Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) · que carregava a única coisa que eu...

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

, Londoriano Scarlet Caspor e o Mundo Mágico de Arfádia / Londoriano– Maringá: Viseu, 2018.

ISBN 978-85-5454-263-4

1. Literatura brasileira 2. Ficção I. , Londoriano II. Título.

CDD-863CDU-82-311

Índice para catálogos sistemáticos:

1. Ficção: Literatura brasileira 863

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de pro-cessos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permis-são expressa da Editora Viseu, na pessoa de seu editor (Lei nº 9.610, de 19.2.98).

Editor

Thiago Regina

Projeto Gráfico e Editorial

Rodrigo Rodrigues

Revisão

Serg Smigg / Renata Santos

Copidesque

Jade Coelho

Capa

Samuel Marcelino

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Todos os direitos desta edição são

reservados à Editora Viseu

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Capítulo 1A Chave de Prata

Naquele dia, nada diferente havia acontecido até por volta do início da tarde. Acordei cedo, como sempre fazia, para ajudar vovó com a

arrumação da casa e ir ao curso de pintura, que ficava no centro da cidade. Eu vivia com meus avós em uma cidadezinha sossegada chamada Laguna. E com sossegada quero dizer que nada de muito interessante costumava acontecer.

Era ótimo viver em um local calmo, com poucas pessoas e pouca violência, onde quase todos se conheciam e se chamavam pelo nome. Por outro lado, o assunto mais badalado daquele mês entre os lagunenses foi o acidente da dona Elza, uma solteirona que morava sozinha com trinta e dois cães e que tinha caído da cama e quebrara a clavícula e a bacia.

Quando retornei do curso de pintura, vovó já havia preparado o almoço. Era macarrão com carne moída e queijo ralado. Minha comida predileta. Então, lavei as mãos depressa e me sentei para comer.

— E como foi no curso, querida? Já terminou aquela paisagem que falou? — perguntou vovó enquanto servia o prato de vovô, que ainda não havia chegado do trabalho.

— Ainda não, mas já terminei as copas das árvores e o reflexo na água. Agora só restam algumas pinceladas no céu e na grama.

— Quando terminar, vou pendurar na sala de estar, junto com os outros. A dona Beatriz ficou quase meia hora admirando aquele seu quadro das ondas do mar. Disse que poderia pagar bem, se quisesse vender.

— Você sabe que nunca vendo meus quadros. Têm mais valor sentimental do que financeiro.

— Foi o que falei para ela.Após comer, subi ao meu quarto para me vestir e ir para o colégio.

Meu quarto era pequeno, mas muito limpo e organizado. Eu sempre detestei bagunça e sujeira. Além da cama, do guarda-roupa e da mesinha com computador, uma prateleira empilhada de livros.

Eram alguns de meus pertences mais valiosos. Aprendi a gostar de ler com vovô, que sempre me falava que o conhecimento era a maior virtude

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de um homem. “Um homem de pouca fortuna e muito conhecimento está prestes a prosperar. Um homem de muita fortuna e pouco conhecimento está prestes a desmoronar”, dizia ele.

Antes de sair do quarto, coloquei no pescoço uma fina corrente prateada que carregava a única coisa que eu sabia ter pertencido de verdade a minha mãe: uma minúscula chave também de prata. Para que servia ou o que exatamente ela abria, eu não fazia ideia. Meus avós me deram de presente em meu aniversário de sete anos e pediram para que eu a guardasse e protegesse em memória à filha deles.

Eu assim o fiz. Aquela chave era a única ligação que eu tinha com minha falecida mãe e eu a carregava no pescoço para onde quer que fosse.

Por fim, vesti o uniforme do colégio e escovei bem os dentes. Quando desci, meu avô já havia chegado do trabalho e estava almoçando. Mesmo com a idade que tinha, ganhava um dinheirinho cuidando de jardins. Ele aparava gramas, podava flores, regava plantas, essas coisas. Ele amava o que fazia.

