De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

102
.. I I r '(', 1/ iii- If I; II I( '" tt;' Ii ill II 11\ II> III II iii Iif. II( .. - Ii,. 1: , '" '2 E 0 .." \ .',,,,,-. Esle livro e 0 retrato de sua aUlora, ao enfrcn- tar, com destemor, 0 problema das drogas, dieando novos eaminhos para a sua solu9ao; ao abordar 0 tema da falencia da prisao como metodo penal; ao encarar 0 papel social, juri- dieo e politico da magistratura; ao estudar 0 fenomeno da· vi bien cia e dos direitos huma- nos, com lima visao larga e penetrante de suas vertentes sociais. A leitura deste livro, moderno e instigan- te, foi paramim urn regalo espiritual, e e uma . I I!IIIIIIIII 1IIIlIIIIIJ11111IIII1IIII!II Registro: 003123 TTTaM "<>n'P (II': Maria LuciaKaram De Penas e Fantasias ··"·'C LUAM

description

Free

Transcript of De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

Page 1: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

.. I

I

r

'(',

1/

iii-

If I;

II

I(

'" tt;'

Ii

ill

II

11\

II>

III

II

iii

Iif.

II( .. -iIi,.

,~ 1: • , '" '2 E 0

.."

~ \ ~,-'} .',,,,,-.

Esle livro e 0 retrato de sua aUlora, ao enfrcn­tar, com destemor, 0 problema das drogas, in~ dieando novos eaminhos para a sua solu9ao; ao abordar 0 tema da falencia da prisao como metodo penal; ao encarar 0 papel social, juri­dieo e politico da magistratura; ao estudar 0

fenomeno da· vi bien cia e dos direitos huma­nos, com lima visao larga e penetrante de suas vertentes sociais.

