DaMatta.R.relativizando_ Uma Introdução à Antopologia Social.rio de Janeiro.rocco.1987

31
PRIMEIRA PARTE: A ANTROPOLOGIA NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 1. Ciências Naturais e Ciências Sociais Nenhum filósofo ou teórico da ciência deixou de se preocupar com as semelhanças e diferenças entre as chamadas «ciências da natureza» ou «ciências naturais», com a Física, a Química, a Biologia, a Astronomia etc., e as disciplinas voltadas para o estudo da realidade humana e social, as chamadas «ciências (la sociedade», «ciências sociais», ou, ainda, as «ciências hu¬ manas». Como tais diferenças são legião, não caberia aqui arrolá-las ou indicá-las de um ponto de vista histórico. Isso aeria uma tarefa para um historiador da ciência e não para ura antropólogo. Apenas desejaria ressaltar, que o ponto me parece básico quando se busca situar a Antropologia Hocial (ou Cultural) no co�rpo das outras ciências, que elas om geral tocam em dois problemas fundamentais e de perto relacionados. Um deles diz respeito ao fato de que as cha¬ madas «ciências naturais» estudam fatos simples, eventos <iue presumivelmente têm causas simples e são facilmente isoláveis. Tais fenômenos seriam, por isso mesmo, recorren¬ tes e sincrônicos, isto é, eles estariam ocorrendo agora mes¬ mo, enquanto eu escrevo estas linhas e você, leitor, as lê. A matéria-prima da «ciência natural», portanto, é todo o conjunto de fatos que se repetem e têm uma constância ver- itadeiramente sistêmica, que podem ser vistos, isolados e, iiH.sim, reproduzidos dentro de condições de controle razoáveis, num laboratório. Por isso se diz repetidamente que o pro¬ blema da ciência em geral não é o de desenvolver teorias, tíias o de testá-las. E o teste que melhor se pode imaginar 17

description

algumas paginas para o melhor entendimento sobre pontos principais

Transcript of DaMatta.R.relativizando_ Uma Introdução à Antopologia Social.rio de Janeiro.rocco.1987

  • PRIMEIRA PARTE: A ANTROPOLOGIA NO QUADRO DAS CINCIAS

    1. Cincias Naturais e Cincias Sociais

    Nenhum filsofo ou terico da cincia deixou de se preocupar com as semelhanas e diferenas entre as chamadas cincias da natureza ou cincias naturais, com a Fsica, a Qumica, a Biologia, a Astronomia etc., e as disciplinas voltadas para o estudo da realidade humana e social, as chamadas cincias (la sociedade, cincias sociais, ou, ainda, as cincias hu manas. Como tais diferenas so legio, no caberia aqui arrol-las ou indic-las de um ponto de vista histrico. Isso aeria uma tarefa para um historiador da cincia e no para ura antroplogo. Apenas desejaria ressaltar, j que o ponto me parece bsico quando se busca situar a Antropologia Hocial (ou Cultural) no corpo das outras cincias, que elas om geral tocam em dois problemas fundamentais e de perto relacionados. Um deles diz respeito ao fato de que as cha madas cincias naturais estudam fatos simples, eventos

  • e realizar aquele que pode ser repetido indefinidamente, at que todas as condies e exigncias dos observadores estejam preenchidas satisfatoriamente. Alm disso, a simpli cidade, a sincronia e a repetitividade asseguram um outro elemento fundamental das cincias naturais, qual seja; o fato de que a prova ou o teste de uma dada teoria possa ser feita por dois observadores diferentes, situados em locais diversos e at mesmo com perspectivas opostas. O labora trio assegura de certo modo tal condio de objetividade, um outro elemento crtico na definio da cincia e da cincia natural. Assim, um cientista natural pode presen ciar os modos de reproduo de formigas (j que pode ter um formigueiro no seu laboratrio), pode estudar os efeitos de um dado conjunto de anticorpos em ratos e pode, ainda, analisar o quanto quiser a composio de um dado raio luminoso.

    Em contraste com isso, as chamadas cincias sociais estudam fenmenos complexos, situados em planos de causa lidade e determinao complicados. Nos eventos que consti tuem a matria-prima do antroplogo, do socilogo, do his toriador, do cientista poltico, do economista e do psiclogo, no fcil isolar causas e motivaes exclusivas. Mesmo quando o sujeito est apenas desejando realizar uma ao aparentemente inocente e basicamente simples, como o ato de comer um bolo, Pois um bolo pode ser comido porque se tem fome e pode ser comido por motivos sociais e psi colgicos; para demonstrar solidariedade a uma pessoa ou grupo, para comemorar uma certa data (como ocorre num aniversrio), para revelar que o bolo feito por mame melhor do que o bolo feito por D. Yolanda, para indicar que se conhecem bolos, para justificar uma certa atitude e, ainda, por todos esses motivos juntos. Para que se tenha uma prova clara destas complicaes, basta parar de ler esse trecho e perguntar a uma pessoa prxima: por que se come um bolo? Ver o leitor que as respostas em geral colocam toda essa problemtica na superfcie, sendo difcil desenvolver uma teoria que venha a determinar com preciso uma causa nica ou uma motivao exclusiva.

    A matria-prima das cincias sociais, assim, so even tos com determinaes complicadas e que podem ocorrer em ambientes diferenciados tendo, por causa disso, a possibili-

    18

    dade de mudar seu significado de acordo com o ator, as relaes existentes num dado momento e, ainda, com a sua liosio numa cadeia de eventos anteriores e posteriores. Um holo comido no final de uma refeio algo que denomina- itios de sobremesa, tendo o significado social de fechar ou arrematar uma refeio anterior, considerada como prin cipal, constituda de pratos salgados. O salgado, assim, ante- i'ede o doce, sendo considerado por ns separado e mais .substancial que os doces. Agora, um bolo que comido no meio do dia pode ser sinal (ou sintoma) de um desarranjo psicolgico, como acontece com as pessoas que comem com pulsivamente. Finalmente, um bolo que o centro de uma reunio, que serve mesmo como motivao para o convite quando se diz: venha comer um bolo com o Serginho, iim bolo com um significado todo especial. Aqui, ele se torna um smbolo importante, cuja anlise pode revelar ligaes .surpreendentes com a passagem da idade, com as relaes entre geraes, identidades sexuais etc.

    Mas, alm disso, os eventos que servem de foco ao cien- lista social so fatos que no esto mais ocorrendo entre ns ou que no podem ser reproduzidos em condies con troladas. De fato, como poderemos ns reproduzir a festa do aniversrio do Serginho? Ou o ritual do Carnaval que ocorreu 'tn 1977 no Rio de Janeiro? Mesmo que possamos reunir os mesmos personagens, msicas, comidas, vestes e mobili- i'i> do passado, ainda assim podemos dizer que est faltando iilguma coisa: a atmosfera da poca, o clima do momento. I'nfim, o conjunto criado pela ocasio social que de certo modo decola dela e, recaindo sobre ela, provoca o que po- Ilemos chamar de sobredeterminaes, como a Imagem pro jetada numa tela ou num espelho. Diferentemente de um rato reagindo a um anticorpo num laboratrio, o anivers rio (e todas as ocasies sociais fechadas) cria o seu prprio plntio social, podendo ser diferenciado de todos os outros, embora guarde com ele semelhanas estruturais. Esse plano dl reflexo, da circularidade e da sobredeterminao me pa rece essencial na definio do objeto da Antropologia Social (e da Sociologia) e eu voltarei a ele inmeras vezes no de- e

  • paramos com os laboratrios onde os bilogos, qumicos e fsicos realizam suas experincias. Realmente, tudo indica que entre as Cincias Sociais e as Cincias Naturais temos uma relao invertida, a saber: se nas cincias naturais os fenmenos podem ser percebidos, divididos, classificados e explicados dentro de condies de relativo controle e em condies de laboratrio, objetivamente, existem problemas formidveis no que diz respeito aplicao e at mesmo na divulgao destes estudos. Na maioria dos casos, o cientista natural resolve um problema simplesmente para criar tecno logias indesejveis e, a longo prazo, mortferas e daninhas ao prprio ser humano. Isso para no falarmos em desco bertas que podem trazer ameaas diretas prpria vida e dignidade do homem por seu uso inescrupuloso na rea militar. Nada mais simples e bem-vindo do que o isolamento de um vrus e nada mais complexo do que esse prprio iso lamento permitindo a realizao de guerras bacteriolgicas e de contaminao.

    No caso do cientista social, as condies de percepo, classificao e interpretao so complexos, mas os resulta dos em geral no tm conseqncias na mesma proporo da cincia natural. So poucas as teorias sociais que aca baram tornando-se credos ideolgicos, como o racismo e a luta de classes, adotados por naes e transformados em va lores nacionais. As mais das vezes, as chamadas teorias so ciais so racionalizaes ou perspectivas mais acuradas para problemas que percebemos, ainda que tais problemas no sejam realmente objetivados com muita clareza. Neste sen tido, o cientista social tende a reduzir problemas correndo mesmo o risco de simplificar demais as motivaes de certos eventos observveis numa sociedade ou poca histrica. Mas raramente seus resultados podem ser transformados em tec nologia e, assim, podem atuar diretamente sobre o mundo. Em geral, o resultado prtico do trabalho do cientista social visto fora do domnio cientfico e tecnolgico, na regio das artes: nos filmes, peas de teatro, novelas, romances e contos, onde as idias de certas pesquisas podem ser apli cadas, produzindo modificaes no comportamento social. Mas preciso observar que mais fcil troar de autom vel ou de televiso e aceitar inovaes tecnolgicas (tais inovaes fazem parte do nosso sistema de valores), do que trocar de valores simblicos ou polticos.

    20

    Mas voltemos ao ponto j colocado. Vimos que uma das diferenas bsicas entre os dois ramos de conhecimento era que os fatos sociais so, geralmente, irreproduzveis em con dies controladas. claro que aes sociais podem ser re produzidas no teatro e no cinema, mas aqui a distncia que existe entre o ator e o personagem recriado um dado que vera modificar substancialmente a situao. Alm disso, os atores seguem um texto explicitamente dado, enquanto que ns, atores fora do palco, seguimos um texto implicitamente dado que a pesquisa por causa disso mesmo deseja descobrir. O problema bsico, assim, continua: os fatos sociais so irreproduzveis em condies controladas e, por isso, quase sempre fazem parte do passado. So eventos a rigor hist ricos e apresentados de modo descritivo e narrativo, nunca na forma de uma experincia. Realmente, no posso ver e certamente jamais verei uma expedio de troca do tipo kula, to esplendidamente descrita por Malinowski; ou um rito de iniciao dos Canela do Brasil Central que Nimuen- daju narrou com tanta mincia. Do mesmo modo, no posso saber jamais como se sente algum diante dos eventos cr ticos da Revoluo Francesa ou como foram os dias que antecederam a proclamao da Repblica no Brasil. Podemos, obviamente, reconstruir tais realidades (ou pedaos de rea lidade), mas jamais clamar que nossa reconstruo a ver dadeira, que foi capaz de incluir todos os fatos e que com preendemos perfeitamente bem todo o processo em questo. Tal totalizao impossvel, embora possa ser um alvo de sejvel para muitos cientistas sociais. Mas ns sabemos muito bem a diferena que existe entre a teoria das ondas hertzianas o um rdio transmissor e receptor, que so aparelhos que iim fsico conhece totalmente e os pode fabricar. Por isso que existe uma ligao direta entre cincias naturais e tecnologia. E a nossa relao com um evento complexo como H Revoluo Russa ou mesmo o problema do incesto, fatos Hociais que ns podemos conhecer bem, mas com que man- Icmos sempre uma relao complicada, como se, entre o acon- l

  • nveis ou solicitar novos dados ainda no vistos. por causa disso que nossas teorias, digamos, do incesto, no so capa zes de gerar uma tecnologia do incesto. Podem gerar tera pias, mas, mesmo aqui, nosso conhecimento continua funda do num processo complexo, nunca numa relao como aquela que existe entre um qumico e as drogas que pode fabricar.

