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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DANIEL ELIAS DE CARVALHO HISTÓRIA ORAL DE VIDA DE ARTE EDUCADORES DA FUNDAÇÃO CASA: A ARTE COMO RESISTÊNCIA CAMPINAS 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DANIEL ELIAS DE CARVALHO

HISTÓRIA ORAL DE VIDA DE ARTE EDUCADORES

DA FUNDAÇÃO CASA: A ARTE COMO

RESISTÊNCIA

CAMPINAS

2017

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DANIEL ELIAS DE CARVALHO

“HISTÓRIA ORAL DE VIDA DE ARTE EDUCADORES

DA FUNDAÇÃO CASA: A ARTE COMO

RESISTÊNCIA”

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Educação

da Faculdade de Educação da

Universidade Estadual de Campinas para

obtenção do título de Mestre em

Educação, na área de concentração de

Educação

Supervisor/Orientador: Áurea Maria Guimarães

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO DANIEL

ELIAS DE CARVALHO, E ORIENTADA PELO(A) PROF.

(A) DR.(A) ÁUREA MARIA GUIMARÃES.

CAMPINAS

2017

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca da Faculdade de Educação Rosemary Passos - CRB 8/5751

Carvalho, Daniel Elias, 1985-

C253h História oral de vida de arte educadores da Fundação Casa : a arte como resistência / Daniel Elias de Carvalho. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

Orientador: Áurea Maria Guimarães.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Fundação CASA. 2. História oral. 3. Arte. 4. Arte e educação. I.

Guimarães, Áurea Maria, 1950-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Oral life history of art educators at Fundação Casa : art like resistance Palavras-chave em inglês:

Fundação CASA Oral history Art

Art and education

Área de concentração: Educação Titulação: Mestre em Educação Banca examinadora: Áurea Maria Guimarães [Orientador]

Ana Angélica Medeiros Albano

José Luiz Pastre

Data de defesa: 29-08-2017

Programa de Pós-Graduação: Educação

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE/INSTITUTO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

HISTÓRIA ORAL DE VIDA DE ARTE EDUCADORES

DA FUNDAÇÃO CASA: A ARTE COMO

RESISTÊNCIA

Autor : Daniel Elias de Carvalho

COMISSÃO JULGADORA:

Áurea Maria Guimarães

Ana Angélica Medeiros Albano

José Luiz Pastre

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2017

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que colaboraram com a construção da minha estrada, possibilitando a

realização desta pesquisa:

À Gisele, companheira de vida, porto seguro nos momentos de angústia e de alegria.

À minha família, pelo apoio dado.

Ao meu cão, companheiro inestimável.

Aos meus amigos, pelos momentos de descontração.

À Áurea Maria Guimarães, por oportunizar a realização desta pesquisa e de outras tão

ímpares, pela paciência e suporte dado nesta longa caminhada.

Ao grupo VIOLAR, principalmente Alexandre Ceconello, Carol Reis e Susy Rodrigues pelas

conversas e momentos compartilhados.

À Ana Angélica Albano, por mostrar que a Universidade pode escutar, acolher e potencializar

as vozes de seus alunos, por fazer a diferença.

À Fabíola Holanda Barbosa, que para além dos textos, possibilitou sentir o afeto, cuidado e

responsabilidade na metodologia da História Oral de Vida.

À Maria Teresa de Arruda Campos, José Pedro Pastre e Nima Spigolon, por aceitarem

compor a banca e pelo apoio.

Aos colaboradores, por compartilharem momentos de suas vidas, por acreditarem no trabalho.

Aos parceiros de trabalho, Marcos Chabes, Giselle Dainesi, Douglas Molinari, Adriana Nery,

Newton Monteiro, Rafaela Favoreti, Liniker e todos os Arte Educadores, pelas incontáveis

parcerias, discussões e construções coletivas.

Ao Chopin, pelas incontáveis vezes que sua música possibilitou que eu saísse dos turbilhões

do dia a dia e me concentrasse no desenvolvimento da pesquisa.

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo compreender o papel que a arte tem enquanto possibilidade

de resistência na trajetória de vida de Arte Educadores que trabalham na Fundação CASA. A

metodologia utilizada foi a História Oral de Vida, segundo os procedimentos do Núcleo de

Estudos em História Oral da USP. Para dialogar com as narrativas dos arte educadores

também foram utilizados os conceitos de biopoder, biopolítica e biopotência, embasados em

teóricos como Michel Foucault e Peter Pál Pelbart. Busca-se com este trabalho refletir sobre

as potencialidades da arte na vida dos arte educadores e dos jovens que cumprem medida

socioeducativa de internação na Fundação CASA, propiciando ou não processos de

resistência.

Palavras-chave: arte, potência, resistência, história oral de vida, Fundação CASA, Arte

Educador.

ABSTRACT

This research has the objective of understand the part of the art as possibility of resistance in

the background of the Art Educators life in Fundação CASA. The methodology used was the

Oral Life History, according to the procedures of the Studies´ Hub in Oral History at USP. To

dialog with the narratives of the art educators it was also used the concepts of biopower,

biopolitics, biopontecials, substantiate in theorists like Michel Foucault e Peter Pál Pelbart.

The purpose of this assignment is make reflection about the potentials of the art in art

educators life and young people that serve educational correctional measures in Fundação

CASA, providing or not resistance proceedings.

Keywords: Art, Potencial, Resistance, Oral Life History, Fundação CASA, Art Educador.

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Lista de Abreviaturas e Siglas

AVC – Acidente Vascular Cerebral

CAD – Comissão de Avaliação Disciplinar

CBO – Classificação Brasileira de Ocupações

CD – Compact Disc (em inglês): Disco Compacto

CDP – Centro de Detenção Provisória

CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

CRAS – Centro de Referência da Assistência Social

DRL – Divisão Regional do Litoral

DRMC – Divisão Regional Metropolitana de Campinas

DRVP – Divisão Regional do Vale do Paraíba

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

FEBEM – Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor

FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor

Fundação CASA – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente

NEHO – Núcleo de Estudos em História Oral da USP

ONG – Organização Não-Governamental

PCC – Primeiro Comando da Capital

PEC – Proposta de Emenda Constitucional

PM – Polícia Militar

PNBEM – Política Nacional do Bem-Estar do Menor

PSOL – Partido Socialismo e Liberdade

RAP – Rhythm and Poetry (em inglês): Ritmo e Poesia

SAM – Serviço de Assistência ao Menor

SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

SUS – Sistema Único de Saúde

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Sumário

Introdução ................................................................................................................................... 8

Capítulo 1: Fundação CASA: O que os muros escondem? ...................................................... 12

1.1 – De qual juventude estamos falando? ................................................................. ........... 12

1.2 – A “caminhada” da Fundação. ......................................................................................... 16

1.3 Arte e cultura na Fundação CASA: caminhos possíveis............ ......................................... 23

1.3.1 Estrutura física para as atividades de arte e cultura ............................................................... 30

1.3.2 Materiais e conteúdos proibidos de serem levados nas oficinas. ........................................... 32

1.3.3 Intervenções – Equipe da Fundação CASA. ............................................................................. 36

Capítulo 2 : Retas planejadas, curvas borradas: a experiência com a História Oral. ............... 38

2.1 Transcriação do caderno de campo: Risco Arriscado........................................................ 44

2.2 – Caderno de campo transcriado ...................................................................................... 45

Primeira entrevista: Arte Educador Pedro.................................................................................. ......45

Segunda entrevista: Arte Educador Rogério .................................................................................... 47

Terceira Entrevista: Arte Educadora Camila ..................................................................................... 48

Quarta Entrevista: Arte Educadora Thalita ....................................................................................... 48

Quinta Entrevista: Arte Educadora Beatriz ....................................................................................... 49

2.3 Entre o controle e a sensibilidade: pesquisador na linha de frente. ................................ 50

Capítulo 3 – Transcrições, Textualizações e Transcriações. .................................................... 55

Transcrição – Entrevista colaborador Pedro – linguagem teatro/artes plásticas -

Primeira Entrevista. ................................................................................................................. 57

Textualização Colaborador Pedro ........................................................................................... 81

Transcriação Colaborador Pedro ............................................................................................. 93

Transcrição – Entrevista Rogério – linguagem graffiti - Segunda Entrevista. ......................... 96

Textualização – Colaborador Rogério ................................................................................... 103

Transcriação - Colaborador Rogério ...................................................................................... 108

Transcrição – Entrevista colaboradora Camila – linguagem teatro - Terceira Entrevista. .... 110

Textualização – Colaboradora Camila ................................................................................... 118

Transcriação – Colaboradora Camila..................................................................................... 123

Transcrição – Entrevista colaboradora Thalita – linguagem literatura marginal -

Quarta Entrevista. ................................................................................................................. 125

Textualização Colaboradora Thalita ...................................................................................... 147

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Transcriação Colaboradora Thalita ....................................................................................... 162

Transcrição – Entrevista colaboradora Beatriz – linguagem artes plásticas – Quinta Entrevista.

............................................................................................................................................... 164

Textualização - Colaboradora Beatriz ................................................................................... 185

Transcriação - Colaboradora: Beatriz .................................................................................... 198

Capítulo 4 – Potências. ........................................................................................................... 201

4.1 – O oralista apicultor ....................................................................................................... 201

Interpretação das entrevistas ......................................................................................................... 203

4.2 A Arte na Vida.................................................................................................................. 204

4.3- Tornar-se Arte Educador ................................................................................................ 208

4.3.1 Thalita .................................................................................................................................... 208

4.3.2 - Pedro ................................................................................................................................... 209

4.4 Formações múltiplas ....................................................................................................... 211

4.5 - Existe potência na arte encarcerada? ........................................................................... 211

Cercados por todos os lados: vidas potentes criam seus caminhos. ....................................... 218

Referências Bibliográficas ...................................................................................................... 220

Anexos .................................................................................................................................... 223

Memorial ................................................................................................................................ 224

Carta de Cessão ...................................................................................................................... 233

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Introdução

A ansiedade era como uma avalanche. Meados de Setembro do ano de 2012 faz

emergir lembranças díspares. O início de um novo trabalho como Coordenador Regional no

Projeto Arteiros que atua com arte e cultura dentro de unidades da Fundação CASA entoa

alegria com a nova conquista e ao mesmo tempo faz sentir um frio na espinha com a ideia de

trabalhar com adolescentes que cumprem medida sócio-educativa na Fundação CASA.

As noites intercaladas entre olhos estalados e pesadelos confirmavam o que eu

resistia em admitir, estava com medo! Por mais que já tivesse experiência como educador

social, lutando para não reproduzir estigmas e preconceitos em relação às situações de

pobreza, à juventude e aos jovens no crime organizado, eu nunca havia entrado em uma

Fundação CASA ou em uma penitenciária, e toda esta mobilização interna confirmara o papel

da construção de um imaginário que agora eu reproduzia, o jovem infrator é perigoso e

violento, temos que isolá-los e ter cuidado.

Minha função como Coordenador Regional consistia em coordenar uma equipe de

doze Arte Educadores de diversas linguagens artísticas que desenvolviam atividades de arte e

cultura dentro de seis unidades da DRL (Divisão Regional do Litoral), eram elas: Guarujá,

Santos, São Vicente, Praia Grande I e II e Mongaguá.

No meu primeiro dia visitando uma Fundação CASA do litoral sul, um outro

coordenador regional me acompanhou, descemos para a baixada e fomos direto para a

unidade de São Vicente. Como a maioria das unidades desta região, o isolamento geográfico é

norma, com exceção da unidade do Guarujá, todas as outras estão localizadas em áreas

afastadas. O trajeto foi claro na mensagem, acabando a serra, viramos a direita, passamos o

CDP1. Um lixão lotado de urubus fazia a recepção seguida de um grande paredão cinza,

chegamos. Nada é por acaso.

Da porta de entrada até a oficina de arte e cultura, uma série de normas incide

sobre seu corpo. Primeiro, a identificação na guarita com documento permite a entrada em um

pequeno corredor que dará em outra pesada porta de ferro, ao passa-la um profissional

responsável pela segurança irá analisar seus pertences, abrir mochila, verificar se está com

celular ou qualquer aparelho de comunicação, até enfim chegar na conhecida “revista” que se

1 Centro de Detenção Provisória.

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foi constrangedora para nós coordenadores de uma ONG, imagine nos finais de semana para

os familiares dos adolescentes, que o digam as mães de Maio2.

Após estes procedimentos iniciais, seguimos por um longo e largo corredor aberto

até a parte central da unidade que aloja os funcionários em setores, no nosso caso fomos à sala

da coordenação pedagógica. Entre apresentações e conversas nos encaminhamos rápido para

o local onde os adolescentes estavam fazendo as atividades. Nesta unidade havia três módulos

de internação, um provisório, e dois de internação sendo um deles de reincidentes.

Em cada entrada de módulo tem um segurança que autoriza sua entrada

verificando seu nome e os materiais que você porta. Autorização dada, abriu-se a grade e você

fica em uma espécie de gaiola, enquanto não fecha a grade nas suas costas a grade da frente

não abre. Tenso. Entramos no módulo e estava tendo atividade de capoeira.

O outro Coordenador Regional foi me apresentando para todos, inclusive para os

adolescentes e pouco a pouco o gelo inicial foi se dissipando nos toques do berimbau,

obviamente ainda não estava totalmente confortável, honestamente, em dois anos e meio,

nunca estive, barras de ferro e altos muros de concreto não fazem esquecer o lugar em que se

está.

O cotidiano do trabalho foi permitindo a diminuição da adrenalina e

potencializando a capacidade de observação; afinal como funciona a Fundação CASA? Todas

são iguais? Como estão acontecendo as atividades de arte e cultura? Os adolescentes gostam?

O que provoca neles? Foram perguntas iniciais que povoaram meus pensamentos.

Minha rotina era clara, tecnicamente tinha a obrigação de visitar cada unidade

pelo menos uma vez ao mês, acompanhar as oficinas de arte e cultura, conversar com os Arte

Educadores e alinhar o que era preciso com os coordenadores pedagógicos de cada lugar,

porém entendíamos que era muito pouco para conseguir estar próximo da equipe e conseguir

dar qualidade ao trabalho, sendo assim, toda semana estava no litoral o que resultava em duas

ou três visitas por unidade no mês.

Não tem como passar sem impactar. Estava com o Arte Educador na porta da sala

aguardando os adolescentes chegarem para a oficina de arte e cultura, no final do corredor

dois agentes sócio educativos organizavam uma fila indiana, de longe uma massa uniforme se

aproximava, e, na medida em que avançava e passava por algum funcionário ouvia-se em

vários tons “licença Senhor” ou “licença Senhora”, todos de cabeça baixa, raspada, mãos para

2 Movimento que teve sua origem após a morte de 564 pessoas, grande parte jovens negros da periferia, entre os

dias 12 e 20 de Maio de 2006 em todo o Estado de São Paulo. Várias organizações apontam o caso como uma

retaliação aos ataques do PCC no mesmo ano. Esta chacina ficou conhecida como Crimes de Maio, as mães dos

falecidos se uniram e até hoje lutam contra os crimes do Estado brasileiro.

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trás , vestidos com um ocre neutro na calça de moletom , branco na camiseta já gasta de uso e

um chinelo estilo havaianas azul e branco. Uma massa uniforme sem identidade, aos meus

olhos era uma cena difícil de digerir, a norma atravessa o corpo e o reprime, o impressionante

é que são regras da CASA.

Dali em diante um largo campo passa paulatinamente a ser descoberto, o

intramuros da Fundação CASA reserva cenas que se encerram ali, de fora só temos notícia

quando algum adolescente ganha uma olimpíada de matemática ou quando o telhado está

ocupado e a casa virada3.

É nesta abertura que se começou a desenhar em minha cabeça um projeto de

pesquisa de Mestrado. Como estava trabalhando com arte e cultura, em principio o que me

incomodava era como garantir o direito a cultura dentro de um espaço marcado por tantas

contradições, desde um simples desenho de algum adolescente, rasgado pelo funcionário que

o considerou ofensivo, até espancamentos, fugas e rebeliões.

Alterando a rota, passei a observar mais atentamente a arte como espaço de

resistência, tanto no sentido de oposição a um sistema opressivo como no sentido de (re)

existir para os adolescentes que vivem a experiência da Fundação CASA.

Já em contornos finais defini como objeto de pesquisa a história oral de vida de

alguns Arte Educadores que são foco deste processo todo. Pergunto de que maneira a arte

poderia ser uma forma de resistência na história desses profissionais e como essa resistência

se refletiria tanto na vida dos adolescentes como no cotidiano da Fundação CASA.

Para apresentar esta reflexão escolhi dividir a dissertação em quatro capítulos,

sendo que, no primeiro, serão abordados temas que incidem diretamente sobre as relações

entre arte, educação e Fundação CASA, tais como adolescências, juventudes, a história da

Fundação, mudanças nas legislações sobre infância, adolescência e a arte na Fundação CASA.

Este cenário é essencial para que não haja uma abordagem que isole a Fundação

CASA das tramas de nossa sociedade. Autores como Helena Abramo, Michel Foucault e

Fábio Mallart irão nos ajudar a pensar estes processos nesta primeira parte.

O segundo capítulo coloca em cena o cerne desta pesquisa, a utilização

metodológica da História Oral de Vida. A trilha até chegar às entrevistas com os Arte

Educadores foi aparecendo na medida em que me aproximei de autores como José Carlos

Sebe Bom Meihy e que me levaram à elaboração de um projeto fundamentado na História

Oral. A partir desse projeto foi possível realizar os encontros e as entrevistas com os Arte

3 Situação em que os jovens internos provocam rebeliões.

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Educadores. Suas histórias aparecem nesta dissertação transcritas, textualizadas e contadas de

forma transcriada, culminando em diálogos com diversos autores.

Contar esta trajetória busca aproximar o leitor dos processos e relações que

envolvem a pesquisa, entendendo os caminhos escolhidos pelo pesquisador, não de forma

linear, mas entre percalços e aprendizados. A metodologia da História Oral de Vida é

permeada de relações, afetos e parcerias. Colaboradores e pesquisador não entram em cena

como objetos e cientista, e aproximar os leitores desta perspectiva é crucial.

No terceiro capítulo aparecem as transcrições, textualizações das entrevistas com

os colaboradores e suas respectivas transcriações, sendo uma parte do resultado que se iniciou

com o projeto de História Oral explicitado no capítulo dois.

É aqui que a narrativa dos colaboradores aparece, o precioso momento em que

escolhem nos contar um pouco sobre suas histórias de vida.

No quarto e último capítulo, a análise das entrevistas atrelada aos objetivos desta

dissertação ganham contornos e diálogos. A potência da arte na vida dos colaboradores e seus

processos formativos são temas que permeiam estas reflexões. Alguns autores auxiliam nesta

empreitada, são eles Peter Pál Pelbart e Michel Foucault.

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Capítulo 1: Fundação CASA: O que os muros escondem?

1.1 – De qual juventude estamos falando?

O ano de 2015 foi intenso no que tange ao debate e às manifestações em prol dos

direitos das crianças e dos adolescentes. A comemoração dos 25 anos do Estatuto da Criança

e do Adolescente impulsionou eventos, palestras e congressos que objetivaram refletir sobre

os avanços e retrocessos desde sua criação em 1990.

No mesmo ano, curiosamente, houve também grandes movimentações por conta

da PEC 171/93 que propõe a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de

crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte e que já foi aprovada

pela Câmara.

Estes dois acontecimentos direcionaram os holofotes para a adolescência e

juventude na medida em que a redução da maioridade penal incide verticalmente sobre este

período da vida, propondo em caso de infração uma punição fora da condição especial de

proteção descrita no ECA e trazendo para a adolescência uma punição de adulto.

Adolescência e juventude no Brasil são conceitos que tem propiciado intenso

debate, envolvendo diversos atores como movimentos sociais, organizações não

governamentais, universidades dentre outros, o que demonstra ser um campo de disputa

aberto e em negociação.

Pontos de encontro fazem estes conceitos se misturarem e por vezes se

atropelarem, pois, enquanto o Estatuto da Criança e da Adolescência possui uma definição

etária para a adolescência dos 12 aos 18 anos, fortalecida por órgãos do sistema de garantia de

direitos, a juventude, no Brasil, segundo o Estatuto da Juventude, estaria na faixa etária entre

os 15 e 29 anos4. Em outros países, entretanto, existe uma maior elasticidade nestas faixas,

tanto para mais como para menos.

Como este trabalho dialoga com jovens que estão cumprindo medida sócio

educativa na Fundação CASA, a faixa etária abarcada vai dos 12 aos 21 anos, atingindo assim

tanto a adolescência como a juventude, neste sentido, utilizaremos, sem desconsiderar as

4 O Estatuto da Juventude instituído pela lei 12.852 de 05 de Agosto de 2013, define no art. 1 inciso 1 que jovens

são pessoas que estão na faixa de quinze a vinte e nove anos. No inciso 2 é colocado que na faixa etária de

quinze a dezoito anos aplica-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, se não houver conflitos, o Estatuto da

Juventude também aplica-se a esta faixa.

ESTATUTO DA JUVENTUDE disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-

2014/2013/Lei/L12852.htm Acesso em: 28/12/2016

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lacunas possíveis, um conceito de juventude explicitado no documento de conclusão do

Projeto Juventude:

A condição juvenil é dada pelo fato de os indivíduos estarem vivendo um período

específico do ciclo de vida, num determinado momento histórico e cenário cultural.

Este período corresponde, idealmente, ao tempo em que se completa a formação

física, intelectual, psíquica, social e cultural, processando-se a passagem da condição

de dependência para a de autonomia em relação à família de origem. A pessoa torna-

se capaz de produzir (trabalhar), reproduzir-se (ter filhos e criá-los), manter-se e

prover a outros, participar plenamente da vida social, com todos os direitos e

responsabilidades.5

Esta definição serve como ponto de partida, no entanto, é necessário realizar

alguns alargamentos e contextualizações para não tangenciarmos com a definição da

sociologia funcionalista6.

Para Helena Wendel Abramo (ABRAMO, 2005, p. 20-23) quatro grandes leituras

da juventude coexistem no Brasil, e quando apontamos leituras, não estamos nos referindo

apenas ao campo teórico, elas estão diretamente implicadas desde uma simples ação de uma

assistente social dentro de um CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) ou de um

professor dentro de uma escola, até diretrizes gerais de políticas públicas, são elas: -

juventude como um período preparatório, - como etapa problemática, - o jovem como ator

estratégico do desenvolvimento e - juventude como cidadã e sujeito de direitos.

Segundo a autora, o período preparatório é marcado pela ideia de transição para o

mundo adulto, gerando a necessidade de ações voltadas para esta preparação, para a vivência

desta moratória, sendo que comumente os programas destinados a este público tendem a

homogeneizá-lo, desconsiderando as distintas formas de se viver este ciclo da vida, gerando

exclusão.

Já a juventude como etapa problemática aborda a perspectiva do sujeito juvenil

como ameaça a ordem social, aquele com comportamento de risco e transgressão. Esta visão

trouxe uma gama de ações voltadas à prevenção da violência, sempre a partir de um ângulo

estigmatizante da juventude.

Em outro sentido a leitura do jovem como ator estratégico do desenvolvimento

entende a juventude como “capital humano e social para enfrentar os problemas de exclusão

social aguda que ameaçam grandes contingentes de jovens e atualizar as sociedades nacionais

5 PROJETO JUVENTUDE- Documento de conclusão. Disponível em

https://registrojuventude.files.wordpress.com/2011/02/dicas-projeto-juventude-final-1.pdf. P.10. Acessado em:

30/12/2016. 6 A sociologia funcionalista segundo Maria Virgínia de Freitas coloca como condição para o fim da juventude

cinco dimensões sendo elas, terminar os estudos, viver do próprio trabalho, sair da casa dos pais e tornar-se

responsável por uma moradia, casar e ter filhos. (FREITAS, 2005, p.7)

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para as exigências de desenvolvimento colocadas pelos novos padrões mundiais” (ABRAMO,

2005, p.21).

A ótica aqui não é mais a de vulnerabilidades e sim de contribuição, colocando

nestes jovens o peso para a resolução de problemas de suas comunidades e sociedades, não se

questionando qual modelo de desenvolvimento estes jovens estariam “ajudando” a construir.

Por fim, a ideia de juventude cidadã como sujeito de direitos entende este

processo como etapa singular do desenvolvimento no qual os jovens são sujeitos de direitos e

deixam de ser definidos por desvios ou incompletudes. Neste sentido, a juventude deixa de ser

estigmatizada na medida em que o foco está em construir politicas que considerem os jovens

como sujeitos integrais.

Essa trajetória de leituras sobre a juventude que Helena Abramo apresenta foi

trazida aqui na tentativa de elucidar modelos que coexistem e que estão nas praticas

cotidianas daqueles que estão desenvolvendo ações diretas com este público. É importante

compreendermos que a juventude é uma construção social e cultural não passando por uma

verdade absoluta e inquestionável, são leituras politicas que balizam a formação dos conceitos

relacionados a esta faixa etária e que incidem diretamente nas politicas publicas

desenvolvidas para atendê-la:

A definição do tempo e duração dos conteúdos e significados sociais desses

processos se modificam de sociedade para sociedade e, na mesma sociedade, ao

longo do tempo e através de suas divisões internas. Além disso, é somente em

algumas formações sociais que a juventude configura-se como um período

destacado, ou seja, aparece como uma categoria com visibilidade social (ABRAMO,

1996, p.13).

Um avanço essencial, quando falamos de juventude, está na transposição de uma

perspectiva que compreende os jovens como sendo todos iguais, vivenciando esta fase da vida

de maneira uniforme, para um olhar heterogêneo, plural, concebendo a vivência juvenil não

somente atrelada à idade ou as condições de autonomia, mas principalmente ao contexto, à

classe social, à cultura. Neste sentido, Oscar Dávila Leon considera que:

a partir daí, já não se trata de novidade, mas sim de uma necessidade, pluralizar o

momento de referir-nos a estes coletivos sociais, isto é, a necessidade de falar e

conceber diferentes “adolescências” e “juventudes”, em um sentido amplo das

heterogeneidades que se possam apresentar e visualizar entre adolescentes e jovens

(LEÓN, 2005, p.10).

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É a partir da marcação desta pluralidade que temos que nos perguntar de qual

juventude estamos falando quando nos referimos aos jovens que estão cumprindo medida

socioeducativa dentro da Fundação CASA. Afinal, quem são estes jovens?

O primeiro parâmetro buscado foi uma pesquisa da própria Fundação CASA,

infelizmente apenas uma foi encontrada mas que, apesar de ter sido realizada em 2006, poderá

nos oferecer algumas pistas para compreendermos o que se passa com essa juventude

encarcerada.

Segundo o relatório interno da FEBEM7 de Maio de 2006, foram realizadas 1190

entrevistas, sendo 96% homens (dado que se confirma até hoje segundo os boletins da

Fundação), deste universo apenas 15% chegaram no Ensino Médio, mais de 50% moravam

apenas com a mãe a qual, como chefe da casa, supria as necessidades através de “trabalhos

não qualificados”. A pesquisa apresenta com base na Classificação Brasileira de Ocupação

(CBO) que 57% das mães dos jovens internos são trabalhadoras não qualificadas, 18% donas

de casa, 6% agricultores e o restante distribuído em outras profissões que não chegam a 5% de

representação.

Como autoclassificação socioeconômica, apenas 1% da classe alta, 2% média alta,

28% média, 31% média baixa, 33% pobre e 4% muito pobre.

Por fim, dentro do nosso recorte, a autoclassificação étnica, nessa pesquisa

demonstrou que 46% se consideravam pardos, 31% brancos, 21% negros e 3% entre

indígenas, amarelos e outros.

Uma pesquisa8 atual de menor escala realizada este ano pela Promotoria da

Infância e Juventude de São José dos Campos baseada no perfil de 100 jovens internos da

Fundação CASA que cometeram infração grave apontou para números semelhantes ao

relatório da FEBEM de 2006.

Dentro deste universo pesquisado, 69% são afrodescentes, 40% das mães são

donas de casa, 21% diaristas, 12% auxiliar de cozinha e 9% estão presas. 100% delas não tem

curso superior. Outros dados importantes são que 98% nunca tiveram contato com ensino

privado e 99% dependem do SUS.

7 FUNDAÇÃO CASA. Pesquisa sobre o perfil dos adolescentes e dos servidores da Fundação CASA. Relatório

final de pesquisa. São Paulo: Fundação CASA/Instituto UNIEMP, 2006. Disponível em:

http://www.febem.sp.gov.br/site/paginas.php?sess=60 . Acesso em:18/12/2016. 8 MOTTA, Camila. Promotoria traça perfil de jovens internos da Fundação CASA, 2016. Disponível em:

http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2016/11/promotoria-traca-perfil-de-jovens-internos-da-

fundacao-casa.html. Acesso em: 29/12/2016

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Infelizmente não existe uma pesquisa pública atual feita pela Fundação CASA e é

de se pensar nas causas desta lacuna, no entanto, estes dois relatórios citados nos dão boas

pistas sobre a juventude que cumpre medida socioeducativa de internação.

A classe social economicamente baixa é um primeiro fator possível de ser

avaliado na medida em que quase 70% se autodeclarou entre classe média baixa, pobre ou

muito pobre, além disto, para reforçar este quadro, as mães que em mais de 50% aparecem

como chefe da casa, possuem trabalhos como diaristas, auxiliar de cozinha ou donas de casa,

o que coloca a renda familiar em uma escala baixa.

Na reportagem sobre a segunda pesquisa, o promotor da Vara da Infância e

Juventude João Marcos de Costa Paiva ratifica o fato quando diz:

Não tem como negar que esse serviço de reinserção social de adolescentes em conflitos

com a lei é quase que absolutamente prestado para pessoas pobres, raríssimo alguém com

nível socioeconômico mais robusto ser atendido pelos programas, que são a internação e a

semiliberdade (MOTTA,2016).

Outro ponto importante que se destaca nestas pesquisas é relacionado à etnia, pois

se em 2006, apenas 21% dos jovens na Fundação CASA se consideravam negros e 46%

pardos, na segunda pesquisa, o universo dos que afirmavam ser negros atingiu 69%. As

pesquisas apontam para uma situação já constatada, ou seja, a juventude pobre e negra está

em sua maioria dentro da Fundação CASA.

E, do que é acusada essa juventude? Ao contrário do que se veicula na mídia,

sedenta por ibope, esta juventude não é apenas infratora ela também é atingida pela violência,

a ponto de estarmos vivendo um genocídio da juventude no país.

Segundo o mapa da violência de 20169 os homicídios por arma de fogo no país

estão em número crescente desde 1980 até 2014 quando houve o último balanço que também

apresentou os seguintes dados: 94,4% das vítimas são do sexo masculino, quase 60% são

jovens com idade entre 15 e 29 anos e a taxa de vitimização negra10

é de 158,9%, isto é,

morrem proporcionalmente 158,9% negros a mais do que brancos.

1.2 – A “caminhada” da Fundação.

A história da instituição Fundação CASA é longa e polêmica, há décadas estes

espaços são o destino daqueles que não se encaixam na sociedade, que estão à margem. Nesta

9 WAISELFISZ, J.J. Mapa da Violência 2016: Mortes Matadas por Arma de Fogo. Rio de Janeiro,

FLACSO/CEBELA, 2016. 10

A definição dada por Julio Jacobo Waiselfisz é: “Entendemos por vitimização negra a relação entre as taxas de

Homicídios por Armas de Fogo de brancos e as taxas de Homicídios por Armas de Fogo de negros, cujo índice

positivo indica o percentual (%) a mais de mortes negras sobre as brancas; ou o percentual (%) a mais de mortes

de brancos, quando o índice é negativo”. (WAISELFISZ, 2016, p.60).

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trajetória, leis, conceitos, interpretações, pessoas, lugares dialogaram constantemente com

esta instituição. Mas, entre rupturas e permanências, o que há por detrás dos muros da

Fundação CASA?

Três grandes marcos legais determinaram a trajetória da Fundação CASA da

primeira metade do século XX até hoje, e seus referenciais não se apagaram na medida em

que coexistem até hoje nas práticas cotidianas das unidades de internação.

O primeiro deles foi o Código de Menores de 1927, resultado de um movimento

de advogados, juristas e educadores em defesa dos delinquentes e abandonados. O primeiro

juiz de menores do Brasil, Mello Mattos, foi o responsável pela formulação do código, tanto

que ele também é conhecido como Código Mello Mattos.

Até 1920 não tinha no Brasil um código especifico para esta faixa etária, sendo o

código criminal do império de 1890 a referencia para legislar sobre o menor que havia

cometido algum delito. Segundo Marcos César Alvarez (ALVAREZ, 1989), com a criação do

Código de Menores modifica-se o olhar para o crime praticado por este público, uma vez que

abandona-se a ideia exclusiva de punição e repressão, e passa-se a combater as causas que

levam ao crime, eliminando-se, dessa forma, a responsabilização do menor pelos atos

cometidos.

É nesta passagem que se começa a estruturar a noção de que a delinquência é

resultado de carências materiais e morais, causadas pela pobreza e desorganização familiar,

por isto a não responsabilização do menor, como comenta Bruna Gisi Almeida:

Cabe ressaltar que neste momento histórico em que se identifica o surgimento do

menor enquanto categoria jurídico e social (LONDOÑO, 1996; ALVAREZ ,1989),

vemos ser inaugurada também duas ideias que, de uma forma ou de outra, fundam a

legislação sobre a infância e adolescência infratora até hoje. Por um lado, a

substituição das praticas punitivas pelas praticas pedagógicas e tutelares como

resposta aos delitos de crianças e adolescentes; e, por outro (e diretamente

relacionado com aquela), a associação entre delinquência e carências materiais e

abandono (ALMEIDA, 2010, p.76-77).

É dentro da perspectiva do Código de Menores de 1927 que as primeiras

estruturas do que hoje conhecemos como Fundação CASA surgem e começam a operar. O

Serviço de Assistência ao Menor – SAM, criado em 1941 pelo juizado de menores foi um

serviço federal que atuava na fiscalização dos internatos e educandários privados que

abrigavam os menores da época.

Alguns anos depois, em 1964 com a lei 4.513, cria-se a política do bem estar do

menor (PNBEM) e com ela a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor – FUNABEM. Em

1973, São Paulo cria a Fundação Paulista de Promoção Social do Menor, a Pró Menor que já

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em 1976 se tornou Fundação Estadual do Bem Estar do Menor de São Paulo, mais conhecida

como FEBEM.

Em 1979, foi criado outro Código de Menores que manteve a mesma base do

primeiro, sendo então fundada a Doutrina de Situação Irregular, tipificando as situações

irregulares nas quais estes jovens se encontravam, sendo elas: 1. Privado de condições

essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória 2. Vítima de maus tratos ou

castigos imoderados 3. Em perigo moral 4. Privado de representação ou assistência legal 5.

Com desvio de conduta e 6. Autor de ato infracional.11

A família neste caso era a grande responsável pela situação dos menores, logo a

intervenção do Estado nos casos acima era essencial na medida em que tirava o menor do

ambiente que o estava prejudicando e o colocava em um espaço de ressocialização,

lembrando que nesta perspectiva, a criança abandonada ou autora de ato infracional ocupava o

mesmo espaço de ressocialização.

O avanço democrático após a ditadura militar no Brasil propiciou um cenário de

disputas políticas, inclusive acerca da infância e da adolescência. Uma grande conquista deste

processo foi a Constituição Federal de 1988 e, especificamente para este publico o art. 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao

jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,

ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL,

1988).

É a partir deste artigo que poucos anos depois, em Julho de 1990, se regulamenta

o Estatuto da Criança e do Adolescente, afirmando o direito das crianças e dos adolescentes

através da Doutrina de Proteção Integral.

O ECA ao ser estabelecido revoga o Código de Menores de 1979 promovendo

uma ruptura de principio ao abarcar todas as crianças e adolescentes ao invés de apenas

aqueles que se encontravam em “situação irregular”, são sujeitos de direitos em condição

especial de desenvolvimento, sendo, como diz o artigo 412

,dever da família, da comunidade,

da sociedade em geral e do poder público, assegurar com absoluta prioridade os direitos.

Com este novo estatuto, os adolescentes passam a ser responsabilizados pelos seus

atos na medida em que são cidadãos com direitos e deveres, saindo da não responsabilização

11

A lei do Código de Menores de 1979 pode ser acessada em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-

1979/lei-6697-10-outubro-1979-365840-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em 26/12/2016. 12

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em: 27/12/2016.

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anteriormente vigente pelo Código de Menores, além disto, a internação passa a ser destinada

apenas aos adolescentes que tenham cometido ato infracional, deixando parcialmente de

penalizar a infância pobre como ocorria nos Códigos de Menores.

Surpreendentemente, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do

Adolescente não provocaram uma mudança imediata na Fundação do Bem Estar do Menor de

São Paulo – FEBEM, que continuava como em toda sua história a acumular denúncias de

maus tratos e violência contra os internos, além de rebeliões e fugas constantes.

Diante desta lacuna, de 2002 a 2004, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança

e do Adolescente – CONANDA e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos articularam

democraticamente diversos atores do Sistema de Garantia de Direitos através de encontros

regionais e nacionais para a criação da proposta do Sistema Nacional de Atendimento

Socioeducativo – SINASE que foi aprovado como lei apenas em Janeiro de 2012.

Somente no ano de 2006, através da lei 12.469, começa uma mudança dentro do

sistema de medida sócio educativa de internação em resposta ao Estatuto da Criança e do

Adolescente quando a FEBEM passa a ser chamada de Fundação Centro de Atendimento

Socioeducativo ao Adolescente – Fundação CASA-SP. Como projeto institucional, o processo

de municipalização e descentralização do atendimento ganhou prioridade enquanto que os

grandes complexos deveriam ser gradualmente desativados. Porém, até 2013, somente o

complexo de Tatuapé encerrou suas atividades.

Atualmente, as unidades de internação da Fundação CASA já estão em grande

parte descentralizadas, havendo diversas unidades por todo o Estado de São Paulo. Apesar de

haver diversas referências históricas e legais acerca da juventude, dos direitos humanos, das

medidas socioeducativas (principalmente a de internação), é no dia a dia de cada unidade que:

Essas relações se redefinem o tempo todo nos embates e nas circunstancias

cotidianas da gestão tensa e conflituosa desses lugares, de tal modo que – essa a

hipótese central – é o próprio universo institucional que se reordena nas suas

práticas e nos seus agenciamentos internos, assumindo figurações sociais distintas

conforme se deslocam os jogos de poder que aí se processam (...) os dispositivos de

gestão desses lugares configuram-se, na verdade, como campos de disputa, por

vezes verdadeiros campos de batalha nos quais se processam embates, tensões,

conflitos surdos ou abertos, mas também acomodações feitas de acordos implícitos

ou explicitamente negociados (TELLES. 2014, p.08).

Quando a Fundação CASA é alvo de estudos acadêmicos, comumente dois

autores se destacam como referência teórica, sendo eles Erving Goffman e Michel Foucault.

No caso desta dissertação, para nos auxiliar na compreensão do universo da Fundação CASA

utilizaremos os estudos de Michel Foucault uma vez que nos interessa perceber como esse

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modelo fechado de reclusão utiliza formas de punição que ao controlarem as operações do

corpo nos mínimos detalhes, disciplinando-os, também produzem resistências. Obviamente

que não desconsideramos a importância dos estudos de Erving Goffman, no entanto, como

este autor centraliza sua análise nas interações face a face13

e nas influências que uma

“instituição total”14

exerce sobre as relações entre os indivíduos que lá estão, optamos pelo

referencial foucaultiano que irá nos ajudar a compreender como em meio à violência exercida

e padecida pelos jovens, dentro e fora das unidades pesquisadas, modos de resistência são

construídos .

Nossa abordagem sobre adolescentes autores de ato infracional, a situação da

juventude pobre e negra que vive no Brasil, a história da Fundação CASA e as leis que

incidiram sobre ela durante o século XX, irão ao encontro da perspectiva teórica de Michel

Foucault, uma vez que:

Nesta sociedade panóptica, cuja defesa onipresente é o encarceramento, o

delinquente não está fora da lei; mas desde o início, dentro dela, na própria essência

da lei ou pelo menos bem no meio desses mecanismos que fazem passar

insensivelmente da disciplina à lei, do desvio à infração. Se é verdade que a lei

sanciona a delinquência, esta no essencial é fabricada num encarceramento e por um

encarceramento que a prisão no fim das contas continua por sua vez. A prisão é

apenas a continuação natural, nada mais que um grau superior dessa hierarquia

percorrida passo a passo. O delinquente é um produto da instituição. “Não admira,

pois, que, numa proporção considerável, a biografia dos condenados passe por todos

esses mecanismos e estabelecimentos dos quais fingimos crer que se destinavam a

evitar a prisão (FOUCAULT,1987, p.249).

A analítica de poder elaborada por Foucault é central para aprofundarmos o

entendimento do papel da Fundação CASA dentro da sociedade e de como o cotidiano de

cada unidade esta permeado por tensões e disputas, nos dando uma boa lente para a análise da

possibilidade da arte e cultura como direito dentro destes espaços.

Na contramão de muitos teóricos, Foucault buscou analisar aquilo que faz emergir

o que chamamos de poder. Percorrendo práticas dentro de instituições educacionais, penais,

militares dentre outras, o autor evidenciou o modo como se exerce o poder, ou melhor, as

relações de poder,

13

O texto de Almeida (2010, p. 62) sugere que a preocupação central de Goffman em relação às instituições de

enclausuramento deve-se ao fato delas causarem modificações no “comportamento do indivíduo através da

transformação da situação em que o indivíduo interage normalmente”. 14

Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de

indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,

levam uma vida fechada e formalmente administrada. GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos.

São Paulo: Perspectiva, 2010. P.11

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O poder, pelo contrário, não é algo singular nem bipolar, mas múltiplo. Trata-se de

um jogo de forças. A relação de forças que Foucault chama “poder” excede a

violência. Esta está dirigida a objetos aos quais destrói ou muda, enquanto as forças

têm como objetos outras forças. Seu ser é a relação. Pode-se conceber uma lista

(incompleta) de relações de poder (ou forças) que compreender ações sobre ações:

incitar, induzir, desviar, facilitar, dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos

prováveis. Essas são as categoriais do poder. As relações de poder caracterizam-se

pela capacidade de uns para poder “conduzir” as ações de outros. É uma relação

entre ações, entre sujeitos de ação (DIAZ, 2012, p.120).

Dentro de cada unidade da Fundação CASA, a todo instante este jogo de forças

múltiplas opera dentro destes espaços envolvendo todos os atores. Não se trata de uma relação

vertical, autoritária e unilateral na qual o corpo de funcionários domina os adolescentes

internos, neste sentido não há um estado de dominação15

e sim uma teia de feixes de poder

sutis no dia a dia que vai aparecendo na medida em que conhecemos mais este espaço.

O livro de Fábio Mallart “Cadeias Dominadas”16

coloca com clareza os termos

destas relações de poder encontradas dentro das unidades da Fundação CASA. Trabalhando

como Arte Educador em várias unidades da cidade de São Paulo, e em constante contato com

os adolescentes internos, o autor apresenta as configurações que as unidades geram a partir

das relações estabelecidas dentro de um período. Ou seja, quando uma unidade está

funcionando dentro das normas esperadas pela Fundação CASA, temos o que os adolescentes

consideram como “unidade na mão dos funça”; unidade meio a meio, quando a unidade não

funciona nem da maneira como os adolescentes querem, nem como os funcionários querem e

por fim as unidades dominadas, quando a unidade funciona sobre as regras dos adolescentes.

Estas relações não são estáticas, estão em constante movimento, são campos em

constante disputa, uma disputa cotidiana e, na medida em que entram e saem alguns atores, a

configuração muda.

Tive a oportunidade de visitar várias unidades da Fundação CASA, na realidade

todas as unidades de gestão plenas da Divisão Regional do Litoral (DRL)17

, e vi que a

15

“Quando um indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo de relações de poder, a torná-las

imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade do movimento – por instrumentos que tanto podem ser

econômicos quanto políticos ou militares -, estamos diante do que se pode chamar de um estado de dominação.”

FOUCAULT, Michel. 1984 – A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: FOUCAULT, Michel.

Ditos e escritos, Volume V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. P. 266 16

MALLART, Fábio. Cadeias dominadas: a Fundação CASA, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos.

São Paulo: Terceiro Nome, 2014. 17

Unidades de gestão plenas são aquelas em que todos os cargos, exceto professores da educação formal, arte e

cultura e profissionalizante, são ocupados por funcionários concursados pelo Estado. Na gestão compartilhada,

apenas os cargos de diretoria da unidade, encarregado técnico, apoio administrativo e os agentes socioeducativos

são concursados. Na Divisão Regional do Litoral as unidades de gestão plena são:.Santo André I e II, Mauá, São

Bernardo I e II, Santos, Guarujá, Mongaguá, São Vicente e Praia Grande I e II.

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Fundação CASA, como aparelho de uma sociedade disciplinar, opera técnicas disciplinares

visando docilização, sujeição e normalização dos corpos.

Em uma visita a uma das “Casas” estava no setor pedagógico quando um

adolescente estava entrando na unidade com o veículo oficial da Fundação, após uma breve

conversa com um agente de segurança o adolescente começou a se deslocar em direção ao

portão de entrada e neste trajeto passou por outro funcionário, imediatamente o agente de

segurança ordenou que o adolescente voltasse, passasse pelo funcionário novamente e falasse

“licença Sr”. Na sequencia havia uma funcionaria e o adolescente passou sem falar nada,

outra vez o agente de segurança ordenou que o adolescente voltasse até o início, passasse

pelos dois funcionários dizendo “licença Sr” e depois “Licença Sra”.

Este é o início de uma sujeição aplicada cotidianamente, como já apontado acima.

Os internos precisam andar com as mãos para trás, cabeça baixa, calados e em fila indiana

quando estão se deslocando para as atividades ou voltando para os quartos, são as “medidas

de segurança” que buscam dominar o corpo.

Este modelo funciona quando a casa está nas mãos dos “funça”, como dizem os

internos, porém como estas relações estão em constante atrito as mudanças ocorrem. Em

outras unidades, por exemplo, os jovens não andam com as mãos para trás, tem liberdade

maior para se deslocar nos corredores da unidade, evidenciando a conquista de espaços e

comportamentos antes proibidos.

Estes são exemplos pequenos que desdobram configurações mais amplas como os

adolescentes organizando quem vai para as atividades, a criação de uma gestão própria

baseada na estrutura do PCC, utilização de roupas do “mundão”, exigindo benefícios do

diretor da unidade, dentre outras.

O jogo de forças não se limita à relação internos versus corpo de funcionários,

muitas vezes existe atrito entre setores como o pedagógico e o de segurança, tendo, por

exemplo, como consequência atraso na organização dos adolescentes (função da segurança)

para iniciar alguma atividade pedagógica.

Neste sentido, Michel Foucault reconhece que o poder tem não somente um papel

repressivo, mas também positivo e produtivo, ou seja, é preciso:

(...) deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ‘ele

exclui’, ‘reprime’ ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o

poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade.

O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção

(FOUCAULT, 1977, p. 172).

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Essa produção aparece no espaço da Fundação CASA na maneira como as

unidades são organizadas, na distribuição e condução das suas atividades cotidianas e,

principalmente, como os indivíduos que lá estão participam das relações de poder e de

resistência dentro da instituição.

1.3 Arte e cultura na Fundação CASA: caminhos possíveis

A arte e cultura dentro da Fundação CASA é um direito garantido pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente e está no art. 94: “As entidades que desenvolvem programas de

internação têm as seguintes obrigações, dentre outras”, enquanto que o inciso XI expressa o

dever do Estado de “propiciar atividades culturais, esportivas e de lazer” (BRASIL, 1990).

Este é apenas o ponto de partida, o marco legal para que seja possível

começarmos a entender como são desenvolvidas as oficinas de arte e cultura dentro da

Fundação CASA. Do ECA até as salas dentro dos centros de atendimentos espalhados por

todo Estado de São Paulo existe uma teia grande de relações.

As oficinas de arte e cultura que são desenvolvidas dentro das unidades plenas da

Fundação CASA no Estado de São Paulo, tem sua execução realizada por quatro ONG´s as

quais, através de edital público, garantem a parceria por cinco anos, sendo possíveis ajustes e

rescisão ano a ano.

Firmadas as parcerias, as organizações não governamentais começaram a executar

as atividades de arte e cultura nos Centros de Atendimento. Quando entrei na ONG, o projeto

já estava sendo executado há alguns anos, logo só tive a experiência do início de uma relação

entre ONG e Fundação CASA quando novos Centros de Atendimento eram inaugurados e eu,

como Coordenador Regional, estabelecia junto com a Coordenação Pedagógica do Centro as

atividades que seriam desenvolvidas.

Mas porque é importante refletir sobre este processo em sua base, em alguns

“inícios”? A intenção ao se pronunciar “arte e cultura na Fundação CASA” remonta em uma

primeira instância, aos parâmetros legais que guiam as atividades realizadas em diversas

cidades, estes alicerces nos ajudariam a entender a complexa relação entre Arte e Fundação

CASA.

Além do Estatuto da Criança e do Adolescente, existe o Caderno de

Superintendência Pedagógica18

que também disserta sobre a arte e cultura e expõe o

18

CASA, Fundação. Superintendência Pedagógica – Educação e Medida Socioeducativa: Conceitos, Diretrizes e

Procedimentos. São Paulo: F. CASA , 2010. Este caderno pode ser encontrado em:

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parâmetro geral de uma definição entendendo que a cultura é “a forma como determinada

sociedade se expressa, como vê o mundo e como se vê. A cultura é construção humana e é

produzida, antes de tudo, em grupo” e na sequencia afirma “a arte, é a forma privilegiada da

experimentação, expressão estética, como forma de construção de conhecimento, elemento de

transformação e transcendência, seja da consciência ou da própria realidade, quando age em

conjunto com outras linguagens” (CASA, 2010, p.39).

Na sequencia, ainda no pequeno trecho destinado a este tema, propõe que é

essencial garantir o acesso a estas atividades sendo elemento chave no processo de

democratização e garantia de direitos, afinal nesta atuação espera-se “a elevação da

autoestima, criatividade, integração, respeito às diferenças, solidariedade, ludicidade,

inclusão, enfim a formação humana em várias dimensões” (CASA, 2010, p.40)

Ainda na esteira dos documentos que entendemos como balizadores para a

garantia deste direito dentro da Fundação CASA, é importante elencar alguns caminhos

abertos pelo SINASE:

A implementação do SINASE objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma

ação socioeducativa sustentada nos princípios dos direitos humanos. Defende, ainda,

a ideia dos alinhamentos conceitual, estratégico e operacional, estruturada,

principalmente, em bases éticas e pedagógicas. (SINASE,2006,p.16)

Nele temos ainda doze diretrizes pedagógicas do atendimento socioeducativo

criados para nortear os serviços que atenderão estes jovens, mas aqui destacaremos apenas

alguns que estão mais diretamente ligados ao desenvolvimento da arte e cultura dentro das

unidades, são eles:

1.Prevalência da ação socioeducativa sobre os aspectos meramente sancionatórios;

4. Respeito à singularidade do adolescente, presença educativa e exemplaridade como

condições necessárias na ação socioeducativa;

5. Exigência e compreensão, enquanto elementos primordiais de reconhecimento e

respeito ao adolescente durante o atendimento socioeducativo;

9. Organização espacial e funcional das Unidades de atendimento socioeducativo que

garantam possibilidades de desenvolvimento pessoal e social para o adolescente.

http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=superintend%C3%AAnciapedag%C3%B3gica&d=17

Acesso em: 02/01/2017.

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25

Até aqui, ECA, SINASE e o Caderno de Superintendência Pedagógica indicam

alguns parâmetros gerais para nortearem a execução das oficinas de arte e cultura

desenvolvidas pelas ONG´s. Em 2014, o novo gerente19

de arte e cultura da Fundação CASA

ao lançar um edital buscou inserir alguns teóricos para aprofundar a visão dos professores em

relação à arte, tais como Georg Lukács e Antônio Cândido, no entanto, essas indicações

acabaram não incidindo diretamente sobre o trabalho das ONG´s.

Por mais que houvesse alguns parâmetros e também tentativas para aprofundar

uma ideia geral sobre arte e cultura, cada ONG tinha uma metodologia de trabalho e um

referencial próprio para realizar as atividades.

Se existe uma autonomia das ONG´s para decidir metodologicamente como serão

realizadas as oficinas desde sua concepção teórica até suas estratégias práticas, cabe indagar

como é organizado o processo das oficinas em várias frentes, como elas são inseridas nos

Centros de Atendimento? Como são contratados os Arte Educadores? Qual é o

acompanhamento feito das atividades? Existe avaliação?

O início de atividades de arte e cultura comumente se dava de duas formas, a

primeira quando um Centro de Atendimento era inaugurado, e a segunda quando um Arte

Educador era desligado da instituição, sendo necessário a reposição do profissional.

No primeiro caso, havia uma reunião entre o Coordenador Regional da ONG e a

Coordenação Pedagógica do novo Centro de Atendimento, outros profissionais às vezes

também estavam presentes. Nesta reunião havia a sugestão das linguagens artísticas para

aquela unidade, a quantidade de oficinas era calculada proporcionalmente ao número de

jovens internos. Em uma unidade T-40, comumente de quatro a cinco oficinas,20

as atividades

completavam o quadro necessário, pois cada jovem precisava realizar no mínimo uma oficina

de arte e cultura.

Para este número de atividades, era necessário dois Arte Educadores. A sugestão

era sempre uma linguagem de corpo (capoeira, dança de rua, circo dentre outras), e uma

linguagem de artes visuais (artes plásticas ou graffiti), mas dificilmente alguma unidade

recebia duas linguagens de corpo, na maioria dos casos os jovens preferiam atividades de

artes visuais.

19

É o responsável por toda a área de arte e cultura na Fundação CASA. 20

Uma oficina tem a duração de três horas dividias em uma hora e meia em dois dias da semana para a mesma

turma. A turma é composta de dez a quinze jovens.

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Definida as linguagens com o Centro de Atendimento, a ONG parceira, através do

Coordenador Regional, começava o processo seletivo para a contratação dos Arte Educadores.

O processo todo da divulgação da vaga até a contratação durava em torno de um mês.

Para divulgar a vaga eram acionadas várias redes21

, desde Facebook até contatos

indicados por outros Arte Educadores. Para a análise do currículo levávamos em conta a

formação na área da linguagem e a experiência em dar oficinas principalmente para

adolescentes. Selecionados os currículos fazíamos entrevistas individuais, e, ocasionalmente,

em grupo.

Na entrevista individual a compreensão das experiências profissionais do Arte

Educador era vital, ou seja, nos interessava principalmente a maneira como trazia as

potencialidades e dificuldades de cada trabalho, a capacidade de refletir sobre suas

experiências. Comumente também era inserida alguma pergunta que demonstrasse o

posicionamento do profissional frente a questões como a redução da maioridade penal, pois a

partir daí era possível ter uma ideia de como o candidato analisava temas chave ligados à

adolescência, à violência e ao ato infracional.

Escolhido o profissional, era marcado um dia em que teria de se deslocar até

Campinas-SP para realizar a contratação pela ONG, neste momento também era apresentado

o projeto e as informações necessárias para a execução do trabalho.

As oficinas dentro da Fundação CASA seguiam um calendário de ciclos. A cada

três meses se iniciava um ciclo novo que consistia na formação de novas turmas. Seguindo

este calendário, os Arte Educadores tinham que fazer um planejamento das oficinas a cada

três meses. Dentro deste plano todo o desenvolvimento das atividades era explicitado, desde

quais materiais seriam utilizados até o que seria feito em cada oficina.

Este planejamento era enviado ao Coordenador Regional que o avaliava e o

devolvia para o Arte Educador após sua finalização este documento era enviado ao Centro de

Atendimento, especificamente à Coordenação Pedagógica. Em alguns casos, eram feitas

reuniões para explicar os planos de aula entre os Arte Educadores, o Coordenador Regional, a

Coordenação Pedagógica e a Referência Técnica.

21

A contratação de Arte Educadores para a Fundação CASA é um processo difícil. De saída, muitos

profissionais se recusam a este trabalho por achá-lo perigoso, fator que se agrava quando uma notícia de rebelião

nos Centros sai em algum jornal local. Além disso, os Centros de Atendimento comumente se encontram em

locais distantes da cidade, próximos a estradas ou em áreas periféricas, reiterando o perigo e dificultando o

acesso através de transporte público. Por fim, em cidades pequenas, era difícil encontrar profissionais na área

desejada, sendo necessário algumas vezes contratar de cidades vizinhas. Logo para uma contratação de Arte

Educador, vários fatores já incidiam sobre o processo seletivo antes dele começar, deixando o mercado mais

escasso aumentando o desafio do Coordenador Regional encontrar um profissional que responda bem as

demandas do trabalho.

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27

Por trabalharmos com diversas linguagens artísticas havia distintas formações

profissionais dos Arte Educadores, desde instrutores de capoeira que se desenvolvem dentro

de grupos de capoeira até formados em artes cênicas nos centros universitários, por exemplo.

Esta é uma discussão que gera polêmica, pois para esta função, não se exige

formação acadêmica, levando alguns autores a considerar o fato como uma lacuna:

A partir das narrativas dos sujeitos desse trabalho foi possível identificar a

necessidade de qualificação dos arte-educadores que atuam diretamente no trabalho

com adolescentes em conflito com a lei, ao identificar nesse trabalho muitas

especificidades; o arte-educador tem contato diário com jovens que sofrem

constantemente alterações de comportamento devido aos efeitos da privação de

liberdade, sendo eles a ausência do convívio familiar e dificuldade de se relacionar

com as regras determinadas pelos centros. E, ainda, as oficinas culturais não

apresentam características de um processo pedagógico linear devido ao fluxo intenso

de entrada e saída dos internos nos centros, desse modo, o arte-educador tem que

estar preparado para lidar com os percalços do trabalho (SILVA, 2016, p.215).

A realização de oficinas artístico culturais dentro da Fundação CASA envolve

uma série de desafios alguns deles apontados pela autora Fernanda Roberto Lemos Silva.

Como já visto, existem várias linguagens artísticas e várias formações profissionais que não

passam necessariamente pela formação acadêmica. A passagem pela universidade resolveria

estas dificuldades? Amenizaria estas lacunas?

Tive a oportunidade de contratar e trabalhar com diversos Arte Educadores,

alguns com formações acadêmica, cursos, especializações e outros com formações dentro de

grupos, na rua ou autodidatas. Comumente, os profissionais de teatro e artes plásticas tinham

formação acadêmica na área, e os profissionais de capoeira, dança de rua, literatura marginal,

RAP e graffiti não tinham vínculos com a academia, somente em alguns casos um arte

educador de capoeira era formado em Educação Física, um outro Arte Educador de graffiti,

em pedagogia.

Nestes dois anos e meio que tive de experiência na função de Coordenador

Regional, não consegui ver claras distinções que balizassem a afirmação de que um

profissional de arte e cultura com nível superior é mais qualificado para o trabalho do que um

Arte Educador sem esta formação. Obviamente que não nego a qualidade de uma formação

superior e como ela pode expandir os horizontes dos profissionais, da mesma maneira que as

formações na rua ou em grupos.

Algumas características importantes para a função de Arte Educador como

dimensão política do trabalho, domínio da linguagem artística, variação de metodologias,

diálogo com os jovens internos, pontualidade e assiduidade não eram encontradas apenas em

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uma ou outra formação. Neste sentido está mais na capacidade do Coordenador Regional

através do processo seletivo e dos três meses de experiência conseguir aguçar seu olhar para

realizar contratações condizentes com a demanda de trabalho do que uma formação específica

para a área.

O trajeto até aqui desenvolvido, desde os parâmetros legais que normatizam a arte

e cultura dentro da Fundação CASA até como se iniciam as oficinas, a formação e contratação

dos Arte Educadores são importantes para termos a dimensão de toda a estrutura que existe

por trás das oficinas e que com certeza as influencia.

Agora é possível começar a dialogar com alguns cenários vivenciados dentro

da Fundação CASA relacionados à tentativa de garantir o direito à arte e cultura. O conceito

de poder de Michel Foucault já abordado anteriormente será o pano de fundo que nos

auxiliará a ler as tensões existentes no cotidiano.

É importante ressaltar que o entendimento aqui proposto sugere a Fundação

CASA como uma instituição que exerce um poder disciplinar, um poder sobre os corpos e a

vida dos adolescentes, um controle minucioso e detalhado22

. Os conflitos que daí derivam não

são fruto da ação exclusiva de um ou outro grupo de atores, e sim da maneira como

funcionam as “malhas do poder” nesta instituição e como essa rede se espalha por todo o

corpo social.

Com efeito, o interessante é saber como em um grupo, em uma classe, em uma

sociedade, funcionam as malhas do poder, ou seja, qual é a localização de cada um

na rede do poder, como ele o exerce de novo, como ele o conserva, como ele o

repercute (FOUCAULT, 2012, p. 188).

Em coextensão a esse poder, encontramos nas unidades da Fundação CASA

expressões do que consideramos formas de resistência, porque

(...) é preciso enfatizar também que só é possível haver relações de poder quando os

sujeitos forem livres. Se um dos dois estiver completamente à disposição do outro e

se tornar sua coisa, um objeto sobre o qual ele possa exercer uma violência infinita e

ilimitada, não haverá relações de poder. Portanto, para que se exerça uma relação de

poder, é preciso que haja sempre, dos dois lados, pelo menos uma certa forma de

liberdade. Mesmo quando a relação de poder é completamente desequilibrada,

quando verdadeiramente se pode dizer que um tem todo poder sobre o outro, um

poder só pode se exercer sobre o outro à medida que ainda reste a este último a

possibilidade de se matar, de pular pela janela ou de matar o outro. Isto significa

que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, pois se

não houvesse possibilidade de resistência – de resistência violenta, de fuga, de

22

“Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de

seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que

o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”. (FOUCAULT, 1977, p.127).

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29

subterfúgios, de estratégias que invertam a situação -, não haveria de forma alguma

relações de poder (FOUCAULT, 2012, p. 270).

As situações relatadas compõem vivencias de minha experiência pessoal como

Coordenador Regional de arte e cultura e não refletem a opinião da Fundação CASA nem da

ONG que trabalhei.

