Daniel Guimarães Zveibil - Considerações Sobre a 'Nova' Vedação Do Habeas Corpus Substitutivo...

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Vedação sobre o HC substitutivo de recurso.

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  • Consideraes sobre a nova vedao do habeas corpus substitutivo de recurso

    Daniel Guimares Zveibil

    Mestre em Direito Processual Civil pela USP.

    Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual IBDP. Defensor Pblico do Estado de So Paulo

    Resumo: O estudo se deu em razo de equivocada deciso da 1. Turma do STF que ressuscita o ato institucional n. 06/69 do Regime Militar de 1964,

    tentando pr fim a antiga e venervel tradio de nosso direito constitucional que consente impetrao de habeas corpus substitutivo de recursos.

    Abordando questes histricas, jurdicas, e polticas, o presente estudo se viu obrigado a enfrentar a questo da natureza jurdicado habeas corpus,

    propondo que sua prtica consolidada no mbito forense e seu regramento jurdico so incompatveis ao sistema das aes: situao que repele todas as

    criaes jurisprudenciais voltadas para obstruo do habeas corpus, e que abre uma via inexplorada para novos estudos do remdio heroico fora do

    sistema das aes.

    Palavras-chave: habeas corpus; Imprio; Repblica; ato institucional; recursos; direitos humanos; funo social do habeas corpus; interveno

    poltica; direito de ao; Supremo Tribunal Federal.

    Abstract: The idea of writing this paper started when a panel (the first group) of the Supreme Court wrongly revived institutional act n. 06/69 from the

    1964-Brazilian dictatorship regime, a decision which tries to put an end to the old and respectable tradition of our constitutional law which allows for

    the petition of an habeas corpus instead of appeals. By studying historical, legal, and political issues, this paper found itself forced to address the legal

    nature of the habeas corpus proposing that its consolidated practice in the forensic realm, as well as its legal regulations are incompatible with the

    system of actions: a situation which repeals all jurisprudential creations aimed at the obstruction of the habeas corpus and which opens a path, not yet

    explored, for new studies of the heroic remedy outside the system of actions.

    Key words: habeas corpus; empire; republic; institutional act; appeals; human rights; habeas corpus social function; political intervention; right of

    action; Brazilian Supreme Court.

    Sumrio: 1. Introduo: incio de uma reviravolta jurisprudencial no STF 2. Posies invertidas: as portas dos tribunais do Imprio abertas para o HC; o cerramento pelo formalismo autoritrio da Repblica do sculo XXI 3. Tudo est em ordem ou estudo das causas 4. O argumento da falta de previso do habeas corpus substitutivo na Constituio Federal de 1988: a letra mata, o esprito vivifica 5. Habeas corpus vs. recursos extraordinrio (STF) e especial (STJ): violao da jurisprudncia internacional de direitos humanos 6. Afrouxamento da efetividade da jurisprudncia dos Tribunais Superiores: deteriorao da prestao jurisdicional 7. Funo social do habeas corpus na realidade do Brasil do sculo XXI e a responsabilidade do STF 8. Duplicando o trabalho dos Tribunais Superiores? 9. Precluso e poltica processual: o louvor da 1. Turma do STF ao esprito do CPP do Estado novo 10. Natureza jurdica do habeas corpus: leo de p de trono? ou leo de verdade? 11. Novos rumos 12. Ressurreio do Ato Institucional 6/69: conscincia insciente e decadncia de nossa cultura jurdica 13. Aqui no h lugar para o simples rbula dos sertes; dever da Defensoria Pblica 14. Nada como um dia aps o outro: emerge a esperana.

    1. Introduo: incio de uma reviravolta jurisprudencial no STF

    Uma guinada jurisprudencial das mais relevantes da histria jurdica brasileira, que est em andamento no STF, fez-nos lembrar sria advertncia: O

    pior da ditadura, j o disse em outra ocasio, no o que durante ela se padece; o que dela se herda.2 A maioria da 1. Turma do STF, em 7 de agosto de 2012, negou histrica jurisprudncia do prprio Supremo ao deixar de admitir habeas corpus impetrado como substitutivo de recurso

    ordinrio3 sob o argumento, em apertadssima sntese, de que a prtica do habeas corpus substitutivo burlaria o sistema recursal previsto na

    Constituio.4

    Esta deciso proferida no HC 109.956/PR j est sendo reproduzida pela mesma Turma em outros casos,5 alm de granjear adeso unnime da 5.

    Turma do STJ conforme se v no inteiro teor do HC 239.550/RJ, a qual, abonando a linha argumentativa exposta no leading case da 1. Turma do STF,

    ressaltou que este novo cenrio a nova deciso do STF impunha a necessidade premente da reformulao da admissibilidade da impetrao originria tambm neste Superior Tribunal de Justia, adequando-se nova orientao da Suprema Corte, em absoluta consonncia com os

    princpios constitucionais, mormente os do devido processo legal, da celeridade e da economia processual e da razovel durao do processo, a fim

    de que no seja conhecido o habeas corpussubstitutivo do recurso ordinrio, sem prejuzo de, eventualmente, se for o caso, deferir-se a ordem de

    ofcio, nos feitos em andamento.

    Consultando-se, porm, os votos registrados na guinada jurisprudencial que se iniciou, com todo o respeito no se v uma nesga da profundidade que

    se espera de um Tribunal que d a ltima palavra em matria constitucional; especialmente quando se nota que o tema em pauta nesta reviravolta

    simplesmente uma das pedras fundamentais de todo o mundo livre, e que o resultado da nova interpretao liderada pela maioria da 1. Turma do STF no passa de ressurreio de tese jurdica sustentada abertamente pelo Regime Militar de 1964 no auge de seu perodo mais crtico. Vejamos, a

    propsito, os principais argumentos da maioria da 1. Turma do STF que justificariam a mudana jurisprudencial:6

    1) a competncia do STF submete-se a regime de direito estrito,7 no comportando a possibilidade de ser estendida a situaes que extravasem os

    limites fixados e, portanto, o uso do habeas corpus como substitutivo do recurso ordinrio burla o sistema recursal prescrito na Constituio Federal;

    em uma palavra, o habeas corpus substitutivo de recurso no est previsto na Constituio;8

    2) o habeas corpus substitutivo de recurso ordinrio, fruto da construo jurisprudencial, foi admitido em poca que no havia sobrecarga de processos

    hoje notada no STF e no STJ, razo pela qual os dois Tribunais esto com um nmero muito alto de habeas corpus, e tal desvirtuamento do habeas

    corpus tem efeito grave nos Tribunais Superiores, diante das funes precpuas quer do Superior Tribunal de Justia a ltima palavra na interpretao da lei federal e da Suprema Corte a guarda da Constituio;

  • 3) a prevalncia do entendimento de que o Supremo Tribunal Federal deve conhecer de habeas corpus substitutivo de recurso contrasta com os meios

    de conteno de feitos, remota e recentemente implementados: smula vinculante e repercusso geral, com o objetivo viabilizar o exerccio pleno, pelo

    Supremo Tribunal Federal, da nobre funo de guardio da Constituio da Repblica;

    4) queixam-se os Ministros, ainda, de que o habeas corpus no Brasil seria utilizado de maneira desvirtuada tambm pelo fato de no atacar somente

    prises, porm, diversos tipos de nulidades com reflexos no direito de ir e vir, banalizando o habeas corpus;

    5) a inadmissibilidade do habeas corpus substitutivo de recurso ordinrio no causaria prejuzo a qualquer paciente, pois que continuaria possvel a

    concesso da ordem, se o caso, de ofcio, nos remdios heroicos pendentes;

    6) o uso do habeas corpus substitutivo de recurso abre ensancha para a m-f processual, pois, nas palavras do Ministro Marco Aurlio: cmodo no interpor o recurso ordinrio quando se pode, a qualquer momento e considerado o estgio do processo-crime, buscar-se infirmar deciso h

    muito proferida, mediante o denominado habeas corpussubstitutivo, alcanando-se, com isso, a passagem do tempo, a desaguar, por vezes, na

    prescrio.

    2. Posies invertidas: as portas dos tribunais do Imprio abertas para o HC; o cerramento pelo

    formalismo autoritrio da Repblica do sculo XXI

    Bem nos recordam Paulo Bonavides e Paes de Andrade que o esquecimento o adubo da tirania,9 sobressaindo, portanto, a importncia de resgatarmos a tradio jurdica brasileira historicamente avessa a formalismos que desnaturem o habeas corpus, desviando-o de suas altssimas

    finalidades.

    Rui Barbosa acentua que sob o Imperio nunca se duvidou que a competencia para concesso do habeas corpus fosse commum aos varios graus da judicatura nacional. O individuo constrangido illegalmente em sua liberdade podia invocar o remedio da lei em qualquer altura da escala judiciaria:

    juiz de direito, relao, supremo tribunal. No havia instancia em materia de habeas corpus. A unica restrico a essa autoridade consiste na regra,

    estabelecida pela jurisprudencia e encorpada afinal ao direito positivo pela Lei 2033, de 20 de setembro de 1871, art. 18, segundo a qual a superioridade do grau na ordem da jurisdico judiciaria a unica, que limita a competencia da respectiva autoridade em resolver as prises feitas a

    mandado das mesmas auctoridades judiciaes. (...) de modo que um cidado victima de constrangimento illegal por acto de um juiz inferior tinha o

    arbitrio de transpondo as jurisdices intermediarias, procurar immediatamente o abrigo legal na mais eminente. E este regramento de competncia

    do habeas corpus, segundo Rui, foi recepcionado integralmente pela Constituio de 1891 em seu art. 83,10 pois, segundo ele, admitir que a nova

    ordem constitucional restringisse a competncia monrquica que, como vimos, abria comumente a porta de todos os Tribunais do pas ao habeas

    corpus, seria admitir que o regime republicano houvesse recusado uma das mais importantes conquistas liberais da Monarquia.11 Rui Barbosa, ao

    concluir seu estudo, assim resumiu a questo: D-se ao offendido o arbitrio de procurar, quando possa, o tribunal menos frgil; mas no se lhe tire o

    de valer-se dos outros quando aquelle, pela distancia, ou por qualquer obstaculo, no estiver ao seu alcance.12

    Dentro desta lgica, o Decreto 221, de 20 de novembro de 1894, que especificou as hipteses de competncia do STF para processamento e julgamento

    do remdio heroico, reverberou os ecos da Monarquia prevendo tambm, de forma expressa, o cabimento geral do processamento e julgamento do

    habeas corpus no STF sempre que houvesse perigo de consumar-se a violncia antes que outro Juiz ou Tribunal pudesse conhecer do pedido.13 Tal

    regramento, profundamente libertrio, constitucionalizou-se em 1934, tendo sido mantido na Carta de 1937 (pelo menos formalmente), depois na