A leitura deste livro, moderno e instigan­te, foi paramim urn regalo espiritual, e e uma

~~~~~:f;g . I I!IIIIIIIII 1IIIlIIIIIJ11111IIII1IIII!II Registro: 003123

~:

TTTaM "<>n'P nintll~~ (II': n~m;flt-Sflni$lfl

Maria LuciaKaram

De Crillles~ Penas e Fantasias

~;

··"·'C LUAM

Page 2: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam
Page 3: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

CJ) ro ?;il -'-CJ)

19 i!! .:(

c: " ,. ..

ro J .. - ill ..

I.i ,. ~ ..

Q)

CJ)

0 • . :1 '" ro

.", II 'r • .. .. u .... c:

Q)

, ,~,

Q.

.... Q -. ~

~

Il • .:l 0 .., " ..,

CJ) Q) " E

iJ • III ;) .. -

.-•

.... oJ .. .. ()

!f • .Ie

.. ... ;) •

Q) II -0 31 -

Page 4: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

i!~ft.~

13 J. J ,;- -;;. "-j . '-f'" .. :.:> _I ... ~ ........

){H?~ J99{

Maria Lucia· Karam

DE CRIMES, PENAS E FANTASIAS

Autor: KARAM, MARlA LOelA

Titulo: DE CRIMES,PENAS E FANTASIAS

(341.532 KI8C)

ft~~:1m312] Ex.: I

Prologode Eugenio Raul Zaffaroni

LUAM

:~.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

'---­

i

Page 5: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

)

)

.J

j

\

I' edi¢o - 1991"

© Copyright Maria Lucia Karam

CIP-Brasil. Cataloga¢o-na-fonte Sindicato N acional dos Editores de Livros, RJ

Karam, Maria Lucia K27d De crimes, penas e fantasia'l por Maria Lucia Karam. - Niter6i,

RJ: Luam Ed., 1991

1 Crime e criminosos - Brasil. 2. Direito penal- Brasil. 1. Tftulo

91-0738 CDU - 343(81)

CAP A: Daniel Senise FOTO: Antonio Guerreiro

Proibida a reprodu~iio total ou parcial, bern como a reprodu~iio de apostilas a partir deste livro, de qualquer forma ou por qualquer meio eletronico ou meciinico, inwsive atraves de processos xerograticos, de fotoc6pia e de grava¢o, sem perInissao expressa do Editor (Lei nO 5.988, de 14.12.73).

. _f

Reservados os direitos de propriedade desta edi~iio pela LUAM EDITORA LTDA.

Av. Ary Parreiras, 432- Niter6i- RJ~ Tel.: 710-7847 - Cep. 24.230

Impresso no Brasil

fRltlUNAL DE Printed ;11 Brazil

JUSTI<;:A DO E. E. SANTO

Diretoria G~!-Ll de S~cretarla

BIBLIOTECA No 3 ,~Q3 o .. t .. ,1'8111 JCf~

I'

Para 'Na t ti 1 i a

i I:tltlUNAL. DE JUSIICA ~O t.. t. !:iAN I tJ:l

11&8\.r1. Uer.l da a •• r.'a ••• _ ........ 111~IQTII""

'-"".l", ,"

" . - ~ ~, ., -_.,1>'

Page 6: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

Sumario

.'

I

\! Prologo 13

Nota 17

;.~ .. /' Noyos caminhos para a questiio das drogas 19

Os crimes contra 0 patrim6nio no Anteprojeto de ./ Parte Especial do Codigo Penal brasileiro 69

Papel social, juridico e politico da magistratura 91

~ Aquisic;ao, guarda e posse de drogas para uso pessoal: // ausencia de tipicidade penal 119

/' Violencia e direitos humanos 139

.;,. ./ Algumas notas sobre penas eprisoes 169

.0:":"" .~. ______ A fantasia do sistema penal 193

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

C

~/

Page 7: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

'.'

i . ,.

. .; ~,

I

I

J

NOTA

Os trabalhos aqui reunidos foram escriJos entre 0 final de 1988 e meados de 1991. Unindo-os, esta uma visiio crftica do sistema penal, de seus paradoxos, da fantasia perversa que 0 mantem no imagimirio da sociedade, como soJw;ao para problemas por ele mesmo alimentados. .

Alguns anos de vivencia na Justi<;a Criminal me fizeram compreender que 0 compromisso com a consttu<;iio da democracia passa por desnudar 0 papel do sistema penal na conserva<;iio e reprodu<;iio das sociedades desiguais e opressoras, passa pela desmistifioo<;iio das falsas ideias sobre crimes e penas, pelo rompimento daquela fantasia perversa.

A publica<;ao destes trabalhos e uma tentatiVl!! de contribuir para uma ampla discussao - que deve ser do conjunto da sociedade - sobre estas questoes, sobre a necessaria e urgente busca de altemativas. que, @pontando para a supera,fiio do sistema penal, caminhem no sentido da democracia",], . .'

.. . Maria LuCia Karam

Page 8: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

, ':f i

'.

:.: ..

-. ~~-' ~'-~.----------~~ ~~~----~--------------------------------~:==-__ c:==~~ ____ -----

x

• ! ... a .. ao • r' II .. • .. .~

• .. ~ " F" • '-

• ~ '<::!

CD .. c .. -. ~ - V:l ... C'l :0:::

~ • '" (':) C").

• t. V:l \::l • ~I ~ • • c • !T

C ... ,

~ .. ~:;:: '. .. §;[ .. rr ..

~ .. .. ~~ ;r C3 \::l. - ()qS3 f<:

~ \::l

Page 9: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

NOVOS CAMlNHOS PARA A QU ESTAo DAS DROGAS

A criminaliza9ao de condutas relativas a detenninadas drogas qualificadas como ilieitas, a enfase dada Ii repressao penal como forma de controle e combate Ii sua dissl"mina9ao constituem 0 centro da atual politica de drogas, traduzindo v<ilores que, nao obstante seu distanciamento da realidade,. encontram-se profundamente enraizados no conjunto de nos­sas soeiedades.

Talvez seja, neste tema das drogas, onde m.ais fortemente se manifeste a enganosa publieidade do sistema pe]1l!1, apre­sentado como urn instrumento capaz de solueionar conflitos, como 0 instrumento capaz de fomecer seguran9a e tranquili~ dade, atraves da puni9abQOS autores de condutas que ah~i define como crimes.

o encobrimento das razoes hist6ricas, ecbnomicas e poll ti­cas detenninantes da distin9ao entre drogas lieitas e ilicitas, distins:ao que pouco ou nada tern a ver com a maior ou menor potencialidade de dana de umas e outras e que envolve as

Page 10: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

22 Ma~ia Lucia Kara~

drogas qualificadas de ilicitas numa capa de misterio e fanta­sia; 0 fuperdimensionamento do problema, tratado sob uma

jQrica definida nos paises centrais, quando existem, nos paises perifericos, problemas muito mais serios em materia de saude publi.91 a utiliza9ao de fatores como 0 desenvolvimento de grandes organiza«oes c~9sas e a violencia por elas gera­da, que sao apresentados como conseqiienci'!,s da~­lla9ao das drogas; tudo isto acaba por cnar urn clima de piinico, de alarme social, seguido pela demanda de ~is repressao, de maior a9ao policial, de penas mais rigorosas, como costuma acontecer em situa90es que comovem e assus­tam 0 conjunto da sociedade.

Amterven9ao do sistema penal aparece como a primeira alternativa, como a forma mais palpavel de seguran9a, como a forma de fazer crer que 0 problema estara sendo soluciona­do.

E talvez seja, neste tema das drogas, onde mais fortemente se manifestem as informa90es falsas, capazes de induzir a errada busca da interven9ao do sistema penal, que, aqui, mais do que ser apenas uma solU9ao simplista e aparente, e, na verdade, uma fonte de maiores e mais graves conflitos, urn paradoxal estimulante de situa90es delitivas.

1. Saude eDrogas. A distinfiio entre drogas licitas e ilicitas

Colocando-se, como de fato deve ser colocada, a saude como centro de referencia no tratamento da questiio das drogas, de inicio, se podera percebera desmesurada impor­tiincia que se da a essa questiio nos paises perifericos.

·1

De Crimes, Penas e Fantasias 23

Longe de atingir a dimensao dos problemas norte-ameri­canos ou europeus, a importanciil das drogas, no quadro aa saude publica, no Brasil, como nos demais paises de nossa margem, e efetivamente suplantada por uma situa9ao tragica, . em que 0ao conseguimos resolver sequer prob1emas extremamente simples, como 0 controle de doen9as preveni­veis por vacma§} (no Brasil, segundo dados do UNICEF, morrem cerca de 8.600 crian9as, anualmente, de 4oen9as como tetano, djfteria e ate sarampo). (1) - "'---'-

Alem disso, 30% das crian9as ate 5 anos, em nosso pais, sofrem de ,desnutri9ao, ao mesmo tempo em que 0 menor indice de mortalidade infantil, que conseguimos registrar, nas regioes suI e sudeste (40 e 41 obitos, respectivamente, por 1.000 nascidos vivos, contra 89 na regiao nordeste), amda e 0

dobro dos indices registr.ados nos paises centi-ais ou em Cuba. (2)

Por outro lado, a incidencia de doen9as, como a~anse-. rnase, a malaria, a esquistossomose, a doen9a de Chagas-;lha muito controladas em outros paises, vern se somar a ame~ do calera, amea9a particularmente agravada pela falta de saneamento basico, bastando pensar que menos da metade dos 4.425 municipios brasileiros - 47,28% - possui rede coletora

. ------(1) Dados levantados pelo UNICEF, em 1989. Veja-se materia publicada na Folha de Sao Paulo, em 08/05/90. (2) Dados levantados na Pesquisa Nacional sobre SaUde e Nutri9ao, realizada em 1989, pelo IBGE e pelo Instituto Nacional de Alimenta9iio e Nutri9ao do Ministerio da Saude. Veja-se materia publicada no Jornal do Brasil, em 03/06/ 90.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

C (

\

t,

t,.

(

\

\

\.

\.

Page 11: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

24 Maria Lucia Karam

de esgotos. (3) Se lembrannos, ainda, dasLnotorias deficien-' cias do atendimento medico-hospitalar, nao havera como negar que a preocupac;:ao com os efeitos do abuso de drogas nao se coloca, propriamente, como uma prioridade neste campo-da saud~

Mas, mesmo ao se tratar da questiio especifica, a substi­tuic;:ao da fantasia pela realidade ini demonstrar que a substan­cia que pode ser vista, efetivamente,como um problema, muito mais serio dogue os eventualmente gCjdOS por qualguer droga qualifica<!.a como ilicita, eo' cool.