Às vezes, ficava horas me explicando a diferença entre solos e tipos de adubo. Eu nunca me interessei por plantas, mas sempre prestei muita atenção ao que ele falava para não o magoar. E como ele mesmo sempre dizia: conhecimento nunca é demais.

— Boa tarde, minha princesa! — falou, sorrindo, assim que me viu entrar na cozinha. — Acabei de passar no curso de pintura, mas sua professora disse que já tinha saído.

— Sério? Você não falou que ia me buscar. Eu teria adorado a oportunidade de fugir do sol — falei, dando-lhe um beijo na testa.

— É que consegui terminar o serviço um pouco mais cedo. Resolvi passar por lá e ver se conseguia te dar uma carona. Ah! Sua professora me mostrou seu novo quadro.

— Você viu? Mas ainda não está pronto, vovô — reclamei, chateada.— Pois para mim parecia finalizado. Está tão lindo, querida! Aposto que

causaria inveja naquele tal de Botticelli.— Não exagera, vovô. Na terça-feira, a dona Cláudia vai ter de arrumar

uma grande desculpa para me explicar por que deixou você ver minha pintura inacabada.

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— Mas que mal pode haver em ver um quadro incompleto, querida? — perguntou vovó.

— Como assim “que mal pode haver”? Tira todo o encanto da obra finalizada.

— Agora é você quem está exagerando. E não foi culpa de sua professora, princesa. Eu quem insisti para ver — falou vovô, levantando-se e colocando o prato na pia. — Vou usar o banheiro e já poderemos ir.

Meu avô sempre me levava para o colégio em seu carro. Não sei dizer o modelo porque sou péssima para diferenciar carros; apenas sei a diferença entre as cores e se possuem ou não caçamba. Era um carro vermelho sem caçamba. Depois que vovô disse estar pronto, coloquei a mochila nas costas, dei um beijo em vovó, que começara a lavar a louça, e saí.

O dia lá fora continuava quente, mas, como o carro de vovô tinha ar-condicionado, não me importei. Entrei depressa e coloquei o cinto. No minuto seguinte, já estávamos indo em direção ao colégio. Não demorou muito para chegarmos.

Era muito bom andar pelas ruas de Laguna porque quase sempre estavam desertas. Não encontrávamos engarrafamentos nem mesmo em horários de pico, ao contrário da capital Florianópolis, onde era sempre um transtorno ir ao shopping center. Eu ficava louca quando precisávamos ir para lá, visitar o médico da vovó.

— Por que esta gente não sai de casa de bicicleta? — eu resmungava no carro nessas ocasiões.

Despedi de meu avô com um beijo, arrumei meu cabelo no espelho retrovisor e saí. A sensação de abandonar o ar-condicionado e encarar o mormaço da tarde foi angustiante.

— Bons estudos, princesa! Volto para te buscar às cinco e meia da tarde. — E partiu.

Meu avô buzinou antes de virar a esquina e desaparecer. Eu continuei andando em direção ao colégio, um prédio antigo que datava do início do século XX, com portas e janelas imensas. O primeiro sinal de que aquele não era um dia normal foi quando avistei uma garota estranha em frente ao colégio, olhando fixamente para um objeto em suas mãos, como um relógio ou uma bússola. Suas roupas pareciam ter saído de um filme da

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idade média, desses que mostram castelos, reis e rainhas.A estranha pronunciava algumas palavras baixinho quando me

aproximei.— A menos que Ícaro tenha se enganado, ela deverá vir para cá em

breve.A garota chamava a atenção de muitos adultos que passavam para deixar

os filhos na escola e também de outras crianças. Quando passei por ela, meu coração acelerou ao perceber que suas orelhas eram muito diferentes das de uma pessoa normal. Eram pontudas e finas, como as de um duende.

Apressei o passo para entrar logo pelo portão e me afastar quando ela de repente virou e me olhou nos olhos. Eu juro que congelei de medo. Os olhos dela pareciam os de um gato. Ou ela estava pronta para alguma festa a fantasia ou aquela garota decididamente não era uma pessoa comum.

Depois, a estranha fixou o olhar por alguns segundos na chave de prata presa ao meu pescoço e sorriu.