    Constituio de 1946, e tambm na Carta de 1967.14 Todavia conforme precisamente rememora Toron com o AI-6 [Ato Institucional 6, de 1. de fevereiro de 1969] introduziu-se um complemento ao disposto no art. 114, II, a, da Constituio Federal [de 1967], de tal modo que o dispositivo

    passou a ter a seguinte redao: Art. 114. Compete ao Supremo Tribunal Federal: II Julgar, em recurso ordinrio: a) Os Habeas Corpus decididos, em nica ou ltima instancia, pelos tribunais locais ou federais quando denegatria a deciso, no podendo o recurso ser substitudo por

    pedido originrio (grifamos). Desse modo, no perodo mais crtico da Ditadura Militar de 1964 rompeu-se brutalmente uma linha interpretativa libertria existente desde nossa Monarquia, e que sempre persistiu em todos os textos constitucionais posteriores, inclusive no texto da Carta de 1937 conquanto no perodo do Estado Novo a eficcia da garantia constitucional do habeas corpus tenha sido quase que anulada na prtica. E, concernente

    ao efeito da ruptura em anlise, esclarece o respeitado advogado criminal e Professor Alberto Zacarias Toron que a vedao da utilizao do habeas substitutivo do RHC a tramitao do remdio heroico passou a ser mais lenta, pois interposto o recurso no Tribunal de origem, haveria de se

    aguardar as contrarrazes do Ministrio Pblico e a remessa dos autos Capital Federal, coisas ainda hoje comumente demoradas.15

    Assim, esta ressurreio do Ato Institucional 6/1969 pela boca do Supremo Tribunal Federal do sculo XXI quem diria! faz atualssima a srie de artigos redigidos por Rui Barbosa em 1892, quando registrou publicamente as lies de liberdade do Imperial Conselho de Estado em reproche ao

    amesquinhamento do habeas corpus causado pelo Supremo Tribunal de 1891. De fato, aludida ressurreio torna o guardio da Constituio apelidada

    Cidad merecedor da maioria das crticas publicadas h exatamente 120 anos. Rui Barbosa relata quatro casos de 1851, 1878, 1880 e 1883 nos quais cidados foram presos administrativamente e, ao contrrio do que fez o Supremo Tribunal republicano de 1891, o Tribunal de Relao da Bahia

    (1851), o Supremo Tribunal de Justia (1878), e os Tribunais de Relao do Rio de Janeiro (1880) e do Recife (1883), todos se deram por competentes

    e concederam a ordem de habeas corpus afastando as prises administrativas.

    E o Imperial Conselho de Estado?

    Sempre que suscitado para resolver conflito de atribuio entre Judicirio e Administrao confirmou as ordens de habeas corpus, sendo destacado por

    Rui o Aviso de 22 de outubro de 1883 consolidando o controle das prises administrativas pelo habeas corpus, merecendo destaque sua essncia: (...) Sua Majestade o Imperador, conformando-se (...) com o parecer da maioria dos signatrios da consulta das sees de justia e fazenda do Conselho

    de Estado (...), houve por bem declarar que nenhuma providncia cabe ao governo dar sobre o assunto; porquanto o recurso do habeas corpus, j por

    sua natureza, j pelas disposies expressas do art. 340 do Cdigo Criminal e art. 18 da Lei 2.033, de setembro de 1871, admissvel contra toda a

    presso ou constrangimento ilegal, qualquer que seja o motivo, que o determine, e qualquer que seja a autoridade de que dimanem, salvo as

    excees previstas no art. 18, entre as quais no compreende a priso administrativa (...)16 (grifamos).

    E quanto competncia para processamento e julgamento do habeas corpus?

    exceo da restrio de 1871, j mencionada anteriormente, no Imprio era trivial o entendimento de que qualquer autoridade judicial poderia

    apreciar pedido de ordem de habeas corpus, residindo exatamente a a ironia: o Supremo Tribunal da Constituio Cidad, que tantos servios de indiscutvel valor tem prestado desde 1988 nossa Repblica, pela maioria de sua 1. Turma invade as catacumbas do Regime Militar em pleno sculo

    XXI para ressuscitar a razo jurdica de um Ato Institucional que simplesmente rompeu, quando passou a viger, com pelo menos 100 anos de tradio

    libertria em matria de habeas corpus brasileiro.

  • 3. Tudo est em ordem ou estudo das causas

    O que no se discutiu uma nica vrgula de forma sria, porm, o porqu quais as causas? do uso to profuso do habeas corpus nos Tribunais Superiores. necessrio mergulharmos nesta indagao para recolocarmos a discusso em um sentido mais justo e racional.

    Tenhamos em mente que no existe a desordem, mas, de fato, tudo est em ordem. Goffredo Telles Junior, apoiado em Henri Bergson, insigne

    filsofo francs e Prmio Nobel de literatura, esclarece que a desordem no o contrrio da ordem, como se costuma pensar. Ela , isto sim, uma ordem contrria a outra ordem. Bergson foi quem revelou a natureza verdadeira da desordem. Foi ele quem demonstrou a falsidade com que a

    questo da desordem geralmente apresentada (...). Desordem, disse ele, o nome dado ordem no desejada, no querida, no procurada. o

    nome da ordem que desagrada, desgosta, decepciona, prejudica, infelicita e desola. Mas a desordem sempre uma ordem, eis o que precisa ficar bem

    claro.17 Mais adiante, para exprimir concretamente a ideia posta, o Professor Emrito da USP faz meno imagem de runas causadas por incndio ou outra catstrofe qualquer, demonstrando, porm, que escombros e destroos na verdade esto em ordem por serem os efeitos certos de causas

    certas.18

    E este o erro fundamental da maioria da 1. Turma do STF: este excesso de habeas corpus impetrados junto aos Tribunais Superiores visto por

    Ministros como desordem, na realidade, nada mais do que uma ordem. Em uma palavra, o efeito certo de causas certas.

    Uma ordem, bem verdade, que infelicita demais vrios Ministros, a ponto de ocasionar o renascimento de tese jurdica do regime soobrado. Esta

    ordem, porm, que desagrada a Ministros por alegado excesso e desorganizao no andamento dos trabalhos, de outro lado constitui o respiradouro de

    milhares de brasileiros encarcerados na maioria esmagadora das vezes em locais deveras insalubres e submetidos a processos criminais muitas vezes com defesa deficiente ou praticamente ausente. O excesso de encarcerados, que de 2002 a 2011 mais que dobrou saltando para o oceano de mais

    de meio milho, sem dvida um fator determinante para tantos habeas corpus impetrados, e relatrio da Defensoria Pblica de So Paulo, a

    propsito, aponta que a atividade do Superior Tribunal de Justia em matria de habeas corpus, de 2002 a 2011, tambm cresceu significativamente.19

    A origem daquele nmero estratosfrico de presos, a nosso ver, encontra como uma de suas causas mais importantes a imensa dvida social que ainda

    existe entre ns somada a prticas policiais e de persecuo penal tpicas de Estados autoritrios e as quais esto profundamente arraigadas,

    infelizmente, nos costumes de nosso pas. E sendo o Judicirio competente para tutelar a liberdade no mbito penal, com tal frmula explosiva no

    tinha como ele escapar de tantas impetraes do remdio heroico, na medida em que a validade do exerccio da jurisdio est condicionada

    observncia do contraditrio e da ampla defesa. A verdade que, neste contexto dramtico, o habeas corpus tornou-se a principal ferramenta da defesa

    para fazer cessar abusos e ilegalidades contra autuados, acusados e condenados definitivos.

    Com efeito, segue da outra grande queixa dos Ministros: a do uso desvirtuado (sic) do habeas corpus, pois que a tradio de nosso pas ampliou o cabimento do remdio heroico para alm das prises incluindo, tambm, combate a ilegalidades de diversos tipos no campo penal que possuam

    reflexos no direito de ir e vir. De quem a culpa? Ou por qual motivo a defesa fez do habeas corpus, regra geral,sua principal ferramenta de proteo

    de autuados, acusados e condenados definitivos?Segundo a maioria da 1. Turma do STF e de seus seguidores a responsabilidade seria da defesa, que

    se valeria do habeas corpus abusivamente para sustentar pseudo nulidades (sic).

    Em primeiro lugar, justo ressaltarmos que at mesmo o CPP de Francisco Campos, contrariando o lamento da 1. Turma do STF, admite

    expressamente o uso do habeas corpus quando o processo for manifestamente nulo;20 o que confirma, de certo modo, a generosa tradio brasileira em matria de defesa da liberdade. bem verdade que o CPP, porm, sendo fiel sua estrutura autoritria em matria de nulidades faz uso do adjetivo

    manifestamente; termo que s pode ser interpretado, atualmente, em consonncia com a dignidade da pessoa humana. Isto : uma quebra da forma legal, mesmo que no seja manifesta ou bvia, deve ser sancionada de nulidade se for possvel que tenha influenciado no resultado final do processo.

    Interpretao contrria no s torpedeia a finalidade do processo penal, como nos obrigaria a admitir que o sistema constitucional de 1988 seria to

    libertrio quanto o do Estado Novo em matria de manejo de habeas corpus contra nulidades processuais. preciso, porm, que nossa anlise v alm.

    A resistncia centenria da generosa prtica de no se restringir o manejo do habeas corpus brasileiro estritamente a casos de priso, tambm o efeito

    certo de muitas causas certas. No temos a prepotncia de exauri-las em anlise, mas compartilharemos o pouco que enxergamos.

    Quem milita no foro penal e no exerccio da defesa bem sabe que as principais questes debatidas em instncias superiores por meio de habeas corpus

    abordam problemas relativos produo de prova, a decreto de prises cautelares e violao de direitos dos condenados em execuo penal.

    Abramos o CPP e a Lei de Execues Penais (LEP). Vejamos os recursos cabveis.

    Se o juiz decide antecipar produo de prova, ou decide fazer uso de videoconferncia, ou decide no intimar a testemunha de defesa, ou decide

    prender cautelarmente o ru, ou denega comutao ao condenado pela falta grave posterior (violando o Decreto presidencial), qual o recurso cabvel se

    a defesa quiser impugnar tais decises de pronto? No campo da execuo penal h o agravo, cuja lei sequer admite pedido liminar por aplicar

    subsidiariamente o recurso em sentido estrito (diferentemente do agravo do CPC, que o admite). Ou seja, o agravo de execuo penal de pouca

    utilidade, especialmente quando existem violaes contra teses pacificadas pelos Tribunais Superiores (algumas sumuladas inclusive), situao que

    sem dvida merece resposta mais rpida das instncias superiores. No processo penal de conhecimento, porm, para haver impugnao imediata no

    existe recurso cabvel, pois no se encontra lugar para estas decises no recurso em sentido estrito e nos demais recursos previstos no CPP.