Neste momento, o layout da dissertação ficará intercalado por imagens23

de alguns

trabalhos de adolescentes realizados dentro de algumas Fundações CASA. A intenção aqui é

mostrar o que intuo como sendo algumas “linhas de fuga”24

que se abrem mesmo quando o

terreno parece infértil, “dominado”.

23

Imagens retiradas de um blog indicado por uma Arte Educadora que trabalhou na Fundação CASA e que foi

responsável por parte dos trabalhos apresentados. Disponível em:

http://osmentespensantes.blogspot.com.br/?m=1 Acessado em: 05/01/2017 24

“Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É também fazer fugir, não necessariamente os

outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano (...). Fugir é traçar uma linha,

linhas, toda uma cartografia” DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998,

p. 49. Sempre lembrando que , para Deleuze e Guattari, ao se traçar uma linha de fuga “corre-se sempre o risco

de reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão novamente o poder a um

significante, atribuições que reconstituem um sujeito – tudo o que se quiser, desde as ressurgências edipianas até

as concreções fascistas. Os grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. (...).

O bom o mau são somente o produto de uma seleção ativa e temporária a ser recomeçada”. (DELEUZE e

GUATTARI, 1995, p. 18)

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1.3.1 Estrutura física para as atividades de arte e cultura

Iniciemos pela parte estrutural. Para que ocorram satisfatoriamente as atividades

de arte e cultura são necessários espaços diversos no Centro de Atendimento por conta da

possibilidade ampla das linguagens artísticas. Na realidade, podemos compreender esta

necessidade em dois grandes eixos, as atividades de corpo e as atividades de artes plásticas.

As atividades de corpo tais como capoeira, dança de rua, circo, teatro demandam um espaço

amplo e preferencialmente aberto, já que nem todas as salas fechadas têm ventiladores

suficientes. As atividades plásticas, também necessitam de um espaço amplo para acomodar

as mesas e uma pia para lavar as mãos, os pincéis e outros materiais.

Por inúmeras vezes, os Arte Educadores tiveram que trabalhar em salas

extremamente pequenas fazendo capoeira, ou em salas que não tinham pia, sendo que o

refeitório se tornou uma sala adaptada pois sendo um espaço amplo, tinha mesas, bancos de

concreto e uma pia no fundo. O caso aqui não está relacionado à “má vontade” de algum

gestor em relação a estas atividades. A estrutura mais moderna da Fundação CASA, a T-40,

que era apresentada com orgulho por substituir os grandes complexos e descentralizar o

atendimento, não possuia salas suficientes e apropriadas para as atividades que recebia.

Comumente, um período do dia estava reservado para a escola e no contra turno as unidades

precisavam ajustar a agenda semanal para os cursos de arte e cultura, profissionalizante,

esporte, além de atividades desenvolvidas pela própria unidade.

Estas atividades comumente possuíam grande número de materiais necessários

para a sua execução, tanto por conta da atividade em si como pelo grande número de jovens

que escolhiam fazê-la. Tal volume demanda espaço adequado, uma situação que em toda

unidade T-40 era um problema, pois não havia lugar para guardar material pedagógico, a

própria sala pedagogia, na maioria das vezes, era em um espaço muito pequeno, o que é

contraditório na medida em que a sala do diretor é pelo menos três vezes maior25

.

Muitas vezes as unidades até possuíam prateleiras, no entanto, não eram utilizadas

por conta do desaparecimento de materiais da arte e cultura. A solução viável em alguns casos

foi o uso de armários fechados com cadeado, prateleiras dentro da sala da pedagogia (quando

cabia), e o mais utilizado entre todos, o banheiro de deficiente físico que, por ser mais amplo,

comportava atabaques, berimbaus, violões, surdos, sprays, tintas, papéis, fazendo um

amontoado grande para suprir as múltiplas necessidades.

25

Praticamente em todas as unidades da Fundação CASA no modelo T-40 que visitei, a sala da pedagogia era

uma das menores salas da unidade. Em apenas duas unidades, o diretor trocou sua sala que é ampla e espaçosa

com a sala do setor pedagógico.

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da

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Se pensarmos no item nove das diretrizes pedagógicas do atendimento

socioeducativo já apontado anteriormente, temos um descompasso entre uma estrutura que

seja favorável para o desenvolvimento das atividades com os jovens e a realidade encontrada

em muitas unidades da Fundação CASA. O modelo criado é fruto de uma concepção político-

pedagógica pensada para adolescentes em conflito com a lei, portanto, sua arquitetura diz

muito a respeito do que se objetiva com esse projeto que que afirma ser ressocializador.

1.3.2 Materiais e conteúdos proibidos de serem levados nas oficinas.

Existe um campo de restrições nas atividades de arte e cultura e dentro das

unidades. Curiosamente, esse campo se expressa através dos discursos da segurança e são

validados pelo setor pedagógico que está diretamente ligado a estas atividades. É

compreensível que nem todo material ou conteúdo possa ser levado para as atividades se

pensarmos na característica do espaço em que o trabalho se realiza, no entanto, muitas

restrições são o resultado de avaliações pessoais que pouco tem a ver com os objetivos

pedagógicos propostos pela instituição.

Pensando nas linguagens de arte e cultura, a que mais suscitou problemas em

alguns centros de atendimento foi a capoeira. Por ser também uma luta, ou seja, o aprendizado

de chutes, esquivas e rasteiras, alguns diretores e coordenadores de segurança proíbem a

prática da capoeira nas unidades em que estão à frente. Felizmente estas proibições são raras,

mas estão sempre no horizonte em nome da segurança interna.

A justificativa para não permitir a reprodução destas musicas está na ordem de

que elas impulsionam os jovens a tomar medidas descabidas. Acredita-se que as letras, por

lembrarem do mundo externo, da relação com o crime, do uso de algumas drogas,

provocariam uma efervescência negativa para a ordem interna.

Por conta desta leitura, uma parte do universo cultural destes jovens é proibida de

ser acessada, está excluída de suas vivências, pois para “ressocializá-los” é necessário não

apenas isolá-los da sociedade, mas retirar deles suas referências culturais.

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Já com maior frequência alguns materiais e conteúdos são barrados de entrar nas

oficinas de arte e cultura. A música é um dos principais alvos, sendo o Funk proibido em

quase todas as unidades, não importando a vertente dele. Seja o Funk proibidão ou o

ostentação, nenhum deles é tocado, ouvido ou cantado nas atividades, além do Funk, em

menor escala, aparecem o RAP e o Raggae, também censurados.

Na mesma linha, os desenhos considerados de apologia ao crime26

não podem ser

levados pelos Arte Educadores, apenas em alguns casos com um plano de trabalho bem

alinhado é permitido desenvolver atividades com desenhos que possuem uma segunda

interpretação não enviesada pela perspectiva do crime organizado.

Em relação aos materiais, existe todo um cuidado com tesouras, estiletes, ou

qualquer objeto cortante, entretanto as pernas de pau na linguagem do circo também causam

preocupação e até já foram proibidas em uma unidade por serem, em potencial, uma arma nas

mãos dos jovens internos. Até mesmo folhas de papel podem representar perigo. Em uma

atividade de RAP, uma coordenadora pedagógica pediu para o Arte Educador numerar as

folhas, pois desconfiava que em sua aula os internos estivessem fazendo recados para outros

internos e escondendo debaixo das cadeiras, ou até mesmo em buracos das paredes.

Existe toda uma dinâmica de controle dos materiais. O Arte Educador responsável

pela oficina, por exemplo, precisa chegar em torno de quinze minutos antes de sua atividade27

,

para ir ao “almoxarifado”, separar o material que irá utilizar para cada adolescente e

preencher uma guia interna que será conferida, contada e assinada pela Coordenação

Pedagógica da unidade. Na sequencia, se dirige ao portão de entrada da área na qual os jovens

estão, quando, novamente, o material é conferido, agora por um segurança terceirizado, por

fim, antes de entrar na sala da oficina, há uma terceira conferência feita por um agente

socioeducativo. Na saída, deve ocorrer novamente a contagem e aí sim o Arte Educador pode

guardar os materiais no “almoxarifado”.

26

Palhaços, Carpas, Magos, Duendes, Caveiras dentre outros. 27

É bom lembrar que o Arte Educador recebe apenas por hora oficina.

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1.3.3 Intervenções – Equipe da Fundação CASA.

As intervenções relatadas aqui, feitas pela a equipe da Fundação CASA

(principalmente setor pedagógico e de segurança) nas atividades de arte e cultura e executadas

pelas ONG´s parceiras não devem ser entendidas como homogêneas e totalizantes, elas

ocorrem dentro de contextos vivenciados por cada unidade e são móveis, flexíveis, mudam de

acordo com as situações.

As oficinas, por medida de segurança, são sempre acompanhadas por um agente

socioeducativo que fica sentado em uma cadeira na porta de entrada da sala, comumente

entreaberta. Um profissional da equipe pedagógica é designado para ser a referência das

atividades de arte e cultura, acompanhando as atividades, auxiliando o Arte Educador em

alguma necessidade, sendo um apoio. Além disto, com menos frequência, a Coordenação

Pedagógica também acompanha as atividades e com maior raridade a direção do Centro de

Atendimento. Essas atividades de arte e cultura desenvolvidas, normalmente, apenas duas

vezes por semana, criam um campo de intervenções, muitas vezes, difícil de ser gerido.

Uma parte das intervenções destina-se a “corrigir” comportamentos inapropriados

dos jovens dentro das atividades de arte e cultura. Por diversas vezes, o Agente

Socioeducativo que está na porta acompanhando a atividade regula a maneira como os

internos devem se comportar. São diversas situações nas quais ocorrem estas intervenções,

quando estão falando alto demais, quando sobem na bancada ou na cadeira, quando estão

dormindo, quando os ânimos aumentam culminando em inicio de brigas, quando um jovem

precisa ir para algum atendimento. Na maioria dos casos, o agente interpela a oficina sem

pedir autorização para o Arte Educador que está conduzindo a atividade, cortando a condução

pedagógica da atividade e quando ocorre intervenções mais incisivas com gritos e broncas,

acaba constrangendo a sala e dificultando a continuidade da atividade.

A outra parte das intervenções está relacionada aos conteúdos produzidos pelos

jovens principalmente nas oficinas de graffiti, artes plásticas e RAP. Por serem atividades que

utilizam lápis e papel os participantes comumente desenham ou escrevem códigos, frases,

sinais e desenhos relacionados ao mundo do crime, como PCC, 1533 28

, desenho de palhaços,

de carpas, dentre outros. Estas imagens fazem parte do universo cultural destes jovens e em

muitos casos estão marcadas na pele através de tatuagens, no entanto, dentro da Fundação

28

Código utilizado pela organização como forma de identificação. O 15, décima quinta letra do alfabeto (P), e

3, terceira letra (C).

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CASA são proibidas estas manifestações podendo prejudicar a “caminhada” do interno. Esta

proibição obviamente aguça a vontade de transgredir a regra.

Como estas imagens são proibidas, tanto funcionários da pedagogia como os

Agentes Socioeducativos fazem intervenções quando se deparam com elas, o que pode variar

de uma bronca simples até rasgar o desenho do interno na frente da sala toda.

A trajetória percorrida até aqui abre caminho para compreendermos parte do

universo vivenciado quase que diariamente pelos colaboradores. Na sequencia veremos como

a metodologia da História Oral foi desenvolvida neste trabalho permitindo através das

narrativas nos aproximarmos de suas história de vida.

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Capítulo 2 : Retas planejadas, curvas borradas: a experiência com a História Oral.

“A narrativa é sempre a escavação original do

indivíduo, em tensão constante contra o tempo

organizado do sistema. Esse tempo original e interior é

a maior riqueza de que dispomos”.

(Ecléa Bosi, 2003, p.66)

Ao iniciar esta pesquisa para a construção da tese de Mestrado escolhi a História

Oral como metodologia de trabalho e tive como porta de entrada bibliográfica específica a

sólida referência do NEHO: Núcleo de Estudos em História Oral - USP, o que me trouxe

aquela segurança que todo iniciante precisa para caminhar lado a lado com muletas impedindo

maiores tropeços.

Dois livros nortearam esta minha iniciação, o clássico “Manual de História Oral”

e o “Guia Prático de História Oral” ambos escritos por José Carlos Sebe Meihy sendo apenas

o segundo em conjunto com Suzana L. Salgado Ribeiro. O entendimento que tive destes dois

livros foi a base para as três primeiras entrevistas que realizei nesta pesquisa.

Neste sentido, em um primeiro momento, quero montar a cena deste pesquisador

no início de 2015 prestes a realizar suas primeiras entrevistas em História Oral. Entre

memórias, anotações e o arcabouço teórico, construído a partir da minha interpretação destes

dois livros, mergulhei no trabalho de campo, focado na reta planejada.

Posteriormente, há a necessidade de desmontar a cena, situação que ocorre após a

experiência de algumas entrevistas, a ampliação das leituras em História Oral e

principalmente após cursar a disciplina “História oral nas pesquisas sobre violência e

juventude”, conjunto que me auxiliou com novas reflexões para as vivências que tive e para

novos olhares acerca da História Oral.

O desejo de desenhar este trajeto da minha experiência como pesquisador de

História Oral é evidenciar a construção do pesquisador, seus percalços, deslizes e sucessos,

concomitantemente ao diálogo realizado com textos, aulas e debates que tem a História Oral

como centro.

Os dois livros apontados anteriormente são introdutórios para aqueles que buscam

se aproximar da História Oral, um guia prático e um manual no qual os autores apresentam

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eixos centrais para a construção do projeto em História Oral, foi neste “passo a passo” que

comecei a refletir e dar corpo ao projeto e à preparação para as entrevistas.

Sem se distanciar muito da regra, uma definição muito utilizada para a História

Oral e que também está sendo referência para esta pesquisa é a apontada por José Carlos Sebe

Meihy e Fabiola Holanda, também alinhada com o Núcleo de História Oral da Universidade

de São Paulo:

História oral é um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um

projeto e que continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem

entrevistadas. O projeto prevê: planejamento da condução das gravações com

definição de locais, tempo de duração e demais fatores ambientais; transcriação e

estabelecimento de textos; conferencia do produto escrito; autorização para o uso;

arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos resultados que devem, em

primeiro lugar voltar ao grupo que gerou as entrevistas (MEIHY; HOLANDA,

2007, p.15).

Diante da série de caminhos a decidir e que estava porvir neste início de projeto

de História Oral, o primeiro que me chamou atenção foi a escolha entre os “tipos” de História

Oral possíveis, sendo eles história oral de vida, história oral temática e tradição oral, outros

modelos mais específicos também são apresentados, mas via de regra estes três são os eixos

principais, esta escolha é considera por Meihy como:

Uma das operações mais importantes da história oral consiste na distinção dos

gêneros possíveis a este recurso. A falta de esclarecimento sobre isso tem levado a

severos erros nos trabalhos, que muitas vezes não vêem que para cada alternativa de

história oral há um tipo de condução ou procedimentos dos projetos (MEIHY, 2005,

p.145).

A minha escolha foi história oral de vida, no entanto em alguns momentos pensei

em história oral temática. Esta escolha do gênero está intimamente ligada ao cerne do projeto

e, no meu caso, após alguns ajustes, a história oral de vida encaixou-se certeiramente no

projeto que passou a intitular-se: “A arte como resistência: História Oral de Vida de Arte

Educadores da Fundação CASA”.

Algumas características deste gênero me influenciaram a escolhê-lo por

condizerem com algumas perspectivas pessoais e também pelo projeto em si. A importância

dada à narrativa do colaborador, permitindo sua liberdade discursiva para contar sua

experiência pessoal foi fator primordial naquele momento para mim, pois se alinhava à visão

da educação social (área em que trabalho), no que tange à valorização das histórias de vida

das pessoas e sua liberdade para falarem de si como lhes convém, ao mesmo tempo que se

alinhava ao projeto na medida em que toma como centro a experiência narrada de pessoas e

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lugares que estão fora do discurso oficial, no caso, os Arte Educadores que trabalham na

Fundação CASA.

Comunidade de destino, Colônia e Rede são definições também essenciais na

construção do projeto, são os recortes necessários para delimitar bem os entrevistados.

A Comunidade de destino definida foi o grupo de Arte Educadores que trabalha

na Fundação CASA através de Organizações Não Governamentais, mais conhecidas como

ONG´s. No Estado de São Paulo, naquele contexto, existiam quatro Ong´s que executavam o

trabalho de arte e cultura dentro da Fundação CASA, parceria firmada através de edital

público.

Como trabalhei em uma destas ONG´s desenvolvendo o projeto de arte e cultura

na Fundação CASA, escolhi entrevistar Arte Educadores que trabalham ou trabalharam na

mesma ONG definindo o segundo recorte, ou seja, a Colônia.

Mesmo com a definição da Colônia, o grupo de arte educadores era grande, pois a

instituição atendia na época (entre os anos de 2013 a 2015) em torno de vinte e oito Centros

de Atendimento da Fundação CASA, espalhados em três macro regiões do Estado de São

Paulo, DRMC – Divisão Regional Metropolitana de Campinas, DRVP – Divisão Regional do

Vale do Paraíba e DRL – Divisão Regional do Litoral. Para atender estes centros a ONG tinha

em torno de trinta e cinco Arte Educadores.

Foi neste momento que se formou a Rede. Como já dito, o número de

profissionais era extenso, então para ter um grupo menor foi necessário definir o parâmetro de

entrevistar pelo menos um Arte Educador de cada região. Como se trata de regiões distantes e

distintas busquei abarcar essa diversidade realizando um total de cinco entrevistas.

A escolha destes cinco profissionais foi feita pelo pesquisador, ou seja, por mim.

Considerei o tempo de trabalho dos profissionais (mais de dois anos), as regiões em que

trabalhavam e principalmente o fato de eu já conhecê-los razoavelmente, visto que “da

qualidade do vínculo vai depender a qualidade da entrevista” (BOSI,2003, p.60).

Após este momento, foi necessário pensar acerca da pergunta de corte, elemento

que já entra no processo da entrevista e que é definido por Meihy como conceito número

quinze no Manual de História Oral:

Pergunta de corte é uma questão que perpassa todas as entrevistas e que deve referir

à comunidade de destino que marca a identidade do grupo analisado. Quase sempre

a pergunta de corte vem no final da entrevista (MEIHY,2005 p.176).

Nesta pesquisa, a pergunta de corte tem a arte como elemento central na história

de vida dos Arte Educadores. Como o intuito principal é perceber se a arte funciona como

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resistência nestas histórias de vida, entendo-a então como corte que perpassa toda a

comunidade de destino. A pergunta de corte foi “Como você acha que a arte influencia a sua

vida e a vida dos adolescentes da Fundação CASA?”.

A pergunta tem uma extensão na medida em que contempla também a opinião dos

Arte Educadores sobre a influencia da arte para a vida dos adolescentes na Fundação CASA.

A ideia aqui foi fazer uma ponte entre a influencia da arte na vida dos Arte Educadores mas

também como estes Arte Educadores, que conduzem oficinas de arte e cultura para os

adolescentes internos da Fundação CASA, percebem esta influencia, esta dinâmica, pois a

projeção dada na influencia da arte para os adolescentes também diz diretamente sobre como

a arte influencia a vida dos Arte Educadores.

Após esta primeira parte do projeto abre-se um campo mais específico e prático

do fazer História Oral, sendo a primeira delas os procedimentos para a entrevista que já de

início se divide em três campos – pré-entrevista, entrevista e pós-entrevista.

A pré-entrevista é a preparação para a entrevista com o colaborador, desde data e

horário até o esclarecimento do que é o projeto, de como chegou ao entrevistado até o âmbito

de sua participação, esta primeira parte firma os termos deste encontro.

O momento da entrevista carrega uma série de cuidados importantes, desde a base

material deste encontro, como o teste do gravador, ter um gravador reserva ou em alguns

casos gravar em dois aparelhos, passando por uma retomada de ações feitas na pré-entrevista

como explicar o tema do projeto, o processo de conferência e autorização do colaborador,

sentir se o colaborador esta confortável para dar a entrevista, chegando então até questões e

recomendações técnicas de como manter o equilíbrio do tempo entre as entrevistas, garantir a

base do gênero da história oral, permitindo que o colaborador tenha liberdade para narrar,

logo o pesquisador deve falar o menos possível, “fazendo perguntas amplas e em grandes

blocos e nunca confrontar o colaborador e sim estimulá-lo” (MEIHY, 2005 p.148).

A pergunta de corte na entrevista deve ser precisa, sendo, como já citado,

comumente realizada no final.

Por fim, no pós-entrevista recomenda-se enviar agradecimentos aos colaboradores

e manter uma linha de contato se possível com um calendário no horizonte.

Após estas fases relacionadas ao campo da entrevista, entra em cena a passagem

do oral para o escrito. Este processo abarca três procedimentos a transcrição, a textualização e

a transcriação.

A transcrição é uma fase exaustiva e longa, é nela que se converte o conteúdo

gravado da entrevista em texto escrito. Alguns pesquisadores entendem que este

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procedimento deve ser feito de forma absoluta, isto é, deve aparecer no texto escrito a

totalidade da gravação, de modo a se registrar todos os ruídos que surgirem durante a

entrevista e a não se alterar em nada a fala do colaborador. No entanto:

Trabalhar uma entrevista equivale a algo como tirar os andaimes de uma construção

quando esta fica pronta. Com isso, a primeira tradição quebrada é a do mito de que a

transcrição de palavra por palavra corresponderia à realidade da narrativa (MEIHY,

2005, p.183).

O sentido das palavras do colaborador encontra-se nas ideias, nos conceitos e nas

emoções narradas, portanto vai além das palavras literais.

Já na textualização as perguntas feitas pelo pesquisador, e que ainda permanecem

na transcrição, são retiradas. Uma nova organização do texto é realizada:

O texto permanece em primeira pessoa e é reorganizado a partir de indicações

cronológicas e/ou temáticas. O exercício é o de aproximar os temas que foram

abordados e retomados em diferentes momentos. O objetivo, novamente, é facilitar a

leitura do texto, possibilitando uma melhor compreensão do que o narrador expôs

(MEIHY, 2005, p.108 e 109).

É nesta etapa que o tom vital de cada entrevista é escolhido. O tom vital é uma

epígrafe de cada narrativa. A frase escolhida serve como um guia para a recepção do trabalho.

A última etapa é a transcriação. Nela se recria a performance do encontro, na

tentativa de trazer à tona as sensações, os sentimentos, aquilo que não aparece nas palavras

em si:

Teatralizando-se o que foi dito, recriando-se a atmosfera da entrevista, procura-se

trazer ao leitor o mundo de sensações provocadas pelo contato, e como é evidente,

isso não ocorreria reproduzindo-se o que foi dito palavra por palavra. (…) tem como

fito trazer ao leitor a aura do momento da gravação (...). O fazer do novo texto

permite que se pense a entrevista como algo ficcional e, sem constrangimento, se

aceita essa condição no lugar de uma cientificidade que seria mais postiça. Com

isso, valoriza-se a narrativa enquanto um elemento comunicativo prenhe de

sugestões (MEIHY, 1991,; p.30-31).

Montada esta cena, naquele momento me senti preparado para realizar as

primeiras entrevistas, afinal tinha a orientação inicial das referencias teóricas, o projeto já

estava mais bem desenhado e a comunidade de destino definida.

A linha para mim estava muito reta, segura e bem planejada, todo este conjunto

ficou bem marcado, quase engessado, como uma receita, um passo a passo.

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2.1 Transcriação do caderno de campo: Risco Arriscado

No primeiro semestre de 2015, ao cursar a disciplina “História oral nas pesquisas

sobre juventude e violência” na Faculdade de Educação, ministrada pelas professoras Áurea

M. Guimarães, Fabíola Holanda e a doutoranda Susy Cristina Rodrigues, tive que realizar um

trabalho para o final da disciplina tendo como objetivo relacionar os textos lidos e debatidos

com o andamento da própria pesquisa.

No final daquele semestre, ao iniciar a escrita do trabalho final alguns momentos

ecoaram em mim, sendo que o primeiro tem como referência uma fala da professora Ana

Angélica Albano quando cursei sua disciplina “Arte, psicologia e conhecimento”. Em um dos

nossos debates Ana Angélica nos contou que era muito triste ler algumas teses cuja escrita, de

tão engessada segundo um determinado padrão acadêmico, impossibilitava a expressão do

pesquisador, resultando em trabalhos que não se diferenciavam uns dos outros.

Outro momento de eco foi algumas falas de minha orientadora Áurea sempre

incentivando a leitura de literatura para que nossa escrita ficasse mais flexível e menos

padronizada ao produzirmos um texto.

Foi a partir destas falas que no trabalho final da referida disciplina resolvi

arriscar e produzir um texto com um sentido mais poético, mais fluido e prazeroso de escrever

e de ser lido, sem perder de vista os princípios que sustentavam o meu projeto de pesquisa.

Como naquele momento as reflexões das vivências com as entrevistas estavam muito latentes

em mim, decidi produzir o texto tendo o caderno de campo como referência, contando como

foram estas experiências através da visão do pesquisador. Surgiu ali uma transcriação do

caderno de campo.

Entendo aqui o caderno de campo através da sugestão de Meihy:

Sugere-se que o caderno de campo funcione como um diário em que o roteiro

prático seja anotado – quando foram feitos os contatos, quais os estágios para se

chegar a pessoa entrevistada, como ocorreu a gravação, eventuais incidentes de

percurso (MEIHY, 2005, p.187).

Ecléa Bosi amplia os sentidos do caderno de campo quando diz:

Para empreendermos tal aventura, útil é nos munirmos como os etnólogos de um

diário de campo, onde iremos registrando dúvidas e dificuldades. Nossas falhas,

longe de serem um entrave, irão, se compreendidas, aplainar o caminho dos

estudiosos que nos agradecerão por tê-las apontado (BOSI,2003; p.61).

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Como caderno de campo não foi utilizado um caderno físico, tradicional, mas o

tablet que além de gravar as entrevistas serviu também para eu elaborar um caderno de campo

gravado em áudio. Logo os áudios do caderno de campo e minhas recordações das entrevistas

foram os alicerces para eu desenvolver um processo de transcriação da experiência das

entrevistas na visão do pesquisador.

2.2 – Caderno de campo transcriado

Primeira entrevista: Arte Educador Pedro

As entrevistas estão mais vivas na memória e também gravadas, facilitando o

processo, o diário de campo também ajudou, a primeira delas teve como companhia inicial a

areia da praia, o som das ondas e um vento forte, típica de uma praia frequentada por

surfistas, praia do Tombo, após uma conversa descontraída, um lugar fechado, cadeira – mesa

– cadeira, aos poucos pesquisador – GRAVADOR – colaborador, o clima persistia na

descontração...

CLIC!

Gravação, breve retomada da pesquisa, uma pergunta..

S

I

L

Ê

N

C

I

O

Um muro se ergueu entre nós, mas como pode um muro? Sim! Um muro! A

leveza virou fardo, estávamos momentaneamente incomunicáveis.

Escalá-lo? Quebrá-lo? Desistir? A sensação era levemente angustiante, não que

tenha seguido a receita perfeitamente, arrisquei, o colaborador, artista plástico e ator, levei

uma tela de pintura branca, logo o início - se sua vida pudesse ser pintada em uma tela, o que

você colocaria?

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Sai do eixo, combinado é combinado, não era uma pergunta simples? Um

disparador, um “start”? De onde saiu essa tela? A pergunta não ficou abstrata demais? Riscos.

Ato de gravar como constrangimento, evidencia feixes de poder? Muro! Algumas coisas se

somaram. Poder! Portelli...Portelli...Leite!

Fora da linha, o mapa evidente, sem fluxo continuo da narrativa, antes sabia –

uma pergunta, um fluxo de resposta, no concreto – uma pergunta, duas frases... e então? Jogo

é para ser jogado, estimular, outras perguntas, sutileza, talvez um pouco de destreza, o diálogo

começou a andar, saída.

Peso. Um turbilhão de processos, pensamentos. Não na entrevista. Até ali,

acho...tudo bem. Mas na minha cabeça. Equilíbrio do tempo. Perguntas demais? Não era só

uma? O gravador está gravando? Será que desligou? Foco! O colaborador está contando a

vida dele! E se eu perder toda a entrevista? Quando é que ele vai falar da Arte? Interessante

isso que ele disse. Estória bonita. Será que estou fazendo certo? E se eu conferir se está

gravando? Melhor não, quebra fluxo. Agora é torcer. A estória continua, acho que está dando

certo, vários caminhos, sofrimentos, alegrias, laços, arte, é hora da pergunta de corte? Tem

hora a pergunta de corte? Já está no meio? No final? Acho que já respondeu na narrativa.

Corto a pergunta de corte?

Conflito, silenciar para ouvir, perpassa relações de poder, pressões, anseios,

estórias, memórias, decisões, quase um xadrez, mais intuição, sensibilidade, mediação de si, é

só a primeira entrevista.

Primeiro passo, múltiplas sensações, boa entrevista, muitas perguntas, nem tantas,

algumas, e a não interferência? Perguntas ou saídas? A narrativa quebrava, se persistisse na

linha, dois minutos e tudo acabava! Será? E se sustentasse o silêncio por mais tempo? Estória

muito bacana, dois anos e meio de trabalho conjunto e em uma hora soube mais que todo este

tempo, sem sentido. Cheio de sentidos. O que minha orientadora vai falar!

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Segunda entrevista: Arte Educador Rogério

Arruma o barco que outra vem aí, mais experiente, agora tem noção, nem tudo do

livro acontece no chão, há alguma coisa parecida com improvisação, desvio, um vai e vem

entre o método e a experiência. Agora já mais preparado, a vivencia do lado, pode ser melhor.

Era cedo, sem exagero, mas cedo, talvez para o Graffiti era exagero, colaborador

decide a hora, e era hora de dormir:

TOC TOC...PLAC! PLAC!...Rogério!!! Ô Rogério!!!!

Infância, não escolhi voltar, rememorar, Proust, fui levado ao chamar, gritar nome

no portão, chamava os amigos assim, na mão bola de capotão, Não! Não! Joga bola não! É

pesquisa irmão!

Rogério!!! Ô Rogério!!!

Sem tecnologia, eu com tablet, celular, wi-fi, internet, colaborador nem telefone

fixo, a tecnologia era o grito, infância...sai o Rogério!! Alívio! Meio sonolento, mais sai.

Entro. Passa café. Acorda. Casa nova. Aluguel. Mudança. Sai a namorada. Estórias. Pinturas

pelas paredes. Telas. Tudo de autoria própria. Graffiteiro deixa marca na rua. Em casa

também, mesmo sendo alugada.

Sentados no quintal, que comece o ritual, retomada da colaboração, gravação,

mantendo o padrão, mesmo estilo – Se sua vida fosse um muro, como você grafitaria?

Pausa. Repetição. Muita abstração? Mais experiente? Nada! Mais difícil. Fluxo

contínuo. Mito? E vem os diálogos com meus eu´s.

(Gravador funcionando, ok! A tela apaga mesmo, mas está ok! Cachorro, latido,

vai estragar tudo. Será? Rogério, meio sonolento, lento, tento outro dia? Difícil, litoral é

difícil. Continuo. Muita intervenção. Respondendo rápido demais. Travado. Sem conexão.

Será que expliquei direito o objetivo? Subjetivo. Parece Temática, mas é de Vida, iguais?).

Terminou. Para a gravação. Vinte minutos e sensação leve de frustração. Ilusão?

Continuação. Uma hora e vinte de conversação, só por causa de um botão? Sem gravação.

Impressionante não?

Comparação. Não tem como não. A primeira, bem melhor do que parecia. A

segunda entrecortada, engasgada. Não sei. Preciso conversar. Desabafar. Telefone.

Orientadora. Orientado. Acolhido. Ufa! Continua. Narrador pleno? Sonhos. Caminhando.

Tem mais uma!

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Terceira Entrevista: Arte Educadora Camila

Casa de Cultura recém-inaugurada. Colaboradora animada. Obras inacabadas.

Casa apresentada. Cidade viva. Arte. Cultura. Configuração esquematizada. Entre nós o

gravador. Retomada da pré, tudo nos conformes, podemos começar?

- Se sua vida pudesse ser contada em uma peça de teatro, como você contaria?

Mantendo o padrão, uma deu mais certo talvez a outra não, a terceira é o

desempate? Que comece a ação! ? ? ? ? ? ? ?

Outra vez não! Repetição. Definitivamente este início é difícil. Anotar. Mudar.

Desenrolar. A entrevista caminha. Trancos. Mais rápida que a anterior. Resposta pronta.

Performance? Atuação? Uma floresta densa, desbravamos tentando achar um coração. Desta

vez não. Superfície. Similaridade. Vinte minutos gravando. Depois uma hora dialogando.

Descoberta. Gravador e Câmera para a atriz encoberta. Vergonha. Surpresa! Pode imaginar?

Na frente de cem atuar e da tecnologia parar? Curioso.

Quarta Entrevista: Arte Educadora Thalita

Nada como casa nova! Agora em Campinas...após turbulências no ABC...cômodo

a cômodo fui apresentado...propiciando climas...de preferência agradáveis...no sofá,

intermediados pelo tablet, prontos para iniciar. Conversa fluida, mais segurança, talvez pela

colaboradora, talvez por um amadurecimento, mais leituras, mais debates, mais experiente?

Caminhos difíceis de precisar, o que importa?! Entrevista mais tranquila!

Já na metade, noção de tempo minha imposta a ela, quando é a metade? Feeling?

Pouco da história pessoal, infância pulada, adolescência citada, focada na arte e cultura, temos

um problema? Sombra do Pedro, narrador pleno? Será? Vamos desapegar deixar rolar, sem

forçar.

Fato é...está aí a marca desta história, recorte, sempre recorte de uma

performance, nesta relação, com adolescentes da Fundação, foi grande a mobilização,

transformação! Singularidades de vidas historiadas oralmente...ventila...esse ventilador!

Barulhento! Vai zoar a entrevista? Vou ter que pagar pra ver.

Entrevista seguindo, um gato subindo, no sofá, no tablet, deitou no tablet! Ai fica

difícil! Vai prejudicar o som? Colaboradora tira o gato delicadamente e continua, ufa!

Imprevisibilidades, incontroláveis, na entrevista direta, tudo correto, exceto,

intervenções, ventilador, felino, agora a outra inquilina, pós malhação, rapidamente entendeu

nossa missão, com um “oi” passou agilmente pelo salão, foi a solução.

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Entrevista terminada, sala analisada, telas pintadas, a arte rodeava, produções

pessoais mescladas a produções de adolescentes da Fundação, é muito envolvimento não?

Compromisso.

Quinta Entrevista: Arte Educadora Beatriz

Muitos desencontros marcaram este encontro...talvez três, por certo quatro vezes o

que estava certo foi incerto...e de ambos os lados...doença, cansaço, problemas...até me perder

me perdi... Pesquisador cancelando... dilemas éticos? A cada vivência...novas

experiências...nos tornados da vida tentamos nos equilibrar...

Uma hora vai...e foi! Entrevista marcada...e feita!...na data, hora e local...como

manda o manual...e sem muito alarde...alarmes!! Quer uma cerveja?? Plano de fundo...ético

que é a ética do pesquisador...na fração de segundo pensei...(bebida alcoólica?!?! Será que vai

atrapalhar a entrevista? Aceito? Não aceito? Rejeitar é mal-educado? Vai parecer sério

demais? É sério! Mais fácil decidir entre um café e uma água...)

Automaticamente rejeitei...e em seguida aceitei...um ou dois copos nada vai

alterar...será? no mínimo estaremos na mesma vibe...na sequencia veio o amendoim...a

colaboradora estava criando o clima da entrevista...interessante! conversas aleatórias...por

horas...pessoas em comum...áreas em comum...trabalho...voltemos então as

formalidades...quase uma aura...rito...retomada...projeto...objetivo...história oral...pronto!

Espere...um ponto. Na explicação pouco da pesquisa...foco...história oral de vida...sua

vida...desta vez...nada de arte abordei...vamos ver... a cereja do bolo? Gravador! Desligado já

espanta...ligado...não...não encanta.

Tablet em mãos...começando...espere...onde está o programa que grava?

Gelo...literalmente gelo...idas e vindas e morrer na praia...por causa do programa de

gravação...deletei! não!! segunda opção...sorte...que celular grava...primeira vez com

ele...inseguranças...começa a entrevista...pensamentos

(Nunca gravei com o celular. Tenso. Bateria vai aguentar? Captando bem o som?

Apagou a tela! Parou de gravar? Sutilmente. Aperte o botão do celular. Veja se está ok. OK!

Bateria! Gravando! Ufa! Volta...narrativa da colaboradora...tudo indo bem).

Se não pode. Acontece. O celular toca. Desespero. Parou a gravação é brincadeira

não? raiva da namorada...calma. sem atender, espere...retomada...foi tranquila.

Narrativa fluindo.internamente...sorrindo. vários caminhos. Histórias de vida. É o

que importa. O recorte? Detalhes. A vida é imensa. Ouvir. Respeitar...o silêncio, a fala, o

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momento. Na relação. Jogos. Cabo de guerra. Sem vencedor. Leves conduções. Dominó. Na

ação do outro. Sua ação.

Até o silêncio tem um caminho. Engasgando...- “é...esqueci...não to

lembrando...”(deixa ver onde vai dar...) é...não lembro. Ok! Fim da linha. Já correu um tempo

bom...hora da pergunta de corte...continuação...epa...nariz escorrendo...escorrendo...continua

a entrevista...continua escorrendo...se eu parar para pegar papel...quebro a linha da

colaboradora...aguenta...puxa...disfarça...que situação! Felizmente, rapidamente, acabou a

entrevista. Alívio.

Fragmentos de experiências. Tempos distintos, simultâneos. Presente.

Entrelaçamento. Aulas, textos, conversas, entrevistas. Costurar cada ponto no seu ponto. Acho

que não. Transcriação. Movimento da memória não é não? Até onde a memória da entrevista

era a entrevista em sua origem? A aula? O texto? Combinação. Sentimentos e vivências

colaboram para uma nova construção. Momentos bons. Fica para quem lê a sua possibilidade

de interpretação, desta leve tentativa de conectar caminhos de pesquisa sobretudo de vida.

2.3 Entre o controle e a sensibilidade: pesquisador na linha de frente.

Com a criação do projeto, a realização das entrevistas e o aprofundamento critico

na História Oral através de debates, textos e de ter cursado a disciplina “História oral nas

pesquisas sobre violência e juventude”, penso ser interessante refletir e desmontar a cena até

então apresentada, podendo assim elucidar pontos que me chamaram a atenção nesta trajetória

colaborando para esta intensa conversa propiciada pela História Oral.

A criação de um ambiente favorável e descontraído antes do início de cada

entrevista esteve na minha cabeça em todo momento, sendo que de fato sinto que este clima

foi criado e das mais variadas formas. Com o Pedro, primeiramente, me mostrando a praia do

Tombo, depois o apartamento que estava cuidando. A Camila me apresentou todos os

cômodos e obras da Casa de Cultura recém-inaugurada e que ela fazia parte. Na entrevista

com a Beatriz, ela cria um cenário descontraído na medida em que nos serve cerveja e

amendoim. Percebo que este primeiro momento de encontro que precede a entrevista é sim de

fato importante para criar um diálogo leve e acolhedor até culminar na entrevista.

Seguindo o fluxo da entrevista, antes de ligar o gravador, a conversa já se

direcionou para um tom de formalidade na medida em que rapidamente retomei com os

colaboradores o intuito da pesquisa, o processo de conferência e de autorização. Surge aqui

um ponto curioso para se pensar, pois nas três primeiras entrevistas eu expliquei de maneira

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mais pormenorizada para os entrevistados a pesquisa, seu foco na história oral de vida e na

arte, já nas entrevistas posteriores, eu não aprofundei muito o intuito da pesquisa, colocando

apenas o interesse na história oral de vida de Arte Educadores que trabalham na Fundação

CASA.

Estas duas maneiras de iniciar a entrevista com os colaboradores me mostraram

que quanto mais eu detalhava o intuito da pesquisa, mais diretamente eles entravam no tema

arte, no entanto ao deixar a atenção voltada para a história de vida de maneira mais

abrangente, os colaboradores iniciavam por rotas distintas, de uma maneira mais singular.

Definitivamente o clima até então criado como um passe de mágica se dissipa

diante do imperioso “clic” que acena para o início da gravação. Neste momento é como se a

ação performativa já veladamente iniciada pulasse em frente ao palco escancarando os feixes

de poder desta relação:

As relações de poder não podem ser camufladas, assim como as afinidades e

parcialidades. Neste sentido, vale suscitar a importância da “performance narrativa”,

a qual está diretamente relacionada às condições da entrevista, em geral oferecidas

pelo entrevistador. Certamente, a performance do narrador depende de

características de sua personalidade, mas a presença ou não de gravadores e câmeras

pode interferir no comportamento do entrevistado, que pode tanto se sentir

intimidado quanto propenso a se mostrar de forma mais exuberante

(EVANGELISTA, 2010, p.171).

Nestas entrevistas, a clareza de que o gravador inibiu os colaboradores é evidente

tanto na mudança de postura frente à gravação quanto no fato de que alguns colaboradores

verbalizaram ter vergonha de gravar.

Este “muro” levantado pela presença do gravador se agravou no caso das minhas

três primeiras entrevistas quando decidi na pergunta inicial inserir uma espécie de objeto

biográfico, digo “espécie” porque tenho compreensão de que não era um objeto biográfico na

medida em que eu defini a importância daquele objeto ou daquela referencia para o

colaborador por uma associação com sua linguagem artística. Para o Pedro, oficineiro de artes

plásticas, escolhi uma tela em branco, para o Rogério, grafiteiro, fiz a referencia a um muro

branco, por fim para a Camila, que é atriz, reportei-me a uma peça de teatro.

Como os três colaboradores acima relacionados tiveram dificuldades em iniciar a

entrevista por meio do objeto biográfico escolhido por mim, desisti de lançar mão dessa

dinâmica, pois ficou evidente o equívoco dessa escolha. O grau de abstração exigido fez com

que os entrevistados se apresentassem rapidamente, preferindo entrar diretamente no assunto

que mais lhes interessavam, a arte.

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Outro ponto importante que gostaria de destacar é a maneira como a pergunta

inicial, o disparador ou o estímulo inicial, influencia diretamente na narrativa do colaborador,

complementando o momento anterior ao início da gravação, situação que fui amadurecendo

apenas com a experiência. Nas entrevistas posteriores a pergunta inicial incentivou os

colaboradores a contarem um pouco de suas histórias de vida e os deixou à vontade para

narrarem livremente, o que fez mudar radicalmente o fluxo das narrativas.

Após o estímulo inicial, a expectativa era a de que o colaborador seguisse uma

narrativa fluida, com poucas intervenções de minha parte, até o momento de realizar a

pergunta de corte, no entanto, a prática trouxe caminhos inesperados. Para além das questões

iniciais comentadas, invariavelmente, em escalas diferentes, todos os colaboradores falavam

um pouco e paravam, quebrando o meu raso entendimento de narrativa contínua e provocando

uma “saia justa”. A opção principalmente nas três primeiras entrevistas foi procurar estímulos

de saída, com perguntas básicas de local de nascimento, infância, dentre outras, porém, eram

estímulos que direcionavam respostas.

Posteriormente as três entrevistas, cursando a disciplina29

tive a oportunidade de

perguntar à profa. Fabíola Holanda sobre como fazer o estímulo quando o colaborador fica em

silêncio. Neste momento, a profa. Fabíola Holanda fez uma simulação de entrevista,

demonstrando como o estímulo está ligado a uma sensibilidade que acompanha a linha de

pensamento e sensações narradas pelo colaborador, nos impulsionando a ver de outros

ângulos o que está sendo dito.

Na esteira do estímulo, o silêncio do colaborador pode ter uma relação muito

próxima com nossas intervenções. Nas primeiras entrevistas qualquer silêncio já me

despertava uma necessidade de não deixar espaço vazio e provocar um estímulo:

Quando a narrativa é hesitante, cheia de silêncios, ele não deve ter pressa de fazer

interpretação ideológica do que escutou, ou de preencher as pausas (...) Ao silêncio

do velho seria bom que correspondesse o silêncio do pesquisador. Aprendizagem

difícil, porque vivemos num moinho de palavras e citações que se apoiam

comodamente no discurso ideológico (BOSI, 2003; p.65-66).

Por vezes, minha orientadora expressava para mim a sensação de que eu teria a

dissertação pronta em minha cabeça, deixando pouco espaço para o novo, para o que poderia

vir dos colaboradores. Essas deixas me fizeram refletir:

29

“História oral nas pesquisas sobre juventude e violência”, referência realizada na página vinte e cinco.

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E, se ouvirmos e mantivermos flexível nossa pauta de trabalho, a fim de incluir não

só aquilo que acreditamos querer ouvir, mas também o que a outra pessoa considera

importante dizer, nossas descobertas sempre vão superar nossas expectativas

(PORTELLI, 1997, p.22).

A hora da pergunta de corte dentro da pequena experiência vivenciada está muito

próxima a um feeling entre - a narrativa já contada pelo colaborador, - o sentir como ele está

desenvolvendo a narrativa, - os estímulos do pesquisador e - os silêncios, estes são alguns dos

elementos que poderão apontar o momento de realizar a pergunta de corte.

Em todas as entrevistas realizei a pergunta de corte, porém em algumas fiz apenas

parte dela por entender que a outra parte já estava respondida na narrativa do colaborador30

.

É interessante notar que a pergunta inicial, a pergunta de corte e os estímulos

dados pelo pesquisador, entram em uma espécie de conflito com a narrativa viva do

colaborador, são como obstáculos, tentativas de conduzir a correnteza de um rio que flui de

maneira forte e natural, e aqui não estou desconsiderando a ação performática dos atores

envolvidos, o que estou chamando a atenção é que este encontro permeado por relações de

poder gera uma espécie de “cabo de guerra” sem vencedores, no qual cada um tenta puxar a

corda, de acordo com seu contexto, no momento deste encontro. Entendo que, neste “cabo de

guerra”, comumente o pesquisador tem maior conhecimento desse caminho, no sentido de

estar atento à narrativa do colaborador, aos caminhos e desvios do programado, mas, ressalto

também a força viva da narrativa, pois mesmo desconhecendo, em muitos momentos, as rotas

do projeto, a narrativa luta para ter seu próprio caminho, independente das intervenções do

pesquisador.

Ocorre que principalmente nas minhas primeiras experiências com as entrevistas,

essa atenção constante tomou proporções que muitas vezes geraram angústia e tensão diante

de situações sobre as quais eu não tinha controle, como foi o caso da presença súbita de um

cachorro na entrevista do Rogério, do ventilador na entrevista da Thalita, do gato subindo no

tablet ou do uso do celular como segundo recurso, sem saber se a bateria iria durar. Hoje

compreendo que são imprevistos normais de ocorrerem em entrevistas, mas só a experiência

poderá trazer uma certa segurança ao entrevistador, permitindo a ele aproveitar esses

momentos como fazendo parte da relação com o entrevistado, de modo que o nervosismo vá

aos poucos cedendo lugar a uma maior compreensão daqueles elementos na vida dos

colaboradores. Na medida em que as entrevistas foram acontecendo, juntamente com as

30

Como já apontado antes, a pergunta de corte tinha duas partes, a arte em relação à vida do colaborador e

depois em relação a vida dos adolescentes na Fundação CASA.

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leituras e as orientações, minha atenção foi se tornando mais fluida, de modo a sentir os

imprevistos a favor e não contra ao clima da entrevista.

Outro aprendizado essencial é compreender a singularidade de cada narrativa,

pois:

O respeito pelo valor e pela importância de cada individuo é, portanto uma das

primeiras lições de ética sobre a experiência com o trabalho de campo na História

Oral (...) Cada pessoa é um amálgama de grande numero de historias em potencial,

de possibilidade imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes, contornados e

por pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de ouvir baseia-se na

consciência de que praticamente todas as pessoas com quem conversamos

enriquecem nossa experiência (PORTELLI, 1997 p.22).

Após as primeiras entrevistas fiz comparações entre as narrativas, considerando

que as mais longas, com referências mais pormenorizadas, por exemplo, à infância, eram mais

significativas que as outras, mas posteriormente, consegui entender a dimensão das narrativas

e como cada uma é singular, correspondendo a um determinado momento, à especificidade de

um contexto,

Fato é que, com a entrevista, nós cristalizamos em um momento especifico a

identidade em contínua construção. Capturamos apenas aquele momento, que pode

ser derivado de qualquer coisa: de uma situação geral, de uma situação familiar, de

uma bolsa de estudos que o filho ganhou para estudar na Itália. São muitos os

fatores. E a nós, só é permitido pegar um momento específico, e não a totalidade das

transformações da identidade, que são movimentos muito complexos

(VANGELISTA, 2007, p.24).

Cada narrativa, portanto, tem um valor intrínseco por ser um momento relatado da

história oral de vida de uma pessoa, o seu valor não está no tempo da narrativa, nem na sua

relação direta com a pesquisa em percurso. Quando conseguimos escutar para além de nossos

objetivos, respeitando os colaboradores, ampliamos nossa percepção sobre o outro.

A experiência com as entrevistas é única, móvel, flexível e dinâmica. No

movimento com o outro nos mobilizamos, através de sensações, risos, olhos lacrimejados e

abraços. Nestes encontros preciosos, histórias foram narradas, particularidades íntimas de

pessoas comuns e singulares criando sentidos de vida.

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Capítulo 3 – Transcrições, Textualizações e Transcriações.

Ao refazermos a trilha iniciada no projeto de História Oral de Vida e todo o seu

percurso que passou por conceitos, reflexões, a transcriação do momento das entrevistas e os

momentos de percalços chegamos mais próximos não apenas da maneira como a metodologia

foi utilizada, mas principalmente dos personagens principais que são os colaboradores31

.

Como já apontado, foram realizadas cinco entrevistas, no entanto, após um

apontamento feita na qualificação desta pesquisa32

, decidimos utilizar duas entrevistas para a

análise. Esta escolha não intui excluir ou menosprezar os outros três colaboradores, suas

entrevistas, textualizações e transcriações estão presentes. É com o objetivo de trazer uma

análise mais concisa e qualitativa que foi escolhida a utilização de duas entrevistas das cinco

realizadas.

Os textos foram validados pelos colaboradores, este momento é um dos principais

dentro do projeto em História Oral de Vida:

Nela confere-se o texto produzido por meio do diálogo, desde o primeiro contato,

verifica-se e corrige-se possíveis erros e enganos, legitima-se esse trabalho de

interação de forma não hierarquizada e valida-se a possibilidade de produção de

conhecimento a partir do documento gerado (MEIHY, 2011, p.111).

A validação é uma das ações que selam a parceria entre colaboradores e oralista, é

um ato de respeito. Por não enxergar o colaborador como um objeto passivo, como apenas

uma fonte de informação, que a História Oral tem este procedimento, buscando na relação

dialógica entre todos os atores a produção do conhecimento.

As devolutivas com os colaboradores foram boas, no geral apenas apontamentos

de informações como nome de cidade foram apontados. Apenas com os colaboradores Pedro

e Rogério foi possível realizar a validação pessoalmente, infelizmente com os outros três por

estarem em outras cidades este procedimento foi realizado por redes sociais.

Ter um momento de reencontro para realizar a devolutiva faz diferença. Rogério

ao ler a sua transcriação falava repetidamente “que da hora!”, o sorriso denunciava um bom

encontro com si mesmo. Pedro ao lado em silêncio lia atentamente e a emoção escorreu pelo

seu rosto, naquele momento, as palavras de Alberto Lins Caldas fizeram sentido para mim:

31

Alguns colaboradores estão com nomes fictícios. 32

Na qualificação desta pesquisa realizada em Fevereiro de 2017, a Profa. Ana Angélica Albano sugeriu que

fosse utilizado para análise apenas uma das entrevistas realizadas, pois através dela era possível dialogar com os

pontos chave propostos. Posteriormente, conjuntamente com minha orientadora Áurea Maria Guimarães,

decidimos utilizar duas entrevistas das cinco realizadas.

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O resultado final da transcriação são textos vivos, pulsantes, que se organizam numa

grande ficcionalidade viva, exigindo uma outra postura diante dos textos terminados,

sendo diferente também sua forma interna. O texto final (depois de ter passado por

várias entrevistas, várias transcrições, vários encontros de leitura e por todo o

processo de formação textual) jamais poderia ter sido pronunciado daquela maneira

por nosso interlocutor; no entanto, cada palavra, cada momento narrado pertence a

ele e somente a ele, a ponto de o interlocutor nos dizer eu vivi cada uma dessas

palavras; mesmo depois de a sua fala ter se transformado no texto transcriado (não

somente mudança de códigos, mas amálgama transcriativo), ao ter sido respeitada a

essência viva da fala, o reconhecimento é muito maior do que com a simples

pergunta-resposta. O texto transcriado é, para o interlocutor, sua vida no papel,

aquela vida escolhida por ele para ser a sua vida, para ser o representante, para ele,

do vivido (CALDAS, 1999, p.109).

Agora entra em cena os colaboradores, suas textualizações são precedidas de uma

imagem (apenas no caso de Pedro e Thalita, com os outros colaboradores não foi possível),

utilizadas aqui como o tom vital33

destas entrevistas. Tais imagens foram produzidas pelos

próprios colaboradores.

33

Conceito já apontado na pág. XX

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Transcrição – Entrevista colaborador Pedro – linguagem teatro/artes plásticas -

Primeira Entrevista.

Dia – 25.03.15

Local – Apartamento na praia do Tombo – Guarujá.

Daniel: Pedro...é...a gente vai começar aqui a entrevista, relacionada a pesquisa que eu to

fazendo no mestrado na Unicamp, sobre educadores sociais, educado...arte educadores e arte,

é...eu queria começar a entrevista, perguntando pra você, se...se...pra você pensar da seguinte

maneira, pensando nessa tela (levei uma tela de pintura e coloquei em frente ao entrevistado),

nesta tela de...de pintura, se você tivesse que pinta a sua vida nela, que que você colocaria

nela, como é que você contaria essa história nessa tela?

Silêncio de reflexão do entrevistado com a mão no queixo olhando para a tela.

Pedro: Primeiro a tela é pequena (risos)...é bastante coisa...

Daniel: Essa tela é infinita Pedro...pensa na tela...

Pedro: Bastante coisa que contaria...se fala...é...contaria a vida pintada aqui?

Daniel: É o que você queria coloca, o que você acho, acharia que deveria aparecer na sua

vida?

Pedro: Acho da minha vida o que foi mais transformador mesmo foi, foi a arte, acho que eu

colocaria a arte acho o antes e o depois, que, é o rio ai que veio pra mudar e trouxe muitas

coisas, o antes e o depois, a arte acho que foi um momento transformador na minha vida, que

foi a partir do teatro, que foi a primeira linguagem que eu conheci, teatro e dança, e foi a

partir do teatro que eu me antenei pra muita coisa que eu acho que...seria muito, uma coisa

bem artística mesmo, seria a arte em si pareceria muito a máscara do teatro, seria o teatro a

pintura a dança...eh isso, acho que foi o momento que transformou realmente a minha vida,

assim que trouxe, que ela transformasse pensasse melhor, olhasse a sociedade diferente, a si

próprio e até a própria história também, acho que é...

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Daniel: E...e antes da, pensando antes da arte assim se...seria o que assim? Você nasceu aqui

no Guarujá...

Pedro: Não, eu...eu sou de Pernambuco, eu sou de Pernambuco uma cidade chamada Bonito,

fica no interior do Estado, agreste, fala agreste da mata, seria a costa da mata atlântica lá, e eu

morava num sitio assim, num sitio, meu pai...meu pai...meu avô tinha um, um sítio onde

morava todo mundo assim, eu tinha dez tios (entrevistador em exclamação – Dez tios!?)

Dez tios...Minha vó teve onze filhos, teve bem mais, mas onze sobreviveram...

Daniel: E morava tudo junto?

Pedro : Era uma vila, fala sítio, mas era bem grande, então eu morava num espaço, todo

mundo tinha seu espaço, uma casa o quintal e a sua plantação do lado, e daqui a cem metros

tinha outro tio...também tinha sua casa, plantação...ai cento e cinquenta metros mais, outro

tio...e assim...Era uma fazendona.

Isso era ...tinha um rio no meio...próximo a casa do meu tio que era o mais...o

mais..o...como se fala...fugiu a palavra...enfim o mais rico ali da família, a figura central,

comandava o sítio do meu avô, era esse meu tio também, ele tinha uma mercearia, tinha carro,

é...e o rio ficava do lado da casa dele também...

Daniel: Era quase uma mini cidade.

Pedro: É, era uma mini cidade, uma vila! Só com meus tios lá, meus avós, e a primaiada,

primaiada toda, casando tendo filho e morando por ali...

Daniel: Continuava por ali...

Pedro: Continuava por ali. Cidade bem próxima, uma dez km da cidade, então...feira essas

coisa assim só de final de semana, era feira mesmo...comprava todos os mantimentos trazia e

todo mundo se mantinha...precisava de alguma coisa comprava no meu tio e todo mundo

plantava feijão milho batata doce...enfim tinha de tudo lá.

Daniel: E você plantava também?

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Pedro: Plantava! Feijão batata doce..tinha muita fruto. Atrás da casa do meu avô tinha um

pomar, tinha banana, jaboticaba, goiaba, seriguela, pé de seriguela..enorme...puta adorava

seriguela, adorava não...gosto bastante de seriguela.

Daniel: Aqui você acha fácil?

Pedro: Não!! E o gosto é bem diferente também.

Daniel: É mesmo?

Pedro: É porque não é natural né? Eles colhem verde, se colher ela verde não fica tão doce

tão gostosa se colher no pé mesmo.

Daniel: Quando ela tá amadurecida.

Pedro: É, como eu falei...muita coisa também a partir da minha infância, apesar de ser muito

humilde tive uma infância super gostosa, correr meu pai nunca deixo,.trabalha meu pai nunca

deixou...Eu trabalhei escondido,com uns 08 anos eu trabalhei escondido do meu pai.

Risos

Daniel: Você trabalhou onde?

Pedro: É..na verdade eu trabalhei, assim meu tio...no sítio do meu vô tinha pedreiras, tinha

uma duas, três, quatro pedreias. E meu pai trabalhava com isso, mas pedreira de pedra mesmo

explodia aquelas pedras e tal e desenhava o azulejo, só que paralelepípedo, fazia

paralelepípedo, meio fio que usa aqui...meu pai fazia meio fio...tinha um que era racha que

eles chamam, que eram grandes que o pessoal faz casa, que a cidade em geral usava muito.

Paralelepipedo era o principal, todos os moldes de pedra ele fazia, e ele falava que não, que

ele não queria que eu fizesse isso jamais. E os meninos, as famílias, as mães, o pessoal que

também era muito pobre mesmo, quebravam pedra. Que era a famosa brita lá que lá chama

concreto, tem a brita e o concreto...o concreto é uma pedra mais quadrada maior que é pra

grandes construções pra fazer ruas também, e tem a brita que é aquela bem, que a gente

conhece também, que é mais quadradinha, que hoje é industrial, lá não, lá é manual pegavam

borracha, pedra , a pedra mais fina e você quebrava...e eu cheguei a trabalhar um tempo com

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isso escondido...porque eu queria...porque meu primos trabalhavam...puta trabalho dos

infernos. Os cara ganhava, passava a semana inteira pra ganhar dois reais!

Daniel: Nossa!

Pedro: É muito pouco! Era...E era muito braçal! É era muito braçal, muito forte, a lata de

concreto custava na época ainda era cruzeiro não lembro, mais a lata custava acho que era

mais ou menos mil cruzeiros., e na época mil cruzeiro era equivalente a sei lá, vinte cinco

centavos.

Daniel: Caraca!

Pedro: Era muito pouco, era muito pouco, e ai eu vendo aquilo falei assim, puta quero fazer

também. Pedia para a minha mãe, ai meu pai ele trabalhava e voltava uma semana depois,

pegava algum trabalho em alguma fazenda distante e ai eu teve uma época que eu fui quebra

pedra. E é muito engraçado porque isso é uma frase que me marcou muito quando ele

descobriu que eu tava quebrando pedra porque ele...meu pai apesar de tudo tinha uma boa

educação, meu pai era analfabeto.

Daniel: O que?

Pedro: Meu pai ele tinha uma boa educação, boa educação não, mas ele estudou. Mas era

uma pessoa que lia bastante então ele...é...muita coisa do que ele falou ficou muito gravada, e

isso assim, aos 8 anos de idade quando ele falou isso ficou gravado até hoje e foi uma coisa

que quando euuu....fiz o meu...a conclusão do grau, que eu colei grau foi uma coisa que...meu

pai morreu seis meses antes de eu colar grau. E foi muito punk assim...porque veio aquela

frase que ele falou pra mim quando eu...

Daniel: Trabalhou escondido!!

Pedro: Trabalhei escondido...e ai ele falou...eu não quero que você seja igual seu pai...burro e

quebrando pedra...ou o contrario...mesmo inteligente mas quebrando pedra...eu quero que o

peso do seu trabalho seja uma caneta...

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Daniel: É muito foda!

Pedro: É...é muito foda isso...gravou e ficou em mim...então assim logico...algumas coisas

algumas frases assim bem forte da minha infância...e de resto...rio...pega chupa manga...pega

caju ...me lembro de muita coisa...muita gente passa fome assim...no sítio do meu avô é...no

meio de duas cidades...uma cidade chamada cortejo e entre a barra que ficava próxima...um

pouco mais distante...eu conhecia as pessoas mais...mas não tinha entendimento...por exemplo

porque aquelas pessoas vinham pegar manga...do lado do sitio do meu avô...nas

fazendas...muitos manguezais...tinha...na época de manga...muito...famílias assim você

vê...gente com bacia lata de mangas na cabeça...e...eu falava...ficava desesperado...porque o

povo pegava a nossa manga...e minha mãe falou...esse povo vem pegar a única coisa que eles

tem pra comer...e...apesar de eu não entender aquilo ali foi a primeira vez que eu vi a fome tão

clara assim...

Daniel: De perto assim né?

Pedro: É....trinta quarenta pessoas indo pegar a única coisa que tinha para comer que era a

fruta...e era manga...e a manga...e a época de manga é a época que o pessoal passava menos

fome...é loco... Eu to falando pra caralho!

Daniel: Não velho...tranquilo...E se...e se veio pra cá quando...