    Os fatos que formam a matria-prima das cincias so ciais so, pois, fenmenos complexos, geralmente impossveis de serem reproduzidos, embora possam ser observados. Po demos observar funerais, aniversrios, rituais de iniciao, trocas comerciais, proclamaes de leis e, com um pouco de sorte, heresias, perseguies, revolues e incestos; mas, alm de no poder reproduzir tais eventos, temos de enfrentar a nossa prpria posio, histria biogrfica, educao, interes ses e preconceitos, O problema no o de somente re produzir e observar o fenmeno, mas substancialmente o de como observ-lo. Todos os fenmenos que so hoje parte e parcela das chamadas cincias sociais so fatos conhecidos desde que a primeira sociedade foi fundada, mas nem sem pre existiu uma cincia social. Assim, classes de homens di versos observaram fatos e os registraram de modo diverso, segundo os seus interesses e motivaes; de acordo com aqui lo que julgavam importante. O processo de acumulao que tipifica o processo cientfico algo lento em todos os ramos do conhecimento, mas muito mais lento nas chamadas cin cias do homem. 2. Uma Diferena Crucial

    Mas de todas essas diferenas a que considero mais fun

    damental a seguinte; nas cincias sociais trabalhamos com fenmenos que esto bem perto de ns, pois pretendemos estudar eventos humanos, fatos que nos pertencem integral mente. O que significa isso?

    Tomemos um exemplo. Quando eu estudo baleias, estudo algo radicalmente diferente de mim. Algo que posso perce ber como distante e com quem estabeleo facilmente uma relao de objetividade. No posso imaginar o universo Interior de uma baleia, embora possa tomar as baleias para realizar com elas um exerccio humanizador, situando-as como

    22

    ocorre nos desenhos animados e nos contos de fadas, como uma rplica da sociedade humana. Embora possa incorporar as baleias ao reino do humano, poderei imaginar o que sentem realmente esses cetceos? claro que no. Essa distncia irremedivel dada ao fato de que jamais poderei tornar-me uma baleia que permite jogar com a dicoto mia clssica da cincia: aquela entre sujeito (que conhece ou busca conhecer) e objeto (a chamada realidade ou o fenmeno sob escrutnio do cientista). As teorias e os m todos cientficos so, nesta perspectiva, os mediadores que permitem operar essa aproximao, construindo uma ponte entre ns e o mundo das baleias,

    Mas, ao lado disso, h um outro dado crucial, que eu poss dizer tudo o que quiser em relao s baleias saben do que elas jamais iro me contestar. Poderei, claro, ser contestado por um outro estudioso de baleias, mas jamais pelas baleias mesmas. Estas continuaro a viver no imenso oceano de guas frias, nadando em grupos e borrifando espuma independentemente das minhas dedues e teorias. Isso significa simplesmente que o meu conhecimento sobre as baleias no ser jamais lido pelas baleias que jamais iro modificar o seu comportamento por causa das minhas teorias de modo direto. Minhas teorias podero ser usadas [)or mim mesmo ou por terceiros para modificar o compor tamento das baleias, mas elas nunca sero usadas direta mente pelas baleias. Em outras palavras, nunca me torna rei um cetceo, do mesmo modo que um cetceo nunca po der virar um membro da espcie humana. . por causa disso

  • mos que os homens no se separam por meio de espcies, mas pela organizao de suas experincias, por sua histria e pelo modo com que classificam suas realidades internas e externas. Por causa disso ningum pode virar baleia, rato ou leo, mas todos podemos nos tranformar em membros de outras sociedades, adotando seus costumes, categorias de pensamento e classificao social, casando com suas mulhe res e socializando seus filhos. Rezando aos seus espritos e deuses, aplacando a ira e agradecendo as bnos dos seus ancestrais, obedecendo ou modificando suas leis, falando bem ou mal sua lngua. Apesar das diferenas e por causa delas, ns sempre nos reconhecemos nos outros e eu estou incli nado a acreditar que a distncia o elemento fundamental na percepo da igualdade entre os homens. Deste modo, quando vejo um costume diferente que acabo reconhecendo, pelo contraste, meu prprio costume.

    Quando estudei os nomes pessoais entre os Apinay do Norte do Estado de Gois e vi que, entre eles, os nomes eram mecanismos para estabelecer relaes sociais, foi que pude reconhecer imediatamente o papel dos nomes entre ns. Aqui, percebi, os nomes servem para individualizar, para isolar uma pessoa das outras e, assim fazendo, individuali zar um grupo (uma famlia) de outro, O nome caracteriza o indivduo, pois os nomes so nicos e exclusivos, com o termo xar demonstrando a surpresa que dois ou mais no mes idnticos podem causar. Lembro que a palavra xar de origem tupi e significava originalmente meu nome. Ela tem assim a virtude de relacionar dois indivduos cujos nomes so comuns, indicando, junto com a boa surpresa, algo que talvez no devesse ocorrer, pois o nome tem um carter exclusivo na nossa sociedade. Entre os Apinay e os Timbira em geral, porm, os nomes no individualizam mas, muito ao contrrio, estabelecem relaes muito impor tantes entre um tio materno e o sobrinho, j que ali os nomes so sistematicamente transmitidos dentro de certas linhas de parentesco. Os genitores jamais devem dar os nomes aos seus filhos que sempre os devem receber de parentes situados em certas posies genealgicas, entre as quais se destaca a do tio materno. De acordo ainda com essa lgica, os nomes sempre devem passar de homem para homem e de mulher para mulher, algo bem diferente do que ocorre em nosso

    24

    tiicio, onde eles so transmitidos obedecendo a uma lgica |)(!ssoal e fundada numa livre escolha. Se tirarmos o sobre nome, o nome de famlia, que legitima direitos a proprieda de, o nome prprio ou primeiro nome algo que pode variar ituiito quando escolhido e dado. De fato, falamos em dar titri nome criana; quando na sociedade Timbira muito itiais apropriado falar-se em transmisso de nomes, ato que rovela melhor o sistema de nominao vigente naquela so ciedade. Mas, alm disso, os nomes Timbira do direitos a |i(!['tencer a certos grupos cerimoniais muito importantes, |)i)is so grupos que atuam durante os rituais e tambm nas iM>iTdas carregando toras, esporte nacional destas tribos. Assim, papis sociais so transmitidos com os nomes pr prios e grupos de pessoas com os mesmos nomes desempe nham os mesmos papis.

    Um sistema de nomes prprios, to coletivo como esse ilii.s Timbira, nos faz pensar de imediato nas possibilidades ilt' um sistema oposto, isto , num sistema de nominao em (|u

  • um pouco mais adiante, a histria de como esses diferen tes sistemas foram percebidos e interpretados como formas alternativas solues e escolhas para problemas co muns colocados pelo viver numa sociedade de homens. E como esse tipo de encaminhamento se constitui num momen to importante no sentido de unir o particular com o uni versal pela comparao sistemtica e criativa: relacional e relativizadora.

    Mas alm da problemtica colocada pelo deslocamento dos sistemas (ou subsistemas), deslocamento que permite a comparao e uma percepo sociolgica, relativizada ou de vis, existe uma outra questo crtica nestas diferenas entre as cincias sociais e as cincias naturais. Trata-se do seguinte;

    Quando eu teorizo sobre os nomes Apinay, isto , quando construo uma interpretao para esse subsistema da socie dade Apinay (ou Timbira), eu crio uma rea complexa porque ela pode atuar em dois sistemas diferentes: o meu e o deles. Em outras palavras, quando eu interpreto o sis tema de nominao Apinay, eu entro numa relao de re flexividade com o meu sistema e tambm com o sistema Apinay. Posso ir alm da minha comunidade de cientistas, para quem estou evidentemente criando e procurando apre sentar minha teoria,' discutindo minhas hipteses e teorias com os prprios Apinay! Esse um dado fundamental e revolucionrio, pois foi somente a partir do incio deste s culo que ns antroplogos sociais temos procurado testar nossas interpretaes nesses dois nveis; no da nossa socie dade e cultura e tambm no nvel da sociedade estudada, cora o prprio nativo. Esta atitude, que cei-tamente um evolucio nista vitoriano do tipo Frazer consideraria uma verdadeira heresia acadmica, que tem servido como veremos no decorrer deste livro para situar a Antropologia Social no centro epistemolgico de todo um movimento relativizador que eu reputo como o mais fundamental dos ltimos tem pos. Porque quando apresento minha teoria ao meu objeto eu no s estou me abrindo para uma relativizao dos meus parmetros epistemolgicos, como tambm fazendo nascer um plano de debate inovador: aquele formado por uma dialtica entre o fato interno (as interpretaes Apinay para os seus prprios nomes), com o fato externo (as minhas interpre-

    26

    lues dos nomes Apinay). E essa dialtica acaba por inven tar um plano comparativo fundado na reflexividade, na cir- i'nlaridade e na crtica sociolgica, o que radicalmente di- Icronte da comparao bera comportada, onde a conscincia lio observador fica inteiramente de fora, como uma espcie dl' computador csmico, a ela sendo atribuda a capacidade lie tudo dar sentido sem nunca se colocar no seu prprio 'H(|iiema comparativo.

    essa possibilidade de dialogar com o nativo (informan- If) (jue permite ultrapassar o plano das convenincias pre- ciiiiceituosas interessadas em desmoralizar o outro. ela

  • aberto e estatstico, regido por probabilidades. No totemisiiio 6 na magia que, como estamos vendo, ainda subsistem ciii algumas reas do nosso sistema, reencontramos o eterim; aquilo que no muda e, por isso mesmo, prov um sentidu de coerncia essencial nossa vida.

    preciso, portanto, finalizar esta parte lembrando n famosa advertncia feita Antropologia Social pelo grand historiador ingls Maitland. Dizia ele que a Antropolo-iii teria que escolher entre ser Histria ou ser coisa alguma. E junto com essa advertncia confiante de Maitland, a tgh posta desabusada de Evans-Pritchard que, prevendo o curso dos acontecimentos e o papel reservado no futuro Antro pologia Social, decretou; ou a Histria escolheria ser scio antropologia, ou ela no seria coisa alguma. Digamos, assti mindo uma posio sociologicamente mais correta talvez que j se pode vislumbrar uma antropologia que, num dilogo aberto e sistemtico com a temporalidade vivida e concebida pelos homens de diversas sociedades, pode relativiz-la v, assim fazendo, conseguir alcanar na histria tudo o que elii pode realmente nos oferecer. Foi justamente isso que pre tendi ter aqui apresentado estudando o desenvolvimento de nossa disciplina.