    Por outro lado, h um problema que incide especialmente no campo do processo de conhecimento penal: na vida real, e quem milita no foro penal

    exercendo defesa bem o sabe, prevalece a dureza do esprito do Cdigo de 1941 na jurisprudncia relativa a nulidades; bem honrando, a propsito, a

    memria de Francisco Campos cuja exposio de motivos ressaltou que somente em casos excepcionais declarada insanvel a nulidade. (...) Sempre que o juiz se deparar com uma causa de nulidade, deve prover imediatamente sua eliminao, renovando ou retificando o ato irregular, se

    possvel; mas, ainda que no o faa, a nulidade considera-se sanada: a) pelo silncio das partes [grifamos]; pela efetiva consecuo do escopo visado

    pelo ato no obstante sua irregularidade; c) pela aceitao, ainda que tcita, dos efeitos do ato irregular[grifamos]. A jurisprudncia penal, em geral, prdiga em aplicar rigorosamente este esprito, ampliando at mesmo, na prtica, o raio de aplicao do art. 572 do CPP. E no so to raros os

    casos em que a quebra da forma legal manifesta ou quase isso passa distrada at mesmo diante dos olhos do prprio Judicirio no momento do processamento do ato: o que se explica, em boa parte, pelo fato de o esprito do CPP do Estado Novo colocar a responsabilidade das nulidades quase

    que inteiramente sobre os ombros da defesa, aliado aludida inclemncia jurisprudencial excetuada em poucos casos de reconhecimento de nulidade

    absoluta.

    Nesta linha, devemos concluir do quadro exposto que nosso CPP e nossa LEP simplesmente no do conta de uma defesa que queira ser minimamente

    decente, desincumbindo-se de suas tarefas mais bsicas: (i) garantir que sejam respeitadas integridades fsica e moral de autuados, ou acusados ou

    condenados definitivos, enquanto membro da famlia humana; (ii) fiscalizar o respeito ordem processual; (iii) procurar obter no processo criminal

    uma soluo jurdica ou humanamente mais justa; (iv) fiscalizar, no caso do condenado definitivo, o respeito a seus direitos fundamentais

    especialmente para que o fim principal da execuo penal, de (re)integrao social dele, seja factvel.21 Em suma, de um lado o sistema recursal no

  • atende s reais necessidades da defesa, obrigando-a ao uso do habeas corpus de forma ampliada e frequente, como alis de nossa longa tradio; de outro lado, o tratamento totalmente benigno do CPP a nulidades, na prtica transferindo defesa quase toda a responsabilidade de combat-las, e a

    aplicao rigorosa deste esprito pela jurisprudncia ptria (salvo as excees em que se aplicam a sano de nulidade absoluta), outro fator que

    impe defesa o caminho nico de se valer do habeas corpus na hiptese de no desejar ser vista como silente ou de ter praticado aceitao tcita.

    Em sntese, a legislao processual penal do Brasil, autoritria em diversos aspectos, com os agravantes decorrentes de sua aplicao tambm

    autoritria, torna muito difcil (para no dizer impossvel) o exerccio de defesa efetiva, minimamente decente, sem que se valha do habeas corpus.

    Porm, acrescentemos a este quadro asfixiante para a defesa a recusa costumeira de significativa parcela de turmas julgadoras nos Tribunais que se

    negam, definitivamente, a seguir posies jurisprudenciais consolidadas (muitas at sumuladas) no STJ e no STF. Por exemplo, ainda hoje h diversas

    turmas de segundo grau que insistem em criar requisitos de concesso para indulto e comutao que simplesmente no existem nos Decretos

    presidenciais, e fazem cnscias de que os Tribunais Superiores determinam pacificamente seja feita interpretao restritiva dos Decretos presidenciais de indulto e comutao para que o Judicirio no viole competncia constitucional pertencente Presidncia da Repblica. Nesta mesma

    linha, sempre contrariando jurisprudncia pacfica dos Tribunais Superiores, no so poucas as decises que: mantm prises com presunes de culpa

    lustrosamente fraseadas; ou as mantm alegando eufemisticamente a gravidade em abstrato do delito em julgamento (e.g., repercusso da conduta

    imputada no seio social etc.); consideram o crime de associao para trfico22 como hediondo; negam a substituio de pena privativa de liberdade por

    restritiva de direitos no trfico privilegiado; acatam o interrogatrio por videoconferncia mesmo com argumentos genricos e abstratos; servem-se dos

    argumentos de gravidade do delito e de longevidade da pena para negar direitos do condenado definitivo; reconhecem interrupo do lapso para

    concesso de livramento condicional ou de indulto e comutao etc. Vlido registrar, a propsito, que relatrio da Defensoria Pblica de So Paulo

    aponta que a maioria das impetraes dirigidas ao STJ e ao STF pela instituio funda-se em teses jurdicas sumuladas pelos prprios Tribunais; isto

    sem considerar as impetraes fundadas em teses que formam linhas de jurisprudncia pacficas e no sumuladas.23

    Assim, conquanto tenhamos desenhado apenas um breve quadro, a partir dele possvel notar ser preconcebida a ideia de que a defesa estaria abusando

    do uso do habeas corpus, pois no h falar de abuso se o excesso decorre de necessidade prtica imposta pelo asfixiante sistema processual penal

    vigente em plena fase de regime democrtico, somada renitncia de muitas turmas julgadoras em seguirem a jurisprudncia dos Tribunais Superiores

    no que favorvel defesa.

    4. O argumento da falta de previso do habeas corpus substitutivo na Constituio Federal de 1988: a letra mata, o esprito vivifica

    Dir-se-, porm, que ainda assim no haveria fundamento no texto da Constituio para o habeas corpus substitutivo de recurso. o que a maioria da

    1. Turma do STF afirma. No entanto, tal interpretao, com todo o respeito, no resiste a uma anlise acurada e nos faz lembrar um dos lamentos mais

    curiosos de Rui Barbosa: sempre sob a invocao da legalidade que a lei se viola (...).24

    importante notar que a ruptura da longa tradio libertria causada pelo Ato Institucional 6/69, que expressamente proibiu a substituio do recurso

    ordinrio por habeas corpus originrio, meses depois foi mantida pela Emenda Constitucional 1, de 17 de outubro de 1969, in verbis: Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal: (...) II julgar em recurso ordinrio: (...) c) os habeas corpus decididos em nica ou ltima instncia pelos tribunais federais ou tribunais de justia dos Estados, se denegatria a deciso, no podendo o recurso ser substitudo por pedido originrio (grifamos). Sobrevindo, porm, a redemocratizao brasileira e, com ela, uma nova Constituio apelidada de Cidad, revogou-se a proibio expressa da substituio do recurso ordinrio por habeas corpus originrio, como se pode notar no texto atualmente vigente e transcrito a seguir: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituio, cabendo-lhe: (...) II julgar, em recurso ordinrio: a) o habeas-corpus, o mandado de segurana, o habeas-data e o mandado de injuno decididos em nica instncia pelos Tribunais Superiores, se

    denegatria a deciso; (...).

    Onde est a proibio do habeas corpus substitutivo no texto vigente de 1988?

    Ora, esta simples sucesso de textos jurdicos indica que o Supremo ressuscitou um fantasma da Ditadura Militar de 1964, indiscutvel e

    inequivocamente revogado, interpretando-o ampliativamente para restrio de garantia fundamental. E seria totalmente desnecessrio afirmarmos que

    esta conduta lesa ao mesmo tempo trs regras sagradas de hermenutica, no fosse o Tribunal responsvel pela ltima palavra em matria

    constitucional de nosso pas a cometer este imperdovel deslize, a saber: 1) reconhecer vlido texto claramente revogado de forma tcita; 2) interpretar

    ampliativamente restrio (revogada) a garantia fundamental; 3) escolher a opo interpretativa mais conveniente para esvaziar o trabalho do Tribunal

    e no para a proteo da pessoa humana, violando princpio hermenutico trivial em matria de direitos humanos;25 falta esta que se torna mais grave

    em um pas que sistematicamente viola direitos humanos no campo penal.

    Ademais, princpio vigente de Direitos Humanos que toda a pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remdio efetivo para

    os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituio ou pela lei.26 Afora este princpio obviamente vigente, o Brasil vinculou-se expressamente perante rgos Internacionais de direitos humanos a garantir remdio efetivo para os atos violadores de direitos

    fundamentais, a exemplo do que prescreve a Conveno Interamericana de Direitos Humanos,27 em seu art. 25, que ademais impe obrigao ao

    Estado que seja parte de desenvolver as possibilidades de recurso judicial.28 A este respeito, em 2000 a Corte Interamericana de Direitos Humanos esclareceu, baseada em outros precedentes, que para tal recurso efetivo existir no basta con que est previsto por la Constitucin o la ley o con que sea formalmente admisible, sino que se requiere que sea realmente idneo para establecer si se ha incurrido em uma violacin a los derechos

    humanos y proveer l necesario para remediarla (...).29 Foi exatamente o que fizemos em matria penal em toda nossa histria constitucional, mesmo considerando os tropeos do Estado Novo e do Regime Militar de 1964. No contvamos, porm, com a posio retrgrada da 1. Turma do

    Supremo Tribunal republicano do sculo XXI. E tudo isto, lamentvel mas necessrio registrar, com o agravante de que o esprito da Constituio

    Federal de 1988 to libertrio em matria de habeas corpus que pela primeira vez constou numa Constituio brasileira que a impetrao e o

    processamento do habeas corpus gratuito.30 Se o esprito este, de ampliao total deste heri nacional em tantas crises que castigaram nosso pas,

    novamente no faz sentido a restrio do STF.

    Porm, mesmo que deixssemos de lado os Tratados Internacionais de Direitos Humanos algo inconcebvel no grau de evoluo da poca presente , existe outro caminho juridicamente muito seguro para se chegar concluso sobredita.

    Nossa Constituio de 1988, em seu art. 5., 2., tambm prescreve que: Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados (...). A origem deste texto encontra-se remotamente no art. 78 da Constituio de 1891, e um de seus clssicos comentadores, Joo Barbalho, esclareceu ter sido inspirado na emenda IX da Constituio dos Estados Unidos da Amrica, a qual

    foi estabelecida segundo comentadores como cautela contra a m applicao da maxima demasiado repetida, que uma affirmao em casos particulares importa uma negao em todos os mais e vice-versa. Tendo a Constituio mencionado taes e quaes direitos e garantias como

    pertencentes aos individuos, aos cidados, ao povo, poder-se-ia concluir que outros direitos e garantias no lhes so reconhecidos, visto no se

  • acharem expressos no texto constitucional (Inclusio unius exclusio alterius). Para afastar essa falsa concluso, a Constituio declara que a

    enumerao nella feita quanto a direitos e garantias no deve ser tida como suppressiva de outros no mencionados, os quaes ficam subsistentes,

    uma vez que sejam decorrentes da frma de governo que ella estabelece e dos principios que consagra.31

    Por a se v que a mxima inclusio unius exclusio alterius cuja aplicao constitucionalmente vedada ao rol de direitos e garantias fundamentais est sendo rigorosamente aplicada pela maioria da 1. Turma do STF, quando argumenta a incompatibilidade do habeas corpus substitutivo de recurso

    com o regime de direito estrito a que se submete a competncia do STF. Todavia, aludida vedao constitucional contida no art. 5., 2., da Constituio de 1988 faz naufragar totalmente o argumento de que a competncia do STF submetida a regime de direito estrito seria impeditiva do habeas corpus substitutivo, porquanto o regime e princpios constitucionais do Brasil, todos fundados na dignidade da pessoa humana, incluem

    obviamente escudos efetivos que impeam o Estado de esmagar o ser humano. E a prtica do habeas corpus substitutivo, originada na praxe libertria

    do Imprio, absolutamente compatvel com o regime constitucional de 1988 em razo de este regime assumir o dever fundamental de manter as

    portas dos Tribunais abertas para a tutela de direitos fundamentais e outros bens juridicamente tutelados, implicando na obrigao de efetividade das

    garantais constitucionais. Em resumo: como tudo em direito, o tal regime de direito estrito a que se submete a competncia do STF no absoluto, e deve ser temperado pela referida vedao do art. 5., 2., da Constituio de 1988.