Pedro: Então ai aaa...

Daniel: Então só deixa eu...(conferindo se o tablete estava gravando).

Pedro: Isso é...confere...

Daniel: Se...mudar pra...de lá do ...de Pernambuco ...da cidade você mudou pra cá...

Pedro: Ai fui pra cidade um tempo depois...minha mãe teve um problema renal teve que fazer

hemodiálise...e ai a gente resolveu alugar uma casa na cidade...meu pai resolveu mudar pra

um lugar mais próximo porque o carro da prefeitura passava na cidade...não podia passar no

sítio...então...minha mãe tinha que dormir sempre na casa das amigas pra poder ir pra...fazer a

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diálise dela...que era duas...três vezes na semana...a gente quase não via nossa mãe...e...eu era

muito grudado com minha mãe...então sempre ia na clinica com ela, porque era muito

longe...era perto de Recife, em Caruaru...

Daniel: A cidade chamava Caruaru?

Pedro: É...Caruaru...fica do sítio...ficava...ficava uns 150 200km da cidade...do sítio da

cidade..ai a gente mudo uma época pra cidade...que ficava mais fácil também...e o carro da

prefeitura passava pegava...e enfim...ela tava todo dia em casa...ai chegou na cidade...minha

mãe faleceu uns três anos depois...eu tinha onze doze anos de idade...

Daniel: É novo!

Pedro: É...bem novo...ai eu vim pra cá ...ai a gente já tava no sítio já...já tinha voltado pro

sítio nessa época...ai minha mãe faleceu...meu pai resolveu vir pra cá...que minha irmã

morava no Rio e ai tinha vindo pra cá no Guarujá ai eu vim pra cá pra morar com ela.

Daniel: E dai “cê”...

Pedro: Ai é....eu acho que eu falei da arte e tudo, porque eu não quero lembrar dessas coisas

também...É uma faz muito “punk” que ai eu me identifico muito com os meninos, eu vim

morar no morro aqui e lá no nordeste a gente não tinha um “morro”, nunca tinha visto um

“morro”, favela é...Apesar de ser todo mundo pobre tudo, mas todo mundo tinha a sua casa,

casa mesmo, casa é muito barata, todo mundo se ajuda e faz sua casa, nunca tinha visto

palafita, nunca tinha visto barraco de madeira né...Primeiro quando eu cheguei na cidade

achei a cidade muito feia (risos), é, Vicente de Carvalho...

Daniel: É, Vicente de Carvalho né, é famoso né...

Pedro: Ai eu entrei por Vicente de Carvalho, então assim, achei muito feio, a balsa assim, eu

era louco para andar num barco ai quando eu fui andar de cara eu tive que pegar barco, que

era a balsa, ai saí da rodoviária peguei a balsa ai achei que São Paulo era bonito né porque no

nordeste você escuta falar: “São Paulo”, vê na novela São Paulo é sempre os prédios, as

coisas bonitas, São Paulo pra mim era aquilo. E ai você chega aqui e puta não é nada disso,

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então pra mim foi super é decepcionante, ai eu fiquei muito angustiado, eu era de sítio, muito

ingênuo, muito bobão mesmo assim né...E aquela coisa do sítio, então eu nunca tinha visto

violência, coisa, já tinha visto, eu vi uma cena muito grave né que foi o meu irmão de criação

que foi esfaqueado assim, e eu que eu encontrei ele sangrando por todos os lados.

Daniel: Nossa...

Pedro: É...é....pesado assim, agora o que me vem na cabeça é isso assim, eu era muito

pequeno, tinha seis anos...Aquilo me marcou, mas eu não sabia o que tava acontecendo ali e

foi muito rápido eu sai com minha tia pra pegar meu irmão e leva...

Enfim...Foi a única cena de violência que eu vi acontecer e ... Foi uma tragédia na

família isso dai. Foram atrás do cara porque era um cara que foi por vingança que pego meu

irmão na casa dele.

Daniel: Quantos anos tinha?

Pedro: Eu tinha uns seis anos.

Daniel: Não, mas o seu irmão...

Pedro: Ele tinha uns 10, 11 anos...

Daniel: Nossa, novinho.

Pedro: E o cara é namorado da minha prima e se vingou pra se vingar da minha família,

porque separou dela, e enfim...Esse louco passou na policia...E saiu uma briga porque teve um

envolvimento do meu pai também que esse cara acabou sendo assassinado. Foi legítima

defesa e tudo, eu meu pai foi absolvido e o meu tio também. Tinha testemunha que tinha visto

tudo na época. Foi coisa que eu não visualizei, o que eu visualizei foi o fato de que ele foi

esfaqueado. Aí quando eu cheguei eu fui morar no morro, no morro do engenho, um morro

bem famoso no Guarujá, é famoso porque tem tráfico, aonde o pessoal se esconde e tem muita

gente bacana também, mas eu morava lá encima e eu morava do lado de uma “boca” né?

Então assim até eu entender o que era uma boca, eu morava do lado de traficante, enfim,

então foi muito forte assim, eu, criança também né, criança não percebe as coisas e eu

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comecei a perceber as coisas e eu me sentia como um peixe fora d’água, não fazia parte

daquilo, não queria ta ali.

Meu irmão é envolvido com drogas também ai meu sobrinho se envolveu com o

tráfico ai então eu comecei a ver pessoas que eu conhecia, amigos, morrerem, do nada, assim

tava morto, a polícia subia e batia em todo mundo e tinha que se jogar embaixo da cama pra

não pegar um tiro em você. E, barraco de madeira, morando do lado de uma encosta, e chovia,

e perigo de barraco cair...então assim, foi muito louco...Gente, alguém mora lá

encima?...Primeiro que eu não acreditava que alguém morava lá encima e ai eu era criança

meu pai trouxe e eu tinha que ir, e ai subi o morro, o morro é bem alto e tem uma rampa

asfaltada, é muito alto, só que acabava o asfalto você começa a subir, subir, subir.

Daniel: Acaba o asfalto e tem muita casa lá pra cima?

Pedro: É tem muita casa lá em cima, meu irmão morava lá no topo, na época, hoje é muito

mais alto ainda, o pessoal...

Daniel: Vai desbravando lá...

Pedro: É vai desbravando ...Foi muito louco mas era o lugar que eu morava ai é que eu

conheci mesmo muito dessa realidade que os meninos da Fundação CASA encontraram,

quem são esses meninos de verdade né?...Quem são eles? Aonde vivem? Como são? Porque

se envolvem com o crime, o que eles têm acesso, o que eles não têm acesso, e a primeira coisa

que eles têm acesso a ter alguma coisa é pelo crime, então foi muito explícito, apesar deu

nunca, nunca ter vontade nenhuma, de fazer aquilo, tem uma coisa tão louca que os caras nem

me chamavam, olhava na minha cara, eu tinha uma cara tão “bocó” que eles achavam que não

tinha cara de traficante.

Daniel: Ai você fez seu ensino médio aqui e tal ?

Pedro: Ai eu fiz o fundamental e o ensino médio aqui, fiquei dois anos sem estudar nessa

trajetória, que minha mãe faleceu ai voltei ai tinha parado, voltei e ai pra que estudar? Estudar

é pra quem vai fazer alguma coisa, se você não vai fazer alguma coisa, pra que ce vai estudar?

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Minha tia falava isso, minha prima, dizia: “Você vai ser advogado?” Eu dizia, não

sei....”Não você não vai ser, então pra que você vai querer estudar?”.

Ai fiquei um ano e meio sem estudar por conta disso, ai vim pra cá também fiquei

sem estudar e foi muito bom porque minha família nem ligava se eu estudava ou não, alguém

tinha que trabalhar, mas eu tinha 12 anos, ai fui morar com minha irmã, não tava dando muito

certo porque era muita gente na casa, era eu e mais duas irmãs, e essas duas irmãs eram só

filhas do meu pai, e minha irmã mais quatro filhos, então vivia na casa, eu minhas duas irmãs,

meu pai, e a minha madrasta.

Porque meu pai já tinha se arrumado com alguém, então é gente pra caramba, meu

pai veio com um pouco de dinheiro, mas ele largou lá, a indenização da minha mãe ele não

pegou, foi um caso nacional, que repercutiu nacionalmente porque foi uma clinica que quando

minha mãe faleceu...Por causa da contaminação da água. Porque a máquina da diálise usa

uma água especial pra limpar tudo aquilo porque passa o sangue pelos tubos, pela aquela

máquina então se tiver uma contaminação naquela agua ferrou porque vai pro teu sangue, e

foi isso que aconteceu, a água tava contaminada.

Então morria gente, vi muita gente morrer, minha mãe foi uma das primeiras, ela

teve AVC em seguida, ai ela ficou muito mal, ai não tive contato nenhum com ela quando eu

tive o contato foi pra saber que ela tinha falecido. Morreu mais outras pessoas, no total

morreu umas 60 pessoas, muita gente, pela agua contaminada, ai, ai processaram essa clinica,

tudo né, teve indenização, ai meu pai disse que “não quero”, deixou as coisas todas e foi

embora e deixou lá a indenização e ai o pouco dinheiro que ele tinha é o que ajudou a gente.

Depois que meu pai viu que não era legal aonde a gente tava, ai que ele falou vamo voltar,

pegou e levou minha irmã menor, e eu era muito grudado.

Daniel: Ai ele voltou?

Pedro: É ele voltou...E eu desde pequeno, minha mãe me preparou, ela falava que ela não ia

chegar até os meus quinze anos, mas enfim, ela sempre me preparou, me ensinou a cozinhar,

ficava deitada na cama me ensinando a como fazer o arroz, matar a galinha (risos), muito

louco...

Daniel: Matar a galinha?

Pedro: É porque lá num compra galinha, é galinha caipira no quintal...

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Daniel: Ai você aprendeu a fazer né?

Pedro: É aprendi a fazer, muito boa, é natural, é cultural, eu era criança então eu matei a

galinha numa boa...Pega a asa, pega o pescoço, vê como tira a pena, depenar o pescoço da

galinha....A galinha sofreu tanto comigo no final (risos), coitada da galinha.

Daniel: RISOS.

Pedro: A única culpa que eu sentia na época é porque eu quebrei a asa dela, mas muito louco,

é que eu era muito criança, ai matei a galinha.

Daniel: É puta aprendizado velho.

Pedro: É! Tem que tirar a pena, porque quando você vai matando você já deixa a água

fervendo, então joga a galinha depois de morta na água quente porque daí a pena sai fácil.

Daniel: Pra depenar ela..

Pedro: É pra depenar ela...Mas enfim, coitada da galinha, matei ela...Enfim, ai eu aprendi a

cozinhar com a minha mãe..Eu era o mais velho então tinha que ...Eu tinha uns nove anos

nessa época, e eu tinha irmã de cinco e uma de três, então assim cara, meu pai ficava muito

fora, então eu meio que me sentia meio “pai”, se você olhar minha foto com 15 anos, você

fala: “Esse moleque tem oito, esse moleque não tem 15 anos”, juro...

Daniel: É?

Pedro: É tipo, fazia eu me sentir um “homão”, tanto que quando eu vim aqui eu fui me

matricular, ai “Você não pode se matricular” (risos) muito louco, mas enfim, aí foi

isso...Aí....É...Me perdi. Ah, eu tava falando dessa questão do morro. Ai meu pai voltou com

essa minha irmã, eu já era muito grudado dessa minha irmã, já me sentia muito pai dela, foi

muito forte isso, então até hoje eu me sinto responsável por ela tá lá, tem acontecido alguns

problemas com ela, eu me sinto responsável, agora que to tentando me desvincular, não tanto

de ser irmão dela, mas essa responsabilidade que eu não sou o pai dela, não posso resolver os

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problemas dela por aqui, ficar sustentando ela ou algo do tipo né...Mas eu fiquei com esse

laço muito forte assim, porque desde que ela foi, até hoje a gente não se reencontrou .

Daniel: Ah, desde a época que ela foi?

Pedro: É, e ela tinha seis, ou sete anos na época.

Daniel: Nossa.....

Pedro: E ela voltou e foi morar com meus tios e aconteceu uma coisa grave na família, que é

de abuso e ela foi morar com a minha prima e ela ficou muito revoltada com isso porque ai

meu pai voltou e meu pai teve que sofre um assalto, meu pai foi esfaqueado lá em outra

cidade, lá em Maceió e eu perdi o contato com meu pai completamente. Meu pai teve um

problema sério, quase morreu, teve um problema de memória tudo, porque ele bateu a cabeça,

porque ele reagiu ao assalto e eu fui encontrar meu pai há quatro anos.

Daniel: Caralho....

Pedro: É, e foi muito engraçado porque ele tava num convento de freiras lá que tava cuidando

dele, ai acabei descobrindo que ele tava lá e acabei conseguindo trazer meu pai pra cá.

Daniel: Ai ele veio pro Guarujá?

Pedro: Ai ele veio pro Guarujá Teve uns problemas também e foi na época , logo depois que

eu entrei na faculdade, que eu também entrei na faculdade por causa da arte também, por

causa do teatro, foi o meu primeiro trabalho como educador social.

Daniel: Mas foi antes de entrar na faculdade?

Pedro: Foi antes de entrar na faculdade.

Daniel: E como você é que você chegou nisso?

Pedro: Eu entrei nisso fazendo teatro, eu entrei no teatro em 98.

Daniel: Quantos anos você tinha?

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Pedro: Eu tinha 15, 16 anos. Eu entrei no teatro porque eu era muito tímido, eu não conseguia

falar com ninguém, apesar de sempre, a arte lá no nordeste, eu adorava versava, apresentava,

brincava, eu sabia que a arte já...Tinha alguma coisa da arte ....Adorava programa de tv, ficava

brincando com as minhas irmã o tempo inteiro disso, tinha algo muito forte porque sabia que

a arte me chamava...E era meio esquisitinho também, já questionava tudo, via programa da

Silvia Popovic (risos) muito louco.

Daniel: (Risos)

Pedro: Eu me estranhava um pouco, me sentia meio patinho feio da família. Aí meu primeiro

contato foi com o teatro. Vou pegar água ...

Daniel: Sossegado...

Pedro: Ai eu comecei a fazer teatro pra desinibir e ai gostei pra caramba, o diretor falou que

eu tinha talento, me colocou no grupo e eu comecei a apresentar.

Daniel: Cedo assim?

Pedro: Cedo assim, quatro, cincon meses, já fazia a primeira peça e já comecei a viajar pela

baixada aqui e ai já fazia meu dinheiro que era muito pouco na época, mas era. Pro artista é

muito bom você comprar uma roupa com o seu trabalho então é até uma poesia...”Um dia

viverei da minha própria arte” ...Por pior que seja, seja aquilo pouco.

Dá muito orgulho pra gente porque a gente consegue viver fazendo o que a gente

acredita e gosta, porque primeiro de tudo acho que todo artista tem que fazer o que ele

acredita e o que ele gosta mesmo, então aquilo foi muito gratificante e pra mim ... Ai minha

família não entendia. Falava que eu era vagabundo. aí nessa época eu morava com as minhas

tias, ai fui morar com meus irmãos, ai tinha o problema das drogas, a boca lá, tudo.

Meu irmão queria que eu usasse droga, e eu sou tão careta e fiquei com tanto trauma dessa

época que até hoje assim nem, a droga que eu conheço é o álcool, fora essa não conheço mais

nenhuma porque foi muito marcante pra mim. Porque eu vo perder tudo por causa da droga

assim, perde tudo mesmo, casa, família, carro, emprego, some no mundo, perde memoria,

movimento do corpo que foi o que aconteceu agora pouco quando eu reencontrei ele também.

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Que é mó engraçado, ele ficou...perdi o contato com ele uns 4 anos ai encontrei

com ele que foi a o primeiro contato com a divulgação que eu tive, tava fazendo teatro e a

mina sabia que eu fazia teatro e me indicou pra uma ONG aqui no Guarujá e falou olha tem

uma vaga pra diretor de teatro, eu falei olha eu faço teatro, mas não tenho estudo pra ser

diretor, pra eu lecionar teatro, ai ela falou não mas é mais pra educação mesmo, arte

educação, eu nem sabia o que era arte educação, nem educador social.

Então comecei a trabalhar, trabalhava pouco, eu tinha 18 anos. Não, tinha mais,

não tinha 18 anos. Então eu e um amigo.....primeiro começou eu, depois eu chamei uma

amiga minha do teatro também, ai abriu uma faculdade aqui nessa época, tava tendo, dando

trabalho pra caramba, tinha duas turmas de 30 alunos e era alunos diversos...Então

assim,....Foi muito “punk” pra mim e eu aprendi muito. Eu até falo assim ”meu deus do céu. o

que será que eu falava pra aquelas crianças naquela época?”.

Daniel: (Risos)

Pedro: (Risos) É muito louco. E ontem eu encontrei uma menina que era da Fundação

CASA, da parte da segurança e ela falou assim: “eu lembro de você...Você dava teatro lá, eu

fui sua aluna”. Ai eu falei “caraca mano! Eu to velho!” Ela falou sério! Eu fiquei tão bobo

assim quando ela falou, mas me alegra muito porque todos os alunos que eu conheci dessa

época assim pelo menos, e é de comunidades muito próximas de onde eu moro e estão sempre

transitando por lá. Graças a Deus eu não encontrei essa molecada na Fundação, só vi um que

era da outra turma da minha amiga, mas nunca encontrei nenhum aluno meu assim.

De certa forma assim, e é mó engraçado, tudo eles chegando, quando eu cheguei

na Fundação eu pensei, ai meu deus será que eu vou encontrar esses meninos? Porque apesar

deu questionar o que eu ensinava pra eles, porque eu quase enlouquecia porque era, tinha

meninos de quatro, cinco, sete, nove, doze, treze, quatorze anos, era muita faixa etária.

Daniel: Variedade de faixa etária né?

Pedro: De manhã eu tinha uma média de vinte e cinco. Era muito, então eu tinha problema

que não pegava na mão da menina pretinha de jeito nenhum. Ai eu não sabia lidar com aquilo,

preconceito racial muito forte. Ai tinha do menino que não ia pegar no outro porque parecia

que o outro tinha umas pintas, então aquilo era doença, é tinha um menino que já parecia ser

homossexual e então sofria bulliyng muito forte ali dentro.

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Então assim, eu pegava todo esse problema de sociedade, preconceitos e tudo

mais e pra um jovem de dezoito anos é muita coisa, sem muita instrução apesar de que o

teatro exige da gente estudar pra se aperfeiçoar e eu acho que é muito forte a educação, acho

que acredito cem por cento né que a arte ela é transformadora por conta disso porque ela exige

a reflexão, ela exige o olhar ela exige o parar e olhar o erro e olhar o outro, e no teatro é muito

forte o outro, eu sempre to fazendo pro outro então tem que observar o outro, saber como é o

outro, e refletir e tentar sentir a emoção, não dá pra fingir saber de fato, então exige uma, um,

um...sentimento muito forte de ocê conhecer como que é o outro, não julga o fato né, busca a

historia toda, pra depois chegar no fato em si.

Isso é muito forte na questão da Fundação nos meninos, porque julga só um fato

do menino, por exemplo, ele roubou então ele vai pra Fundação e vai ficar privado da

liberdade dele e de outras serie de coisas. Mas ao mesmo tempo o Estado dava uma serie de

coisas pra ele também, lá fora ele não tem nada, então eu vi muito menino assim que não tem

nada lá fora e só tinha acessos nesse lugar que era no pé do morro, mas lá tinha o teatro, tinha

educação.

Daniel: Lá na Fundação você tá falando?

Pedro: Não, nesse lugar no pé do morro. A ONG, então, era no pé do morro, e o trabalho

dessa instituição era muito importante ate era referência, na verdade eles iam pra lá pra tomar

o café da manhã primeiramente, depois ele foram gostando muito de mim e da questão do

teatro, que eu fazia, mas não tinha um olhar pra fazer, não tinha um acompanhamento, então

tinha até lambaerobia.

Daniel: Lambaerobica? O que é isso?

Pedro: Era famosa a lambaerobia, por causa daquela musica do “É o Tchan”.

Daniel: Ah tá (risos).

Pedro: (Risos) é a mesma coisa que a zumba de hoje. Uma coisa mais sensual, é o funk de

hoje né? Era muito forte a lambaerobica, e os meus alunos ficava “P” da vida porque eu dava

a lambaerobica. Doido, porque quando as crianças chegavam eu colocava Elis Regina então

imagina (risos) o contraste absurdo e ai quando eu fiz uma apresentação pra empresa que era

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patrocinadora do projeto eu fiz uma performance com duas musicas da Elis Regina e ai eles

ficaram surpresos.

Foi ai que descobri o quando era importante o onde estou, com quem falo e o que

eu digo, então foi dai que eu comecei a perceber, porque eu era muito imaturo, eles faziam mó

”auê”, mas me respeitavam muito assim...Porque eles não tinham ninguém e tinha eu como o

pai deles, e eu com dezoito anos e os meninos de doze, treze, quatorze anos, e não tinham

lugar nenhum pra ir, e eu ficava morrendo de medo porque essa menina, no caso dessa

menina, era do lado, era muito forte a exploração sexual, do lado tinha pessoas que aliciavam

menores. E essa menina tinha um corpo muito bonito, era morena com um corpão, lá, doze

anos, parecia que ela tinha dezesseis, desenvolve demais, principalmente as meninas de hoje,

então foi “punk” pra mim.

Ai eu consegui conversar com essa terapeuta, essa pessoa que tinha me

contratado, porque ela vinha uma vez por mês pra saber o que tava acontecendo, fazia uma

reunião com a gente, passava uns exercícios, tinha muita coisa nossa que a gente absorvia,

mas nessa época é muito engraçado porque eu trabalhava na fundação, mas já trabalhava lá

com os meninos. Eram muitos jogos teatrais, dança, e eu fazia muito. Até um dia que eu pedi

pra acompanhar os meninos no colégio porque como é teatro a gente pega muito fácil já o

menino que é disléxico, o menino que não sabe ler ou o menino que tem dificuldade, o

menino que não lê por vergonha que o outro fica fazendo chacota com ele então teve uma

época que eu quis fazer acompanhamento escolar dos meninos.

Daniel: Entendi.

Pedro: Quis fazer esse acompanhamento porque eu saio daqui e vejo que eles não vão pro

colégio, ai comecei a questionar a entidade também porque ela da comida pra todo mundo e

eu achava bacana ela dar comida, continua dando até hoje pra todo mundo do morro. E recebe

cesta básica. Então assim, só vem pra comer e teve um dia que eu fui muito radical porque eu

falei assim “ quem veio só pra comer, só pra tomar café não precisa ficar na aula, vocês

podem ir embora” Porque eles não queriam fazer os exercícios, só que eles ficavam até o final

(risos).

Daniel: Ficavam até o final.

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Pedro: Ficavam até o final. E hoje esses meninos são pais de família, estão trabalhando, eu

vejo eles assim, dá um orgulho assim, e todos eles me chamam de tio Pedro. Ô tio Pedro, num

sei o que, ai eu falo caramba você já tá com filho já. Mas já estão trabalhando, já tem sua

casinha, seu barraquinho lá no morro então de certa forma, tão seguindo sua vida.

Então aquele adolescente que fazia de tudo ali, que enchia o saco da diretora, que

via as faltas dos meninos, pra ver evasão escolar. Eu chegava no pátio, era muito engraçado,

que eu ia, falava assim “eu vou ver se vocês estão indo pro colégio mesmo”. Eu queria cobrar

resultado deles, porque eu falava, eu não posso ficar ensinando você a ler se eu tenho que

passar a outra cena com ela, fazer o exercício com a outra então era muitos e em idades

variadas ai chegava no pátio assim, eles iam tudo desesperada pra sala de aula.

Eu fiz um acordo com a diretora, eu falei assim, eu vou passar, mas eu vou passar,

na verdade só pra ver se eles estão vindo mesmo e foi muito legal porque começou a diminuir

a evasão escolar, eles foram melhorando, então foram participando, eu fazia um negócio pra

eles fazerem de acordo com o que eles conheciam um do outro e pedia pra eles fazerem o que

que eles queriam ser, e uma coisa que eu via muito nos meninos que eu também não tinha era

perspectiva de vida então eu acho que a gente é muito inquieto com o que eu quero e eu não

via perspectiva desses meninos de questionamento, bastava a alimentação, e venho aqui e faço

alguma coisa e tchau e como, e eu falava: “Vocês ficam o dia inteiro na rua fazendo o quê?

São crianças tem que brincar sim, mas porque não tá estudando?” “Ah, eu vou

estudar não vai adiantar nada”. Uma coisa que eu vejo muito é que eles não tem perspectiva,

então comecei a misturar a minha turma já que eles falavam que não dava nada, então eu tinha

um menino no grupo que filho do chefe do morro e era muito louco porque eu não sabia e eu

questionava muito esse menino, falava : “O que você vai ser?”

Ele dizia que ia ser chefe da boca, eu falava: “Tá, e você vai ter família, você acha

que você vai ser feliz assim?”, então comecei a perguntar pra minha turma, principalmente os

menores como eles viam as pessoas do morro e com cuidado porque eu não sabia quem ali era

filho de traficante e foi legal porque começou a ter um feed back deles, eles trouxeram isso

muito forte, trouxeram que tinha um irmão na cadeia, um irmão na Fundação, um irmão

morreu. E a gente começou a dramatizar como morreu, então uma vez na semana eu pedia pra

que a pessoa contasse a historia.

Daniel: Você usava as histórias de vida pro teatro?

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Pedro: É, pro teatro, tinha a contação de historia e ai eu falava assim quem quiser, porque era

todo dia.

Daniel: Era todo dia a oficina?

Pedro: Era todo dia, era muito maçante, eu caia em pé, uma vez eu tava tão estressado que

meu cabelo caiu. Enfim, todo dia, eu pegava quem tivesse vontade de contar a sua historia e

então começou a ser junto forte aquilo porque as historias todas eram muito parecidas muito

dramáticas, ou perdeu a mãe, sempre a falta do pai muito forte pros meninos, acho que por

isso que os meninos davam mais trabalho pra mim, porque tinha uma referência também de

uma pessoa que tava ensinando pra eles alguma coisa.

Eu falava de tudo, de sexualidade, igual eu trabalho hoje, eu aprendi a ser

educador social ai e era muito legal porque tinha dia que ninguém contava não e tinha dia que

começava assim, “vou contar só que eu moro no morro, que minha mãe tem dois filhos”. E ai

se sentia a vontade e ficava igual eu aqui contando tudo.

Era muito gostoso isso e todo mundo se abraçava, tinha sempre uma oração que

eu fazia sempre com eles, que era: “todos os dias sob todos os pontos de vistas eu vou cada

vez melhor”, e ai eu fazia com eles e no final com eles falava “Nos vamos cada vez melhor”.

Ai eu falava, o dia que eles bagunçavam e eu não “acreditava” eu falava hoje eu não vou fazer

porque hoje não foi, não evolui, tem que aprender. Mas foi legal pra caramba, aprendi muito,

mas depois da escola me mandaram embora, tava enchendo muito o saco, comecei a

questionar porque muitas das minhas alunas tavam engravidando, da segunda turma.

Daniel: Daí você começou a questionar isso?

Pedro: Eu comecei a questionar isso porque tinha, recebia a cesta básica. Se engravidasse

recebia o enxoval e acompanhamento “lálálá”, enfim, eu falava assim a preocupação destas

famílias é alimentação, aqui tem, a menina engravida ela ganha enxoval, parece um incentivo

a engravidar, então assim eu to ficando frustrado quanto a isso, vai receber a cesta, então tem

que vir pro letramento tem que vim pras oficinas, recebe um carimbo de participa, porque eu

não vejo o que é que eu to ensinando pra essas pessoas, que elas vêm aqui e não precisa se

preocupa, pode te filho porque roupa não falta, calçado não falta e comida não falta, e o que

eu vejo aqui e que a gente tá ensinando que só precisa come e sobrevive, não vive, duas vezes

eu fui mandado embora.

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Daniel: Ai você foi pra, como você foi pras artes plásticas?

Pedro: Foi. Para as artes plásticas foi um acidente, foi um acidente, na verdade eu não me

considero artista plástico, é que no teatro a gente aprende a trabalhar com a parte de áudio

visual também porque no teatro só atuar hoje é muito difícil pra gente fazer só a parte de

atuação, então eu sempre me intrometi em tudo também, então eu fazia desde o cenário ao

figurino a maquiagem a tudo, então foi ai que eu acho que eu fui pegando um pouquinho da

plástica, mas foi porque alguns espetáculos também a gente usou bastante elementos das artes

plásticas.

Mas foi mais na formação que veio lá com o projeto Cedap que veio essa

oportunidade de experimentar mesmo as artes plásticas de fato, mas é um, é algo que eu falo

que sou muito desleixado pra isso, precisa estudar bastante, quanto a isso também, que o

teatro ainda é muito forte pra mim também, adoro a parte plásticas, mas o teatro ainda é a

parte que eu trabalho mais , fora da Fundação o que eu trabalho mais é o teatro eu sempre to

fazendo algum trabalho com o teatro.

Daniel: E como é que você acha que a arte influencia dentro da Fundação, você enquanto arte

educador e a arte que ta na sua trajetória de vida como é que ela influencia lá dentro?

Pedro: Acho que porque, sei lá eu percebo que nos meninos, a partir das oficinas, das oficinas

artísticas, essa parte cultural, é a parte que eles mais gostam, mas acho que é porque é mais

libertador.

Lá o menino transgride, apesar de não poder fazer uma serie de coisa, ele sabe que

tem uma liberdade minha pra faze porque pra mim não tem muito significado de proibi isso

dai, é uma coisa complicada pra gente também, porque às vezes a gente quer proibir, mas eu

achei maravilhoso o trabalho que o menino fez, e aquilo pra mim é arte, e pra eles aquilo ali é

um elemento que o menino pode tomar um CADI porque fez aquilo, porque só julgo aquilo

que eu tava falando o fato.

Acho que o artista ele sempre tem essa visão do o outro primeiro, como ele é, o

que é eu não te conheço, eu não sei a sua história, então acho que primeiro a gente parte disso,

então independente da linguagem são todos artistas, então chego ali eles querem olhar um pro

outro, no olho, ouvir o que pensa o que gosta de sentir, ao mesmo tempo a gente é muito

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sensível pra algumas coisas, e a gente percebe às vezes num olhar muito, fala a vida dele

inteira, as vezes num olhar de trinta segundos que a gente teve com ele.

Eu tive uma experiência bem forte recentemente com um menino, realmente não

errei, porque, ele veio pra minha oficina duas vezes e era um menino que é muito agressivo lá

dentro, e eu falei assim, ele é muito grande, e eu falei assim, porque esse menino é tão

agressivo assim? Então eu parei, e ele veio em uma aula polêmica que a gente tava falando

sobre racismo, e ele é negro, e eu fiz a bobagem ou eu tive a felicidade de usar ele como

exemplo ai ele veio pra cima de mim com tudo.

Daniel: O loco!

Pedro: Não quero que você me use como exemplo! Eu não quero saber de preto! Né? Forte

assim, o moleque quando levantou eu pensei para de subir moleque, porque ele era enorme o

moleque! Enorme!

Daniel: Caralho!

Pedro: Ai eu olhei no olhar dele e vi que aquilo como autodefesa, não era uma agressividade

que ele se sentiu mal, e eu falei desculpa não vou usar você como exemplo, apesar de ele ser

da outra aula, é que juntou nesse dia, e ai eu pedi desculpa pra ele e falei que não ia utilizar

ele como exemplo, mas eu tava dando o exemplo de pele, pode ser a minha que eu tava

comparando a minha com a de outro menino, e eu falei a minha e a dele, e eu tava falando

sobre o negro e porque a gente não se sente negro, quem é negro, porque que não fala que é

negro, porque a gente não quer ser negro, porque, enfim a gente tava falando do negro porque

culturalmente tem uma coisa que o negro é ruim, que o negro, então se ser negro é ruim, se é

bandido, se é mal, não presta, eu não vou ser negro, nem que seja preto igual um piche, mas

eu não vou dizer que sou negro que negro é ruim.

Eu tava querendo desmistificar isso dai, principalmente falar da historia do negro,

da escravidão, não são escravos, foram escravizados e o, eu tava falando justamente tudo que

o negro tinha contribuído para a sociedade brasileira, e ai no final ele começou participar e

ficou muito feliz e ali eu ganhei ele, e ele veio me agradecer e pediu desculpa por aquilo, e eu

falei não, não tem problema, que realmente eu peguei você de surpresa você tinha acabado de

entrar e tal, e ele falou achei muito legal, e ai esse menino pediu pra ir pra minha oficina a

partir disso, e ai ele saiu, fugiu esse menino, logo depois que teve duas aulas comigo.

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Depois ele voltou e eu percebi no momento que eu conversei com ele,

perguntando o que esse menino, pedi pra fazer um desenho e ele fez um desenho como se

uma criança de dois anos de idade fizesse um desenho, e aquilo me chocou, o sol, a boquinha

o moleque você olha, você fala assim que tem trinta anos o moleque, o moleque tem

dezessete, dezesseis, dezessete anos, e ele fez um desenho igual criança de dois anos, então

aquilo foi muito forte pra mim, de olhar um sol sorrindo com uma nuvenzinha azulzinha, só

isso, foi punk aquilo pra mim, acho que a arte é isso, desenho, ele ficou com muita vergonha,

e eu falei não, tá bonito, que bacana que você se dispôs a fazer, ele falou não mais eu não sei

fazer, ele ficou com muita vergonha, e eu pedi pra ele escrever o nome dele.

Teve uma frase no dia que eu pedi pra alguém escrever uma frase, acho que era

sobre família, e era pra você, o que é, e ele não sabia escreve, e ai ele começou a brigar com

outro menino, e foi muito forte isso também, porque eu percebi que na verdade é porque ele

não sabia escreve, não sabia lê, então era sempre essa autodefesa eu não sei faze vamo faze

chacota então eu já vou pra agressividade e ai eu fui conversa com ele, se ve que não era

aquele menino agressivo que tá sempre de tranca na lá fundação, o moleque é, doce, e quando

ele fugiu que ele voltou, eu vi uma tristeza tao profunda no olhar dele que eu falei porque que

esse menino é tão triste assim? Que me marcou tanto!

Eu acho que a arte ela traz isso, a partir do desenho dele, o escrever dele, a forma

como ele pinta, a cor que ele pinta, eu peço pra ele pinta uma paisagem, e ele pinta um

palhaço com a arma, não é o palhaço, não vou julgar o palhaço que ele pintou agora, mas

porque ele pintou o palhaço? O que ele tava pensando quando ele pintou o palhaço? o que ele

tava pensando quando ele desenhou aquela arvore cheia de raízes? o que ele pensou quando

desenhou aquele sol?

Então acho que a arte ela é transgressora, começa por ai, então você pode prender

na tranca, na solitária, no muro em uma caverna, onde quer que seja, mas tem, se sua mente

consegue pensar no desenho, consegue pensar em uma musica, sai dali, é o único lugar que a

gente é liberto realmente, acho que se não existisse a arte acho que a gente seria um bando de

zumbi loco!

(Risos)

Eu não consigo imaginar um mundo sem cores, sem música, sem teatro, sem

gente idiota fazendo palhaçada, sem, eu não consigo imaginar, acho que é muita piração, e lá

dentro da fundação é proibido fazer a idiotice, é proibido fazer a coisa engraçada, hoje com

meus alunos a gente se pintou de palhaço todo mundo.

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Daniel: É mesmo?

Pedro: É!

Daniel: Que massa!

Pedro: E colocamo, levei umas peruca, duas peruca colorida que eu tenho, um boné, coloquei

nos meninos e, os outros me cobraram porque não deu pra pinta na primeira aula deles, poxa

senhor você pintou eles de palhaço e não pintou a gente, eu não pintei o palhaço coringa com

os meninos, os meninos tavam pintado com o nariz, só fiz o narizinho aqui branco alguns eu

fiz amarelo, marquei um bigode preto aqui, fiz uma sobrancelha engraçada pra cima cada um,

só isso, mas nada, e levei roupa!

Então assim a roupa significa tanto pra eles cara! De estar lá dentro né, porque é

uniformizado né, ce tira, eu acho, enfim tira a dignidade da pessoa ali, por isso que a arte é

transformadora ali, a partir do momento que o palhaço tá fazendo a palhaçada, então ele

quebrou primeiro que não é o palhaço, não vai poder proibir, e o menino tá fazendo a piada,

então ele tá contando a piada de escorrer no tomate atravessando a rua, enfim fizemos um

número de palhaço, as coisa mais babaca que existe no mundo e eles adoraram, e foi isso que

eu falei pra eles, falei assim porque tava falando justamente já pensou um mundo que não

existisse isso?

Ser ridículo, ser idiota pra gente rir, e ser ridículo ser idiota fazer essa coisa boba

que a gente ta fazendo aqui, é uma coisa que agrada tanto a criança de dois anos, quanto a de

cinco, quanto a de sete, quanto a tua mãe de trinta e nove, quanto a tua avó de sessenta,

quanto...não importa, agrada todo mundo porque é disso que a gente precisa, que a gente

esquece, o quanto é engraçado uma piada boba, sem graça, contar ali com uma peruca

colorida e nariz de palhaço e pintado ne?

Em nenhum momento algum menino quis fazer o coringa, o palhaço, não! é o

palhaço de circo pedi pra eles, uma música engraçada e veio Patati Patata, veio, o menino

cantou...esqueci agora, enfim aquelas musicas de criança galinha pintadinha, enfim, ele

cantou isso, então isso é muito gostoso, você trazer, esquecer completamente que eu to

trancado aqui, que tem um funcionário me olhando, que se eu ri me olha feio porque eu to

rindo, e riram se divertiram, brincaram, fizeram palhaçada, se pintaram e no final a gente se

limpou e foi todo mundo pro pátio tranquilo sossegado e os outros me cobrando porque não

tinham se pintado tanto quanto os outros, então isso é, não tem preço, é muito gratificante pra

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gente então assim, pra gente é transgressor de falar, tirei sorriso de todo mundo ali, todo

mundo riu, brincou e eu me divertir, foi isso que eu falei pra eles, queria que vocês se

divertissem, tava tão pesada a coisa texto e tudo, cortei tudo, não vai ter nada, vai ter essa

cena de palhaço, fazer uma cena da cadeira lá, não toque aqui, mão na cadeira e brincar com

isso, só isso, essa vai ser nossa apresentação, mais nada e foi legal pra caramba, e é isso, que é

a mesma coisa e enfim, nem lembro mais a historia que eu tava falando... (Risos)

Pedro: Falo pra caramba Daniel!

Daniel: Não, mas cara, o véio, é isso mesmo na verdade! Muito bonita a historia que você

esta pintando ai na tela. (Risos).

Daniel: Verdade mano!

Pedro: É isso, é engraçado porque a gente nem se atém pra algumas coisas, é até legal fazer

isso! É porque cê cê...na hora que cê vai...Eu nem tinha sacado que tinha sido tão legal a aula

de hoje, apesar de ter rido bastante e brincado com eles, eu não tinha sacado que tinha sido tão

gostoso, e quanto é importante pra eles esse role, às vezes a gente não percebe que uma

mensagem uma coisa quanto a gente ...tantos alunos meus que eu encontro de mais de dez

anos atrás, dez anos atrás eu encontra esses meninos hoje e as vezes falam frases coisas.

Tem um menina que tá se formando em direito agora, e tenho ela no Facebook,

tenho contato e assim você vê a menina falando, ela se ateve para a leitura, livros que eu nem

li que é uma vergonha que eu devia tá lendo e a menina tá lendo, então assim, é muito

gratificante isso, e de até meninos que mesmo voltando, falam coisas, que a gente acha que

não estão ouvindo, até falo uma coisas que falo assim algumas coisas muito rebuscadas né?

Às vezes eles me questionam muito por causa disso, porque sempre querem levar

o mesmo, que nem digo o óbvio, porque o óbvio é muito difícil de enxergar e de ter, mas de

levar coisas, é até legal levar o óbvio, mas não leva, de levar coisas pros meninos e falam

assim, mas os meninos não entendem isso né, ele não vai saber o que é isso, então sei lá falar

de Anne Frank por exemplo, de falar de Chaplin, “a mais você tá falando do diário de Anne

Frank, o moleque não vai saber o que é isso, nunca vai saber o que é isso”. Se engana! Se

identificam completamente com a história, então eu levo filme, por exemplo, o “Enrolados”

pra mim foi uma coisa muito engraçada, eu achava que todo mundo iria se identificar com o

ladrão, não eles se identificam com a Rapunzel!

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Daniel: Ah, a animação né?

Pedro: A animação, eles se identificam com a Rapunzel, e eu usei muito isso, na casa que eu

fui eu usei muito, é um filme que eu gosto muito de passar pra eles, eles se identificam com a

Rapunzel, então eu uso a torre pra...faço ela...esqueci, fugiu a palavra agora...uma analogia a

torre é o muro, a quebrada, sai da torre meu! Né? Sai da torre!

Eles acreditam ainda que a torre é legal que a torre ali é um lugar seguro pra eles,

confiando naquela força madrasta, então foi uma coisa que foi redação, eu vou esmiuçando

tirando coisas e eu mesmo descobrindo caminhos, elementos é verdade, eles não se

identificam com o ladrão, eles se identificam com a Rapunzel, porque eles sempre voltam pra

torre, voltou pra torre eles sabem o que eu to falando.

É muito legal isso daí, eles falam frase, teve um menino que não entrou na

rebelião porque ele lembrou de uma frase que eu falei numa conversa boba que a gente teve

na oficina, “se acredita que na hora eu lembrei do que você falou...fiquei quieto, voltei entrei

na minha sala e fiquei de boa, tem dia que a gente fica boladão, fica cego, não percebe”.

Desse menino lá que eu falei, desse menino que tem uma tristeza tão forte, descobri que esse

menino não tem ninguém..ninguém!!

Daniel: Não tem familiar assim?

Pedro: Não, não tem ninguém, não tem vestígio nenhum. Outro menino também não tinha

ninguém a mãe dele tinha sumido, ele ta super feliz agora que a mãe dele voltou, com ele eu

converso bastante também, a mãe dele foi pro nordeste, ele morava com a avó, e a avó

morreu, ele não tinha contato nenhum com a mãe, teve uma mulher que começou a cuidar

dele, mas ai ele começou a se envolver com o tráfico, a mulher também não quer mais ele,

perdeu a casa também, mais a mãe voltou agora, e esse outro menino é uma tristeza danada, e

esse menino ele é doce mesmo, é incrível a ingenuidade dele.

Então de certa forma eu me identifico assim minha infância ou até pouco tempo

atrás, a ingenuidade que ele tem, ele é puro mesmo assim, de os funcionários, funcionários da

fundação, que eles chamam de funça ali, agente de segurança fala isso, de percebe, acha que o

muleque ta pagando de loco como eles dizem, de tão ingênuo que ele é, de tão doce e a

Fundação vai entregar uma mochila e vai colocar ele lá no meio da estrada com uma

passagem pra lugar nenhum.

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Daniel: Nossa!

Pedro: É muito loco isso, eu já vi! Acho que o Rogério vai contar essa, conta o que aconteceu

comigo, a gente desceu, eu Camila, Rogério, a gente se rasgando na van, porque, um absurdo

assim, ele pedindo pelo amor de deus pra não mandar ele embora, porque não tem pra onde ir.

Então é muito loco isso porque a gente fica com vontade de pegar e trazer pra

casa, como não tenho casa eu não trago (risos), que eu não tenho casa, hoje eu to aqui hoje eu

to lá...até fica certo, mas é loco.

Daniel: Beleza Pedro! Muito massa cara!! Agradecer você ai ! pela história!!

Pedro: Beleza! Pintamo?

Daniel: Pintamo a tela!! Valeu!!

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Textualização Colaborador Pedro

“Sempre que me lembro disso, ao estar com uma caneta na mão, lembro-me da frase do meu

pai e olho para o céu”. Pedro.

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Infância em Pernambuco.

Eu sou de Pernambuco, de uma cidade chamada Bonito, fica no interior do

Estado, no agreste, fala agreste da mata, por causa da costa da Mata Atlântica. Minha infância

toda morei em sítio, meu avô tinha uma grande fazenda que era dividida entre meu pai e meus

dez tios, todos tinham seu espaço com casa, quintal e sua própria plantação ao lado.

Havia plantação de tudo, feijão, batata doce, atrás da casa do meu avô tinha um

pomar com banana, jaboticaba, goiaba, seriguela, os pés de seriguela eram enormes! Adoro

seriguela! Aqui em São Paulo o gosto é bem diferente, porque colhe ela verde, ela é bem mais

doce quando colhida madura no pé.

A cidade mais próxima dali ficava uns dez quilômetros de distância. Ir a feira era

apenas de final de semana, se precisasse de alguma coisa urgente dava para comprar no meu

tio, o restante era de consumo das plantações que tínhamos.

Na fazenda tinha quatro pedreiras, e meu pai trabalhava com isso. Pedreira de

pedra mesmo! Fazia paralelepípedo, que aqui chama de meio fio, explodia as pedras,

desenhava os azulejos, fazia todos os moldes de pedra e falava que não queria que eu fizesse

isso jamais na vida.

A maioria das pessoas da região trabalhavam quebrando pedras. O famoso

concreto que hoje é feito industrialmente, lá era feito manualmente, pegava borracha e a pedra

mais fina e quebrava. Famílias inteiras trabalhando, inclusive mães e crianças para ganhar

dois reais por semana. Puta trabalho dos infernos!

Era muita gente passando fome. O sítio do meu avô era no meio de duas cidades e

na época de manga as pessoas vinham pegar manga do sítio, ali havia muitos manguezais. Eu

ficava desesperado! O povo vinha com bacia na cabeça pegar nossa manga. Eu não tinha o

entendimento do porque trinta, quarenta pessoas vinham pegar. Lembro da minha mãe

falando “esse povo vem pegar a única coisa que eles tem pra comer”, foi a primeira vez que

eu vi a fome tão clara assim...

Com uns oito anos eu trabalhei escondido do meu pai. Em alguns trabalhos ele

saía por uma semana e eu pedia para minha mãe, foi nessa época que comecei a quebrar

pedra. Quando ele descobriu falou uma das frases que mais marcou a minha vida:

“Eu não quero que você seja igual seu pai, burro e quebrando pedra, ou o

contrário, mesmo inteligente, mas quebrando pedra. Eu quero que o peso do seu trabalho

seja uma caneta”.

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É muito foda! Gravou e ficou em mim. Lembro quando eu colei grau, foi muito

punk porque meu pai havia falecido seis meses antes e a primeira coisa que veio em minha

mente foi esta frase que ele me disse quando eu trabalhei escondido.

Mudanças.

Minha mãe ficou doente e as coisas começaram a mudar. Por conta de um

problema renal ela teve que fazer hemodiálise e o tratamento era feito em Caruaru, uns

duzentos quilômetros de distancia da cidade perto do sítio. Eu era muito grudado com minha

mãe, ia com ela duas, três vezes por semana na clinica.

Meu pai alugou uma casa lá e aí ficou mais fácil, também porque o carro da

prefeitura passava e a pegava. Ficamos uns três anos e depois voltamos para o sítio, minha

mãe faleceu mais ou menos nesta época, eu tinha doze anos de idade...

Foi um caso que repercutiu nacionalmente. Por causa da contaminação da água. A

máquina da diálise usa uma água especial para limpar enquanto o sangue passa pelos tubos,

então qualquer contaminação vai direto para seu sangue, e foi isso que aconteceu.

Morreu muita gente por conta disso, minha mãe foi uma das primeiras. Ela teve

um AVC e ficou muito mal, depois disso não tive contato nenhum com ela, só soube que ela

tinha falecido. No total morreram umas sessenta pessoas devido à contaminação, houve

processo, indenizações, só que meu pai não quis pegar a indenização.

Arrumamos nossas coisas e meu pai nos levou para o Guarujá. Minha irmã já

morava lá. Eu vim morar no morro aqui e lá no Nordeste a gente não tinha um “morro”, nunca

tinha visto um “morro”, uma favela. Apesar de ser todo mundo pobre, mas todo mundo tinha

a sua casa, todo mundo se ajudava e fazia sua casa, nunca tinha visto palafita, nunca tinha

visto barraco de madeira.

Eu entrei por Vicente de Carvalho, achei muito feio. Eu era louco para andar num

barco, quando eu cheguei, de cara eu tive que pegar barco, que era a balsa, achei que São

Paulo era bonito porque no Nordeste você escuta falar: “SÃO PAULO!”, vê na novela São

Paulo é sempre os prédios, as coisas bonitas, São Paulo pra mim era aquilo.

Quando você chega aqui e puta não é nada disso, então pra mim foi muito

decepcionante, eu fiquei muito angustiado, eu era de sítio, muito ingênuo, muito bobão. Aí

quando eu cheguei eu fui morar no morro, no Morro do Engenho, um morro bem famoso no

Guarujá, é famoso porque tem tráfico, aonde o pessoal se esconde, tem muita gente bacana

também, mas eu morava lá encima e eu morava do lado de uma boca34

.

34

Boca: Local em que são vendidas drogas ilícitas.

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Até eu entender o que era uma boca, eu morava do lado de traficante, enfim, foi

muito forte assim, eu era criança, não percebia as coisas e depois de um tempo eu comecei a

perceber as coisas e me sentia como um peixe fora d’água, não fazia parte daquilo, não queria

estar ali.

Meu irmão se envolveu com drogas, meu sobrinho com o tráfico, então eu

comecei a ver pessoas que eu conhecia amigos, morrerem, do nada, assim... morto, a polícia

subia e batia em todo mundo e tinha que se jogar embaixo da cama pra não pegar um tiro em

você.

O barraco de madeira, morando do lado de uma encosta, e chovia, e perigo de o

barraco cair, foi muito louco. Gente, alguém mora lá encima? Primeiro que eu não acreditava

que alguém morava lá encima e ai eu era criança meu pai trouxe e eu tinha que ir, e subi o

morro, o morro é bem alto e tem uma rampa asfaltada, é muito alto, só que acabava o asfalto

você começa a subir, subir, subir.

Formação

Eu fiz o Ensino Fundamental e Médio aqui (Guarujá), por conta da trajetória da

minha mãe fiquei dois anos sem estudar. Pra que estudar? “Estudar é pra quem vai fazer

alguma coisa, se você não vai fazer alguma coisa, pra que você vai estudar?” Minha tia falava

isso, minha prima, dizia: “Você vai ser advogado?” Eu dizia, não sei....”Não, você não vai ser,

então pra que você vai querer estudar?”.

Na minha nova casa morava eu, duas irmãs que eram só filhas do meu pai e minha

madrasta. Como era muito gente em um pequeno espaço, fui morar com minha irmã. Depois

de um tempo meu pai percebeu que não era legal o lugar que estávamos morando, foi então

que ele pegou minha irmã mais nova e voltou para o Nordeste.

Eu era muito grudado nesta minha irmã, me sentia o pai dela, foi muito forte isso.

Desde que ela foi à gente não se reencontrou. Ela foi morar com meus tios e aconteceu uma

coisa muito grave que foi o abuso sexual, daí minha irmã foi morar com minha prima, ficou

muito revoltada. Para piorar a situação nesta época meu pai foi esfaqueado e eu perdi

completamente o contato com ele, quase morreu.

Posteriormente eu encontrei ele sendo cuidado em um convento de freiras e

consegui trazê-lo de volta para o Guarujá.

Eu entrei no teatro com quinze anos, foi em mil novecentos e noventa e oito.

Entrei porque eu era muito tímido, não conseguia falar com ninguém, apesar de sempre gostar

de arte, eu adorava, versava, apresentava, brincava, eu sabia que a arte já...Tinha alguma coisa

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da arte...Adorava programa de TV, ficava brincando com as minhas irmã o tempo inteiro

disso, tinha algo muito forte porque sabia que a arte me chamava...

Em quatro, cinco meses, já fiz a primeira peça e comecei a viajar pela Baixada

Santista, já fazia meu dinheiro que era muito pouco na época, mas era. Pro artista é muito

bom você comprar uma roupa com o seu trabalho então é até uma poesia...”Um dia viverei da

minha própria arte” ...Por pior que seja, seja aquilo pouco. Dá muito orgulho pra gente porque

a gente consegue viver fazendo o que a gente acredita e gosta, porque primeiro de tudo acho

que todo artista tem que fazer o que ele acredita e o que ele gosta mesmo, então aquilo foi

muito gratificante pra mim.

Minha família não entendia. Falava que eu era vagabundo. Nessa época eu

morava com as minhas tias, depois fui morar com meus irmãos, só que tinha o problema das

drogas, a boca lá, tudo. Meu irmão queria que eu usasse droga, e eu sou tão careta e fiquei

com tanto trauma dessa época que até hoje assim a única droga que eu conheço é o álcool,

fora essa não conheço mais nenhuma porque foi muito marcante pra mim. Porque eu vou

perder tudo por causa da droga, perde tudo mesmo, casa, família, carro, emprego, some no

mundo, perde memória, movimento do corpo que foi o que aconteceu agora pouco quando eu

reencontrei ele também.

Por uma indicação de uma amiga, comecei a trabalhar em uma ONG com teatro.

Tinha dezoito anos. De manhã eu tinha uma média de vinte e cinco alunos. Era muito, então

eu tinha problema do tipo, aluno que não pegava na mão da menina pretinha de jeito nenhum.

Eu não sabia lidar com aquilo, preconceito racial muito forte. Tinha do menino que não ia

pegar no outro porque parecia que o outro tinha umas pintas, então aquilo era doença, é tinha

um menino que já parecia ser homossexual e então sofria bulliyng muito forte ali dentro.

Então assim, eu pegava todo esse problema de sociedade, preconceitos e tudo

mais e pra um jovem de dezoito anos é muita coisa, sem muita instrução apesar de que o

teatro exige da gente estudar pra se aperfeiçoar e eu acho que é muito forte a educação, acho

que acredito cem por cento que a arte ela é transformadora por conta disso porque ela exige a

reflexão, ela exige o olhar ela exige o parar e olhar o erro e olhar o outro, e no teatro é muito

forte o outro, eu sempre to fazendo pro outro então tem que observar o outro, saber como é o

outro, e refletir e tentar sentir a emoção, não dá pra fingir saber de fato, então exige um

sentimento muito forte de você conhecer como que é o outro, não julgar o fato né, busca a

historia toda, pra depois chegar ao fato em si.

Isso é muito forte na questão da Fundação nos meninos, porque julga só um fato

do menino, por exemplo, ele roubou então ele vai pra Fundação e vai ficar privado da

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liberdade dele e de outras serie de coisas. Mas ao mesmo tempo o Estado dava uma serie de

coisas pra ele também, lá fora ele não tem nada, então eu vi muito menino assim que não tem

nada lá fora e só tinha acessos nesse lugar que era no pé do morro, mas lá tinha o teatro, tinha

educação.

Essa ONG era no pé do morro, e o trabalho dessa instituição era muito importante

até era referência, na verdade eles iam pra lá pra tomar o café da manhã primeiramente,

depois eles foram gostando muito de mim e da questão do teatro, que eu fazia, mas não tinha

um olhar pra fazer, não tinha um acompanhamento, então tinha até lambaerobia.

A lambaeróbica era famosa por causa daquela música do “É o Tchan”, é a mesma

coisa que a Zumba de hoje. Uma coisa mais sensual. É o funk de hoje né? Era muito forte a

lambaerobica, e os meus alunos ficavam “P”35

da vida porque eu dava a lambaerobica. Doido,

porque quando as crianças chegavam eu colocava Elis Regina então imagina o contraste

absurdo e ai quando eu fiz uma apresentação pra empresa que era patrocinadora do projeto eu

fiz uma performance com duas musicas da Elis Regina, eles ficaram surpresos.

Foi então que descobri o quando era importante o onde estou, com quem falo e o

que eu digo, foi dai que eu comecei a perceber, porque eu era muito imaturo, eles faziam mó

”auê”36

, mas me respeitavam muito. Porque eles não tinham ninguém e tinha eu como o pai

deles, e eu com dezoito anos e os meninos de doze, treze, quatorze anos, e não tinham lugar

nenhum pra ir, e eu ficava morrendo de medo porque essa menina, no caso dessa menina, era

do lado, era muito forte a exploração sexual, do lado tinha pessoas que aliciavam menores. E

essa menina tinha um corpo muito bonito, era morena com um corpão, lá, doze anos, parecia

que ela tinha dezesseis, desenvolve demais, principalmente as meninas de hoje, então foi

“punk” pra mim.

Ai eu consegui conversar com essa terapeuta, essa pessoa que tinha me

contratado, porque ela vinha uma vez por mês pra saber o que tava acontecendo, fazia uma

reunião com a gente, passava uns exercícios, tinha muita coisa nossa que a gente absorvia,

mas nessa época é muito engraçado porque eu trabalhava na Fundação, mas já trabalhava lá

com os meninos.

Eram muitos jogos teatrais, dança, e eu fazia muito. Até um dia que eu pedi pra

acompanhar os meninos no colégio porque como é teatro a gente pega muito fácil já o menino

que é disléxico, o menino que não sabe ler ou o menino que tem dificuldade, o menino que

35

P: Bravos, inconformados. 36

Auê: Bagunça.

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não lê por vergonha que o outro fica fazendo chacota com ele então teve uma época que eu

quis fazer acompanhamento escolar dos meninos.

Quis fazer esse acompanhamento porque eu saio daqui e vejo que eles não vão

para o colégio, comecei a questionar a entidade também porque ela da comida pra todo

mundo e eu achava bacana ela dar comida, continua dando até hoje pra todo mundo do morro.

E recebe cesta básica. Então assim, só vem pra comer e teve um dia que eu fui muito radical

porque eu falei assim “quem veio só pra comer, só pra tomar café não precisa ficar na aula,

vocês podem ir embora” Porque eles não queriam fazer os exercícios, só que eles ficavam até

o final.

Hoje esses meninos são pais de família, estão trabalhando, eu vejo eles assim, dá

um orgulho assim, e todos eles me chamam de tio Pedro. Ô tio Pedro, num sei o que, ai eu

falo caramba você já tá com filho já. Mas já estão trabalhando, já tem sua casinha, seu

barraquinho lá no morro então de certa forma, tão seguindo sua vida.

Eu era aquele adolescente que fazia de tudo ali, que enchia o saco da diretora, que

via as faltas dos meninos, pra ver evasão escolar. Eu chegava no pátio, era muito engraçado,

que eu ia, falava assim “eu vou ver se vocês estão indo pro colégio mesmo”. Eu queria cobrar

resultado deles, porque eu falava, eu não posso ficar ensinando você a ler se eu tenho que

passar a outra cena com ela, fazer o exercício com a outra então era muitos e em idades

variadas ai chegava no pátio assim, eles iam tudo desesperado pra sala de aula.

Eu fiz um acordo com a diretora, eu falei assim, eu vou passar, mas eu vou passar,

na verdade só pra ver se eles estão vindo mesmo e foi muito legal porque começou a diminuir

a evasão escolar, eles foram melhorando, então foram participando, eu fazia um negócio pra

eles fazerem de acordo com o que eles conheciam um do outro e pedia pra eles fazerem o que

que eles queriam ser, e uma coisa que eu via muito nos meninos que eu também não tinha era

perspectiva de vida então eu acho que a gente é muito inquieto com o que eu quero e eu não

via perspectiva desses meninos de questionamento, bastava a alimentação, e venho aqui e faço

alguma coisa e tchau e como, e eu falava: “Vocês ficam o dia inteiro na rua fazendo o quê?

São crianças tem que brincar sim, mas porque não tá estudando?” “Ah, eu vou estudar não vai

adiantar nada”.

Eu vejo muito é que eles não tem perspectiva, então comecei a misturar a minha

turma já que eles falavam que não dava nada, então eu tinha um menino no grupo que era

filho do chefe do morro e era muito louco porque eu não sabia e eu questionava muito esse

menino, falava : “O que você vai ser?” Ele dizia que ia ser chefe da boca, eu falava : “Tá, e

você vai ter família, você acha que você vai ser feliz assim?”, então comecei a perguntar pra

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minha turma, principalmente os menores como eles viam as pessoas do morro E com cuidado

porque eu não sabia quem ali era filho de traficante e foi legal porque começou a ter um

feedback deles, eles trouxeram isso muito forte, trouxeram que tinha um irmão na cadeia, um

irmão na Fundação, um irmão morreu. E a gente começou a dramatizar como morreu, então

uma vez na semana eu pedia pra que a pessoa contasse a historia.

Todo dia eu pegava quem tivesse vontade de contar a sua historia e então

começou a ser muito forte aquilo porque as historias todas eram muito parecidas muito

dramáticas, ou perdeu a mãe, sempre a falta do pai muito forte pros meninos, acho que por

isso que os meninos davam mais trabalho pra mim, porque tinha uma referência também de

uma pessoa que tava ensinando pra eles alguma coisa, porque eu falava de tudo, de

sexualidade, igual eu trabalho hoje, eu aprendi a ser educador social e era muito legal porque

tinha dia que começava assim, “vou contar só que eu moro no morro, que minha mãe tem dois

filhos”. E ai se sentia a vontade e ficava igual eu aqui contando tudo.

Era muito gostoso isso e todo mundo se abraçava, tinha sempre uma oração que

eu fazia sempre com eles, que era: “todos os dias sob todos os pontos de vistas eu vou cada

vez melhor”, e ai eu fazia com eles e no final com eles falava “Nos vamos cada vez melhor”.

Ai eu falava, o dia que eles bagunçavam e eu não acreditava eu falava hoje eu não vou fazer

porque hoje não foi, não evolui, tem que aprender. Mas foi legal pra caramba, aprendi muito,

mas depois da escola me mandaram embora, tava enchendo muito o saco, comecei a

questionar porque muitas das minhas alunas tavam engravidando, da segunda turma.

Eu comecei a questionar isso porque recebia a cesta básica. Se engravidasse

recebia o enxoval e acompanhamento “lálálá”, enfim, eu falava que a preocupação destas

famílias é alimentação, aqui tem, a menina engravida ela ganha enxoval, parece um incentivo

a engravidar, então assim eu to ficando frustrado quanto a isso, vai receber a cesta, então tem

que vir pro letramento tem que vim pras oficinas, recebe um carimbo de participação, porque

eu não vejo o que é que eu to ensinando pra essas pessoas, que elas vêm aqui e não precisa se

preocupa, pode ter filho porque roupa não falta, calçado não falta e comida não falta, e o que

eu vejo aqui e que a gente tá ensinando que só precisa come e sobrevive, não vive, duas vezes

eu fui mandado embora.