    142

    TERCEIRA PARTE; TRABALHO DE CAMPO

    1. O Trabalho de Campo na Antropologia Social

    A partir do momento em que a antropologia, no limiar do sculo XX, comeou a abandonar a postura evolucionista, ficou patente a importncia do trabalho de campo ou pes quisa de campo como o modo caracterstico de coleta de novos dados para reflexo terica ou, como gostavam de colocar certos estudiosos de viso mais empiricista, como o laboratrio do antroplogo social. Assim, se o cientista na tural tinha o seu aparato instrumental concreto para repe tir experincias no teste de suas hipteses de trabalho, o etn logo o experimentava de modo diverso. Na sua disciplina estava fora de questo a expeiincia desenhada e fechada, do tipo realizado pelo psiclogo experimental na sua pr tica, mas ficava inteiramente aberta a experimentao num sentido mais profundo, qual seja: como uma vivncia longa e profunda com outros modos de vida, com outros valores e com outros sistemas de relaes sociais, tudo isso em con dies especficas. Freqentemente o etnlogo realizava sua experincia em solido existencial e longe de sua cultura de origem, tendo, portanto, que ajustar-se, na sua obsei-vao participante, no somente a novos valores e ideologias, mas a todos os aspectos prticos que tais mudanas demandam. Enquanto o cientista natural poderia repetir seu experimen to, introduzindo ou retirando para propsitos de controle suas variveis; no caso do antroplogo isso no poderia ocor rer. O controle da experincia, portanto, conforme chamou nossa ateno tantas vezes Radcliffe-Brown (cf. 1973, 1979), teria que ser feito pela comparao de uma sociedade com

    143

  • outra e tambm pela convivncia com o mundo social que se desejava conhecer cientificamente. Em outras palavras, a pesquisa estava limitada pelo prprio ritmo da vida social, j que o antroplogo social seria o ltimo a buscar sua alte rao como um teste para as suas teorizaes.

    Ns j vimos como essa virada metodolgica que se cris taliza na pesquisa de campo e a constelao de valores que chega com ela esto profundamente associadas ao chamado funcionalismo ou ao que denomino, pelos motivos j men cionados na parte anterior, revoluo funcionalista. Tal postura conseguiu arrancar o pesquisador de sua confortvel poltrona fixa numa biblioteca em qualquer ponto da Europa Ocidental, para lan-lo nas incertezas das viagens em mares povoados de recifes de coral, rituais exticos e costumes irracionais. Tal mudana de atitude, ao fazer com que a antropologia deixasse de colecionar e classificar curiosidades ordenadas historicamente, transformou nossa cincia, confor me disse MalinowsM, numa das disciplinas mais profun damente filosficas, esclarecedoras e dignificantes para a pesquisa cientifica (cf. Malinowski, 1976: 375), justamente por levar o estudioso a tomar contato direto com seus pes quisados, obrigando-o a entrar num processo profundamente relativizador de todo o conjunto de crenas e valores que lhe familiar. Deste modo, a antropologia social no poderia, para Malinowski, ligar-se a nenhuma compilao de costu mes exticos onde o etnlogo teria como objetivo a repro duo de uma lista infindvel de fatos, tais como: Entre os Brabdignacianos, quando um homem encontra sua sogra os dois se agridem mutuamente e cada um se retira com um olho roxo; ou Quando um Brodiag encontra um urso polar, ele costuma fugir e, s vezes, o urso o persegue; ou, ainda, Na antiga Calednia, quando um nativo aciden talmente encontra uma garrafa de usque pela estrada, bebe tudo de um gole, aps o que comea imediatamente a pro curar outra garrafa (cf. Evans-Pritchard, 1978: 22) o que, como disse Malinowski, fazia com que ns antroplogos pa recssemos idiotas e os selvagens, ridculos (Evans-Pritchard, 1978: 22).

    Tal estilo de reproduzir a experincia com os nativos, implacavelmente satirizada por Malinowski na citao ante rior, lembra o modo pelo qual os evolucionistas clssicos

    144

    escreviam seus relatrios de pesquisa: como uma espcie de catlogo telefnico cultural, onde a idia de classificar e, so bretudo, de colecionar todos os costumes era um objetivo evidente. A partir do advento do trabalho de campo siste mtico, entretanto, tornava-se impossvel reduzir uma socie dade (ou uma cultura) a um conjunto de frases soltas entre si, na listagem dos costumes humanos dispostos era linha histrica. Isso porque a vivncia propriamente antropolgica aquela nascida do contato direto do etngrafo cora o grupo em estudo por um perodo relativamente longo dava a perceber o conjunto de aes sociais dos nativos como um sistema, isto , um conjunto coerente consigo mesmo.

    :, como vimos, essa descoberta to simples e to crtica que permitir o nascimento da viso antropolgica moderna, como o instrumento bsico na transformao da antropologia social numa disciplina social, como um autntico ponto de vista. Como disse Malinowski num dos seus grandes momen tos de reflexo: Deter-se por um momento diante de um fato singular e estranho; deleitar-se com ele e ver sua sin gularidade aparente; olh-lo como uma curiosidade e cole cion-lo no museu da prpria memria ou num anedotrio essa atitude sempre me foi estranha ou repugnante. Ou seja, o papel da antropologia produzir interpretaes das diferenas enquanto elas formam sistemas integrados. Como diz o mesmo Malinowski logo a seguir:

    H, porm, um ponto de vista mais profundo e ainda mais importante do que o desejo de experimentar uma variedade de modos humanos de vida: o desejo de trans formar tal conhecimento em sabedoria. Embora possa mos por um momento entrar na alma de um selvagem e atravs de seus olhos ver o mundo exterior e sentir como ele deve sentir-se ao sentir-se ele mesmo. Nosso objetivo final ainda enriquecer e aprofundar nossa prpria viso de mundo, compreender nossa prpria na tureza e refin-la intelectual e artisticamente. Ao captar a viso essencial dos outros com reverncia e verdadeira compreenso que se deve mesmo aos selvagens, estamos contribuindo para alargar nossa prpria viso (Mali nowski, 1976: 374).

    Essa sbia reflexo de Malinowski, a qual poder-se-iam somar outras feitas por antroplogos pioneiros, gente do porte

    145

  • de Franz Boas, caso a nossa tarefa fosse a de traar uma detalhada histria do mtodo antropolgico, traduz a essncia da perspectiva antropolgica, na sua busca daquilo que essencial na vida dos outros. De tudo o que permite tornar qualquer sociedade, em qualquer ponto do planeta, com qual quer tipo de teenologia, um conjunto coerente de vozes, gestos, reflexes, articulaes e valores. a descoberta desta coern cia interna que torna a vida suportvel e digna para todos, dando-lhe um sentido pleno que a experincia de trabalho de campo sobretudo em outra sociedade permite localizar, discernir e, com sorte, teorizar.

    Deste modo, no h nenhum antroplogo contemporneo que no tenha sido submetido a esta experincia to impor tante quanto enriquecedora, seja do ponto de vista pessoal, terico ou filosfico. A base do trabalho de campo coiio tcnica de pesquisa fcil de justificar abstratamente. Trata- se, basicamente, de um modo de buscar novos dados sem nenhuma intermediao de outras conscincias, sejam elas as dos cronistas, dos viajantes, dos historiadores ou dos missio nrios que andaram antes pela mesma rea ou regio, Esse contato direto do estudioso bem preparado teoricamente com o seu objeto de trabalho coloca muitos problemas e dile mas e , a meu ver, destes dilemas que a disciplina tende a se nutrir, pois a partir dos seus prprios paradoxos que a antropologia tem contribudo para todas as outras cincias do social, Uma dessas contradies o fato de a disciplina renovar sistematicamente sua carga de experincias empricas em cada gerao. Em vez de encorajar uma amplia o terica no limite de certos problemas ou teorias j esta belecidas, buscamos orientar o jovem pesquisador para uma perspectiva realmente pessoal e autntica de cada problema. Ou melhor, tentamos conduzir o nefito para que venha a desenvolver um dilogo com as teorias correntes, tudo isso a partir de sua experincia concreta com o seu grupo tribal ou segmento de uma sociedade moderna por ele estu dada. porque os antroplogos conduzem sua existncia como profissionais, realizando essa dialtica da experincia concreta com as teorias aprendidas na universidade, que eles podem falar das suas tribos, favelas, comunidades, mitos, classes sociais, ideologias etc, Pois que se trata realmente de um treinamento onde se d uma forte nfase

    146

    s conseqncias tericas desta apropriao vivenciada nos conceitos e teorias aprendidos nos bancos da escola ps- graduada. Todo antroplogo realiza (ou tenta realizar), por tanto, o seu prprio repensar a antropologia, postura que como nos revelou explicitamente Edmund Leach (cf, Leach, 1974) ~ uma tarefa absolutamente fundamental para o bom desenvolvimento da disciplina.

    O resultado que a antropologia social certamente a disciplina social que mais tem posto em dvida e risco alguns dos seus conceitos e teorias bsicas. Seja porque a definio anterior era por demais estreita, seja porque as novas des cobertas, trazidas pela pesquisa de campo em profundidade, foram sempre uma nova abertura dos instrumentos ante riormente utilizados. De fato, difcil no produzir siste maticamente esse estado de dvida terica, quando a experincia da disciplina est voltada para o estudo de novas sociedades, inclusive da nossa prpria cultura. Cada estudo desses traz no s a possibilidade de testar todos os conceitos anteriormente utilizados naquele domnio teri co especfico, como tambm o ponto de vista daquele grupo, segmento, classe social ou sociedade. E isso pode provocar novas revelaes tericas, bem como revolues nos esquemas intei*pretativos utilizados at ento,

    Forado pela orientao mais geral da disciplina a de se renovar os antroplogos tm duvidado de vrios conceitos considerados bsicos ao longo de muitas geraes.

    Assim, duvidamos das definies clssicas de religio como crena em seres espirituais, como queria Tylor na sua colocao mnima e clssica do domnio religioso. Isso porque, na gerao seguinte, Durkheim, Mauss e outros si tuaram a problemtica da religiosidade numa escala muito mais ampla e mais complexa, definindo; ou melhor, concei tuando o fato religioso como uma relao entre os homens e grupos humanos estabelecida por meio dos deuses que, neste contexto, nada mais representam do que a prpria socieda de na sua totalidade. Assim, em vez de buscar a religio como uma relao entre homem e Deus (ou ns os mortais e os espritos, imortais por oposio e definio) e classi ficar o fenmeno religioso numa escala que ia de relaes mais simples e mais diretas entre homens e deuses, at as mais complicadas, quando h uma interveno das igrejas,

    147

  • seitas, sacerdotes e sacrifcios, a escola de Durkheim situa a problemtica do fenmeno dentro da prpria sociedade, demonstrando como as formas mais elementares da vida re ligiosa reproduziam no plano ideolgico as formas mais ele mentares de relacionamento social.

    Outro repensar se deu no campo dos estudos do pa rentesco, domnio considerado como especificamente antropo lgico desde que Morgan o fundou como esfera de reflexo sobre a s ina la r idade social humana. Hoje, as discusses giram sobre qual o sentido e qual a essncia disto que ns chamamos de parentesco. No pode ser o sangue ou outra substncia bsica, como queria Morgan e seus contempor neos. Ser, pois, um idioma, uma lngua pela qual se pode totalizar e expressar uma dada problemtica? Mas e as re laes primrias que todo ser humano desenvolve desde o seu nascimento?