    5. Habeas corpus vs. recursos extraordinrio (STF) e especial (STJ): violao da jurisprudncia internacional de direitos humanos

    Sustenta a maioria da 1. Turma do STF, ainda, que a obstruo do habeas corpus substitutivo tambm se justifica pelo fato de que o excesso de

    impetraes gera efeito grave nos Tribunais Superiores considerando as funes precpuas quer do Superior Tribunal de Justia a ltima palavra na interpretao da lei federal e do Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituio.

    Esta linha de raciocnio da maioria da 1. Turma nos leva a acreditar, primeiro, que houve indagao sobre qual seria o instrumento processual mais

    importante: o habeas corpus?ou o controle recursal de estrito direito (recursos extraordinrio e especial)? Tal abordagem, pedindo a mxima venia,

    mostra-se de plano irrealista. Ora, mesmo supondo que a defesa criminal conseguisse, por meio de recursos de estrito direito, construir lentamente uma

    jurisprudncia de garantias e direitos fundamentais no campo penal, haveria a pouca serventia. Pois o fato de no existir remdio efetivo e rpido para

    tornar real o posicionamento dos Tribunais Superiores (como o habeas corpus substitutivo de recurso) torna toda sua jurisprudncia em belssimas e

    romnticas sugestes, tanto aos olhos de Tribunais inferiores, como de Juzos de primeiro grau, e de autoridades administrativas com atribuies no

    sistema penal. Neste contexto, tal jurisprudncia jamais redundaria, na vida real, em direitos fundamentais respeitados pelo exerccio efetivo dos

    respectivos deveres fundamentais.

    Este surpreendente irrealismo, a propsito, confirmado pelo fato de que o Regime Militar de 1964 preocupou-se especialmente em impedir o manejo

    do habeas corpus como escudo de proteo contra os abusos contidos nos Atos Institucionais ento vigentes, nada referindo, porm, expressamente,

    sobre o recurso extraordinrio. claro que este recurso no poderia ser usado para desafiar matrias caras Ditadura e, neste sentido, a vedao geral

    de apreciao judicial destas matrias inclua tambm questionamentos contra os Atos Institucionais por meio de qualquer recurso.32 Porm, quem

    ganhou regra expressa de imediato e no auge na Ditadura de 1964? O recurso extraordinrio? No, mas o habeas corpus.33 O que muitos citam como

    exemplo de autoritarismo em relao ao recurso extraordinrio diz respeito criao do requisito da relevncia da questo federal, que, segundo

    Barbosa Moreira, esteve previsto no Regimento Interno do STF de 1970 a partir da Emenda 3, de 12 de junho de 1975 (pouco antes do Pacote de

    abril34) e foi inspirado na prtica da Supreme Court norte-americana na apreciao de petitions for certiorari.35 Desse modo, conquanto muito criticvel o modo como se aplicou este filtro processual em julgamentos secretos e, ademais, no motivados, indo de encontro nossa tradio jurdica , a realidade que o objetivo deste filtro mirava precipuamente dar combate crise do Supremo Tribunal Federal que se via atolado de expedientes naquele tempo; objetivo muito diverso da obstruo do habeas corpus substitutivo de recurso no STF.

    Recuando mais um pouco, a grave preocupao com a defesa do Estado no regime do Estado Novo criou um desenho constitucional que cuidou de

    anular o habeas corpus. Por sinal, Arajo Castro ressaltou que enquanto sob as Constituies de 1891 e 1934 prevaleceu o habeas corpus como

    amparo de direitos individuais contra violncias praticadas pelo governo e decorrentes do estado de stio, a Carta de 1937 expressamente vedou esta

    prtica em seu art. 170, restringindo a atribuio de controle de constitucionalidade ou de legalidade dos atos praticados em virtude do estado de stio

    somente Cmara dos Deputados, nos termos do art. 167.36 Sabemos, porm, que o Estado Novo nunca teve um Legislativo funcionando. Ademais,

    sabemos que no havia habeas corpus para crimes de competncia do Tribunal de Segurana Nacional, sendo este submetido por sua vez ao Presidente

    da Repblica que o regulava por meio de decretos-lei. Tribunal este que, a certa altura, como bem recorda Evandro Lins e Silva, cometeu todo o

    tipo de abuso exercendo competncia para julgar crime de injria contra agente do poder pblico.37 No sem razo, ao comentar o habeas corpus na Carta de 1937, Tornaghi expe sua quase incredulidade na hipocrisia do texto constitucional: (...) embora incluindo o habeas corpus entre as garantias individuais (art. 122, n. 16) permitia ao Presidente da Repblica (eufemismo com o qual o ditador disfarava sua descarada usurpao) decretar o estado de emergncia (art. 166) e exclua da apreciao do Poder Judicirio os atos praticados em virtude (sic) do referido estado. Para

    completar o quadro sombrio e ttrico, o art. 186 declarava em todo o Pas o estado de emergncia!38

    Regredindo mais no tempo e chegando Repblica Velha, de conhecimento geral que nos momentos mais crticos e violentos deste perodo histrico

    o habeas corpus foi o instrumento principal pelo qual se travou duelos importantssimos entre os Poderes do ento novo regime; duelos que seriam o

    incio do ajuste real de fronteiras constitucionais entre eles. Alm das lutas pelo respeito a direitos fundamentais por estes mesmos Poderes.

    E antes da Repblica velha, no Imprio, o habeas corpus foi importante na luta contra a escravido inclusive, conforme atuao conhecida de Luiz

    Gama que, segundo Comparato, praticamente sozinho, logrou livrar do cativeiro ilegal mais de quinhentos negros fato sem precedentes na

    histria mundial da advocacia.39 Gama, interessante registrar, valeu-se do habeas corpus na causa abolicionista alegando principalmente a tese de

    vigncia de Leis de 1818 e 1831 que proibiam a importao de escravos e os reconheciam como livres.40 Ainda neste perodo, vimos que o remdio

    heroico se firmou, ademais, contra prises administrativas devido ao consentimento de Dom Pedro II; consentimento que se revelou como uma das

    mais fundamentais sementes da estruturao de liberdades pblicas no Brasil.

    Nesta exata linha, razo assiste a Pontes de Miranda quando ressalta no ser de hoje a magna importncia do habeas corpus na vida nacional: Se deixssemos de dar ao habeas corpus a extenso que lhe afeioaram a Constituio de 1891, a de 1934 e a de 1946, a liberdade entre ns seria iluso,

    irrisria promessa encaixilhada em mximas de declarao de direitos inerme e fictcia.41

    Portanto, partir da premissa de que os recursos de estrito direito sejam mais importantes do que o habeas corpus no plano penal , no mnimo, uma

    viso que muito caprichosamente passa uma borracha em nosso passado. Sendo especialmente grave tal interpretao em um pas absolutamente

    dependente do remdio heroico, como revelam por afiada ironia do destino os prprios nmeros de impetraes contra os quais tanto reclamam os Tribunais Superiores.

  • Corroborando a indiscutvel importncia do habeas corpus, a jurisprudncia internacional de direitos humanos, especificamente da Corte

    Interamericana de Direitos Humanos, em 2000 registrou de forma clara e inequvoca que: El hbeas corpus representa, dentro de las garantias judiciales indispensables, el mdio idneo tanto para garantizar la libertad, controlar el respeto a la vida e integridad de la persona, e impedir su

    desaparicin o la indeterminacin de su lugar de detencin, as como para proteger al individuo contra la tortura u otros tratos o penas crueles,

    inhumanos o degradantes.42 Destacando, ademais, em 2004, que la Corte ha considerado que los procedimientos de hbeas corpus y de amparo son aquellas garantias judiciales indispensables para la proteccin de varios derechos cuya suspensin est vedada por el artculo 27.2 [de la

    Convencin] y sirven, adems, para preservar la legalidad en una sociedad democrtica (...).43

    Diante dessas decises, a nosso ver, o Estado brasileiro est ferindo a jurisprudncia internacional de Direitos Humanos, por meio do Supremo

    Tribunal (especificamente sua 1. Turma), ao ressuscitar um preceito jurdico do qual a Ditadura de 1964 se valeu com o inequvoco propsito de

    anular os efeitos prticos do habeas corpus.

    6. Afrouxamento da efetividade da jurisprudncia dos Tribunais Superiores: deteriorao da

    prestao jurisdicional

    No se tem refletido, ademais, que o afrouxamento da efetividade da jurisprudncia dos Tribunais Superiores pela obstruo da via do habeas corpus

    substitutivo, ao contrrio do que se est a sustentar, na verdade estimular a tendncia de recrudescimento do autoritarismo de Tribunais inferiores,

    Juzos e autoridades administrativas com atribuies no sistema penal. Sendo o estmulo atendido, tornar-se- crescente a tendncia para abusos e,

    como resultado, crescer na mesma medida a necessidade de recursos e de medidas judiciais.

    por a que a mudana extremista da jurisprudncia do STF, pela sua 1. Turma, talvez at ocasione um alvio imediato ao permitir a produo a toque

    de caixa de decises extinguindo e arquivando impetraes substitutivas de recurso sob a alegao de suposta falta de cabimento desta medida. Mas, a

    mdio e longo prazo, certamente esta prtica que ignora totalmente o substrato humano do processo penal cobrar juros escorchantes, porque tender a

    agravar muito mais a crise do sistema penal e especialmente penitencirio. Ora, conquanto nossa assertiva sobre o recrudescimento do autoritarismo estatal no deva ser vista como injusta generalizao, pois no o que tencionamos, tambm no podemos negar o que a experincia da praxe forense nos aponta: sempre que decises inferiores inconstitucionais so chanceladas pelos Tribunais Superiores, ou no so controladas por estes em razo de

    no se manifestarem a tempo, ou mesmo pelas respectivas impugnaes no chegarem a estes Tribunais em razo de incompetncia profissional dos

    que representam as partes, natural que o autoritarismo estatal na base tenda a aumentar gerando novos abusos e ilegalidades a serem desafiados por

    recursos ou aes impugnativas.