Pesquisa realizada em 1989, pelo Centro Brasileirci de Infonnac;:oes sobre Drogas e Psicotropicos da Escola Paulista de Medicina, constatou, num universo de 67.478 pessoas internadas em hospitais psiqu~s, publicos e privados, de todo 0 Brasil, com problemas desta natureza, 64.000 - ou seja, 94,8 cg, - intemac;:oes relacionadas com 0 abuso de aIco..QJ e apenas 3.478 relacionadas com drogas qualificadas como ilicitas, 0 que levou a coordenadora da pesquisa, Beatriz Carlini Cotrim, a afinnar que "apesar de as mortes por overdose de cocaina terem chocado muito a populac;:ao ultimamente, 0 grande problema brasileiro continua sendo 0

consumo de alcool". (4)

Mas, as perturbac;:oes psiquicas, hao que se somar, sejam as 'doenc;:as fisicas diretamente causadas peIo abuso do alcool, sejam as mortes e lesoes a ele aSSQCiadas, notadamente na

(3) Dados levantados na Pesquisa Nacional sobre Saneamento Basico, reali­zada em 1989, pelo IBGE. Veja-se materia publicada no Jornal do Brasil, em 18/05/91. (4) Veja-se materia publicada na Folha de Sao Paulo, em 27/01/91.

f 'j , .j . ;j

!

De Crimes, Penas e Fantasias 2S

\circulac;:ao de .veiculos, em espancamentos domesticos, ou ~igas em bares e outros locais abertos;J

A substituic;:ao da fantasia pela realidade demonstra que 0

ralcool pode debilitar, ferir ou matar incomparavelmente mais . lslo que qualquer droga qualificada como ilicitaJafmnac;:ao

valida ate mesmo para outros paises, onde 0 consumo abusivo de drogas ilicitas atinge dimensoes bem maiores do que as que se podem constatar em paises como 0 nosso. Na Espanha, por exemplo, 0 alcool constitui a terceira causa de morte, seguindo­se as enfermidades cardiovasculares e ao cancer, atribuindo­se a seu consumo 35 % dos acidentes de transito, a quarta parte dos suicidios e mais de 15 % dos acidentes no trabalho. (5) Na Franc;:a, 0 numero de mortes resultantes do alcoolismo e estirnado em 80.000 por ano, contra 120 causadas pelo abuso de drogas qualificadas como ilicitas. (6)

Mas, mais do que a maior gravidade.da repercussao social dos problemas causados pelo abuso do alcool;' e 0 propriQ conceito de drogas quef:ao deixa duvida quanto a artificia:li dade da distinc;:ao entre drogas Heitas e ilicitas, quanto ao discurso encobridor das razoes historicas, economicas e politicas, que, por sobre as preocupac;:oes explieitascom a saude publica, efetivamente determinam a qualificac;:ao de umas e nao de outras drogas como ilieitas.

(5) Veja-se Carlos Gonzalez Zorrilla, Drogas y Cuestion Criminal, in EI Pensamiento Criminologico II, Ediciones Peninsula, Barcelona, 1983, ps. 182/183 . (6) Cf. afirmayao doProcurador daRepublica, Georges Apap, citadopor Alain Delpirou e Alain Labrousse, in Coca Coke - Produtores, Consumidores, Traficantes e Governantes, Editora Brasiliense, Sao Paulo, 1988,.p. 300.

Page 12: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

26 Maria Lucia Karam

A partir do que genericamente estabeleceu a Organizai;ao ~undial da ~aude -&roga e toda substfulcia que, introduzida num organismo vivo, pade modificar uma ou varias de suas fun<;o~ desenvolveram-se defmi<;oes urn pouco mais preci­sas, sendo comumente aceito 0 conceito de droga como toda substiincia que, atuando sobre 0 sistema nervoso central, provoque altera<;oes dasfun<;oes motoras, do raciocinio, do comporkmento, da percep<;ao ou do estado de iinimo do individuo, podendo produzir, atraves de seu uso continuado, ·m estado de dependencia fisica ou psiquica. (7)

. Ainda de acordo com as defini<;oes estabelecidas pela

o Organizayao Mundial da Saude, pode-se ent~nder por dependencill p:Jquica o[impUiso psicologico que leva ao uso continuo dasubstiincia, para provocar prazel"ou evitar 0 mal­estar provocado por sua fal~caracterizando-se a dependen­cia fisica pelo rstado fisiologico, manifestado por sintomas dolorosos; coiihecidos como sindrome de abstinencia, decorrente da interrupyao da ingestao regular da substiincia em questaoJ tambem devendo se destacar 0 fen6meno da toleriincia, entendido como 0 estado de adaptayao orgiinica, caracterizado pela necessidade de utilizayao de doses cada vez maiores de uma droga, para manuten<;ao do efeito inicial.

DenJ!2 destes conceitos, nao ha como exs:Juir 0 alcool, medicamentos (barbituricos e outros tranquilizantes, ansio- 0

liticos, an,fetaminas e produtos afins, como moderadores do apetite), Q.. tabaco, ou ate mesmo 0 cafe, 0 cha e bebidas como

(7) Veja-se conceito analogo no trabalho de Carlos Gonzalez Zorrilla, op. cit., p. 179

~ i j ;\

J ~ • i .~ J 1. j ! 1

'1'

~

'De Crimes, Penas e Fantasias 27

a Coca-Cola (sy da defmi<;ao de drogas, sendo de se cOnSiderar que muitas destassubstiincias, livremente comercializadas, produ:i:em inclusive dependencia fisica (como e 0 caso do alcool e dos barbitliricos e outros tranquilizantes), enquanto drogas qualificadas como ilicitas nao rem tal capacidade (como e 0 caso da cocaina, ou do LSD e outros alucinogenos). (9)

Esta divisao artificial das drogas em licitas e ilicitas, como ja mencionado, envolve estas ultimas ~ma capa ~o e fantasia, que as associa ao desconhecido eaotemido, danc!o­~ uma ~onota9ao urn tanto, satiinica, bern ao gosto da demonologia dos seculos XVI e XVII (10),0 que contribui, de forma decisiva,[!iara impedir uma discussao r,nais racional da questao.)

Muitas a<;oes pedagogicas, dirigidas aos jovens e dornina­das por esta visao fantasiosa, acabam por produzir efeitos opostos a suas finalidades, pela falta de credibilidade de discursos que ignoram a artificialidade da: distin<;ao entre drogas licitas e-ilicitas (0 mesmo pai que se aterroriza com a descoberta de urn cigarro de maconha entre os pertences do filho e capaz de tomar varias doses de uisque na frente do

(8) Sobre a formula original da Coca-Cola, II base de cocaina, cafeina e extratos da noz de gola, misturados com agua e gas carbonico, vejam-seos comentEirios de Alain Delpirou e Alain Labrousse, em Coca Coke ... , op. cit., ps. 45/46. (9) Sobre a a9ao, a intensidade dosefeitos e alguns dos riscos mais serios das diferentes drogas, veja·se 0 quadro sinoptico elaborado por J. Cami Morell (in Cuadernos de Pedagogia, nurn. 73, Barcelona, 1981) e reproduzido por Gonzalez, no trabatho citado, ps. 180/181. (10) Arespeito, veja-se 0 interessante artigo de Nilo Batista, A Senten~a como Exorcismo, in Punidos e Mal Pagos, Editora Revan, Rio de Janeiro, 1990.

- ~ f' "'I,) t. t.' ::J>~,t\l ~ U 'RitlUNAL DI::,,1U:;:; I h .. !~·.... .'

. I 'ei"4- '·'i(iH;'111·{;,',\,~,';i).F h:, DilllrotIDTl"'\[- t:"JWI.,I.~ '<. (>.

(

I (

(

('

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\ (

l. (

\

\.

\,

( , "0 l

\.

Page 13: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

j

/

28 Maria Lucia Karam

mesmo), que desprezam as diferenyas de natureza edos efeitos das diversas drogas (maconha,ou cocaina, ou LSD, ou heroina sao substancias efetivamente bern diferentes), que cultivam a fantasia do chamado fen6meno da escalada (a visao, divorciada da 16gica ,mais elementar, da maconha como degrau para 0 consumo de drogas pesadas), ou que confundem 0 consumo eventual com a dependencia ou a degenerayao fisica e psiquica. Tais discursos contradizem a experiencia de seus destinatirios, que, tendo experimentado, notadamente a maconha, sem sofrer os efeitos destrutivos anunciados, acabam por desprezar recomendac;:oes sobre os

"perigos efetivos do abuso de drogas, especialmente as mais pesadas.

Por outro lado, a visao moralista,@,ue apresenta 0 uso das drogas ilicitas como urn vicio condemivel, degradante, freqiientemehte ligado a fantasias sobre orgias sexuai~(no Estado Novo, a lei penal continha dispositivo agravador da pena se, ao uso de drogas, se somasse 0 sexo), traz como conseqiiencia 0 forte poder atrativo, caracteristico dos "praze-res proibidos". ,~

Alem do abandono destes estere6tipos, uma discussiio racional da questiio das drogas 12assa, antes de tudo, pela deslIlis,!ifi.c::a,<;:ao da visiio de que droga esti sempre ligada Jl problema. - - -

E preciso ter e deixar claro, ate para nao cair num discurso contraproducente, que 0 &so ile'drogas pode ser apenas prazeiros~N em todos os efeitos primarios de tais substancias sao negativos, dependendo, niio s6 da natureza farmacol6gica de cada uma, mas de uma serie de outros fatores, como a

¢:~ ......

.' ~-

r,"

De Crimes, Penas e Fantasias 29

quantidade ingerida, as circunstancias e a freqiiencia em que se da 0 consumo, a relayao estabelecida entre 0 cOnSumidor e o produto, etc. Trabalhando-se sem a distinyiio artifieial entre drogas lieitas e ilicitas, isto pode ser facilmente percebido, quando se pensa no usa moderado do aIcool, no efeito unicamente prazeiroso e positivo que se pode extrair, por exemplo, de uma tac;:a de urn born vinho na refeiyiio, ou de uma cerveja bern gelada na saida da praia.

Oebuso, ou usa imoderado, e que constitui e evidencia urn problem§ pois, aqui, como em outros campos, a quantidade pode dar 0 salto, que a transforma em qualidade. Mas, e sempre born ter claro que, como em outros aspectosda vida, mais do que constituir urn problema em si, 0 excesso~ levando ao abuso e a drogadic;:ao (seja por drogas lieitas ou ilieitas), e urn sintoma, que, como tal, tambem deve ser tratado, impon­do-se aJ!iecessidade de investigac;:ao e tratamento do proble­ma evidenciad0 - ou dos problemas evidenciados - par es-

,~JreeSS,O.

Vaillant ressalta, inclusive, 0 pequeno papel exercido pela desintoxicayao no tratamento das adiyoes, dado que considera o abuso de drogas como sintomatico de problemas subja­centes. (11) Na mesma linha, Grinspoon e Bakalar afirmam que, i!rlais importante do'que os aspectos do, t~atamento da pr6pria droga e 0 estabelecimento de uma relayao terapeutica para 0 tratamento da depressiio subjacente ou da desordem de