    Todas essas dvidas metdicas acabaram como tive a ocasio de revelar na parte anterior por permitir que o pensamento antropolgico abrigasse uma nova via de co nhecimento do homem, caminho que pode abandonar o ques tionamento historizante, para utilizar a noo de sistema, de sincronia, de funcionalidade, de estrutura, de in consciente e revelar as diferenas entre sistemas sociais como formas especficas de combinaes e de relaes que so mais ou menos explcitas em sociedades e culturas se gregadas pelo tempo e pelo espao. Tais formas so trans formaes umas das outras num sentido mais complexo do que aquele dado pelo eixo exclusivo do tempo, que permite v-las como formas derivadas umas das outras. De fato, a antropologia sugere que estas variaes combinatrias so escolhas que cada grupo pode realizar diante de desafios histricos concretos, muitas vezes de modo mais consciente do que se poderia imaginar, e no parcelas de relaes que o tempo por algum capricho deixou de submeter sua presso modificadora. Esta postura crtica tem permitido antropologia social relativizar a prpria idia de tempo con cebido historicamente, sugerindo muitas vezes a sua substi tuio por uma noo de campo ou de inconsciente, zona onde todas as possibilidades e todas as relaes humanas seriam encontradas de fornia virtual. A histria, portanto, seria o movimento peio qual o inconsciente estrutural seria

    148

    realizado e limitado e no somente a zona de sua inveno e criao.

    Tais problemas tm ocorrido em quase todos os dom nios tradicionalmente estudados pelos antroplogos sociais e so variadas as suas respostas. Nossa inteno aqui no resolv-los, mas indicar como na antropologia provavel mente muito mais do que em qualquer outra disciplina social h uma longa, saudvel e tradicional base pluralista, pela qual o fenmeno humano estudado. E aqui no se trata, obviamente, de um pluralismo poltico, de cunho liberalizan te, mas de uma verdadeira postura filosfica, gerada pela contradio bsica da disciplina: o fato de a antropologia social ser ao mesmo tempo una e mltipla. Assim, se ela una em seus objetivos e na sua posio de respeito extre mo por todas as formas de sociabilidade diferentes (por mais primitivas e selvagens que possam parecer), ela mltipla na busca de seus dados e reflexo. Mltipla jus tamente no sentido de no se prender a nenhuma doutrina social, moral ou filosfica preestabelecida, a no ser aquela que constitui talvez o seu prprio esqueleto e que diz que ns sabemos apenas que no sabemos! A antropologia social, quero crer, uma disciplina sem dolos ou heris, sem mes sias e teorias indiscutveis e patenteadas, muito embora tenha um enorme corao onde cabem todas as sociedades e cultu ras. Em parte, assim, essa multiplicidade da antropologia diz respeito sua substncia, j que ela uma filha dileta do colonialismo ocidental e tambm uma cincia muito bem marcada pelos ideais do cientificismo europeu. Mas, no obstante isso, ela tem crescido ao sabor das lies apren didas em outras sociedades, culturas e civilizaes. , pois, muito importante constatar como a antropologia social, so bretudo pela prtica das viagens, tem levado muito a srio o que dizem os selvagens, como pensam os primitivos, qual a racionalidade dos grupos tribais. Pois foi realizando esse trabalho de aprender a ouvir e a ver todas as rea lidades e realizaes humanas que ela pde efetivamente juntar a pequena, tradio da aldeia perdida na floresta ama znica, desconhecida e ignorada no tempo e no espao, sub metida a todas as exploraes polticas e econmicas, com a grome tradio democrtica, fundada na compreenso e na tolerncia que forma a base de uma verdadeira perspec-

    149

  • tiva da sociedade humana. Isso fez com que a antropologia social desenvolvesse uma tradio distinta das outras cin cias humanas, pois com ela ocorre a possibilidade de recupe rar e colocar lado a lado, para um dilogo fecundo, as expe rincias humanas.

    Diferentemente, ento, da Sociologia, da Histria, da Geografia Humana, da Psicologia, da Cincia Poltica e da Economia, mas muito prxima da Lingstica, a Antropologia Social toma como ponto de partida a posio e o ponto de vista do outro, estudando-o por todos os meios disponveis. Se existem dados histricos, eles so usados; se existem fatos econmicos, isso tambm entra na reflexo; se h material poltico, eles no ficam de fora. Nada deve ser excludo do processo de entendimento de uma forma de vida social di ferente. Mas tudo isso, convm sempre acentuar, dentro da perspectiva segundo a qual a intermediao do conhecimento produzido realizada pelo prprio nativo em relao direta com o investigador. Ou seja, na postura s vezes difcil de ser entendida, posto que se baseia num ponto crucial: que o nativo, qualquer que seja a sua aparncia, tem razes que a nossa teoria pode desconhecer e freqentemente des conhece; que o selvagem tem uma lgica e uma dignidade que minha obrigao, enquanto antroplogo, descobrir.

    , portanto, para chegar a esta postura (ou para chegar prximo a ela) que o etnlogo empreende sua viagem e rea liza sua pesquisa de campo. Pois ali que ele pode vivenciar sem intermedirios a diversidade humana na sua essncia e nos seus dilemas, problemas e paradoxos. Em tudo, enfim, que permitir relativizar-se e assim ter a esperana de trans formar-se num homem verdadeiramente humano. 2. O Trabalho de Campo como um Rito de Passagem Nas crises socialmente programadas para dar sentido mu dana de posio dentro de um sistema, existem ocasies especiais quando os novios so tirados de suas casas e se guem para a floresta ou zona marginal com seus instruto res. L, neste espao intermedirio, e longe dos olhares ini bidores e protetores de seus pais e parentes, eles podem aprender a ser homens e mulheres, descobrindo o valor

    150

    de certas regras sociais, canes, gestos, emblemas e apren dendo a natureza das solidariedades horizontais, a unir os contemporneos entre si por elos de responsabilidade social e poltica, em vez dos laos substantivos conhecidos ante riormente, fundados no sangue, na carne, na cpula car nal, no nascimento, na amamentao e em outros processos semelhantes, situados entre o corpo naturalmente dado e o corpo como algo a ser instrumentalizado e legitimado pela coletividade. Tudo, enfim, que os jovens devem saber para que possam ter o sentimento de pertencer exclusivamente a uma dada sociedade e dela se orgulhar. Tais momentos so cruciais e o trabalho clssico de Arnold Van Gennep, bem como as elaboraes modernas e decisivas de Victor Turner (cf. Van Gennep, 1978; Turner, 1974), revelaram sua importncia.

    Aqui desejo simplesmente observar que a iniciao na antropologia social pelo chamado trabalho de campo fica muito prxima deste movimento altamente marcado e cons ciente que caracteriza os rituais de passagem. Realmente, em ambos os casos, antroplogo e novio so retirados de sua sociedade; tornara-se a seguir invisveis socialmente, reali zando uma viagem para os limites do seu mundo dirio e, em pleno isolamento num universo marginal e perigoso, ficam individualizados, contando muitas vezes com seus prprios recursos. Finalmente, retomam sua aldeia com uma nova perspectiva e os novos laos sociais tramados na distncia e no individualismo de uma vida longe dos parentes, poden do assim triunfalmente assumir novos papis sociais e posi es polticas. Vivendo fora da sociedade por algum tempo, acabaram por ter o direito de nela entrar de modo mais profundo, para perpetu-la com dignidade e firmeza.

    Antroplogos e iniciandos atualizam um padro clssico de morte, liminaridade e ressurreio social num novo papel, tudo de acordo com a frmula clssica dos ritos de transio e passagem. E ambos atualizam, como j indicou Turner (em 1967), aquele processo de reduo, pelo qual em plena liminaridade ficam como que transformados numa matriarj>ri7na: um estado pr-social, extremamente propcio aos novos aprendizados que precedem mudana de status. Isolados de suas relaes substantivas e individualizados, no vios e antroplogos ficam predispostos a ser socialmente

    151

  • moldados, antes do seu renascimento social. Nesta fase, apren dem novos fatos e adquirem um conhecimento sociolgico mais aberto e horizontalizado, quando descobrem que a dig nidade do mundo pode tambm ser encontrada na amizade e- no companheirismo. Assim, o que antes era dado exclusi vamente pela famlia, pode agora ser realizado pelos seus contemporneos de idade e de sexo, na unio criada pela viagem ritual, na crise do isolamento e do renascimento sociolgico.

    Com o antroplogo ocorre algo semelhante, quando des cobre que sua pesquisa o conduziu para um mundo onde teve que recriar no s todas as relaes sociais, mas sobretudo aprender o seu sentido profundo, pelo isolamento e pela res- socializao voluntria. O trabalho de campo, como os ritos de passagem, implica pois na possibilidade de redescobrir novas formas de relacionamento social, por meio de uma so cializao controlada. Neste sentido, o processo uma busca do controle dos preconceitos, o que facilitado pela viagem para ura outro universo social e pela distncia das relaes sociais mais reconfortantes. Mas, deve-se notar, o novio passa por tudo isso cercado por uma ideologia no raro contendo elementos religiosos e crenas mgicas; ao passo que o antroplogo engloba sua experincia iniciatria pelo uso consciente da razo, da experimentao e das hipteses de trabalho, desenvolvidos anteriormente no seu campo. Alm disso, se todo o novio tem um padrinho de iniciao, o antroplogo deve descobri-lo na forma de um amigo, infor mante, instrutor, professor e companheiro. Algum que lhe ensinar os caminhos e desvios encontradios na sociedade que pretende estudar e que dever socializ-lo como uma criana muito especial. E tanto o iniciando quanto o pesqui sador devem realizar o esforo para retornar a um estado infantil, de plena potencialidade individual, nico modo de voltar condio de seres dispostos a sofrer um novo pro cesso de aprendizado.

    Finalmente, depois deste perodo difcil e marginal, ambos podem retornar ao sistema do qual partiram, ali assu mindo uma nova posio, status que normalmente decorre precisamente desta vivncia de provao onde puderam forjar novos conhecimentos do universo e, dialeticamente, de sua prpria sociedade. Como observou em 1800 Degrando, um dos pioneiros da etnologia moderna:

    152

    Esta glria, a mais doce, a mais verdadeira; ou melhor: a nica e verdadeira glria, o espera e j o abrange. Voc conhecer todo o seu brilho no dia de triunfo e alegria no qual, retornando ao nosso pas e sendo bem- vindo no nosso meio com deleite, voc chegar nos nossos muros carregado com a mais preciosa carga e como por tador de felizes notcias de nossos irmos espalhados nos mais longnquos confins do universo (Degrando, 1969).

    Ou seja: Degrando percebeu bem o momento recom pensador da viagem, quando o pesquisador pode voltar e, nesta volta ao seio do seu mundo, trazer com ele a percep o de novas formas de relacionamento social, valores e ideo logias, de nossos irmos espalhados nos mais longnquos confins do universo.

    Em Etnologia, portanto, como nos ritos de passagem, existem planos e pontos de semelhana. Em ambos os casos, conforme sugerimos, estamos diante de uma passagem maior que aquela determinada por um simples deslocar-se no espa o. Pois ela implica, realmente, num exerccio que nos faz mudar o ponto de vista e, com isso, alcanar uma nova viso do homem e da sociedade no movimento que nos leva para fora do nosso prprio mundo, mas que acaba por nos trazer mais para dentro dele.