— Scarlet Caspor! Como é bom finalmente conhecer você, Alteza!Lembro que corri o mais depressa que pude para dentro do colégio,

esbarrando no professor de geografia. Depois, fui rápido para minha sala de aula. Por um instante, desejei estar em casa, na proteção de meus avós. O restante da turma que já estava dentro da sala olhava para mim de maneira assustada e risonha ao mesmo tempo.

— O que foi que você viu, esquisita? Alguma bruxa caolha ou múmia assombrada? — Carlinhos perguntou, um menino pateta e com sardas que sentava na minha frente. — Relaxa, aposto que ela sentiu mais medo de você do que você dela.

Os outros alunos riram. Normalmente, nessas horas eu atiraria alguma coisa na cabeça dele, um caderno ou algo parecido, mas eu mal dei atenção a suas palavras. Meus pensamentos voavam. Quem era e o que queria aquela garota? Como conhecia meu nome? Por que fixou o olhar na antiga chave de minha mãe? Seria alguma parente distante de meus avós?

Enquanto eu não possuía as respostas, preferi ficar quietinha no canto da sala durante toda a primeira parte do meu período escolar. A professora de Língua Portuguesa me perguntou se eu estava bem. Respondi que tudo estava ótimo, mas ela pareceu não acreditar. Enquanto explicava sobre

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acentuação de monossílabos tônicos, eu me perguntava se a garota de orelhas pontudas já teria ido embora.

Quando o sinal tocou, alertando para o início do intervalo, eu quase saltei de susto. Enquanto outras crianças correram para fazer fila para o lanche, saí de fininho e me sentei no banco ao lado da sala, de modo a ser a primeira a entrar quando o intervalo terminasse. Olhava constantemente para os lados sempre que alguma criança aparecia correndo.

Eu confesso. Estava morrendo de medo naquele dia. Mas hoje, quando paro para lembrar, não havia motivos para tanto temor. A estranha, apesar das orelhas, sorriu e pareceu bastante amigável. E sabia meu nome. Eu devia ter ao menos perguntado de onde ela me conhecia ou se sabia algo sobre minha chave.

Falando na minha chave, resolvi tirá-la do pescoço e guardá-la no bolso. Só para prevenir qualquer tentativa de roubo. Decidi que ligaria para vovó e avisaria sobre a estranha orelhuda assim que voltasse para a sala de aula, pois, em meu desespero, acabei esquecendo o celular na mochila.

Finalmente, quinze minutos depois (para mim pareceram semanas), o sinal tocou outra vez. Eu estava entrando depressa na sala de aula quando alguém chamou meu nome:

— Scarlet Caspor! Você precisa vir conosco. Depressa.Olhei assustada. Meu sangue gelou. Era a mesma garota estranha. E

estava acompanhada de outras duas pessoas. Os três estavam encapuzados com longa manta negra. Aquilo não podia ser algo bom.

— O que... querem?— Está tudo bem, Alteza — falou a garota que me encarou na entrada

do colégio. — Não vamos te fazer mal. Também somos arfadianos.Também são o quê? Naquela hora eu mudei meu estado de assustada

para desesperada.— O que querem comigo?— Queremos ajudá-la. Você está correndo um grave perigo, Alteza.

Precisa retornar à... — A garota foi interrompida pela diretora do colégio e alguns professores, que vinham em nossa direção. O porteiro do colégio vinha com eles, parecendo muito abalado.

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— Foram aqueles três, Sra. Diretora — apontou o porteiro. — Sopraram alguma coisa em meu rosto pra me fazer adormecer e conseguirem entrar.

— Ei... vocês — bradou a diretora Claudinéia. — Não têm permissão para entrar aqui. O que querem?

Então o tumulto começava a chamar a atenção de outros alunos, que se aproximaram e ficaram em torno dos professores. O maior do grupo invasor, que parecia ter quase dois metros, dirigiu-se à diretora. Sua voz era alta e grossa como um trovão.