(11) G. Vaillant, The Harvard guide to Modern Psychiatry, Harvard University Press, 1978, p. 576.

Page 14: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

30 Maria Lucia Karam

car~iter, ou de ambas, ressaltando que, se nao se seguir com urn tratamento adequado, apas ter 0 usmirio ficado livre da

-droga, 0 retorno a droga inicial, ou a outra com efeitos similares, sera quase certo, na medida em que aquela aparece comprovadamente, para ele, como urn meio encontrado para o "ajustamento" de seus problemas pre-existentes. (12)

Naturalmente, a investiga9ao e 0 tratamimto destes problemas pre-existentes, evidenciados pelo excesso, pela drogadi9ao, passam, nao so pelos aspectos individuais, mas, sobretudo, pela considera<;iio de seus condicionanientos so­ciais, politicos, econ6micos e culturais.

2. Drogas e sociedade. Alguns aspectos historicos, politicos e economicos

o discurso universal e atemporal dominante, encobrindo os condicionamentos (sociais, politicos, econ6micos e culturais) historicamente determinantes das condutasrelativas a drogas e das formas de seu controle, constitui urn dos fatores mais expressivos da desinforma9ao e conseqiiente cria9ao de falso~ estereotipos e falsas solU90es.

o caininllo da drogadi9ao ~a, muitas vezes,~a

(12) L. Grinspoon e J. Bakalar, Comprehensive Textbook ofPsychiiitry;Ur ed., Williams & Wilkins, Baltimore/London, 1980, ps. 1614/1629.

~~k

'.f·

-. Dc Crimes, Penas e Fantasias 31

i., :

(fiecessidade de atendim. ento as exigencias sociais, ou pela ~opria necessidade de sobrevivencia.)

Basta pensar, de urn lado, na mulher levada a usar drogas moderadoras do apetite, para emagrecer e, assim, poder atender as exigencias de urna moda culturalmente impOSta; ou no executivo, que alterna os estimulantes durante 0 dia e os soniferos a noite, para suportar 0 ritrno de trabalho e a competi9ao; ou, ainda, nos trabalhadores funcionando, em llnhas de montagem, a base de cafe e alcool. (13)

Ou, transportando-se para 0 periodo colonial, emnossa America Latina, basta lembrar dos indios comprando folhas de coca, em lugar de comida, com as escassas moedas obtidas em troca de seu trabalho.

Mas, pense-se tambem, hoje, no Brasil, na evidenttfrela­c;ao entre a fome, as precarias condi90es de vida e a cacha9a (mais barata do que 0 feijao), a fome, 0 abandono das crianc;as de rua e a pratica de cheirar cola, substitutivos alimentares para 0 corpo e para 0 espirito, ao tragico pre90 da abreviac;ao da vida.].

E essa pratica de cheirar cola, nao atingindo os filhos das classes dominantes ou das classes medias, tampouco atinge 0 mesmo nivel de preocupa9ao que sao capazes de causar 0 usa de maconha, ou 0 usa de cocaina, ou ate mesmo 0 usa de heroina.

(13) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 193.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

l (

(

\

\..

l (

C (.

Page 15: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

32 Maria Lucia Karam

• Mas, n., e so este 0 dado principal desta preocupas:ao diferenciada. Aqui, como acontece em outros campos,.~ guem-se tambem as linhas importadas dos paises centrais. ---' ~- -

A tendencia de nossos paises latinoamericanos, no entanto, nao e de se tornarem grandes centros consumidores de maco-

. nha, cocaina e, muito menos, heroina. Aqui tambeme oreem economica internacional nos reserva 0 papel de paises produ­tores e exportadores de materias-primaiJDa mesma forma que nossos mercados internos pouco desenvolvidos geram a logica d0L!>roduzir para exportar materias-primas e alguns produtos acabados, para as drogas ilicitas, a mesma logica funcionD Nao somos nos, latinoamericanos, os alvos do consumo, ate porque, como consumidares, nao nos e dado 0 mesmo potencial dos habitantes do Norte, para gerar os fabulosos lucros que presidem este mercado.

Mas, nem semp're as drogas foram geradoras_de gr..a_ndes lucros (como nem sempre foram geradoras degrandes pro--- - ~ blemas).

Abundantes informas:oes historicas evidenciam que os povos antigos conheciam e utilizavam drog~ em seus rit9s religiosos, em suas pniticas medicinais, ou em atividad~s beli~a§, artesanais, na cava e na pesca. Beristain lembra que, naf:hina, 3.000 anos antes de Crist6Jtratados farmacologicos descrevem a cannabis e seus efeitos, 0 mesrno sucedendo na india, no Egito e na Grecia Antiga, tambem em'relas:ao ao

_opio, sendo tais substancias, da mesma forma, conhecidas e utilizadas pelos persas, pelos arabes, pelos romanos, pelos

"

De Crimes, Penas e Fantasias 33

turcos, ou ainda pelos indigenas da America Latina na epoca pre-colombiana. (14)~ao tinham as drogas, enta~, urn valor economicoJ

adquirir valor de troca, vao se transformar em mercadorias, E somentt€om 0 advento do capitalismo que as drogas vaOl

)

organiZandO-se sua produs:ao e distribuiyao como atividade economica, que vai disseminar 0 consumo e gerar grandes lucros. .

Sao igualmente abundantes as informas:oes historicas, que dao noticia do papel desempenhado par tal mercadoria no processo de acumulas:ao legal do capital, nos seculos XVI a XIX.

Lembra tambem Beristain, reproduzindo a narrativa de Galeano, que, na Americjt da colonizas:ao espanhola, sequer havia objes:ao moral it presens:a das drogas nestecpl'ocessode acumulas:ao primitiva do capital, nao se furtando a Igreja de cobrar seu dizimo sobre as plantas:oes de coca. (15)

~~

Vale reproduzir, aqui, as proprias palavras de Galeano:

"Os turistas adoram fotografar os indigenas do altiplano vestidos com suas roupas tipicas. Mas ignoram que a atual vestimenta indigena foi im-

(14) Antonio Beristain, S.J., Dimensioncs Historica, Economica y1!olit-ica de las Drogas en la Criminologia Critica, in Cuestiones Penales y Criminologicas, Reus, Madrid, 1979, p. 528. (15) Beristain, op. cit., p:535.

If'lII:lUI'IlAL. Ut. ,JU:JIIL,,, <'-- ",,,,,III i Iii

Blr8~Drla Q~ral da ~.cr~ta.Aa

'; , '>;~.. I #.n),. ..,.. ... _

Page 16: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

34

taD

Maria Lucia Karam

posta por Carlos III em fins do seculo XVIII. Os trajes femininos que os espanhois obrigaram as indias a usarem eram calcados nos vestidos regio­nais das camponesas da Extremadura, Andaluzia e pais basco, eo mesmo ocorre com os penteados das indigenas, repartidos no meio, impostos pelo vice­rei Toledo. Nao acontece 0 mesma, em troca, com o consumo de coca, que nao nasceu com os espa­nhois;(la existia nos tempos dos incasJA coca se distribuia, entretanto, com modera<;ao; 0 govemo i!!£aico tinha 0 monopol~ e[so permitia seu uso com f1JlS rituais ou para 0 duro trabalho nas minas] Os espanhQis estimularam intensamente 0 con­sumo-de coca. Era-um negocio esplendido. No seculo XVI, gastava-se tanto, em Potosi, em roupa europeia para os opressores como em coca para os indios oprimidos, Quatrocentos mercadoreses­p.anhOis viviam, em Cuzco, do trafico de coca; nas minas de Potosi, entravam anualmente cem mil cestos, com um milhao de quilos de folha de coca. A Igreja cobrava impostos sobre a droga. 0 inca Garcilaso de IaVega nos diz, em seus 'comentarios reais', que a1!Paior parte da rendtt do bispo, dos conegos e demais ministros da igreja de Cuzco provinha dos dizimos sobre a coc<!1 e que 0 trans­porte e a venda deste produto enriqueciam a muitos espanhOis." (16)

(16) Eduardo Galeano, As Veias Abertas da America Latina, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 25' ed. 1978, p. 58.

De Crimes, Penas e Fantasias 35

Mas, talvez mais significatiy:a seja a conhecida histo­ria das~uerras d~ opio na China]

Fomentando a produ<;iio na costa oriental da India, a Inglaterra, em plena era vitoriana, realizou grandes lucros com a venda na propria India e, especialmente, com a expo]::: tacao para a China, onde, calcula-se, cerca de dois milh5es d,~, pessoas chegaram a se tomar opiomanas. As vendas de opiQ,'. promovidas pela East India Company, chegaram a representar a sexta parte do total das rendas da India Britiinica. (17)

A apreensao e destrul¥ao de um c~to de 1.360 toneladas de opio, ordenada, em ID2, pelo imperador Lin Tso-Siu, seguiu-se a primeira daquelas ~as, declarada pela Inglaterra, em nomed9 Ivre omercio Como resulta9.o, alem da indeniza<;ao recebida por aquele carregamento, a Igglaterra amda obteve, c,om 0 Tratado de Nanquim., celebra-

----.,. do em 29 de agosto de 1842, a cessao de Hong-K.Q,!!g, para ali instalar sua base naval e comercial.

Na segunda guerra, do apio, iniciada em outubro de 1856, a Inglaterra ja teve a seu lade a Fran.s:a, que, ate a primeira ' metade do seculo XX, tambem tealizou seus lucros com a importa<;ao, produ<;ao e venda de opiona Indochina, onde tinha, desde 1899,0 monopolio estatal daquelas atividades.

(17) Sean O'Callaghan, Les Chemins de la Drogue, Ed.de Trevise, Paris, 1969, ps. 11 ss. Sobre a presenya das drogas no processo de acumulayao de capital, na etapa coloniaIista, vejam-se, ainda, Beristain, op. cit., ps. 530/535 e Luis de la Barreda Solorzano, Capitalismo y Drogas, in Memorias, IV Encuentro Latinoamericano de Criminologia Critica,Ministerio de Justicia de

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

<:

(

(

(

(

(

l

(

(

{

(

(

I \_-

f.._

\

(

(

(.

C \,

Page 17: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

r.1"'· :.~r:r .[

I ,I ':

'r l

. ./

36 Maria Lucia Karam