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Fundação CASA

Na formação que veio com o Projeto Arteiros, tive a oportunidade de

experimentar as artes plásticas, eu não me considero artista plástico, eu sou muito desleixado

para isso, precisa estudar bastante, neste sentido o teatro é mais forte para mim, é a parte

em que eu me dedico mais.

As oficinas artísticas, essa parte cultural, é a parte que eles os internos da

Fundação CASA mais gostam, acho que é porque é mais libertador. Lá o menino transgride,

apesar de não poder fazer uma serie de coisas, ele sabe que tem uma liberdade minha pra

fazer porque pra mim não tem muito significado de proibi isso dai, é uma coisa complicada

pra gente também, porque às vezes a gente quer proibir, mas eu achei maravilhoso o trabalho

que o menino fez, e aquilo pra mim é arte, e pra eles aquilo ali é um elemento que o menino

pode tomar um CAD37

porque fez aquilo, porque só julgo aquilo que eu tava falando o fato.

Acho que o artista ele sempre tem essa visão do outro primeiro, como ele é, o que

é, eu não te conheço, eu não sei a sua história, então acho que primeiro a gente parte disso,

então independente da linguagem são todos artistas, então chego ali eles querem olhar um pro

outro, no olho, ouvir o que pensa o que gosta de sentir, ao mesmo tempo a gente é muito

sensível pra algumas coisas, e a gente percebe às vezes num olhar fala a vida dele inteira, às

vezes num olhar de trinta segundos que a gente teve com ele.

Eu tive uma experiência bem forte recentemente com um menino, realmente não

errei, porque, ele veio pra minha oficina duas vezes e era um menino que é muito agressivo lá

dentro, e eu falei assim, ele é muito grande, e eu falei assim, porque esse menino é tão

agressivo? Então eu parei, e ele veio em uma aula polêmica que a gente tava falando sobre

racismo, e ele é negro, e eu fiz a bobagem ou eu tive a felicidade de usar ele como exemplo ai

ele veio pra cima de mim com tudo.

“Não quero que você me use como exemplo! Eu não quero saber de preto!” Né?

forte assim, o moleque quando levantou eu pensei para de subir moleque, porque ele era

enorme o moleque! Enorme!

Eu olhei no olhar dele e vi aquilo como autodefesa, não era uma agressividade

que ele se sentiu mal, e eu falei desculpa não vou usar você como exemplo, apesar de ele ser

da outra aula, é que juntou nesse dia, e eu pedi desculpa pra ele e falei que não ia utilizar ele

como exemplo, mas eu tava dando o exemplo de pele, pode ser a minha que eu tava

comparando a minha com a de outro menino, e eu falei a minha e a dele, e eu tava falando

37

CAD: Comissão de Avaliação Disciplinar – analisa a situação em que o adolescente estava envolvido podendo

gerar alguma sanção para ele.

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sobre o negro e porque a gente não se sente negro, quem é negro, porque que não fala que é

negro, porque a gente não quer ser negro, porque, enfim a gente tava falando do negro porque

culturalmente tem uma coisa que o negro é ruim, é bandido, se é mal, não presta, eu não vou

ser negro, nem que seja preto igual um piche, mas eu não vou dizer que sou negro que negro é

ruim.

Eu tava querendo desmistificar isso dai, principalmente falar da historia do negro,

da escravidão, não são escravos, foram escravizados, eu tava falando justamente tudo que o

negro tinha contribuído para a sociedade brasileira, e ai no final ele começou participar e

ficou muito feliz e ali eu ganhei ele, depois veio me agradecer e pediu desculpa por aquilo, e

eu falei não, não tem problema, que realmente eu peguei você de surpresa você tinha acabado

de entrar e tal, e ele falou achei muito legal, e ai esse menino pediu pra ir pra minha oficina a

partir disso, e ai ele saiu, fugiu esse menino, logo depois que teve duas aulas comigo, e depois

ele voltou e eu percebi no momento que eu conversei com ele, pedi pra fazer um desenho e

ele fez um desenho como se uma criança de dois anos de idade fizesse um desenho, e aquilo

me chocou, o sol, a boquinha o moleque você olha, você fala assim que tem trinta anos o

moleque, o moleque tem dezessete, dezesseis! Dezessete anos, e ele fez um desenho igual

criança de dois anos, então aquilo foi muito forte pra mim, de olhar um sol sorrindo com uma

nuvenzinha azulzinha, só isso, foi punk aquilo pra mim, acho que a arte é isso, desenho, ele

ficou com muita vergonha, e eu falei não, tá bonito, que bacana que você se dispôs a fazer, ele

falou não mais eu não sei fazer, ele ficou com muita vergonha, e eu pedi pra ele escrever o

nome dele.

Eu acho que a arte ela traz isso, a partir do desenho dele, o escrever dele, a forma

como ele pinta, a cor que ele pinta, eu peço pra ele pinta uma paisagem, e ele pinta um

palhaço com a arma, não é o palhaço, não vou julgar o palhaço que ele pintou agora, mas

porque ele pintou o palhaço? O que ele tava pensando quando ele pintou o palhaço? O que ele

tava pensando quando ele desenhou aquela arvore cheia de raízes? O que ele pensou quando

desenhou aquele sol? Então acho que a arte ela é transgressora, começa por ai, então você

pode prender na tranca, na solitária, no muro em uma caverna, onde quer que seja, mas tem,

se sua mente consegue pensar no desenho, consegue pensar em uma musica, sai dali, é o

único lugar que a gente é liberto realmente, acho que se não existisse a arte acho que a gente

seria um bando de zumbi louco!

Eu não consigo imaginar um mundo sem cores, sem música, sem teatro, sem

gente idiota fazendo palhaçada, eu não consigo imaginar, acho que é muita piração, e lá

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dentro da Fundação é proibido fazer a idiotice, é proibido fazer a coisa engraçada, hoje com

meus alunos a gente se pintou de palhaço todo mundo.

Levei umas perucas, duas perucas coloridas que eu tenho um boné, coloquei nos

meninos e, os outros me cobraram porque não deu pra pinta na primeira aula deles, “poxa

senhor você pintou eles de palhaço e não pintou a gente”, eu não pintei o palhaço coringa com

os meninos, os meninos tavam pintado com o nariz, só fiz o narizinho aqui branco alguns eu

fiz amarelo, marquei um bigode preto aqui, fiz uma sobrancelha engraçada pra cima cada um,

só isso, mas nada, e levei roupa!

Então assim a roupa significa tanto pra eles cara! De estar lá dentro né, porque é

uniformizado né, ce tira, eu acho, enfim tira a dignidade da pessoa ali, por isso que a arte é

transformadora ali, a partir do momento que o palhaço tá fazendo a palhaçada, então ele

quebrou, primeiro que não é o palhaço, não vai poder proibir, e o menino tá fazendo a piada,

então ele tá contando a piada de escorrer no tomate atravessando a rua, enfim fizemos um

número de palhaço, as coisa mais babaca que existe no mundo e eles adoraram, e foi isso que

eu falei pra eles, falei assim porque tava falando justamente já pensou um mundo que não

existisse isso? Ser ridículo, ser idiota pra gente rir, e ser ridículo ser idiota fazer essa coisa

boba que a gente ta fazendo aqui, é uma coisa que agrada tanto a criança de dois anos, quanto

a de cinco, quanto a de sete, quanto a tua mãe de trinta e nove, quanto a tua avó de sessenta,

quanto...não importa, agrada todo mundo porque é disso que a gente precisa, que a gente

esquece, o quanto é engraçado uma piada boba, sem graça, contar ali com uma peruca

colorida e nariz de palhaço e pintado ne?

Em nenhum momento algum menino quis fazer o coringa, o palhaço38

, não! é o

palhaço de circo pedi pra eles, uma música engraçada e veio Patati Patata, veio, o menino

cantou...esqueci agora, enfim aquelas musicas de criança galinha pintadinha, enfim, ele

cantou isso, então isso é muito gostoso, você trazer, esquecer completamente que eu to

trancado aqui, que tem um funcionário me olhando, que se eu ri me olha feio porque eu to

rindo, e riram se divertiram, brincaram, fizeram palhaçada, se pintaram e no final a gente se

limpou e foi todo mundo pro pátio tranquilo sossegado e os outros me cobrando porque não

tinham se pintado tanto quanto os outros.

Então isso é, não tem preço, é muito gratificante pra gente então assim, pra gente

é transgressor de falar, tirei sorriso de todo mundo ali, todo mundo riu, brincou e eu me

38

Desenhos e tatuagens de palhaços que fazem referência ao crime organizado.

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divertir, foi isso que eu falei pra eles, queria que vocês se divertissem, tava tão pesada a coisa

texto e tudo, cortei tudo, não vai ter nada, vai ter essa cena de palhaço, fazer uma cena da

cadeira lá, não toque aqui, mão na cadeira e brincar com isso, só isso, essa vai ser nossa

apresentação, mais nada e foi legal pra caramba, e é isso, que é a mesma coisa e enfim, nem

lembro mais a historia que eu tava falando...

É isso, é engraçado porque a gente nem se atém pra algumas coisas, é até legal

fazer isso! Eu nem tinha sacado que tinha sido tão legal a aula de hoje, apesar de ter rido

bastante e brincado com eles, eu não tinha sacado que tinha sido tão gostoso, e quanto é

importante pra eles esse rolê.

Tem um menina que tá se formando em direito agora, e tenho ela no Facebook,

tenho contato e assim você vê a menina falando, ela se ateve para a leitura, livros que eu nem

li que é uma vergonha que eu devia tá lendo e a menina tá lendo, então assim, é muito

gratificante isso, e de até meninos que mesmo voltando, falam coisas, que a gente acha que

não estão ouvindo, até falo uma coisas que falo assim algumas coisas muito rebuscadas né , as

vezes eles me questionam muito por causa disso, porque sempre querem levar o mesmo, que

nem digo o óbvio, porque o óbvio é muito difícil de enxergar e de ter, mas de levar coisas, é

até legal levar o óbvio, mas não leva, de levar coisas pros meninos e falam assim, mas os

meninos não entendem isso né, ele não vai saber o que é isso, então sei lá falar de Anne Frank

por exemplo, de falar de Chaplin, “a mais você tá falando do diário de Anne Frank, o moleque

não vai saber o que é isso, nunca vai saber o que é isso”. Se engana! Se identificam

completamente com a história.

Acho da minha vida o que foi mais transformador mesmo foi a arte, acho que eu

colocaria a arte com o antes e o depois. É o rio que veio pra mudar e trouxe muitas coisas, o

antes e o depois, a arte acho que foi um momento transformador na minha vida, que foi a

partir do teatro, que foi a primeira linguagem que eu conheci...

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Transcriação Colaborador Pedro

Uma grande família unida, memórias de um tempo perdido, histórias vivas,

pulsantes, parte da construção de si. Um grande sítio, dez tios, inúmeros primos, casas lado a

lado compartilhando a terra, frutos! Pega-pega, feijão, esconde-esconde, milho, queimada,

batata doce! Frutas! Banana, jabuticaba, goiaba e seriguela, tudo ao alcance da mão, muda

gosto, muda relação.

Bonito, interior do Estado de Pernambuco. Como era grande aquele pequeno

mundo. Nele adultos batiam...quebravam... pedras! Eram quatro pedreiras, o pai em uma delas

estava, era meio fio, paralelepípedo, moldes de pedra. Se era o destino de todos, não podia ser

diferente e desde cedo desejava, desejava reproduzir e escondido quebrava, batia, sentir-se

fazendo parte...ciclo sistêmico.

Trabalho árduo, bruto, esgota...e em copos todo o peso se esvai, até o próximo

nascer do sol. Para o pai servia, serventia, a mãe das letras não sabia e aos oito anos uma

marca inesperada vinda do pai ”Eu não quero que você seja igual seu pai, burro e quebrando

pedra! Quero que o maior peso do seu trabalho seja uma caneta!” Novas rotas! Fuja!

Na cidade vizinha as visitas aumentaram, a mãe doente alterava a rotina,

mudanças, muito porvir. Em Caruaru uma nova casa alugada, três vezes por semana diálise,

era penoso, intravenoso, três anos e o mesmo cotidiano, até que ela cedeu. Tristeza,

sentimentos, respeito, velar.

Posteriormente revolta, indignação, NÃO! Contaminação! De 126 pessoas, 60

morreram, insuficiência hepática, como causa? Cianobactérias, no cru, água contaminada tudo

muito rápido, muito confuso, turvo demasiado para 12 anos.

Como repetição de longa data a migração Nordeste/São Paulo, destino Guarujá.

Contrastes, rupturas, diferenças e dificuldades. Novos conhecimentos adquiridos, sobre o

morro, morar no morro. Lá no alto barracos de madeira, uma pobreza diferente, miséria,

feiúra. Na TV São Paulo era belo já no concreto o morro é cruel, decepcionante.

Aprofundando, o Morro do Engenho no Guarujá era famoso! Pelo tráfico de

drogas...muita gente boa fora disto também, resultado? Vizinho da boca com poucas saídas

afinal o tráfico oportuniza, na brecha do sistema, quando tu vê, irmão, sobrinho e amigos

rapidamente escalados, na função desempenhando corres...vida loca.

Ingenuidade ou esperteza, não foi levado pela correnteza. Imagens, flashes de uma

guerra periférica. Entre tiros, garante, o lado debaixo da cama é o melhor lugar, balas

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perdidas. Quando a PM sobe o morro, não há lugar e é melhor correr, balas acertadas, dá pra

morar aqui?

A casa é pequena, a família nem tanto, pai, madrasta, irmãs, primos.

Periodicamente a água vinha para diminuir o espaço, transtornos, no olho do furacão dois

anos sem escola, pai e irmã querida voltaram para a terra natal. Com a irmã nunca houve

reencontro. Assaltado e esfaqueado o pai regressa.

Em 1998 o encontro com o teatro, apenas quinze anos, muitas vivências e uma

grande timidez. Rapidamente foi se envolvendo, avançando, sabia, desde cedo que a arte o

chamava. Gratificações! Das apresentações, das viagens! E um troco da luta. Orgulho!

Aos dezoito, professor de teatro, outras dificuldades novos aprendizados.

Compartilhando histórias, acompanhando na escola, a pressão põe cabelos no chão, o estresse

marcava. Neste processo doloroso, certeza! “acredito cem por cento que a arte transforma!”,

olhar o eu, olha o outro, refletir, emocionar, o que sinto, o que faço, me movo. Em casa, o

apoio das tias no conturbado momento...pouco a pouco o irmão perdia tudo nas mãos do

tráfico.

Fundação CASA, a ”Casa Guarujá” antigamente era escola, dá pra acredita? Novo

desafio, Arte Educador, lá dentro é possível? Adolescente em medida sócio educativa de

internação, maquiagem bonita não? Perfil de 12 a 16 anos, molecada no inicio da estrada,

metade da turma tem a altura da sua cintura, são outras infâncias, outros brinquedos.

Estatísticas, metade furto, metade tráfico e uma parcela irrisória nos hediondos, desculpe

decepcionar, mas a violência do país não vem daqui.

Círculo fechado, em frente a grades e portões pesados, agora adulto vê, na massa

cinza de meninos iguais, semelhanças, pois aos 12 no pé do morro viveu parcas

oportunidades, migrações, misérias, parentes no tráfico, violência, polícia e perdas. Trilhas

parecidas levaram Arte Educador e adolescentes ao mesmo ponto em funções diferentes.

Nuances da vida...

Diante daqueles que relembram que seu destino poderia ser igual, o início das

oficinas de artes plásticas propunha um caminho diferente, contrariando a regra., pois ali tudo

é proibido. A arte é libertadora, transgride. Na corda bamba, a produção pode ser maravilhosa,

expressiva e num estalo, repressiva! Não são só os corpos que devem ser vigiados, suas

manifestações serão sim censuradas, nossa história é recheada de permanências.

É no fio da navalha que a arte se expressa ali dentro, seja na oficina, na solitária,

dentro do quarto. Em uma delas todos vestidos e pintados de palhaço, sem coringas (não dê

forma a fantasmas), o vestir personagem é significativo, dignidade para aqueles que obrigados

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andam sempre iguais, cabelo, roupa e chinelo. Dentro destes processos, piadas fugazmente

esquecem dos muros, das grades, das vigias, dos olhares, violências, ausências. Saudades,

lampejos...é transgressor um sorriso dentro da Fundação CASA.

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Transcrição – Entrevista Rogério – linguagem graffiti - Segunda Entrevista.

Dia – 26.03.15

Local – Casa do colaborador – Itanhaém.

Daniel: Então Rogério como a gente tava conversando, esta entrevista faz parte da pesquisa

de Mestrado que eu to fazendo na Unicamp, que eu to entrevistando arte educadores para falar

sobre trajetória de vida e arte. É...a pergunta que eu queria começa aqui com a nossa conversa

seria se você tivesse um muro, infinito assim pra pra...desenhar sua vida, pinta sua vida, o que

você colocaria neste muro?

Rogério: É...acho que...eu ia coloca...assim tipo...todo sentimento assim que eu já passei

né...na vida assim...e...e...acho que...é...po essa pergunta é difícil hein!! Risos

Daniel: É...é pensar mesmo o que marcou sua vida...que que se...

Rogério: Ah...eu colocaria assim desde o inicio assim quando eu comecei a...lidar com a

arte...que sempre foi uma coisa que eu sempre quis ne...mesmo eu não sabendo como

lidar...mas eu sempre tive essa vontade...e...foi mais ou menos assim tipo... conversando com

as pessoas e com outros artistas e outros caras que desenhavam que faziam graffiti que eu fui

aprendendo...e...então acho que...seria mais ou menos isso...eu ia colocar essa trajetória ai...

Daniel: E você é aqui de Itanhaém mesmo? Você nasceu aqui? Como é que foi?

Rogério: Não, nasci em São Paulo, zona norte, bairro do Tucuruvi...

Daniel: Bairro do Tucuruvi? E...como é que foi lá?

Rogério: Então foi lá que eu comecei a fazer graffiti né...porque lá já tinha uns graffiteiros

lá...e eu...já via os graffitis deles...só que assim... eu não conhecia, mas eu via sempre a

rapaziada pintando na rua...e eu tinha contato com a pichação...só que eu não era muito

pichador assim...não era muito de pichar sai fazendo igual o pessoal da escola ne...que

assim...na realidade eu aprendi tudo isso na escola né...rabiscando a carteira rabiscando o

banheiro...assim que a gente começa...

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Daniel: Com quantos anos mais ou menos?

Rogério: Ah...com doze, treze anos...ai depois eu fui curti outras coisa...eu não curti...eu

não...sai um pouco do graffiti e da pichação...eu fui curti outras paradas lá...ai depois de mó

tempo assim eu já tava velho já...

Daniel: Mas que que era essas outras parada?

Rogério: Era moto, bike, tendeu...saia assim, dá um role no salão...ia curti essa outras

parada...longe do graffiti..da arte assim...eu já tinha até parado de desenhar já...ai depois eu

fiquei sabendo que abriu uma oficina...que era a oficina do Binho...que era lá na zona norte

mesmo...ai eu peguei um flyzinho...não minto...eu achei uma revista...a primeira revista de

graffiti...eu trabalhava de boy... e...achei a revista dos gêmeos...que era a primeira ne...ai eu

inclusive até tenho ela ai...até hoje.

Daniel: Você guardou ela?

Rogério: É eu guardei! Ai eu peguei e...olhei né..aí na hora que eu olhei eu falei...puta é isso

mesmo que eu quero fazer...eu curti pra caramba! Ai eu fui atrás ne ai eu já sabia que os caras

tinham...tinham um grupo de graffiti...que era o Tinho o Binho...o pessoal do terceiro mundo,

que é o pessoal lá na zona norte...ai eu peguei e resolvi tipo procurar os cara pra poder

aprende alguma coisa...ai eu entrei na oficina do na oficina deles, só que eu não tinha grana

pra pagar...

Daniel: Que era paga a oficina dos cara?

Rogério: Era paga, mas eu ia...ai eu fiz um esquema com os caras...ai eu pintava os

muros...pra eles poderem fazer a produção deles...

Daniel: Você passava o branco lá...

Rogério: Passava o branco...e eles vinham pintando...só que eu não pintava porque eu não

sabia ainda ne...só pintava pros cara só...e nisso eu fui aprendendo...ai eu fui

evoluindo...pegando uma informação aqui e ali...não só com grafiteiros...também com artistas

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plásticos também...que não tinham nada haver com o graffiti...então eu fui pegando varias

influencias de várias pessoas pra poder criar uma pra mim...

Daniel: E quantos anos você tinha nessa época?

Rogério: Nessa época eu já tava velho já...já tinha uns 20...

.

Daniel: Tava velho! Rs...e tava lá em sampa ainda?

Rogério: É tava em sampa...mas eu comecei a pintar mesmo...por a mão na massa mesmo

com uns 24 anos...que eu comecei a dar role na rua...que eu comecei a entender essa coisa

ai..ai nesse curso eu conheci o Maomex ...Maomex é um graffiteiro lá de São Paulo...ai foi ele

que...assim porque os caras não passavam muita informação pra gente né...tipo eles dava só o

básico e guardava tudo pra eles né...então ficava difícil...não tinha muita informação...não

tinha revista não tinha internet...não tinha tinta...

Daniel: Era difícil compra tinta?

Rogério: Era difícil...era cara a tinta e era uma tinta que não era uma tinta boa...assim...não

era igual hoje tem varias marcas...antes era uma só e era ruim a marca..tinha que tirar o ar da

lata...mas mesmo assim a gente.

Ai eu conheci o Maomex e o Maomex que começou a me mostrar o outro lado

né...ai ele pegou e falou assim não vamo faze um esquema de produção e tal...um role...ai eu

comecei a dar uns role com ele...ai que eu comecei a evolui...ele não era um cara que

guardava os segredos...ele já pegava e abria...ele manjava pra caramba já...foi ele que me

ensinou a tirar o traçinho fino, o traço grosso a pinta realmente.

Daniel: O cara que te ensinou mais assim...

Rogério: É...eu comecei a andar com ele...que foi um passo assim pro graffiti...pro meu

graffiti assim evolui senão ...acho que...uma hora eu ia evoluir mais ia ser mais demorado...foi

ele que abriu tudo a jogada...assim...tipo...mostrou assim mesmo...dá pra fazer isso dá pra

fazer assim tirar um traço fino...me ajudou bastante...

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Daniel: Ai depois lá em sampa você ficou até quando?

Rogério: Em sampa eu fiquei...eu fiquei...na realidade...eu fiquei até 2010...mas eu não

trabalhava...eu trabalhava com a...inclusive foi ele também que me colocou neste trabalho de

arte educador...que a gente...ele trabalhava lá no Tatuapé...ai eu já queria...eu assim não sabia

não manjava nada de ensinar nada...mas eu tinha uma base do curso...do Binho que tinha lá

que eu vim da rapaziada já vinha ensinando...então eu já tinha mais ou menos uma base assim

de como poder ensinar as pessoas, só que assim não manjava não tinha pratica...foi ele

também que me ensinou essa parte ai..falo não...tipo você tem que fazer isso e isso montou

uma apostila...mostrou mais ou menos como ele fazia com os alunos dele...que dava aula no

Tatuapé...ai ele que me coloco também no projeto...na FEBEM pra poder trabalha lá.

Eu trabalhei na...trabalhei no Tatuapé antes de derruba...trabalhei na 12, na 26 na

16 que era umas unidades assim bem...que os moleques ficavam encima do telhado um

comunicando com o outro...assim né...então era...era difícil...trabalhei lá...trabalhei na raposo

tavares que era a 37 38...trabalhei no seguro, os muleque lá do amarelo...trabalhei em taipas,

no feminino, trabalhei em bastante lugar já...na semi aberta de belém na zona leste...na

penha...trabalhei na penha...na penha não fiquei muito tempo mas também já tive lá já...era a

noite que eu fazia...e...ai depois acabou o projeto...ai eu fui trabalha com outras coisas...ai

depois em 2010 que eu vim morar em Itanhaém...e a gente monto a caverna a gente começo a

dar aula...foi aparecendo outras oportunidades...foi quando o Tosqueira me falou deste trampo

ai do CEDAP que ele não podia ir...ai você não quer ir e tal...peguei e fui...quando a gente foi

se encontra lá na praia lá...a gente fez a entrevista lá...ai eu to ai agora...até agora...faz dois

anos.

Daniel: Dois anos já né!

Daniel: E como é que você acha que a arte ...a influencia da arte na sua vida tanto pessoal

como profissional?

Rogério: Então é...na realidade...é assim...eu vivo da arte ne...tudo que que eu tenho..no

momento que eu compro é através do graffiti mesmo...porque ...eu dou aula, ensino...to

vivendo mais ou menos dele ultimamente...assim eu não faço trabalhos comerciais

...ainda...mas eu pretendo faze alguma coisa faze algumas exposições também...e ...assim

é...graças a deus que assim...no momento eu sei desenha e eu sei essa parte ai...eu fico até

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agradecido...porque se não fosse eu ia tá fazendo outra coisa...então...por enquanto eu to me

virando bem...me sustentando disso...dessa arte do graffiti...e...que mais?...me fugiu agora a

ideia...

Daniel: (Risos) Tá cedo né?

Rogério: É...então...

Daniel: Você acha que ...Essa arte, o graffiti especifico que você trabalha...pros

adolescentesda Fundação CASA?

Rogério: Não entendi...

Daniel: Que que você acha que o graffiti trás pra esses adolescentes da Fundação CASA?

Rogério: Po eu acho que assim...é uma salvação ali pra eles...porque...você percebe que...todo

mundo é interessado ne...quando você vai monta um curso de graffiti lá...tipo as vagas elas

já...acabam rapidinho assim...porque...eu acho que assim...é por causa também o lance das

cores a gente poder trabalhar com cor...a rapaziada ta ali todo mundo muito no cinza né...ai

você trás...você leva um amarelo um vermelho um azul...acho que desperta alguma coisa

ali...não só por ser um material...um material bom...mas por causa da cor mesmo...deles poder

brincar ali.

A pintura a tinta a arte vira uma brincadeira ne meu...tipo assim eu por exemplo

sempre gostei de brincar, desde criança, sempre brinquei...brincava de carrinho então

arrumava uma brincadeira, brincava de pipa, então eu sempre fui uma criança que brincou,

ajudou no meu lado criativo também...ate hoje assim eu fico pensando...então as vezes eu

tenho uma facilidade no improviso alguma coisa assim na arte, porque eu brinquei muito

assim quando era criança...então eu inventa minhas brincadeira...inventa meu

brinquedos...lápis de cor sempre foi um brinquedo pra mim também...canetinha..é..sempre

pegava brincava , criava meus personagens e tal...

Daniel: Já desde criança...

Rogério: Já desde criança...eu não tinha técnica...mas eu sempre desenhei assim desde

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criança...sempre brinquei...

Daniel: E quem te dava os lápis de cor?

Rogério: Minha mãe, ela...minha mãe ela sempre foi envolvida também com arte...meu

pai...meu pai ..meu pai ele produz uns quadros e tal...uns quadros com pedra...que ele fica

colando...sempre...minha mãe também, minha mãe sempre pintou pano de prato, sempre

chamava um monte de gente em casa um monte de tiazinha e ficava pintando e ensinando

também...até hoje ela ensina na igreja né...então isso dai eu sempre cresci neste meio assim...e

com tinta perto de mim sabe...mesmo eu não fazendo...eu sempre tinha...uma tinta de tecido

uma tinta acrílica...vários pinceis...era o material dos meus pais...isso dai me ajudou

também..facilitou a...ter uma facilidade assim pra poder desenhar pra poder pintar...foi um

incentivo ne...que eles me deram...foi isso ai.

E em relação ao menores lá da Fundação...eu acho que é isso...mais ou menos

isso...porque assim os caras...as vezes eles não passaram aquela fase ne aquela fase de criança

de brinca...então ele pularam aquilo ali...eu vejo muito isso...os jovens de hoje tão pulando

essa fase mesmo...eu vejo pela minha filha apesar que ela gosta de brincar bastante...mas que

nem ela quer ser mocinha já entendeu...já quer ser grande e tal...então...

Eu acho que é importante passar essa fase...e ali eu vejo que muitos não

passaram...então quando a gente leva esse material assim...a tinta o lápis...eu acho que um

pouco ai eles voltam a ser criança...eles tiram aquela coisa, aquela maldade de ser bandido e

tal e voltam a ser criança...se for deixar pra eles fazer um desenho livre ali você vai ver a

inocência ali no desenho dos caras...tem alguns que não mas na maioria é inocente mesmo

sabe...eu percebo isso...e...é isso ai...acho que é importante esse trabalho ai...mas eu acharia

mais importante se fosse na escola mesmo...na escola do Estado, da prefeitura do que já na

FEBEM né?

Acho que deveria trabalhar com eles na rua...não quando eles estão presos, não

que lá eles não tenham que ser trabalhados também, mas acho que o trabalho maior tinha que

ser agora antes deles serem presos antes deles se envolverem com isso ai..que é o que a gente

tenta fazer lá na Caverna lá...que aqui é um bairro que...existe muita biqueira muita

criminalidade...então...pros moleque entra e trabalha com os traficante é dois palito...porque é

muita família desestruturada...entendeu?

Então é isso que os cara veem ne...eles tipo querem é isso...tipo ver o moleque o

pai que bebe a mãe que não ta nem ai...pode vir trabalha pra ele...e aqui tem demais...então a

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gente procura através deste trabalho dá uma ideia nesses muleque ne...pelos menos transforma

os cara não em bandidão...mas pelo menos transforma o cara num skaitista, graffiteiro..porque

é uma ideia diferente...se vê que...se o cara for skatista por exemplo ele não vai querer muito

se envolver...ele vai querer andar de skate...não assim falando de todos, não

generalizando...mas assim eu acho que...tira um pouco o foco né...da criminalidade...desse

caminho ai...acho que...é isso ai a arte salva mesmo...que...tem que ter arte pros moleque ai.

Sei que é difícil assim também as vezes você não consegue resgatar o cara...pelo

convívio ne...dele...pela falta de oportunidade...porque...pra o cara fazer a arte ele vai ter que

se interessar também...se interessar...ter que querer...que a arte a gente só aprende fazendo

mesmo...não adianta só eu ir lá e falar e...e explica e só fala da teoria...mas se o cara se o

aluno não por em prática ele nunca vai aprende também, se ele não por a mão na massa,

porque cada um vai criar sua própria técnica, a técnica é uma mas fazendo cada um cria a sua

particular.

Daniel: Beleza Rogério!

Rogério: É isso?

Daniel: É isso! Agradeço Rogério!

Rogério: Fecho!

Daniel: Trocado uma ideia ai comigo já pela manhã!

Rogério: Tava meio sonolento ai. Eu tava te esperando já!!

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Textualização – Colaborador Rogério

Primeiros passos

Eu nasci em São Paulo, zona norte, bairro do Tucuruvi, foi lá que eu comecei a

fazer graffiti, porque lá já tinha uns grafiteiros, eu já via os graffitis deles, só que assim, eu

não conhecia, mas eu via sempre a rapaziada pintando na rua, e eu tinha contato com a

pichação, eu não era muito pichador assim, não era muito de pichar, sai fazendo igual o

pessoal da escola, na realidade eu aprendi tudo isso na escola, rabiscando a carteira

rabiscando o banheiro, assim que a gente começa.

Comecei com doze, treze anos, ai depois eu fui curti outras coisas, eu sai um

pouco do graffiti e da pichação, eu fui curti outras paradas lá, ai depois de mó tempo assim, eu

já tava velho já. As outras paradas era moto, bike, saia assim, dá um role no salão, ia curti

essa outras parada, longe do graffiti, da arte assim, eu já tinha até parado de desenhar já, ai

depois eu fiquei sabendo que abriu uma oficina, que era a oficina do Binho, que era lá na zona

norte mesmo, ai eu achei uma revista, a primeira revista de graffiti, eu trabalhava de boy, e

achei a revista dos gêmeos, que era a primeira, eu inclusive tenho ela até hoje.

Eu guardei a revista, ai eu peguei e olhei, na hora que eu olhei eu falei: “Puta é

isso mesmo que eu quero fazer!” Curti pra caramba! Eu fui atrás, já sabia que os caras tinham

um grupo de graffiti, que era o Tinho e o Binho, o pessoal do Terceiro Mundo, que é o

pessoal lá na zona norte, eu peguei e resolvi procurar os cara pra poder aprende alguma coisa.

Ai eu entrei na oficina deles, só que eu não tinha grana pra pagar, era paga a oficina, mas ai eu

fiz um esquema com os caras, ai eu pintava os muros, pra eles poderem fazer a produção

deles.

Passava o branco e eles vinham pintando, só que eu não pintava porque eu não

sabia ainda, só pintava pros cara só, e nisso eu fui aprendendo, ai eu fui evoluindo, pegando

uma informação aqui e ali, não só com graffiteiros, também com artistas plásticos que não

tinham nada haver com o graffiti, então eu fui pegando várias influencias de várias pessoas

pra poder criar uma pra mim.

Nessa época eu já tava velho, já tinha uns 20 e tava em Sampa, mas eu comecei a

pintar mesmo, por a mão na massa mesmo com uns 24 anos, só que os caras não passavam

muita informação pra gente, tipo eles dava só o básico e guardava tudo pra eles, então ficava

difícil, não tinha muita informação, não tinha revista não tinha internet, não tinha tinta.

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Era difícil comprar, era cara a tinta e era uma tinta que não era boa, não era igual

hoje tem várias marcas, antes era uma só e era ruim a marca, tinha que tirar o ar da lata, mas

mesmo assim fui indo.

Ai eu conheci o Maomex, foi ele que começou a me mostrar o outro lado, ai ele

pegou e falou assim: “Vamo faze um esquema de produção e tal”. Aí eu comecei a dar uns

role com ele, ai que eu comecei a evolui, ele não era um cara que guardava os segredos, ele já

pegava e abria, ele manjava pra caramba já, foi ele que me ensinou a tirar o traçinho fino, o

traço grosso a pinta realmente; eu comecei a andar com ele, que foi um passo pro meu graffiti

evolui, senão acho que uma hora eu ia evoluir mais ia ser mais demorado, foi ele que abriu

tudo a jogada, me mostrou tudo mesmo, dá pra fazer isso dá pra fazer assim tirar um traço

fino, me ajudou bastante.

Do mestre para o discípulo: o início na Fundação CASA.

Em Sampa eu fiquei até 2010, mas eu não trabalhava, inclusive foi ele também

que me colocou neste trabalho de Arte Educador, ele trabalhava lá no Tatuapé, ai eu já queria,

eu não sabia, não manjava nada de ensinar nada, mas eu tinha uma base do curso do Binho

que tinha lá que eu vim da rapaziada já vinha ensinando, então eu já tinha mais ou menos uma

base assim de como poder ensinar as pessoas, só que assim não manjava não tinha prática, foi

ele também que me ensinou essa parte e me disse: “Você tem que fazer isso e isso”.

Montou uma apostila, mostrou mais ou menos como ele fazia com os alunos dele,

que dava aula no Tatuapé, ai ele que me coloco também no projeto, na FEBEM pra poder

trabalha lá, ai eu trabalhei no Tatuapé antes de derruba, trabalhei na 12, na 26 na 16 que era

umas unidades assim que os moleques ficavam encima do telhado um comunicando com o

outro, então era difícil, trabalhei lá, trabalhei na Raposo Tavares, que era a 37 e 38, trabalhei

no seguro, os muleque lá do amarelo, trabalhei em Taipas, no feminino, trabalhei em bastante

lugar já, na semi aberta de Belém na zona leste, na Penha mas não fiquei muito tempo, mas

também já tive lá já, era a noite que eu fazia, ai depois acabou o projeto, ai eu fui trabalha

com outras coisas,.

Em 2010 que eu vim morar em Itanhaém, e a gente monto a Caverna39

, a gente

começo a dar aula, foi aparecendo outras oportunidades, foi quando o Tosqueira me falou

39

Caverna house, é o nome dado a um espaço coletvo utilizado para a realização de atividades de skate, graffiti e

rap, na cidade de Mongaguá.

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deste trampo ai do CEDAP40

que ele não podia ir, você não quer ir e tal, peguei e fui, quando

a gente foi se encontra lá na praia lá, a gente fez a entrevista e ai eu to ai até agora, faz dois

anos.

Eu acho que o graffiti para os meninos da Fundação, é uma salvação ali pra eles,

porque, você percebe que todo mundo é interessado, quando você vai monta um curso de

graffiti lá, as vagas acabam rapidinho, porque eu acho que é por causa também do lance das

cores a gente poder trabalhar com cor, a rapaziada ta ali todo mundo muito no cinza, ai você

trás um amarelo, um vermelho, um azul, acho que desperta alguma coisa ali, não só por ser

um material, um material bom, mas por causa da cor mesmo, deles poderem brincar ali,

porque a pintura, a tinta, a arte vira uma brincadeira.

Eu, por exemplo, sempre gostei de brincar, desde criança, sempre brinquei,

brincava de carrinho então arrumava uma brincadeira, brincava de pipa, então eu sempre fui

uma criança que brincou, ajudou no meu lado criativo também, ate hoje assim eu fico

pensando, então às vezes eu tenho uma facilidade no improviso alguma coisa assim na arte,

porque eu brinquei muito assim quando era criança, então eu inventava minhas brincadeiras,

inventava meus brinquedos, lápis de cor sempre foi um brinquedo pra mim também,

canetinha, sempre pegava brincava , criava meus personagens e tal.

Já desde criança, eu não tinha técnica, mas eu sempre desenhei assim desde

criança, sempre brinquei. Minha mãe me dava os lápis de cor, ela sempre foi envolvida

também com arte, meu pai ele produz uns quadros e tal, uns quadros com pedra, que ele fica

colando, sempre, minha mãe também, minha mãe sempre pintou pano de prato, sempre

chamava um monte de gente em casa um monte de tiazinha e ficava pintando e ensinando

também, até hoje ela ensina na igreja. Então isso dai eu sempre cresci neste meio, e com tinta

perto de mim sabe, mesmo eu não fazendo, eu sempre tinha, uma tinta de tecido uma tinta

acrílica, vários pinceis, era o material dos meus pais, isso dai me ajudou também, facilitou pra

poder desenhar, pra poder pintar, foi um incentivo que eles me deram.

E em relação aos menores lá da Fundação, eu acho que é isso, porque assim os

caras, as vezes eles não passaram aquela fase, de criança de brinca, então eles pularam aquilo

ali, eu vejo muito isso, os jovens de hoje tão pulando essa fase mesmo, eu vejo pela minha

filha, apesar que ela gosta de brincar bastante, ela quer ser mocinha já, quer ser grande e tal,

acho que é importante passar essa fase, e ali eu vejo que muitos não passaram, então quando a

gente leva esse material, a tinta, o lápis, eu acho que ai eles voltam a ser criança, eles tiram

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CEDAP: Centro de Educação e Assessoria Popular, uma ONG que tem um projeto chamado Arteiros, que

trabalha com arte educação dentro da Fundação CASA

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aquela coisa, aquela maldade de ser bandido e tal e voltam a ser criança, se for deixar pra eles

fazer um desenho livre ali você vai ver a inocência ali no desenho dos caras, tem alguns que

não, mas na maioria é inocente mesmo sabe, eu percebo isso, é isso ai.

Acho que é importante esse trabalho ai, mas eu acharia mais importante se fosse

na escola mesmo, na escola do estado, da prefeitura do que já na FEBEM, acho que deveria

trabalhar com eles na rua, não quando eles estão presos, não que lá eles não tenham que ser

trabalhados também, mas acho que o trabalho maior tinha que ser agora antes deles serem

presos, antes deles se envolverem com isso ai, que é o que a gente tenta fazer lá na Caverna.

Aqui é um bairro que existe muita biqueira, muita criminalidade, então, pros

moleque entra e trabalha com os traficante é dois palito, porque é muita família

desestruturada, entendeu, então é isso que os cara vê, eles tipo querem isso, tipo ver o

moleque que o pai que bebe, a mãe que não ta nem ai, pode vir trabalha pra ele, e aqui tem

demais, então a gente procura através deste trabalho dá uma ideia nesses muleque, pelos

menos transforma os cara não em bandidão, mas pelo menos transforma o cara num skatista,

graffiteiro, porque é uma ideia diferente, se vê que se o cara for skatista por exemplo ele não

vai querer muito se envolver, ele vai querer andar de skate, não assim falando de todos, não

generalizando, mas assim eu acho que, tira um pouco o foco da criminalidade, desse caminho

ai, acho que, é isso ai a arte salva mesmo, tem que ter arte pros moleque ai.

Sei que é difícil assim também às vezes você não consegue resgatar o cara, pelo

convívio dele, pela falta de oportunidade, porque pro o cara fazer a arte ele vai ter que se

interessar também, ter que querer, que a arte a gente só aprende fazendo mesmo, não adianta

só eu ir lá e falar e explicar e só fala da teoria, mas se o cara, se o aluno não por em prática ele

nunca vai aprende também, se ele não por a mão na massa, porque cada um vai criar sua

própria técnica, a técnica é uma, mas fazendo cada um cria a sua particular.

Em relação a influencia da arte na minha vida profissional, e pessoal, na realidade,

eu vivo da arte, tudo que eu tenho no momento que eu compro é e através do graffiti mesmo,

porque eu dou aula, ensino, to vivendo mais ou menos dele ultimamente assim eu não faço

trabalhos comerciais, ainda, mas eu pretendo faze algumas coisas, exposições também, e é

graças a Deus que no momento eu sei desenha e eu sei essa parte ai, eu fico até agradecido,

porque se não fosse eu ia tá fazendo outra coisa, então, por enquanto eu to me virando bem,

me sustentando disso, dessa arte do graffiti.

Se eu tivesse um muro, infinito pra desenhar minha vida, eu ia coloca todo

sentimento assim que eu já passei na vida.

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Eu colocaria desde o inicio quando eu comecei a lidar com a arte, que sempre foi

uma coisa que eu sempre quis, mesmo eu não sabendo como lidar, mas eu sempre tive essa

vontade, foi mais ou menos conversando com as pessoas e com outros artistas e outros caras

que desenhavam que faziam graffiti que eu fui aprendendo, então acho que, seria mais ou

menos isso eu ia colocar essa trajetória ai.

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Transcriação - Colaborador Rogério

Como todo bom aluno Rogério rabiscava, rabiscava...

carteiras...

banheiros...

paredes...

O nome grafado por onde passou fazia os espaços serem seus territórios, por

vezes frases, zueiras complementavam a ação rápida das mãos. Na cidade cinza, Zona Norte

Tucuruvi outros rolês desenrolavam sua vida, bikes, skates várias paradas, gosto pelo brincar,

carrinho, pipa, lápis de cor, canetinha, tintas. Ao redor, panos de prato desenhados, pintados,

mãe, religiosidade, mães, quadros, telas, pedras, pai...personagens nasciam e o tempo corria.

Rabiscando sem caneta a arte cede, urgências da vida, sobrevivência. Duas rodas,

papeladas, o rabisco agora é pela cidade, traçando avenidas...mais um boy.

Sem muita explicação cai uma revista na mão! Os Gêmeos! Sem essa fama de

hoje irmão, todos um dia começam do começo, vem o estalo. É isso mesmo que eu quero

fazer!

Mais naquela, hoje tudo tá na mão, até em loja de granfino tem spray irmão!

Tempos atrás não! Graffiti de rua, à margem, conhecimento restrito. Nos rolês de boy era

difícil sobrar um, imagine pagar curso, então vamos as trocas, no esquema, quando tu não tem

o din...venda a força de trabalho sim? Passo o branco e vejo o colorir, aprendendo...

No trajeto várias influências, tendências, tensões, um mestre? Maumeks!

Horizontes ampliados, solidariedade na lata...latas! Traço fino, técnicas, traço grosso,

observar, experimentar, avançar, formação de rua, abrindo a jogada...iniciação.

Oportunidade na porta, iniciado agora iniciará! Portões, portas maciças, grades,

muros altos, na doze, na vinte e seis, na dezesseis, na trinta e sete, na trinta e

oito...Condomínios? Casas? Complexo...Complexos!! FEBEM, pra molecada FEBA, desafio.

Do telhado a comunicação se fazia, é paz, é guerra, vai vira? No solo, Arte Educador e spray

rodavam, Tatuapé, Raposo Tavares, Seguro, Taipas, Belém, Penha, Circuitos...Curto

Circuito?

2010, mudanças, Itanhaém, mar, desaceleração, continuidades, agora em Casa!

Fundação CASA! Novamente várias, Mongaguá, Praia Grande, São Vicente, muitas casas,

precisa? O Graffiti percorre. Pro adolescente da Fundação? Salvação! Não sobra vaga não!

ânsia pela cor, a força da cor, o mundo da Casa é cinza, hoje amarelo, quieto, cabisbaixo, em

fila, mãos para trás, licença Sr, licença Sra...pela ordem.

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Oficina de Graffiti, subversão? cores! Vermelho, Azul, Verde, lápis de cores!

Papel sulfite, papel Canson, papel Panamá. Singularidades, expressões, sprays, desenhos...

Paredes que nos trancam, paredes grafitadas...asas! Retorno, como se nos

transportasse no tempo. No desenho.infâncias, inocências, estava ali, solapada mais estava,

deixe, deixe vazar, são anos carregando...dispara!

Diferente, podia ser diferente. Oportunidades, no mundão, vazio,

Fundação...cheia, é graffiti, capoeira, teatro, break, vamos avançar! Nas escolas, prefeituras!

Pra fora na ausência, crescem biqueiras, bicos, trágico, tráfico, dois palito, exército

aumentado. Seja o skate, seja o graffiti, uma ideia diferente, tirar o foco, criar novos focos,

cada um criando sua própria voz, difícil...a arte salva!

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Transcrição – Entrevista colaboradora Camila – linguagem teatro - Terceira Entrevista.

Dia – 26.03.15

Local – Casa de Cultura – Santos.

Daniel: Então Camila como a gente tava conversando na pré-entrevista, é...essa entrevista faz

parte de uma projeto de mestrado, de uma tese de mestrado da Unicamp que trabalha a

trajetória de vida dos arte educadores é...e a relação que eles tem com a arte...gostaria de

começar a entrevista fazendo uma pergunta pra você...é...se você imaginasse sua vida como

uma peca de teatro...e ...como é que você contaria ela...quais capítulos ...você traria nesta peça

de teatro pras pessoas verem sua vida através dela...

Camila: Nossa... é...bom...seria uma grande comédia eu acho viu...um pastelão daqueles

bem...pastelados mesmo provavelmente viu...porque foi tudo bem cheio de idas e vindas e

voltas e...absurdos que aconteceram...é...dentro desta minha vida relacionada com a arte...mas

com certeza foi tudo muito bom...muito engraçado com certeza faria tudo de novo! É seria

uma comédia!!

Daniel: Seria uma comédia? E você é aqui de Santos mesmo?

Camila: Não, eu sou de Jaú, interior de São Paulo...na verdade eu morei lá muito pouco, foi

sei lá uns dois anos...depois fui pingando de cidade em cidade por conta dos meus pais...que

mudavam e ai a gente ia junto ne...com..talvez em 86 eu acho...devia ter...ah sei la quantos

anos eu tinha...mas em 86 a gente veio aqui pro litoral pra São Vicente...e ai passei também

pela baixada toda porque mudar sempre foi uma rotina na minha vida...então andei por Santos

São Vicente, Guarujá, Praia Grande...tudo isso...que se repete hoje ne...pra trabalha eu vo pra

Santos, São Vicente, Guarujá, Praia Grande...continua do mesmo jeito...é...e ai desde então to

no litoral...desde 86...

Daniel: Desde 86...se já ...de Jaú veio pro litoral?

Camila: Não não não...mudei bastante também...ja morei em Ribeirão Preto, Goiânia, Barra

Bonita vários lugares...e...escola foram treze meu filho ...”ah conheço você estudou comigo?”

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ah não sei ...não tenho a menor ideia de quem você é...foi muita escola...então mudei

bastante,...realmente.

Daniel: E...ai você mudava com seus pais sempre juntos?

Camila: Isso...meu pais viveram juntos até 2001 2002, depois eles se separaram... e eu

continuo com minha mãe até hoje, moro com ela...

Daniel: E ai nesta trajetória de vida como você acha que a arte influenciou tanto na sua vida

pessoal e profissional?

Camila: Bom uma coisa tá ligada a outra né...não tem separação...dentro da arte da vida

pessoal e da vida profissional...a arte ta em tudo...não existe...quer dizer pode até existir um

limite mas não sei onde ele tá ...tudo se mistura mesmo..é,...e ela...bom desde sempre eu acho

que me interessei pelo ator...isso foi o que me chamou...o oficio do ator.

Desde de que na verdade eu nem sabia o que era...eu só tinha aquela referencia

que todo mundo tem...referencia televisiva né...não fui uma criança que meus pais me levaram

pro teatro que meus pais me apresentaram as artes não...não tinha qualquer referencia neste

sentido...mas eu tinha alguma coisa que me chamava...talvez dentro da referencia

televisiva...uma admiração não sei o que era...mas desde criança muito pequena se

perguntasse pra mim o que eu ia ser...eu falava atriz!

Daniel: Sério?

Camila: Desde quatro cinco anos! eu tenho coisa escrita assim de muito pequena

mesmo,,,muito pequena...e..

Daniel: Já tinha definida!

Camila: Não já tinha...já era certo da minha vida...apesar de que demorou bastante pra eu

efetivamente correr atrás disso...ne na época fio na adolescência..eu fui é...fazer cursos SESC

enfim ...que oferece alguns cursos..apesar que se você vai pra São Paulo tem toda uma gama

de opções aqui não...aqui é complicado...você vai no SESC ou vai na prefeitura...então essas

coisas...mas eu já era...sei lá ...quatorze, quinze anos...já era adolescente.

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Daniel: Você lembra onde você morava a primeira vez que você foi atrás?

Camila: Morava aqui em santos mesmo, em Santos, e ai fiz um tempo de aula tal...e ai aquela

coisa...ai comecei a falar em casa que queria fazer isso queria levar a serio e tal...ai meus pais

eram bem espertos...falavam assim: “não isso maravilha te dou todo apoio, mas não faz aqui

não faz em São Paulo, o ano que vem ano que vem vou dar um jeito vou te colocar num

curso”.

Sei que passou anos e anos e eu fiquei esperando o curso...rs ...ou seja..não me

aprofundei aqui na minha região...nao participei da vida do teatro é...que o teatro já é muito

antigo em Santos...é muito movimentada...por conta de ta esperando o momento que eu

poderia ir atrás de um lance mais profissional tal...e ai a vida foi me levando pra outros

lados...eu fiz faculdade de administração de empresas, é...fui comerciante tive loja...toda

quadradinha...

Daniel: É? loja do que que era?

Camila: É...não quadradinha nunca fui...tive uma loja de roupa infantil...é...meu pai era

também comerciante...então nasci vendo vender coisa e compra coisa...faze o que agora?

vende coisa e compra coisa...ne? então vamo bora! então fui fiz faculdade abri loja não sei o

que...só que nada..né fazendo curso fazendo curso apesar de ser muito perto era muito

longe...assim na na execução...a vida aqui ia consumindo e nunca sobrava tempo, ai chegou

uma hora que eu também joguei tudo pro alto..fui trabalhar na...maestro ciante... é uma

armadora...uma das maiores armadoras do mundo...de containers...tal..exportação e

importação essa coisa chata toda...

Daniel: Trabalha com o porto aqui?

Camila: Exatamente, fui trabalha lá...fiz um ..isso eu tava na faculdade ainda...fiz toda uma

seletiva, uma seleção...é...toda aquele esquema de RH lá que eles fazem na linha de raciocínio

logico, dinâmica de grupo não sei o que, não falava uma letra de inglês, era obrigatório inglês

fluente...eu não falava um nada! eu não falava um nada! eu sei que eu passei com

tudo...raciocínio com logica a nota era melhor que todo mundo, inglês...tudo, eu passei em

tudo...pura enrolação...pura enrolação eu sabia que ia ter um esquema lá ...puf! botava a atriz

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ali linda e maravilhosa ia fala com o gerente ia para a dinâmica de grupo e poderosa! Não

falava um nada!

Daniel: Que beleza hein!?

Camila: Beleza? E depois pra trabalha?

Daniel: E ai como é que foi?

Camila: Não também continuei que eu era bem da cara de pau né? então eu pegava e

mandava e-mail para meu irmão, meu irmãozinho, que desde muito novo mora fora, e é um

menino autodidata, aprendeu a falar quatro línguas todas elas sozinho, enfim é cabeça, é

crânio ne? longe de mim, ficou tudo pra ele, fico...tudo pra ele...ai chegava as coisas lá e eu

mandava pra ele traduzi e manda de volta pra mim, eu não entendia nada do que vinha ali ne,

não entendia nada.

Daniel: Tinha um tradutor particular?

Camila: Tinha um tradutor se entendeu? Não era o dia inteiro que ele conseguia, mas ai não

horários que eu precisava eu mandava e ele mandava de volta. mas isso era tudo muito técnico

na verdade, o trabalho, não era o dia inteiro que eu tinha que mandava coisinha pra ele porque

você acaba, você descobre como funciona um documento você sabe como funciona todos os

outros, meio que copia e cola...ai...ok...to lá trabalhando na marci cicila linda maravilhosa de

executiva, chapinha no cabelo todos os dias né aquela coisa, salto alto não sei o que tã tã tã.

Aquela relação de trabalho, daquelas pessoas que estavam ali, me incomodava

profundamente, porque aquilo ali era uma competitividade o tempo inteiro era todo mundo

lindo maravilhoso de chapinha no cabelo querendo mostra oque não era, sabe em uma pose

que se via que era de mentira assim como era de mentira a minha...sabe e aquilo foi me

incomodando me incomodando me incomodando, fui viajar para Paraty praia, tranquilidade e

não voltei nunca mais...

Daniel: Foi tipo umas férias assim?

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Camila: Não, foi tipo um fim de semana, eu fui cheguei, parei pensei e não voltei, voltei só

para falar que não voltaria, não obrigada, foi tudo muito legal muito lindo...ai foi...foi

né...faculdade beijo, loja...a loja veio depois eu abri só de sobrevivência também

beijo...sabe...é...fui fazer administração, gostei da maior empresa do mundo dentro da área

que fui estudar, não funcionou, falei não é aqui que tenho que tá, né?

Então foi tudo, fui fechando e fui saindo e ai ...falei é agora que eu vou para o

teatro...e...e...fui desde então não sai mais...e ai no mesmo ano que eu comecei a fazer eu

comecei a trabalhar profissionalmente, no mesmo ano e...to ai até hoje.

Daniel: No mesmo ano que você começou o teatro você...

Camila: Já me enfiei pra trabalhar, de cara...

Daniel: E onde foi?

Camila: Foi com o André Léo, que é um diretor aqui de santos e com o Mateus Faconde aqui

no Pacatatu, é um projeto de teatro escola né? então eu já cheguei já fui fazendo teste , já

entrei já...e nunca mais parei...ai eu comecei a dirigir...comecei a ...a...montar meus

espetáculos, também trabalhar com teatro escola, porque dentro do teatro acho que é a coisa

que todo mundo pensa pra ganhar dinheiro: teatro escola êê!!!

Daniel: É?

Camila: Eu fiz a mesma coisa! é...porque é grana né? é grana imediata...se vai lá monta...

Daniel: O que é esse teatro escola?

Camila: É se leva o seu projeto, sua apresentação pra dentro da escola, se produz o

espetáculo e leva pra dentro da escola...é o mais fácil assim, não que seja fácil, mais fácil de

você...aquela coisinha que você pega e vende...aquela herança do comércio daquela coisa

capitalista, ainda ficou um pouquinho, então como é que eu sei sobreviver?

Pega uma coisinha vende coisinha e depois compra as minhas necessidades...

Então eu fiz um pouquinho disso com o teatro também, entrei pra escola vendi meu produto,

por um tempo... hoje...hoje ainda faço...ainda faço...mas eu eu...estudando e tal...eu tenho

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digamos certos critérios...porque...é...tanto trabalhando para outras companhias eu fui

percebendo assim que era um lance muito comercial mesmo, muito comercial...então se ia lá

de repente eu ia...chega...chega essa época assim abril se chega lá e fala que vai conta a

historia do coelhinho da páscoa, chega perto do natal vai lá e conta a historia do Papai

Noel...ai isso também foi me aborrecendo me aborrecendo me aborrecendo, então no meu eu

não trabalho com datas comemorativas, sabe eu faço teatro comercial? Sim! é pra ganhar

dinheiro? sim! mas tem certas coisas que eu não quero mais, como contar a historinha do

Papai Noel, não quero saber do Papai Noel tem que me instigar...senão eu não vou mais...

Daniel: Ai você já fez um corte assim?

Camila: Já já, sim! um corte de dignidade! Chama...

Daniel: (risos), um corte de dignidade é bom! um corte ético!

Daniel: Faz quanto tempo que você começou só no teatro?

Camila: Profissionalmente dez anos!

Daniel: Que você abandonou as outras áreas e...

Camila: Isso! só no teatro, exatamente! é...só pro teatro mais ou menos né...porque ai a gente

ainda faz algumas coisas...é...com trabalhos manuais por exemplo...eu to...pontualmente isso

tá ligado ao teatro mas geralmente eu tenho alguém que faça isso pra mim, eu tenho um

cenógrafo eu tenho um figurinista tal, mas eu faço isso também para outras pessoas, não

necessariamente ligado ao teatro né? então eu trabalho no carnaval, eu trabalho enfim para a

prefeitura, pra outras...mas isso é só...o principal mesmo ali é o teatro...

Daniel: E pensando o teatro e também nas artes plásticas que você trabalha, na Fundação

CASA, o que você acha que essa linguagens, essa forma artística pode ...pode com aqueles

adolescentes né? Adolescentes que usufruem das oficinas.

Camila: Primeiro eu concordo totalmente com a premissa de que a arte salva né? a arte salva,

salvou a mim, de uma vida chata, sem graça quadradinha de chapinha no cabelo, bater

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cartão...e eu acho que tem total possibilidade de salvar os outros também...né? criar visões de

mundo diferente, de abrir o horizonte, criar perspectiva, que é tudo o que eles não tem na

verdade ne?

Então eu acho que é uma oportunidade dessa de conviver com a arte de repente é um

gatilho pra mudança interna deles, que vai provoca toda uma mudança externa.

Daniel: Tem alguma cena que te marcou assim, dentro da Fundaçâo CASA com alguma

oficina, não precisa ser necessariamente uma coisa positiva...

Camila: Olha...o que me marcou...eu acho que foi um contato com um dos

meninos...que que...todos eles são muito parecidos ne? Eles tem uma postura de...sei lá...uma

defesa deles assim de...de impor distancias ne? Não chega muito perto de mim que eu não

chego muito perto de você e tal.

Um destes meninos uma vez...é...foi muito fácil quebrar essa distancia que existe

natural com ele...eu não sei...eu vejo nele uma sensibilidade muito grande...inclusive eu acho

que dentro das artes ele poderia seguir vários caminhos, só a vida que vai dizer vai saber se

vamos ter contato com esse menino de novo. mas a historia dele me marcou muito, na

verdade, não foi uma coisa que eu vi...mas eu senti já logo de cara que ele era diferente dos

outros meninos, que ele era caprichoso, interessado querendo é...é...fazer as coisas dentro do

tempo dele...sem se importar se eu achava bonito ou se não achava...ai eu percebia essa

diferença dele...

Ele tava chateado porque ele ia para aula de violão...projeto GURI...pô senhora,

chaparia esse violão, porque eles ficam lá o dia inteiro ta...dan...dan tan dã...e os moleques

odeiam né...eles odeiam! Eles ficam apavorados de ter que fazer violão...e os que fazem

gostam né? Na verdade é o medo deles, dos que estão fora...então ele tava assustadíssimo...ai

eu falei assim...menino para! Para com isso porque tudo que você fizer com a arte vai ser

bom! Você tem uma sensibilidade você tem...e ele parou pensou e tal...e ai a agente

educacional percebeu que eu conversava com ele depois me chamou e disse sabe o que

aconteceu com esse menino? eu não sei...e eu já fico de saco cheio quando me chama para

conversa porque já vem né...fala no meu ouvido!

Mas desta vez não era...era pra conta a historia do menino mesmo...este menino

quando ele era criança, bebê, ele ficou queimando na favela...pegou fogo no barraco...pegou

fogo e ficou...a mãe dele não tava em casa...só tava ele e uma criança, maior um pouco...a

criança saiu correndo porque pegou fogo...e esse menino ficou queimando...ai que eu

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percebi...falei gente...como é que eu vou julgar...não sei como foi a vida destes meninos...não

sei o que eles passaram, porque que eles estão aqui? Porque é muito fácil né? a gente pegar e

falar assim, a é bandido, eles tem que pagar tem que se ferrar mesmo! eu não sei se é bandido

mesmo, se é da essência dele.

Eu acho que não, que a maioria das pessoas não tem esse botãozinho da maldade

ali pra liga...acho que tem alguma coisa muito séria pra poder ligar esse botãozinho...é uma

coisa que eu acredita já antes...que não era porque eles eram de todos maus né? eu já

acreditava e isso veio confirmar, quando eu dei de cara com essa situação, uma criança, um

bebe ser queimado...porque não tinha uma mãe perto dentro de um barraco na favela, falei

assim meu deus como é que esse menino vai fugir disso tudo, que chance que ele teve na

vida! Então o que me marcou foi isso!

Daniel: Beleza! Acho que é isso!

Camila: É isso? to com vergonha!!

Daniel: Ah? Vergonha?

Camila: É...esse negócio gravando dá uma vergonhinha...você fica não! É engraçado ne!

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Textualização – Colaboradora Camila

Infância nômade

Eu sou de Jaú, interior de São Paulo, na verdade eu morei lá muito pouco, foi sei

lá uns dois anos, depois fui pingando de cidade em cidade por conta dos meus pais, que

mudavam e ai a gente ia junto, em 86 a gente veio aqui pro litoral pra São Vicente, e ai passei

também pela baixada toda porque mudar sempre foi uma rotina na minha vida, então andei

por Santos, São Vicente, Guarujá, Praia Grande, tudo isso, que se repete hoje ne, pra trabalha

eu vo pra Santos, São Vicente, Guarujá, Praia Grande, continua do mesmo jeito, e ai desde

então to no litoral.