— Precisamos levar Scarlet Caspor em segurança. A princesa precisa retornar ao reino de Londor imediatamente ou os servos de Serses poderão encontrá-la.

Absolutamente todos ficaram perplexos com as palavras dele. Um misto de confusão e descrença assolava o rosto de todos nós. Quanta asneira em tão poucas palavras! E que diabos era Londor ou Serses?

Se bem que ele acabara de me chamar de princesa. Comecei a achar que aqueles estranhos, por mais loucos que fossem, não tinham a intenção de me causar mal. Olhei para os lados e reparei, com absoluto horror, que toda a escola já estava a nossa volta.

— Você chamou Scarlet de princesa? — Era Maria Rita, uma menina muito metida de minha turma. Todos os garotos gostavam dela e isso fazia que tivesse opinião distorcida sobre si mesma, como se ninguém mais no mundo importasse. Um comportamento mesquinho e bobo. — Olha só para ela! Se ela realmente fizesse parte de algum conto de fadas, seria no da Branca de Neve. Com essa cara pálida...

O restante da escola ficou em silêncio. Talvez com medo de o gigante encapuzado se irritar com a grosseria. Mas nenhum deles retrucou ou falou qualquer coisa. Mais tarde, descobri que estavam se perguntando o que era Branca de Neve e como aquela garota conhecia as fadas que contavam histórias, criaturas muito raras.

A diretora do colégio foi a primeira a quebrar o silêncio. Embora mantivesse postura autoritária, o tamanho e a voz do estranho a fizeram fraquejar um pouco.

— Nenhum aluno deixa estes portões sem autorização expressa de seus responsáveis. Agora, peço que saiam ou chamaremos a polícia.

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Os estranhos cochicharam entre si numa língua esquisita e complicada. Comecei a ficar com medo deles outra vez e tive vontade de sair correndo. Depois, a garota de olhos de gato, que parecia ser a líder do grupo, falou:

— Perdão, senhora. Não queremos causar confusão. Apenas viemos buscar Nossa Alteza e fazê-la retornar em seguran...

— A senhora diretora já disse que ninguém sai daqui sem autorização do responsável — bradou a professora Marta, que lecionava Química. Os outros professores pareciam ter se unido contra o grupo invasor e pareciam bastante incomodados pelas roupas e modo de falar dos estranhos. — Pelo que eu saiba — continuou —, o responsável por esta menina...

— Sou eu.Alguém interrompeu a professora Marta. E fiquei bastante aliviada ao

ver minha avó. Parecia ter voado de casa até o colégio, porque seus cabelos estavam desgrenhados e ainda calçava o par de pantufas que eu lhe dera de aniversário na semana anterior.

— Senhora Felícia, graças a Deus! — aliviou-se a diretora. — Esses três invasores querem levar sua neta sem sua autorização.

— Pois eu concedo minha autorização.Outro longo silêncio. Eu me indagava se acordaria a qualquer hora de

um sonho estranho para ajudar vovó a arrumar a casa. Tentei abrir a boca para perguntar que brincadeira era aquela que estavam me pregando, mas nenhum som saíra. Foi a diretora quem quebrou o silêncio mais uma vez.

— Senhora Felícia, a senhora conhece estes indivíduos? — Ela parecia tão assustada quanto eu.

— Claro que conheço. — Minha avó sorriu para a garota estranha de olhos de gato. — Como vai, Tarana? Você se tornou uma cópia idêntica de sua querida mãe.

Resumindo, era isso o que estava acontecendo: um grupo de pessoas estranhas, liderado por uma garota com olhos de gato, estava me chamando de princesa e queria me proteger de um perigo iminente. Além de falarem uma língua esquisita, aquelas pessoas usavam palavras como Londor, Serses e Arfádia. Para piorar, minha própria avó as conhecia.

Eu tinha todos os motivos do mundo para surtar e sair correndo. Mas, por algum motivo, não foi o que fiz. Antes da chegada de minha

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avó, já estava convencida de que era alguma brincadeira tola que a escola inteira combinara para me pregar. Eu até conseguia imaginar a cara de riso de todos eles quando revelassem a brincadeira e gritassem: “Foi só uma piada, sua esquisita! Não acredito que achou mesmo que fosse de verdade”.