o ava ca italismo, com a superayao da etapa colo-niailsta, tambem vai se relletir na economia das drogas. A criayao e 0 desenvolvimento de novosmercados vao levar, nesta etapa superior, it que as drogas, produzidas nas antigas col6nias, tenham sua comerciaIizayao explorada nos paises centrais, sendo as que, geralmente, VaG ser qualificadas como iIicitas, atingindo, em nossos dias, notadamentea partir dos anos 60 e 70, a notive! expansao que movimenta cifras astronomicas (calcula-se que s6 0 mercado mundial da~­na movimente por ~ cerca de ])0 biIh6~ de ~), constituindo-se no§Iais lucrativo neg6cio dos ultimos anos] (para se ter uma ideia, 0 movimento gerado pelo comercio de diamantes nao passa de 5 biIh6es de d6lares anuais).

E certo que as drogas exercem, hoje, urn papel relevante na economia dos paises produtores e exportadores. 0 m\litas vezes elogiado plano de estabilizayao da economia, posto em pnitica pelo Governo do MNR na Bolivia, quelevou a infiayao de 12.500%, em meados de 1985, para 80% em 1987, foi acompanhado pelo estimulo it reciclagem dos capitais iIicitos, estipulando 0 Decreto nQ 21.060 que nenhum ()Ofttroieseria exercido sobre as somas repatriadas, calculando<se que a massa monetliria proveniente do tnifico de drogas, it epoca, atingiria de 500 a 800 milh6es de d6lares, valor stipf;:rior ao montante das exportay6es legais. (18)

Tambem na Colombia estima-se que, some.~anode 1991, 0 ingresso de-d6Iares, cuja origem nao precisa ser

Cuba, La Habana, 1987, ps. 65/67. (18) Veja-se Delpirou e Labrousse, Coca Coke ... ,ps. 180/186.

De Crimes, Penas e Fantasias 37

declarada, ja tinha atingido, ate junho, a quantia de urn bilhao de d6lares, legalizados pelo Banco Central, prevendo-se, para o ano todo, a cifra de 2,5 bilh6es de d6lares, superior a receita de qualquer exportayao legal do pais. (19)

Nao e de se espantar, portanto, que, em entrevista ao The New YorkTimes, 0 funcionario do Ministerio do Planejamen­to da Colombia, Fernando Tenjo Galarza; tenha declarado que "se 0 tnifico de narc6ticos fosse detido subitamente, seria 0

mesmo que passar por uma crise do setor cafeeiro e uma crise do petr6leo ao mesmo tempo." (20)

Mas, ja na comparayao destas cifras com os 150 bilh6es de d6lares estimados para 0 movimento do mercado mundial, e facil constatar que, como determinam as regras que regem a ordem economica internacional e it semelhanya do que ocorre em qualquer outro setor da economia,Etao sao os paises produtores e exportadores que, efetivamente, lueram com 0

neg6cio das drogagOs 250 a 500 kg de folhas..de coca, necessarios para a fabricayao de 1 kg de cocaina, custam menos de US$ 1 mil, 1 kg de cocaina.esse que,nos~, chega a ser vendido, no varejo, por ate US$ 240 mil. (21) Em propory6es ainda maiores sao os lucros no ciclo fmal da heroina. Urn quilo deheroina e vendido, emNova York, a urn preyo aproximado de 1 milhiio de d6lares, enquanto Ilmateria­prima - 10 kg de 6pio - custa urn niaximo de 500 d6lares. (22)

(19) Cf. materia publicada na Revista Veja, edi¢o de 26/06/91. (20) Palavras reproduzidas em materia publicada no Jomal do Brasil, em 161 06/91. ' (21) Veja-se materia publicad. na Folh. de Sao Paulo, em 12/06/9l. (22) Veja-se Gonzalez, op. cit.,cp. 198 .

Page 18: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

.f~y~-,.-~"~ ..

~ .•...

''''''''.'c.'

~i·7~~· . ~8 Maria Lucia Karam

Estes lucros. fabulo~s @imentam 0 circuito fuianceiro intemacional, integrando-se ao capital legal, atraves das cha­madas operac;:6es de lavagem"J:ealizadas por "respeitliveis" instituic;:6es financeiias. (23)

Por outro lad,?, a prodU(;ao das drogas qualificadas como ~, nos paises perifericos, e tambem umaExpressao de sua situac;:ao socio-economica, estando intimamente ligada a questiio do endividamento, ao esgotamento de recursos natu­rais ou de suas rendas (quedas de prec;:os de marerias-primas), ao subdesenvolvimento, Ii injusta divisao do trabalho intema­cionaU

Como indicam Lamour e Lamberti:

"Si se qui ere buscar el opio, legal 0 no, es sieIDpre a los paises 0 a las regiones subdesarrol­ladas a donde hay que dirigir la mirada; es alIi, de hecho, donde se encuentran reunidas todas las circunstancias que haeen posible - mejor, inevita­ble - este tipo de produccion: mana de obra abun­dante y barata, regiones geograficas atrasadas, vias de comunicacion inexistentes 0 insuficientes, mercado intemo estrecho, aparatos administra­tivos carentes". (24).

(23) Sobre a integrayiio dos lucros das drogas no circuito f'manceiro internacional, leia-se, entre outros, 0 contundente livrode Jean Ziegler, A Sui~a Lava Mais Branco, Editora Brasiliense, Sao Paulo, 1990, (24) C. Lamour e M. Lamberti, II Sistema Mondiale della Droga (Turin, 1973), citados por Gonzalez, op. cit., p, 208.

D~ Crimes, Penas e Fantasias 39·

De forma semelhante se expressa urn jomalista espanhol, citado por Rosa Del Olmo, em relac;:ao ao Mexico:

"Para un polida mal pagado y un pobre campe­sino, que apenas consigue cosechar productos para la subsistencia, no hay nada mas faci! que recibir el comodo dinero ganado con la produccion y el trafico de la droga. Los sobomos de los narcotra­ficantes superan con creces los miseros sueldos de un policia mexicano. Para un pobre campesino el cultivo de mota (marihuana) y amapola es mas comodo, varias veces mas rentable y mucho menos complicado que la pelea con los organismos me­xicanos encargados del credito agricola,unido a la inseguridad de la cosecha. Los narcos anticipan la semilla, el dinero y pagan muchisirno mas que los que compran elmaiz 0 el frijol!" (25)

LembramLamour e Lamberti a experiencia inversa da Iugoslavia, que, antes da 2~GuerraMundial, produzia cerca qe 60 toneladas de opio por ano, reduzindo-as para 2,5 toneladas na decada de 70, fato, em suas palavras, indicativo de que

"el desarrollo regional elimina la adormidera en favor de otros cultivos en la medida en que existe para6stos un mercado estable". (26)

(25) Rosa Del Olmo, Aerobiologia y Drogas - Delito Trans-ional, in Menlorias, IV Encuentro Latinoamericano de Criminologia entica, Ministerio de Justicia de Cuba, La Habana, 1987, p. 85. (26) C. Lamonr e M. Lamberti, na obraja citada, in Gonzalez, op. cit., p. 209.

('

('

('

[

(

(

{

(

(

(

(,

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

!

\

(

<­(

(.,

Page 19: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

40 Maria Lucia Karam

Alain Delpirou e Alain Labrousse infonnam que, segundo o sociologo Jose Blanes, por eles entrevistado, com 180 milhoes de dolares (0 que nao e muito, quando se pensa, por exemplo, que so em 1987, 0 Congresso norte-americano autorizou um gasto de mais de 3 bilhoes de dol ares para a sua "guerra contra as drogas"), se poderiam irrigar 45 mil hecta­res nos altos vales de Cochabamba, na Bolivia, fixando os agricultores it terra e assegurando-Ihes um nivel' de vida razoavel, de fonna a evitar a- migra9ao para 0 Chapare, a planicie onde se concentram os campos de cultura das folhas de coca e que, com 0 "boom" da cocaina, se transfonnou no polo de atra((ao dos deserdados daquele pais (em 1967, 0

Chapare contava com 24.381 habitantlYs, contra mais de 200 mil em 1986, sendo que 70% dos colonos la instalados vem dos vales de Cochabamba). (27)

Nao se pense, porem, que os colonos do Chapare sejam ricos fazendeiros. Como narram Delpirol! e Labrousse, esses camponeses, qlle passaram sem transi((ao da economia de troca para a do dolar, pennanecem mal alimentados - os produtos alimentares, que vemde fora, tem pre((osaltissimos - os servi((os de saude, educa((ao e transportes, na regiao, sao extremamenteprecarios e, mesmo quando passani a elaborar eles proprios a pasta base, pennanecem dependentes dos grandes empresarios da droga, pois nao tem acesso aos meios necessarios para sua transfonna((ao em cocaina e, sobre­tudo, estiio distantes da etapa mais rentavel do negocio - a

(27) Sobre eslas questoes, veja-se 0 ja citado Coca Coke ... , especilllmente, ps. 59/60 e 263/265.

:~.,

De Crimes, Penas e Fantasias 41

comercializa((ao do produto - que exige unia organiza((ao inacessivel a pequenos produtores. (28)

Baratta tambem se refere a estes pequenos produtores latinoamericanos, -lembrando que a participar,:ao proletari­zada dos aditos dos pa1ses centrais, no grande circulo da economia da droga, so e comparavel it destes camponeses bolivianos;qlle, sesao privilegiados em rela((ao aos deserda­dos daquele pais, sao tiio explorados e controlados quanto os consumidores-distribuidores, encontrados no extremo oposto do sistema da droga. (29)

Alem de ocultar estes e multiplos outros fatores econ6mi­cos, como 0 papel dos mercados consumidores na detenni­na((ao da produ((ao e a cria((ao de demandas artificiais, carac­teristica da economia capitalista, a investida contra os ~ produtores e exportadores, base da politica da guerra contra as drogas,imposta pelos senhores do Norte, revela-se de extrema funcionalida<k-Jlolitica.

E~endo 0 ag~te ~~....9 como 0 inimigo a serenfrentado nessa guerra, a'partir da decada de~, os ~ impoem uma

Erescente internacionaliza((ao da politica de drogas, pressio­

nando os 'pa~ses perifer~c?s, ~specialm.ente os latinoa~erica-'& . nos, em ilmltes a:tentatonos a soberama daquelas nayoes.

I A internacionalizayao se manifesta napropria linguagem, (i

1 (28) Delpirou e Labrousse, op. cit., ps. 63/68. t ~29) Alessandro Baratta, Introduccion a una Sociologia de la Droga, mimeo, ." p. 19 (palestra proferida na Conferencia Inte~onal de Direito Penal, Ii promovida pela Procuradoria Geral da Defensoria PUblica e pela Secretaria de !\ Estado de Justiya do Rio de Janeiro e realizada no Rio de Janeiro, de 16.a 21 • de outubro de 1988). '. . rHltlUNAI,.. Ut. JU~ IIL;A DU t. t.. ~ANT •

• 1re\erla"O_ral da a.O'.~a.l.