Mudei bastante também, já morei em Ribeirão Preto, Goiânia, Barra Bonita vários

lugares. Escola foram 13. ”Ah conheço você estudou comigo?” Ah não sei, não tenho a menor

ideia de quem você é, foi muita escola, então mudei bastante realmente.

Eu mudava junto com meus pais, eles viveram juntos até 2001, 2002, depois eles

se separaram e eu continuo com minha mãe até hoje, moro com ela.

Encontros e desencontros com o arte

Em relação a arte ter influencia na minha vida, bom uma coisa tá ligada a outra

né, não tem separação, dentro da arte da vida pessoal e da vida profissional. A arte ta em tudo,

pode até existir um limite, mas não sei onde ele tá, tudo se mistura, e desde sempre eu acho

que me interessei pelo ator, isso foi o que me chamou, o oficio do ator, desde de que na

verdade eu nem sabia o que era, eu só tinha aquela referência que todo mundo tem, referência

televisiva. Não fui uma criança que meus pais me levaram pro teatro, que meus pais me

apresentaram as artes, não tinha qualquer referencia neste sentido, mas eu tinha alguma coisa

que me chamava, talvez dentro da referência televisiva, uma admiração não sei o que era, mas

desde criança muito pequena se perguntasse pra mim o que eu ia ser , eu falava atriz!

Desde quatro cinco anos! Eu tenho coisa escrita assim de muito pequena mesmo,

muito pequena, tinha definido, já era certo da minha vida, apesar de que demorou bastante pra

eu efetivamente correr atrás disso, na época da adolescência, fui fazer cursos SESC, enfim,

que oferece alguns cursos, apesar que se você vai pra São Paulo tem toda uma gama de

opções aqui não, aqui é complicado, você vai no SESC ou vai na prefeitura, mas eu já tinha

14, 15 anos, já era adolescente.

A primeira vez que eu fui atrás, morava aqui em Santos mesmo, fiz um tempo de

aula tal, e aquela coisa, comecei a falar em casa que queria fazer isso queria levar a sério e tal,

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ai meus pais eram bem espertos, falavam assim: “maravilha te dou todo apoio, mas não faz

aqui não, faz em São Paulo, o ano que vem vou dar um jeito vou te colocar num curso”. Sei

que passou anos e anos e eu fiquei esperando o curso, ou seja, não me aprofundei aqui na

minha região, não participei da vida do teatro.

O teatro já é muito antigo em Santos, é muito movimentada. Por conta de ta

esperando o momento que eu poderia ir atrás de um lance mais profissional tal, e ai a vida foi

me levando pra outros lados, eu fiz faculdade de administração de empresas, fui comerciante,

tive loja, toda quadradinha, não quadradinha nunca fui, tive uma loja de roupa infantil, meu

pai era também comerciante, então nasci vendo vender coisa e compra coisa, faze o que

agora? Vende coisa e compra coisa! Então vamo bora!

Fiz faculdade, abri loja não sei o que, só que tava fazendo curso apesar de ser

muito perto era muito longe, assim na execução, a vida aqui ia consumindo e nunca sobrava

tempo, ai chegou uma hora que eu também joguei tudo pro alto, fui trabalhar na Maestro

Ciante, que é uma armadora, uma das maiores armadoras do mundo, de containers de

exportação e importação essa coisa chata toda.

Eu trabalhava em um ponto aqui, fui trabalha lá, isso eu tava na faculdade ainda,

fiz toda uma seleção, todo aquele esquema de RH lá que eles fazem na linha de raciocínio

logico, dinâmica de grupo não sei o que, não falava uma letra de inglês, era obrigatório inglês

fluente, eu não falava um nada! Eu sei que eu passei com tudo, raciocínio com logica a nota

era melhor que todo mundo, inglês, tudo, eu passei em tudo, pura enrolação, eu sabia que ia

ter um esquema lá ,puf! Botava a atriz ali linda e maravilhosa ia fala com o gerente ia para a

dinâmica de grupo e poderosa! Não falava um nada! E depois pra trabalha? Continuei porque

eu era bem da cara de pau.

Eu pegava e mandava e-mail para meu irmão, meu irmãozinho, que desde muito

novo mora fora, e é um menino autodidata, aprendeu a falar quatro línguas todas elas sozinho,

enfim é cabeça, é crânio, longe de mim, ficou tudo pra ele, ai chegava as coisas lá e eu

mandava pra ele traduzi e manda de volta pra mim, eu não entendia nada do que vinha ali ne,

não entendia nada.

Tinha um tradutor, não era o dia inteiro que ele conseguia, mas ai os horários que

eu precisava eu mandava e ele mandava de volta. Isso era tudo muito técnico na verdade, o

trabalho, não era o dia inteiro que eu tinha que manda coisinha pra ele porque você acaba,

você descobre como funciona um documento você sabe como funciona todos os outros, meio

que copia e cola, ok, to lá trabalhando na “Marci Cicila” linda maravilhosa de executiva,

chapinha no cabelo todos os dias né aquela coisa, salto alto não sei o que tã tã tã.

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Aquela relação de trabalho, daquelas pessoas que estavam ali, me incomodava

profundamente, porque aquilo ali era uma competitividade o tempo inteiro era todo mundo

lindo maravilhoso de chapinha no cabelo querendo mostra o que não era, sabe em uma pose

que se via que era de mentira assim como era de mentira a minha, sabe e aquilo foi me

incomodando me incomodando me incomodando, fui viajar para Paraty, praia, tranquilidade e

não voltei nunca mais.

Foi tipo um fim de semana, eu fui cheguei, parei pensei e não voltei, voltei só para

falar que não voltaria, não obrigada, foi tudo muito legal muito lindo... Ai foi, faculdade beijo,

loja, a loja veio depois eu abri só de sobrevivência também beijo, sabe, fui fazer

administração, gostei da maior empresa do mundo dentro da área que fui estudar, não

funcionou, falei não é aqui que tenho que tá, né? Então foi tudo, fui fechando e fui saindo e ai,

falei: é agora que eu vou para o teatro, e fui desde então não sai mais, e ai no mesmo ano que

eu comecei a fazer eu comecei a trabalhar profissionalmente, no mesmo ano e to ai até hoje, já

me enfiei pra trabalhar, de cara.

Comecei com o André Léo, que é um diretor aqui de Santos e com o Mateus

Faconde aqui no Pacatatu, é um projeto de teatro escola. Então eu já cheguei já fui fazendo

teste, já entrei já, e nunca mais parei. Comecei a dirigir, comecei a montar meus espetáculos,

também trabalhar com teatro escola, porque dentro do teatro acho que é a coisa que todo

mundo pensa pra ganhar dinheiro: teatro escola êê!!! Eu fiz a mesma coisa! É porque é grana

imediata.

Você leva o seu projeto, sua apresentação pra dentro da escola, se produz o

espetáculo e leva pra dentro da escola, é o mais fácil assim, não que seja fácil, mais fácil de

você, aquela coisinha que você pega e vende, aquela herança do comércio daquela coisa

capitalista, ainda ficou um pouquinho, então como é que eu sei sobreviver? Pega uma

coisinha vende coisinha e depois compra as minhas necessidades.

Então eu fiz um pouquinho disso com o teatro também, entrei pra escola vendi

meu produto, por um tempo, hoje ainda faço, mas estudando e tal, eu tenho digamos certos

critérios, porque é tanto trabalhando para outras companhias eu fui percebendo assim que era

um lance muito comercial mesmo, muito comercial. E então se ia lá de repente eu ia, chega

essa época assim abril se chega lá e fala que vai conta a historia do coelhinho da páscoa,

chega perto do natal vai lá e conta a historia do papai Noel, ai isso também foi me

aborrecendo me aborrecendo me aborrecendo, então no meu eu não trabalho com datas

comemorativas, sabe eu faço teatro comercial? Sim! É pra ganhar dinheiro? Sim! Mas tem

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certas coisas que eu não quero mais, como contar a historinha do papai Noel, não quero saber

do papai Noel, tem que me instigar, senão eu não vou mais, fiz um corte de dignidade!

Eu comecei no teatro profissionalmente a dez anos! E abandonei as outras áreas.

Só no teatro! Só pro teatro mais ou menos, porque ai a gente ainda faz algumas coisas, com

trabalhos manuais, por exemplo, eu pontualmente isso tá ligado ao teatro, mas geralmente eu

tenho alguém que faça isso pra mim, eu tenho um cenógrafo eu tenho um figurinista tal, mas

eu faço isso também para outras pessoas, não necessariamente ligado ao teatro. Então eu

trabalho no carnaval, eu trabalho enfim para a prefeitura, mas isso é só, o principal mesmo é o

teatro.

A arte salva!?

Em relação ao trabalho artístico com os adolescentes, primeiro eu concordo

totalmente com a premissa de que a arte salva! A arte salva, salvou a mim, de uma vida chata,

sem graça quadradinha de chapinha no cabelo, bater cartão, e eu acho que tem total

possibilidade de salvar os outros também. Criar visões de mundo diferente, de abrir o

horizonte, criar perspectiva, que é tudo o que eles não tem na verdade. Então eu acho que é

uma oportunidade dessa de conviver com a arte de repente é um gatilho pra mudança interna

deles, que vai provoca toda uma mudança externa.

Uma coisa que me marcou dentro da Fundação, foi um contato com um dos

meninos, todos eles são muito parecidos. Eles tem uma postura, uma defesa deles assim, de

impor distancia. Não chega muito perto de mim que eu não chego muito perto de você e tal, e

um destes meninos uma vez, foi muito fácil quebrar essa distancia que existe natural com ele,

eu não sei, eu vejo nele uma sensibilidade muito grande, inclusive eu acho que dentro das

artes ele poderia seguir vários caminhos, só a vida que vai dizer vai saber se vamos ter contato

com esse menino de novo, mas a historia dele me marcou muito, na verdade, não foi uma

coisa que eu vi, mas eu senti já logo de cara que ele era diferente dos outros meninos, que ele

era caprichoso, interessado querendo fazer as coisas dentro do tempo dele, sem se importar se

eu achava bonito ou se não achava.

Ele tava chateado porque ele ia para aula de violão: “pô senhora, chaparia esse

violão”, porque eles ficam lá o dia inteiro ta...dan...dan tan dã...e os moleques odeiam, eles

odeiam! Eles ficam apavorados de ter que fazer violão, e os que fazem gostam. Na verdade é

o medo deles, dos que estão fora, então ele tava assustadíssimo, ai eu falei assim: menino

para! Para com isso porque tudo que você fizer com a arte vai ser bom! Você tem uma

sensibilidade, e ele parou pensou e tal, e ai a agente educacional percebeu que eu conversava

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com ele depois me chamou e disse: “sabe o que aconteceu com esse menino?”. E eu já fico de

saco cheio quando me chama para conversa porque já vem né, fala no meu ouvido!

Mas desta vez não, era pra conta a historia do menino mesmo, este menino

quando ele era criança, bebê, ele ficou queimando na favela, pegou fogo no barraco, pegou

fogo e a mãe dele não tava em casa, só tava ele e uma criança, maior um pouco, a criança saiu

correndo porque pegou fogo, e esse menino ficou queimando, ai que eu percebi, falei gente,

como é que eu vou julgar, não sei como foi a vida destes meninos, não sei o que eles

passaram, porque que eles estão aqui? Porque é muito fácil né? A gente pegar e falar assim:

“a é bandido, eles tem que pagar tem que se ferrar mesmo!”.

Eu não sei se é bandido mesmo, se é da essência dele, eu acho que não, que a

maioria das pessoas não tem esse botãozinho da maldade ali pra liga, acho que tem alguma

coisa muito séria pra poder ligar esse botãozinho, é uma coisa que eu acreditava já antes, que

não era porque eles eram de todos maus, eu já acreditava e isso veio confirmar, quando eu dei

de cara com essa situação, uma criança, um bebê ser queimado, porque não tinha uma mãe

perto dentro de um barraco na favela, falei assim, meu deus como é que esse menino vai fugir

disso tudo, que chance que ele teve na vida! Então o que me marcou foi isso!

Se eu imaginasse minha vida como uma peça de teatro, seria uma grande

comédia eu acho, um pastelão daqueles bem pastelados mesmo provavelmente, porque foi

tudo bem cheio de idas e vindas e voltas e absurdos que aconteceram dentro desta minha

vida relacionada com a arte, mas com certeza foi tudo muito bom, muito engraçado com

certeza faria tudo de novo! E seria uma comédia!!

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Transcriação – Colaboradora Camila

Desde cedo um chamado, caminho, direção, direções, turbilhões. Infância

desterritorializada, pingando cidades, mudanças, Ribeirão Preto, Goiânia, todo o litoral sul!

Mais malas que armários, sempre de partida, pedaços, muitos conhecidos poucos amigos,

várias escolas! Se passou por mim? Talvez! Muitas faces para pouco tempo.

Na adolescência, chamas! O chamado ecoa, lateja, a arte da TV sai da TV, teatro!

Sesc, Prefeitura, Santos, busca! Objetivo São Paulo, obstáculo pais, objetivo dos pais, destino

dos filhos...segura este ano, no próximo pagamos, o teatro não os cativava, cativeiro.

Novas rotas, comerciais, herança paterna, reprodução, Faculdade? Administração!

Rapidamente a ascensão! Em letras garrafais! A MAIOR ARMADORA DO MUNDO!

Palmas...rumo ao topo! Na seleção aprovada com méritos, sem falar a língua inglesa, a língua

enrola, encenação! O teatro encontrava um campo de vazão.

Montando a cena. Cenário, mesa, computador, escritório, personagem,

maquiagem delicada, chapinha alisava, pose, coluna reta! Salto alto alinhava, charme,

executiva! Nos bastidores a equipe trabalhava. Irmão poliglota traduzia e resolvia,

documentos, informativos, solicitações, encaminhamentos, quase em tempo real, equipe é

equipe!

Nada como o tempo. Era uma peça difícil de manter. Oito horas por dia

encenando, desgastando, relações, competições, concorrência, puxando o tapete. Incômodo,

angústia, não pertencimento. Mentiras, descanso, necessidade! Paraty, viagem, ruptura,

despertar...não tem volta! Mudança!

Como em um final de temporada, acabou! Sem aviso prévio, apesar dos avisos.

Sussurros da alma, decisões, adeus empresa, faculdade? Beijo! Não é aqui o meu lugar!

Potência! Agora é a hora, mergulho, inteira...Teatro.

Primeiros passos, primeira grana, caminho trilhado por muitos, Teatro Escola!

Comemoração!? Comemorativo! Coelhinho da Páscoa, Papai Noel, Dia das Mães, Dia das

Crianças, pegue o catálogo e escolha. Jogo de cintura, paciência, necessidade, trabalho.

Com o avanço, experiência, poder de decisão, critérios! Longe de datas

comemorativas, não dá mais! Hoje tem que instigar, fisgar, mover internamente, trilhas da

arte! Corte de Dignidade!

Várias faces, interfaces, diretora, maquiadora, cenógrafa, costureira, atriz, Arte

Educadora! Dependendo da demanda, se manda, se molda...transforma. Para os adolescentes?

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A arte salva! Sem dúvidas, ”salvou a mim” de uma vida chata, sem graça, um eterno

personagem de chapinha batendo cartão...não! pode salvar outros! Horizontes ampliados,

mudança interna.

Histórias mobilizam difícil é vir à tona, se for periferia esquece! Talvez jornal

local, como ladrão! Círculo vicioso, esquema detalhadamente tramado. Teias lotam

fundações, um em muitos, caminho aberto, facilidade na arte, e vem a história...quando

criança queimou na favela, mãe fora de casa, irmão pequeno fugiu das chamas e ele queimou.

Ruptura, estalo, choque! Agora, como julgar a vida do outro? Conhece suas trilhas? É fácil

julgar, encarcerar, eliminar, será que é isto mesmo? Como fugir de tudo isto? Arte, histórias,

narrativas, chamados, fugas...fulgaz.

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Transcrição – Entrevista colaboradora Thalita – linguagem literatura marginal -

Quarta Entrevista.

Dia – 15.10.15

Local – casa da colaboradora – Campinas

Daniel – Então Thata, na real eu ia pedir pra você contar um pouquinho sobre sua vida

assim... Você fica tranquila pra escolher o caminho que você quiser, mas contar um

pouquinho sobre sua trajetória de vida.

Thalita – Tá.

Daniel – Falar um pouquinho sobre ela.

Thalita – Eu sou de Santo André né? Nasci em Santo André. Aí quando eu tinha dez anos de

idade eu fui pra BH em Minas, fiquei lá dos dez anos até os vinte, e me formar um pouco

enquanto pessoa foi em BH mesmo, eu acho que a mudança quando você é criança de um

lugar para o outro, totalmente diferente, te dá um baque né, e você acaba.... eu lembro que foi

uma época meio que de tristeza, deixar todo mundo da escola, você vai pra BH tudo novo,

mas aí chega aquela coisa mineira, acolhedora, ai comecei a me formar em BH mesmo,

naquele ambiente totalmente diferente de Santo André né?

E aí lá eu comecei a fazer Comércio Exterior, primeiro namorado,sabe fui

descobrindo bar, que eu comecei a gostar de botecagem em Belo Horizonte, voltei depois

porque meu pai voltou a “trampar” e não deixou ficar e eu estava fazendo comércio exterior lá

em BH, aí voltei comecei a estudar aqui de novo em Santo André, demorei uns dois anos pra

me adaptar.

Daniel – A readaptar né?

Thalita – A readaptar. Isso, porque era outra cidade né? Porque era diferente a Vila, era uma

vila bem tranquila da quando eu morava daí quando você chega numa vila evoluída né?

Daniel – Houve uma mudança grande assim?

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Thalita – Muito grande. Tanto a do ambiente da cidade quanto .... você chega, não são mais

os mesmos amigos, talvez você nem lembre mais, sabe? Foi uma adaptação, a faculdade

totalmente diferente também. Até em estrutura, meninas eram em treze só. Aí cheguei e fui

estudar na Metodista, meio elitizado assim, sabe?... perdi o tesão pelo curso, porque também

comecei a fazer o curso por conta do meu pai também, ele trabalhou em logística por anos e

anos, era assim bem metódico , então você tem que fazer alguma coisa, prestar vestibular e

seguir o caminho dele.

Daniel – Você sentia que você tinha que seguir esse caminho assim?

Thalita – Não, acho que era isso que eu conhecia assim, muito o que você conhece assim, a

minha mãe terminou seus estudos, até a quinta série, funcionária pública, foi mãe mais velha,

com trinta e sete anos , então eles nunca tiveram essa coisa de mostrar muitos caminhos, então

o caminho que eu vi assim de “trampo”, que parecia ser um “trampo” da hora, era o “trampo”

que meu pais fazia. Viajava, trabalhava com essas coisas e eu achava que era isso também.

Mas eu curti fazer, “trampar” também. Mas aí vir pra São Paulo, começar o estágio na “Fifi”.

É...coisa aduaneira tal, aí eu vi que não era isso que eu queria.

Daniel – Você trabalhou um tempo então?

Thalita – Trabalhei bastante tempo em Comércio Exterior. Que era importação, exportação e

daí teve uma hora que eu falei, não, não é isso que eu queria fazer. Aí eu chutei o balde e fui

para Parati.

Daniel – Parati no Rio?

Thalita – É, no Rio. Fui pra Parati. Sabe quando dá um surto e você quer mudar? Nada tá da

hora?

Eu tinha passado um ano novo em Trindade, uma amiga “tava” em Parati e aí eu

fiquei uma semana a mais, matei o “trampo” e fiquei uma semana a mais. Voltei. Quando eu

voltei, o “trampo” não tinha sentido aquilo mais, não quero ficar no escritório, era estagiária,

aquela estagiária bem proletáriada dedicada sabe? (risos), de ficar até oito da noite? Querendo

fazer os negócios, acertava fazendo planilha e tipo o chefe.... ah não é isso! Não é isso que eu

queria fazer.

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Daniel – E o que você sentiu nessa semana? Porque essa semana parece que foi importante,

né?

Thalita – Nossa! Muita liberdade. Imagina ficar na praia com uma amiga, tipo... eu lembro

que a tia dela me marcou muito, a Cibele, porque ela era comerciante, tinha um restaurante e

uma loja em Parati. Uma mulher bonita, inteligente, solteira, independente, sabe? Ela vivia

em Parati ali sozinha, fazia o que curtia sabe? Saia à noite pra tomar uma cerveja. Eu falei:

Nossa! Isso aqui é a vida que eu quero pra mim, sabe? De uma mulher independente,

tranquila, num lugar delícia. Porque Parati é mágica, Parati, Trindade. Aí fiquei apaixonada.

Aí tanto é que chutei o balde. Foi naquela época que tinha caído o barranco, na estrada do rio,

da pousada e tal....

Daniel – Ah tá... eu me lembro.

Thalita – Aí eu “meti uma migué” falando que tinha caído e que eu não conseguia voltar. Aí

fiquei uma semana a mais... (risos)

Daniel – Risos... Nossa! Quantos anos mais ou menos?

Thalita –Ah, eu acho que devia ter uns vinte e um? Vinte e um. É quando eu voltei eu ia

fazer vinte e dois.

Daniel – Entendi.

Thalita – Ai foi aquilo, quando eu voltei não tinha sentido e eu chutei o balde também sabe.

Nem fui lá pedir demissão, chutei o balde mesmo. Daí ela disse, não, pode vir. A Lilica que

era minha amiga estava morando lá.... ah, a gente divide era um kitnet, que só cabia uma cama

de casal era a área dela, a cozinha , o banheiro e só. Aí a gente dormia na mesma cama e eu

comecei a “trampar” de garçonete no restaurante da Cibele.

Daniel – Ah, a moça tinha um restaurante.

Thalita – Sim, tinha um restaurante. Tinha um comércio lá. Aí gostoso né? Você trampar de

boa em Paraty, dá pra tomar uma cervejinha, aí depois na sua folga você pega uma praia,

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perfeito. Só que aí depois... durou pouco tempo. Aí eu vi que também não era aquilo que eu

queria trabalhar de garçonete, não estava estudando sabe? Porque, foi mais pra dar uma

espairecida mesmo.

Daniel – E... você ficou nesse role quanto tempo?

Thalita – Três meses.

Daniel – Três meses.

Thalita –Umas férias né? (risos). Prolongada.

Daniel – Foi né? Férias pós.

Thalita – (Risos)... Foi umas férias prolongada sim.

Daniel – Da hora.

Thalita – Daí voltei pra Santo André né? E tenho uma amiga, a Dani que está fazendo umas

artes em garrafas. E aí como eu estava ociosa, ela falou: Ah, vamos fazer juntas pra gente

começar a vender. Foi bem nessa época aqueles coloridinhos.

Daniel – Ah, da hora. Da florzinha, da planta.

Thalita – Isso. Aí começamos a fazer, começando a colocar no face pra vender, não sei o

que. Aí a Dani parou, foi começar a fazer veterinária e eu continuei, aí comecei a fazer uns

“bazar”, abri... abri não né? Coloquei lá no face Maria Joana, uma marquinha, comecei a

estudar, tinha um coletivo, ai foi que eu conheci o Smul... que eles tinham o coletivo Nasa...

Daniel – Mas você tinha facilidade já de fazer?

Thalita – Não tinha... é, não sei...

Daniel – Com essas garrafas?

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Thalita – Não tinha assim. Eu comecei a fazer, sabe? Mais livres assim. Não tinha essa brisa

igual eu tenho hoje, de ter um caderno de desenho. Não desenhava, não desenhava não. Aí eu

comecei a fazer nessa “brisa” mesmo. Mas até essa coisa da garrafa não era uma coisa do tipo

... não era uma coisa de desenho, era tranquilo assim, sabe?

Daniel – É, eu tô vendo ali.

Thalita – É, era de preencher...

Daniel – É o que ali? Tinta?

Thalita – É. Tinta acrílica e tinta vitral. Comecei a fazer o que tinha em casa. Aí depois na

época do Smul, do Nasa já rolou umas oficinas lá no quebrada no Jardim Santo André, aí eu

comecei a dar as oficinas de reciclagem e tal, conheci a Doroti que fazia umas coisas dentro

dessas questões ambientais, mas super “cruzona” tanto da arte como do ambiental também,

sabe? Aí, foi aí que eu descobri essa questão da arte, mas sem experiência, foi bem um passa

tempo.

Daniel – Você foi e se jogou...

Thalita – É, tava alí sem fazer nada. Aí as coisas foram surgindo mesmo, essa questão da arte

na garrafa, de começar a dar oficina também, nunca tinha dado oficina, naquele espaço uma

loucura. Você imagina eu dando oficina de vidro pra crianças, tipo e aí, era uma coisa

comunitária, tinha criança de cinco, três anos sabe? Tipo, uma loucura.

Daniel – Nossa! Criança de três anos?

Thalita – Tipo assim, três anos. Vai abrir oficina. Era um espaço.... sabe aqueles espaços de

liderança comunitária? Que eles recebem alimentos e tal. E tipo, vai quem quer, não tinha

uma faixa etária...

Daniel – Era aberto.

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Thalita –Então foi meio que na loucura. Mas deu certo, fiquei satisfeita. A gente não ficou

muito tempo lá na oficina não. E foi aí que eu também comecei a ver essas questões sociais,

tipo de questionar. Como a gente vai fazer uma oficina itinerante né? Porque a gente vai

começar uma oficina e depois vai embora? Eu via a fala deles mesmo.

Toda tia que vem, vai embora, sabe? Foi aí que eu comecei a ter esse

questionamento, de sair do coletivo por isso também, de não concordar com alguns

posicionamentos né? De “trampo” mesmo. Mas acho que antes de sair do coletivo eu acho

que já tinha entrado na Fundação, eu já conhecia o Smul, eu mandei pro Newtão, nesta época

das garrafas um currículo de arte em garrafas pra trabalhar na Fundação.

Daniel – (Risos)...nossa...de arte em garrafa?

Thalita – (Risos) ...de vidro!!

Daniel – (Risos) ...é uma boa noção ne?!

Thalita – Ai, o Newtão me respondeu que tipo, que não rolava e tal ne, fazer esse trampo “

na Fundação, eu não sabia o que era a Fundação CASA né? Muito chapéu, ai mas depois de

dois, três meses ele mandou uma mensagem pra fazer uma mensagem pra fazer uma

entrevista comigo lá na pista de São Bernardo e eu “cruzona” também, não sabia o que era

Fundação CASA.

Daniel – Sim.

Thalita – Ai, rolou.

Daniel – E ai você começou a dar oficina na Fundação?

Thalita – Em Mauá.

Daniel - Começou a dar oficina lá do que?

Thalita – de artes, de artes plásticas.

Daniel – Artes plásticas.

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Thalita – E “cruzona” assim também né? Eu lembro o primeiro dia de oficina eu deixei as

tintas lá pra guardar depois, aí foi maior “b.o” né? Saí da sala de materiais e deixei as tintas lá

na bancada, sabe? (risos), muito “chapéu” né? No começo... (risos). Mas foi um ótimo

aprendizado lá. Eu acho que quando você chega no espaço e daí é difícil, você vai

acostumando e daí quando é “da hora” , vai ficando melhor (risos).

Daniel – Como é que foi no começo? Você não tinha noção, muita noção de artes plásticas?

Tinha?

Thalita – Não tinha.

Daniel – E como é que foi pra você?

Thalita – Eu na verdade, comecei a buscar, sabe? Tipo, o que eu quero fazer com esses

meninos agora que eu tô aqui né? Qual que é essa demanda deles, quem são eles? E eu sinto

que eu curti muito a estética da arte de rua, essas coisas e aí eu descobri o grafiato.

Mas eu descobri muitas coisas por conta dos meninos mesmo, assim, de querer buscar por

conta deles.

E aí fui assim, e eu lembro que o primeiro “trampo” que até que eu fiz foi uma

coisa que eu super critico dentro da arte e cultura da Fundação que é fazer tela bonitinha, de

coração, não sei o que. Mas lembro também de começar já nessa inquietação de levar uns

biscuit, pra fazer já toy art, já estava começando a buscar outro tipo de arte que não era.... até

por conta da tela não tinha... eles estavam muito acostumados do educador risca, não tinha

toda essa técnica e comecei também a ter maior facilidade de riscar a tela na “marra”, sabe?

Aí eu ia atrás de cursos também e aí eu fiz vários cursos assim de desenho que

não terminei, tenho esse problema na vida de começar as coisas e não terminar... nossa, uns

dois, três de artes (risos), não consegui terminar, achei chato assim, faze muita coisa de

observação é...que é uma coisa que até me ajudou a como pensar aulas para os meninos, sabe?

Porque se eu não estava interessada naquelas coisas de muito de técnicas sabe? E eu queria,

imagina os meninos, de passar uma atividade que não quer, e eu quero que ele seja muito

“ajeitadinho”. É... é isso.

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Daniel – Então você foi na verdade descobrindo no fazer com os adolescentes, foi também se

reinventando aí...

Thalita – Isso, se reinventando. Até os desenhos, lembro que foi um amigo meu que ele me

deu o primeiro caderno de desenho. Por conta dessas oficinas dessas... que eu estava fazendo

um curso com o Márcio Moreira e eu precisava de um caderno e ele me deu e aí os meus

primeiros personagens do desenho próprio mesmo, além das observações que eu tinha que

ficar copiando, resolvendo, foi criar o personagem encapuzado. Foi muito da “brisa” dos

meninos assim sabe?

Daniel – Esse personagem encapuzado faz pouco tempo né?

Thalita – Tem dois anos.

Daniel – Dois anos. Mas você estava fazendo esse curso aí do Márcio?

Thalita – É do Márcio Moreira.

Daniel – E aí você tinha que inventar um personagem?

Thalita – Isso, ele deu uma atividade. Na verdade não era inventar um personagem. A

atividade era, a gente ter um caderno com a gente, a todo momento e a gente começar a

desenhar coisas do dia a dia. E daí eu lembro que ele deu até um exemplo pra gente que o

dele, ele passava muito tempo no metrô e aí ele mostrou, e os desenhos dele era muito de

metrô, de banco, de pessoas vindo em pé, sabe? E aí eu pensei no meu dia a dia com os

meninos, até.... vou pegar alí pra você esse caderno, até eu comecei uma desenho que é uma

foto dos meninos se pintando, que era uma atividade que eu fiz que chama “Quem tem

coragem”. Você lembra deles de rosto pintado? E tinha umas fotos deles, eles mesmo se

pintando né?

Curti muito... curto muito de dar essa autonomia sabe? Sabe, não gosto de ficar

fazendo os negócios para os meninos. Daí era muito bonito, porque essas fotos eram muito

“coletinhos” deles. Porque não dava pra eu no meio da minha oficina, ainda mais que era um

momento rápido, ficar olhando pra eles e desenhando, então eu falei, vamos fazer as fotos. Só

que estava ficando muito ruim essas fotos, aí eu lembro que teve rebelião em algum lugar e eu

lembro que eu vi uma de um menino encapuzado assim sabe? Bem estilo FEBEM sabe? Aí

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falei, nossa, isso é super agressivo assim, eu curti muito a estética de desenhar e por também

ficar ruim os rostos eu vou desenhar eles encapuzados.

Daniel – Teve o movimento da técnica mesmo.

Thalita – Sim. E também da “brisa” do agressivo assim. De eu falar, nossa, vai ficar muito

louco esses desenhos encapuzados. Porque no começo ficou horrível, parecia um capacete

assim sabe? Um capacete assim, de astronauta. E aí eu lembro que esses desenhos evoluíram

junto com a literatura marginal.

Porque quando eu comecei com a literatura marginal, eu comecei a inserir nesse

menino encapuzado um livro. Que daí era muito dessa coisa da rebeldia e da revolução,

tudo... através do instrumentalizar. Aí, muitos dos meus desenhos, não adianta né? Vem muito

da vivência.... então, tem muito dos moleques nos meus desenhos e desse meu processo na

arte também sabe? Tipo, meu mesmo, sabe? De viver do desenho, da expressão. Na verdade

eu acho que os meninos inspiram, acho que eles me inspiraram muito.

Daniel – E depois você começou a fazer literatura marginal, é isso?

Thalita – É, quando eu comecei a inserir o livro, já tinha já a literatura marginal. No começo

foi em São Bernardo na época do Jean, lembra?

Daniel – Sim, sim.

Thalita –Porque foi na época, do Murilo, Gibi, aqueles meninos que você acompanhou, que

foi na época das manifestações que rolou em São Paulo? E eles estavam me pedindo muito

texto pra... não pedindo texto, pedindo texto mas perguntando muita coisa. Então eu comecei

a levar muito texto pra eles relacionado a isso.

Aí era catraca livre, pegava portas abertas aí eles começavam a ler e agente

começou a discutir. Ah não! Antes disso da literatura, porque quando eu fui pra São Bernardo,

eu estava curtindo muito poesia marginal, Leminsk, essas coisas e levei uma proposta em São

Bernardo como já estava uma outra visão, no movimento da hora e eu estava mais na pegada

do meu “trampo” já, e a gente fez muito painel de releitura das frases do Leminski pegava

umas frases desenhadas, que autor tem direito, sabe?

Então, quando começou essas coisas....com os textos das manifestações, eu tive a

ideia da literatura marginal, não só do momento, foi alguém que sugeriu da literatura

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marginal, mas da literatura marginal foi desse ponto assim, estava muito “da hora”, os

meninos estavam... começaram a escrever muitas coisas, meio que da artes plásticas...

Daniel – Entendi.

Thalita – Que daí, na verdade a artes plásticas para toda essa demanda, ela começou a ser pra

mim pequena. Sabe? Tipo...porque eu comecei a levar a proposta da literatura marginal dentro

da artes plásticas, aí surgiu a possibilidade de abrir mais uma oficina.

Daniel – Foi aí que você entrou na Literatura marginal de cabeça, né?

Thalita – É. Por conta disso também. Porque eu não ia sentir tipo em sarau, ou lê muito

literatura marginal. Comecei a descobrir, tipo assim... ah então tá, vou fazer literatura

marginal, por conta da literatura marginal ser uma linguagem ser aberta, onde eles podem

escrever onde querem, ter gíria né?

Os meninos de escreviam muita música, então a literatura marginal vai dar uma

liberdade pra eles dessa criação que está rolando na artes plásticas, que na artes plásticas não

ia comportar, precisava da artes plásticas né? E aí rolou a literatura marginal por essa

demanda dos meninos e aí outra “brisa” e vai atrás e foi aí que eu comecei a ler a Sérgio Vaz,

Ferrez começar dentro dos autores da literatura, quando eu comecei, eu não tinha essa

bagagem, foi depois...

Daniel – Você acha que os meninos... alguma coisa já estava mobilizando em você né? Se

você parar pra pensar né? Você já tinha? Já estava caminhando né?

Thalita – É, eu já tinha. Já levava algumas coisas, a gente já fazia algumas com poesia, mas

não imaginava assim, tinha amenizado essa proporção. Dar uma oficina muito direcionada

para isso sabe? Até a briga do sarau... tipo assim, os meninos começaram a progredir muito

Dan, muito mesmo, aí veio a ideia da revista, da literatura marginal. Até que ela foi censurada

lembra (risos)...

Daniel – Sim, sim. (risos)

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Thalita – (risos), e aí, essa revista ser censurada... nossa, me inquietou muito assim, aí eu

imprimi em preto e branco e saí nos “saraus” do ABC , distribuindo na literatura dos meninos,

levando a amigo junto comigo e dando para eles lerem, porque eu estava indignada com as

produções, que estavam muito “foda” e não ia sair de lá de dentro né?

Daniel – Legal hem?!

Thalita – Aí eu comecei a fazer esse movimento nessa brisa assim mesmo, sabe?

Daniel – Parecido com aquele que você fez de levar as poesias...

Thalita – Isso, de levar as fotografias....

Daniel – Das fotografias.... como é que chame esse aí? Eu não me lembro?

Thalita – Esse aí já era aqui em Campinas, que eu pegue uma turminha de literatura marginal

também muito louca, produzindo umas coisas muito críticas, aí eu já fazia na artes plásticas

um “lambe-lambe”, sabe aqueles cartazes? E aí eu mandei, peguei, montei “uns lambes” e

mandei para umas produções dos meninos e mandei para amigos... uma amiga de “Floripa”,

outro em Santo André, em Minas, sabe? Pra eles colarem e tirarem fotos, aí eles me

mandaram e a gente fez um mural com os meninos, foi “da hora”.

Daniel – Muito bom, eu vi. Você me mostrou uma foto. Muito louco.

Thalita – Foi, foi louco tipo assim eu montei antes né? O varal com os moleques, daí eles

entraram assim, não tinham entendido assim, sabe? Já tinha essa mania de pendurar as coisas

na parede né?

Aí, eles dão uma olhada e quando eles começaram a ler e entender que eram

deles, eles não tinham entendido ainda, entendeu? O que que era, porque como a poesia deles,

a produção deles está nessa fotografia, nesse lugar? Tinha um que era um posto, aí tinha um

salva-vidas atrás, naquela guarita alí é a praia que era lá em Floripa, como assim, roubaram

minha frase? (risos)...

Daniel – Como assim? Foi eu que fiz (risos)...

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Thalita – De onde surgiu? Aí explicar pra eles... e eles: Nossa senhora, a senhora é muito

maluca! Sabe? Tipo, eles acharam que “surreal” assim, de imaginar e expliquei pra eles dessa

coisa de produção deles precisavam sair, a mensagem ela precisa ser modificada e muito da

literatura que passam pra eles é sempre isso, da gente gerar, além da gente estar colocando pra

fora, “vomitando” alguma coisa é essa troca né? A pessoa às vezes vai ler e não vai concordar

talvez, eu falo pra eles. Essa coisa do aceitar né? O outro.

Aí eles ficaram mais “light”, de entender a proposta e começaram a usar aquele

saber. No começo assim eles tiveram um baque. Nossa que loucura! A senhora é maluca!?

Mas depois eles foram entendendo e aí já ficaram naquela brisa, onde é? Quem que colocou

sabe? Tinha umas lá na zona leste também, e eles curtiram porque estava numa quebrada, que

eles já tinha ouvido falar... Foi bem “brilho” esse “trampo”.

Daniel – E aí você já tinha voltado pra Campinas aí né?

Thalita – Eu estava aqui já. Eu já estava aqui. Aqui está sendo um dos meus melhores

“trampo” de literatura, porque no ABC foi uma escola, pra errar, pra experimentar, eu nem

sabia disso na verdade né? Eu achava que o ABC era... e aí eu chegou aqui e eu acho que por

já ter um tempo de fundação e tal... e aí você chega aqui já com um leque e um entendimento

do “trampo” também, como ah, eu pesquisei muito, era uma coisa muito de sede. Não que

passou isso, mas foi como começou tudo, então eu cheguei aqui com uma bagagem e umas

coisas dentro da oficina do que trabalhar com os meninos na literatura marginal.

Daniel – Foi mais fácil pra você desenvolver né?

Thalita – Foi.

Daniel – Faz quanto tempo que você mudou pra cá?

Thalita – Um ano, fez um ano dia cinco de agosto.

Daniel – Porque você mudou?

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Thalita – Eu queria.... não estava “da hora” lá no ABC , em relação a.... eu estava fazendo

oficina só de Santo André né? Não tinha mais São Bernardo e eu estava sentindo necessidade

de estudar, sabe? Porque eu nunca curti na verdade essa parte acadêmica assim, eu achava que

o “bagulho” na prática que era outra “brisa” assim, não estava vendo, não via muito se dedicar

estudando e tal.

Mas aí por conta disso de começar a fazer essas pesquisas e ver muita coisa mas

pouca coisa também de entendimento sabe? Até em roda de conversa não ter a bagagem eu

pensei: “Nossa velho! Eu preciso estudar!” (risos).

Daniel – Legal!

Thalita – Aí por isso que vim.... estava rolando uma vaga que a Bia ia sair do Arteiros, e foi

nessa época que eu estava precisando. Aí o Douglas falou que eu estava precisando, foi em

duas semanas que eu mudei.

Daniel – Nossa, foi rápido né?

Thalita – Rápido, foi muito rápido.

Daniel – Foi uma decisão assim então...

Thalita – Foi, foi num “start” (risos), mas que foi muito bom assim, eu me lembro que

quando eu cheguei aqui era outro ritmo e tal, uma liberdade. Tanto é que quando eu cheguei lá

na época, a literatura marginal a primeira...., não minto a literatura marginal não tinha ainda,

era artes plásticas, mas a primeira proposta que foi lá a coordenadora que deu foi a gente

pintar a biblioteca e aí a gente começou com umas frases do Sérgio Vaz, já tinha começado a

fazer uma introdução, imagina? Onde que eu vou chegar numa casa e começar a pintar a

biblioteca?

Aí a gente foi pra porta da biblioteca. Eu lembro que eu fiz na consciência negra,

a gente fez os desenhos das negras, só mulheres negras, por conta de uma música do Eduardo

Facção que chama “Mulheres Negras” e aí a gente fez vários e colei no corredor assim da

Fundação das “Mulheres Negras”, então eu tô no céu, eu falava nossa! Eu tô no céu.

Daniel – Que não é impossível isso em São Bernardo né?

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Thalita – Jamais, no ABC. Em Santo André sempre tive mais liberdade, mas onde eu estava

acostumada não era. É muito “xaveco” pra você poder fazer qualquer tipo de intervenção que

fosse mudar a estética mesmo. Pendurar um quadrinho? Tudo bem pode. Mas imagina pintar

porta, parede...

Daniel – Difícil.

Thalita – Difícil né? Aí começou nessa liberdade maior assim...

Daniel – E como é que você acha que a arte influenciou na sua vida?

Thalita – Nossa Dan... Depois que a arte entrou na minha vida na verdade, acho que ela

mudou por completo. Porque antes eu fazia comércio exterior né? E não conhecia nada de arte

e ela começou bem, dessa maneira bem “suavinha” sabe? Quando eu vi eu já estava sendo

educadora, então eu acho que ela mudou o meu modo.... a minha rotina, muito mais leve.

Tipo assim, eu não estava mais precisando usar a camiseta social, eu ficava de

chinelo, em vez de eu pegar um fretado pra ir Lá pra São Paulo, eu estava pegando um

“bujão” pra ir lá pra “quebrada” né? É, mais “dura” financeiramente, só que tipo sem estresse,

muito mais feliz sabe? E na real a arte me proporcionou a me descobrir tipo assim, o que eu

queria ser sabe? Foi com vinte. Eu tô com vinte e oito? Foi com vinte e três, vinte e quatro

anos de idade, que foi o tarde assim se a gente for pensa, mas ela veio no momento certo

dessa minha inquietação de vida, de tipo “porra”, sabe sem sentido? Ela veio pra dar sentido.

Essa coisa que eu falei antes que não consigo finalizar nada, me preocupa com o

tempo, por ter muito “tesão” no que eu faço, sabe? Então eu descobri, ela na verdade abriu a

minha mente mesmo em relação a fazer o que você gosta.

Daniel – E, você lembra algum momento assim que pra você ficou muito marcado

relacionado a esse processo artístico? Ou alguma influência muito forte de alguém ou de

algum autor? Alguma coisa que você falou, “putz”...

Thalita – De artista assim, eu acho que o único que eu me identifiquei bastante foi o Basquiat

mesmo, que a gente falou dele, por conta de ser desenho livre, que é uma coisa que eu passo

muito para os moleques e aí a gente.... e do que eu, quando eu faço também, a gente não ficar

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preso a estética, por isso que também fui fazer os cursos né? Então ele, nesse processo

artístico ele que foi.... você vê!

Ele era grafiteiro e tal, pela história de vida apesar ne, de ter morrido de overdose,

mas aí esteticamente, que é uma coisa agressiva que eu curto, esses desenhos mais agressivos

assim, mas eu acho que tipo de mais afetar mesmo assim nesses.... eu acho que foi com os

moleques mesmo assim sabe? Tanto deles me inspirarem de eu fazer, quanto de eu ver eles

assim, hoje em dia ... você pega, vou fazer um sarau online e acaba desenvolvendo um sarau

sozinha, sabe? Eu acho que a briga que me marca mais é com os meninos, mas artístico assim,

dentro da arte assim dentro de um momento “foda” você diz?

Daniel – Em algum momento que você acha que alguma coisa em você começou a mudar

assim?

Thalita – Mas não relacionado a arte?

Daniel – Pode ser ou não.

Thalita – Eu acho que foi... na verdade eu acho que teve várias fases dessas coisas assim

sabe? Eu acho que quando eu “chutei o balde”, foi um desses momentos, a primeira

descoberta.

Daniel – Que foi quando você foi pra Paraty, é isso?

Thalita – Isso. Esse foi o primeiro dessa coisa de que muda uma coisa dentro de você

mesmo, tipo... depois dentro da Fundação, a saída de São Bernardo, foi o momento que mais

mexeu comigo enquanto educadora, enquanto pessoa mesmo sabe? Não falando

artisticamente sabe, tá ligado mesmo com a arte, porque minha saída de lá foi por conta de

uma proposta de uma oficina de arte que era de pichação sabe?

Então o meu questionamento era como, tanto embate em relação a uma questão,

que era uma proposta dentro de uma oficina de arte de um projeto de arte e cultura e ele.... eu

tô saindo dessa unidade porque eu tive um embate por causa disso sabe? E até que ponto a

gente está fazendo arte mesmo, arte assim, arte e cultura dentro da Fundação sabe? Porque o

próprio projeto ele negou isso aos meninos.

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Então esse foi um momento que me marcou de me rever enquanto educadora, de

me rever dentro do projeto, de rever como eu estava lidando com isso, como eu estava

encaminhando coisas sabe? Aí quando eu saí, eu tive que pensar também, as consequências

disso, deixar os moleques lá, assim, é uma casa totalmente complicada, foi lá que eu comecei

todo esse processo de embarque, de levar o Eduardo lá, sabe?

Daniel – E como é que você se sentiu nesse processo?

Thalita – Desrespeitada assim. Eu me senti desrespeitada. De estar dois anos

fazendo aquilo assim e, eu acho que as pessoas não tinham preparo pra lidar com aquela

minha demanda, eu acho que as pessoas deveriam estar preparadas assim sabe? Ou pelo

menos conduzir de uma outra maneira e não me castigar sabe?

Porque a questão não é eu Thata, pra diminuir minhas oficinas, é porque você tá

tirando uma arte educadora de lá e os moleques lá no meio da oficina, como você tira uma

arte educadora, entendeu? Numa casa super complicada. Que a gente a todo o momento tem

que fazer garantia de direito. Se a gente cria vínculo, como que a gente corta o vínculo assim

do nada? Não pude nem me despedir dos meninos, eu lembro quando eles me falaram vai sair,

ah vai sair. Ah vou me despedir dos meninos. Não, você não pode. A fulana de tal não quer

que você se despeça dos meninos.

Nossa, isso foi uma facada pra mim. E assim, eu acho que dos meninos de arte.....

eu lembro que um dos primeiros meninos que foi o Jean, o Murilo e o Gibi que começaram a

fazer as produções de textos e de músicas muito críticas, aí também me deu “start” de que a

arte lá dentro não era só pintura e desenho sabe? Que podia ir, além disso, tudo.

Daniel – Que que é esse além então?

Thalita – Além da gente fazer um desenho assim sobre a crítica, os meninos eles

poderiam...eles podem estar fazendo uma atividade muito mais direta, do que só olhar para

um desenho... a palavra a partir do momento que você leu e você fala, ela é direta né? E de

ver a possibilidade dos meninos também criarem outras coisas que eu não sabia né? E de uma

maneira muito crítica, você pega um Jean e ele sabe o ECA né? Sabe?

Você pega um menino que ele tem facilidade de escrever uma letra de rap

totalmente crítica, ele não tinha contato com ninguém do rap ainda dentro desse processo da

Fundação, mesmo que eles escreviam ou gesticulavam, você lembra do Murilo em cima

daquela bancada cantando? O menino um profissional né velho? E então como foi aí que

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começou a literatura e tal eu acho que esse foi um dos momentos que marcou mesmo. De

pegar uma turma, a gente precisava ler, debater e desenhar, fazer uma releitura, sabe? Era uma

produção cru deles e de tudo aquilo que eles leram, que eles estavam vivendo na Fundação ou

algum movimento de protesto.

Daniel – Esses três adolescentes marcaram bastante sua trajetória né?

Thalita – Marcou, marcou. O Jean era um menino muito articulado, o Jean sabia o ECA, ele

sabia lidar com as pessoas muito bem, ele era um menino muito calmo, nunca vi ele

descontrolado, inteligente, ia muito bem na escola. Ele não era um menino que produzia a

arte, tipo artes plásticas ele não queria desenhar, mas ele tinha umas resenhas que tipo, eram

muito boas e.... gostava de conversar, do diálogo né?

O Jean, eu lembro que ele tinha audição, ele queria aprender, não precisava ficar

falando, ele queria ouvir, sabe? E aí né, não sei se eu te falei, que há um tempo atrás ele me

mandou uma mensagem que ele queria muito falar comigo. Fala Jean, eu tô participando da

convenção da juventude de Mauá...

Daniel – Ah, entendi! Você falou de role sim.

Thalita – Aí ele falou, vai ter em Santo André, você não pode ir? Aí ele falou, quero te pedir

uma coisa muito importante. E eu, o que? Eu quero aqueles textos que você deu pra gente

aquele dia lá na Fundação. E eu, meu Deus! Não tenho mais os textos (risos). Daí eu

perguntei, o que que é os temas e ele falou, tipo, violência de gênero, os homicídios dos

jovens negros, começou a falar coisas que a gente sentava... e ele me relembrou isso né? Olha

que louco né?

E ele queria esses textos, e uma coisa que ele também queria muito era o livro do

Eduardo Facção. Eu preciso ler esse livro. Aí então ele tem dois anos, e nesses dois anos a

gente falou poucas vezes e isso foi muito louco e ele, aí ele falou também com o pessoal do

PSOL, curtiu falas dele num encontro sobre juventude, estava chamando ele e ele com toda a

simplicidade, falou assim, mas ainda estou analisando, não sei se posso confiar (risos).

Daniel – Nossa!!! Legal! Esperto.

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Thalita – Muito louco! Aí o Murilo, que você acompanhou, também era um menino.... ele

não tem essa coisa do Jean de querer, aprender e tal. Ele até falava bastante na mais que a

língua, eu lembro que o Murilo, ele tinha uns “picos” de humor, Murilo tinha um sorrisão, um

“puta” sorrisão, lembra?

Daniel – Sim.

Thalita - Mas também quando ele estava “enbucetado” você olhava pra cara dele e aquele

semblante final assim, sabe? (risos). Eu lembro muito de uma vez que ele estava bravo, eu

falei, porque você está bravo com a “Tatá”? Porque você tá falando assim comigo? Você está

um grosso. Aí ele olhou assim, parou. Sabe quando você respira? E ele abriu aquele sorrisão.

Aí eu falei, nossa que maluco né velho! (risos) dois picos assim e ele.... agora eu

não vou lembrar do texto dele, mas uma vez a gente fez uma atividade num painel vermelho e

ele fez sozinho uma frase, colocou muito a imagem de.... uma vaca que tinha um dinheiro,

que era uma coisa bem crítica em relação a política sabe? Essas coisas. Ele escrevia muito

bem né? Escrevia letras de músicas, fazia rap e críticas também não sei se ele fazia...

Daniel – E você... acabou falando de dois adolescentes, mas pensando mais nas outras

Fundações, em todos os adolescentes que você teve contato, como é que você acha que a arte

poderia, pode né? Influenciar na vida deles?

Thalita – Então, na real Dan... tipo, fazer da arte cultura lá, eu não penso muito no... quando

eu penso em realizar uma oficina, eu não penso que eles poderiam fazer só isso, eu penso no

que eles podem fazer depois. Primeiro eu penso muito naquele momento deles, do que eu

quero que a gente vá refletir naquele momento assim sabe? Porque a demanda deles no depois

ela é muito grande e eu não tenho pernas assim né? Então, aquele mesmo discurso assim: que

quero fazer uma arte para repercutir?

Tipo assim, o menino ele pode continuar na vida do crime, pra mim isso é muito

tranquilo assim, mas que todo esse momento dentro da arte e cultura ele já tem outro

desenvolvimento em relação do que ele abastece sabe? Do que é estar sendo alienado, então

eu não tenho muito a pretensão assim que tipo ai a arte, esse menino que desenha muito, por

conta disso, muitos desses meninos que se destacou muito na arte, tá no caixão, ou tá

traficando ou roubando aí entendeu?

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Então, uma das primeiras vezes que eu me deparei com isso, quando se destaca

muito e esse pensamento eu dei uma.... não uma podada, mas também já vi outros, tipo o

“Cotonete”, um dos meus primeiros meninos, eu lembro quando eu tava descendo a

“sacadura” eu vi um “Coton, o torto tem direito”, não sei se o “cotonete” está traficando, o

que ele esta fazendo, mas eu vejo um monte de “Coton” de grafite até hoje quando eu vou pra

São Bernardo, então ai o “torto e direito” eu só vi uma vez que foi na “Sacadura”, mas alguma

coisa afetou nesse menino, o “torto tem direito” até o Leminski fez por conta de cadeirante,

mas pra ele teve outro entendimento, então as vezes ele nem virou mesmo artista, eu vejo que

ele faz uns graffite, só que eu sei que alguma coisa dentro das oficinas que foi de artes

plásticas pra esse moleque, ele sentiu alguma coisa sabe?

Daniel – A arte dentro da Fundação ali provoca alguma coisa nesses adolescentes?

Thalita – Provoca. Não, isso é fato, e é isso, ela provoca independente do que eles forem

fazer aqui fora eu tenho certeza de que ela... quando a gente esta falando do mexer, do

inquietar, alguma coisa inquieta sabe, eu vejo até pelos meninos da literatura, que agora a

gente tem feito muito sarau, da vontade deles de quando sair eles estarem preparados para

quando eles forem num sarau sabe?

É, eu lembro de um menino, foi até aquele que me desenhou ali, o Léo, é muito

“foda” isso. Porque ele chegou pra mim e ... eu sempre falo, o Léo é educador, ele é meu

ajudante, então ele tinha jeito com os meninos ele desenha muito, muito mesmo e ele estava

contado da técnica, que ele gostaria de fazer um curso de artes e ser educador, queria ser

professor. Daí ela olhou pra ele e disse: mas isso não dá dinheiro! Eu queria matar ela quando

ela falou isso. Porque olha né? Ele pensou no que eu falei ele sabe que ele é bom e quando ele

esboça essa vontade de “vou sair”, essa “mina” deveria ter falado pra ele: Léo vou ver um

curso de desenho pra você! Então, o Léo já tem essa facilidade né? Que provoca alguma

coisa, quando a gente dá essa autonomia, trabalhar essa autonomia sabe?

O Leonardo às vezes ele prepara aula lá dentro sabe? Então ele seguiu o papel de

educador quando eu falava assim: Léo dá uma atenção ali para aqueles meninos. Ele sentiu a

possibilidade que além dele... eu sempre falei pra ele o artista, pode fazer coisas em camiseta,

em tela, você pode fazer Léo, porque ele cria personagens muito bons, mas além disso, ele

pensou que ele pode dar aula também. Então o provocar, acho que a arte do provocar, é fato

assim sabe? Porque por mais que os meninos eles podem por conta das demandas da estória

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não seguir que eles apresentam dentro da oficina é sempre essa vontade, eu quero cantar no

sarau, eu quero ser educador. O Murilo queria ser cantor de rap sabe?

Ah velho, o Traquinhas, to lembrando do Traquinhas, e esse menino é um

menino que eu nem tinha um vínculo forte assim com ele, mas ele me mandou uma

mensagem falando que estava tatuando e perguntou como ele fazia pra ser educador de arte

dentro da Febem, aí eu... não sei se eu contei pra você ou pro Marcos essa estória dele?

Daniel – Pra mim não.

Thalita – E aí ele falou assim que ele queria ser igual a eu e o Jú. Ele até comentou assim,

você deve estar orgulhoso do seu aluno né? Eu falei viu, tô velho, até mostrei o face dele pro

Marcos. O face do Marcos pra ele, olha eu sou coordenador do ABC, falei do Marcos também

da vontade dele. Aí expliquei pra ele, olha, você precisa né?

Tinha um cara que eu acho que ele ia acompanhar um cara numa oficina e esse

cara ia trazer novas experiências e tal e vire e mexe ele fala comigo, mas ele tá tatuando, mas

você entende como... e a “brisa” que... agora que eu tava pensando, muitos meninos tiveram

na vida o sonho de ser educador, agora que eu lembrei do...Traquinhas, além também da

“brisa” de ser artista né? Que ele já tá sendo, tá tatuando, tá desenhando, já tá fazendo a arte

dele, mas a vontade dele também é de fazer uma diferença ali com os moleques, passou por

aquilo, ah agora eu lembrei desse menino, o Traquinhas.

Daniel – Esse você não tinha contado ainda, o Traquinhas.

Thalita – Mas é muito louco receber a devolução assim dos meninos e é louco porque assim

são poucos que a gente sabe, que tem contato, porque tem facebook hoje em dia, mas quantos

outros, podem estar na vontade, ou podem estar fazendo alguma coisa relacionada né?

Daniel – Com alguns, você tem contato no face é isso?

Thalita – Isso. Alguns eu tenho. E alguns eu vejo por foto assim, como o Jean deu, falando

que estava participando da convenção, o outro perguntando como que ele faz pra dá aula na

FEBEM de artes.

Daniel – Nossa, um feedback bacana.

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Thalita – Muito, porque assim, porque ele viu, magina ele teve contato comigo e com o

Smul, que a gente não tem formação, a gente não é formado em faculdade, a gente dava uma

arte muito livre né? E como ele se identificou, tipo assim ele poderia pertencer a isso né? Isso

é muito louco, não criou uma barreira, tipo isso é impossível pra mim. Não é? Eu achei muito

“da hora”, da vontade dele disso de se tornar possível sabe?

Daniel – Bacana! E na verdade... você tem uma tatuagem que é um personagem? O seu

personagem, que você fez? Como é que foi? Tô curioso na verdade assim, porque foi todo um

processo. Você construiu um personagem, um desenho e depois marcar ele na sua pele né?

Queria que você falasse um pouquinho disso aí.

Thalita – Então, é aquele que eu tinha falado lembra? Que é o menino encapuzado e eu tenho

um caderno de desenho inteiro na verdade, que é muito treino desse menino encapuzado, que

até aqui na “tatto” ele tá lendo o livro, que é toda a poesia, mas é.... muito dos moleques

mesmo, sabe, tipo? Essa daqui, essa “tatto” é muito do que eu acredito, nessa coisa da

gente...foi a literatura marginal, que é do quanto a gente, que aconteceu isso comigo, a gente

instrumentalizar, a gente por outro tipo de revolta né? Porque o encapuzado, ele é justamente

assim, porque os meninos quando eles se encapuzam é quando eles vão fazer as rebeliões né?

O quando a gente esta fazendo por outros meios, como ela também é total

revolucionaria e agressiva também, sem a gente tá pegando no “pente” assim sabe?

Daniel – Entendi.

Thalita – Aí tem uma frase que é “sua mente sã, é libertária” que não é tanto assim... que é

muito desse momento rebelde, mas que é muito pra mim a cabeça as vezes ela é muito

atordoada...

Daniel – Mas por quê você acha que ela é muito atordoada? Como assim?

Thalita – Muito... eu não to privada de liberdade né Dan só que a mente as vezes ela tá né,

privada, e as vezes a gente tá aqui, mas se a mente não tá “da hora” a gente tá doente também

né. E quando a gente consegue seja através do desenho que eu me extravaso muito, escrevo

pouco mas tô, o quanto ela é.... ela deixa a sanidade dá um equilíbrio e na verdade consigo

ficar de pé também, o libertaria também pra gente se libertar destas confusões mentais , e

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relacionado aos meninos também, é em relação ao quanto nesse momento de cárcere também

a gente está só mentalizando e dá uma ,sabe aquela frase piegas deles: “podem encarcerar

meu corpo, mas não minha mente?” (risos).

Daniel – Não, mas essa frase é muito forte, muito boa essa frase.

Thalita – É quase isso, nessa mente libertária.

Daniel – Beleza Tatá acho que é isso. Valeu por estar compartilhando sua estória aí, “da

hora”.

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Textualização Colaboradora Thalita

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Seguindo os passos dos pais

Eu sou de Santo André. Nasci lá. Quando eu tinha dez anos de idade, eu fui pra

Belo Horizonte em Minas, fiquei lá dos dez anos até os vinte anos, me formar um pouco

enquanto pessoa foi em Belo Horizonte mesmo, eu acho que a mudança quando você é

criança de um lugar para o outro, totalmente diferente, te dá um baque.

Eu lembro que foi uma época meio que de tristeza, deixar todo mundo da escola,

mas aí chega aquela coisa mineira, acolhedora, ai comecei a me formar em Belo Horizonte

mesmo, naquele ambiente totalmente diferente de Santo André, comecei a cursar Comércio

Exterior, tive meu primeiro namorado, fui descobrindo bar, ai que eu comecei a gostar de

botecagem41

em Belo Horizonte, voltei depois para Santo André, porque meu pai voltou a

trampar42

e não me deixou ficar, mesmo estando cursando a faculdade. Então voltei, comecei

a estudar de novo em Santo André, demorei uns dois anos pra me adaptar novamente.

Era outra cidade, antes a vila era tranquila, e depois voltei para uma vila evoluída.

Foi uma mudança muito grande. Você chega não são mais os mesmos amigos, talvez você

nem lembre mais, sabe? Foi uma adaptação, a faculdade totalmente diferente também. Até em

estrutura, só tinham treze meninas. Aí cheguei e fui estudar na Metodista, meio elitizado

assim, sabe? Perdi o “tesão” pelo curso, porque também comecei a fazer o curso por conta do

meu pai, ele trabalhou em logística por anos e anos, era assim bem metódico, então você tem

que fazer alguma coisa, prestar vestibular e seguir o caminho dele.

Não acho que eu tinha que seguir o caminho dele, mas era isso que eu conhecia. A

minha mãe terminou seus estudos, até a quinta série, funcionária pública, foi mãe mais velha,

com trinta e sete anos, então eles nunca tiveram essa coisa de mostrar muitos caminhos, então

o caminho que eu vi assim de trampo, que parecia ser um trampo da hora, era o trampo que

meus pais faziam. Viajava, trabalhava com essas coisas e eu achava que era isso também. Mas

eu curti fazer, trabalhar também. Mas aí vim pra São Paulo, comecei o estágio em coisa

aduaneira tal, aí eu vi que não era isso que eu queria.