Mas então minha avó entrou na brincadeira, dizendo que conhecia aquelas pessoas. Sabia que minha avó não seria capaz de brincar comigo daquele jeito, me pregando uma peça daquela proporção. Ou seria? Se fosse isso, se tudo realmente fizesse parte de uma piada e minha avó estivesse sabendo de tudo, eu ficaria muito magoada. A brincadeira não tinha a menor graça. Porém, por mais inacreditável que tudo parecesse, no fundo, meus instintos diziam para acreditar e ouvir minha avó. Eu sempre confiara nela até aquele momento e nunca me arrependera.

— Vovó — indaguei —, o que está acontecendo? Quem são eles? Onde está meu avô? Como essas pessoas sabem meu nome? Como a senhora sabe o nome deles?

Eram dezenas de perguntas. Eu queria entender tudo de uma só vez.— Você entenderá, querida — respondeu minha avó. — Mas, primeiro,

vamos deixar este local.Foi assim que minha avó, aquelas três pessoas encapuzadas de negro e

eu saímos do colégio, deixando todos atônitos. Lembro de ter ouvido alguns murmúrios como: “... muito esquisita mesmo...”, “...acho que a avó dela também é uma doida...”. E o comentário invejoso de Maria Rita, dizendo: “Duvido que ela seja mesmo uma princesa. Ela não pode ser…”

Antes de deixarmos o pátio principal, ouvi a voz da diretora ordenando que todos voltassem para suas salas e continuassem os estudos. Aquele episódio poderia ter substituído o acidente da senhora Elza nas conversas matinais dos bares e lojas da cidade, não fosse o que aconteceria mais tarde na Ponte de Laguna, que provavelmente ficaria na memória de alguns lagunenses por vários anos.

Descemos as escadas e saímos pelo portão em completo silêncio. Eu procurava ficar o mais próximo de minha avó e o mais longe dos desconhecidos.

— Onde está sua chave, querida? — perguntou vovó.

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Retirei a chave de prata do bolso e a coloquei de volta no pescoço. Na esquina, fiquei feliz ao avistar o meu avô em seu carro, nos esperando.

Logo atrás havia outro carro com uma mulher loira e de cara carrancuda. Ela estava aguardando o grupo de estranhos e não parecia nada contente. Quando nos aproximamos, saiu do carro e proferiu algumas palavras ríspidas. Fiquei feliz por não ser comigo.

— Imaginem a minha reação ao descobrir que três londorianos entraram no mundo dos homens e invadiram um colégio infantil à procura da herdeira de Londor! Onde Ícaro estava com a cabeça quando passou informações sigilosas pra vocês? E o que vocês estavam pensando? Não acredito que Míriam tenha enviado um rufanonte ao mundo dos homens. Gâmbia não é mais o mesmo. Tem câmera para todo lado.

— O que é câmera? — perguntou Tarana, intrigada.— Algo que os homens criaram para complicar as nossas vidas.

Antigamente, era fácil rotular de louco alguém que dizia ter visto um dragão. Mas hoje, além de verem, eles querem provar que viram... afinal, que diabos de roupas são essas?

— Achamos melhor não utilizar nossas verdadeiras roupas, Sra. Dáfila — falou um terceiro membro do grupo cuja voz eu ainda não tinha ouvido. Era outra garota.

— Pois as roupas arfadianas teriam chamado menos atenção. Onde encontraram essas roupas ridículas?

— Em um comércio dos homens. Havia roupas muito engraçadas de esqueletos e máscaras de monstros. Achamos que estas seriam menos extravagantes.

Naquela hora, senti vontade de rir alto, mas abafei o riso com uma das mãos enquanto sentava no banco de trás do carro de meu avô. Eles haviam entrado em uma loja de fantasias para festas e eventos, localizada no centro da cidade, à procura de roupas que os fizessem parecer menos estranhos. Acredito que acabaram adquirindo fantasias de Morte.