    Ademais, o afrouxamento da efetividade da jurisprudncia dos Tribunais Superiores, que se agravar vigorosamente no campo penal pela obstruo do

    habeas corpus substitutivo, tambm servir de grande estmulo para o uso de recursos e aes impugnativas por parte de todos os atores que figuram

    no processo penal; seja no momento do conhecimento ou da execuo. No podemos perder de vista que a inefetividade da jurisprudncia penal,

    agravada pela ceifa do habeas corpus substitutivo, altamente estimulante para a chicana, assim como a ausncia de um sistema que permita a

    evoluo ordenada da interpretao do direito positivo, um sistema que encarne o princpio da unidade do direito em relao ao espao, mas no em

    relao ao tempo.44 Ou seja, a maioria da 1. Turma se mostra muito preocupada com a existncia real de um sistema que permita a evoluo ordenada

    da interpretao do direito positivo o que justo. Todavia, no se d conta de que a ausncia de efetividade de sua jurisprudncia penal, causada pela obstruo do habeas corpus substitutivo, estimular demais a m-f no campo penal.

    No difcil de prever, pelo menos neste campo, a que ponto a deteriorao da funo jurisdicional poder chegar se o precedente irrefletido da 1.

    Turma do STF ganhar corpo e permitir a eroso da jurisprudncia dos Tribunais Superiores, tornando estes prprios Tribunais em imponentes castelos

    de areia. E este um preo exorbitante demais, a nosso ver, para qualquer ser humano.

    7. Funo social do habeas corpus na realidade do Brasil do sculo XXI e a responsabilidade do STF

    Nem se diga que por vivermos em um Estado Democrtico de Direito o habeas corpus teria sua relevncia atualmente diminuda, a autorizar o STF a

    reajustar seu cabimento de acordo com esta mudana.

    Realmente, justa a lgica de que um Estado verdadeiramente democrtico exigiria muito menos do habeas corpus, do mesmo modo que se

    vivssemos em uma sociedade de anjos no precisaramos do Judicirio. Todavia, temos de ter suficiente humildade para admitirmos que embora tenha

    havido, sim, progresso democrtico desde o fim do Regime de 1964, houve apenas progresso parcial e que est longe de representar um Estado

    democrtico. Novamente, para no nos alongarmos, o nmero de presos no sistema penitencirio e o nmero de habeas corpus no STF e no STJ

    comprovam de forma inequvoca que vivemos praticamente em uma senzala, sem contar no tamanho dos desmandos contra a populao carcerria ou

    acusados em geral a justificarem os tantos remdios heroicos impetrados. As crises agudas de que padecemos em matria de segurana pblica publicadas amide e com grande destaque em nossos peridicos jornalsticos mais importantes , de fato, o reflexo direto da ausncia do Estado realizador de justia distributiva e garantidor da dignidade humana, tanto dentro como fora do crcere.

    Devemos enfatizar, no entanto, que hoje o Estado brasileiro no investe quase nada na recuperao dos que ingressaram nas fornalhas infernais do

    nosso sistema prisional: as possibilidades de trabalho e estudo, para incio de conversa, so absolutamente escassas. Psiclogos e assistentes sociais?

    Nos melhores estabelecimentos h, normalmente, um profissional para mais de mil e quinhentos presos. Sem falar que continua vlida a advertncia de

    Evandro Lins e Silva, aps recordar palavras de Roberto Lira, quanto a presos invejarem coudelarias e canis: preciso acabar com isso! verbera o grande advogado e jurista preciso segregar o perigoso, mas segregar de uma maneira humana, no cruel, no brbara. Aquele depsito de presos, onde voc bota 30, e s cabiam 5, evidentemente uma afronta dignidade humana. E isso o que acontece todos os dias, todas as horas.

    Agora, neste instante, enquanto estamos conversando, l no xadrez da delegacia, quantos presos esto amontoados, com este calor terrvel, sem

    higiene, sem nada? Isso no pode continuar. Eu no admito que insensibilidade das elites brasileiras chegue ao ponto de querer conservar tal

    situao. Vejam como esto repetindo rebelies nas prises. E eu fico admirado de como h to poucas rebelies. Porque era de haver todos os dias

    o protesto violao do direito humano, a reao das vtimas dessas violaes. O fato de o sujeito no reagir j reflete at um amolecimento de

    carter. A cadeia j conseguiu isto.45

    Neste contexto, que pblico e notrio, o habeas corpus brasileiro do sculo XXI tem sido instrumento vital na administrao da intrincada questo

    penal e especialmente penitenciria que assola o Brasil inteiro, e envolve principalmente a populao de baixa renda, uma esmagadora maioria vtima

    da dvida social em que estamos mergulhados no obstante os recentes progressos sociais. Cada ordem de habeas corpus concedida, tutelando

    minimamente esta populao oprimida, acaba se tornando em gesto que despressuriza a enorme caldeira penal e desumana que vive nos limites da

    exploso. Podemos dizer, portanto, que o habeas corpus brasileiro, hoje, no sculo XXI, uma das principais vias que d passagem ao Poder Judicirio

    para interferir diretamente na administrao de um problema que efeito de uma sociedade profundamente injusta, servindo para diminuir as chances

    de convulses sociais e outros conflitos intestinos mais graves dos que os j pendentes em nosso pas.

  • Vale anotar que, de certo modo, nosso entendimento vai ao encontro do que Pontes de Miranda mencionou sobre a funo social do habeas corpus no

    Brasil. Segundo Pontes, (...) o habeas corpus exerceu no Brasil, aps mais de sculo de adoo, principalmente at 1930 e entre 1934 e 1937, extraordinria funo coordenadora e legalizante. Se as nossas estatsticas fossem perfeitas, se tivssemos notcias e dados exatos de nossa vida social

    e moral, estaramos aptos a avaliar o grande bem que evoluo do pas tem produzido o habeas corpus. Mais adiante, registrando sua impresso de existir no Brasil uma minoria que explora, com auxlio da ignorncia, da fora policial, da poltica, uma grande maioria de indivduos, Pontes aponta

    trs caminhos, a saber: S existem trs caminhos: a melhora da classe explorada, e ento a classe dominante se fletiria por se no haver preparado para novas condies sociais; ou essa h de sugar aquela, at que aquela se enfraquea e como que se extinga; ou, medida que se operasse a

    melhora geral, aprenderia o explorador como poderia ser mantida, sem contar com a populao semiescrava, a situao social de superioridade

    econmica. (...). Tecendo consideraes com este pano de fundo, Pontes conclui que o habeas corpus, alavanca social, que manobrada pelo simples rbula dos sertes, ou pelo bacharel que exerce, mais do que se pensa, pelo interior do pas, a annima e alta misso civilizadora e renovante, faz

    cessar a violncia do chefe local, ou dos agentes do governo federal, ou estadual, mediante a ordem concedida originariamente ou em grau de

    recurso, pelo Supremo Tribunal Federal. ele [o STF] que evita a segunda e prepara a terceira [grifamos].46

    Assim, embora no estejamos vivendo numa Ditadura clssica do sculo XX, o remdio heroico continua sendo absolutamente fundamental para o

    pas, e pode ser visto como importante elemento de estabilizao da sociedade brasileira ao prevenir ou amortecer agudos choques fratricidas

    motivados especialmente pela enorme distncia entre uma minoria rica e uma maioria pobre; sobressaindo neste abismo social o fato de a maioria

    pobre suportar quase que exclusivamente o peso da Justia Criminal.

    Quanta responsabilidade nas mos do Supremo Tribunal Federal! Lamentavelmente, parte de sua formao do sculo XXI pretende renunci-la sem

    justa causa alguma, mas apenas pelo aborrecimento causado pelo excesso de impetraes do remdio heroico.

    Seja como for, ainda que vivssemos no pas de nossos sonhos, reviver o Ato Institucional 6/69 reduzindo drasticamente a efetividade do habeas

    corpus e contrariando uma tradio antiga e fundamental para as liberdades pblicas no Brasil, tal deciso, mesmo prolatada com a melhor das

    intenes, corresponde a um p-de-cabra sendo usado para arrombar um dos pilares mais importantes da estrutura constitucional deste pas. Concluso

    a que chegou o Professor Goffredo Telles quando se referiu aos Atos Institucionais da Ditadura de 1964: os Atos Institucionais disse ele eram

    o p-de-cabra para arrombamento das estruturas constitucionais da Nao.47

    8. Duplicando o trabalho dos Tribunais Superiores?

    Outro ponto importantssimo e que est sendo olvidado o fato de que o trabalho dos Tribunais Superiores poder dobrar, uma vez que possvel

    soluo para remediar a obstruo do habeas substitutivo de recurso ser ingressar com o recurso ordinrio e, em paralelo, visando-se uma liminar, o

    ajuizamento de medida cautelar. Foi exatamente o que aconteceu no uso do agravo de instrumento, cuja ausncia de previso de liminar no CPC

    obrigou operadores do direito a se valerem ou de medida cautelar ou de mandado de segurana para tornar o recurso mais efetivo em situaes de

    urgncia. Bom lembrar, alis, que o resultado final do CPC vigente a possibilidade de o agravo de instrumento ter concesso de antecipao de tutela

    recursal ou pelo menos a suspenso da deciso atacada.48

    Dessa forma, a estreiteza da anlise da maioria da 1. Turma do STF tal, que a defesa criminal pelo menos em um primeiro momento provavelmente duplicar a entrada de processos nos Tribunais como forma de atender s necessidades prticas da vida real.

    9. Precluso e poltica processual: o louvor da 1. Turma do STF ao esprito do CPP do Estado novo

    Outro argumento utilizado pela 1. Turma do STF para a vedao do habeas corpus substitutivo de recurso, conforme se viu no incio deste trabalho,

    seria a necessidade de se dar combate m-f da defesa, pois tal praxe facilita a obteno de prescrio.

    uma viso de mundo que s revela, mais uma vez, que a reflexo em torno do tema foi no mnimo atropelada, afora o srio deslize de revelar

    preconceito generalizado contra a defesa penal, algo especialmente inaceitvel quando tal opinio parte do Tribunal que d a ltima palavra em matria

    de Constituio. Justamente o Tribunal que mais dever tem de exemplificar a compreenso do magno valor do processo penal para a civilidade de um

    povo, comeando tal exemplificao pelo respeito irrestrito defesa: e no s por maus profissionais existirem em qualquer atividade, mas,

    principalmente, porque constitui drama para o juiz como bem ressalta Carnelutti o fato de o juiz ser humano e ter o dever de ser mais que humano na atividade julgadora (imparcial),sendo por meio da parcialidade da defesa (e tambm da acusao) que o juiz consegue se aproximar um pouco do

    ideal de imparcialidade; muito pouco, porque outra vez Carnelutti, mestre inolvidvel, resume bem a situao: A justia humana no pode ser mais

    do que uma justia parcial (...). Tudo que se pode fazer tentar diminuir esta parcialidade.49 Neste passo, a simples constatao de que o juiz s consegue perseguir, e muito palidamente, o ideal de imparcialidade graas aos parciais, fora-nos a concluir que a 1. Turma da Suprema Corte est em

    um caminho completamente equivocado talvez at contaminado pela soberba, e certamente divorciado da alma do processo penal , ao abdicar da funo de separar o joio do trigo por sinal, a funo mais bsica de qualquer Tribunal em troca da criao de regra geral obstrutiva do habeas corpus substitutivo de recurso.