Trabalhei bastante tempo em Comércio Exterior. Que era importação, exportação

e daí teve uma hora que eu falei, não, não é isso que eu queria fazer. Aí eu chutei o balde e fui

para Parati no Rio de Janeiro.

Sabe quando dá um surto e você quer mudar? Nada tá “da hora”43

? Eu tinha

passado um ano novo em Trindade, uma amiga tava em Parati e aí eu fiquei uma semana a

41

Botecagem: vida nos bares 42

Trampar: trabalhar 43

Da hora: legal.

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mais, matei o trampo e fiquei uma semana a mais. Voltei. Quando eu voltei, o trampo não

tinha mais sentido, não quero ficar no escritório, era estagiária, aquela estagiária bem

proletariada dedicada sabe? De ficar até oito da noite? Querendo fazer os negócios, acertava

fazendo planilha e tipo o chefe.... Ah não é isso! Não é isso que eu queria fazer.

Quando estava em Parati, senti muita liberdade. Imagina ficar na praia com uma

amiga, eu lembro que a tia dela me marcou muito, a Cibele, porque ela era comerciante, tinha

um restaurante e uma loja em Parati. Uma mulher bonita, inteligente, solteira, independente,

sabe? Ela vivia em Parati ali sozinha, fazia o que curtia, sabe? Saia à noite pra tomar uma

cerveja. Eu falei: “Nossa! Isso aqui é a vida que eu quero pra mim”, de uma mulher

independente, tranquila, num lugar delícia. Porque Parati é mágica, Parati, Trindade. Aí fiquei

apaixonada. Tanto é que chutei o balde. Foi naquela época que tinha caído o barranco, na

estrada do rio, da pousada e tal...Eu “meti uma migué”44

falando que tinha caído e que eu não

conseguia voltar. Aí fiquei uma semana a mais.

Construindo a própria estrada

Eu acho que devia ter uns vinte e um? Vinte e um. É quando eu voltei eu ia

fazer vinte e dois.

Ai foi aquilo, quando eu voltei não tinha sentido e eu chutei o balde também

sabe. Nem fui lá pedir demissão, chutei o balde mesmo. Daí ela disse, não, pode vir. A Lilica

que era minha amiga estava morando lá, a gente dividiu um kitnet, que só cabia uma cama de

casal era a área dela, a cozinha, o banheiro e só. Aí a gente dormia na mesma cama e eu

comecei a trampar de garçonete no restaurante da Cibele.

Aí gostoso né? Você trampar de boa em Paraty, dá pra tomar uma cervejinha,

aí depois na sua folga você pega uma praia, perfeito. Só que aí depois... Durou pouco tempo.

Três meses, aí eu vi que também não era aquilo que eu queria, trabalhar de garçonete, não

estava estudando sabe? Porque, foi mais pra dar uma espairecida mesmo. Umas férias

prolongadas.

Voltei pra Santo André. E tenho uma amiga, a Dani que estava fazendo

umas artes em garrafas. E aí como eu estava ociosa, ela falou: “Ah, vamos fazer juntas pra

gente começar a vender”. Foi bem nessa época aqueles coloridinhos. Aí começamos a fazer,

começando a colocar no facebook pra vender. Aí a Dani parou, foi começar a fazer veterinária

44

Migué: Dar uma desculpa.

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e eu continuei, comecei a fazer uns bazar. Coloquei lá no Facebook, Maria Joana, uma

marquinha, comecei a estudar, tinha um coletivo, ai foi que eu conheci o Smul45

, eles tinham

o coletivo Nasa.

Não tinha facilidade para fazer as garrafas, eu comecei a fazer, sabe? Mais livres

assim. Não tinha essa coisa igual eu tenho hoje, de ter um caderno de desenho. Não

desenhava, não desenhava não. Aí eu comecei a fazer nessa coisa mesmo. Mas até essa coisa

da garrafa não era uma coisa do tipo ...Não era uma coisa de desenho, era tranquilo assim,

sabe?

Usava tinta acrílica e tinta vitral. Comecei a fazer o que tinha em casa. Aí depois

na época do Smul, do Nasa já rolou umas oficinas lá no Jardim Santo André, eu comecei a dar

as oficinas de reciclagem e tal, conheci a Doroti que fazia umas coisas dentro dessas questões

ambientais, mas super cruzona46

tanto da arte como do ambiental também, sabe? Foi aí que eu

descobri essa questão da arte, mas sem experiência, foi bem um passa tempo. Eu tava ali sem

fazer nada. Aí as coisas foram surgindo mesmo, essa questão da arte na garrafa, de começar a

dar oficina também, nunca tinha dado oficina, naquele espaço, uma loucura. Você imagina eu

dando oficina de vidro pra crianças, tipo e aí, era uma coisa comunitária, tinha criança de

cinco, três anos sabe? Tipo, uma loucura.

Era um espaço, sabe aqueles espaços de liderança comunitária? Que eles recebem

alimentos e tal. E tipo, vai quem quer, não tinha uma faixa etária, então foi meio que na

loucura. Mas deu certo, fiquei satisfeita. A gente não ficou muito tempo lá na oficina não. E

foi aí que eu também comecei a ver essas questões sociais, tipo de questionar.

Como a gente vai fazer uma oficina itinerante né? Porque a gente vai começar

uma oficina e depois vai embora? Eu via a fala deles mesmo: “Toda tia que vem, vai embora”,

sabe? Foi aí que eu comecei a ter esse questionamento, de sair do coletivo por isso também,

de não concordar com alguns posicionamentos. De trabalho mesmo. Mas acho que antes de

sair do coletivo eu acho que já tinha entrado na Fundação CASA, eu já conhecia o Smul, eu

mandei pro Newtão47

, nesta época das garrafas um currículo de arte em garrafas pra trabalhar

na Fundação. O Newtão me respondeu dizendo que não rolava fazer esse trampo na

Fundação, eu não sabia o que era a Fundação CASA. Mas depois de dois, três meses ele

mandou uma mensagem pra fazer uma entrevista. Mas eu não sabia o que era a Fundação

CASA.

45

Smul: Na época, trabalhava como arte educador de uma ONG, dava oficinas dentro da Fundação CASA. 46

Cruzona: sem experiência, sem vivência, ou estudo sobre aquilo. 47

Newtão: na época era coordenador regional do projeto Arteiros que desenvolve atividades de arte e cultura

dentro da Fundação CASA.

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Fundação CASA – experiências

Então comecei a dar oficina de artes plásticas na Fundação CASA, bem cruzona.

Eu lembro o primeiro dia de oficina, eu deixei as tintas lá pra guardar depois, aí foi maior

B.O.”48

. Saí da sala de materiais e deixei as tintas lá na bancada, sabe? Mas foi um ótimo

aprendizado lá. Eu acho que quando você chega no espaço e daí é difícil, você vai

acostumando e daí quando é da hora vai ficando melhor.

No começo eu não tinha muita noção de artes plásticas. Eu na verdade, comecei a

buscar, sabe? Tipo, o que eu quero fazer com esses meninos agora que eu tô aqui, né? Qual

que é essa demanda deles, quem são eles? E eu sinto que eu curti muito a estética da arte de

rua, essas coisas e aí eu descobri o grafiato. Mas eu descobri muitas coisas por conta dos

meninos mesmo, assim, de querer buscar por conta deles. E fui assim, e eu lembro que o

primeiro trampo que até que eu fiz foi uma coisa que eu super critico dentro da arte e cultura

da Fundação, que é fazer tela bonitinha, de coração, não sei o que... Mas lembro também de

começar já nessa inquietação de levar uns biscuit, pra fazer já toy art, já estava começando a

buscar outro tipo de arte ,até por conta da tela, eles estavam muito acostumados do educador

riscar a tela para eles pintarem, e eu não tinha toda essa técnica e comecei também a ter maior

facilidade de riscar a tela na marra, sabe?

Eu ia atrás de cursos também e eu fiz vários cursos assim de desenho que não

terminei, tenho esse problema na vida de começar as coisas e não terminar, nossa, uns dois,

três cursos de artes, não consegui terminar, achei chato assim, fazer muita coisa de observação

que é uma coisa que até me ajudou a como pensar aulas para os meninos, sabe? Porque se eu

não estava interessada naquelas coisas de muito de técnicas, imagina eles....E eu queria passar

uma atividade que eles não querem, e eu querer que ele seja muito ajeitadinho.

Então eu fui me reinventando. Até os desenhos, lembro que foi um amigo meu

que me deu o primeiro caderno de desenho. Por conta dessas oficinas, eu estava fazendo um

curso com o Márcio Moreira, e eu precisava de um caderno e ele me deu e aí fiz os meus

primeiros personagens do desenho próprio mesmo, além das observações que eu tinha que

ficar copiando, resolvendo, foi criar o personagem encapuzado. Foi muito da “brisa”49

dos

meninos assim sabe?

O personagem eu criei porque o Marcio Moreira passou uma atividade que era, a

gente ter um caderno com a gente, a todo momento e começar a desenhar coisas do dia a dia.

E daí eu lembro que ele deu até o exemplo dele que passava muito tempo no metrô e aí ele

48

B.O.: Expressão usada para se referir a algum problema grande 49

Pensamento, ideia.

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mostrou, e os desenhos dele era muito de metrô, de banco, de pessoas vindo em pé, sabe? E aí

eu pensei no meu dia a dia com os meninos, até eu comecei um desenho que é uma foto dos

meninos se pintando, que era uma atividade que eu fiz que chama “Quem tem coragem”. E

tinha umas fotos deles, eles mesmo se pintando né? Curti muito, curto muito de dar essa

autonomia, não gosto de ficar fazendo as coisas para os meninos. Porque não dava pra eu no

meio da minha oficina, ainda mais que era um momento rápido, ficar olhando pra eles e

desenhando, então eu falei, vamos fazer as fotos. Só que estava ficando muito ruim essas

fotos, aí eu lembro que teve rebelião em algum lugar e eu lembro que eu vi uma de um

menino encapuzado assim sabe? Bem estilo FEBEM.50

Aí falei, nossa, isso é super agressivo,

eu curti muito a estética de desenhar e por também ficar ruim os rostos eu desenhei eles

encapuzados.

Eu tinha pensado: “nossa, vai ficar muito louco esses desenhos encapuzados”.

Porque no começo ficou horrível, parecia um capacete assim sabe? Um capacete assim, de

astronauta. E aí eu lembro que esses desenhos evoluíram junto com a literatura marginal 51

Porque quando eu comecei com a literatura marginal, eu comecei a inserir isso nesse menino

encapuzado um livro. Que trazia muito dessa coisa da rebeldia e da revolução, tudo através da

instrumentalização. Então muitos dos meus desenhos vieram da vivência com os adolescentes,

então tem muito deles nos meus desenhos e do meu processo na arte. Tipo, meu mesmo,

sabe? De viver do desenho, da expressão. Na verdade eu acho que os meninos inspiram, acho

que eles me inspiraram muito.

Depois disso comecei a trabalhar com a literatura marginal, foi quando eu

comecei a inserir o livro. Porque quando eu fui pra São Bernardo, eu estava curtindo muito

poesia marginal, Leminsk52

, essas coisas, e levei uma proposta em São Bernardo como já

estava com uma outra visão, em um movimento bom e eu estava mais engajada no trabalho, a

gente fez muito painel de releitura das frases do Leminski pegava umas frases desenhadas,

que autor tem direito, sabe?

Então, quando começou essas coisas, com os textos das manifestações, eu tive a

ideia da literatura marginal, não só do momento, foi alguém que sugeriu a literatura marginal,

50 É a sigla para Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, uma instituição cuja função é executar as

medidas socioeducativas aplicadas pelo Poder Judiciário aos adolescentes autores de atos infracionais com idade

de 12 a 21 anos incompletos, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

51

Literatura marginal é um estilo literário que surgiu na década de 70 e vem crescendo ao longo dos anos. Os

textos deste estilo apresentam características próprias abusando da linguagem coloquial, das gírias e

desprendendo-se da linguagem institucionalizada. 52

Paulo Leminski Filho foi um escritor, poeta, crítico literário, tradutor e professor brasileiro

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estava muito da hora, os meninos começaram a escrever muitas coisas, meio que das artes

plásticas. No começo foi em São Bernardo na época do Jean, Murilo, Gibi53

, que foi na época

das manifestações que rolou em São Paulo! E eles estavam me pedindo muito texto e

perguntando muita coisa. Então eu comecei a levar muito texto pra eles relacionado a isso. Aí

era Catraca Livre, pegava portas abertas aí eles começavam a ler e a gente começou a discutir.

Então na verdade, a artes plásticas para toda essa demanda, ela começou a ser pra

mim pequena. Sabe? Tipo, porque eu comecei a levar a proposta da literatura marginal dentro

das artes plásticas, aí surgiu a possibilidade de abrir mais uma oficina.

Decidi então fazer literatura marginal, por conta de ser uma linguagem mais

aberta, onde eles podem escrever onde querem ter gíria. Os meninos escreviam muita música,

então a literatura marginal deu uma liberdade pra eles, às artes plásticas não comportavam

essa liberdade dentro da Fundação CASA. Foi ai que comecei a ler Sérgio Vaz54

Ferrez,55

e

começar dentro dos autores da literatura, porque quando eu comecei, eu não tinha essa

bagagem, foi depois.

Os meninos já tinham começado a me motivar. Então eu já levava algumas

coisas, a gente já fazia algumas com poesia, mas não imaginava assim, tinha amenizado essa

proporção. Dar uma oficina muito direcionada para isso sabe? Tipo assim, os meninos

começaram a progredir, muito mesmo, aí veio à ideia da revista, de literatura marginal. Até

que ela foi censurada.

E aí, essa revista ser censurada, nossa, me inquietou muito assim, aí eu imprimi

em preto e branco e saí nos “saraus”56

do ABC , distribuindo a literatura dos meninos,

levando um amigo junto comigo e dando para eles lerem, porque eu estava indignada com as

produções, que estavam muito boas e não ia sair de lá de dentro né? Aí eu comecei a fazer

esse movimento nessa brisa assim mesmo.

Também fiz esse movimento com fotografias, já era aqui em

Campinas, que eu peguei uma turminha de literatura marginal muito boa, produzindo umas

coisas muito críticas, aí eu já fazia nas artes plásticas um “lambe-lambe”, cartazes que

colamos em qualquer lugar. E aí eu mandei, peguei, montei uns lambes e mandei umas

produções dos meninos e mandei para amigos, uma amiga de Florianópolis, outro em Santo

53

Adolescentes que na época estavam cumprindo medida de internação na Fundação CASA. 54

Sérgio Vaz: Poeta brasileiro da periferia, agitador cultural. Tem 4 livros 55

Ferrez: Ferréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva é um rapper, romancista, contista, poeta e

empreendedor. 56

Saraus de literatura marginal.

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André, e em Minas. Pra eles colarem e tirarem fotos, aí eles me mandaram e a gente fez um

mural com os meninos, foi da hora.

Foi louco tipo assim, eu montei antes o varal com os moleques, daí eles entraram

assim, não tinham entendido. Eu já tinha essa mania de pendurar as coisas na parede, aí,

quando eles deram uma olhada e quando eles começaram a ler e entender que eram deles, eles

não tinham entendido ainda o que era, porque como a poesia deles, a produção deles está

nessa fotografia, nesse lugar? Tinha um que era um posto, aí tinha um salva-vidas atrás,

naquela guarita ali, é a praia que era lá em Floripa, como assim, roubaram minha frase? De

onde surgiu? Aí expliquei pra eles, e eles: “Nossa senhora, a senhora é muito maluca!”. Eles

acharam que era surreal imaginar, e então expliquei pra eles que a produção deles

precisavam sair, a mensagem ela precisa ser modificada e muito da literatura que passam pra

eles é sempre isso, da gente gerar, além da gente estar colocando pra fora, vomitando alguma

coisa, é essa troca.

A pessoa às vezes vai ler e não vai concordar talvez, eu falo pra eles, tem essa

coisa de aceitar o outro. Aí eles começaram a entender a proposta e começaram a usar aquele

saber. No começo assim eles tiveram um baque: “ Nossa que loucura! A senhora é maluca!”.

Mas depois eles foram entendendo e aí já começaram a perguntar, onde é? Quem que

colocou? Tinha umas lá na zona leste também, e eles curtiram porque estava num lugar, que

eles já tinham ouvido falar, foi bem legal esse trabalho.

Nessa época eu já estava em Campinas, faz um ano que estou aqui e está sendo

um dos meus melhores trabalhos de literatura, porque no ABC foi uma escola, pra errar, pra

experimentar, eu nem sabia disso na verdade. E aí você chega aqui já com um leque e um

entendimento do trampo, eu pesquisei muito, era uma coisa muito de sede. Não que passou

isso, mas foi como começou tudo, então eu cheguei aqui com uma bagagem e umas coisas

dentro da oficina do que trabalhar com os meninos na literatura marginal. Então foi fácil para

mim desenvolver isso aqui.

Vim para Campinas porque não estava da hora lá no ABC, eu estava fazendo

oficina só em Santo André. Não tinha mais São Bernardo e eu estava sentindo necessidade de

estudar porque eu nunca curti na verdade essa parte acadêmica. Eu achava que o trabalho na

prática era outra coisa. E, não estava vendo, não achava importante se dedicar estudando e tal.

Mas aí por conta disso de começar a fazer essas pesquisas e ver muita coisa, vi que também

não tinha muito entendimento. Até em roda de conversa não ter a bagagem eu pensei: “Nossa

velho! Eu preciso estudar!” .

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Por isso que vim, estava rolando uma vaga de Arte Educador em Campinas, do

Arteiros, e foi nessa época que eu estava precisando. Aí o Douglas57

falou que estava

precisando, foi em duas semanas que eu mudei.

Foi num “start”, mas que foi muito bom assim, eu me lembro que quando eu

cheguei aqui era outro ritmo e tal, uma liberdade. Tanto é que quando eu cheguei lá na época,

com artes plásticas, a primeira proposta que foi a coordenadora que deu, foi a gente pintar a

biblioteca e aí a gente começou com umas frases do Sérgio Vaz, já tinha começado a fazer

uma introdução. Aí a gente foi pra porta da biblioteca. Eu lembro que eu fiz na consciência

negra, a gente fez os desenhos das negras, só mulheres negras, por conta de uma música do

Eduardo do Facção 58

que chama “Mulheres Negras” e aí a gente fez vários e colei no

corredor: Fundação das “Mulheres Negras”, então pensei: ”eu tô no céu”.

Isso jamais seria permitido no ABC. Em Santo André sempre tive mais liberdade,

mas onde eu estava acostumada não era sim. É muito xaveco pra você poder fazer qualquer

tipo de intervenção que fosse mudar a estética mesmo. Pendurar um quadrinho? Tudo bem

pode. Mas imagina pintar porta, parede...

Depois que a arte entrou na minha vida na verdade, acho que ela mudou por

completo. Porque antes eu fazia Comércio Exterior e não conhecia nada de arte e ela começou

bem, dessa maneira bem “suavinha”. Quando eu vi, eu já estava sendo educadora, então eu

acho que ela mudou o meu modo, a minha rotina, muito mais leve. Eu não estava mais

precisando usar a camiseta social, eu ficava de chinelo, em vez de eu pegar um fretado pra ir

lá pra São Paulo, eu estava pegando um busão pra ir lá pra “quebrada”59

né?

É mais dura financeiramente, só que sem estresse, muito mais feliz. E na real a

arte me proporcionou descobrir o que eu queria ser. Foi com vinte. Eu tô com vinte e oito. Foi

com vinte e três, vinte e quatro anos de idade, que foi tarde assim, se a gente for pensar, mas

ela veio no momento certo dessa minha inquietação de vida. Ela veio pra dar sentido. Essa

coisa que eu falei antes que não consigo finalizar nada, me preocupa com o tempo, por ter

muito tesão no que eu faço, então eu descobri, ela na verdade abriu a minha mente mesmo em

relação a fazer o que você gosta.

57

Douglas: na época Coordenador regional do projeto Arteiros. 58

Eduardo: é um cantor, escritor, ativista, palestrante e compositor de rap brasileiro, fez parte do grupo de rap,

Facção Central 59

Quebrada: Periferias urbanas

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Esse momento teve uma influencia do Basquiat60

porque eu me identifiquei

bastante mesmo. Por conta de ser desenho livre, a gente não ficar preso a estética, por isso que

também fui fazer os cursos. Então ele, nesse processo artístico ele que foi importante. Ele era

grafiteiro e tal, pela história de vida apesar, de ter morrido de overdose, mas aí esteticamente,

que é uma coisa agressiva que eu curto, esses desenhos mais agressivos assim, eu acho que foi

assim com os moleques. Tanto deles me inspirarem de eu fazer, quanto de eu ver eles assim,

hoje em dia ...

Minha primeira grande mudada de fase foi quando fui para Parati, quando eu

chutei o balde, foi um desses momentos, a primeira descoberta.

Esse foi o primeiro dessa coisa de que muda uma coisa dentro de você mesmo,

tipo... Depois dentro da Fundação, a saída de São Bernardo, foi o momento que mais mexeu

comigo enquanto educadora, enquanto pessoa mesmo sabe? Não falando artisticamente,

porque minha saída de lá foi por conta de uma proposta de uma oficina de arte que era de

pichação. Então o meu questionamento era como, tanto embate em relação a uma questão, que

era uma proposta dentro de uma oficina de arte de um projeto de arte e cultura.Eu estava

saindo dessa unidade porque eu tive um embate por causa disso. E até que ponto a gente está

fazendo arte mesmo, arte assim, arte e cultura dentro da Fundação. Porque o próprio projeto

negou isso aos meninos.

Então esse foi um momento que me marcou de me rever enquanto educadora, de

me rever dentro do projeto, de rever como eu estava lidando com isso, como eu estava

encaminhando coisas. Aí quando eu saí, eu tive que pensar também, as consequências disso,

deixar os moleques lá, assim, é uma Casa totalmente complicada, foi lá que eu comecei todo

esse processo de embarque, de levar o Eduardo lá61

.

Senti-me desrespeitada de estar dois anos fazendo aquilo assim e, eu acho que as

pessoas não tinham preparo pra lidar com aquela minha demanda, eu acho que as pessoas

deveriam estar preparadas, ou pelo menos conduzir de uma outra maneira e não me castigar.

Porque pra diminuir minhas oficinas, é porque você tá tirando uma Arte Educadora de lá e os

moleques lá no meio da oficina, como você tira uma Arte Educadora? Numa casa super

complicada. Que a gente a todo o momento tem que fazer garantia de direito. Se a gente cria

vínculo, como que a gente corta o vínculo assim do nada? Não pude nem me despedir dos

meninos, eu lembro quando eles me falaram:

60

Basquiat: foi um artista americano. Ganhou popularidade primeiro como um grafiteiro na cidade onde nasceu

e então como neo-expressionista 61

Referência ao dia em que a arte educadora levou o cantor Eduardo ex-facção central para conversar com os

adolescentes dentro da Fundação CASA.

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-“ Vai sair, ah vai sair”

-“Ah vou me despedir dos meninos.”

-“ Não, você não pode. A fulana de tal não quer que você se despeça dos meninos.”

Nossa, isso foi uma facada pra mim. E assim, eu acho que dos meninos de arte, eu

lembro que um dos primeiros meninos que foi o Jean, o Murilo e o Gibi que começaram a

fazer as produções de textos e de músicas muito críticas, aí também me deu “start” de que a

arte lá dentro não era só pintura e desenho, que podia ir, além disso, tudo. Além de a gente

fazer um desenho assim sobre a crítica, os meninos eles podem estar fazendo uma atividade

muito mais direta, do que só olhar para um desenho, a palavra a partir do momento que você

leu e você fala, ela é direta.

E de ver a possibilidade dos meninos também criarem outras coisas que eu não

sabia né? E de uma maneira muito crítica, você pega um Jean que é um menino que conhece o

ECA62

e um menino que ele tem facilidade de escrever uma letra de Rap totalmente crítica,

ele não tinha contato com ninguém do Rap ainda dentro desse processo da Fundação, mesmo

assim eles escreviam ou gesticulavam, me lembro do Murilo em cima daquela bancada

cantando! O menino era um profissional! E então aí que começou a literatura e tal, eu acho

que esse foi um dos momentos que marcou mesmo. De pegar uma turma, a gente precisava

ler, debater e desenhar, fazer uma releitura, era uma produção crua deles e de tudo aquilo que

eles leram, que eles estavam vivendo na Fundação ou algum movimento de protesto.

Esses três adolescentes me marcaram muito. O Jean era um menino muito

articulado, o Jean sabia o ECA, ele sabia lidar com as pessoas muito bem, ele era um menino

muito calmo, nunca vi ele descontrolado, inteligente, ia muito bem na escola. Ele não era um

menino que produzia a arte, tipo artes plásticas ele não queria desenhar, mas ele tinha umas

resenhas que tipo, eram muito boas e gostava de conversar, do diálogo. O Jean, eu lembro que

ele tinha audição, ele queria aprender, não precisava ficar falando, ele queria ouvir sabe? Há

um tempo, ele me mandou uma mensagem que ele queria muito falar comigo e disse que

estava participando da convenção da juventude de Mauá.

Aí ele falou: “Vai ter em Santo André, você não pode ir? Quero te pedir uma coisa

muito importante. Eu quero aqueles textos que você deu pra gente aquele dia lá na Fundação”.

E eu, meu Deus! Não tinha mais os textos. Daí eu perguntei, quais eram os temas

e ele falou, violência de gênero, os homicídios dos jovens negros, começou a falar coisas que

a gente conversava, e ele me relembrou isso. Olha que louco! E ele queria esses textos, e uma

62

Estatuto da Criança e do Adolescente.

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coisa que ele também queria muito era o livro do Eduardo ex-Facção. Eu preciso ler esse

livro. Isso tem dois anos, e nesses dois anos a gente falou poucas vezes e isso foi muito louco

e aí ele falou também com o pessoal do PSOL que curtiu falas dele num encontro sobre

juventude, estava chamando ele e ele com toda a simplicidade, falou assim, mas ainda estou

analisando: “Não sei se posso confiar”.

Muito louco! Aí o Murilo, que também era um menino, ele não tinha essa coisa do

Jean de querer, aprender e tal. Ele até falava bastante, mais que a língua, eu lembro que o

Murilo, ele tinha uns picos de humor, Murilo tinha um sorrisão, um puta sorrisão.

Mas também quando ele estava enbucetado63

você olhava pra cara dele e aquele

semblante final assim. Eu lembro muito de uma vez que ele estava bravo, eu falei: “Porque

você está bravo comigo? Porque você tá falando assim comigo? Você está um grosso” Aí ele

olhou assim, parou - Sabe quando você respira? - E ele abriu aquele sorrisão. Aí eu falei,

nossa que maluco né velho! Dois picos assim. Agora eu não vou lembrar do texto dele, mas

uma vez a gente fez uma atividade num painel vermelho e ele fez sozinho uma frase, colocou

muito a imagem de uma vaca que tinha um dinheiro, que era uma coisa bem crítica em

relação a política sabe? Essas coisas. Ele escrevia muito bem. Escrevia letras de músicas,

fazia Rap e críticas também.

Quando eu penso em realizar uma oficina, eu não penso que eles poderiam fazer

só isso, eu penso no que eles podem fazer depois. Primeiro eu penso muito naquele momento

deles, do que eu quero que a gente vá refletir naquele momento. Porque a demanda deles no

depois, ela é muito grande e eu não tenho pernas assim. Então, aquele mesmo discurso assim:

“Que quero fazer uma arte para repercutir?” Tipo assim, o menino ele pode continuar na vida

do crime, pra mim isso é muito tranquilo assim, mas que todo esse momento dentro da arte e

cultura, ele já tem outro desenvolvimento em relação ao que ele abastece. Do que é estar

sendo alienado, então eu não tenho muito a pretensão assim que tipo aí a arte, esse menino

que desenha muito, por conta disso, muitos desses meninos que se destacaram muito na arte,

tá no caixão, ou tá traficando ou roubando aí entendeu?

Então, uma das primeiras vezes que eu me deparei com isso, quando se destaca

muito e esse pensamento eu dei uma, não uma podada, mas também já vi outros, tipo o

Cotonete64

, um dos meus primeiros meninos, eu lembro quando eu tava descendo a sacadura65

63

Enbucetado: de mau humor. 64

Cotonete: Apelido de um adolescente que estava internado na Fundação CASA. 65

Sacadura: Referência de uma avenida de São Bernardo.

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eu vi um “Coton o torto tem direito” 66

, não sei se o Cotonete está traficando, o que ele esta

fazendo, mas eu vejo um monte de “Coton” de graffiti até hoje quando eu vou pra São

Bernardo, então ai o “torto e direito” eu só vi uma vez que foi na Sacadura, mas alguma coisa

afetou nesse menino, o “torto tem direito” até o Leminski fez por conta de cadeirante, mas pra

ele teve outro entendimento, então às vezes ele nem virou mesmo artista, eu vejo que ele faz

uns graffiti, só que eu sei que alguma coisa dentro das oficinas que foi de artes plásticas pra

esse moleque, ele sentiu alguma coisa.

A arte provoca coisas nos meninos. Não, isso é fato, e é isso, ela provoca

independente do que eles forem fazer aqui fora eu tenho certeza. Quando a gente esta falando

do mexer, do inquietar, alguma coisa inquieta sabe, eu vejo até pelos meninos da literatura,

que agora a gente tem feito muito sarau, da vontade deles de quando sair eles estarem

preparados para quando eles forem num sarau. É, eu lembro de um menino, foi até aquele que

me desenhou ali67

, o Léo, é muito foda isso. Eu sempre falo: “O Léo é educador, ele é meu

ajudante”, então ele tinha jeito com os meninos, ele desenha muito, muito mesmo e ele estava

contando da técnica, que ele gostaria de fazer um curso de artes e ser educador, queria ser

professor. Daí ela68

olhou pra ele e disse: “Mas isso não dá dinheiro!”. Eu queria matar ela

quando ela falou isso. Porque ele pensou no que eu falei, ele sabe que ele é bom e quando ele

esboça essa vontade de “vou sair”, essa mina deveria ter falado pra ele: “Léo vou ver um

curso de desenho pra você!”.

Então, o Léo já tem essa facilidade, que provoca alguma coisa, quando a gente dá

essa autonomia, trabalhar essa autonomia é muito bom. O Leonardo às vezes ele prepara aula

lá dentro. Então ele seguiu o papel de educador quando eu falava assim: “Léo dá uma atenção

ali para aqueles meninos”. Eu sempre falei pra ele o artista, pode fazer coisas em camiseta, em

tela, você pode fazer Léo, porque ele cria personagens muito bons, mas além disso, ele pensou

que ele pode dar aula também. Então o provocar, acho que a arte do provocar, é fato assim.

Porque por mais que os meninos possam por conta das demandas da estória, não seguir o que

eles aprendem dentro da oficina é sempre essa vontade, “eu quero cantar no sarau, eu quero

ser educador”.

Ah velho! O Traquinhas, to lembrando do Traquinhas, e esse menino é um

menino que eu nem tinha um vínculo forte assim com ele, mas ele me mandou uma

mensagem falando que estava tatuando e perguntou como ele fazia pra ser educador de arte

66

Uma pichação na parede escrita “Coton, o torto tem direito”. 67

Referência a um quadro que estava na casa da colaboradora Thalita. 68

Uma profissional da Fundação CASA.

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dentro da FEBEM, ele falou assim que ele queria ser igual a mim e o Jú. Ele até comentou

assim: “Você deve estar orgulhoso do seu aluno né?” Até mostrei o face dele pro Marcos69

. O

face do Marcos pra ele, olha este é o coordenador do ABC, falei pro Marcos também da

vontade dele.

Teve uma vez que eu acho que ele ia acompanhar um cara numa oficina e esse

cara ia trazer novas experiências e tal, e vire e mexe ele fala comigo, mas ele tá tatuando.

Agora que eu tava pensando, muitos meninos tiveram na vida o sonho de ser educador, agora

que eu lembrei do Traquinhas, além também da brisa de ser artista né? Que ele já tá sendo, tá

tatuando, tá desenhando, já tá fazendo a arte dele, mas a vontade dele também é de fazer uma

diferença ali com os moleques, passou por aquilo, ah agora eu lembrei desse menino, o

Traquinhas.

È muito louco receber a devolução assim dos meninos e é louco porque assim são

poucos que a gente sabe, que tem contato, porque tem Facebook hoje em dia, mas quantos

outros, podem estar na vontade, ou podem estar fazendo alguma coisa relacionada.

É um feedback muito bom, porque assim, porque ele viu, imagina ele teve contato

comigo e com o Smul, que a gente não tem formação, a gente não é formado em faculdade, a

gente dava uma arte muito livre, e como ele se identificou, tipo assim ele poderia pertencer a

isso. Isso é muito louco, não criou uma barreira, tipo isso é impossível pra mim. Não é? Eu

achei muito da hora, da vontade dele disso se tornar possível.

Tenho uma tatuagem que é o menino encapuzado e eu tenho um caderno de

desenho inteiro na verdade, que é muito treino desse menino encapuzado, que até aqui na

tattoo ele tá lendo o livro, que é toda a poesia, mas é muito dos moleques mesmo. Essa daqui,

essa tattoo é muito do que eu acredito, nessa coisa da gente. Foi a literatura marginal, que é do

quanto a gente instrumentalizar, por outro tipo de revolta. Porque o encapuzado, ele é

justamente assim, porque os meninos quando eles se encapuzam é quando eles vão fazer as

rebeliões. O quanto a gente esta fazendo por outros meios, como ela também é total

revolucionaria e agressiva também, sem a gente tá pegando no “pente” 70

.

Aí tem uma frase que é “sua mente sã, é libertária” que é muito desse momento

rebelde, mas que é muito pra mim a cabeça às vezes ela é muito atordoada, porque eu não to

privada de liberdade, só que a mente as vezes ela tá privada, e as vezes a gente tá aqui, mas se

a mente não tá da hora a gente tá doente também. E quando a gente consegue, seja através do

desenho que eu me extravaso muito, ela deixa a sanidade, dá um equilíbrio e na verdade

69

Marcos: Coordenador regional do projeto Arteiros. 70

Pente: Giria usada para armas de fogo.

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consigo ficar de pé também. O libertária também pra gente se libertar destas confusões

mentais, e relacionado aos meninos também, é em relação ao quanto nesse momento de

cárcere também a gente está só mentalizando e dá uma ,sabe aquela frase piegas deles:

“podem encarcerar meu corpo, mas não minha mente?” é quase isso, nessa mente libertária.

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Transcriação Colaboradora Thalita

Uma viagem para a virada de ano, destino, Paraty-RJ. Na água salgada e na

cerveja gelada a calma e o descanso merecido. A proletariada dedicada, estagiária da Philips

mudava de estágio...de súbito, surto! Mudança! Já não fazia mais sentido São Paulo, o

caminho do pai, o comércio exterior, o escritório, o trabalho árduo, a logística, o metódico.

Não deu a lógica, uma viagem para a virada, da vida.

Por três meses, aos 21 decidiu não voltar e em Paraty como garçonete viu na tia

da amiga um lugar para mirar, bonita, inteligente, solteira e independente, é essa a vida para

acertar.

No retorno para a cidade Natal, Santo André, uma amiga ali fazia arte em

garrafas. Da parceria ociosa, sócias, novas articulações, coletivos, Nasa. Ontem escritório em

São Paulo, hoje oficinas nas quebradas, reciclagem no Jardim Santo André, tudo meio cru,

inexperiente, na coragem.

No lado de cá da ponte, periferia, a arte com reciclagem reciclava, a si, germinava

um sentimento de injustiça, questões sociais, questionamentos, são crianças muita lama, casa

de madeira, muitas vezes ir pra escola com a mesma roupa é dureza! Nó no estômago, sem

comida na geladeira, e os bacana apontando o dedo dizendo sai de perto que é pobreza. Falta

delicadeza.

Novas oportunidades mediadas, amigo Smul indica a tal da Fundação CASA. Na

pouca experiência da nova inexperiente Arte Educadora, propostas com vidro. Espere!

Rebobina, com vidro? Atenção! Fundação CASA! Sem vidro! Muito chapéu para

compreender que dentro de Casa nem tudo se pode fazer.

Artes plásticas na CASA Mauá. Da tinta esquecida a telas de coração, primeiros

tropeços futuros arremessos, no fazer com os meninos se fazia também, nas suas demandas,

pesquisas, cursos, Leminski, Basquiat, novas influencias...um novo criar.

Atmosfera criativa! Do amigo um presente inusitado, já adulta ganhara um

caderno de desenho irado! Em pouco tempo folhas em branco rabiscadas, a gênese de um

personagem do cotidiano, os moleques., quem tem coragem? Das rebeliões,

inspiração...agressividade, capuzes., na linha de frente esconder o rosto não é falta de técnica

é sobrevivência.

Ruas tomadas a cena ferve, massas, movimentos, lutas reivindicam menos tarifas

mais qualidade, ano 2013. Nas ilhas amarelas chamadas de CASA, a informação desliza pelas

brechas, porque a TV não pode informar apenas entediar. Nas oficinas de arte e cultura,

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resistir e alimentar, textos de mão em mão girar, o calor manifesto aquecia as mentes

trancadas.

Artes plásticas ficou pequena, altas produções textuais exigiam menos pincéis e

mais lápis, transições de novas demandas, o que era plástico se tornou marginal, tempos de

literatura marginal. Como uma simbiose o menino encapuzado ganha um livro, nos libertamos

em comunhão, Paulo Freire.

Necessidade de alimento, Saraus, Sérgio Vaz, Ferrez, comida...produto? Revista!

Cada um com seu próprio texto exprimiam dores, louvores, denúncias e renúncias.

Resistências!

Na mais intima relação entre caneta e papel, a molecada se sentiu em céu aberto!

Fora dos muros, dentro...murros! Livre expressão, não! Cautela , censura, ONG também

barra. Entre a coragem e a sobrevivência, contratos amarram, inquietações.

Rotas de fuga, para além das rotas oficiais, vielas, a revista impressa em preto e

branco saia na surdina e rodava saraus. A palavra censurada escapava, era necessário resistir,

indignar, protestar, desobedecer para avançar...princípios.

Estratégias pra fora colaram lambes por várias cidades, textos repetiam o que não

podiam ser dito, o que devia estar silenciado. Choques ao ver produções encarceradas

tomarem praias, morros, praças...maluquice? Arte Educadora popular. Afectos.

Investidas com o outro, não para o outro propiciaram terreno fértil. Na arte,

profunda transformação, no relance, dureza nas contas, chinelo, menos stress, busão pra

quebrada aposentaram, fretado pra SP, camisa social e uma vida de almofadas. Sentido de

vida mente aberta, parafraseando ”me proporcionou descobrir o que eu queria ser”.

Intensa relação com adolescentes da Fundação, impressionante não? Capacidade,

criticidade, criatividade, deitando por terra o estigma apontado na maldade, preto, pobre,

ladrão e irracional, três anos de fundação é piada nacional exigem redução da maioridade

penal. Tente um tête-à-tête com Jean, Murilo ou vários outros e sinta o rap pesado, a poesia

direta, o movimento do corpo. A cena criada desmonta quando sai da telinha, vai culpar quem

agora?

Sementes não brotam do nada, toda semana são três horas de oficinas pensadas.

Ali, no encontro, arte e cultura, no inusitado encontro da criação entre concreto e barras de

ferro que se luta por reflexões, provocações, inquietações, sentimentos, sem pretensões

midiáticas, muitos se destacam e no mundão estão no corre ou no caixão essa não é a questão.

Atenção para sorrisos, abraços, riscos, rabiscos, no detalhe, pequenas rupturas capazes de

provocar lá fora independente.

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Transcrição – Entrevista colaboradora Beatriz – linguagem artes plásticas – Quinta

Entrevista.

Dia – 29.06.16

Local – Casa da Colaboradora – Campinas

Daniel:Então Bia tudo bem como você tá?

Beatriz: (Risos) tá tudo bem...

Daniel: Tá tudo bem? Queria que você contasse um pouquinho da sua vida...aí se pode

escolher o caminho que você quiser pra fala um pouco dela...o tempo que se quiser o que se

senti a vontade pra fala sobre isso.

Beatriz: Bom...é...sou educadora...social...é...gosto de ...de sempre me afirmar enquanto

educadora...o que acaba se tornando quase um sinônimo do ser...quando se reconhece como

tal...me formei quanto educadora nos movimentos sociais...é...comunidade eclesial de

base...apesar de ter ido a academia também...mas considero que minha formação tenha vindo

muito mais fora da academia do que dentro...é...hoje eu trabalho dentro da Assistência

Social...no PAEFI...numa ONG...é...moro em Hortolândia...

Daniel: Mora em Hortolândia? Você sempre morou aqui?

Beatriz: Não...bem recente...é...tenho uma companheira que é assistente social...a gente se

casou entre aspas faz pouco tempo também...é...passo por um processo bem interessante

quanto ...e...se bancar na sociedade...para a família, quanto homossexual, no caso mulher

lésbica...tenho experimentado vivenciar isso de fato né...e devo muito a isso também a esta

questão de ser educadora porque acho que pra eu conseguir dialogar sobre isso com o público

que eu trabalho eu preciso que ser coerente na vida.

Então eu procuro vivenciar isso de fato...então é...fazer todo o processo com

minha família com amigos e com sociedade...e diante de todo contexto politico que a gente

tem, que a gente está vivenciado, é ...tento me organizar de alguma forma dentro da

militância.

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Daniel: E este processo..ele é difícil, está sendo moroso, como está sendo?

Beatriz: Agora ele ta...mais tranquilo...eu acho que é difícil, o processo familiar, acho que ele

é o mais difícil, quer dizer talvez dependendo, depende de cada um né? Mas talvez pra

algumas pessoas devido a questão religiosa e moral né talvez seja difícil a própria aceitação

ne?

Mas pra mim específico, foi muito mais familiar por ser de uma família

conservadora...é..então foi bem difícil...mas...agora, se bancar na sociedade apesar de ser

difícil acho que pra mim não tem sido tão, porque pra mim é como se fosse um processo

natural, eu sou assim então logo quero me relacionar com pessoas, e que essas pessoas saibam

de fato como eu sou...é...e de tentar contribuir de alguma forma pras..com as outras pessoas,

porque eu acho que se também, estamos vivendo este momento não só politico de como as

pessoas lidam com isso...é...temos responsabilidade também sobre...então o público LGBT

também tem responsabilidade nisso, não no sentido de responsabilizar, porque você já está a

margem da margem da margem...se todos minimamente se bancar na sociedade de fato, nas

coisas mais simples como andar de mão dada na rua, se isso aparecer pras pessoas, talvez elas

vão conseguir naturalizar um pouco mais não achar que isso é tão...né, tipo...que não seja tão

difícil assim este processo de se relacionar com as pessoas e tal.

Daniel: E aí é...uma..uma luta que você tem se engajado e tendo como prioridade assim de

uma luta social sua ou tem outras lutas que você também tem...

Beatriz: É...tem outras também...até um dado momento...quando eu comecei a, meu primeiro

trabalho como educadora mesmo, foi como educadora social de rua né? Com criança e

adolescente em situação de rua...é...neste período, a minha luta era muito no, no campo da...da

infância, da adolescência, então assim eu tava muito envolvida com isso.

Ao decorrer, vai mudando, uma coisa vai ficando um pouco mais

latente...até...agora me falando eu me lembrei...antes disto teve, eu me engajei bastante com o

MST, mas aqui, no caso eu morava em campinas né foi quando eu me envolvi bastante com

os movimentos sociais, em específico eu me envolvi bastante com o MTST que estava dentro

do MST.

Daniel: Uhum

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Beatriz: Que é o movimento dos trabalhadores sem teto, mas o MST é, mas pra uma linha

mais rural ne, e o MTST mais urbano. Então acho que, eu tive um pouco desta luta assim,

depois foi na questão da infância e tal, situação de rua, isso ia mudando com cada trabalho

que eu tinha eu entrava um pouco mais nessa, nessa luta.

Daniel: Cada trabalho que se tinha dependendo do contexto do trabalho te suscitava uma luta

social.

Beatriz: Isso, isso foi mudando, teve do MST, depois teve uma linha de criança e

adolescência em situação de rua, é da saúde mental ne, então assim estas coisas iam mudando,

então sempre tinha uma coisa latente mas as outras permaneciam, mas por uma demanda da

vida da gente trabalhar e estudar, ter a militância, eu escolhia uma coisa né? Uma linha para

estar, estão isso ia mudando.

Depois que eu, é...que eu fui trabalhar na Fundação CASA, isso ficou latente

também, eu acho que isso ainda permanece muito forte, por exemplo a questão da redução da

maioridade penal, então eu não trabalho mais na Fundação CASA, não dou mais as oficinas

de arte e cultura, mas isso ainda permanece comigo, muito. Mas depois de entrado no PAEFI,

eu acho que eu me senti muito mais, uma das linhas assim que é...suscito, foi a questão da

violência de gênero, né, acho que inclusive antes disto talvez eu nem me considera feminista,

ou não me afirmava enquanto feminista, apesar de eu acreditar que eu já era.

Então eu acho que hoje a questão da violência de gênero é algo que me mobiliza,

e eu tenho tentado estar em alguns espaços de formação e de discussão desta questão, tenho

procurado estar também em algumas discussões enquanto política pública, o que tem sido

pensado e lutado quanto política pública aqui no município, e a questão do LGBT, mas eu não

estou organizada, não tenho um coletivo que eu faço parte né, e eu acho que assim, eu tenho

muitos amigos que estão organizados e eu acho que isso contribui um pouco, mas eu tenho

tentado participar de coisas que tem acontecido aqui no município, mas algo mais não

organizada né, não no coletivo e tudo mais.

Daniel: E você teve, pensando nesta militância de varias faces, e que é recorrente na sua vida

parece que a um tempo, você consegue pensar assim de onde que vem esta força para

questões sociais, não sei alguém da família, alguém que você se identifica ou se identificou na

história em algum momento?

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Beatriz: Eu acho que elas...eu acho não..eu tenho quase certeza assim, vieram por conta dos

meus pais, eles sempre foram envolvidos com questões sociais, mas devido é...a questão da

religiosidade, mas específico da minha mãe que ela é católica, então isso veio muito do...das

comunidades eclesiais de base, mas minha mãe não tem este entendimento, o olhar dela e o do

meu pai é numa linha mais de caridade, mas eles tem um olhar de fazer o bem, sempre

pregam isso que temos que fazer o bem para as pessoas, que a gente, tem que buscar uma

forma das pessoas viverem melhor, porque o mundo é injusto, então sempre teve este olhar.

Eles sempre foram envolvidos com questões, com alguns questões...então por

exemplo, isso foi desde quando eu era criança, então é...por exemplo lembro de quando eu era

criança eles recebiam em casa, folia de reis...então eu sempre fui tendo esta vivencia assim

então porque, eles iam em casa...é...questões mais comunitárias mesmo...entao todo mundo

preparava o café...almoço pra todo mundo, então tem isso que eu acho que é um pouco

marcante, e...e eles sempre participaram dos vicentinos, que eu vivenciei muito desde criança,

então assim, várias famílias que precisavam de alguma coisa eles iam em casa pedir porque

meu pai ou minha mãe fazia parte.

Então assim por exemplo, eu lembro de uma época que meu pai era tesoureiro,

então ele, ficava meio que tomava conta do dinheiro, então eles iam em casa pra comprar

remédio, fralda, então varias vezes eu que fazia meio que esse role, assim tipo meu pai só

falava vai comprar tal coisa, vai faz isso, e eu ia né, então tinha muito contato com as

pessoas...

Daniel: Quantos anos você tinha mais ou menos?

Beatriz: Nesta época eu era mais adolescente assim, acho que eu tinha uns treze anos...acho

que isso foi bem marcante, e daí as pastorais vão se dialogando né, então as pastorais dos

vicentinos mas daí vai dialogar com a pastoral da criança, que eu tive bastante envolvimento,

e meu pais sempre colocavam que eu tinha que fazer algo, então assim eles não aceitavam que

eu não fizesse nada, então eu tinha que escolher alguma coisa, então eles falavam assim pra

mim você tem que escolher algum lugar para fazer algo...

Daniel: Mas como é que você se sentia com esta expectativa?

Beatriz: Era...bastante pressão ne? Como eu era filha única, na verdade acho que tem uma

pressão para quem é filho único, de ser o melhor na escola o melhor em tudo, e eles tinham

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acho uma expectativa comigo em relação a isso também. E na época eu falei pra eles que eu

escolhi a pastoral carcerária...

Daniel: Pastoral carcerária? (Risos)

Beatriz: Eles faziam visitas pros presidiários na cadeia assim ne...

Daniel: Mas você escolheu ou estava brincando com seus pais?

Beatriz: Não eu escolhi mesmo! Mas eu tinha quinze anos assim ne, mas dai meu pai não

deixou, ele falou que...magina...magina...vai ter que escolher outra pastoral!

Daniel: Mas o que que te levou a pensar nesta pastoral da carcerária? Se lembra assim?

Beatriz: Então, eu achava assim na época eu comecei a pesquisar algumas coisa, e eu via a

dificuldade das mulheres, que estavam privadas de liberdade...sobre a questão dos bebes ne...e

isso me gritou assim ne...e eu falei nossa eu...eu..

Daniel: Tem que tá lá né?

Beatriz: Nossa acho que vai ser uma coisa que eu vou gostar de ir...de estar lá...porque não

tinha muito esta coisa de eu vou ajudar...eu pensava no que o que eu iria aprender com isso, o

que que vai me trazer aprendizado. E teve outro ponto também, que meus pais tinham um

grupo de amigos que eles faziam comida pra levar pros moradores de rua, então todo fim de

semana...é...eles se organizam e faziam comida, e quando eles faziam isso era sempre na

minha casa...então era muito cedo, 5h da manhã eles tavam fazendo comida...

Daniel: De final de semana? Ai você já tava acordada junta?

Beatriz: Eu era obrigada a ajudar! (Risos) Tinha que escolher alguma coisa, eles sempre

falavam que que eu queria fazer...e daí eu...até por uma...eu era mais nova, acho que eu tinha

nove anos mais ou menos, foi quando isso acho que começou assim, é...não ajudava a

cozinhar ne, então eu ia junto com meu pai, a minha mãe ajudava a cozinhar e tal e meu pai ia

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entregar e daí eu ia junto com meu pai, junto entregar e tal e a gente ficava lá conversava com

os moradores de rua e tal.

Daniel: Você consegue pensar o que você sentia ou pensava assim, esta coisa desta vivencia

de entregar comida pro morador de rua, de ver o morador de rua ne, de trocar ali, não sei se

você tem alguma memoria disto, de sentimento.

Beatriz: Eu lembro...assim, eu lembro assim, de nos primeiros momentos eu ter ficado muito

triste, muito triste, porque eu achava que não era certo, ne porque que a gente tem esta casa e

eles não tem por que que eu tenho e eles não tem. E daí...de eu até chega e fala pros meus pais

que...eu não...de eu querer dividir minhas coisas mesmo de pegar todas as minhas roupas e

pedir pro meu pai levar pra rua, acho que eu fiquei meio pirada.

Daniel: Você se sentia desconfortável com o que você tia...

Beatriz: E apesar do que o que eu tinha não era muito também...ne ...não era muito...era

...ne...mas existia este desconforto assim, e dai em vários momentos assim, por exemplo o

natal que tinha, que geralmente tem muita coisa de comer, eu não conseguia ficar muito, tipo

eu não queria vivenciar isso com minha família ne, eu sempre escolhi estar com os moradores

de rua, então por exemplo a ceia eu não fazia com minha família, eu fazia lá na rua, com os

moradores...

Daniel: Mas seu pais iam também? Ou não?

Beatriz: Não.

Daniel: Só você ia?

Beatriz: Eu ia.

Daniel: Nossa que da hora.

Beatriz: É...daí então eu percebi assim..

.

Daniel: E pros seus pais tudo bem?

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Beatriz: Tudo bem...assim ne...eles tinham algumas preocupações e tal...mas não neste

sentido assim, de...eles se preocupavam assim tipo ceia...é de madrugada meia noite ne então

assim, é muito tarde então eles iam me buscar, coisa assim de horários e tal, mas não por

conta de ser os moradores de rua, então por exemplo pensar assim, no natal ceia...era tarde

então, mais neste sentido...e depois de um tempo eu fui trabalhar com situação de rua então

pra mim faz muito sentido.

Então pra mim assim, eu até brinco com eles que eles sempre falavam ne poxa

você estudou e tal ne ralou pra caramba pra conseguir pagar a faculdade e tudo mais e agora

você tai e ganha pouco pra caramba que não sei oque ne...ai eu falo pra eles...risos...que foram

eles que...

Daniel: Que criaram...

Beatriz: Que tipo...ne...que construíram isso ne...então tipo eu falo assim pra eles eu não

tenho culpa vocês que são os responsáveis...assim ne...então acho que que isso assim eu tenho

muita clareza que vem deles, e eu acho que eles tem um senso bem comunitário assim, de

algo bem igual, a minha casa sempre foi aberta para pessoas que estavam precisando de

alguma coisa assim, então eu meio que fui criada assim neste meio, isso foi o que possibilitou

mais.

Acho que por mais eu tenha uma visão diferente deles, que eu procura ter um

olhar meio assistencialista e olhar pra estas questões como uma luta de classes e eles não mas

eu acho que a essência é a mesma, a fundamentação pro que me move a ter esta questão da

militância e tudo mais é uma a deles é outra mas a essência acaba sendo a mesma assim.

Daniel: E...seus pais são de Campinas?

Beatriz: São.

Daniel: E eles sempre moraram em algum lugar ou mudaram assim?

Beatriz: Meu pai nasceu em Campinas e morou sempre aqui, e minha mãe não, minha mãe

ela é de Piracicaba e ela veio pra cá por conta do meu pai.

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Daniel: E vocês moraram onde ali em Campinas?

Beatriz: É...quando eles casaram e tal, a gente morou ali no Campos Elísios até eu ter três

anos e depois a gente foi morou ali no Jardim Márcia, até os meus trinta anos.

Daniel: Ah é? Morou 27 anos lá?

Beatriz: Trinta? Trinta quando eu fiz eu tava aqui...não ate os vinte nove.

Daniel: Até os vinte nove...você morou bastante tempo lá.

Beatriz: Bastante tempo! Lá é minha quebrada!

Daniel: É?

Beatriz: É, quero voltar pra lá!

Daniel: É...bastante tempo vocês viveram lá...eles moram lá ainda?

Beatriz: Moram lá...

Daniel: E como é que é lá? Essa quebrada?

Beatriz: Hoje...não tá tão bacana como era antes assim na minha infância...

Daniel: Que que era bacana na sua infância...lá?

Beatriz: Porque eu acho que ...naquela época...nossa falando assim parece que sou mó

velha...risos...porque naquela época acho que tinha um senso muito comunitário lá no bairro,

então assim tinha essa questão forte da folia de reis, tinha as festas ne, que a gente fazia,

sempre fechava a rua, sempre muito comunitário assim...é...

TELEFONE TOCA!

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Daniel: Vamo volta...tinha sempre as...a folia de reis...tava falando...

Beatriz: O senso comunitário ne...a gente tinha essa questão das festas ne....folia de reis...as

festas ne...julina tinha um monte de festas assim que se criavam assim...e sempre assim tudo

muito comunitário ne...e não tinha tanta violência, era muito tranquilo as...tinha muita

é...criança ne, e adolescente na mesma faixa etária, e a gente brincava muito na rua e os pais

brincavam junto...

Daniel: Ah é?

Beatriz: Não era...

Daniel: A galera ia junto...

Beatriz: É..não era...por exemplo tinha muita brincadeira assim de...pique bandeira, esconde

esconde, ]betes, e os pais brincavam junto com a gente, então era bem bacana assim...é...daí

hoje assim muita violência, o trafico bem mais intenso, e uma das coisas assim que hoje é o

maior dificultador assim ne, que varias, é...famílias que estavam morando em área de risco

foram pra lá, foram construídos alguns apartamentos lá, e essas famílias foram pra lá, e

também tem uma...uma ocupação perto destes prédios, e dai quando vem isso e não tem

nenhum...nenhum tipo de serviço que faz algum acompanhamento nada.

Começou muito a aumentar trafico e roubo lá, porque antes o que tinha é que se

vai ter roubo não vamos roubar o próprio bairro ne, não tinha isso assim, e quando surge a

ocupação e...e o apartamento lá que é da COHAB que era pras famílias de área de risco,

aumenta muito assim muito a questão do roubo, de coisas pequenas assim como por exemplo

pular dentro da casa das pessoas e roubar roupa do varal, tênis coisas do tipo, a fio do poste...

Daniel: Nossa!

Beatriz: Ne? Até essa questão de...da casa mesmo, de entrar na casa de...é...de ameaças ne,

então assim isso foi um...que é dificultador assim que hoje por conta de tudo isso as pessoas

não tem mais se relacionado de uma outra forma assim ne..

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Daniel: Ai a galera nem fica na rua mais...

Beatriz: Não fica mais, é...não fica até tarde, antes era muito comum todo mundo ficar

sentado na calcada, conversando mesmo os vizinhos é...no perto ne, da casa dos meus pais

tem um...uma quadra e um campinho de futebol, o pessoal ficava jogando bola até a noite e

hoje já não fica mais também, muitas pessoas sendo assaltadas ne a noite...na hora

que...chegam...

Daniel: A própria galera da comunidade ali?

Beatriz: É...a própria galera da comunidade...então isso que é...que tá mais tenso assim, mais,

ao mesmo tempo, mesmo com tudo isso eu ainda continuo com mesma relação de afeto com o

espaço assim ne, porque me reconheço lá, é...então assim isso não diminui minha vontade

demorar lá, pelo contrario ne, moro em outro lugar mais quero...queria morar ali naquela

região...

Daniel: E quando você vai pra lá você faz algum role na rua ali, ou mais na casa do seus pais

assim?

Beatriz: Então hoje meus amigos não moram mais lá, então assim...mais eu gosto de

frequentar os lugares, por perto, então por exemplo, eu gosto de ir no cachorro quente de lá...

Daniel: Que é o mesmo a mile ano?

Beatriz: Ah...mais ou menos, mais gosto de...ir nos butequinho ali por perto...ai estes ão os

que tão a mili anos...

Daniel: Da hora!

Beatriz: Então acho que...gosto de frequentar aqueles espaços ali...

Daniel: Espaço de muito significado assim ne?

Beatriz: Sim...e daí acho que...também...o que é bem significativo, que quando eu comecei a

fazer graffiti eu comecei a fazer ali na favela que é perto da minha casa...

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Daniel: Ah é?

Beatriz: Então a maioria dos graffitis que eu fiz na rua porque alguns era mais por conta do

trabalho e tal então fazia em espaços mais institucionais, mas quando eu...os primeiro que eu

fui pra rua e fui fazer, foram todos ali na favela, então assim...a maioria deles são todos ali nas

vielas e tal, na casa das pessoas que pediam mesmo pra eu fazer assim...

Daniel: E como é que você começou a fazer graffiti?

Beatriz: Por conta do trabalho lá na Fundação CASA ne, na verdade...quando eu comecei a

dar oficina lá, eram oficinas de audiovisual então assim, era radio, fotografia, vídeo e

animação em stopmotion, que eu fazia, muito devido a minha formação de ser em

comunicação social com ênfase em radio e TV, então quando eu comecei a dar oficinas lá,

eram essas assim, só que eu sempre gostei de desenhar e sempre desenhei...

Daniel: Desde pequena ou?

Beatriz: Desde criança...sempre desenhei...assim, e...a unidade ela queria muito uma oficina

de artes plásticas, e a coordenadora na época sabe que eu...é...tava querendo fazer algum curso

alguma coisa para me especializar um pouco mais, pra aprender técnicas porque assim sempre

fui autodidata, eu não sabe nem técnicas assim de utilizar o material por exemplo, então eu

queria fazer algum curso que me ensinasse técnicas, e daí a casa né, queria muito uma oficina

de artes plásticas e daí rolou uma conversa assim, uma experimentação mesmo, e acho que

uma aposta também, da coordenação comigo, no sentido de fazer uma tentativa

Daí super rolou assim, que foi muito maluco assim, porque eu nunca tinha feito

oficinas de artes plásticas, daí eu comecei a dar oficina lá, e daí quando eu comecei dar

oficina eu me debrucei sobre isso assim muito, então assim eu comecei a estudar muito a

treinar muito, mais foi muito mais na artes plásticas, depois de um tempo eu senti que tinha

esgotado um pouco, ai eu queria experimentar uma outra linguagem assim, então dai eu

comecei a tentar manusear o spray um pouco assim, pensando mais em técnica, daí eu

comecei a trabalhar com os adolescentes a questão do graffiti da arte urbana.

Mais daí por uma questão de envolvimento ne, eu fazia isso no final de semana,

dai eu não sei o que eu pensei muito na época de fazer lá na favela ne, mas eu lembro assim

que eu pensava muito no sentido assim que lá não tinha muito graffiti ne, e eu sempre gostei

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muito da estética da favela, então, não tem algo...por exemplo você vai paredes que vai está

com reboco, mais a maioria é tijolo, na madeira ne, então essa estética assim, destes diversos

suportes, pra arte, diferentes suportes assim, de muro inclusive, eu sempre achei interessante

assim.

Eu comecei a fazer lá, mais eu fazia com a participação do pessoal que mora

lá...então pro exemplo, eu falava...algumas coisas que eu achava que era legal de desenho eles

falavam então por exemplo, nas vielas lá que eu fiz, a pessoa que sediou o muro ela falava um

pouco do que ela queria também, daí a molecadinha colava e eles pintavam juntos assim ne,

então era meio que...todos os desenhos todos os graffitis foram meio que coletivo assim

também...

Daniel: Virava uma ação comunitária ali...

Beatriz: É...e as vezes..lá tem um córrego e tem uma ponte, e as vezes eu fazia um desenho

em madeira que tava lá no lixo eu fazia como se fosse um quadro e deixava lá na ponte pra

galera meio que passa ne, então como se fosse uma a uma intervenção mesmo ne, tipo tentava

faze alguma coisa pra...eu pensava em coisas alegres assim, as vezes alguma coisa que

causava uma reflexão e tal, mas assim, não era muito uma critica assim, um trabalho de critica

naquele espaço, eu gostava de fazer pessoas, retratar algumas pessoas que moravam ali, e daí

eu colocava lá na ponte e daí era legal assim...teve uma vez que eu fiquei escondida

fotografando as pessoas passando pela ponte pra ver como é que era...a reação delas assim...