Fiquei muito curiosa acerca daquelas pessoas. De onde haviam saído? E por que precisavam parecer normais? Minha cabeça estava a mil, mas sabia que, se perguntasse alguma coisa, minha avó diria para aguardarmos a hora certa. Eu mal podia esperar pelo momento de ter as perguntas respondidas.

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Os três encapuzados entraram no carro atrás de nós; minha avó entrou no nosso e fomos em direção a nossa casa. Todos permaneceram em silêncio, mas senti que meus avós pareciam mais felizes do que de costume. Eles pareciam estar esperando por aquelas pessoas havia um bom tempo. Por quê? Eu tentava ao menos imaginar alguma resposta provável, mas nenhuma surgia.

O carro da mulher loira (preto e sem caçamba) virou numa esquina escura e desapareceu de nossa vista.

— Achei que estavam nos acompanhando até nossa casa — murmurei, quebrando o silêncio.

— Eles irão a nossa casa em breve — respondeu meu avô. — Mas primeiro vão ter de resolver alguns probleminhas.

Os probleminhas a que meu avô se referia, descobri depois, eram os de tentar reverter o que aconteceu no meu colégio. Eles literalmente fariam a diretora, o porteiro, os professores e os alunos esquecerem a recente discussão. Também apagariam todos os meus registros e nenhuma Scarlet Caspor poderia ser encontrada na papelada e nas planilhas eletrônicas do colégio. Uma vez que aquela tarde foi a última vez que elas me viram, aquelas pessoas precisavam esquecer que um dia me conheceram.

Fiquei muito feliz com isso, na verdade, mas teria gostado se Maria Rita tivesse continuado a se perguntar se eu era mesmo uma princesa. E, para minha tristeza, a professora Cláudia, do curso de pintura, e alguns de nossos vizinhos, também tiveram a memória alterada.

Quando chegamos a nossa casa, tudo parecia estranho. Eu já não podia mais dizer que conhecia as pessoas que me criaram. Pareciam muito diferentes. Confesso que estava abalada e profundamente magoada. Seja lá o que esconderam de mim, o fizeram por longos anos. Era tempo demais para se manter uma mentira.

E eu não gostava de mentiras. Meus próprios avós, que me ensinaram sobre as coisas más que aconteciam quando você mentia, como magoar alguém, me enganaram e me magoaram. Lembro de uma lágrima ter caído quando sentei no sofá da sala e fiquei olhando absorta para o nada, perdida em pensamentos confusos. Meus avós pareceram entender o que eu estava sentindo.

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— Sabemos como está sua cabecinha, querida — começou vovô. — Você vai precisar de tempo para nos perdoar. Fizemos o necessário para protegê-la.

— Eu preciso de muitas respostas. Não sei por onde começar.— Tudo vai ser esclarecido no devido tempo, Scarlet — falou minha

avó. — Só pedimos para confiar em nós. — Ela se sentou ao meu lado e acariciou meus cabelos. Meu avô sentou-se no outro lado.

— Apenas me respondam uma coisa por enquanto. Vocês realmente são meus avós?

Eu temia a resposta.— Claro que somos, Scarlet — tranquilizou-me vovô. — Somos pais de

Alice e estávamos presentes quando você nasceu. Sua avó foi a primeira a te segurar nos braços. Mas não fomos totalmente sinceros em tudo. Sua mãe nunca caiu de uma escada e seu pai não sofreu um acidente de trabalho.

Aquelas palavras foram bastante dolorosas, mas foi ainda mais difícil de ouvir as palavras seguintes:

— E você não nasceu aqui, querida, no mundo dos homens sem magia. Você nasceu em um mundo mágico chamado Arfádia. Você é uma arfadiana, como sua avó e eu. Como seu pai e sua mãe. Como aqueles três que tentaram falar com você no colégio. É... eu sei, você deve ficar bastante confusa com o que eu disse.

— Vocês estão mentindo! — gritei, começando a chorar. — Por que estão falando essas coisas? Eu só queria que hoje tivesse sido um dia como qualquer outro.