    Para abordarmos cientificamente o problema da m-f processual, focalizemos nossas lentes na precluso processual; mais especificamente sobre os

    valores a que serve a precluso. Em outra oportunidade, em conjunto com outros estudiosos e apoiados em Liebman e Calamandrei, conclumos sobre

    este tema que: A intensidade da sua utilizao [da precluso] determinar o carter mais rgido, ou mais malevel do processo, cada qual com suas vantagens e desvantagens. O processo mais rgido favorecer a rapidez e a segurana, mas ampliar o risco de erros in procedendo ou in judicando;

    j o processo mais malevel reduzir este risco, mas ampliar o tempo de sua durao e a margem de arbtrio, assim das partes como do juiz. No

    primeiro atuar mais intensamente o princpio inquisitrio e no segundo o dispositivo.50 Constatada esta relao de causa e efeito, podemos afirmar que a ausncia de prazo para a impetrao do habeas corpus se baseia exatamente no fato de que repugna a existncia de claustros preclusivos na

    hiptese de estar em jogo a perda da liberdade de modo arbitrrio.

    Neste passo, realmente verdade que um processo mais malevel, sobre o qual incide mais intensamente o princpio dispositivo, possibilita maiores

    oportunidades para a m-f. Este o bvio e a 1. Turma do STF foi rigorosa nesta concluso. Todavia, no se d conta de que tal abertura, que permite

    at mesmo o habeas corpus substitutivo de recurso aps o respectivo prazo preclusivo, o preo que se paga quando se quer evitar condenaes de

    inocentes, ou o excesso de pena sobre os que se revelaram culpados depois de apurao judicial, ou ilegalidades contra condenados definitivos a

    inviabilizarem o fim ltimo da execuo penal. Em uma palavra, o preo da democracia. Desse modo, cabe aos juzes o combate m-f separando o

    joio do trigo, no cabendo a eles, todavia, sob o argumento generalizado de m-f da defesa, conceder primazia ao princpio inquisitivo pela criao de

    norma geral que veda a utilizao do habeas corpus como substituto recursal.

    A vedao geral e ampla desta prtica sesquicentenria refora, de fato, o ideal de Francisco Campos, vazado na exposio de motivos do CPP

    vigente, porque o procedimento penal passa a ser mais rgido ainda por conter aberturas menores para controle de ilegalidades, especialmente de

  • nulidades que poderiam influir no resultado do processo. Basta notarmos o que est acontecendo: este novo precedente do STF j est forando a defesa a entrar com recursos extraordinrio ou especial contra o desprovimento de apelao ou agravo julgado em processo penal. Esta situao

    gravssima, que chega perto de reproduzir os efeitos nefastos de regimes autoritrios do Brasil, apenas confirma o processo penal brasileiro como

    instrumento de mera liberao da coao estatal justamente o contrrio da finalidade do processo penal.51

    10. Natureza jurdica do habeas corpus: leo de p de trono? ou leo de verdade?

    Importa notar, ainda, que se partirmos do efeito prtico causado pela utilizao da precluso preponderando ou o princpio inquisitrio ou o dispositivo tambm possvel divisar a natureza jurdica do habeas corpus. E sabemos que no foro criminal h diversos episdios nos quais o habeas corpus no se ajusta aos institutos prprios do sistema das aes, prevalecendo, quase que em absoluto, o princpio dispositivo.

    Por exemplo, em situaes especiais que exigiram tal prtica, no h defensor experiente que no tenha impetrado habeas corpus em concomitncia ao

    apelo criminal e obtido a concesso da ordem antes mesmo de o apelo ser julgado; e o Tribunal, na hiptese de concesso do habeas corpus, sequer

    cogita de litispendncia. At porque, se assim cogitasse, esbarraria no fato de que no h ru no habeas corpus, havendo apenas quando requisitada

    autoridade coatora que presta informaes.52 Seria v, alis, a tentativa de explicar tal situao pelo instituto da substituio processual como forma de

    enquadrar o habeas corpus no sistema das aes, pois se o juiz ou turma que figure como autoridade coatora fosse substituto processual no seria

    faculdade do Poder Judicirio requisitar informaes; faculdade que totalmente incompatvel aos princpios do contraditrio e da ampla defesa que

    devem incidir a favor de quem parte passiva no processo, e totalmente compatvel com a mxima efetividade que se exige do habeas corpus contra

    ilegalidades e abuso de poder que atinjam a liberdade.

    Outra situao de anomalia pelo prisma do sistema das aes o fato de o habeas corpus vencer a prpria coisa julgada material em determinadas circunstncias, nas quais a violao da lei fora o Judicirio a superar limitaes impostas pelos institutos prprios das aes. E a violao de lei,

    convertida em rescindibilidade aps o trnsito em julgado s podendo ser revista por reviso criminal, acaba sendo sancionada de nulidade por meio do

    remdio heroico. Como estas excees que ocorrem de h muito nos Tribunais podem ser explicadas luz do sistema das aes?

    Sem falar, por outro lado, haver julgados que j admitiram reiterao de habeas corpus ainda que com o mesmo fundamento, sob o argumento de que a

    deciso denegatria de habeas corpus no produz coisa julgada material.53 Pontes de Miranda, por sinal, ensina que: A concesso e a denegao do habeas corpus produzem coisa julgada formal. O que a denegao no produz a vedao de repetio. O ne bis idem nada tem com a fora formal

    da coisa julgada.54 Mas esta forma de praticar o habeas corpus, totalmente compatvel com as necessidades da vida real, e que do nosso ponto de vista atende natureza e aos fins do remdio heroico, algo inconcebvel dentro do sistema das aes, no qual a identidade de elementos entre aes

    enseja os efeitos positivo e negativo da coisa julgada em havendo o trnsito na ao primeva.

    A prtica da competncia comum para processamento e julgamento do habeas corpus, conquanto lentamente sufocada ao longo da era republicana e

    encontrando, talvez, na Smula 691 do STF55 o pice deste movimento de destruio da liberdade da impetrao, algo totalmente inusual no sistema

    das aes. E a razo disso muito simples: a finalidade do habeas corpus assim o exige, a fim de que a garantia do juiz natural que previamente

    exclui todos os demais rgos incompetentes56 no seja usada contra o prprio garantido. Porm, falando em Smula 691 do STF, importante destacar que o prprio STF se viu obrigado a passar por cima dela por diversas vezes ao conceder liminares negadas no STJ e Tribunais inferiores, e

    antes mesmo que estes Tribunais julgassem o mrito de seus respectivos habeas corpus exatamente como sempre autorizou nossa praxe libertria originada no Imprio.

    Nesta linha, a prpria prtica corrente, originria do Imprio, de impetrao do remdio heroico em substituio aos recursos do CPP desafia a

    harmonizao do habeas corpus no sistema das aes.

    Outra anomalia quando o observador considera o sistema das aes: a amplssima legitimidade para impetrao do habeas corpus pode ser considerada outra caracterstica prpria de um remdio que no pode encontrar limites para atingir seu fim o que inclui as limitaes dos elementos e

    categorias do sistema das aes. No sem razo, enquanto na ao popular a legitimidade atribuda a qualquer cidado,57 no habeas corpus

    atribuda a qualquer pessoa.58 A abertura chega a tal ponto, que juzes esto investidos de competncia para concesso de ofcio da ordem de habeas

    corpus, conforme prescrio vigente desde o Imprio e que se encontra prevista no atual CPP59 algo totalmente excepcional no sistema das aes.

    Todas estas prescries jurdicas e prticas forenses consagradas no podem ser esclarecidas suficientemente nos esquemas prprios do sistema das

    aes.

    Basta notarmos que Hlio Tornaghi, por exemplo, no se sente totalmente seguro para conceituar o habeas corpus como ao: Alguns autores consideram-no ao, o que est certo na maioria dos casos, pois o meio de exigir um pronunciamento e, mais do que isso, um mandamento judicial.

    Mas este conceito ressalva cuidadosamente Tornaghi exclui o habeas corpus de ofcio, aquele que os juzes ou tribunais concedem independente de qualquer provocao, quando, no curso de algum processo, verificarem que algum sofre ou est ameaado de sofrer coao ilegal (art. 654,

    2.). Concluindo, assim, o eminente processualista: Na realidade, o habeas corpus remdio judicirio contra o mal da ilegalidade, do excesso ou

    do abuso de que resulta violncia ou coao na liberdade de ir e vir.60

    J Pontes de Miranda, mesmo considerando o habeas corpus como verdadeira ao (de natureza mandamental),61 permite escapar certas

    ambivalncias quanto ao seu posicionamento. A certa altura de outro estudo clssico, por exemplo, declara que o habeas corpus possui natureza de

    remdio (processual) mandamental. (...) Mas, atravs de todas as evolues, a sua natureza a mesma. Simples meio legal, ao tempo das leis processuais, inglesas e americanas; depois, no Brasil, como em Portugal, que no-lo imitou, direito constitucional, a despeito de to assinalado

    progredimento, o habeas corpus mantm o seu carter antigo, primitivo, desempeante, de salvaguarda da liberdade de locomoo.62E em outra oportunidade, acentuou o respeitado Mestre: Direito, pretenso, ao e remdio jurdico constitucionais, garantia constitucional, a est o que se tornou o habeas corpus; sua importncia to grande, to essencial ao direito absoluto, que ele acode, e to elevado o critrio de irrecusabilidade,

    com que a sabedoria de uma nao prtica e liberal o fortaleceu, atravs de lutas histricas, que , de quantos remdios processuais se tornaram

    confundveis com os direitos, o mais caracterstico e louvvel.63

    Tais palavras revelam sua profunda compreenso sobre a importncia do habeas corpus na vida nacional, bem como de qualquer povo que o adote, e

    talvez esta generosa percepo fez com que Pontes exprimisse, em sua obra, uma clara ambivalncia de posio quanto natureza do habeas corpus ao

    tratar do interesse processual da impetrao. Preocupado, certamente, com qualquer teoria restritiva quanto ao cabimento da impetrao, a lio desse

    eminente jurista impressiona por brotar diretamente da raiz poltico-constitucional do habeas corpus, deixando de lado os esquemas tradicionais do

    sistema das aes: No se exige ao impetrante qualquer interesse de agir, porque no se trata de tutela jurdica do impetrante. O seu interesse o interesse de proteo liberdade, interesse de estrutura social do pas. Necessidade de tutela jurdica (= interesse de agir), pressuposto pr-

    processual, ele tem pelo fato mesmo de se achar na ambincia jurdica do Brasil, mesmo se ocasionalmente.64 Outra passagem de Pontes que revela