Daniel: Nossa que da hora!

Beatriz: e...as vezes de grafitar espaços assim por exemplo, tinha uma catadora ne trabalha

com reciclagem daí eu grafitei o espaço que ela tem lá de guardar reciclagem ne, tipo escrevi

o nome dela, coisas assim...

Daniel: tipo o carrinho dela...ou não?

Beatriz: não não era o carrinho, era tipo um cercado que ela fez, um terreninho assim ne, e ai

tava todo cercado com telha assim, e daí eu grafitei ele com o nome dela e tal...

Daniel: Da hora! Mas lá da ponte como é que foi a reação das pessoas?

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Beatriz: A então, as primeiras meio que assustaram assim, meio que ficaram espantadas

assim, é...mas eles ficavam olhando bastante assim, tinham alguns que ficavam parados em

cima da ponte olhando...

Daniel: E como você se sentia quando...nessa de espectador vendo como os outros olhavam

sua intervenção...

Beatriz: É...pra mim era um pouco, de certa forma um pouco...existia um reconhecimento

deles assim, ne...tipo eles sabiam que era eu que fazia essas coisas...

Daniel: Ah os cara, o pessoal já sabia ali já...

Beatriz: Já sabia...então assim daí ele começa a ter um respeito maior assim...é...mais

assim...acho que eu gostava de ver que...eles ficavam feliz assim...que davam risada...porque

o pessoal, acho que na, especifico mais na favela , tem um modo de se relacionar muito

interessante das pessoas e tal...

Daniel: Como assim?

Beatriz: Tipo...são muito próximos assim, tem uma relação de muita proximidade, então se a

gente for pensar assim ne, varias famílias lá não conseguem vaga na creche, não consegue

vaga na creche, ai uma família cuida da criança do outro e do outro então tem outro modo de

se relacionar, e ...eu acho que eu esqueci o que eu ia falar...antes...deixa eu ver...esqueci

porque do alegre...

Daniel: Porque do alegre...da...da ponte você tava falando da ponte ne...do alegre...

Beatriz: Ah...não lembro...perdi...do que eu tava falando...

Daniel: Não não tem problema, é...mais como é que você acha que...pensando ai você ta

falando das suas intervenções artísticas, do processo do graffiti da sua formação ne, que

também tem haver com a vivencia das artes plásticas, como é que você acha que a arte

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também pensando a arte as suas experiências artísticas também, como é que você acha que ela

influencia influenciou na sua vida assim?

Beatriz: Acho que...primeiro a arte foi como uma forma de me comunica...com o mundo

assim, mais...acho que uma forma de me comunica, depois uma forma de manifesto mesmo,

é...e ela se deu de uma forma muito devido ao trabalho, que já tava acontecendo, porque eu

não era nunca fui muito uma pessoa que me considera artista e que fui para o meio da

educação, foi o inverso, eu era educadora e experimentei a arte como uma possibilidade.

E a partir disto, eu até pelo o que eu tava vivenciando no trabalho ne, é...eu

comecei a experimentar um pouco disto na minha vida, mais...é...eu acho que a arte, ela...ela

possibilita o encontro entre pessoas, o encontro de pensamentos e de olhares, mais é muito pra

mim isso, porque não me considero artista ou de ter um momento meu introspectivo ou de

ficar ali fazendo, não tenho muito isso, não vivencio muito ne?

Me move muito mais quando eu faço isso por exemplo com as crianças com os

adolescentes ou quando eu ia inclusive lá e tinha interação do pessoal dos moradores mesmo,

então era...mais acho que...ela...é muito amplo ne porque são muitos ganhos que você tem na

vida, acho que desde uma sensibilidade maior é...e a ampliação do olhar ne, eu acho que essa

alfabetização da imagem é muito interessante ne...porque por exemplo pegar essa questão da

favela, tinha uma senhora lá que ela...era benzedeira, ela não era alfabetizada mais assim tem

muito conhecimento ne, muito conhecimento muita sabedoria, e daí ela fazia a leitura das

imagens assim, tranquila e sugeria e a gente pensava junto e tal, mais não era alfabetizada não

sabia ler ne.

Inclusive naquela época ela só pegava ônibus no ponto do bairro porque ela sabia

que era aquele ônibus que ela sabia pra onde ele ia, se ela fosse na avenida ela já não saberia,

então acho que isso é muito interessante, é...todo mundo consegue olhar uma imagem e

interpretar de alguma forma ne, e não é todo mundo que consegue olhar para uma palavra e

ler essa palavra...então acho que arte eu vejo ela como algo mais acessível assim...

Daniel: Se acha que...você tava falando do, do aspecto da comunicação, da

manifestação e da educação na sua relação com a arte, mais assim, eu to vendo, você trás ela

pra dentro também...tem na parede aqui, no quadro aqui ne, foi você que pintou.

Beatriz: Sim.

Daniel: Tem alguma mobilização interna assim em algum determinado momento ai, ou não?

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Beatriz: Acho que sim, mais...isso eu acho que ela sempre existiu porque por exemplo eu

comecei a... a desenhar nas aulas na escola, e assim eu fazia muito assim ao invés de fazer a

lição que tava lá na lousa eu ficava desenhando né? Inclusive eu tenho estes desenhos

guardados ainda assim.

Daniel: Ah é? Da hora!

Beatriz: Tenho vários desenhos assim, tive uma tive uma professora muito boa assim que ela

contribuiu muito assim com com este processo, e daí nas aulas, e ela dava aula mesmo, não

era desenho livre né?

Ela dava umas aulas assim e ensinava técnica, então por exemplo ela ensinou a

gente a fazer a nossa tela, cada um fez a sua tela, e era com papelão, a gente recortava o

papelão e era pra gente levar algum pano que tinha em casa que era um pouco mais fino pra

encapar este papelão e fazer uma tela. Então ela foi, ela como se fosse ela plantou a semente,

e daí eu me envolvia muito assim e daí ela, como ela via que tinha um envolvimento grande

ela me passava mais coisas pra fazer , eu lembro que ela me mostrou o lápis 6b eu achei

revolucionário né? Achei muito louco né?

Daniel: Sim!

Beatriz: Não tinha acesso a isso, então quando ela me mostra, pede pra eu comprar o lápis e

tal, ela me ensinou né? A utilizar o lápis 6B, a mexer com argila fazer papel marche...

Daniel: Ela foi dando uma investida em você...

Beatriz: E daí, isso ela não passava em sala de aula ne, porque não tinha como, porque pelo

que eu entendi ela tinha um plano a seguir numa escola que era muito engessada, mas daí ela

ia foi fazendo um investimento, então acho que esta coisa assim interna sempre teve, e a

minha mãe assim os meus pais sempre me incentivavam muito! Então a minha mãe ela

adorava tudo que eu fazia ela gostava então assim ela pedia pra eu fazer um desenho e colocar

na parede, era um desenho X assim né ,mas rolava assim este incentivo e...desde me dar de

presente de natal dar uma caixa de lápis de cor com varias coisas e tal...então acho esta coisa

interna sempre teve ...

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Daniel: Você sempre foi estimulada também ne?

Beatriz: Sim

Daniel: Pelos seus pais, professora...

Beatriz: Sim

Daniel: Eles viam alguma coisa em você que...também...

Beatriz: É...e...

Daniel: Ou você pedia...quero de natal uma caixa de...

Beatriz: É acho que tinha as duas coisas assim, por exemplo teve uma vez quando eu era

criança minha tia me deu um kit assim, de...acho que eu tinha 5 ou 6 anos assim, isso minha

mãe conta por eu não...as vezes eu lembro de algumas coisas só...é...mas ela deu um caderno

de desenho e giz de cera, eu sempre gostei muito mais destas coisas, mas eu pedia também,

por exemplo presente de natal pedia tinta lápis de cor, tinha um pouco disso assim.

Tanto que minha mãe comprava uma caixa de lápis de cor daqueles de seis cores

para eu levar para a escola e o que eu ganhava de presente pra eu usar em casa, porque eu

ficava emprestando pros outros, pros outros alunos, pros meus amigos e daí acabava os lápis

de cor e tal, então tipo...ela era super cuidadosa assim...

Daniel: Parece que ela tinha uma sensibilidade legal ne?

Beatriz: Sim, e é muito loco assim, que ela estudou até a quarta série né então, ela...não tinha

essa coisa assim da escola, não vivenciou tanto isso, mas ela tinha uma sensibilidade ...

Daniel: E...você tava falando da...volta um pouco pra...você tava falando da Fundação

né...você trabalhou quanto tempo lá?

Beatriz: Dois anos...dois anos isso...

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Daniel: E como é que foi essa experiência assim?

Beatriz: Nossa foi intenso! Muito intenso...é...na verdade assim eu...é...tinha amigos que

trabalhavam lá, então a gente conversava muito sobre...eu trabalhava em outro lugar, naquele

momento não era nem como educadora.

E a gente conversava muito sobre...e todas as histórias que eles contavam mexia

muito comigo, que era até engraçado assim tipo de a gente tá na mesa do bar e eles me

contarem e eu super me emocionar assim...e daí a ...sempre falavam nossa você tem que ir pra

lá...você tem que ir pra lá...você tem que ir pra lá!

Mas naquele momento não tinha como eu sair de onde eu tava para ir pra

Fundação, por uma questão financeira mesmo, é...eu tava, eu precisava terminar de pagar

minha faculdade e tal, então assim eu tinha que fazer esta escola assim, eu pensava assim na

época...e daí em dado momento, ela me convidou para fazer um workshop, na Fundação e daí

eu fui...e foi muito maluco assim porque no meu primeiro dia lá...e daí eu ia fazer um

workshop de animação e stopmotion, mas com técnica de desenho e colagem...é...e daí o dia

que eu fui um adolescente foi espancado por um agente...

Daniel: No mesmo dia que você foi?

Beatriz: Ele tinha sido um dia anterior, e aí devido a isso, a Fundação não queria nem que eu

desse mais a oficina, e daí quando eu cheguei e fiquei sabendo disso, que ele tinha sido

espancado por um agente, que ele entrou em coma, ele chegou a perder massa encefálica e

entrou em coma, e isso me mobilizou muito assim né, e daí quando eu tava lá na sala do

pedagógico e os profissionais falando um pouco sobre isso, bem assim entre quatro paredes

porque não se podia comentar muito, naquele momento eu falei eu quero estar aqui!

No dia eu entrei dei oficina, foi super tenso assim, muito conflitoso pra mim,

porque eu tinha imagens dos adolescentes, com braço quebrado, com as costas machucada,

então eu tinha essas imagens dos meninos, então eu tinha provas do que tinha acontecido,

porque um entrou em coma mas vários apanharam, e eu tava com equipamento, foto de vídeo,

então eu tinha essas imagens, e ai até por eu ter estudado ter feito radio TV, a primeira coisa

que eu pensei é eu preciso mandar essas imagens pra mídia, pra denunciar isso, mas ai ao

mesmo tempo eu pensei, mas se eu mandar eu nunca mais vou pisar aqui, então foi muito

conflituoso este inicio, este primeiro dia, e daí eu fiz a escolha de não mandar nada para a

mídia, para poder retornar mesmo que não foi naquele momento né, daí eu continuei um

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tempo lá onde eu tava trabalhando mas daí eu não conseguia mais ver sentido pra aquilo que

eu tava fazendo...

Daniel: Já tinha mudado a chave já...

Beatriz: Daí teve um dado momento assim que eu pensava assim ah não eu vou me organizar

financeiramente né vo esperar terminar de pagar a faculdade e tal, mas ai teve um dia mano

não vejo sentido nisso, que que eu to fazendo da minha vida aqui, a vida é tão curta e eu to

aqui fazendo nada, daí eu pedi para eles me mandarem embora, daí como tinha uma boa

relação lá e tal, daí eu consegui, eu fui mandada embora em novembro, em dezembro eu já

tava fazendo os workshops na Fundação.

Fiz workshops de dezembro até janeiro, janeiro, fevereiro e março, eu comecei a

trabalhar, mas foi meio que um...arrisquei assim, porque na hora não foi consciente ne, tipo eu

pedi pra eles me mandarem embora, me mandaram, daí eu liguei né? Pra minha amiga que era

coordenadora na época e falei olha pedi as contas e quando tiver vaga ai você me dá um

toque, então foi um pouco disso assim, daí quando eu tava com os moleques era...era muito

loco assim, porque...eles se envolviam de verdade, e daí eu acho que o arte educador lá dentro

tem uma responsa muito grande, de levar a liberdade pros moleques que tá preso...

Daniel: Como assim levar a liberdade?

Beatriz: Porque a Fundação é uma FEBEM ne? É privação de liberdade...é o mesmo sistema

só muda algumas coisas ne, e daí o momento da oficina era o momento que eles fugiam

daquilo que eles estavam vivendo ali dentro, então é...quando a arte vem de fato pra mim, é

devido a isso, é a possibilidade de ela te levar para outro lugar, pra outro espaço, possibilitar

você sentir outras coisas, e...pra mim primeiro foi isso, depois ela veio como meio de

comunicar e de expressão, as isso foi depois, primeiro era pra fazer os meninos saírem

daquilo...e...

Daniel: Você acha que eles saiam?

Beatriz: Ah saiam! Acho que era quase uma meditação...não todos ne? Mas acho que ela

possibilitava isso sim...e não pegando na minha figura, acho que qualquer arte educador que

tá lá, que desenvolve o trabalho possibilita isso com os adolescentes, e daí ver vários

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processos assim várias histórias, é...de por exemplo, os adolescentes eles estavam sendo

torturados lá, os adolescentes que mais causavam lá tinham que usar o tênis com dois

números menores...

Daniel: Nossa!

Beatriz: Tinha que usa! E daí ...a gente fotografo...fez varias fotos dos pés e do tênis,

escreveu poesia sobre isso, então assim algo que, é claro que é muito simbólico ne, é mais no

campo simbólico e filosófico, mas era um suspiro ali para a dor deles ne, a dor que era física,

a arte vinha como um suspiro de tudo que eles tavam sentindo ne, outra situação também de

um menino que ele, ele não era alfabetizado assim, e ele não aderia a escola, e dai com as

oficinas de animação ele vem e pede pra fazer o roteiro, e daí a gente pensa como ele vai fazer

o roteiro se ele não sabe escrever?

E daí a gente começa a investir muito assim, e daí a gente faz uma parceria

mesmo, com vários profissionais que estavam bem engajados nisso ne, e o menino passa a ser

alfabetizado por conta da oficina ne, por conta do roteiro, e ai quando ele sai da Fundação ele

ta escrevendo assim, e tem muitas historias essas são só tipo algumas que vem na cabeça né.

Daniel: Tem alguma historia que te marcou assim? Sem ser essas que você já contou, uma

que você fala, essa...pode ser tanto positivamente como negativamente entendeu? Quando

você pensa no período da Fundação vem assim...ou um adolescente...

Beatriz: É...tem muitas assim ne...é...tem uma assim que...eu acho que foi um processo muito

rico, foi quando a gente tava fazendo rádio...e daí uma das ideias era contar a história dos

meninos assim ne, e a gente fez muita gravação das historias da vida deles então, e eu dava

bastante oficina ne, então foram muitas historias que eu gravei assim, e daí não tem nenhum

ponto marcante assim mas é de ver, ouvir mesmo as histórias deles assim por eles, acho que

foi um processo muito rico, eu...acho que essa foi uma delas, essa do...do outro que

alfabetizado em um período muito curto é uma outra assim que eu sempre levo assim.

Ele não participava de nenhuma oficina assim e era muito devido ao movimento

da casa, não era das outras oficinas assim, como ele causava muito, ele...foi diagnosticado

com bipolaridade, então tinha algumas dificuldades lá na casa, então os profissionais não

queriam levar ele para a oficina porque ele dava muito problema assim, e daí eu sempre via

que esse menino estava sempre sozinho assim, e daí eu pedi pra eles colocarem ele na minha

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oficina assim, e dai eu lembro deles falarem assim, mas tem certeza mesmo senhora que ce

vai quere, porque é problemático esse menino é problemático.

E dai foi super difícil assim, ele surtou algumas vezes ne, quebrou cadeira jogou

cadeira, mesa, quebrou um rádio, mas foi um puta processo assim lento com ele, e ele não

aderia a nada, assim a nada, nada e foi um pouco nesse processo de inicio do radio assim, e

daí teve um dia que eu falei assim pra ele, já não sabia muito o que oferecer para ele como

possibilidade ne, e daí eu pensei que a única coisa que eu não tinha oferecido pra ele era a

questão da música né, eu perguntei pra ele, você já pensou em compor em fazer uma musica

tal, aí ele fala assim, a eu nunca pensei mais eu gosto de escrever, daí a gente começa a

trabalhar com isso assim, daí foi um pouco difícil porque eu tinha uma turma que queria 14

querendo fazer outra coisa e ele...mais daí eu tentei fazer este processo com ele, e ele gostava

bastante de ler assim, então eu levei bastante pra ele lê, e...daí depois de um tempo ele começa

a compor muito assim, muito e ele sai de lá me procura né, ai...eu começo a indicar alguns

lugares pra ele ir, sarau né, outros espaços, até convida ele pra apresenta, e ele começa a

canta, e ele vai em sarau recita, e hoje ele tá super envolvido assim, super envolvido, tá

compondo pra caramba, ta tentando grava um cd...

Daniel: Você tem contato com ele?

Beatriz: Tenho contato com ele...

Daniel: Que legal!

Beatriz: Ele inclusive tá, mês que vem vai se mudar pra São Paulo, pra poder tenta fazer esse

role da musica mesmo.

Daniel: Nossa que massa!

Beatriz: E é um menino que super politizado, que hoje ele faz música... é...recentemente ele

fez uma musica sobre ocupação das escolas ...então assim super politizado assim, super

envolvido.

Daniel: Então cê tem uma dimensão que a arte influencia na vida destes adolescentes que

estão na Fundação?

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Beatriz: Sim, eu acho que sim, é...pra uns mais e pra outros menos, só que eu acho que pra

maioria o primeiro contato que eles tem com a arte é lá dentro, não tem acesso a isso fora, e

isso é, acho que...um dos grandes pontos que a gente tem que refletir ne? Pro adolescente pra

ele ter educação, ter arte cultura e ter profissionalizante ele tem que tá dentro da Fundação né?

Além dessa questão de um teto e de comida ne, então pra ele ter um teto muitos

tem que tá lá pra ter comida também tem que ta lá ne, então a arte é até neste ponto, nesta

questão é um ponto pequeno ne, porque tem até outras coisas que as vezes vem até antes

disso, quanto alguns direitos básicos mesmo, então a maioria vai ter acesso a arte lá dentro ne,

e pra eles não é muito escolha, todo mundo tem que ...precisa estar inserido e tal, mas acho

que a partir do momento que você consegue se aproxima dos adolescentes, acho que muito

devida a relação que se tem do arte educador com o educando lá dentro, possibilita um, uma

vivencia com a arte, não seja tão engessada assim, não tenha essa coisa do certo e do errado,

algo mais leve e mais tranquilo assim.

Daniel: Bacana, acho que é isso,

Beatriz: É isso?

Daniel: Da hora! Obrigado!!

Beatriz: Calor!!

Daniel: Tá com calor??

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Textualização - Colaboradora Beatriz

Minhas escolhas, minhas potências.

Sou educadora social, gosto de sempre me afirmar enquanto educadora, o que

acaba se tornando quase um sinônimo do ser, quando se reconhece como tal. Me formei

quanto educadora nos movimentos sociais, comunidade eclesial de base, apesar de ter ido a

academia também, mas considero que minha formação tenha vindo muito mais fora da

academia do que dentro. Hoje eu trabalho dentro da assistência social, no PAEFI71

numa

ONG

Recentemente me mudei para Hortolândia, tenho uma companheira que é

assistente social, a gente se casou, faz pouco tempo também e passo por um processo bem

interessante quanto a se bancar72

na sociedade, para a família, quanto homossexual, no caso

mulher lésbica, tenho experimentado vivenciar isso de fato né, e devo muito a isso também a

esta questão de ser educadora, porque acho que pra eu conseguir dialogar sobre isso com o

público que eu trabalho, eu preciso ser coerente na vida e então eu procuro vivenciar isso de

fato, fazer todo o processo com minha família com amigos e com a sociedade, e diante de

todo contexto politico que a gente tem, que a gente está vivenciado, tento me organizar de

alguma forma dentro da militância.

Esse processo esta mais tranquilo agora, eu acho que é difícil, o processo familiar,

acho que ele é o mais difícil, quer dizer talvez dependendo, depende de cada um. Mas talvez

pra algumas pessoas devido à questão religiosa e moral, talvez seja difícil a própria aceitação.

Pra mim em específico, foi muito mais familiar por ser de uma família

conservadora, então foi bem difícil, mas agora, se bancar na sociedade apesar de ser difícil

acho que pra mim não tem sido tão complicado, porque pra mim é como se fosse um processo

natural, eu sou assim, então logo quero me relacionar com pessoas, e que essas pessoas

saibam de fato como eu sou, e de tentar contribuir de alguma forma com as outras pessoas,

porque eu acho que se também, estamos vivendo este momento não só politico de como as

pessoas lidam com isso, temos responsabilidade também.

71

Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos. O PAEFI é um serviço de

orientação e acompanhamento de famílias que possuem um ou mais indivíduos em situação de vulnerabilidade,

como ameaça ou violação de direitos. 72

Se manter firme em sua decisão

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186

O público LGBT73

também tem responsabilidade nisso, não no sentido de

responsabilizar, porque você já está à margem da margem da margem, mas se todos

minimamente se bancar na sociedade de fato, nas coisas mais simples como andar de mão

dada na rua, se isso aparecer pras pessoas, talvez elas vão conseguir naturalizar um pouco

mais, que não seja tão difícil assim este processo de se relacionar com as pessoas e tal.

E além dessa luta, tem outras também, até um dado momento, quando eu comecei

a trabalhar, meu primeiro trabalho como educadora mesmo, foi como educadora social de rua,

com criança e adolescente em situação de rua. Neste período, a minha luta era muito no

campo da infância, da adolescência, então assim eu tava muito envolvida com isso. Ao

decorrer, vai mudando, uma coisa vai ficando um pouco mais latente. Agora falando eu me

lembrei que antes disto, eu me engajei bastante com o MST74

, mas aqui, no caso eu morava

em Campinas, foi quando eu me envolvi bastante com os movimentos sociais, em específico

eu me envolvi bastante com o MTST75

que estava dentro do MST.

É o movimento dos trabalhadores sem teto, mas o MST é mas pra uma linha rural,

e o MTST mais urbano. Então acho que, eu tive um pouco desta luta assim, depois foi na

questão da infância e tal, situação de rua, isso ia mudando com cada trabalho que eu tinha eu

entrava um pouco mais nessa luta.

Cada trabalho que eu tinha, dependendo do contexto, me suscitava uma luta

social, isso foi mudando, teve do MST, depois teve uma linha de criança e adolescência em

situação de rua, da saúde mental, então assim estas coisas iam mudando, então sempre tinha

uma coisa latente mas as outras permaneciam, por uma demanda da vida da gente trabalhar e

estudar, ter a militância, eu escolhia uma coisa só, uma linha para estar, estão isso ia

mudando, e depois que eu fui trabalhar na Fundação CASA, isso ficou latente também, eu

acho que isso ainda permanece muito forte, por exemplo a questão da redução da maioridade

penal, então eu não trabalho mais na Fundação CASA, não dou mais as oficinas de arte e

cultura, mas isso ainda permanece comigo, muito, mesmo depois de ter entrado no PAEFI.

73

LGBT (ou LGBTTT) é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, que

consistem em diferentes tipos de orientações sexuais. A sigla LGBT também é utilizada como nome de um

movimento que luta pelos direitos dos homossexuais e, principalmente, contra a homofobia. 74

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mais conhecido como Movimento dos Sem Terra, sigla

MST, é um movimento de massa que luta, basicamente, por terra, pela reforma agrária e por mudanças na

sociedade. 75

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é um movimento de caráter social, político e popular

organizado em 1997 pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para atuar nas grandes cidades

com o objetivo de lutar pela reforma urbana, por "um modelo de cidade mais justa e pelo direito à moradia".

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Eu acho que uma das linhas assim que mais me suscitou, foi à questão da

violência de gênero, acho que inclusive antes disto talvez eu nem me considerasse feminista,

ou não me afirmava enquanto feminista, apesar de eu acreditar que eu já era.

Eu acho que hoje a questão da violência de gênero é algo que me mobiliza, e eu

tenho tentado estar em alguns espaços de formação e de discussão desta questão, tenho

procurado estar também em algumas discussões enquanto política pública, o que tem sido

pensado e lutado quanto política pública aqui no município, e a questão do LGBT, mas eu não

estou organizada, não tenho um coletivo que eu faço parte, e eu acho que eu tenho muitos

amigos que estão organizados e isso contribui um pouco, mas eu tenho tentado participar de

coisas que tem acontecido aqui no município, não organizada, não no coletivo e tudo mais.

Essa força para as questões sociais não vem de alguém da minha família ou

alguém que eu me identifiquei, eu acho que elas vieram por conta dos meus pais, eles sempre

foram envolvidos com questões sociais, devido a questão da religiosidade, mas específico da

minha mãe que ela é católica, então isso veio muito das comunidades eclesiais de base, mas

minha mãe não tem este entendimento, o olhar dela e o do meu pai é numa linha mais de

caridade, eles tem um olhar de fazer o bem, sempre pregam isso, que temos que fazer o bem

para as pessoas, que a gente, tem que buscar uma forma das pessoas viverem melhor, porque

o mundo é injusto, então sempre teve este olhar.

Infância em comunhão: formações.

Lembro-me de quando eu era criança recebia em casa, folia de reis, questões mais

comunitárias, todo mundo preparava o café, almoço pra todo mundo, então tem isso que eu

acho que é um pouco marcante, meus pais sempre participaram dos vicentinos, que eu

vivenciei muito desde criança, várias famílias que precisavam de alguma coisa, eles iam em

casa pedir porque meu pai ou minha mãe fazia parte, então eu lembro de uma época que meu

pai era tesoureiro, então ele tomava conta do dinheiro, eles iam em casa pra comprar remédio,

fralda, então varias vezes eu que fazia meio que esse role, assim tipo meu pai só falava vai

comprar tal coisa, vai faz isso, e eu ia, tinha muito contato com as pessoas.

Nesta época eu era mais adolescente assim, acho que eu tinha uns treze anos, foi

bem marcante, e daí as pastorais vão se dialogando, as pastorais dos vicentinos, mas vão

dialogar com a pastoral da criança, que eu tive bastante envolvimento, e meus pais sempre

colocavam que eu tinha que fazer algo, eles não aceitavam que eu não fizesse nada, eu tinha

que escolher alguma coisa, então eles falavam assim pra mim você tem que escolher algum

lugar para fazer algo.

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Era bastante pressão. Como eu era filha única, na verdade acho que tem uma

pressão para quem é filho único, de ser o melhor na escola o melhor em tudo, e eles tinham

acho uma expectativa comigo em relação a isso também. E na época eu falei pra eles que eu

escolhi a pastoral carcerária. Eles faziam visitas pros presidiários na cadeia.

E foi algo que eu escolhi mesmo. Mas eu tinha quinze anos, mas dai meu pai não

deixou, ele falou: “vai ter que escolher outra pastoral!”.

Eu achava assim na época eu comecei a pesquisar algumas coisas, e eu via a

dificuldade das mulheres, que estavam privadas de liberdade, sobre a questão dos bebes, e

isso me gritou, achei que ia ser uma coisa que eu ia gostar de ir, de estar lá, porque não tinha

muito esta coisa de eu vou ajudar, eu pensava no que o que eu iria aprender com isso, o que

que vai me trazer aprendizado.

E teve outro ponto também, que meus pais tinham um grupo de amigos que eles

faziam comida pra levar pros moradores de rua, então todo fim de semana eles se organizam e

faziam comida, e quando eles faziam isso era sempre na minha casa, então era muito cedo, 5h

da manhã eles tavam fazendo comida.

Eu era obrigada a ajudar! Tinha que escolher alguma coisa, eles sempre falavam o

que eu queria fazer. Eu era mais nova, acho que eu tinha nove anos mais ou menos, foi

quando isso acho que começou. Não ajudava a cozinhar, então eu ia junto com meu pai, a

minha mãe ajudava a cozinhar e tal e meu pai ia entregar e daí eu ia junto com meu pai, junto

entregar e tal e a gente ficava lá conversava com os moradores de rua e tal.

Eu lembro de nos primeiros momentos eu ter ficado muito triste, porque eu

achava que não era certo, porque que a gente tem esta casa e eles não tem? Porque que eu

tenho e eles não tem? Eu até chegava a falar pros meus pais que eu queria dividir minhas

coisas mesmo, de pegar todas as minhas roupas e pedir pro meu pai levar pra rua, acho que eu

fiquei meio pirada.

E apesar do que eu tinha não era muito também, mas existia este desconforto

assim, e dai em vários momentos assim, por exemplo, o natal que tinha, que geralmente tem

muita coisa de comer, eu não conseguia ficar muito, tipo eu não queria vivenciar isso com

minha família ne, eu sempre escolhi estar com os moradores de rua, então por exemplo a ceia

eu não fazia com minha família, eu fazia lá na rua, com os moradores.

Meus pais não iam junto; mas para eles, tudo bem, eles tinham algumas

preocupações e tal, eles se preocupavam assim tipo é de madrugada, meia noite, é muito tarde

então eles iam me buscar, coisa assim de horários e tal, mas não por conta de ser os

moradores de rua.

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189

Depois de um tempo eu fui trabalhar com situação de rua então pra mim faz muito

sentido. Eu até brinco com eles que eles sempre falavam: “poxa você estudou e tal, ralou pra

caramba pra conseguir pagar a faculdade e tudo mais e agora você ta ai e ganha pouco pra

caramba que não sei o que”. Eles que criaram isso em mim. Eu falo assim pra eles que eu não

tenho culpa, vocês que são os responsáveis. Então acho que isso assim eu tenho muita clareza

que vem deles, e eu acho que eles tem um senso bem comunitário, de algo bem igual, a minha

casa sempre foi aberta para pessoas que estavam precisando de alguma coisa assim, então eu

fui criada assim neste meio, isso foi o que possibilitou mais.

Acho que por mais que eu tenha uma visão diferente deles, que eu procure ter um

olhar não assistencialista e olhar pra estas questões como uma luta de classes e eles não, mas

eu acho que a essência é a mesma, a fundamentação pro que me move a ter esta questão da

militância e tudo mais é uma a deles é outra, mas a essência acaba sendo a mesma assim.

Meu pai nasceu em Campinas e morou sempre aqui, e minha mãe não, minha mãe

é de Piracicaba e ela veio pra cá por conta do meu pai, quando se casaram. A gente morou ali

no Campos Elísios até eu ter três anos e depois a gente morou ali no Jardim Márcia, até os

meus trinta anos.

Lá é minha quebrada! Quero voltar pra lá! Meus pai ainda moram lá.

Hoje lá não tá tão bacana como era antes, na minha infância, porque naquela

época tinha um senso muito comunitário lá no bairro, tinha essa questão forte da folia de reis,

tinha as festas que a gente fazia, sempre fechava a rua, sempre muito comunitário tinha um

monte de festas que se criavam e sempre tudo muito comunitário. Não tinha tanta violência,

era muito tranquilo as brincadeiras, tinha muita criança e adolescente na mesma faixa etária, e

a gente brincava muito na rua e os pais brincavam junto, de pique bandeira, esconde-esconde,

bétis, e os pais brincavam junto com a gente, então era bem bacana.

Mas hoje tem muita violência, o tráfico bem mais intenso, e uma das coisas assim

que hoje é o maior dificultador, é que várias famílias que moravam em área de risco foram pra

lá, foram construídos alguns apartamentos lá, e essas famílias foram pra lá, e também tem

uma ocupação perto destes prédios, e não tem nenhum tipo de serviço que faz algum

acompanhamento, nada, começou a aumentar muito o tráfico e roubo lá, porque antes o que

tinha é que se vai ter roubo não vamos roubar o próprio bairro, não tinha isso, e quando surge

a ocupação e o apartamento lá que é da COHAB, que era pras famílias de área de risco,

aumenta muito a questão do roubo, de coisas pequenas assim como por exemplo pular dentro

da casa das pessoas e roubar roupa do varal, tênis coisas do tipo, a fio do poste...

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Até essa questão de entrar na casa, de ameaças, então assim isso foi um

dificultador assim que hoje por conta de tudo isso as pessoas tem se relacionado de uma outra

forma.

A galera hoje não fica mais na rua, não fica até tarde, antes era muito comum todo

mundo ficar sentado na calçada, conversando mesmo os vizinhos, perto da casa dos meus pais

tem uma quadra e um campinho de futebol, o pessoal ficava jogando bola até a noite e hoje já

não fica mais também, muitas pessoas sendo assaltadas a noite na hora que chegam, a própria

galera da comunidade, então tá mais tenso assim, mais ao mesmo tempo, mesmo com tudo

isso eu ainda continuo com mesma relação de afeto com o espaço, porque me reconheço lá,

então isso não diminui minha vontade de morar lá, pelo contrário, moro em outro lugar mais

queria morar ali naquela região.

Hoje meus amigos não moram mais lá, mais eu gosto de frequentar os lugares, por

perto, então por exemplo, eu gosto de ir no cachorro quente de lá, ir nos butequinho ali por

perto, ai estes são os que tão a mili anos...Então gosto de frequentar aqueles espaços ali...

Mais que uma professora.

Eu comecei a desenhar nas aulas na escola, e eu fazia muito assim ao invés de

fazer a lição que tava lá na lousa eu ficava desenhando, inclusive eu tenho estes desenhos

guardados ainda. Tenho vários desenhos; tive uma professora muito boa, assim que ela

contribuiu muito assim com este processo, e daí nas aulas, ela dava aula mesmo, não era

desenho livre, ela dava umas aulas assim e ensinava técnica, então, por exemplo, ela ensinou a

gente a fazer a nossa tela, cada um fez a sua tela, e era com papelão, a gente recortava o

papelão e era pra gente levar algum pano que tinha em casa que era um pouco mais fino pra

encapar este papelão e fazer uma tela.

Então ela plantou a semente, e daí eu me envolvia muito assim, como ela via que

tinha um envolvimento grande ela me passava mais coisas pra fazer, eu lembro que ela me

mostrou o lápis 6b eu achei revolucionário, achei muito louco. Não tinha acesso a isso, então

quando ela me mostra, pede pra eu comprar o lápis e tal, ela me ensinou a utilizar o lápis 6B,

a mexer com argila fazer papel marche.

E daí, isso ela não passava em sala de aula ne, porque não tinha como, porque

pelo que eu entendi ela tinha um plano a seguir numa escola que era muito engessada, ela foi

fazendo um investimento, então acho que esta coisa assim interna sempre teve, e a minha mãe

assim os meus pais sempre me incentivavam muito! Minha mãe adorava tudo que eu fazia, ela

pedia pra eu fazer um desenho e colocar na parede, era um desenho “X”, mas rolava assim

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este incentivo e desde me dar de presente de natal dar uma caixa de lápis de cor com varias

coisas e tal, então acho que esta coisa interna sempre teve e também sempre fui estimulada.

Teve uma vez quando eu era criança minha tia me deu um kit, acho que eu tinha 5

ou 6 anos, isso minha mãe conta por eu não, as vezes eu lembro de algumas coisas só, mas ela

deu um caderno de desenho e giz de cera, eu sempre gostei muito mais destas coisas, mas eu

pedia também, por exemplo presente de natal pedia tinta lápis de cor, tinha um pouco disso

assim. Tanto que minha mãe comprava uma caixa de lápis de cor daqueles de seis cores para

eu levar para a escola e o que eu ganhava de presente pra eu usar em casa, porque eu ficava

emprestando pros outros, pros outros alunos, pros meus amigos e daí acabava os lápis de cor e

tal, então ela era super cuidadosa e é muito loco assim, que ela estudou até a quarta série né

então, ela não tinha essa coisa assim da escola, não vivenciou tanto isso, mas ela tinha uma

sensibilidade.

O encontro com o Graffiti.

Comecei a fazer grafitti por conta do trabalho lá na Fundação CASA. Quando eu

comecei a dar oficina lá, eram oficinas de audiovisual, era rádio, fotografia, vídeo e animação

em stopmotion76

, que eu fazia, muito devido a minha formação em comunicação social com

ênfase em rádio e TV, então quando eu comecei a dar oficinas lá, eram essas, só que eu

sempre gostei de desenhar e sempre desenhei, desde criança e a unidade ela queria muito uma

oficina de artes plásticas, e a coordenadora na época sabe que eu queria fazer algum curso

alguma coisa para me especializar um pouco mais, pra aprender técnicas, porque sempre fui

autodidata, eu não sabia nem técnicas assim de utilizar o material por exemplo, então eu

queria fazer algum curso que me ensinasse técnicas.

A Fundação CASA queria muito uma oficina de artes plásticas e daí rolou uma

conversa assim, uma experimentação mesmo, e acho que uma aposta também, da coordenação

comigo, no sentido de fazer uma tentativa, e daí super rolou, foi muito maluco assim, porque

eu nunca tinha feito oficinas de artes plásticas, daí eu comecei a dar oficina lá, e daí quando

eu comecei dar oficina eu me debrucei sobre isso assim muito, então eu comecei a estudar

muito a treinar muito, mais foi muito mais na artes plásticas.

Depois de um tempo eu senti que tinha esgotado um pouco, ai eu queria

experimentar uma outra linguagem, então dai eu comecei a tentar manusear o spray um

76

Stop Motion é uma técnica de animação muito usada, com recursos de uma máquina fotográfica, ou de um

computador. Os modelos são movimentados e fotografados quadro a quadro. Esses quadros são posteriormente

montados, fazendo assim, uma animação ou filme.

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pouco, pensando mais em técnica, comecei a trabalhar com os adolescentes a questão do

graffiti da arte urbana, mais daí por uma questão de envolvimento, eu fazia isso no final de

semana.

Quando eu comecei a fazer graffiti (fora da Fundação), eu comecei a fazer ali na

favela que é perto da minha casa. Aquele espaço tem muito significado Os primeiros que eu

fui pra rua e fui fazer, foram todos ali na favela, a maioria deles são todos ali nas vielas e tal,

na casa das pessoas que pediam mesmo pra eu fazer.

Eu não sei o que eu pensei muito na época de fazer lá na favela, mas eu lembro

assim que eu pensava muito no sentido assim que lá não tinha muito graffiti, e eu sempre

gostei muito da estética da favela, então, por exemplo, você vê paredes que vai tá com reboco,

mais a maioria é tijolo, na madeira né, então essa estética assim, destes diversos suportes, pra

arte, diferentes suportes, de muro inclusive, eu sempre achei interessante . Eu comecei a fazer

lá, mais eu fazia com a participação do pessoal que mora lá, eu falava algumas coisas que eu

achava que era legal de desenho, nas vielas lá que eu fiz, a pessoa que cedeu o muro, ela

falava um pouco do que ela queria também, daí a molecadinha colava e eles pintavam juntos,

então era meio que todos os desenhos, todos os graffitis foram meio que coletivo assim

também.

Virava uma ação comunitária ali. Lá tem um córrego e tem uma ponte, e às vezes

eu fazia um desenho em madeira que tava lá no lixo eu fazia como se fosse um quadro e

deixava lá na ponte pra galera meio que passa ne, então como se fosse uma intervenção

mesmo, tipo tentava faze alguma coisa pra alegrar assim, as vezes alguma coisa que causava

uma reflexão e tal, mas assim, não era muito uma critica, um trabalho de critica naquele

espaço, eu gostava de fazer pessoas, retratar algumas pessoas que moravam ali, e daí eu

colocava lá na ponte e daí era legal.

Teve uma vez que eu fiquei escondida fotografando as pessoas passando pela

ponte pra ver como é que era a reação delas, e às vezes de grafitar espaços assim, por

exemplo: tinha uma catadora que trabalha com reciclagem daí eu grafitei o espaço que ela tem

lá de guardar reciclagem ne, tipo escrevi o nome dela, coisas assim, era tipo um cercado que

ela fez, um terreninho assim ne, e ai tava todo cercado com telha assim, e daí eu grafitei ele

com o nome dela e tal.

Em relação à reação das pessoas, as primeiras meio que assustaram assim, meio

que ficaram espantadas, mas eles ficavam olhando bastante, tinham alguns que ficavam

parados em cima da ponte olhando, existia um reconhecimento deles, eles sabiam que era eu

que fazia essas coisas.

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O pessoal já sabia então, começa a ter um respeito maior. Acho que eu gostava de

ver que eles ficavam felizes, que davam risada, porque o pessoal, acho que, especifico mais na

favela , tem um modo de se relacionar muito interessante das pessoas e tal, são muito

próximos assim, tem uma relação de muita proximidade, então se a gente for pensar assim ne,

várias famílias lá não consegue vaga na creche, ai uma família cuida da criança do outro e do

outro então tem outro modo de se relacionar.

Pensando a arte nas minhas experiências artísticas também, como isso influencia

influenciou minha vida acho que primeiro a arte foi como uma forma de me comunica com o

mundo assim, mais acho que uma forma de me comunicar, depois uma forma de manifesto

mesmo, e ela se deu de uma forma muito devido ao trabalho, que já tava acontecendo, porque

eu não era, nunca fui muito uma pessoa que me considera artista e que fui para o meio da

educação, foi o inverso, eu era educadora e experimentei a arte como uma possibilidade.

E a partir disto, eu até pelo o que eu tava vivenciando no trabalho ne, eu comecei

a experimentar um pouco disto na minha vida, mais eu acho que a arte, ela possibilita o

encontro entre pessoas, o encontro de pensamentos e de olhares, mais é muito pra mim isso,

porque não me considero artista ou de ter um momento meu introspectivo ou de ficar ali

fazendo, não tenho muito isso, não vivencio muito. Me move muito mais quando eu faço isso

por exemplo com as crianças com os adolescentes ou quando eu ia inclusive lá e tinha

interação do pessoal dos moradores mesmo, é muito amplo, porque são muitos ganhos que

você tem na vida, acho que desde uma sensibilidade maior e a ampliação do olhar, eu acho

que essa alfabetização da imagem é muito interessante.

Por exemplo, pegar essa questão da favela, tinha uma senhora lá que ela era

benzedeira, ela não era alfabetizada mais assim tem muito conhecimento, muito conhecimento

muita sabedoria, e daí ela fazia a leitura das imagens assim, tranquila e sugeria e a gente

pensava junto e tal, mais não era alfabetizada não sabia ler ne , inclusive naquela época, ela só

pegava ônibus no ponto do bairro porque ela sabia que era aquele ônibus que ela sabia pra

onde ele ia, se ela fosse na avenida ela já não saberia, então acho que isso é muito

interessante, todo mundo consegue olhar uma imagem e interpretar de alguma forma ne, e não

é todo mundo que consegue olhar para uma palavra e ler essa palavra, então acho que arte eu

vejo ela como algo mais acessível assim.

Vivências intensas na Fundação CASA

Voltando um pouco pra Fundação, trabalhei lá dois anos, e foi intenso! Muito

intenso, na verdade eu tinha amigos que trabalhavam lá, então a gente conversava muito sobre

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isso. Eu trabalhava em outro lugar, naquele momento não era nem como educadora. E a gente

conversava muito sobre todas as histórias que eles contavam mexia muito comigo, que era até

engraçado assim tipo de a gente tá na mesa do bar e eles me contarem e eu super me

emocionar, sempre falavam: nossa você tem que ir pra lá, você tem que ir pra lá, você tem que

ir pra lá!

Mas naquele momento não tinha como eu sair de onde eu tava para ir pra

Fundação, por uma questão financeira mesmo, eu precisava terminar de pagar minha

faculdade e tal, então eu tinha que fazer esta escolha, eu pensava assim na época, e daí em

dado momento, ela me convidou para fazer um workshop, na Fundação e daí eu fui, e foi

muito maluco assim porque no meu primeiro dia lá, e daí eu ia fazer um workshop de

animação e stopmotion, mas com técnica de desenho e colagem e daí o dia que eu fui um

adolescente foi espancado por um agente.

Ele tinha sido espancado no dia anterior, e aí devido a isso, a Fundação não

queria nem que eu desse mais a oficina, e daí quando eu cheguei e fiquei sabendo disso, que

ele tinha sido espancado por um agente, que ele entrou em coma, ele chegou a perder massa

encefálica e entrou em coma, e isso me mobilizou muito assim né, e daí quando eu tava lá na

sala do pedagógico e os profissionais falando um pouco sobre isso, bem assim entre quatro

paredes porque não se podia comentar muito, naquele momento eu falei eu quero estar aqui!

No dia eu entrei dei oficina, foi super tenso assim, muito conflitoso pra mim,

porque eu tinha imagens dos adolescentes, com braço quebrado, com as costas machucada,

então eu tinha essas imagens dos meninos, então eu tinha provas do que tinha acontecido,

porque um entrou em coma, mas vários apanharam, e eu tava com equipamento, foto de

vídeo, então eu tinha essas imagens, e ai até por eu ter estudado ter feito rádio TV, a primeira

coisa que eu pensei é eu preciso mandar essas imagens pra mídia, pra denunciar isso, mas ai

ao mesmo tempo eu pensei, mas se eu mandar eu nunca mais vou pisar aqui, então foi muito

conflituoso este inicio, este primeiro dia.

E daí eu fiz a escolha de não mandar nada para a mídia, para poder retornar

mesmo que não foi naquele momento né, daí eu continuei um tempo lá onde eu tava

trabalhando, mas eu não conseguia mais ver sentido pra aquilo que eu tava fazendo.

Teve um dado momento que eu pensava assim: ah não, eu vou me organizar

financeiramente, vo esperar terminar de pagar a faculdade e tal, mas teve um dia, não vejo

sentido nisso, que que eu to fazendo da minha vida aqui? A vida é tão curta e eu to aqui

fazendo nada, eu pedi para eles me mandarem embora, como tinha uma boa relação lá e tal,

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eu consegui, fui mandada embora em novembro, em dezembro eu já tava fazendo os

workshops na Fundação, fiz workshops de dezembro até janeiro.

No começo do ano eu comecei a trabalhar, mas eu meio que arrisquei assim,

porque na hora não foi consciente ne, tipo eu pedi pra eles me mandarem embora, me

mandaram, daí eu liguei pra minha amiga que era coordenadora na época e falei olha pedi as

contas e quando tiver vaga ai você me dá um toque, então foi um pouco disso assim, quando

eu tava com os moleques era muito loco assim, porque eles se envolviam de verdade, e eu

acho que o Arte Educador lá dentro tem uma responsa muito grande, de levar a liberdade pros

moleques que tá preso.

Porque a Fundação é uma FEBEM. É privação de liberdade, é o mesmo sistema

só muda algumas coisas, e daí o momento da oficina era o momento que eles fugiam daquilo

que eles estavam vivendo ali dentro, então quando a arte vem de fato pra mim, é devido a

isso, é a possibilidade de ela te levar para outro lugar, pra outro espaço, possibilitar você

sentir outras coisas, e pra mim primeiro foi isso, depois ela veio como meio de comunicar e de

expressão, mas isso foi depois, primeiro era pra fazer os meninos saírem daquilo.

Acho que era quase uma meditação, não para todos, mas a maioria. Mas acho que

ela possibilitava isso, e não pegando na minha figura, acho que qualquer Arte Educador que tá

lá, que desenvolve o trabalho possibilita isso com os adolescentes, e daí ver vários processos

assim várias histórias, de, por exemplo, os adolescentes eles estavam sendo torturados lá, os

adolescentes que mais causavam lá tinham que usar o tênis com dois números menores.

Tinha que usa! E daí a gente fotografo, fez várias fotos dos pés e do tênis,

escreveu poesia sobre isso, então assim algo que, é claro que é muito simbólico ne, é mais no

campo simbólico e filosófico, mas era um suspiro ali para a dor deles, a dor que era física, a

arte vinha como um suspiro de tudo que eles tavam sentindo .

Outra situação também de um menino que não era alfabetizado assim, e ele não

aderia à escola, e daí com as oficinas de animação ele vem e pede pra fazer o roteiro, e a

gente pensa como ele vai fazer o roteiro se ele não sabe escrever? E daí a gente começa a

investir muito assim, faz uma parceria mesmo, com vários profissionais que estavam bem

engajados nisso , e o menino passa a ser alfabetizado por conta da oficina, por conta do

roteiro, quando ele sai da Fundação ele ta escrevendo, e tem muitas historias, essas são só tipo

algumas que vem na cabeça.

Tem muitas assim, que marcou, tem uma que eu acho que foi um processo muito

rico, foi quando a gente tava fazendo rádio e uma das ideias era contar a história dos meninos,

e a gente fez muita gravação das historias da vida deles, e eu dava bastante oficina, então

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foram muitas historias que eu gravei assim, e daí não tem nenhum ponto marcante assim, mas

é de ver, ouvir mesmo as histórias deles assim por eles, acho que foi um processo muito rico.

Uma outra assim que eu sempre levo, ele não participava de nenhuma oficina e

era muito devido ao movimento da CASA, não era das outras oficinas, como ele causava

muito, ele foi diagnosticado com bipolaridade, então tinha algumas dificuldades lá na CASA,

então os profissionais não queriam levar ele para a oficina porque ele dava muito problema

assim, eu sempre via que esse menino estava sempre sozinho assim, e pedi pra eles colocarem

ele na minha oficina, e dai eu lembro deles falarem: mas tem certeza mesmo, senhora, que ce

vai quere, porque é problemático esse menino é problemático.

Foi super difícil, ele surtou algumas vezes, quebrou cadeira jogou cadeira, mesa,

quebrou um rádio, mas foi um puta processo assim lento com ele, e ele não aderia a nada,

assim a nada, nada e foi um pouco nesse processo de inicio do rádio assim, teve um dia que eu

falei assim pra ele, já não sabia muito o que oferecer para ele como possibilidade, e daí eu

pensei que a única coisa que eu não tinha oferecido pra ele era a questão da música né, eu

perguntei pra ele, você já pensou em compor em fazer uma musica tal, aí ele fala assim, a eu

nunca pensei mais eu gosto de escrever, daí a gente começa a trabalhar com isso assim, daí foi

um pouco difícil porque eu tinha uma turma que queria 14 querendo fazer outra coisa e ele;

mais daí eu tentei fazer este processo com ele, e ele gostava bastante de ler assim, então eu

levei bastante coisa pra ele lê, e daí depois de um tempo ele começa a compor muito assim,

muito e ele sai de lá me procura, ai, eu começo a indicar alguns lugares pra ele ir, sarau né,

outros espaços, até convida ele pra apresenta, e ele começa a canta, e ele vai em sarau recita, e

hoje ele tá super envolvido assim, super envolvido, tá compondo pra caramba, ta tentando

grava um CD; ainda tenho contato com ele, ele inclusive tá, mês que vem vai se mudar pra

São Paulo, pra poder tenta fazer esse rolê da musica mesmo.

E é um menino super politizado, que hoje ele faz música, recentemente ele fez

uma música sobre ocupação das escolas, então assim super politizado assim, super envolvido.

A arte influencia sim na vida desses adolescentes que estão na Fundação, pra uns

mais e pra outros menos, só que eu acho que pra maioria o primeiro contato que eles tem com

a arte é lá dentro, não tem acesso a isso fora, e isso é um dos grandes pontos que a gente tem

que refletir . Pro adolescente, pra ele ter educação, ter arte e cultura e ter profissionalizante ele

tem que tá dentro da Fundação. Além dessa questão de um teto e de comida ne, então pra ele

ter um teto muitos tem que tá lá pra ter comida também tem que ta lá ne, então a arte é até

neste ponto, nesta questão é um ponto pequeno ne, porque tem até outras coisas que as vezes

vem até antes disso, quanto alguns direitos básicos mesmo, então a maioria vai ter acesso a

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arte lá dentro ne, e pra eles não é muito escolha, todo mundo precisa estar inserido e tal, mas

acho que a partir do momento que você consegue se aproxima dos adolescentes, acho que

muito devido a relação que se tem do Arte Educador com o educando lá dentro, possibilita

uma vivencia com a arte, não seja tão engessada assim, não tenha essa coisa do certo e do

errado, algo mais leve e mais tranquilo assim.

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Transcriação - Colaboradora: Beatriz

Desde pequena via nas paredes sua marca, afetos, desenhos enquadrados

anunciavam um porvir, base? Caderno de desenho, giz de cera, tinta e lápis de cor provavam

um natal possível sem, bonecas, panelas, mundos cor de rosa. No dia a dia mãe e tia

incentivavam, presentes, presença! Professora de artes, sensivelmente sabia, algo a mais

estava ali. Técnicas exclusivas, exclusividade, detalhes provocam grandes revoluções, do 6B

ao marchê, quem diria! muito além dos muros da escola, plantando sementes.

Jardim Márcia, região sudoeste, A quebrada! Infância comunitária, a rua como

palco anunciava a reestreia das brincadeiras, pique bandeira, esconde esconde...bétis! A

tranquilidade permitia, pais, crianças e adolescentes festejarem...folia de reis!

Nos finais de semana criança dorme até mais tarde! Aqui? Não! Antes do sol dar

as caras, todos de pé, cozinhando solidariedade. Questões sociais latentes provocam ações

sociais resistentes! Já aos nove a cena se desenhava, não no papel, no concreto gélido das

ruas, moradia de massas invisíveis, causando choques. Desconforto, ao ver dentro de casa

roupas, tênis, cama, quente, banho, afeto, teto, sem teto! Não havia luxo, mas naquela cabeça

a equação não batia, doía, a marmita produzida todo domingo matava a fome nas ruas,

aumentava a fome em casa...de lutas!

A inquietação era contínua, as experiências se multiplicavam. O dia a dia

vicentino dos pais oportunizava almoços e cafés comunitários, construções coletivas, casa

sempre cheia, necessidades que batiam na porta, pessoas necessitadas, idas a farmácia,

compra de remédios e fraldas, um pouco de alívio.

O natal seguia o mesmo ritmo. Ao embrulhar presentes, a sensação embrulhava o

estômago. A ceia em casa, pretexto, ceia fora de casa, pouca sobra de uns é a fartura de

outros, a matemática na prática é sádica, fazia mais sentido compartilhar na rua, legítimo

espírito festivo, longe do aquecimento comercial, aquecia, crianças ensinam.

Aos 13, filha única, o peso da expectativa. Pais pressionam, para ser a melhor, a

soma era simples, mas incerta. De vivências e pesquisas escolheu, pastoral carcerária!

Resultado não esperado, negado! proibição...lá? não! a semente desabrochou...

Naturalmente, primeiro emprego, rua! Calma! Educadora social de rua. Pontos

interligados, sentidos, faz sentido. Infância e adolescência, pauta da vez, luta, resistênca.,

efeito dominó, cada trabalho, um novo nó. MTST, saúde mental, diversidade sexual, violência

de gênero, maioridade penal, margens sociais, marginalizados.

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Mesa de bar, questões existenciais, compartilhamentos informais informam, na

amizade, intramuros da Fundação, curiosidade, interesse, atravessa a pele, rasga...destino.

Como desejado oportunidade! Workshop, stopmotion, empolgação, violação! Um

dia antes, espancamento coletivo, coma, energia pesada, sussurros correm, corredores frios,

silêncio, a violência é real, do muro nada passa, senão embaça! Quadro a quadro marcas

registradas, costelas machucadas, braços quebrados, ferimentos expostos, stopmotion visceral,

dilema imposto, a formação em rádio tv impelia, denúncia, resposta! Simples equação, difícil

solução, denunciar e nunca mais voltar? Acalmar, investir e voltar? Fisgada, sem muita

escolha, paixões, contas pedidas, pouco tempo depois Arte Educadora na Fundação CASA.

Riscos.

Fundação CASA é FEBEM! Muito alarde, mesmo sistema, cárcere. Oficina de

arte e cultura, fuga, responsabilidade muito loca, levar a liberdade. Arte ali? É pra isto!

Resistência, outros lugares, espaços, nos cerquem de muros, caminhamos com a mente,

meditação. Exagero? Histórias do lar, rebeldes, torturas, histórias do Brasil, ditaduras,

meninos marcados, pela cor, pela pobreza, dia a dia no veneno, falam demais! Dois números

pra trás! Dói mais no dia seguinte, aperta o pé outra vez, fuga artística, fotografias, pés

amassados...poesias! Vazão, suspiro, embaralha a mente do funça, arte, alivia a dor.

Várias experiências, histórias que não passam na tv, por quê? Moleque analfabeto,

investimento, passa a escrever, alfabetização, porque na Fundação? E no mundão não, por

quê? Grades! Diagnóstico bipolar, isolado, agressividade a flor da pele, afeto, escuta,

sensibilidade, tentativas, leituras, músicas, composição crítica, possibilidade real, porque o

dedo sempre apontado pra cá? Por quê? Máscaras, função social da marginalização, use a

imaginação, mude de canal, se desligue.

Mobilização, mudanças, Jardim Márcia hoje, violência e tráfico intenso vigiam o

seu repouso, cada um por si, da roupa no varal ao fio do poste, bobeou, engole seco, polícia

não entra. Mundos radicalmente distintos, mesma espécie, estre seus destinos, abismos.

Afetos, sensação, pertencimento, ”me reconheço aqui”, na brevidade incerta, um

retorno. Nos testes de graffiti, melhor estética...favela! Experimentações, vielas, cores,

participação popular, aposta. Uma intervenção, córrego, ponte. Objetivo trazer boniteza. como

reagimos ao belo? Na surdina a lente captava reações, sustos, sorrisos, vitórias! Quer ser

melhor? Vai ser melhor pra sua comunidade! Relacione-se, outras relações.

Arte como comunicação, manifesto, facilita, olhares, possibilidades, sem esta de

artista, o que move, os encontros, crianças, adolescentes, pessoas sensibilidades.

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200

Me afirmo educadora social, intrínseco ao meu ser, seres em mim, faces,

trabalhadora da Assistência Social, formada na academia, nos movimentos sociais, moradora

de Hortolândia, coração no Jardim Márcia, casada, homossexual, parceira, militante, na

correria! Fragmentos, relatos, vivências...minha história.

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Capítulo 4 – Potências.

4.1 – O oralista apicultor

Na criação de vias interpretativas momentos distintos surgem ao caminhar. Vozes,

ruídos e barulhos colocados em movimento frenético ao ler e reler transcrições, escutar

entrevistas, fazer anotações, grifos e marcações na busca de que? O que emerge ao revisitar

estes encontros? O que escapa entre os dedos?

Momentos de silêncio, a posição estática, o olhar para a tela é vago, cada uma das

cinco entrevistas é um encontro de múltiplas faces, lugares de criação, pessoas dispostas a

narrar a vida, preciosidades. Existe uma única interpretação verdadeira? Responsável?

Estamos falando de narrativas de vidas! Interpretação ética?

Instantes de abertura, ampliação de horizontes, possibilidades. No leque de

diálogos criados abrem-se inúmeras rotas de encontro, pulsantes, uma abertura viva

propiciada por momentos mediados pela História Oral.

O movimento de interpretar histórias orais de vida é desafiador, e foi em um

pequeno texto de Alberto Lins Caldas77

que entrei em diálogo com reflexões importantes para

me auxiliar nesta estrada, aumentando meu campo de visão como norteador desta ação.

Para produzir trocas com este texto, duas questões interessantes e passíveis de

angústia nos oralistas se apresentam como ponto de intersecção. Até onde a interpretação das

narrativas não está descaracterizando, desrespeitando ou ainda desconfigurando o relato dos

colaboradores? E na sequencia, a interpretação atingiu a essência das narrativas? Existe uma

interpretação certa?

Os textos, as narrativas e as falas não possuem uma essência ou um único

significado no qual o oralista como um especialista atento às suas nuances desvela para o

mundo suas verdades. Alberto Lins Caldas faz uma boa analogia entre o apicultor que extrai o

mel produzido pelas abelhas e o oralista extraindo os sentidos através de uma técnica de

interpretação78

, exercendo um papel de retirador de sentidos, através de um único

procedimento teórico: a “interpretação-apicultura”.

Para além do oralista apicultor, das coisas com significados em si, a reflexão

trazida pelo autor nos impulsiona a desdobrar as dimensões destas existências, alargando o

77

CALDAS, Alberto Lins. Oralidade, texto e história: para ler a história oral. São Paulo: Loyola, 1999. 78

Ibidem., P. 115

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campo de sentidos, saindo da obviedade do olhar objetivo. Uma das definições trazidas para a

ação de interpretar é:

Nossa ideia de interpretação não é a de procurar por baixo, além ou dentro, mas

fazer viver aquilo que significa visível e sensivelmente. É fazer viver para nós o

simbólico que é o presente, um texto que não seja tratado como objeto físico, mas

como estrutura simbólica no sentido amplo do termo, sem confundir os limites

constituídos com limites naturais inerentes à coisa. Vivência que significa somente

ao ser colocada em leitura, em diálogo, em relação, vivência que brilha somente

quando se põe em diálogo (CALDAS, 1999, p.111).

Mudando o ângulo de visão, o oralista, ao interpretar, se descola da narrativa

fechada, do texto em si do colaborador e conta com suas palavras a fala do outro, nesta

perspectiva:

Interpretar não é explicar, mas desejar o desejo de falar, o desejo de quem falou,

desdobrar, tirar da pobreza do somente luz ou somente sombra. Não é tirar o que

está dentro ou expor o que está fora, mas por em diálogo, encontrar o movimento e

os movimentos. É por em movimento; delinear a sutileza das sombras, multiplica-las

e multiplicar as densidades; fazer brigar as diferenças e recusar as igualdades; dizer

o que não está dito ou sequer pretendido. Buscar um encontro, fazendo dialogar a

diferença pela diferença, criando um campo de vivencia e uma superação de limites

(CALDAS, 1999, p.112).

Nesta vertente interpretativa, o cerne não está na análise das palavras, no texto

cerrado em si mesmo, a valoração é direcionada para o diálogo, os sonhos, sentimentos e

relações, neste sentido o foco da interpretação está na possibilidade de uma narrativa viva,

pulsante e provocativa.