Eu jamais teria levantado a voz para meus avós daquela maneira. Muito menos os teria chamado de mentirosos. Sempre os respeitei, mas aquele dia não era um dia normal.

Corri para meu quarto e me tranquei. Durante quase uma hora inteira, a única coisa que fiz foi chorar no travesseiro. Meus avós sabiam que eu precisava daquele momento sozinha, então me deixaram.

Naqueles minutos de reflexão, percebi que estava sendo tola e infantil. Meus avós deveriam ter um motivo sério para esconder a verdade de mim. E, afinal, pertencer a um mundo mágico não deveria ser assim tão ruim. Comecei a sentir profunda curiosidade sobre a verdadeira história de meus

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pais e queria saber mais sobre aquele tal mundo de Arfádia.Finalmente alguém bateu em minha porta. Eu decidi abri-la e pedir

desculpas aos meus avós. Então a destranquei e voltei para minha cama.A porta se abriu e alguém entrou em meu quarto. Mas não eram meus

avós.— Eu sei o quanto deve estar assustada, Alteza. Mas, acredite, apenas

nos tornamos melhores quando enfrentamos o que é diferente ou que nos dá medo.

Era Tarana, a garota de olhos de gato e orelhas pontudas. Ela e os outros dois haviam chegado após ajudarem a resolver aqueles probleminhas dos quais falara meu avô. Olhei para ela, ainda com os olhos vermelhos do choro. Ela sorria e tinha uma expressão acolhedora. Tinha trocado o capuz negro por roupas de gente normal (camisa xadrez e calça jeans), que estavam bastante largas nela. Finalmente, decidi ser simpática também:

— Você costuma enfrentar seus medos? — perguntei, indicando com a cabeça para que se sentasse na ponta de minha cama.

— Todos os dias procuro fazer algo que me deixa nervosa. Você não amadurece se apenas faz o que está acostumada a fazer. Meu pai me ensinou isso quando me levou para montar a primeira vez em um cavalo com asas — revelou, sentando-se na cama.

Meus olhos arregalaram.— Você disse cavalo com asas?Tarana sorriu.— Acabamos de descobrir que você não sabe nada sobre Arfádia.

Achávamos que você soubesse sobre seu mundo e que ficaria feliz quando disséssemos que éramos arfadianos — ela confessou. — Sim, cavalos com asas. Arfádia é cheia deles.

— Confesso que começo a me interessar pelo seu mundo.— E seu mundo também.Então, resolvi fazer a grande pergunta. — Desculpe a grosseria, mas é que a dúvida está me deixando louca. Por

que suas orelhas são pontudas?Tarana riu.

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— Porque não sou uma humana como você. Sou uma elfa. Uma antiga raça arfadiana.

— Uma elfa? — Eu fiquei muito empolgada. — E o que mais de diferente vocês, elfos, possuem?

Tarana refletiu por um momento.– Bom, nossos olhos enxergam no escuro e a grandes distâncias. De

todas as raças arfadianas, somos a que tem maior longevidade. Um elfo pode chegar aos quatrocentos anos. Claro que as falárvores podem viver por mais de mil anos, mas há muita controvérsia quanto a considerá-las uma raça ou uma espécie de planta.

Eu fiquei boquiaberta por vários segundos. Não entendi boa parte do que me dissera. Tarana continuou:

— Agora, Alteza, você pode continuar fazendo as mesmas coisas seguras e fáceis que sempre fez. Ou pode enfrentar o desconhecido e se tornar alguém que jamais imaginou se tornar.

A elfa levantou-se e abriu a porta do quarto para sair. Antes, virou-se e falou:

— E se escolher a segunda opção, estaremos esperando na cozinha para tirar algumas de suas dúvidas.

Tarana fechou a porta e eu fiquei sentada na cama por alguns minutos, me perguntando que transformação minha vida estaria prestes a ter. Eu estava com receio, mas sabia que, no fim, acabaria escolhendo a segunda opção.

E aquela foi a melhor decisão da minha vida.