"." &'.--"--:"-

Page 20: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

42 . Maria Lucia Karam

com 0 uso generalizado do radical da palavra inglesa Narcotics, utilizavel tambem em espanhol ou em portugues, passando-se a falar de narcotrafico, narcodolares, etc., quando o principal alvo da politica do momenta - a cocaina - sequer pode ser visto como narcotico, tratando-se, ao contrario, de . urn evidente estimulante.

Atacando as fontes produ!Q@§,)com 0 fun declarado de . impedira chegada das drogas aos 'EUA]desenvolveram-se pIanos de erradica<;ao de planta<;oes de maconha e folhas de coca, notadamente no Mexico e na Colombia, em programas que, alem de nao afetarem de forma significativa a produ<;ao, acabaram por contribuir para seu deslocamento a outras areas, aumentando, desta forma, as fontes da ofer~. Nestes progra~ mas, financiados ou realizados com a colabora<;ao direta dos EU A, utilizaram-se herbicidas de conhecidos efeitos devasta­dores sobre 0 meio ambiente, como 0 Paraquat e 0 GIifosatQ, herbicidas cuja utiliza<;ao no interior dos EUA, naturalmente, sempre encontrou resistencias (30), reproduzindo-se, alias, 0 que ocorre com a exporta<;ao, para os paises perifericos, de medicamentos - ou melhor, drogas - proibidos nos paises centrais.

De tais programas a imposi<;ao de tratados de extradi<;ao, para julgamento de nacionais dos paises perifericos nos EU A, que chegaram a se concretizar na Colombia, ao pre<;o - sem qualquer contrapartida significativa - de uma rea<;ao san­guinaria dos chamados "Extraditaveis", os atentad~ asobera-

(30) A respeito, veja-se 0 ja mencionado trabalho de Rosa Del Olmo, Aerobiologia y Drogas ... , in Memorias, op. cit., ps. 77/85.

,-11

I

'l ~ oJ J -~ j

-).

(

tJ.,

De Crimes, Penas eFantasias 43

nia de pais~ latinoameri~l!lt0s atingiram seu apice comas futervencoes militares ~s, de qlle sao exemplos mais eloqiientes a chamada Opera<;ao Blast-Furnace, realizada ria Bolivia, em 1986, com 0 desembarque de soldados america­nos ignorado pelo proprio Chefe do Estado-Maior do Exercito . Boliviano (31), e a inusitada invasao do Panama, para prisao do General Noriega, que, de antigo colaborador da CIA, passou a inirnigo nQ 1 dos EUA, sendo seqiiestrado pelas tropas' americanas, que ali desembarcaram, para ser julgado nosEUA.

Esta internacionaliza<;ao da politica de drogas, acompa­nhada deliii:lffiodelo geopolitico, que incorpOra postulados das doutrinas de seguran<;a nacional, aEonta os EUA ~o pais vitima, legitimando as interven<;oes diplomaticas, finan­ceiras e militares em outros paises, ao mesmo tempo que difundindo 0 estereotipo do "narcoterrorismo", de modo a nele incluir paises inimigos dos EUA ou eventuais g~pos opositores.'Neste sentido, sao bastante ilustrativas as conhe­cidas tentativas, do fmal da decada de 80, de acusar Cuba e a Nicaragua sandinista de cumplicidade e fomento do traflco de drogas, nao obstante 0 proprio Administrador da DEA, John C. Lawn, negasse possuir qualquer infotll~substancial a respeito, enquanto, ironicamente, surgiam, na mesma epoca, revela<;oes sobre estreitas liga<;oes entre agentes da CIA, contras nicaragiienses e 0 contrabando de armas e 0 trafico de drogas. (32)

(31) Sobre a Opera9ao Blast-Furnace, veja-se Delpirou e Labrousse, op. cit., ps. 185/186, . (32) Sobre 0 estere6tipo do ~narcoterrorismo", vejam-se as alllilises deRosaDel Olmo, em La Cara Oculta de la Droga, Temis, Bogota, 1988, e de Delpirou e Labrousse, em Coca Coke ... , op, cit,

." i'· ( )

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

l.

\.

l ..

\.

l

l.

\.

l

Page 21: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

~ .. Maria Lucia Karam

. De fonna amiloga, esta funcionalidade politica se manifes­ta internamente, em cada pais, traduzindo-se nafunyao sim­b6lica do "bode expiat6rio", amplament{Slesempenhada pela figura do traficant~u pelos grupos marginalizad9S de aditos - estes nos paises centrais - func;ao simb6lica esta, que, concentrando a hostilidade da maiori~ontribui para urn alto grau de coesao da sociedade, ao mesmo tempo que desvia a atenc;ao de outros problemas mais graves]

Por outro lado, a imagem das drogas como urn simbolo de rebeldia e contestac;ao, originada, fundamentahnente, a partir de sua efetiva utilizac;ao como tal, no fmal dos anos 60, enquanto alternativ~ a repressao e ao fechamento das possibi­lidades de desenvolvimento de movimentos politicos mais conseqiientes (as lutas contra a guerra do Vietnam, 0 movi­mento negr6~e as lutas pelos direitos civis das minorias nos EUA, as lutas libermrias na Europa, as lutas contra as ditadu­ras militares na America Latma), foi amplamente divulgada e

. capitalizada pelo pr6prio sistema dominante, que, se apro­priando de valores da contracultura, pade dirigi-Ios para Q

consumo dos mais diversos bens, ao mesmo tempo que, indiretamente, se incentivavam movimentos que, embota contestamrios - como 0 movimento hippie - tinham caracteris­ticas, em grande parte, alienantes, sendo, portanto, menos ameac;adores.

Com 0 crescimento e massificac;ao do consumo de heroina, introduzida entre os jovens norte-americanos, na decada de 70, com a volta dos ex-combatentes do Vietnam, ate mesmo estes movimentos contestatarios perdem sua forc;a. Ao con­trario da maconha e dos alucin6genos de origem mexicana,

\; :i>,

" 'lll ~i ~ ~t; )~\ " ~ ;'i'!

';' .. , ;i'.

'i~'

:;' .. t -~A:

Ii \:: 1:1

jil

\til

,t,.

l>e Crimes, Penas e Fantasias 4;;

que coletivizavam 0 consumo, dando-lhe um carater grupal e comunitirio, a heroina, sendo uma droga de caracteristicas individualistas, inibidoras, nao se compatibilizava com qualquer tentativa de agrupamento, de movimento mais ou

menos organizado.

Como lembra Gonzalez,

"La heroina, con sus gravisimas secuelas au­todestructivas, ha cumplido un papel poderosisi­mo en la destrucci6n de los movirnientos que en determinadas fases de crisis social han aspirado a cambiar de raiz la bases de la sociedad, sirviendo de hecho a la conserv.aci6n del sistema que la

produce." (33)

Nos anos 80, e a cocaina que vai ocupar 0 centro das atenc;oes continentais, trazendo com ela toda a enfase da ja mencionnda guerra contra as drogas, da responsabiliz~o dos paises produtores e exportadores, da criac;ao do funcional estere6tipo delitivo latinoamericano, de que fala Rosa Del

Olmo. (34)

. Neste ponto, e oportlUlo abrir um parentes~ para tecer algumas consideracoes ~ 0 ja mencionado fen6meno cl.a escalada - a falsa id~, que relaciona 0 consumo de ptacol}ha com 0 de outras drogas, que a ve como uma ~e "passagem" para outras mais petigosas. ~--~--~--~-----~

(33) op. cit., p. 20l. (34) in La Cara Oculta de la Droga, op. cit.

Page 22: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

·46 Maria Lucia Karam

; Tal i'diia se baseia na constatayao de que uma boa parte de consumidores de cocaina ou heroina comeyaram fazendo uso demaconha ou haxixe, concluindo-se que propriedades far-. macologicas destas levariam ao consumo daquelas.

Reproduzindo as palavras de T.S. Duster, em The Legisla­tion of Morality (New York, 1970), Gonzalez mostra a falsi dade desta ideia:

"Cualquier principiante de uri curso de intro­ducci6n a la metodologia 0 a' la logica podria percibir la inepcia de esta argumentaci6n. No sabemos casi nada acerca del mimero de consumi­dores de marihuana que no llegan a tomar heroina . ( ... ) Argumentar que la marihuana induciria a consumir heroina se resume, pues, a aceptar er­rores que van desde los desaciertos 16gicos hasta la total incapacidad para aplicar los metodos empiri­cos que permitirian emitir unjuicio racional sobre la relacion entre ambas drogas ( ... ). Cuando se ;tflrma que la marihuana induciria al consumo de· heroina se cae exactamente en el mismo error, ya que se esta tomando en cuenta unicamente el numero de heroiri6manos y no la poblacion mucho mas signiflcativa, que consume marihuana. El medico que se apoyara exclusivamenteen el exae men de cancerosos para demostrar la relacion entre cancer y alcohol, sena objeto de burla dentro y fuera de su especialidad. A pesar de ello, estas descaradaspretensiones que se basan unicamente en el examen de los consumidores de heroina, son

f~, ;..'

jl

i 4 ~!

'1

}I

i )1

J i~ :iil

';1 ':~ 'if

;:!

De Crimes, Penas e Fantasias 47

aceptadas cuando se trata de establecer una re-' laci6n entre marihuana y heroina." (35)

. Lembrando que 0 fato de existirem consumidores de cocai­na ou heroina, que ja flzeram ou tambem fazem uso de maconha ou haxixe, nada signiflca, pois esses mesmos con­surnidores,l£"rovavelmente ate em maior numero, tambem fizeram ou. fazem uso de tabaco ou alcool, sem que, no entanto estas sejam consideradas como drogas de "pas­sagem~onzaIez prossegue, apontando 0 papel do discurso dorninante nesta questiio.

o . desprezo pelas diferen9as de natureza e de efeitos das diversas drogas qualiflcadas como ilicitas, a falta de credibi­lidade dos discursos fantasiosos, sua contradiyao com as experiencias de seus destinatarios, levando a desconsidera9aO das recomenda90es sobre os,perigos efetivos do abuso de drogas, como ja mencionado, acabam porse tomar urn incentivo para que alguns consumidores de maconha che­guem a outras drogas mais pesadas. Da mesma forma, a criac;ao da cultura da droga, a ideia de estar fazendo algo proibido, 0 apelo contestatario, podem levar ao abandono da maconha em prol de olltras drogas, vistas como mais perigo­sas, mais adultas, menos assirnilaveis pelo sistema. (36)