    Nesta parte, desejo apresentar alguns aspectos do plano existencial da pesquisa de campo, plano que marcado pelas possveis lies que podem ser extradas do relacionamento com os chamados informantes no decorrer de una trabalho de investigao antropolgica. Como tenho dito repetidamen te, essa pesquisa implica em outros paradoxos, pois como ser possvel observar tranqila e friamente (com a roupa gem da neutralidade cientfica) um certo panorama humano, se no nos relacionarmos intensamente com ele? Mas como possvel manter essa neutralidade ideal, que teoricamente nos permitiria ver todas as situaes de todos os ngulos, se estamos tratando de fatos e de pessoas que acabam por nos envolver nos seus dramas, projetos e fantasias? Ou' melhor; como poderei chegar a captar essa realidade social se no me coloco diante dela como um semelhante aos que dela tiram a honradez, a dignidade e o sentido da existn cia? Ou seja: preciso pensar em que espao se move o

    153

  • etnlogo engajado na pesquisa de campo e refletir sobre as ambivalncias de um estado existencial onde no se est nem numa sociedade nem na outra, e no entanto est-se enfiado at o pescoo numa e noutra.

    Com a finalidade de expor alguns destes problemas, fa larei do trabalho de campo com o processo cheio de dile mas e problemas existenciais que no tm sido, acredito, sis tematicamente apresentados em nossa disciplina, sobretudo nos manuais. Com isso, espero chamar a ateno do jovem estudioso brasileiro para a problemtica difcil, mas fasci nante, que decorre do privilgio de viver em outro segmento social ou em outra humanidade.

    Na quarta e ltima parte deste livro, apresentarei outros aspectos ligados ao trabalho antropolgico e pesquisa de campo, focalizando a preparao e os problemas tericos que devem informar a viagem e o trabalho de pesquisa. Agora, porm, estou interessado em mostrar como o momento mar ginal da viagem, quando no estamos nem envolvidos nos labirintos intelectuais levantados pelos problemas tericos, nem na difcil fase em que somos obrigados a filtrar nossa vivncia concreta numa aldeia distante ou bairro prximo, atravs de um relatrio no qual os problemas intelectuais so retomados num outro nvel. Numa palavra, desejo aqui descrever e analisar o momento intermedirio da pesquisa, fase em que o etnlogo est s voltas consigo mesmo, po dendo surgir o que denominei citando uma sensvel colega norte-americana, a Dra. Jean Crter de anthropological Blues?.

    Durante anos a Antropologia Social esteve preocupada em estabelecer com preciso cada vez maior suas rotinas de pesquisa ou, como tambm chamado o exerccio do ofcio na sua prtica mais imediata, do trabalho de campo. Nos cursos de Antropologia os professores mencionavam sempre a necessidade absoluta da coleta de um bom material, isto , dados etnogrficos que permitissem um dilogo mais inten so e fecundo com as teorias conhecidas, pois da, certamente, nasceriam novas teorias de acordo com a velha e saudvel dialtica do professor Robert Merton.

    Desse esforo nasceram alguns livros na Amrica do Norte e fora dela ensinando a realizar melhor essas ro tinas. Os mais famosos so, sem dvida, o notrio Notes

    154

    and Queries in Anthropology, produzido pelos ingleses 6, diga-se de passagem, britanicamente concebido, com zelo mis sionrio e vitoriano; e o no menos famoso Guia de Inves tigao de Dados Culturais, livro inspirado pelo Human Relations Area Files, sob a gide dos estudos cross-culturais (estudos comparativos horizontais e sem profundidade) do professor George Peter Murdock.

    So duas peas impressionantes, como so impressionan tes as monografias dos etnlogos, livros que atualizam de modo correto e impecvel essas rotinas de como comecei fazendo um mapa da aldeia, colhendo duramente as genea logias dos nativos, assistindo aos ritos funerrios, procuran do delimitar o tamanho de cada roa e terminei desco brindo um sistema de parentesco do tipo Crow-Oraaha etc. Na realidade, livros que ensinam a fazer pesquisa so velhos na nossa disciplina e, pode-se mesmo dizer sem medo de incorrer no exagero , que eles nasceram com a sua fundao, j que foi o prprio Henry Morgan o primeiro a descobrir a utilidade de tais rotinas, quando preparou uma srie de questionrios de campo que foram enviados aos dis tantes missionrios e agentes diplomticos norte-americanos para escrever o seu superclssico Systems of Consanguinity and Affini ty of the Human Family (1871). Tal tradio obviamente necessria e no meu propsito aqui tentar denegri-la. No sou D. Quixote e reconheo muito bem os frutos que dela nasceram e podero ainda nascer. E, mesmo se estivesse contra ela, o mximo que o bom senso me per mitiria acrescentar que essas rotinas so como um mal necessrio.

    Desejo, porm, trazer luz todo um outro lado desta mesma tradio oficial e explicitamente reconhecida pelos antroplogos, qual seja: os aspectos que aparecem nas ane dotas e nas reunies de antropologia, nos coquetis e nos momentos menos formais. Nas estrias que elaboram de modo tragicmico um mal-entendido entre o pesquisador e o seu melhor informante, de como foi duro chegar at a aldeia, das diarrias, das dificuldades de conseguir comida e muito mais importante de como foi difcil comer naquela aldeia do Brasil Central.

    1. Publicado em 1970, Anthropological Ptiblications; Oosterhout N. B. Holanda. Veja-se, em relao ao que foi mencionado, acima s p. VIII e IX do Prefcio e o Apndice Parte III, p. 5153.

    155

  • Esses so os chamados aspectos romnticos da dis

    ciplina, quando o pesquisador se v obrig-ado a atuar como mdico, cozinheiro, contador de histrias, mediador entre ndios e funcionrios da FUNAI, viajante solitrio e at pa lhao, lanando mo destes vrios e insuspeitados papis para poder bem realizar as rotinas que infalivelmente aprendeu na escola graduada. curioso e significativo que tais aspec tos sejam cunhados de anedticos e, como j disse, de romnticos, desde que se est consciente e no pre ciso ser filsofo para tanto de que a Antropologia Social uma disciplina da comutao e da mediao. E com isso quero simplesmente dizer que talvez, mais do que qualquer outra matria devotada ao estudo do Homem, a Antropologia seja aquela onde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois universos (ou subuniversos) de significao, e tal ponte ou mediao realizada com um mnimo de aparato institucional ou de instrumentos de mediao. Vale dizer, de modo artesanal e paciente, dependendo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todos os outros ingredien tes da pessoas e do contato humano.

    Se possvel e permitida uma interpretao, no h d vida de que todo o anedotrio referente s pesquisas de campo um modo muito pouco imaginativo de depositar num lado obscuro do ofcio os seus pontos talvez mais im portantes e mais significativos. uma maneira e, quem sabe?, um modo de no assumir o lado humano da disci plina, com um temor infantil de revelar o quanto vai de subjetivo nas pesquisas de campo, temor esse que tanto maior quanto mais voltado est o etnlogo para uma ideali zao do rigor nas disciplinas sociais. Numa palavra, um modo de no assumir o ofcio de etnlogo integralmente, o medo de sentir o que a Dra. Jean Crter denominou, com rara felicidade, numa carta do campo, os anthropological blues.

    Por anthropological blues se quer cobrir e descobrir, de um modo mais sistemtico, os aspectos interpretativos do ofcio de etnlogo. Trata-se de incorporar no campo mesmo das rotinas oficiais, j legitimadas como parte do treinamen to do antroplogo, aqueles aspectos extraordinrios, sempre prontos a emergir em todo o relacionamento humano. De fato, s se tem Antropologia Social quando se tem de algum

    156

    Wodo o extico, e o extico depende invariavelmente da dis tncia social, e a distncia social tem como componente a marginalidade (relativa ou absoluta), e a marginalidade se alimenta de um sentimento de segregao e a segregao implica em estar s, desembocando tudo para comutar rapidamente essa longa cadeia na liminaridade e no estranhamento.

    De tal modo que vestir a capa de etnlogo aprender a realizar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes frmulas: (a) transformar o extico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em extico. Em ambos os casos, necessria a presena dos dois termos (que representam dois universos de significao) e, mais basicamente, uma vivncia dos dois domnios por um mesmo sujeito disposto a situ-los e apanh-los. Numa certa pers pectiva, essas duas transformaes parecem seguir de perto os momentos crticos da histria da prpria disciplina. Assim que a primeira a transformao do extico em familiar corresponde ao movimento original da Antropologia quan do os etnlogos conjugaram o seu esforo na busca delibera da dos enigmas sociais situados em universos de significao sabidamente incompreendidos pelos meios sociais do seu tem po. Foi assim que se reduziu e transformou para citar apenas um caso clssico o hula ring dos melansios num sistema compreensvel de trocas, alimentadas por prticas rituais, polticas, jurdicas, econmicas e religiosas, desco berta que veio, entre outras, permitir a Mareei Mauss a criao da noo basilar de fato social total, desenvolvida logo aps as pesquisas do B. Malinoivslci.

    A segunda transformao parece corresponder ao mo mento presente, quando a disciplina se volta para a nossa prpria sociedade, num movimento semelhante a um auto- exorcismo, pois j no se trata mais de depositar no selva gem africano ou melansio o mundo de prticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar, mas de descobri-las em ns, nas nossas instituies, na nossa prtica poltica e religiosa. O problema , ento, o de tirar a capa de mem bro de uma classe e de um grupo social especfico para poder como etnlogo estranhar alguma regra social familiar

    2. Permito-me lembrar ao leitor que Malino-wski publicou o seu Argonau ta of ihe Wesm , Paci fi c em 1922 e que a primeira edio francesa do Essa i s ar le Don de 1925.

    157

  • e assim descobrir (ou recolocar, como fazem as crianas quando perguntam os porqus) o extico no que est pe trificado dentro de ns pela reificao e pelos mecanismos de legitimao.

    Essas duas transformaes fundamentais do ofcio de etnlogo parecem guardar entre si uma estreita relao. A primeira transformao leva ao encontro daquilo que a cul tura do pesquisador reveste inicialmente no invlucro do bizarro, de tal maneira que a viagem do etnlogo como a viagem do heri clssico, partida em trs momentos dis tintos e interdependentes: a sada de sua sociedade, o encon tro com o outro nos confins do seu mundo social e, final mente, o retorno triunfal (como coloca Degrando) a seu prprio grupo, com os seus trofus. De fato, o etnlogo , na maioria dos casos, o ltimo agente da sociedade colonial j que aps a rapina dos bens, da fora de trabalho e da terra, segue o pesquisador para completar o inventrio ca- nibalistico: ele, portanto, busca as regras, os valores, as idias numa palavra, os imponderveis da vida social que foi colonizada.

    Na segunda transformao, a viagem como a do xam: um movimento drstico em que, paradoxalmente, no se sai do lugar. E, de fato, as viagens xamansticas so viagens verticais (para dentro ou para cima) muito mais do que horizontais, como acontece na viagem clssica dos heris homricos.

    E no por outra razo que todos aqueles que

    realizam tais viagens para dentro e para cima so xams, curadores, profetas, santos e loucos; ou seja, os que de algum modo se dispuserem a chegar no fundo do poo de sua pr pria cultura. Como conseqncia, a segunda transformao conduz igualmente a um encontro com o outro e ao estranhamento.

