agências de notícias ocidentais, vemos que as ações iniciais seguiram a coreografia esperada: 1) iniciativa por parte dos aliados; 2) ataque aéreo maciço, e; 3) ataques noturnos para que prevaleçam as vantagens tecnológicas. Os objetivos perseguidos nas primeiras ondas de bombardeio tampouco apresentaram qualquer surpresa: a) destruir parte das bases de lançamento de mísseis que pudessem atingir o Estado de Israel; b) anular os meios de comunicação; c) corte da cadeia de comando das forças iraquianas, e; d) infringir um duro golpe às forças aeronáuticas do Iraque. Todos eles visavam diminuir a resposta iraquiana. Pelas poucas informações que temos até o momento podemos supor que estes objetivos foram atingidos satisfatoriamente, inclusive superando toda expectativa com respeito a baixas por parte dos aliados. A falta de resposta do Iraque vem fortalecer esta suposição. Tudo leva a crer que o bombardeio deve continuar até acabar ou diminuir ao máximo a capacidade de resistência do exército iraquiano. Esta ação visa permitir o ingresso das tropas aliadas em território kuaitiano, reduzindo ao máximo o número de baixas.

Até agora o que temos presenciado é o enfrentamento tecnológico do qual não tínhamos dúvidas a respeito das vantagens dos aliados. Nos chama a atenção a falta de resposta do Iraque. Sadam estava blefando ou ainda poderá dar a contundente resposta tão anunciada? Se de fato ele tem uma arma letal, não se entende o que espera para emprega-la, pois, até que ponto se pode submeter um povo ao sofrimento de um fechado bombardeio tendo os meios para evita-lo? Duvidamos que o Iraque tenha dominado a energia nuclear para construir uma bomba eficiente. Sendo assim, suspeitamos que, ainda que possua bombas químicas (que de fato as têm e em bom número) e biológicas, o temor de uma represália nuclear estaria paralisando a mão sobre o disparador

Consideramos que a grande ameaça iraquiana consiste no prolongamento da guerra, na possibilidade de fixar a frente de combate numa guerra duradoura. Dada a superioridade tecnológica e de fogo das forças aliadas, dificilmente a frente poderá ser estabilizada no âmbito convencional ou dissuasivo nuclear. Achamos que a única possibilidade que tem o * Dr. Héctor Luis Saint-Pierre

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Iraque de prolongar a guerra é criar a “dimensão de profundidade” do campo de batalha. O conceito de “profundidade” surge da analogia com a guerra naval, onde o submarino provoca uma dimensão de profundidade no campo de batalha marítimo al emergir das profundezas oceânicas, jogar sua carga letal sobre o inimigo para depois submergir novamente no mar, sem oferecer combate aberto. Em terra, as operações guerrilheiras assumem esta característica. A “profundidade” do campo se origina quando ações irregulares começam a ser executadas. Isto independe da existência do exército regular. Quer dizer que, independentemente da sorte do exército regular iraquiano, com Sadam Hussein ou sem ele, podem começar a surgir operações de resistência irregulares. A importância estratégica deste tipo de guerra é que se mostra invulnerável à "performance tecnológica" e, ante a qual, o poderio aéreo é impotente.

O combustível deste tipo de guerra pode ser variado: telúrico, quando se defende a Terra; ideológico, quando ao amor revolucionário se impõe o sacrifício; religioso, quando o combate e a própria morte garantem a salvação. Se o povo iraquiano assume a luta religiosa que Sadam pregou, o combustível para a resistência irregular está garantido. A decisão do governo iraquiano de distribuir armas para toda a população maior de 15 anos talvez obedeça a esta estratégia. O que deve ser seriamente considerado nesta possibilidade é que, uma vez desencadeada essa guerra, a própria característica "subterrânea" das ações dilui a frente de batalha, a nova frente passa a ser religiosa e o campo de batalha mundial. Neste caso, os combatentes não serão apenas os iraquianos, mas todos aqueles identificados com a causa islâmica (causa mais universal que o pan-arabismo). Basta considerar a universalidade crescente do islamismo para perceber a extensão da nova fronteira. Os modos de luta poderão ser os mais variados: desde bolsões de resistência guerrilheira nos territórios ocupados pelas tropas aliadas, até ações terroristas em qualquer parte do mundo onde se encontrem representados interesses dos aliados.

Pareceria paradoxal, mas a história é surpreendente: o desenvolvimento mais refinado da tecnologia bélica, o que mais adiantado existe do conhecimento humano aplicado à máquina de guerra, poderia vir a desencadear a mais cruel das guerras, a madre de todas as guerras, a guerra religiosa.