  • certa ambivalncia de sua posio quanto natureza do habeas corpus, mas desta vez mais moderada, ocorre quando enfrenta questionamento

    doutrinrio antigo: Pode o paciente recusar a impetrao do habeas corpus por outrem?. Pontes de Miranda responde negativamente colocando, no incio de sua fala, a finalidade do habeas corpus acima de elementos e categorias do sistema das aes: Primeiramente, sob a Constituio de 1946, como sob as anteriores, no se tem na impetrao para outrem como simples legitimao processual: o impetrante exerce direito

    constitucional. A seguir, continua: Em segundo lugar, o interesse na observncia das leis (princpio do respeito lei, realizao do direito objetivo)

    tanto do Estado quanto do paciente. Em terceiro lugar, a renncia liberdade ou s medidas protetivas da liberdade impossvel, juridicamente.65

    Doutrina atual e tambm respeitvel, conquanto expresse muito maior grau de certeza quanto natureza jurdica de ao do habeas corpus, reconhece

    que a impetraopossa ser utilizada como recurso. Segundo ela, trata-se o habeas corpus de ao que tem por objeto uma prestao estatal consistente no estabelecimento da liberdade de ir, vir, ficar, ou ainda, na remoo de ameaa que pairar sobre esse direito fundamental da pessoa. Acrescenta, ainda, que mesmo na hiptese de concesso de ofcio da ordem de habeas corpus o remdio no perde essa caracterstica [de ao]: ainda quando o juiz independe da iniciativa da parte para instaurar o processo, uma vez iniciado, a parte investida dos poderes e faculdades que

    caracterizam o direito de ao. Na hiptese concluem os eminentes Professores a natureza do bem protegido e a urgncia da tutela justificam

    plenamente o exerccio espontneo da jurisdio, sem que com isso se desnature o fenmeno da ao.66

    Como se v, o comportamento do habeas corpus na praxe forense e muitas das prescries relativas a ele que esto expressas no CPP, incomuns ao

    sistema das aes, em maior ou menor grau confundem doutrina e jurisprudncia ainda que a tendncia atual doutrinria e jurisprudencial seja francamente a de encarar o remdio heroico como ao. Mas, a verdade nua e crua que defensores desta posio no explicam satisfatoriamente o

    funcionamento do habeas corpus dentro do sistema das aes e, quando tentam encaixar o remdio heroico na lgica do sistema das aes, a exemplo

    do que faz o STF, desarma o habeas corpus diminuindo sua importncia no corpo das garantias constitucionais, transformando-o em simples ao

    que, naturalmente, submete-se a elementos e categorias prprios do respectivo sistema.

    o que justifica nos alinharmos doutrina cujo entendimento capaz de lanar novas luzes abrindo campos de pesquisa sobre a natureza jurdica do

    habeas corpus. A partir dela possvel visualizar que o habeas corpus no pode ser desnaturado por elementos e categorias do sistema das aes,

    principalmente pelas recentes criaes cerebrinas da jurisprudncia que visam a restringir, cada vez mais, o cabimento do habeas corpus.

    Jos Ignacio Botelho de Mesquita, Professor Emrito da Faculdade de Direito da USP, ao se debruar sobre o problema da natureza jurdica do

    mandado de segurana remdio que deriva da vitria sobre a doutrina brasileira do habeas corpus abandonou a ideia inicial da natureza jurdica de ao que perfilhava. E isto porque, segundo ele, diversas prticas forenses e prescries jurdicas (da Lei revogada 1.533/1951) se mostraram para ele,

    com o passar do tempo, incongruentes ao sistema das aes. Nesta linha, tais circunstncias foram se avolumando em seu esprito e revelando que a

    considerao do mandado de segurana como uma ao no explicava satisfatoriamente problemas fundamentais como, por exemplo, o do vencimento

    do prazo decadencial para impetrao do mandado de segurana no vedar o uso da via ordinria; justamente o contrrio do que prev o CPC ao incluir

    a decadncia como causa extintiva do processo com resoluo de mrito.

    Este furo dentro dos esquemas das aes, alm de outros tantos apontados por ele, torna inexplicveis situaes variegadas quando o mandado de

    segurana considerado como ao, forando o eminente processualista a amadurecer a ideia de que o mandado de segurana tem funo nitidamente administrativa. um instrumento que permite ao Poder Judicirio um ato de interveno, um ato de interveno at mesmo no sentido

    poltico. um ato de interveno de natureza poltico-administrativa do Poder Judicirio no Poder Executivo. Como pode ser tambm um ato de

    interveno do Poder Judicirio no Poder Legislativo na medida em que no Legislativo se pratiquem atos administrativos. E pode ser uma interveno

    do Poder Judicirio no prprio Poder Judicirio, que se apresenta ento mesmo como uma interveno de um poder sobre outro, que de uma funo

    estatal sobre outra. O que se reclama em defesa da liberdade uma interveno, interveno esta que se processa considerado a o Poder Judicirio

    como superior hierrquico mximo de toda a estrutura estatal. Vale dizer, quando concede o mandado de segurana, o Poder Judicirio se coloca na

    posio de superior hierrquico da autoridade coatora e dita a ela o que deve fazer naquele caso. apenas isto. E isto est absolutamente fora do

    campo das aes (grifamos).67

    Em outro estudo, ademais, Mesquita chama-nos a ateno para o fato de que a curva histrica da posio da pessoa jurdica de direito pblico em face

    do mandado de segurana descreve uma ntida curva que acompanha passo a passo a evoluo da histria poltica do pas durante todo o perodo que vai de 1934 a 1951. (...) O que aconteceu entre ns depois de maro/64 confirma essa anlise. Em junho desse mesmo ano a Lei 4.348 modificou o

    art. 13 da Lei do Mandado de Segurana para permitir que o Presidente do Tribunal competente em grau de recurso suspendesse no s a execuo

    da sentena mas tambm da liminar concedida no mandado de segurana (art. 4.) e, no art. 3., imps autoridade coatora o dever de remeter cpia

    do mandado notificatrio ao Ministrio ou rgo a que estiver subordinada e a quem tiver a representao judicial da pessoa jurdica de direito

    pblico ou entidade apontada como coatora, para as providncias a serem tomadas para eventual suspenso da medida e defesa do ato apontado

    como ilegal ou abusivo de poder.68 Em razo desta anlise que aponta a tendncia de o mandado de segurana se aproximar da natureza de ao em momentos histricos autoritrios e demonstrando os problemas que tolhem o mandado de segurana quando conceituado como ao, adverte Botelho de Mesquita que o mandado de segurana, se conceituado como ao, se torna inofensivo tigre de papel sem motivo para figurar entre as garantias constitucionais. Aes que se exeram com fundamento em matria s de direito, acopladas a cautelares inominadas de natureza

    antecipatria, que se possam decidir sem necessidade da instruo em audincia, so hoje coisa de rotina, para a qual no se exige a incluso em

    texto constitucional. pena que disto s se deem conta os chefes de governos autoritrios. Mas tambm foroso reconhec-lo, ningum melhor que

    eles para sentir, de longe, o que lhes ameaa o poder arbitrrio.69

    Urge, portanto, refletirmos com mais vagar sobre a real natureza do habeas corpus, porque esta discusso est longe de ser ninharia puramente

    acadmica, mas decorrem dela efeitos prticos fundamentais para a existncia do que se convencionou chamar de mundo livre. Ora, se aplicarmos

    rigorosamente os conceitos prprios do sistema das aes ao habeas corpus, todos os seus feitos heroicos j mencionados esto fadados a se tornarem

    lendas. Estamos, por exemplo, assistindo de camarote proibio do habeas corpus substitutivo de recurso por tal prtica no se enquadrar na

    racionalidade do sistema recursal; uma racionalidade que prpria do sistema das aes e que nunca poderia ser oposta ao habeas corpus se tal oposio torn-lo intil na defesa da liberdade contra o arbtrio. A produo da Smula 691 do STF, diga-se de passagem, em parte consequncia

    nefasta da tentativa aberrante de se forar a aplicao de institutos tpicos do sistema das aes ao habeas corpus, no sendo por acaso que o prprio

    STF se v obrigado a afastar sua incidncia em no poucas situaes; como se a natureza poltico-administrativa do habeas corpus, de tempos em

    tempos, inelutavelmente emergisse pelas exigncias indestrutveis do mundo real.

    interessante registrarmos que este modo de pensar, enxergando o mandado de segurana como ferramenta extremamente verstil na defesa das

    liberdades pblicas, fez com que Mesquita notasse uma grande semelhana entre habeas corpus e mandado de segurana com as aes possessria e

    cautelar, levando o Professor Emrito a uma concluso notvel e que se ajusta natureza poltico-administrativa do mandado de segurana que, neste

    escrito, estendemos ao habeas corpus: Na ao possessria, defende-se a posse em si mesma, independentemente do direito. um estado de fato defendido contra pretenso daquele que tem direito. [grifamos] Na medida cautelar, o que que se busca? Procura-se uma segurana tambm. Uma

    segurana contra o que pode acontecer durante o curso do processo, tenha-se direito ou no. Constituem aes que no se destinam atuao do

    direito subjetivo, mas de outros bens juridicamente tutelados. [grifamos] Esta semelhana sempre foi percebida pelos estudiosos nas origens do

    mandado de segurana. Formaram-se at duas orientaes: uma querendo equiparar o mandado de segurana ao habeas corpus, outra querendo

    equipar-lo s aes possessrias. E disso concluiu: Sob esta perspectiva, o mandado de segurana no se apresenta como uma ao para fazer valer o direito da parte violado ou ameaado de violao por ato de autoridade. outra coisa. O mandado de segurana um meio de defesa da

  • liberdade individual, contra o poder atribudo ao Estado de dar eficcia aos seus atos. Exatamente por isso, a disposio a seu respeito encontra sua

    sede na Constituio Federal e na parte relativa aos direitos e garantias individuais.70

    Aplicando este pensamento ao habeas corpus, podemos dizer que sua altssima versatilidade necessria para que d conta de seus altssimos fins incompatvel s limitaes impostas por elementos e categorias do sistema das aes. O que tambm no o torna antittico legalidade devemos ressaltar na medida em que sua funo preserv-la ainda que de modo mediato, pois antes de um regime de legalidade imprescindvel um regime poltico minimamente estvel e legtimo no qual as liberdades mais bsicas no sejam subjugadas pelo arbtrio.

    Finalmente, em vista da polissemia do termo poltica71 so justas algumas palavras para no restar qualquer dvida quanto ao preciso sentido que

    queremos emprestar a este termo no contexto do habeas corpus.