    As duas transformaes esto, pois, intimamente relacio nadas e ambas sujeitas a uma srie de resduos, no sendo nunca realmente perfeitas. De fato, o extico nunca pode passar a ser familiar; e o familiar nunca deixa de ser extico.

    Aqui, necessrio fazer uma pausa para examinar com mais cuidado as noes de exotismo e familiaridade, termos

    S. Foi Peter Rivite, da Universidade de Oxford, Quem me sugeriu esta idin da visrem xamanstica.

    158

    problemticos e passveis de mltiplas interpretaes, confor me assinalou j por duas vezes Gilberto Velho (cf. Velho, 1978a e 1978b), numa crtica atenciosa de um trabalho ante rior em que tais expresses foram usadas. De fato, como chama ateno Velho, ser preciso ser mais cuidadoso ao se utilizar os termos acima indicados, j que ambos implicam na noo de distncia uma expresso igualmente complexa alm de conterem muitas camadas de significado,

    Quando usei (e ainda estou usando) a noo de exotis mo e de familiaridade, busquei exprimir exatamente isso, ou seja, a idia de que fatos, pessoas, categorias, classes, segmen tos, aldeias, grupos sociais etc., poderiam ser parte de meu universo dirio; ou no. O extico, como termo inverso, sig nificaria precisamente o oposto: um elemento situado fora do meu mundo dirio, do meu universo social e ideolgico do minante, Mas Velho tem razo ao indagar a que tipo de fa miliaridade estamos nos referindo. Afinal, o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas no necessa riamente conhecidos, sendo o oposto igualmente verdadeiro; pois o que no vemos e encontramos pode ser extico mas, at certo ponto, conhecido (cf. Velho, 1978a: 39).

    Estou inteiramente de acordo com Velho, mas isso so mente se fizermos como ele, ou seja; equacionarmos o fa miliar com o conhecido, num sentido direto, continuando nossa equao para fazer com que ela tambm englobe o ntimo e o prximo. Assim, teramos; tudo o que familiar conhecido, prximo, ntimo, o que, sem dvida, um exagero e um engano. A equao simtrica inversa, a ligar o extico com o desconhecido, tambm seria exagerada, pecan do pela mesma abrangncia. Minha inteno ao utilizar os termos em pauta, porm, foi no sentido apontado acima, Meu objetivo no foi o de fazer com que eles sugerissem essa idia do conhecido, do ntimo ou do prximo, conforme chama aten o Gilberto Velho nos citados trabalhos. De fato, o uso que fao dos dois termos no sentido de evitar esse emprego mecnico das noes de familiaridade e exotismo, muito embora tenha deixado de elaborar melhor as minhas pala vras. Se pequei, como talvez tenha ocorrido, pequei por omis so e no por imputar a essas palavras uma extenso des mesurada de significado.

    159

  • Posso mesmo argumentar que o sentido do familiar e do extico complexo, precisamente porque os dois termos no devem ter uma implicao semntica automtica. Da a necessidade de realizar sua transformao para poder fazer emergir a postura antropolgica. Confome indiquei acima, mas no custa elaborar um pouco mais, preciso transfor mar o familiar no extico (ou seja: necessrio questionar, como faz Velho, o que familiar, para poder situar os even tos, pessoas, categorias e elementos do nosso mundo dirio distncia) do mesmo modo que preciso questionar o ex tico (e fazendo isso, conforme sugere igualmente Velho, po demos muito bem ali descobrir o conhecido e o familiar). Mas, devo observar, tais questionamentos no so realizados pelo senso comum, mas pelo investigador munido de um con junto de problemas que deseja submeter ao escrutnio da razo.

    Mas, alm disso, existem outros problemas relevantes. O principal deles a considerao de que em toda socieda de, isto , em toda totalidade, existem coisas que me so familiares no sentido de serem elementos do sistema de classificao e coisas que so estranhas a este sistema. Tais coisas podem ser vistas de trinta em trinta anos, como os cometas, mas nem assim deixam de ser familiares. Fantas mas e deuses tambm so familiares para ns, muito embora sejam imateriais, morem no espao astral ou olmpico e s apaream para umas poucas pessoas. O mesmo pode ser dito em relao ao sistema de transporte de Niteri, com o qual tenho plena familiaridade e em relao ao sistema poltico nacional. Com todos esses elementos eu tenho familiaridade, no sentido de que eles fazem parte do meu esquema de clas sificao, da minha viso de mundo, do meu universo social e ideolgico. Nordestinos trabalhando e surfistas queimados de praia tambm me so familiares, muito mais comuns na minha vida do que nativos das tribos J do Brasil Central, cuja apario, mesmo em Ipanema, provocaria olhares curio sos, indagaes e, provavelmente, piadas espirituosas. Mas, notem bem, com todas essas coisas descritas acima, tenho apenas uma relao de familiaridade. E isso no significa em absoluto que:

  • nesta rea etc. muito mais natural e muito mais l gico. Em outras palavras, do mesmo modo que existem graus e modalidades de familiaridade, como estou buscando situar aqui, h tambm graus e modos de diferenciao, ou de desigualdade. Quando falo em familiaridade, estou me re ferindo a essa noo de modo dinmico, como algo que deve ser transformado e assim transcendido para que a perspec tiva do trabalho de campo, a postura antropolgica possa aparecer. No estou dizendo que o familiar possa ser estu dado porque o conhecemos bem. Digo apenas que, para que o familiar possa ser percebido antropologicamente, ele tem que ser de algum modo transformado no extico. Do mesmo modo que insisto na transformao do extico em familiar para que possamos ter uma anlise verdadeiramente sociolgica. , claro que existem dificuldades em cada um desses processos de transformao, mas, quando falo em fa miliaridade, utilizo a noo como um modo de conduzir a reflexo para a dvida. No sentido preciso de fazer o leitor se perguntar: mas, Deus meu, tudo o que me familiar meu conhecido? Tudo o que me familiar ntimo? Tudo o que me familiar est realmente prximo de mim? Fa zendo a si mesmo tais perguntas, encontrar na sua reali dade social respostas diversas, mas, fazendo isso, estar pra ticando de alguma forma a dvida antropolgica, base do trabalho de campo, evidente e nisso eu no poderia estar mais de acordo com Velho que a familiaridade, o exotismo e o acordo final sobre eles mantido por estrutu ras que podem ser chamadas de poder. Mas o ponto que, e muitas coisas podem ser negociadas e desconhecidas, nem tudo realmente negociado. Entre os Gavies do Estado do Par, em 1961, eu tinha que negociar minha prpria presena na aldeia, bem como uma forma de comunicao com os ndios. Ora, esse tipo de relacionamento no ne gociado entre classes sociais numa sociedade como a nossa. Mas isso, como ficar mais claro adiante, no significa ausncia de conflito ou, inversamente, intimidade entre os grupos sociais ou segmentos.

    Chegamos agora a um ltimo ponto, cuja importncia fundamental para o entendimento da minha posio no que diz respeito a esse assunto. Trata-se da prpria noo de sociedade. Quando eu me refiro a exotismo e familiaridades,

    162

    parto da idia de que uma sociedade ura sistema com ura mnimo de coerncia interna. Devo, entretanto, notar que coerncia no significa absolutamente uma supresso ou au sncia de conflitos, de contradies ou de posies divergen tes e diferenciadas. Muito ao contrrio, no creio que possa existir uma coisa chamada sociedade, sem que nela existam conflitos, divergncias e contradies. Isso parte e parcela da prpria constituio social, impresso que est no seu te cido, todo ele feito de grupos, regras, segmentos, categorias e, finalmente, indivduos que podem ter mltiplos interesses isso para no falarmos de situaes em que o prprio sistema , no nvel mesmo de suas regras, contraditrio. Mas, entre termos divergncias empiricamente dadas e divergn cias ideologicamente legitimadas e elaboradas, h um enorme fosso. Por outro lado, existe a questo do diagnstico destas divergncias. Um socilogo pode assistir a uma disputa mor tal entre grupos de uma sociedade e dizer que aquilo uma guerra causada por fatores econmicos e demogrficos; ao passo que os membros da sociedade implicados no conflito podem dizer que a tal guerra era apenas um ritual de vingana, destinado a limpar a honra do grupo local amea ado pelos seus irmos de uma outra aldeia. A causa final para a sociedade em estudo, nada tendo a ver com um con flito aberto e violento (que ns chamamos de guerra), mas com o comportamento dos mortos em relao aos vivos e dos membros de duas comunidades que estavam se juntando. Per gunto: quem tem razo? Se reduzirmos todos os conflitos mortais categoria de guerras, ento o trabalho de campo e o conhecimento antropolgico da diferenciao humana algo totalmente intil. Vendo o conflito, j supomos uma familiaridade com ele. Sem transformarmos o familiar em extico, atribumos a ele um dado valor, sem nos interes sarmos pelos motivos sociais que conduzem os membros da quele sistema. O problema, portanto, poder situar o nvel, o grau e a modalidade das divergncias e dos conflitos. A resposta da antropologia social, resposta que chegou sobre tudo com o trabalho de campo intensivo, a de que pri meiramente devemos ouvir as motivaes e as ideologias daqueles que praticam o costume, crena ou ao. assim fazendo que podemos entender o sistema ideolgico em estudo percebendo sua tessitura interna, descobrindo seus pontos

    163

  • contraditrios e como tais conflitos so vivenciados, justifi cados e percebidos pelos seus membros.

    Questionando os membros do sistema, teremos condies de situar o nvel e de descobrir o lug-ar da divergncia e do conflito como uma categoria sociolgica dentro daquele sistema. Essa uma considerao absolutamente fundamen tal, porque sem ela jamais poderemos transcender o empi- risrao que a antropologia social tem sistematicamente aju dado a superar ao longo dos ltimos anos, graas so bretudo prtica do trabalho de campo. Pois a percej)- o do que uma divergncia ou conflito, como procurei mostrar com o exemplo acima, exemplo incidentalmente ba seado no sistema social dos ndios Tupinamb (cf, Fernan des, 1949), efetivamente varivel. Antes de termos aferido o evento pelo nosso sistema de classificao, preciso saber como a sociedade em estudo o faz. E o primeiro problema descobrir se aquilo , efetivamente, um conflito ou uma disputa. Na nossa sociedade, uma disputa entre marido e mulher , do ponto de vista masculino, uma briga, uma tolice, uma chateao; freqentemente decorrente da na tureza estpida e teimosa da mulher. No uma disputa no mesmo sentido atribudo a uma discusso entre homens, Mas nos Estados Unidos contemporneos essas tolices po dem ocasionar processos jurdicos, pois o seu peso naquele sistema muito maior. Tais disputas so simplesmente clas sificadas de outro modo por l.