Conseguir propiciar uma leveza na interpretação, sem prender, fixar, “amarrar” as

imagens, sons, palavras e sentidos, a relação com as palavras necessita de suavidade, uma

espécie de dança livre, deixar correr, girar para poder haver um “diálogo de gozo”.79

Esta perspectiva não se limita na relação oralista-colaborador e pesquisador-

objeto, o oralista está dentro de um tempo histórico e sua leitura, sua interpretação de uma

narrativa passada é uma leitura do e no presente:

(...)em História Oral não podemos deixar de notar, não somente que o passado está

no presente, mas que o oralista está imbricado indissoluvelmente na vida, na voz, no

tempo e na constituição do outro e que o outro se torna também a nossa voz. Não

podemos nos esconder atrás da existência do outro vendo somente ele, como se ele

existisse para nós como existe para ele mesmo, sozinho, num quarto escuro,

aceitando a metafisica do objeto como parâmetro teórico geral, como visão de

mundo (CALDAS, 1999, p.119).

79

Ibidem., P.115

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Contar com nossas palavras, entender esta relação oralista-colaborador como um

campo amplo de sentidos e olhares significa nos distanciarmos da ideia de que as narrativas

possuem um centro como essência a ser atingida para então estarmos no caminho de uma

interpretação certa, objetiva.

No entanto, ao olhar as sombras, as dobras, os ângulos não convencionais

permitindo uma interpretação mais plural, livre e viva, não estaríamos descaracterizando ou

desrespeitando as narrativas de nossos colaboradores?

Alberto Caldas Lins nos provoca a transgredir, através de uma leitura possível que

não é a verdade ou a realidade, no detalhe, nem aquilo que o próprio colaborador pensa ser a

verdade “mas como eu vivencio, penso, vejo, sinto, degusto, relaciono e leio essas palavras,

imagens e histórias. Ali é onde estará a minha leitura, ali sou tão-somente um intérprete. E ao

me encontrar espero encontrar o outro, os outros” (CALDAS, 1999, p.119).

É na possibilidade do desvio que podemos testar limites, sentidos e resistências na

fronteira do diálogo com o outro.

Permeado por estas reflexões me lanço na aventura de interpretar as cinco

entrevistas realizadas, buscando singularidades e aproximações com a história da nossa

sociedade, mas principalmente deixando um campo aberto para vir à tona o que me

sensibiliza, me provoca, me move, a força que nos faz sentir vivos.

Interpretação das entrevistas

A cada momento que revisitamos as narrativas surgem novos olhares, frestas que

antes não se abriam diante de nosso olhar. Este movimento de retorno ao se fazer uma

pesquisa, tendo como base a História Oral é recorrente, ao se transcrever, textualizar e

transcriar. Voltamos nas produções anteriores para então avançar e agora na interpretação das

narrativas não é diferente, desde o áudio até os textos produzidos o retorno é inevitável.

Nestes amplos universos narrativos e também nas etapas já realizadas “os temas

foram emergindo da própria narrativa e me deixei levar e seduzir por eles”80

, logo, foi a partir

de diversos elementos que minha interpretação se tornou possível.

Neste olhar, recorri a alguns conceitos, buscando auxilio para a interpretação das

entrevistas, melhor dizendo, foram aspectos das histórias dos colaboradores que me

80

BARBOSA, Fabíola Holanda. Experiência e Memória: a palavra contada e a palavra cantada de um

nordestino na Amazônia. São Paulo, 2006. 172 p. Tese de Doutorado (Doutorado em História Social). p.116

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mobilizaram a dialogar com alguns autores, partilhando com eles as vidas contadas em

narrativas.

4.2 A Arte81

na Vida

Realizar entrevistas através da História Oral é avançar no oceano com uma

lanterna e se deparar com uma torre de farol. Elaborar um projeto, estabelecer um roteiro para

o trabalho de campo, pode nos conduzir, de certa maneira, a fazer uma projeção, como se

pretendêssemos saber de antemão os passos dos colaboradores.

Fui a campo buscando compreender a importância da arte na vida dos

colaboradores e como eles entendem essa importância ou não na vida dos adolescentes que

cumprem medida sócio educativa de internação na Fundação CASA. A pergunta de corte

“Como você acha que a arte influência na sua vida e na vida dos adolescentes da Fundação

CASA?” exprime esta intenção.

Avançava com a lanterna de minhas pretensões e encontrei uma força expressa

nas narrativas dos colaboradores que hoje eu entendo como sendo a “força da vida”.

Os conceitos de biopolítica/biopoder de Michel Foucault oferecem uma parceria

importante para compreender esta força encontrada nas narrativas dos colaboradores. No

último capítulo de “A vontade de Saber” e no curso de 17 de março de 1976 de “Em defesa da

sociedade”, Foucault constrói os pilares essenciais para a definição destes conceitos.

Para apontar um momento histórico de transformação, Foucault recorre

primeiramente ao que chama de forma moderna de direito de vida e de morte, na qual o

soberano marca seu poder sobre a vida, exercendo seu direito de matar, pela condição de

exigir a morte “é, de fato, o direito de causar a morte ou deixar viver”. (FOUCAULT, 1999,

p.128)

A expressão chave deste poder se manifesta através da capacidade de apreensão

do tempo, dos corpos e principalmente da vida, podendo suprimi-la a qualquer momento.

A partir do século XVII, uma nova forma de poder começa a surgir, em um

primeiro momento, investindo nos corpos como máquinas, buscando ampliar suas aptidões,

extorquindo suas forças e integrando-as a sistemas econômicos, são as chamadas disciplinas

81

Em relação a arte, não estamos partindo de algum conceito a priori. Foram consideradas as atribuições e

definições feitas pelos próprios colaboradores quando indagados acerca da influência da arte em suas vidas. Em

relação a influência da arte na vida dos jovens internos da Fundação CASA, estamos considerando os parâmetros

sobre arte e cultura da instituição (Encontrados no ECA, SINASE e Caderno de Superintendência Pedagógica),

as oficinas de arte e cultura e também a fala dos colaboradores.

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anatomo-políticas do corpo humano. Um segundo eixo deste poder entrou em cena por volta

do século XVIII e focou-se no corpo-espécie através de uma série de controles e intervenções

- o nascimento, a mortalidade, a proliferação, a duração da vida dentre outros - , surgindo

então uma bio-política da população:

A instalação durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces –

anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os

desempenhos do corpo e encarando os processos da vida – caracteriza um poder cuja

função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo

(FOUCAULT, 1999, p.131).

Esta era do biopoder ativa numerosas e diversas técnicas objetivando a sujeição

dos corpos e o controle das populações, no entanto, como esta análise feita por Foucault

dialoga com a narrativa dos colaboradores e mais especificamente com suas potências de

vida?

Um grupo de teóricos, em sua maioria italianos, propôs uma mudança no conceito

de biopolítica82

fazendo com que algumas peças começam a se encaixar possibilitando

conexões mais sinérgicas com a potencia de vida encontrada na narrativa dos colaboradores.

Na obra “Império”, Antonio Negri e Michael Hardt conceituam biopoder na

mesma linha de Foucault quando dizem:

Biopoder é a forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a,

interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando. O poder só pode adquirir comando

efetivo sobre a vida total da população quando se torna função integral, vital, que

todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade (...), portanto, se

refere a uma situação na qual o que está diretamente em jogo no poder é a produção

e a reprodução da própria vida (HARDT, 2001, p.43).

Este poder não mais externo, que vem de dentro, busca uma produtividade da

vida, ao contrário do poder soberano, que tenta barra-la, o biopoder busca otimizá-la:

(...) o poder penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente,

pondo-as para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a

inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado

(...) Se antes imaginávamos ter espaços preservados de ingerência direta dos poderes

(o corpo, o inconsciente, a subjetividade), e tínhamos a ilusão de preservar em

relação a eles alguma autonomia, hoje nossa vida parece integralmente subsumida a

tais mecanismos de modulação da existência (PELBART, 2008, p.1).

Neste sentido, dentro de um contexto no qual este biopoder lança seus feixes por

toda parte, se apropriando da vida, aperfeiçoando-a, aumentando sua produtividade para

82

Autores como Toni Negri, Gabriel Tarde e Maurizio Lazzarato. No Brasil, autores como Peter Pelbart e

Pedro Grabois também tem escritos que vão ao encontro a esta mudança.

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subordiná-la aos ditamos do capital, é possível criar saídas? Ou estamos cercados por todos os

lados? Existe resistência ao biopoder?

É na ótica da biopolítica que a leitura feita por estes teóricos ganha novas

dimensões, pois ao analisar a biopolítica é atribuído a ela um duplo valor, por um lado, o

poder sobre a vida (biopoder) e, por outro, as potências da vida (biopolítica propriamente

dita), afirmando então uma distinção entre biopolítica e biopoder.

Para sinalizar essa potência, Peter Pál Pelbart faz uma distinção entre multidão e

massa. Na esteira de pensadores como Paolo Virno, Simondon, Elias Canetti, Gilles Deleuze

e Gabriel Tarde, o autor aponta que na massa as singularidades são abolidas, existindo uma

igualdade homogênea, caminhando para uma única direção, é a própria morte.

Diametralmente oposta à massa, a multidão é refratária à unidade política, ela é plural,

heterogênea, dispersa e multidirecional.

Esta multidão deriva do Uno, entendido pelo autor como um caldo biopolítico, um

magma material e imaterial, a potência ontológica comum.

Neste sentido, todos temos a capacidade de produzir o novo, pois a potencia da

vida esta em toda parte, capaz de mobilizar, construir, inventar, circular novas possibilidades:

(...) por toda parte detectamos, mesmo em gestos minúsculos, pequenas deserções,

afetações e agenciamentos coletivos que nossa percepção midiatizada e nossa

sensibilidade amortizada já tem dificuldade em captar, vitalidades insubordináveis

(PELBART, 2008, P.19).

É nesta biopolítica propriamente dita, nestas forças, potências de vida que

encontro as vidas narradas pelos colaboradores nas entrevistas de história oral. São diversas as

faces destes ímpetos, destas potências e em algumas lançarei destaques.

No emaranhado de relações possíveis dentro de uma pequena cidade no interior de

Pernambuco, Pedro com seus oito anos de idade já tinha uma trilha natural a seguir, afinal pai,

primos e boa parte dos moradores da região labutavam nas pedreiras. Sua investida sorrateira,

quando o pai foi trabalhar fora, anunciava este futuro porvir.

No entanto, ao descobrir a ação do filho, o pai de Pedro assertivamente fala “Eu

não quero que você seja igual seu pai, burro e quebrando pedra, ou o contrário, mesmo

inteligente, mas quebrando pedra. Eu quero que o peso do seu trabalho seja uma caneta”.

Frase apontada pelo colaborador como criadora de um momento que ele nunca

mais esqueceu em sua vida, lembrado inclusive em sua colação de grau, infelizmente sem a

presença do pai.

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Diante de um sistema de trabalho precário que um a um cooptava, independente

da idade, por aplacar minimamente necessidades de sobrevivência, a relação pai e filho

evidencia uma potência, uma força, buscando uma nova via, uma saída.

O único caminho até então vislumbrado era o caminho a ser trilhado, e Thalita via

nos passos do pai os seus passos. A faculdade de Comércio Exterior, o estágio na mesma área,

era a única roupa possível de ser vestida com naturalidade.

Uma viagem de final de ano em Parati possibilitou um estalo: “Sabe quando dá

um surto e você quer mudar? Não tá da hora?”. A partir daí a trilha, até então certa, foi

abandonada e começou a construção de um caminho próprio, ditado pela força de sua própria

vida capaz de se desvencilhar de uma formatação empresarial buscando os seus próprios

sentidos.

Dentre as inúmeras possibilidades de potências de vida, a arte aparece nas

narrativas destes dois colaboradores como um forte elemento a ser considerado, entendendo

que a pergunta de corte realizada indagava, na primeira parte, sobre a influencia da arte na

vida deles.

Tanto Pedro como Thalita trazem a arte como um elemento de ruptura em suas

vidas, como um marco em suas trajetórias. Thalita é enfática ao dizer “acho que ela mudou

minha vida por completo”, ressaltando que antes estava como estagiária, andando de ônibus

fretado e camisa social. A arte “proporcionou descobrir o que eu queria ser”, com uma rotina

mais leve, financeiramente mais difícil, mas dando sentido para a vida, abrindo sua mente.

Pedro usa a imagem de um rio para se referir à importância da arte, apontando-a

como um elemento transformador que veio para mudar sua vida.

Nas narrativas, é evidente a centralidade dada pelos colaboradores à arte e sua

importância nas suas trajetórias de vida. Analisar a maneira como a arte se relaciona com a

vida dos colaboradores, seus primeiros contatos, suas formações nos abrem caminhos para

refletirmos se ela pode se constituir, enquanto potencia da vida, em um elemento de luta

contra as formas de assujeitamento propostas pela dinâmica do biopoder, em uma outra

subjetividade não submissa a esta produção maquinada da vida.

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4.3- Tornar-se Arte Educador

4.3.1 Thalita

Ao voltar na textualização da colaboradora em busca das relações estabelecidas

com processos artísticos vem à tona em minha mente uma frase de Paulo Freire “Ninguém

educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo

mundo”. (FREIRE, 1987, p.68).

Thalita não inicia sua relação com a arte desde a infância, com alguma referência

da família ou através de uma graduação na área. Foi após voltar de Parati que,

despretensiosamente, como um passatempo, começou (em parceria com uma amiga) a fazer o

que chamou de “arte em garrafa”, utilizando tinta acrílica e vitral.

Através de um amigo, realizou oficinas em um coletivo chamado NASA para

crianças de diversas faixas etárias e aí começou a germinar um aprofundamento artístico, pois

como veremos em sua trajetória é na relação com o outro que a colaboradora investiu na sua

relação com a arte.

A Fundação CASA foi ponto crucial neste processo. Praticamente inexperiente,

foi contratada para realizar oficinas de artes plásticas83

, e por estar “super cruzona”,

reproduziu algumas práticas corriqueiras nas oficinas de artes plásticas desenvolvidas nestes

espaços, destacando duas, sendo a primeira a realização de desenhos que correspondem a uma

cultura dos adolescentes internos84

feitos através de um desenho impresso e passados para a

tela utilizando papel vegetal, e a segunda quando o Arte Educador “risca”85

a tela do

adolescente para ele pintar depois.

A necessidade de um maior aprofundamento e amadurecimento vinha através de

um ímpeto gerado pelos encontros com os adolescentes, foi então que a colaboradora

começou a realizar pesquisas, fazer cursos de desenho como o do Márcio Moreira,

evidenciando que seu processo formativo como Arte Educadora e também seu mergulho em

algumas linguagens artísticas se deram na relação com o outro.

No curso supracitado, a criação de um personagem movimentou Thalita. A tarefa

de reproduzir o cotidiano ajudou-a a representar aquilo que a movimentava, a dinâmica com

os adolescentes internos da Fundação CASA, fez com que começasse a esboçar o desenho de

uma imagem de adolescente. Embora sua técnica de desenho em desenvolvimento não

83

Adiante será abordado a arte dentro da Fundação CASA bem como a forma de contratação dos arte educadores

dentre outros. 84

Desenhos de Santas, coração, para entregarem a visita domiciliar 85

Faz o contorno de todo o desenho.

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permitisse naquele momento um rosto perfeito, a camiseta amarrada no rosto em momentos

de rebelião nas Fundações Casa deu a saída perfeita, agressiva, um personagem encapuzado.

Ao avançar e iniciar a linguagem de literatura marginal, este personagem ganhou

um livro, completando, o ciclo realizado dentro da Fundação.

O “moleque encapuzado”, esta criação da colaboradora vem da potencia destas

trocas nas oficinas de arte e cultura, vem do movimento com o outro que possibilitou o seu

desenvolvimento, sua aproximação com a arte e com a educação. A força do personagem, das

relações foi tão expressiva que o desenho virou tatuagem e hoje está marcada na pele:

Então muitos dos meus desenhos vieram da vivência com os adolescentes, então tem

muito deles nos meus desenhos e do meu processo na arte. Tipo, meu mesmo, sabe?

De viver do desenho, da expressão. Na verdade eu acho que os meninos inspiram,

acho que eles me inspiraram muito (p.107).

As oficinas de literatura marginal trouxeram uma ampliação de repertório, com

escritores como Paulo Leminsk, Sérgio Vaz, Reginaldo Ferreira da Silva – Ferréz, dentre

outros. Thalita ao buscar saciar a sede dos educandos instigados com as manifestações de

201386

, também saciava sua sede.

A produção de uma coletânea de textos feita coletivamente com os adolescentes

foi motivo de satisfação e posteriormente de revolta ao ser censurada pela ONG. Em um

movimento que escapou das vias oficiais a colaboradora levou a produção dos adolescentes

para saraus de literatura marginal, literalmente pulando o muro da Fundação CASA.

4.3.2 - Pedro

Já na infância “tinha alguma coisa da arte”, que chamava Pedro, afinal versava,

brincava, apresentava com as irmãs, inspirados em programas de TV, “tinha algo muito forte

porque sabia que a arte me chamava”.

No entanto, foi com quinze anos que este “chamado” foi atendido ao entrar em

aulas de Teatro com o objetivo de deixar a timidez de lado. Rapidamente houve um pequeno

retorno financeiro por conta de apresentações pela Baixada Santista e com a mesma

velocidade veio a resistência da família, quem vive de arte é vagabundo.

Poucos anos depois deste encontro com o teatro, com apenas dezoito anos, Pedro

se torna educador de uma ONG para ministrar oficinas, vaga adquirida com a ajuda de uma

86

Série de manifestações populares iniciadas para contestar o aumento da tarifa de transporte público. Dias

depois, após forte repressão policial por todo o país, principalmente nas capitais, um grande número de pessoas

saiu às ruas para protestar por diversas agendas. Foi a maior mobilização popular desde o impeachment.

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amiga que o indicou. É então lançado a vários desafios essenciais para seu processo formativo

iniciado aos quinze.

Suas turmas com, em média, vinte e cinco alunos, propiciaram inúmeros

elementos que chamavam sua atenção como racismo, bullying e homofobia. A pouca

experiência pesava para conseguir criar estratégias frente a tão variadas situações de

violência. Mesmo assim, Pedro viu na sua experiência com o teatro um alicerce importante

para ter conseguido lidar com estas demandas. A presença mensal da terapeuta que o tinha

contratado também serviu como apoio formativo através de conversas, reuniões e exercícios.

Várias estratégias para as atividades aparecem na narrativa do colaborador e vão

nos dando pistas de como sua formação de Arte Educador e sua relação com a arte ganham

profundidade. A apresentação de lambaeróbica ao som de Elis Regina funcionou como uma

virada, pois “foi então que descobri o quando era importante o onde estou, com quem falo e o

que eu digo”.

Através dos exercícios teatrais e auxiliado por uma sensibilidade aguçada, o

colaborador conseguia visualizar algumas dificuldades de sua turma, percebendo quem não

sabia ler, quem tinha dislexia, dentre outros problemas. A partir dessa aproximação, Pedro

sentiu a necessidade de acompanhar os alunos na escola, de modo que muitos passaram a vê-

lo como uma figura paterna.

A dramatização de histórias de vida com as crianças também foi uma estratégia

que Pedro encontrou e que lhe abriu possibilidades de diálogo, fortalecendo seu papel de Arte

Educador. A morte de algum ente querido, a ausência do pai, um irmão preso, dentre outras

histórias dramatizadas aproximavam o Arte Educador da vida de seus alunos.

A vinculação foi tão intensa que, anos depois, ao encontrar seus ex-alunos, todos

o tratam com carinho, o chamam ainda de tio Pedro, revelando a importância dos encontros

entre um jovem educador e adolescentes.

Posteriormente, o colaborador trabalhou na Fundação CASA onde trabalha até

hoje, realizando oficinas de artes plásticas, apesar de não se considerar um artista plástico.

Atribui à formação realizada no projeto Arteiros87

um ponto de apoio para desenvolver estas

oficinas.

87

Uma vez por mês, o projeto Arteiros reúne em Campinas todos os Arte Educadores para um Encontro

Formativo. Nele vários temas são trabalhados, desde alguma linguagem artística específica até debates sobre

adolescência, drogas dentre outros.

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4.4 Formações múltiplas

Diversos são os caminhos percorridos por Pedro e Thalita no que tange seu

processo formativo de arte educadores. Isto com certeza se estende para os outros Arte

Educadores que estão na Fundação CASA.

Enquanto Pedro, desde sua adolescência, entrou em contato com o teatro e logo

depois começou a trabalhar como educador de artes cênicas para entrar na Fundação CASA,

Thalita teve uma rápida experiência dentro do coletivo NASA desenvolvendo-se como Arte

Educadora dentro da Fundação CASA sem deixar de buscar mais conhecimentos a respeito de

áreas que pudessem aprofundar sua relação com os adolescentes.

Foram nas trocas realizadas seja em grupos, ONG´s ou mesmo dentro da

Fundação CASA que a força destas narrativas aparece, demonstrando as trilhas que estes

colaboradores percorreram para estarem em constante formação alimentando a potência de

suas próprias vidas.

E ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, ganha uma

amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado, na

mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do

sentido do termo forjado por Foucault: biopolítica não mais como o poder sobre a

vida, mas como a potência da vida (PELBART, 2003, p.3).

4.5 - Existe potência na arte encarcerada?

O terreno percorrido pela arte até chegar às salas intramuros da Fundação CASA é

estreito e movediço. A chegada das oficinas de arte e cultura, não é célebre nem triunfal, na

contramão, é cercada, vigiada e até mesmo censurada de abrupto. Neste espaço de tantas

contradições, controles e tentativas de assujeitamento, é possível desenvolver oficinas de arte?

Ou a arte funcionaria como um apaziguamento das tensões? Uma distração para suavizar a

“caminhada” dos jovens internos e dar paz para o corpo de funcionários? A arte é potência

para os jovens dentro da Fundação CASA?

Na tentativa de refletir sobre estas questões, puxar fios deste emaranhado, lançarei

mão das narrativas dos colaboradores desta pesquisa, da minha experiência como

Coordenador Regional e de alguns trabalhos de arte dos jovens da Fundação CASA aos quais

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tive acesso. Longe de pretender esgotar o assunto, o intuito é abrir caminhos para o debate

sobre o atendimento socioeducativo, principalmente de internação e mais especificamente a

arte dentro destes espaços.

O Centro de Atendimento de São Bernardo por uma época foi conhecido por

estar sempre “virado”88

, para quem estava de fora, havia certo mistério nestas unidades, um

misto de curiosidade e medo, um local de tensões constantes e por meses nas mãos dos

jovens. Quem atendia este Centro era um outro Coordenador Regional da ONG em que eu

trabalhava, de modo que o meu maior contato era através de seus relatos e da minha passagem

próxima a essas unidades quando viajava para o litoral sul.

Algum tempo depois, o Coordenador Regional daquela área saiu da ONG,

deixando os Centros de Atendimento e os Arte Educadores da região sem acompanhamento

até a contratação de outro profissional. Foi neste ínterim que tive de cobrir estes Centros,

sendo necessária a ida para São Bernardo.

Na primeira visita, já na entrada do estacionamento, no portão da primeira guarita,

o segurança terceirizado pediu para eu parar o carro e abrir o porta malas. Averiguou o carro

todo. Se eu já estava tenso pela fama dos Centros89

, a ação me deixou cabreiro90

, afinal

nenhum Centro de Atendimento onde eu havia passado tinha esta norma de segurança, era

algo novo para mim.

Dali em diante, todos os procedimentos de segurança eram iguais a qualquer outro

Centro que que visitei. As oficinas estavam prestes a começar e na sala da pedagogia

encontrei a Arte Educadora Thalita que me apresentou a Coordenadora Pedagógica e após

uma breve conversa nos dirigimos para o corredor que levava até o prédio onde ficavam os

adolescentes. Descobri que não era um dia comum de oficinas, era a formatura da Educação

Profissional91

.

Dentro do pátio, cenas inéditas apareciam diante de meus olhos. Vários jovens

apoiados numa grade, um transito frenético e livre entre as salas, as mãos gesticulavam à

vontade, cabeças erguidas e a locomoção era solta, cada um expressando-se à sua maneira.

Atitudes que se contrapunham à cena comum de andarem com as mãos para trás e as cabeças

baixas.

88

No controle dos jovens, em constante rebelião. 89

São Bernardo possui dois Centros de Atendimento que ficam lado a lado, São Bernardo I e II. 90

Desconfiado, com medo. 91

Os ciclos tanto das atividades de arte e cultura como da Educação Profissional duram três meses. A Educação

Profissional fazia uma formatura no final do ciclo em que entregava o diploma para os jovens que tinham

concluído os cursos. Os Arte Educadores da arte e cultura comumente estavam nesta formatura, inclusive havia

apresentações dos adolescentes através das linguagens artísticas.

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Confesso que fiquei levemente temeroso e ao mesmo tempo interessado, afinal

era a primeira vez que estava vivenciando um Centro no controle dos jovens. A presença da

Arte Educadora que mantinha vínculos com eles me tranquilizava frente às cenas inusitadas.

Ao passar a segunda grade, os jovens nos receberam calorosamente. Entramos em

uma sala lotada e no canto, em cima da bancada, dois internos cantavam músicas de RAP,

enquanto o restante do grupo delirava com o refrão. Os funcionários só acompanhavam de

longe, concomitantemente, fora da sala, um grupo de jovens tentava organizar o restante da

população, de fato era um Centro vivenciando um momento diferente.

Mais tarde conheci um dos jovens que estava cantando, era o Muralha92

, trocamos

algumas palavras e rapidamente ele quis me mostrar seu caderno com várias músicas de RAP

escritas. As letras eram boas, tinham uma leitura crítica interessante e o mais curioso é que

não existia oficina de RAP naquele Centro, Muralha trazia de fora dos muros seu talento

como rapper,

Meses se passaram e como estratégia para retomar a “ordem” no Centro de São

Bernardo, fora a intervenção do choquinho93

, algumas lideranças entre os jovens foram

transferidas para outros Centros de atendimento. Muralha foi para São Vicente, unidade que

eu acompanhava e que tinha RAP, além de graffiti e dança de rua.

Rapidamente Muralha se destacou nas oficinas de RAP e graffiti, tinha muita

facilidade para escrever músicas, cantar e manusear as latas de spray. Era um jovem

diferenciado na sua relação com estas linguagens artísticas. A cada seis meses, fazíamos uma

gravação de músicas selecionadas na oficina de RAP94

. Um estúdio contratado de Campinas

levava para a Fundação CASA de São Vicente um estúdio profissional móvel e quase por um

dia todo era realizada a gravação das músicas. Este processo tinha um grande apoio dos

profissionais do Centro.

Muralha gravou quatro músicas, uma delas sozinho e as restantes em parceria com

outro jovem. O sorriso estampado no rosto revelava um sonho realizado. O restante de sua

caminhada foi intenso como também o foi em São Bernardo, envolvendo-se em confusões,

participando das lideranças entre os jovens e destacando-se nas atividades de arte e cultura.

Em torno de um ano mais tarde, soube que Muralha ao fugir de um assalto foi

pego e morto pela polícia. Infelizmente, sem saber, o jovem, em uma de suas músicas,

cantando a realidade de vários parceiros, cantava a própria:

92

Para preservar o nome utilizarei o apelido. 93

Tropa de choque que entra em ação para conter as rebeliões nas unidades. 94

As músicas que foram gravadas com os jovens internos da Fundação CASA estão disponíveis em:

https://soundcloud.com/cedapcampinas/sets/arteiros_vol-5 .

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Perdi muitos parceiros que se foram à toa. A vida é cabulosa, pra muitos nada

importa, segue a Deus enquanto é tempo que seu fim será vitória, enterro é velas e

rosas no momento ninguém tá na hora, só sua coroa no dia de luto, chora, chora. Aí

vem, o sofrimento vem, o sentimento aí vem, pensamentos do seu filho que se foi e

tinha mó talento (MK.MURALHA, 2014).

Ouvindo as músicas de Muralha, surgem vários elementos que também aparecem

nas músicas de outros jovens internos, o primeiro deles é uma reflexão sobre a vida do crime,

compreendida como uma ilusão, há também a presença de falas sobre Deus, sobre o caminho

do bem e do mal, do pecado e da salvação, sobre a sociedade, a desigualdade social, a

politica. Mensagens críticas, como também positivas ou idealistas. Um trecho da música “Eu

quero te falar” expressa bem estes elementos:

O bem que conquistei mano eu vou levar comigo, chega de levar essa vida de

bandido, criança de dez anos tá brincando no parquinho, quando completa quinze tá

roubando mercadinho, sem Deus no coração o demônio o dominou, reverteu a sua

mente não é mais um morador. Tu que fazer uma pro crime menor? Toma jeito!

Você quer ganhar a fama ou quer ganhar conceito? Nos somos pobre, preto, afro,

obrigado! Honra nossa origem, conquista seu espaço! Não pago pau pra traficante e

nem pra bandido, meu ódio tá no sangue devido aos políticos, que não trás a

melhora para a sociedade, só que deixar um bando de preso atrás das grades. Aqui

meu microfone, preciso guerrear! Mendigo sem futuro não tem cama pra deita!

(FH.MURALHA, 2014).

Como dito anteriormente, as atividades de arte e cultura tem seus cerceamentos

institucionais. Não sairá em uma gravação a apologia ao crime organizado ou uma crítica

acirrada à Fundação CASA. Alguns jovens escrevem letras contendo estes temas, e na maioria

das vezes seguem o conselho do Arte Educador que lhes sugere modificações, afinal estas

letras podem trazer algum tipo de sanção aos jovens. Os jovens também se sensibilizam

quando o Arte Educador indaga qual mensagem eles querem passar para seus filhos e

parentes.

Esta proibição de alguns temas inviabiliza a força da oficina de RAP?

Curiosamente, ao escutar de novo as primeiras músicas que foram gravadas nesta

oficina de RAP, percebi que “vazou” conteúdos os quais receberiam censura posteriormente.

Até rememorei o momento em uma conversa de corredor, em que a Coordenadora Pedagógica

do Centro de Atendimento comentou, após uma apresentação interna na formatura da

Educação Profissional, que precisava das letras das músicas antes da gravação do próximo

CD porque alguns funcionários reclamaram do conteúdo.

Alguns trechos das letras dizem:

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A mente fica a milhão passando por esse tormento, e a família que eu amo carrego

no pensamento, e a revolta aumenta todo dia, aqui dentro opressão só atrasa e a

gente paga mó veneno, na disciplina fico firmão nesse contratempo, vou conquistar

a vitória anota aí o que eu tô dizendo, na profissão do RAP vou seguir com minha fé

vou levar adiante até onde Deus quiser (DEH.GUI, 2014).

As quatro primeiras músicas gravadas ainda possuem conteúdos que revelam a

existência de opressão dentro da Fundação CASA, porém, posteriormente, não mais.

Hoje estou firme e forte neste momento, porque sei que aqui é um suicídio lento,

aqui você não pode ficar de bobeira, falar que tá firme que nem prego na areia. O

que me alimenta, também me dá coragem, é ver os meus parceiros fechar na

lealdade, queremos expressar mano nessa melodia, então não vem com essa que eu

canto apologia! (BELO.MARKITO, 2014).

Outro trecho de uma música chamada “Pura Realidade” revela que alguns jovens

ainda chamam o espaço hoje da Fundação CASA de FEBEM, nome que carrega todo o peso

de uma estrutura contraditória e cheia de polêmicas:

Nesta vida pouco eu ganhei, dentro da FEBEM, só revolta e amargura conquistei, vi

que o diabo mora neste lugar, mais mesmo assim não deixei me levar, muitos

querem meu mal poucos querem meu bem, meu dia a dia é embaçado na FEBEM

(DNR.ANDER, 2014).

Através destes exemplos das músicas de RAP é possível observar que existe

dentro das oficinas de arte e cultura, por um lado, a potência que emana dos jovens,

produzindo e cantando sobre suas vidas, sobre a Fundação CASA, o crime, a política,

utilizando a música, a arte como uma forma de construção e expressão de si:

Juntando as palavras, libertando o pensamento, é o Rap Eficaz demonstrando

talento, humildade, sinceridade, dá mó saudade, e o meu desejo agora é ganhar a

liberdade, força de vontade inspiração que vem de dentro, em forma de canção a

gente expressa o sentimento (DEH.GUI, 2014).

E por outro lado, a tentativa de controle, censura e vigilância do que se diz, das

expressões destas vidas que por vezes escapam das malhas institucionais e, logo depois, são

capturadas por elas.

Não é apenas dentro das oficinas de RAP que estas relações de poder se

evidenciam, o colaborador Pedro ao contar sobre uma oficina em que pintou todos os jovens

de palhaços já de início aponta que:

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(...) A arte é transformadora ali, a partir do momento que o palhaço tá fazendo a

palhaçada, então ele quebrou, primeiro que não é o palhaço, não vai poder proibir, e

o menino tá fazendo a piada, então ele tá contando a piada de escorrer no tomate

atravessando a rua, enfim fizemos um número de palhaço, as coisa mais babaca que

existe no mundo e eles adoraram (p.76).

Quando se fala de palhaço dentro da Fundação CASA, os olhos estalam pois

existe uma grande reprodução dos desenhos de palhaço feito pelo crime organizado, um

palhaço agressivo e, na maioria das vezes, com o significado de matador de policial. Pedro,

buscando a diversão, a risada, a brincadeira, utilizava a dubiedade deste personagem que

existe dentro da Fundação para provocar por alguns momentos o impensável:

(...) Esquecer completamente que eu to trancado aqui, que tem um funcionário me

olhando, que se eu ri me olha feio porque eu to rindo, e riram se divertiram,

brincaram, fizeram palhaçada, se pintaram e no final a gente se limpou e foi todo

mundo pro pátio tranquilo sossegado e os outros me cobrando porque não tinham se

pintado tanto quanto os outros (p.76).

No que parece ser o mais simples, vestir-se de palhaço e fazer “palhaçadas”, a

atividade de teatro possibilitou a dignidade do vestir-se sem estar igual aos outros como no

dia a dia95

, fez os jovens experimentarem um outro tipo de palhaço que, ao esquecerem a

vigilância constante, se permitiram o absurdo: rir.

A colaboradora Thalita ao desenvolver oficinas de literatura marginal, no ápice de

seu trabalho com os jovens produziu uma coletânea de textos organizados em uma revista. No

entanto, a revista não foi publicada, os textos continham denúncias de diversas ordens acerca

da Fundação CASA. No encontro com o limite imposto, a Arte Educadora criou suas vias de

desvio:

E aí, essa revista ser censurada, nossa, me inquietou muito assim, aí eu imprimi em

preto e branco e saí nos “saraus” do ABC , distribuindo a literatura dos meninos,

levando um amigo junto comigo e dando para eles lerem, porque eu estava

indignada com as produções, que estavam muito boas e não ia sair de lá de dentro

né? Aí eu comecei a fazer esse movimento nessa brisa assim mesmo (p.108)

95

Todos os jovens internos possuem uniformes idênticos.

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São diversos os exemplos dentro das oficinas de arte e cultura que evidenciam as tensões

destas relações de poder. A força, a criatividade, a potência das expressões ali construídas

pelos Arte Educadores junto com os jovens a todo instante estão a mercê de uma captura.

Cercados, resistem às tentativas de assujeitamento, procurando através da música, da tinta, da

escrita, do palhaço, deixar fluir, deixar escapar das grades a força da vida:

Quando parece que “está tudo dominado”, como diz um rap brasileiro, no extremo

da linha se insinua uma reviravolta: aquilo que parecia submetido, controlado,

dominado, isto é, “a vida”, revela no processo mesmo de expropriação, sua potência

indomável (PELBART, 2008, p.2).

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Cercados por todos os lados: vidas potentes criam seus caminhos.

A contraditória instituição Fundação CASA foi o grande ponto de encontro para a

realização desta dissertação. Da pergunta inicial da pesquisa, tentando compreender como

garantir com qualidade a realização das atividades de arte e cultura até a formulação que

indaga a possibilidade da arte funcionar como resistência, como potência na história de vida

dos Arte Educadores e só foi possível pelos encontros dentro destes espaços cercados por

todos os lados.

Em uma progressão lenta, a discussão sobre a Fundação CASA vem ganhando

espaço, porém são muitos os entraves. Mesmo vivenciando o dia a dia da instituição, temos

apenas flashes, ângulos de relações que disputam palmo a palmo discursos, verdades e

controles.

As entrevistas com os Arte Educadores, através da metodologia da História Oral

de Vida, criam fissuras nestes muros, alternativas para a história oficial:

O teor transformativo da história oral decorre de inconformidades e da necessidade

de exibir o “outro lado da questão”. Para se justificar, enquanto motivos de luta ou

de afirmação social, tanto se fazem imperiosos os argumentos subjetivos dos grupos

oprimidos como o enfrentamento com os temas consagrados. A dinâmica histórica,

o processo de mudanças, depende substancialmente da vida dos participantes

(MEIHY, 2011, p.40).

Colocar em cena o “outro lado da questão”, possibilita contribuir para a

discussão pública sobre uma instituição marcada historicamente por tantas polêmicas, além de

trazer outros olhares para o debate sobre juventude, conflito com a lei e medidas

socioeducativas.

Dentro e fora destes espaços o biopoder atua incessantemente. Foi dentro deste

campo minado que se investiu na busca por compreender a arte como potência, como

resistência.

Nas histórias de vida dos Arte Educadores, na minha experiência como

Coordenador Regional e nos trabalhos feitos pelos jovens internos durante as oficinas de arte

e cultura, a arte apareceu como uma potência de vida, biopotência resistindo às ofensivas de

um poder que busca a todo instante a submissão, o assujeitamento.

Uma potência capaz de criar novas formas de existência, de expressão de si,

“vitalidades insubordináveis” que pulsam dentro de campos em disputa e que, longe de serem

estáticos, fixos, se movimentam constantemente, são dinâmicos, são relações de poder.

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Tal inteligência, tal potência de vida disseminada por toda parte nos obriga a

repensar os próprios termos da resistência. Poderíamos resumir tal movimento do

seguinte modo: ao poder sobre a vida responde a potência da vida, ao biopoder

responde a biopotência, mas esse “responde” não significa uma reação, já que o que

se vai constatando é que tal potência de vida já estava lá desde o início. A vitalidade

social, quando iluminada pelos poderes que a pretendem vampirizar, aparece

subitamente na sua primazia ontológica. Aquilo que parecia inteiramente submetido

ao capital, ou reduzido à mera passividade, a “vida”, aparece agora como

reservatório inesgotável de sentido, manancial de formas de existência, germe de

direções que extrapolam as estruturas de comando e os cálculos dos poderes

constituídos (PELBART, 2008, p.2).

As atividades de arte e cultura selaram estas relações. Um núcleo comum ligou

em diferentes tempos e momentos, pesquisador, Arte Educadores, jovens e alguns outros

atores. Ainda que o objetivo principal dos Arte Educadores se fundamente no cumprimento da

medida socioeducativa de internação, é o encontro e a conexão de universos diferentes que

reverberam e trazem à tona ricas histórias de vida.

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Anexos

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Memorial

Sentado em frente ao computador, no escritório, começo a escrita deste memorial.

Este mesmo lugar já foi meu quarto, e ainda antes de ser meu quarto foi outro escritório.

Enquanto penso em minhas próximas palavras a serem escritas, minha companheira, no

quarto, preocupada, trabalha através do WhatsApp. Alguns anos atrás aflita, minha irmã, no

quarto ao lado, planejava seu casamento. Quatro anos antes, minha mãe chegava do trabalho

todo dia útil por volta das 17h00. Aos dez anos meu pai, no mesmo quarto em que minha irmã

planejava o casamento, me acordava cinco e meia da manhã para eu pegar o ônibus com

destino à escola.

Sempre morei na mesma casa. Natural de Campinas, vivo no Jardim Conceição há

trinta e um anos. Os caminhos, vielas, bairros vizinhos, mercados, comércios, estradas, estão

enraizados na minha memória, percorridos a pé, de bicicleta, patins, ônibus e carro, aqui é

conhecido, um lugar de muitos sentidos, capaz de provocar “afectos”.

Tive uma infância bastante agitada. Nas ruas paralelas a da minha casa havia

muitas crianças da minha idade, tanto que quando juntava todo o grupo, dava mais de 25

crianças. Curiosamente, hoje não tem crianças brincando na rua, algo impensável na época de

minha infância.

As brincadeiras eram parte deste cotidiano, pega pega, esconde-esconde, carrinho

de rolemã, pipa, futebol, vôlei, bolinha de gude, bicicleta, videogame, jogos de tabuleiro,

foram extensas as formas de brincar. Como também foram as tentativas de transgredir,

jogando ovo na casa de vizinhos, soltando bombinhas em caixas de correio, atirando feijão

com a “arma” de feijão (feita de rolo de papel higiênico e bexiga) nas pessoas que passavam

de carro, enquanto estava escondido no topo de árvores, apagando as luzes de todos os postes

com caneta de laser, dentre outras molecagens.

Ainda como parte deste cenário, o “agredir” compunha a cena. Na rua, como eu

era uma das crianças mais novas, logo mais fraca fisicamente, eu sempre apanhava dos mais

velhos. Nessas trocas de socos, chutes e tapas, não havia necessariamente uma justificativa,

qualquer situação era propicia para que alguém evidenciasse, através da força, ser mais forte.

No entanto, na escola a situação se invertia, eu era o maior da turma logo,

reproduzia o que vivenciava na rua só que, nesse espaço, eu era o valentão. Até a oitava série

várias advertências e suspenções foram assinadas por minha mãe. Eu era o aluno que tirava

notas regulares, sentava no fundo, atrapalhava a vida dos professores e causava medo nos

outros alunos.

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Em casa sempre teve muitos livros, meus pais compravam sempre, então eram

várias estantes com o mais variado acervo. Livros de espiritismo, psicologia, literatura

nacional, internacional, livros de yoga, computação, filosofia e por aí vai. Na infância eu lia

mais os livros pedidos pela escola, no entanto, este tesouro caseiro seria descoberto na

adolescência.

Até a oitava série, estudei em escola particular cara, fora dos padrões financeiros

de minha família, pois meus pais priorizavam o que consideravam um ensino de qualidade em

detrimento de “luxos” em outras esferas da vida. A maioria de meus amigos, que em parte são

os mesmos até hoje, possuía uma condição financeira bem maior do que a minha, tanto que

sempre tinham brinquedos, computadores e outras posses antes do que eu ou tinham coisas

que eu nunca cheguei a ter.

No entanto, neste período meu pai perdeu o emprego gerando uma dificuldade

financeira pesada. Tive de sair da escola e cursar o ensino médio em uma escola ainda

particular, porém bem mais barata. Nessa escola, fiz o ensino médio e o técnico em

Publicidade e Propaganda por influência de um amigo que também teve que sair da outra

escola e escolheu este curso.

Foi uma época muito difícil, pois eu tinha e ainda tenho uma relação afetiva muito

grande com estes amigos, lembro que por diversas vezes eu sonhava que estava voltando para

a escola antiga, porém isto nunca ocorreu.

Na nova escola, curiosamente, eu era um dos “melhores” alunos da sala de aula.

Situações anos antes impensáveis agora ocorriam com frequência como passar cola, ser o

representante da sala, ser um dos primeiros escolhidos em grupos de trabalho dentre outros.

Nesta época, a pressão para decidir “o que você vai ser quando crescer”

aumentou, e a escolha de um curso de ensino superior era necessária e iminente. Pela

trajetória educacional de meus pais era “natural” terminar o ensino médio e ingressar em uma

faculdade.

Minha única irmã é cinco anos mais velha e sempre, desde nova já sabia que iria

fazer Direito para ser promotora de justiça, o que de fato se concretizou. Na contramão, eu

sempre tive dúvidas sobre minha escolha profissional, por muito tempo tive a certeza de que

faria psicologia tal qual minha mãe, porém, no ensino médio tive uma professora de história

que me cativou muito para esta área.

Quando chegou a época do vestibular, por conta de meu ensino ter sido defasado

nas matérias de núcleo comum do ensino técnico, resolvi prestar História como teste e caso

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não passasse, no ano seguinte ao cursinho decidiria qual curso prestar. Passei em História na

Unesp de Franca.

Nesta mesma época, meus pais se separaram. Minha mãe, eu e minha irmã

ficamos em nossa casa, enquanto meu pai foi morar com minha avó, com quem vive até hoje.

Esta foi a primeira de uma sequencia de mudanças que vivi no espaço desta casa.

Em 2005, me mudei para Franca. O primeiro ano da faculdade é intenso, são

novas amizades, festas quase todo dia da semana, a experiência de morar em república, o

início de uma graduação. Aprender a cozinhar foi uma das grandes conquistas deste período

inicial, lembro-me de um colega de república me ensinando a cozinhar feijão, era necessário

aprender a se virar.

Na metade do curso, a sombra do Trabalho de Conclusão de Curso, ou o famoso

TCC começa a pairar sobre os alunos da graduação. Sempre tive bastante dúvida do que

escolher para estudar, afinal as áreas de conhecimento são vastas e dentro da história isto se

amplia, o exercício de escolher um recorte no tempo e espaço dentro desta disciplina foi

desafiador.

A princípio me identifiquei bastante com a Teoria da História, no entanto, a

professora desta matéria me desestimulou ao dizer que esta área não era para graduandos.

Infelizmente, não tive o discernimento na época para saber que existem outras possibilidades

dentro da teoria da história para além da porta fechada pela professora.

A História Oral não tinha muito espaço na Unesp de Franca, pelo contrário, sua

legitimidade era bastante questionada sendo olhada com desconfiança pelas alas mais

tradicionais do curso.

Enveredei pela História do Brasil, mais especificamente a época da mudança da

corte portuguesa para cá em 1808. Meu TCC intitulado “As Manifestações sobre o Tratado de

1810 entre Grã-Bretanha e Portugal: O Pensamento Plural no Império Luso-Brasileiro” foi

prazeroso como primeira experiência de pesquisa. Para compor o estudo da bibliografia fui a

USP algumas vezes consultar livros raros e que só podiam ser acessados na biblioteca, foi

interessante.

Próximo ao término da faculdade, decidi buscar o Mestrado como sequência.

Conversando com a minha orientadora do TCC, entendemos que era melhor eu concorrer a

vaga no ano seguinte, tendo um tempo maior para estruturar com mais qualidade meu projeto

de pesquisa. Logo, ao terminar os quatro anos de graduação, eu continuei em Franca

preparando-me para ingressar no Mestrado.

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Neste mesmo ano, em 2009, eu comecei a trabalhar como professor de história em

escolas públicas do município de Franca. Como não era concursado, esperava sair no site da

diretoria de ensino toda quinta feira uma relação de aulas vagas para concorrer e

possivelmente assumir. Consegui aulas em uma escola afastada do centro, eram quatro aulas

para a quinta série, posteriormente aumentei a grade com aulas de sociologia.

Foi uma grande experiência. Primeiro para ter certeza de que as matérias de

licenciatura e o estágio vivenciado na faculdade não propiciaram base alguma para os desafios

enfrentados em salas de aula com cinquenta crianças de dez anos. A realidade é que, na maior

parte das vezes, eu estava razoavelmente perdido, por vezes, coloquei para fora da sala

crianças por “indisciplina”, anotei em cadernos de ocorrência seus atos, me culpei por não

conseguir a atenção de todos. A Educação Formal pública é uma engrenagem difícil e fazê-la

funcionar é desafiador.

Esta experiência foi breve, seis meses. Minha futura orientadora do Mestrado,

após alguns exames, soube que estava com câncer e se afastou da faculdade. Não havia mais

sentido morar em Franca sem esta possibilidade, logo, na metade do ano, retornei para

Campinas, procurando novos rumos para minha vida.

Decidi que até o término de 2009 estaria focado nos estudos para entrar em

algum concurso como professor de história. Foi um período difícil. O “vazio” pós faculdade e

o desemprego eram como bigornas comprimindo meu corpo, a pressão exercida por minha

família também contribuiu para o cenário piorar. Fiquei doente por várias vezes neste período,

doenças que o médico do posto de saúde ficava impressionado por não serem tão comuns

como, por exemplo, coscondrite.

Comecei a procurar empregos em diversas áreas ao mesmo tempo em que

estudava para concursos. Em Dezembro de 2009, apareceu uma vaga de Educador Social para

um projeto destinado a adolescentes. Honestamente, não sabia quase nada desta área,

felizmente sabia que deveria tentar e, então, em 2010, comecei a trabalhar no projeto

“Protejo”, que na realidade é o PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com

Cidadania.

Este projeto tinha a assessoria do NTC (Núcleo de Trabalhos Comunitários) da

PUC-SP. Toda sexta feira, durante um ano, os profissionais do projeto se reuniam com este

grupo da PUC-SP para conversar sobre as experiências vividas, realizar planejamentos e

formações. Foi muito rico. Os espaços de planejamento eram bastante democráticos sendo

que muitas vezes praticamente remontávamos a apostila de atividades trazida pelo NTC após

várias reflexões sobre os temas propostos.

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Através deste projeto comecei a conhecer mais da cidade de Campinas, para

além das regiões que aparecem na TV. Fui trabalhar no Campo Grande, zona noroeste da

cidade descobrindo que a avenida John Boyd Dunlop não termina na PUC, ela continua por

pelos menos mais trinta minutos de carro e existem bairros tão distantes do centro que as

pessoas quando vão ao centro dizem “eu vou lá para Campinas”.

O projeto foi muito bom, a aproximação com os adolescentes e as discussões

de temas como sexualidade, meio ambiente, cidadania e outros propiciou vínculos

importantes. Na sua execução, abrangendo o âmbito municipal, foi um projeto bastante

desorganizado, faltando planejamento para coloca-lo de maneira mais coerente na prática, no

entanto, foi uma excelente experiência.

Com seis meses trabalhando como Educador Social fui convidado para ocupar

a função de Coordenador do Projeto. Eu estava com vinte e cinco anos. Olhando hoje,

obviamente não era um cargo que eu deveria ter aceitado devido à minha inexperiência na

área e também pela minha idade, no entanto, na época eu aceitei.

Esta função me possibilitou uma aproximação com a Prefeitura Municipal de

Campinas principalmente com a Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência e Inclusão

Social – SMCAIS. Foram diversas reuniões no décimo segundo andar da Prefeitura

possibilitando-me olhar mais de perto o funcionamento de algumas políticas públicas.

Ao mesmo tempo em que o projeto estava se encerrando, minha mãe faleceu.

Era Janeiro de 2011. Em uma visita ao meu tio na cidade de Goiânia-GO ela teve um ataque

cardíaco. Não há muito que escrever sobre isto, foi um período difícil. Eu e minha irmã

continuamos morando juntos.

Pouco mais de quinze dias após o término do “Protejo” consegui uma vaga

como Educador Social na ONG CEDAP (Centro de Educação e Assessoria Popular). O

projeto chamado “Firmeza” atendia crianças e adolescentes vitimas de exploração sexual

comercial.

Foi um trabalho bastante desafiador. Organizei grupos com adolescentes, na

maioria mulheres, e neles conversávamos sobre os mais diversos temas, fazíamos também

trabalhos manuais, eram estratégias para conseguir criar um vínculo possibilitando

aproximações das situações de violência vivenciadas por eles.

No final do ano (2011), exatamente no dia do meu aniversário, metade da

equipe foi desligada por corte de verba. A Prefeitura de Campinas considerava que a região

leste não tinha tantos casos de exploração sexual comercial envolvendo crianças e

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adolescentes, o que era uma falácia. Foi um duro golpe que me mostrou como é instável a

política pública executada por ONG´s.

Após um ano e meio no “Firmeza” fui chamado pelo concurso do Estado para

assumir a vaga de professor de história. Fui para São Paulo levar exames médicos e fazer toda

a tramitação para regularizar o processo. No entanto, concomitantemente, surgiu a

possibilidade de eu assumir a função de Coordenador Regional do Projeto Arteiros executado

também pelo CEDAP.

No dia de assumir o cargo de professor de história, eu simplesmente “esqueci”

a data e perdi o cargo. Nesse momento, uma escolha estava sendo feita, e nela ser professor de

história em escola estava fora de cogitação.

Assumi a vaga como Coordenador Regional no projeto Arteiros. Este projeto

trabalha levando arte/cultura para os adolescentes que cumprem medida socioeducativa de

internação na Fundação CASA. O CEDAP desenvolvia suas ações em mais de vinte e cinco

centros de atendimento. Minha zona de ação estava nas unidades do litoral sul, atendendo

Mongaguá, Praia Grande, São Vicente, Santos e Guarujá.

Um dos pré-requisitos para esta vaga era ter carteira de motorista e obviamente

saber dirigir. Eu tinha a carteira desde os dezoito anos, porém não dirigia. Quase as vésperas

de assumir a função eu corri para fazer aulas de direção com um amigo. Na realidade, já

dentro do projeto que eu fui reaprender a dirigir sendo auxiliado por outro coordenador

regional que teve sua vida em risco por vários momentos.

Fiquei dois anos e meio neste projeto e diversas reviravoltas ocorreram neste

meio tempo com início em Setembro de 2012. Minha irmã se casou e foi morar com o

marido, causando uma nova configuração na mesma casa que sempre morei só que agora,

sozinho. Comecei a namorar a minha atual companheira.

Sem se alongar nas entranhas da Fundação CASA, o edital que regula a

parceria da ONG CEDAP com o Estado de São Paulo é de cinco anos sendo renovado

anualmente. Quando escolhi mudar de trabalho, isto foi levado em conta, ou seja, procurei um

trabalho em que poderia planejar ações para minha vida em médio prazo, pois sabia que a

maioria dos trabalhos em ONG´s é instável e os projetos curtos, com duração de um ano.

Neste caso não foi diferente. Após um ano e meio de trabalho, houve um corte

financeiro. Procurando reduzir custos, a Fundação CASA retira as ONG´s das UIP´s

(Unidades de Internação Provisória), alegando que os próprios profissionais concursados

executariam as atividades de arte e cultura. Sabíamos que, no final das contas, os prejudicados

são os jovens, como sempre é a população quem perde nos ajustes financeiros.

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Devido a esta alteração, tive de desligar metade da equipe. A tarefa mais difícil

na coordenação é desligar alguém. Agrava-se quando você conhece onde as pessoas moram,

sabe da vida delas, se envolve e se afeta. Tem que ser assim, não saberia ser um coordenador

distante e burocrático. Outro elemento complicador, desligar pessoas do dia para a noite por

conta de corte de verba. A não ser que já estejam dando “mancada” as pessoas não esperam

ser desligadas, logo, ser portador de uma notícia tão impactante mexe profundamente.

É dentro deste contexto que eu começo a elaborar o projeto de pesquisa que

possibilitou a entrada no Mestrado. A garantia do direito a cultura (e a arte) no espaço da

Fundação CASA é permeada por entraves, complicações e dificuldades. O projeto aprovado

buscava compreender estes impasses na tentativa de garantir este direito dos jovens.

Ingressei no Mestrado em 2014 sendo orientado pela Profa. Dra. Áurea M.

Guimarães. Já de início, não tive a intenção de solicitar bolsa de estudos, uma vez que o valor

pago não alcançaria minha necessidade financeira, então, a única possibilidade foi estudar e

trabalhar ao mesmo tempo, projetando o prazo máximo para a defesa.

Nos dois primeiros anos, fiz as quatro disciplinas necessárias para cumprir os

créditos, uma por semestre. Como a maioria das aulas no curso de Pós-Graduação da

Faculdade de Educação são ministradas no período da tarde, não tive a possibilidade de

conciliá-las com o meu trabalho de 40 horas semanais, aumentando, portanto, o tempo de

permanência no mestrado.

As disciplinas cursadas foram “Michel Foucault e a Filosofia da Educação”

ministrada pelo professor Sílvio Donizete de Oliveira Gallo; “Arte, Psicologia e

Conhecimento” ministrada pela professora Ana Angélica Medeiros Albano; “História Oral

nas Pesquisas sobre Violência e Juventude” ministrada pela professora Áurea Maria

Guimarães, pela professora convidada Fabíola Holanda e pela doutoranda Susy Cristina

Rodrigues e por fim a disciplina “Arte, Psicologia e Educação” novamente com a professora

Ana Angélica Medeiros Albano.

A escolha das disciplinas foi sempre dialogada com a Profa. Áurea me

auxiliando a ter melhor clareza e assertividade para manter uma certa coerência com o

andamento da pesquisa. Elas foram de grande valia, cada uma abarcando uma esfera da

pesquisa e para, além disto, como formação integral do ser humano.

A disciplina ministrada pelo Prof. Sílvio Gallo foi importante para melhor

conhecer e aprofundar olhares acerca dos conceitos trazidos por Michel Foucault,

principalmente em suas últimas obras quando trata da ética e do cuidado de si. Estas aulas são

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muito esperadas pelos alunos, gerando uma sala lotada e, a meu ver, prejudicando a

possibilidade de um melhor aproveitamento dos textos e dos debates.

As duas disciplinas ministradas pela Profa. Ana Angélica Medeiros Albano

foram muito especiais para mim. Com um grupo menor de alunos é possível respeitar as

individualidades e fortalecer o grupo, claro que isto é mérito da mediação proporcionada pela

professora.

Em toda a aula havia dois textos, um “acadêmico” e outro de literatura. Todos

sentados no chão em roda. Ouvir as sensações, opiniões e vontades dos integrantes do grupo

era prioridade e feito de uma maneira leve e descontraída. A criação de um ambiente que

fortalece a sua voz, a sua singularidade, foi uma das coisas mais importantes vivenciadas

nestas duas disciplinas.

Os conceitos trazidos por Jung e autores que dialogam com ele foram

importantes no processo da minha formação uma vez que aprendi com eles a ir “além dos

textos”. Infelizmente, nem todas as disciplinas têm essa potência.

Por fim, a disciplina ministrada pela Profa. Áurea Guimarães (e convidadas) abriu

o horizonte para a História Oral. Penso que, de todas as disciplinas cursadas, esta teve mais

sinergia direta com minha pesquisa. Foi evidente o cuidado em sua estruturação, abordando

diversos eixos da História Oral, possibilitando tanto ao iniciante como a alguém mais

experiente no tema aproveitar as discussões realizadas.

O capítulo dois de minha dissertação é fruto dessa disciplina. Imagino que sem ela

não conseguiria alcançar as reflexões expostas no diálogo com a História Oral.

Gostaria de ressaltar que houve muito carinho na preparação das aulas, cada uma

trazia uma maneira diferente de se abordar os temas, seja através de dinâmicas, grupos,

exposição, debate, gerando uma interatividade muito positiva dentro da sala de aula. Todos

os alunos que conversei trouxeram uma avaliação muito positiva da disciplina.

As orientações com a Profa. Áurea foram de suma importância para avançar nos

nós que surgem ao se desenvolver uma pesquisa. Nos momentos em que fiquei inseguro,

afoito com o andamento do trabalho sempre foi possível uma troca que me tranquilizasse para

seguir nesta caminhada. Também foram realizadas algumas orientações coletivas com os

orientandos do Mestrado e do Doutorado. Esta experiência foi excelente! Vários olhares e

ângulos criaram um ambiente interessantíssimo para nos aprofundarmos em nossas pesquisas.

Infelizmente, não pude participar de muitas palestras, cursos e das reuniões do

grupo de pesquisa VIOLAR por conta da dinâmica da minha vida profissional. Também não

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consegui escrever nenhum artigo o que me deixa desapontado, mesmo entendendo o contexto

no qual estou realizando o Mestrado.

Em 2015, sai do projeto Arteiros e da ONG CEDAP. Houve mais um corte

orçamentário na Fundação CASA e era necessário desligar metade da equipe, inclusive

coordenadores regionais. Como já estava cansado da rotina de viagens, de questões

institucionais e de cortes recorrentes, pedi para ser o coordenador desligado.

Logo na sequência, trabalhei três meses como Educador Social na ONG SETA e

voltei ao cargo de coordenação, agora no projeto Circolando, no Instituto Padre Haroldo, onde

estou até hoje.

Na metade de 2016, solicitei o trancamento da matrícula durante um semestre, por

conta do trabalho e de uma situação de saúde vivenciada pelo meu pai. Contando um pouco

da minha história e centrado nesses últimos três anos da minha vida, ficou claro para mim que

as mudanças no campo pessoal e profissional influenciaram diretamente no ritmo do

Mestrado, no entanto, esta foi a via possível para a sua realização.

Diversos caminhos foram percorridos, por vezes rotas precisaram ser criadas, por

vezes alteradas. Para além de textos, aulas e créditos foi no contato com pessoas dispostas a

construir junto, afetivamente, com responsabilidade de educadores que foi possível realizar

esses trajetos dentro do Mestrado. Sou profundamente grato.

Toda obra comporta uma pluralidade de trajetos que são legíveis e coexistentes

apenas num mapa, e ela muda de sentido segundo aqueles que são retidos. Esses trajetos

interiorizados são inseparáveis de devires. Trajetos e devires, a arte os torna presentes uns

nos outros; ela torna sensível sua presença mútua e se define assim, invocando Dionísio

como o deus dos lugares de passagem e das coisas de esquecimento.

(DELEUZE, 1997 , p. 79)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997

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CARTA DE CESSÃO

Eu____________________________________________________________________,

R.G. n°____________________________, declaro aprovar a transcrição do depoimento oral

que concedi a Daniel Elias de Carvalho, R.G. 44.029.053-3, Mestrando em Educação da

Faculdade de Educação da Unicamp, em 25/03/2015 e cuja gravação foi de 58 minutos e 05

segundos.

Aprovo que o texto anexo, por mim conferido e validado, possa ser utilizado para fins de

estudos acadêmicos e culturais no âmbito da educação.

Estou ciente de que o material gravado em áudio, para coleta da minha história oral de vida,

será arquivado por tempo indeterminado, na UNICAMP – Universidade Estadual de

Campinas, na biblioteca da Faculdade de Educação, no formato de CD-Rom, e em formato de

texto, material este presente dentro da dissertação de Mestrado de Daniel Elias de Carvalho,

aluno regularmente matriculado nesta instituição.

Também declaro:

( ) Autorizar a identificação do meu nome como um(a) dos(as) colaboradores (as) da

pesquisa.

( ) Não autorizar a identificação do meu nome como um(a) dos(as) colaboradores (as) da

pesquisa.

_______________________________________

Assinatura

Data: ______/______/______