Nao sao, portanto, propriedades farmacol6gicas de umas drogas, que levam ao consumo de outras. Os diferentes ciclos de consumo de umas e outras drogas obedecem a outros

(35) 0p. cit., p. 211. (36) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 212.

" . (~

(,

(;

('

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

~

~.

(

(

(

\

I,

~

~

\~

~

~

Page 23: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

48 Maria Lucia Karam

fatores, sendo, fundamentalmente, detenninados por razoes politicas, economicas e culturais.

Tais razoes politicas, economicas e culturais mereceriam urn estudo mais aprofundado, que, no entanto, fugiria ao ambito deste trabalho. (37) ~qui, se ressaltani apenas 0

decisivo papel desempenhado pela interven<;:ao do sistema penagem duvida inclu,hlQ nestas razoes, com ali~'pressao de umas drogas, incentivando 0 crescimento da oferta de outraD (urn dos dados a se considerar, por exemplo, na oferta de heroina, nos EUA, na decada de 70, em grande parte conse­qiiencia da repressao ao uso damaconha e dos alucin6genos de origem mexicana), interven<;:ao esta que opera como urn dado fundamental no funcionamento do mercado, podendo e devendo ser considerada como urn dos mais relevantes fatores a ser analisado, quando se estuda a economia politica das drogas.

3. Sistema penal e drogas. Os altos custos S1Jciais da criminalizapio

A interven9~ do sistema penal, desde seu prirneiro mo­mento (a criminaliza<;:a:o prirnaria), introduzindo uma variavel ·artificial na estrutura do mercado, provoca a brutal eleva<;:ao dos precos, que vai gerar os fabulosos lucros ja referidos, funcionando, assim, por sobre sua fun<;:ao aparente de re­pressao, como urn dos mais poderosos incentivos it produ­<;:ao, mais lucrativa do que quaisquer outras.

~ara Hma visna dos ciclos das drogas ilicitas no continente americano; nas decadas de 50 a 80, consulte-se Rosa Del Olmo, La C ara Oculta de la Droga, op. cit.

ji

~,

~

;,) ., , ~·;I -,~

'~

, ;1 ., "f!

!' itl l' ]! '-il o

. -~ j ','I

j -,!J

·ill

De Crimes, Penas e Fantasias 49

Incentivando 0 empreendirnento economico, que apa­rentemente visa reprirnir,. tampouco cumpre 0 sistema penal urn papel relevante no controle da distribui<;:ao e do consumo daqueles produtos, que qualifica de ilicitos.

Como mostra Baratta,

"No obstante los exitos de los que los medios de comunicacion de masas cotidianamente nos infor­man .. {detenciones, confiscaci6n de sustancias), no se puede notar en una escala mundial, un aprecia­ble irnpacto de la represi6n penal sobre la circu­laci6n nacional e intemacional de la droga y sobre el consumo. Segun ca1culos de los expertos, to­davia hoy la acci6n de la justicia penal substrae al mercado s6lo un porcentaje de substancia ilicita que va del 5 al 10%. Con el maximo esfuerzo y en las mejores condiciones, el impacto de la acci6n de la justicia penal sobre la oferta de droga no podria superar el doble de este porcentaje." (38)

Estes anos de crescente repressao contam a hist6ria de urn [!!petido fracassgjos Qbjetivos assumidos pelo discurso ofi-~. . ---------

yejam-se as palavras insuspeitas de John Finlator, vice­diretor do Bureau of Narcotics, 0 conhecido BNDD ameri­cano, como reproduzidas por Lamour e Lamberti:

(38) in Introducci"n a una Sociologia de la Droga, op. cit., p. 13.

i Kil'jUI\IAl lJt. 'u" I"" . -.... ~ IvA ,~JU <. 1:.. ..).p.'t,'''~ i l

&A.UGttlA"".ls. q,!t1l"~1 tin [email protected]~'ta..Jral:!

Page 24: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

",: ,.so Maria Lucia Karam

"Alios de experiencia profesional me han en­seiiado que las leyes represivas no resolvenin nunca el problema de la toxicomania. Cuando en los mos treinta se prohibio la marihua!!a, no se contiihan mas de 50.000 fumadores en todo el pais. Despues de· 40 aiios de represion durisirna, una comision encargada de indagar sobre la marihuana nos informa de que 24 millones de americanos la han probado al menos una vez". (39)

Na mesma linha, Alba Zaluar e Antonio Luiz Paixao af"mnam que 0 que estes anos demons tram e que:

//"Aumentou a diversidade de drogas disponi­veis, aumentou 0 mercado consumidor, aumentou a taxa de crirninalidade com vitimas, aumentou a corruP9ao polidal e 0 trafico tomou-se atividade empresarial altamente lucrativa e concentrada, ul­trapassando os lucros de outros conhecidos oli­gopolios." (40)\'

O@esenvolvirnento de grandes organiza90es criminosas e a violencia por elas gerada~ que costumam ser apre.§ell!;;tdos c~mo conseqiiencia da dissemina9ao das drogas,lla realidade, sao fatores resultantes da intervenyao do sistema~A criminaliza9ao, ao tomar ilegal 0 mercado de determinadas drogas, necessariamente produz a inser9ao nesse mercado da

(39) C.Lamour eM. Lamberti;na obrajacitada, in GonzaJez, op. cit., p. 214. (40) in Solu~ao para ° Fracasso da Repressao, publicado no Caderno Ideias­Ensaios, do Jornal do Brasil, em 23/06/91.

1'1

1 il 1 I

De Crimes, Penas e Fantasias 51

chamada criminalidade organizada, pela propria estrutura empresarial exigida por um tal empreendirnento.

Por outro lado, a violencia e um corolario de uma tal . atividade ilegal:~em contar os enfrentamentos diretos com os agentes encarregados da repressao, basta pensar na concor­rencia, na disputa de mercados, na cobran9a de divida~ que, como e obvio, nao irao se pautar por regras legais, encontran­do no usa da for9a sua eficacia.

Aqui, vale lembrar, como 0 faz Gonzalez, da Chicago dos anos 30, dos tempos da lei seca nos EUA, quando se registra owrimeiro momenta de concentra9ao capitalista da criminali­dade modema, estruturada21desde enta~, a semelhan9a das grandes empresas monopolistas. (41)

Mas, a interveu9ao do sistema penal gera, ainda, outros altos custos sociais.

Com seus lucros fabulosos, estabelecendo uma rela9ao funcional com a circula9ao legal do capital, e seu poder ge corrupS'fuJ, 0 mercado das drogas ilicitas vai produzir graves desvios, afetando perigosamente orgaos do aparelho estatal e do sistema financeiro, ao mesmo tempo que lfortalecendo 0

poderio das grandes organiza90es criminosa~ e da atividade empresarial que realizam.

Lamour e Lamberti ressaltam estas liga90es perigosas:

"Ninguna complicidad es demasiado cara para las sumas que manejan los traficantes; son po-

(41) Veja-seGonzalez, op. cit., p. 199.

,\

'" ( ("

(

(

(

(

(

C (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

l.

(

(

C ..

\

c. (

"­\ ..

\

\.

"

Page 25: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

.It

II

.11

'1

Maria Lucia Karam

tentes porque pueden corromper a todos cuantos contactan 0 casi.lcwintos hombres politicos, fun­cionarios, magisfFados, policias, saben resistir a un sobre con 1000 200.000 dolaresllSi no se puede responder a esta pregunta, se podni constatar que en todos los paises interesados en la produccion, el consumo, la transformacion 0 el tninsito de opio y sus derivados, el&afico viene organizado 0 cuando menos cubierto por altisimas personalidade~que, evidentemente, esmn al abrigo, por encima de toda sospecha." (42)

Urn dos mais eloqiientes .exemplos de contaminacao do aparelho estatal se encontra na historia das ditaduras militares na Bolivia dos anos 70, que, comonarram Delpirou e Labrous­se, fizeram daquele pais 0 primeiro produtor mundial de folhas e de pasta base de coca, com a quadruplicac;ao da produc;ao, em seis anos. (43)

No que se refere aos consumidores, sao tambem especial­mente graves os efeitos pegativos da criminalizacao, a comec;ar pelos li'ilaiores riscos a saude~ decorrentes das condic;oes clandestinas em que se realizam a distribuic;ao e 0 consumo;] sendo uma mercadoria ilicita, as drogas entregues ao con­sumo, evidentemente,l!iao estao submetidas a qualquer con-l Itrole de qualidade, muitas vezes contendo substiincias, adi­cionadas a droga em si, de efeitos ainda rp.ais danosos a saudel

(42) C. Lamour eM. Lamberti, na obra ja citada, in Gonzalez, op. cit., ps. 198/ 199. . . (43) Veja-se 0 capitulo "Bolivia: uma economia aquecida pela cocaina", in Coca Coke .•. , op. cit., ps. 143/160.

De Crimes, Penas e Fantasias 53

Por outro lado, a clandestinidade do consumo favorece sua realizacaQ em condicoes higienicas mais ~cart'!§., A grande incidencia deportadores do virus da AI]:>::! entre os aditos as drogas injemveis e uma das tragedias de nosso tempo, em boa parte resultante do descontrole da higiene no consumo, embora, neste ponto, se deva ressaltar que, no Brasil,· nao e este o· grupo mais gravemente afetado pela doenc;a. Aqui, como apontado no inicio deste trabalho, 0

quadro geral da saude publica produz outras tragedias, que suplantam em muito a importiincia das drogas: asmaiores vitimas da AIDS, no Brasil, sao os hemofilicos, contaminados pelo descaso, pela ganiincia perrnitida dos banqueiros d9 sangue. (44) .

A clandestinidade do consumo, efeito direto da criminali­zac;ao, cria maiores tensoes n"ilVida de relac;ao, funcionando como urn dado a mais na situac;ao problematica original, sintomatizada pela adic;ao, e, portanto, como urn realimenta­dor da busca da droga, ao mesmo tempo em que a estigmati­zac;ao,lfcompanhante necessaria da criminalizac;ao, levando ao isolamento social e a marginalizac;ao, acaba por produzir alterac;oes da personalidade, muitas vezes vistas como urn efeito prim<irio das drogas, quando nao passam de conseqiien­cias desta marginalizac;a2I(45)

o proprio controlt1 terapeutico-assistenciql sofre os efeitos negativos da criminalizac;ao, que impoe condic;oes contra-