    Tudo isso nos leva a considerar que a sociedade (o sis tema) anterior multiplicidade de referncias que existem socialmente no seu meio. Deste modo, no a discusso fun dada num ponto de vista individual que cria o fato diver gente, mas a sociedade com suas ideologias que abre den tro dela tal espao: seja para o individuo e para o espao individual, seja para a discusso a partir destes espaos, seja ainda para a divergncia e seu reconhecimento como algo legtimo. Existem sistemas sociais que toleram e at mesmo tomam o conflito como um alimento social bsico para sua prpria existncia enquanto conjunto saudvel e ntegro. Mas existem tambm sociedades cujo temor ao con flito e divergncia muito grande, da certamente a sua dificuldade em reconhecer lutas e oposies que, para muitos, so evidentes. H sistemas que do prmios aos divergentes,

    164

    (lue so vistos como criativos e como figuras geniais. E h sociedades que do prmios aos pacificadores, ou seja: os (lue so capazes de buscar um ponto comum na divergncia o no conflito. Creio que no Brasil, conforme j procurei demonstrar em outro lugar (cf. Da Matta, 1979), buscamos sempre encorajar esses pacificadores, que tomam a ordem e a totalidade como sagrados,

    Um dos erros fundamentais em relao crtica ao cha mado funcionalismo foi supor que ele apenas dizia respei to a sistemas coerentes, no sentido normativo que est im plcito na noo de coerncia. O outro erro foi supor que a idia de funcionalidade existia apenas na cabea do antroplogo e que ela no era, na realidade, uma noo di fundida onde quer que exista uma sociedade de homens. Assim, h sistemas mais funcionais que outros e isso nada tem a ver com os desejos, ideologias e preferncias tericas dos antroplogos. Pois a despeito delas sabemos perfeita mente que sociedades onde o todo tende a predominar sobre as partes (as sociedades tradicionais), o conflito tende a ser pouco tolerado e reconhecido. Nestes sistemas, divergncias so vistas e traduzidas no idioma do pecado, da heresia e da loucura e assim expressos de forma totalizante, o que vale por sua negao social. Mas em sistemas onde a parte (o indivduo) vale mais que o todo, as coisas se passam ao contrrio, pois aqui, conflitos, divergncias e opinies so corriqueiros e fazem parte do mundo dirio. Conforme fa lamos no ditado popular: em cada cabea, uma sentena. Nestas sociedades onde o indivduo tem um lugar, conflitos, disputas, divergncias e diferenciaes so elementos dados. Mas no se pode esquecer que tudo indica serem eles parte integrante do prprio sistema social, ds prprias regras que moldam a estrutura da sociedade.

    O problema dos graus de divergncia e de familiari dade de cada sistema, tal como a questo dos graus de di ferenciao, heterogeneidade e divergncia interna, para vol tarmos aos importantes pontos levantados por Velho, dizem i'espeito a nveis de anlise e de observao que so de fato complexos. No creio que possamos solucionar todos esses problemas aqui, mas estou convencido de que eles nos aju dam a levantar algumas questes bsicas a respeito da con cepo de sociedade a partir de uma perspectiva verdadei-

    165

  • ramente sociolgica. Se, como estamos dizendo, uma socie dade um conjunto coerente, um sistema que tem uma auto- referncia, um todo que s pode ser adequadamente estudado em relao a si mesmo, ento todas as sociedades tm nveis de acordo mais bsicos do que zonas de divergncia; e zonas de exotismo menos importantes do que suas reas de familiaridade.

    Posso divergir com relao s motivaes especficas de nordestinos e surfistas, mas no tenho dvidas (e, creio, nem eles), quanto ao lugar do trabalho e do lazer, como ca- tegorias sociolgicas, no nosso mundo social. Tambm no tenho divergncias quanto ao uso do corpo como instrumento de trabalho; ou quanto venda da energia produzida por este corpo como um produto sujeito s leis do mercado. claro que nem todos conhecem as implicaes destas coisas, mas todos esto de acordo que isso algo familiar, pois todos sabem que aqueles nordestinos esto trabalhando; ao passo que os surfistas esto situados num outro mundo. Alm disso, diria que as nossas divergncias seriam ainda menores caso a nossa conversa com os nordestinos e surfis tas fosse orientada no sentido de valores mais profundos, como a honra, o sexo, o machismo, a sorte, o destino, a malandragem, o cumprimento de promessas e das palavras etc. E antes que algum levante sua voz contra essa asser tiva, devo adiantar que o ponto de encaixe numa sociedade no diz respeito somente a opinies absolutamente iguais, mas muitas vezes a opinies aparentemente contra ditrias, mas de fato complementares. Assim, os surfistas apresentariam com toda a certeza {e os trabalhos de Gil berto Velho revelam isso claramente) um discurso entrecor tado pela ideologia moderna do individualismo negativo e do hedonismo fundado na viso de quem est por cima: uma espcie de malandragem contempornea, falada no idioma da psicanlise, do marxismo crasso e do niilismo. Ao passo que os nordestinos exprimiriam um ponto de vista provavelmente oposto, falando do destino (e de destinos), do lugar de cada um na sociedade, no dever e na obrigao de tra balhar, na esperana da sorte grande e da loteria como nico modo de mudar de vida e subir rapidamente, tudo isso como modo de situar o outro lado de um universo social onde as pessoas no tm escolhas ou individualidades. Vistas lado a

    166

    lado, como se o Brasil fosse uma colcha de retalhos ou um conjunto de elementos paralelos, individualizados, tais opi nies revelariam plenas divergncias e distncias irreconci liveis. Mas ser realmente assim? Em outras palavras, no tero esses nordestinos nada a ver com os surfistas quei mados pelo mesmo sol? No sero eles precisamente os dois lados de uma mesma moeda que esse Brasil hierarquizado e capaz de viver cdigos aparentemente opostos simultanea mente? Ou seja: no ser porque os nordestinos exprimem uma viso complementar e hierarquizada do mundo (cujos componentes bsicos so o dever, a f, a esperana, a sorte, o respeito pelo prximo e pelo patro, a honra etc.) que permite o surgimento de uma ideologia aparentemente opos ta e divergente, mas no fundo absolutamente complementar: aquele dos surfistas e intelectuais da zona sul, toda ela va zada no individualismo capitalista?

    Tendo a supor que sim e que so tais relaes que precisamos buscar quando estudamos o nosso prprio sis tema. Mas isso, conforme estou acentuando repetidamente, exige tomar o familiar, transformando-o em extico de~ marche crtica que permitir ver o mundo dirio como um estranho. Realizando isso, podei'emos, conforme ficar mais claro na prxima parte, ligar o cdigo do malandro com o do caxias; o do surfista malandro com o do trabalhador nordestino como parte de uma totalidade dividida interna mente em pedaos. Num deles, como j busquei revelar em outro lugar (cf. Da Matta, 1979), operamos com o moderno cdigo da igualdade que vale s para os membros do nosso grupo. No outro, temos os valores da hierarquia e da de sigualdade coletiva: cdigo que nos ajuda a viver num mun do profundamente injusto, sem nos apercebermos das difi culdades em transformar efetivamente essa injustia.

    Mas, deixando os paradoxos para os mais bem prepara dos, essas duas transformaes indicam, num caso, um ponto de chegada (de fato, quando o etnlogo consegue se fami liarizar com uma cultura diferente da sua, ele adquire com petncia nesta cultura) e, no outro, o ponto de partida, j que o nico modo de estudar um ritual brasileiro o de tomar tal rito como extico. Isso significa que a apreenso no primeiro processo realizada primordialmente por uma via intelectual (a transformao do extico em familiar

    167

  • realizada fundamentalmente por meio de apreenses cogni tivas) ao passo que, no segundo caso, necessrio um des ligamento emocional, j que a familiaridade do costume no foi obtida via intelecto, mas via coero socializadora e, assim, veio do estmago para a cabea. Em ambos os casos, porm, a mediao realizada por um corpo de princpios- guias (as chamadas teorias antropolgicas) e conduzida num labirinto de conflitos dramticos que servem como pano de fundo para as anedotas antropolgicas e para acentuar o toque romntico da nossa disciplina. Deste modo, se o meu insight est correto, no processo de transformao mesmo que devemos cuidar de buscar a definio cada vez mais pre cisa dos anthropological blues.

    Seria, ento, possvel iniciar a demarcao da rea b sica dos anthropological blues como aquela do elemento que se insinua na prtica etnolgica, mas que no estava sendo esperado. Como um blue, cuja melodia ganha fora pela re petio das suas frases de modo a cada vez mais se tomar perceptvel. Da mesma maneira que a tristeza e a saudade (tambm blues) se insinuam no processo do trabalho de campo, causando surpresa ao etnlogo. quando ele se per gunta, como fez Claude Lvi-Strauss, que viemos fazer aqui? Com que esperana? Com que fim? e, a partir deste mo mento, pode ouvir claramente as intromisses de um rotineiro estudo de Chopin, ficar por ele obsediado e se abrir terr vel descoberta de que a viagem apenas despertava sua pr pria subjetividade:

    Por um singular paradoxo, diz Lvi-Strauss, em lugar de me abrir a um novo universo, minha vida aventu rosa antes me restitua o antigo, enquanto aquele que eu pretendera se dissolvia entre os meus dedos. Quanto mais os homens e as paisagens a cuja conquista eu partira perdiam, ao possu-los, a significao que eu deles esperava, mais essas imagens decepcionantes ainda que presentes eram substitudas por outras, postas era reserva por meu passado e s quais eu no dera nenhum valor quando ainda pertenciam realidade que me ro deava (Tristes Trpicos, So Paulo: Anhembi, 1956: 402ss).

    168

    Seria possvel dizer que o elemento que se insinua no trabalho de campo o sentimento e a emoo. Estes seriam, para parafrasear Lvi-Strauss, os hspedes no convidados da situao etnogrfica. E tudo indica que tal intruso da subjetividade e da carga afetiva que vem com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa antropolgica, um dado sistemtico da situao. Sua manifestao assume vrias formas, indo da anedota infame contada pelo falecido Evans- Pritchard, quando diz que estudando os Nuer pode-se facil mente adquirir sintomas de Nuerosis at as reaes mais viscerais, como aquelas de Lvi-Strauss, Chagnon e Maybury- Lewis quando se referem solido, falta de privacidade e sujeira dos ndios.

    Tais relatos parecem sugerir, dentre os muitos temas que elaboram, a fantstica supresa do antroplogo diante de um verdadeiro assalto de emoes. Assim que Chagnon descre ve sua perplexidade diante da sujeira dos Yanomano e, por isso mesmo, do terrvel sentimento de estar penetrando num mundo catico e sem sentido de que foi acometido nos seus primeiros tempos de trabalho de campo, E Maybury-Levtris guarda para o ltimo pargrafo do seu livro a surpresa de se saber de algum modo envolvido e capaz de envolver seu informante. Assim, no ltimo instante do seu relato que ficamos sabendo que Apowen ao se despedir do antrop logo tinha lgrimas nos olhos. como se na escola ps- graduada tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonial prescritivo, ura sistema poltico segmentado, um sistema dualista etc., e jamais nos tivessem prevenido de que a situao etnogrfica no realizada num vazio e que, tanto l quanto aqui, se pode ouvir os anthropological blues!

    Mas junto a esses momentos cruciais (a chegada e o ltimo dia), h dentre as inmeras situaes destac veis um outro instante que ao menos para mim se con figurou como crtico: o momento da descoberta etnogrfica. Quando o etnlogo consegue descobrir o funcionamento de uma instituio, compreende finalmente a operao de uma regra antes obscura. No caso da minha pesquisa, no dia em que descobri como operava a regra da amizade formali-

    4. Cl. Bvans-Pritchard. O Nuer. 6- Para Lvi-Strauss veja o j citado Tristes Trpicos; para Chagnon Maybury-

    Lewis, confira, respejtvameiite Yanonano: The Fxerce People, Nova Iorque: Holt, Rinehart e Winston, 1968, e The Savage and The InnocenU Boston: Beacon Press, 1965.