    Quando afirmamos a natureza poltico-administrativa do habeas corpus, em primeiro lugarno queremos dizer com tal afirmao que o habeas corpus

    deva ser instrumento de manipulao partidria. Tambm no negamos que o sistema das aes seja expresso da poltica porquanto sabemos que o

    sistema das aes expresso, sim, do monoplio estatal da fora, sendo neste sentido uma expresso da poltica.72 A afirmao da natureza poltico-

    administrativa do habeas corpus tambm no pretende exclu-lo do regime de legalidade, porque o habeas corpus tambm serve para preservar la

    legalidad en una sociedad democrtica (...).73

    O sentido preciso que pretendemos empregar a esta natureza poltico-administrativa do habeas corpus to-s destacar que o remdio heroico no

    deve pertencer ao sistema das aes, na medida em que h diversas situaes em que os elementos e categorias deste sistema implicam a diminuio

    drstica da efetividade do habeas corpus, podendo at mesmo torn-lo completamente intil. O cerne, deste modo, exatamente este: os elementos e

    categorias prprios do sistema das aes no podem dificultar e muito menos neutralizar os fins constitucionais do remdio heroico. Registramos

    anteriormente,74 por sinal, que a efetividade do habeas corpus s existir se alm de estar previsto formalmente no ordenamento jurdico tambm for

    idneo para remediar a violao a direito fundamental ou outro bem juridicamente tutelvel. Esta linha de raciocnio, sem dvida, deve ser o norte em

    matria processual e especialmente de habeas corpus. E nosso mais alto constitucionalista Rui Barbosa vale-se desta linha de raciocnio ao impugnar ideia da Procuradoria-Geral da Repblica de seu tempo, a qual pretendia fosse competncia privativa do STF o processamento e julgamento

    de habeas corpus contra prises determinadas por ato do Chefe da Nao (Presidncia da Repblica) ou de seus Ministros. Aps demonstrar, com

    exemplos prticos, que a interpretao da Procuradoria praticamente anulava a serventia do habeas corpus no contexto discutido, concluiu Rui

    Barbosa: Tal restrico no estaria de accordo nem com o espirito do regimen, nem com a natureza e os fins do habeas corpus.75

    Em nosso modo de ver, a concluso de Rui Barbosa expressa o imo, a alma, o mago que devemos nos ater quando aplicamos o habeas corpus em

    nosso sistema constitucional.

    Portanto, pedindo a devida licena, a nosso ver posicionar o remdio heroico no sistema das aes, mesmo diante de tantos comportamentos e

    regramentos jurdicos que podem ser considerados anmalos pelo prisma deste sistema, lembra a conduta de antigos filsofos naturais, precursores dos modernos cientistas, que, por terem a predisposio de encaixarem todo o conhecimento haurido da natureza no livro da Bblia, por mais de

    duzentos anos classificaram fsseis como minerais com figuras. E este equvoco se deu simplesmente porque tais filsofos naturais preconcebiam a inexistncia de um mundo cheio de vida desde milhes de anos atrs. Apenas no incio do sculo XIX, com novos estudos revelando detalhes da

    formao da Terra, que os fsseis ganharam a magna importncia que lhes estava reservada pelo testemunho sublime de nossa origem e evoluo.

    Oxal ns possamos perceber que, no mundo do processo, possvel existir vida no sistema judicial mesmo fora do sistema das aes. um enfoque

    que, sem dvida, abre um novo campo para estudos e pesquisas, sendo interessante destacar que a adoo de uma estrutura processual para estes

    instrumentos de natureza poltico-administrativa (habeas corpus e mandado de segurana) expressa, em ltima anlise, o sentimento de que tal

    estrutura a mais apta para a defesa de garantias e direitos fundamentais, alm de outros bens juridicamente protegidos. Nesse sentido, ponderou

    Botelho de Mesquita: Ora, no momento em que se d a estrutura processual para o exerccio de uma funo que no processual, que uma

    funo de natureza administrativa, o que se procura dar uma garantia a mais ao desempenho desta funo.76

    11. Novos rumos

    A nosso ver,o STF deveria evitar atitudes drsticas e irrefletidas e, em seu lugar, estudar zelosa e seriamente um plano muito claro e bem dirigido para

    conquistar paulatinamente maior respeito sua jurisprudncia. Um plano que logo de incio deveria considerar a realidade brasileira, por mais

    respeitvel e til que seja conhecer a realidade aliengena. Este ponto de partida fundamental. Deveria, ademais, refletir com bastante vagar sobre a

    possibilidade de se extrair uma ou mais virtudes do instituto criado para amenizar os efeitos deletrios de excesso de recursos repetitivos, a fim de que

    se as utilize no habeas corpus substitutivo de recurso em nome da efetividade do processo e da igualdade de tratamento do jurisdicionado: e aqui nos

    referimos especificamente ao que o instituto talvez possua de mais positivo, que abrir caminho para que o STF desencastele determinadas turmas

    julgadoras que se negam a seguir a jurisprudncia dos Tribunais Superiores.77 Claro que, no entanto, tal operao nunca poderia transportar

    mecanismos deste instituto voltado para recursos repetitivos os quais, na prtica, desnaturem o habeas corpus pela criao de algum obstculo

    antittico sua natureza: como, por exemplo, a suspenso prevista nos art. 543-B e C do CPC. Em outras palavras, refletir com muita calma e sem

    atropelos sobre maneiras de dar maior projeo e efetividade sua jurisprudncia penal, sem desnaturar o habeas corpus, o que poder, a mdio e

    longo prazo, auxiliar na reduo quantitativa do trabalho do Supremo na rea penal. Jamais o contrrio: recuando diante de suas responsabilidades

    constitucionais.

    Sem falar que devemos abrir nossa mente para a tutela coletiva na rea penal, que, certamente, no far milagres, mas guarda potencial para constituir-

    se em fator de diminuio no nmero de habeas corpus impetrados individualmente. Com todo o respeito, no faz sentido algum a jurisprudncia

    ptria em regra repelir o uso do habeas corpus coletivo alegando principalmente que s as situaes individuais seriam compatveis ao remdio

    heroico;78 o que, com todo o respeito, est errado do ponto de vista tcnico na medida em que na rea penal a tutela coletiva permitiria o cumprimento

    individualizado de deciso coletiva de forma anloga ao que acontece no processo civil em aes coletivas de interesses individuais homogneos, por

    exemplo.79 Se a jurisprudncia abandonasse ideias preconcebidas, bem como temores que so injustificados para quem ocupa um cargo que exige

    mesmo coragem, e experimentasse o habeas corpus coletivo, tal medida teria potencial para auxiliar na diminuio do nmero de impetraes

    individuais, alm de semear, com o passar do tempo, um crculo virtuoso de maior respeito jurisprudncia e atuao dos Tribunais Superiores no

    campo penal.

    De qualquer modo, no podemos deixar de tocar na ferida: muito mais fcil dificultar a entrada do habeas corpus pelas portas dos Tribunais

    Superiores, porquanto neste problema de excesso de habeas corpus a parte mais fraca, no h como negar, o paciente. O outro caminho, o de medrar

    a projeo e a efetividade de sua jurisprudncia, alm de exigir um esforo brutal que tem demandado anos e anos e as melhores virtudes dos Tribunais

    Superiores, possui o agravante de no ser to raro em nosso pas juzes que confundem independncia judicial com encastelamento refratrio

    jurisprudncia dos Tribunais Superiores. O que fora a defesa, inevitavelmente, a fazer uso do remdio heroico da forma que o faz se quiser fazer valer

    os direitos de acusados ou condenados a tempo isto , antes daqueles serem condenados ou destes cumprirem suas penas. E importante notarmos

  • que pases como Estados Unidos e Inglaterra, entre outros, com todos os seus defeitos provam que possvel haver convivncia entre a sagrada

    independncia judicial e o respeito a precedentes superiores em um Estado democrtico. um sistema com seus problemas? Sim, mas a falta de

    respeito jurisprudncia superior tambm um dos fatores que mais estimulam o autoritarismo de foras policiais e de outras atividades persecutrias

    no campo penal, alm de estimular o entupimento das vias superiores, gerando um nmero de habeas corpus que s aumenta diante do sistema recursal

    autoritrio (do ponto de vista do acusado) contido no CPP de 1941.

    12. Ressurreio do Ato Institucional 6/69: conscincia insciente e decadncia de nossa cultura

    jurdica

    Um dos trechos mais emocionantes da famosa Carta aos Brasileiros de Goffredo Telles Junior, subscrita por outras tantas eminentes figuras do cenrio jurdico e por cidados exaustos de tanta ignorncia, no se limita a uma crtica veemente contra o regime servil ento vigente. Indo alm,

    atinge o esprito de cada um de ns e, um a um, o esprito de um povo inteiro: At o advento do homem no Universo observa a evoluo era simples mudana na organizao fsica dos seres. Com o surgimento do ser humano, a evoluo passou a ser, tambm, um movimento da conscincia.

    (...) a evoluo do ser humano evoluo de sua conscincia; e a evoluo da conscincia a evoluo da cultura. A nossa tese a de que o ser

    humano se aperfeioa medida que incorpora valores morais ao seu patrimnio espiritual. Sustentamos que os Estados somente progridem, somente

    se aprimoram, quando tendem a satisfazer ansiedades do corao humano.80

    Mestre Goffredo devemos nos atentar fala em movimento da conscincia e, como resultado, em evoluo da cultura.

    Segundo Albert Schweitzer cultura progresso; progresso material e espiritual, tanto individual como coletivo. E que este progresso consiste no fato de ter sido suavizada a luta pela subsistncia, quer no tocante ao indivduo, quer no tocante coletividade. Ora continua o Prmio Nobel da Paz a luta pela subsistncia oferece duas faces. O homem tem que lutar no s dentro da natureza como contra a natureza e no s entre os seus semelhantes como contra os seus semelhantes. Assim sendo, a suavizao da luta pela vida ser obtida pelo predomnio da razo sobre a natureza, e

    no s sobre ela como tambm sobre a natureza humana, predomnio que dever ser exercido da maneira mais justa e mais generalizada possvel. A

    cultura , pois, por natureza, de dupla manifestao. Ela se caracteriza pelo predomno da razo sobre as foras da natureza e pelo predomnio da

    razo sobre os propsitos humanos (grifado).81 Pois nesta linha, Schweitzer chega mesmo a indagar para si prprio qual dos dois progressos seria o essencial, concluindo em favor do progresso de menor aparncia, isto , a razo preponderando sobre as nossas intenes, pois to-somente o predomnio da razo sobre o esprito humano pode oferecer-nos a garantia de que os homens e os povos que tm nas mos o poder que as foras da

    natureza lhes conferem, no o empregaro uns contra os outros, arrastando-os a uma luta pela vida muito mais terrvel do que foi a do homem

    primitivo82

    Esta belssima e ampla viso do desenvolvimento do esprito humano, desnudando que a elevao da famlia humana apesar dos tropeos e retrocessos um processo consequencial e, em ltima anlise, que se assenta no imo do esprito de cada um de ns, denuncia o tamanho do descalabro que a novidade anunciada pela 1. Turma do STF. Porque a vedao do habeas corpus substitutivo, por esta perspectiva, apresenta-se como um ataque a cu aberto em plena luz do dia contra a evoluo da cultura de um povo, que, heroicamente, j no Imprio admitiu tal prtica pela

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