    169

  • zada entre os Apinay, escrevi no meu dirio em 18 de se tembro de 1970:

    Ento ali estava o segredo de \ima relao social muito importante (a relao entre amigos formais), dada por aca so, enquanto descobria outras coisas. Ela mostrava de modo iniludvel a fragilidade do meu trabalho e da minha ca pacidade de exercer o meu ofcio corretamente. Por outro lado, ela revelava a contingncia do ofcio de etnlogo, pois os dados, por assim dizer, caem do cu como pingos de chuva. Cabe ao etnlogo no s apar-los, como conduzi-los em enxurrada para o oceano das teorias correntes. De modo muito ntido verifiquei que uma cultura e um informante so como cartolas de mgico; tira-se alguma coisa (uma regra) que faz sentido num dia; no outro, s conseguimos fitas coloridas de baixo valor...

    Do mesmo modo que estava preocupado, pois havia man dado dois artigos errados para publicao e tinha que corrigi- los imediatamente, fiquei tambm eufrico. Mas minha eufo ria teria que ser guardada para o meu dirio, pois no havia ningTim na aldeia que comigo pudesse compartilhar de minha descoberta. Foi assim que escrevi uma carta para um amigo e visitei o encarregado do Posto no auge da euforia. Mas ele no estava absolutamente interessado no meu trabalho, E, mesmo se estivesse, no o entenderia. Num dia, noite, quando ele perguntou por que, afinal, estava ali estudando ndios, eu mesmo duvidei da minha resposta, pois procurava dar sentido prtico a uma atividade que, ao menos para mim, tem muito de artesanato, de confuso e , assim, totalmente desligada de uma realidade instrumental.

    E foi assim que tive que guardar o segredo da minha descoberta, E, noite, depois do jantar na casa do encarre gado, quando retornei minha casa, l s pude dizer do meu feito a dois meninos Apinay que vieram para comer comigo algumas bolachas. Foi com eles e com uma lua ama rela que subiu muito tarde naquela noite que eu comparti lhei a minha solido e o segredo da minha minscula vitria.

    Esta passagem me parece instrutiva porque ela revela que, no momento mesmo que o intelecto avana na ocasio da descoberta

    as emoes esto igualmente presentes, j

    que preciso compartilhar o gosto da vitria e legitimar com os outros uma descoberta. Mas o etnlogo, nesse mo-

    170

    mento, est s e, deste modo, ter que guardar para si pr prio o que foi capaz de desvendar.

    E aqui se coloca novamente o paradoxo da situao etno grfica; para descobrir preciso relacionar-se e, no momen to mesmo da descoberta, o etnlogo remetido para o seu mundo e, deste modo, isola-se novamente. O oposto ocorre com muita freqncia: envolvido por um chefe poltico que deseja seus favores e sua opinio numa disputa, o etnlogo tem que calar e isolar-se. Emocionado pelo pedido de apoio e temeroso por sua participao num conflito, ele se v obri gado a chamar razo para neutralizar os seus sentimentos e, assim, continuar de fora. Da minha experincia, guardo com muito cuidado a lembrana de uma destas situaes e de outra, muito mais emocionante, quando um indiozinho, que era um misto de secretrio, guia e filho adotivo, ofereceu- me um colar. Transcrevo novamente um longo trecho do meu dirio de 1970:

    Pengy entrou na minha casa com uma cabacinha presa a uma linha de tucum. Estava na minha mesa remoendo dados e coisas. Olhei para ele com o desdm dos cansados e explorados, pois que diariamente e a todo o momento minha casa se enche de ndios com colares para trocas pelas minhas missangas. Cada uma dessas trocas um pesadelo para mim. Socializado numa cultura onde a troca sempre implica numa tentativa de tirar o melhor partido do parceiro, eu sempre tenho uma rebeldia contra o abuso das trocas propostas pelos Apinay: um colar velho e mal feito por um punhado sempre crescente de missangas. Mas o meu ofcio tem desses logros, pois missangas nada valem para mim e, no entanto, aqui estou zelando pelas minhas pequenas bolas coloridas como se fosse um guarda de um banco. Tenho cime delas, estou apegado ao seu valor que eu mesmo estabeleci.,.

    Os ndios chegam, oferecem os colares, sabem que eles so mal feitos, mas sabem que eu vou trocar. E assim fa zemos as trocas. So dezenas de colares por milhares de missangas. At que elas acabem e a notcia corra por toda a aldeia. E, ento, ficarei livre desse incmodo papel de comerciante. Terei os colares e o trabalho cristalizado de qua&e todas as mulheres Apinay. E eles tero as missangas para outros colares.

    Pois bem, a chegada de Pengy era sinal de mais uma troca. Mas ele estendeu a mo rapidamente;

    171

  • Esse para o teu ikr (filho), para ele br incar. . . E, ato contnuo, saiu de casa sem olhar para trs. O

    objeto estava nas minhas mos e a sada rpida do indio- zinho no me dava tempo para propor uma recompensa. S pude pensar no gesto como uma gentileza, mas ainda duvidei de tanta bondade. Pois ela no existe nesta sociedade onde os homens so de mesmo valor.

    Que o leitor no deixe de observar o meu ltimo par grafo. Duvidei de tanta bondade porque tive que racionali zar imediatamente aquela ddiva, caso contrrio no estaria mais solitrio. Mas ser que o etnlogo est realmente sozinho ?

    Os manuais de pesquisa social quase sempre situam o problema de modo a fazer crer que precisamente esse o caso. Deste modo, o pesquisador aquele que deve se orien tar para o grupo estudado e tentar se identificar com ele. No se coloca a contrapartida deste mesmo processo: a iden tificao dos nativos com o sistema que o pesquisador carre ga com ele, um sistema formado entre o etnlogo e aqueles nativos que consegue aliciar pela simpatia, amizade, di nheiro, presentes e Deus sabe mais como! para que lhe digam segredos, rompam com lealdade, forneam-lhe lampe jos novos sobre a cultura e a sociedade em estudo.

    Afinal, tudo fundado na alterilidade em Antropologia: pois s existe antroplogo quando h um nativo transfor mado em informante. E s h dados quando h um processo de empatia correndo de lado a lado. isso que permite ao informante contar mais um mito, elaborar com novos dados uma relao social e discutir os motivos de um lder poltico de sua aldeia. So justamente esses nativos (transformados em informantes e em etnlogos) que salvam o pesquisador do marasmo do dia-a-dia: do nascer e pr-do-sol, do gado, da mandioca, do milho e das fossas sanitrias.

    Tudo isso parece indicar que o etnlogo nunca est s. Realmente, no meio de um sistema de regras ainda extico e que seu objetivo tornar familiar, ele est relacionado 6 mais do que nunca ligado sua prpria cultura. E quando o familiar comea a se desenhar na sua conscin cia, quando o trabalho termina, o antroplogo retorna com aqueles pedaos de imagens e de pessoas que conheceu melhor do que ningum. Mas situadas fora do alcance imediato do

    172

    sou prprio mundo, elas apenas instigam e trazem luz uma ligao nostlgica, a dos anth7'opological blues.

    Mas o que se pode deduzir de todas essas observaes e de todas essas impresses que formam o processo que deno minei de anthropological blues?

    Uma deduo possvel, entre muitas outras, a de que, em Antropologia, preciso recuperar esse lado extraordin rio e esttico das relaes entre pesquisador/nativo. Se este o lado menos rotineiro e o mais difcil de ser apanhado da situao antropolgica, certamente porque ele se cons titui no aspecto mais humano da nossa rotina. o que real mente permite escrever a boa etnografia. Porque sem ele, como coloca Geertz (1978), manipulando habilmente um exemplo do filsofo ingls yle, no se distingue um piscar de olhos de uma piscadela marota. E isso, precisamente, que distingue a descrio densa tipicamente antropo lgica da descrio inversa, fotogrfica ou mecnica, do viajante ou do missionrio. Mas para distinguir o piscar me cnico 0 fisiolgico de uma piscadela sutil e comunicativa, preciso sentir a marginalidade, a solido e a saudade. : preciso cruzar os caminhos da empatia e da humildade.

    Essa descoberta da Antropologia Social como Matria interpretativa segue, por outro lado, uma tendncia da dis ciplina. Tendncia que modernamente parece marcar sua pas sagem de uma cincia natural da sociedade, como queriam os empiricistas ingleses e americanos, para uma cincia inter pretativa, destinada antes de tudo a confrontar subjetivida- des e delas tratar. De fato, neste plano no seria exagero afirmar que a Antropologia um mecanismo dos mais impor tantes para deslocar nossa prpria subjetividade. E o pro blema, como presume Louis Dumont, entre outros, no pa rece propriamente ser o de estudar as castas da ndia para conhec-las integralmente, tarefa impossvel e que exigiria muito mais do que o intelecto, mas isto sim i>ermitir dialogar com as formas hierrquicas que convivem conosco. : admitir romantismo e anthropological blues parte que o homem no se enxerga sozinho. E que ele precisa do outro como seu espelho e seu guia.

    173

  • Numa aldeia indgena, fica-se enterrado at o pescoo

    num outro sistema. No incio ainda existem muitas distn cias e a gente pode facilmente se diferenciar. Mas, depois de alguns meses, o ritmo da vida diria do aqui e agora de l acaba tomando conta, claro, como procurei re velar de um modo mais abstrato na parte anterior, que a gente jamais consegue ser um deles, ningum vira realmente ndio, mas fica-se bem perto. J se pode tomar gua em suas cabaas sem sentir o estmago revoltado; j se come a mesma comida sem nenhum problema, j se pode enfrentar o mato e voltar aldeia sem medo e os insetos noturnos no chegam a perturbar tanto. Uma cano ouvida pela noite alta j no desperta angstia ou a fantasia de que iremos observar um rito nunca antes visto pelos olhos de um ocidental. A gente j comea a saber que eles cantam todas as noites de vero e que a vida na aldeia cheia dos mesmos pro blemas humanos que permeiam nossas cidades: h gente rica e mesquinha, h os simpticos e os indiferentes, os fortes e os dominados. Ali tambm existe amor, inveja e ignorn cia, embora os termos surjam cobertos por outros nomes, em uma gramtica s vezes difcil de reconhecer. Na aldeia a gente tambm faz amigos e tece receios das palavras, dos comentrios, de uma opinio pblica que opera com fuxi- cos, olhares, segredos. Neste estgio, refletimos verdadeira mente sobre o tempo que estamos ali. Como Hans Castorp, na Montanha Mgica a sensao de que ali estamos j h uma eternidade. Em agosto de 1961, quando o Brasil enfren tava a crise provocada pela renncia de Jnio Quadros, eu estava na aldeia Gavio de Praia Alta, vivendo um outro tempo, um outro sistema de relaes sociais e um outro ritmo de vida poltica. Quando soube da renncia por um patro de barraco que passava medroso pela aldeia, pois os Gavies gostavam de apavorar os usurpadores de suas terras, fiquei subitamente angustiado, lembrando-me que, afinal, pertencia a um outro universo e estava perdendo um a