(44) Veja-se 0 arrigo de Nilo Batista, Drogas e Drogas, in Punidos e Mal Pagos, op. cit., ps. 59/62, em que ele, falando sobre 0 comercio de dragasHcitas, se pergunta "onder...:umprirao pena os banqueiros do sangue que COl t.aminaram com 0 virus da Aids mais de 70% dos hemofilicosdo Rio de Jane,ra". (45) Sobre este ponto, veja-se, especialmente, Baratta, op. cit., ps. lOJH.

Page 26: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

54 Maria Lucia Karam

ditorias com os metodos mais avan9ados de tratamento dos aditos, do ponto de vista de sua eficacia e de sua cientificidade.

Introduzindo urn complicador a busca do tratamento, ou seja, a necessaria revela9ao da pratica de uma conduta tida como ilicita, a criminaliza9ao ainda atua sobre 0 controle terapeutico-assistencial, integrando-o ao sistema. penal.

Leis penai!!,eomoa brasileira, que imp6em a obrigatorieda­de do tratamento aqueles que tern sua culpabilidade excluida, em raziio da dependencia, contrariam o2j>rincipio basico de que 0 exito de qualquer tratamento, nesta area, esta condicio­nado a voluntariedade de sua buscaJVaillant ensina que 0 come90 de urn tratamento eficaz, a longo prazo, so se da, efetivamente, quando 0 medico, a familia e 0 paciente con­cordam que este tern uma doen9a que 0 requer,para, mais adiante, afinnar que 0 atendimento compulsorio raramente e benefico. (46)

Mas, alem disso, acenando com 0 regime de intema9ao hospitalar, para os casos defrustra9ao, pelo adito, dotratamen­to ambulatorial, ou de reitera9ao da conduta proibida, com a instaura9ao de novo processo, ignora 0 legislador 0 fato amplamente conhecido de que a "reincidencia" e a interrup-9ao do tratamento sao episodios nonnais no processo de desintoxicayao, nem sempre traduzindo um fracasso deste tratamento.

Esmo ainda os consurnidores sujeitos a superexplorayao, seja aquela diretamente!ecorrente dos pre90s artificialmente

(46) G. Vaillant, op. cit., p. 573.

,j'

De Crimes, Penas c Fantasias 55

eleva~ela variavel da crirninalizayao introduzida no mer­cado,[seja a indiretamente provocada por essa eleva9ao dos pre90s, a levar uma parcela destes consurnidores a se empre­gar no trafico, para obter a droga desejada, trabalhando como empregados mal remunerados e mais expostos aos riscosda atividade ilicita, naquela ja mencionada participa9ao proleta­rizada na economia politica das drogas . .J

Os pre90s artificialmente elevados constituem ainda um incentivo a pratica de outros comportamentos ilicito§..diver­sos, com aquela mesma finalidade de obter meios para adquj­rir a droga desejada, 0 que se soma ao estigma e a margina­liza9ao, por si ja favorecedores da inser9ao em contextos criminais, estigma e marginalizayao estes que, evidente­mente, se agravam no processo de criminaliza9ao secundaria (a aplica9ao da lei penal), especialmente quando da imposi9ao de penas privativas de liberdade.

Assim, 0 aumento da criminalW;:u:le, comumente apresen-.-tado pelo discurso oficial como conseqiiencia do consumo de 'drogas ilicitas, e, na realidade, em boa parte, resultante dos efeitos da propria criminalizayao.

Estes efeitos da criminalizacao, entendidos por impor­tantes setores da investiga9ao cientifica atual como ef~tos secundarios das drogas (em contraposi9ao aos efeitos prima­rios, ou seja, aqueles produzidos pela natureza mesma das subsmncias consideradas), nao se manifestam igualmente pelo conjunto da sociedade, recaindo sim, preferencialmente.,-

r!.0bre as camadas mais baixas e marginalizadas da popula9ao]

Aqui tambem s~ reproduz a regra basica da sociedade

'"" \":, (

(

(

C ('

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

~

(

(

(

(

(

l (

(

(;'

Page 27: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

-',

56 Maria Lucia Karam

~ ou seja, a@esigualdad~As relar;:oes desiguais de distribuir;:ao, que caracterizam 0 modo de pIOdur;:ao capitalis­ta, vao se expressar na distribuir;:ao social do atributo negati vo considerado - 0 status, de desviante ou 0 status de criminoso - que, enquanto atributo negativo, sent preferencialmente recebido por aqueles que ja ocupam uma posir;:ao inferior na sociedade, aqueles que se encontram entre as classes subalter­nas.

o texto de Baratta, que abaixo se reproduz, e bastante esclarecedor:

"Para evitar una imagen inexacta de los efectos secundarios de la droga sobre los consumidores y su ambito social,es oportuno hacer una precision. N ada 'esti mas lejos de la realidad del mundo de las drogas, que verlo unidimensionalmente bajo la imagen dra­matizada de la 'escena oficial'. El 'mundo de la droga' son en realidad los 'mundos de la drogaJ. Ademas de la 'escena' que se caracteriza por su enorme visibilidad social, puesta en evidencia por los medios, hay otros mundos discretos, invisibles y, en este sentido, privil~giados. Hay innumerables con­sumidores y adictos de droga que, al contrario del estereotipo de la 'escena', siguen jugando sus papeles de profesionales y trabajadores dependientes sin pos­teriores perjuicios para su identidad social. En estos casos, que son relativament~ m~s numerosos, los consumidores )'-8I!S familias son exentos de los costos sociales de la criminalizaci6n. Ha sido resaltada una tendencia a la transformacion del mundo de la droga

:II

-J .I

I

De Crimes, Penas e Fantasias 57,

hacia la figura del consumidor que tiene la costumbre de 'inyectarse' el sabado e ir a trabajar ellunes. Pero el privilegio de la participacion en estos mundos discretos de la droga es, como otros recursos, dis­tribuido desigualmente en nuestra sOciedad.[ambien en el sistema de la dIOga, la pertenencia a grupos sociales menos aventajados produce una mayor ex­posicionaser insertado en el mundo marginalizado y criminalizado de la 'escena '1 mientras que la partici­pacion en el consumo de drogas esti distribuida en todas las capas sociales." (47)

Por sua especial importiincia nesta distribuir;:ao desigual dos efeitos secundarios das drogas, 0 processo de aplicaciio da lei pen~l merece algumas £..onsiderayoe".

A integra9ao ao aparelho de Estado, determinando a atua­r;:ao pautada pelo funcionamento concreto do poder de classe deste Estado, caracteristica das categorias que constituem a burocracia, como sao as,agencias, do sistema',penal, vai funcionar como uma das principais variaveis no processo de criminalizar;:ao orientado na direr;:ao das classes subaltemas. Atuando com a logica e a razao do poder de classe do Estad;; c<lpitalista, as agencias do sistema penal vao selecionar, nestas classes subaltemas, aqueles poucos autores de crimes, que, sendo presos, processados ou condenados, receberao 0 sta-

, tus de criminoso e, assim, se distinguirao dos demais indi­viduos, cumpridores do papel de cidadaos respeitadores das leis, formando-se, a' partir destes poucos selecionados, a imagem do criminoso.

(47) Baratta, op, cit., ps, 12/13,

Page 28: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

58 Maria Lucia Karam

A Rosi£ao precaria no mercado de trabalho, as deficiencias da socializacao familiar, 0 baixo nivel de escolarid~e, pre­seUtes entre os que ocupam uma posiQao inferior p.a socieda­de, sao, nao como se costuma apontar, ,?ausas da criminali-dade, §a:s sim caracteristicas. desfavoraveis, que, identifi­cando seus portadores com 0 estereotipo do criminoso, terao influencia determinante naquele processo de seleo;:ao dos que vao desempenhar 0 papel de criminosos.,J

No caso de crimes relativos a drogas;o8'f'eso negativo des-tas caracteristicas aparece claramente, inclusive no que se

. refere a distinyao entre consumidor e traficante. E comum encontrar casos em que a unica "prova" do trafico e 0

desemprego oU 0 subemprego daquele que e surpreendido na posse de drogas, visto como naturalmente traficante, por se supor que, estando desempregado ou subempregado, nao teria condiQoes de adquirir a substiincia para uso pessoal.

Como ocone com a criminalidade em geral, tambem se manifesta, no caso de crimes relativos a drogas, 0 ~e­no, apontado no texto de Baratta, da maior visibilidade so.ci<tl (}as condu~ praticadas por individuos pertenc~nte.sas_GLasses subaltemas, 0 que, tOl:!!-ando-=os-malsyulrieaveis a repressaQ

- penal, constitui outro fator a contribuir para a distribui­yao desigual do status de criminoso. Pense-se, por exemplo, ha maior exposiQao dos vendedores, que atuam no varejo, ou dos transportadores individuais das drogas (as chamadas "mulas"), ou mesmo dos pequenos distribuidores. II evidente que,f.9uanto mais alta a posiQao no trafico, mais oculta sera a atividade desempenhitda:hte pela propria natureza das funQoes exercidas, como ocorre em qualquer empreendi~e!lto ~

~,

~

i

il

;'ii

,0'

De Grimes, Penas e Fantasias 59

mico: os empregados encarregados da venda °dos produtos de ---Utlla grande empresa sao, naturalmente, mais visiveis do que seus diretores ou acionistas.

Alem dessa maior visibilidade natural, ede se conside- . rat tambem, por urn lado, Q poder de corruvxao .- e, partanto, de imunid:ide - tanto maior quanta mai~.~ltas a capacidade econ6mica e a posiQao ocupada na sociedade, alem do fato de que as aQoes das agencias policiais desenvtllvem-se, com muito maior desenvoltura, nos locais onde se concentram as populaQoes mais carentes .

Na atuaQao das agencias judici~0s ja-mencionadas logi­ca e razao do poder de classe do Estado capitalista, que presidem a atuaQao das agencias do sistema penal como urn todo, sotnam-se a organizaQao fechada e os mecanismos ideologicos,o que, negando 0 aspecto politico da funQao juriS" dicional, distanciando e isolando 0 juiz da diniimica das lufas travadas na sociedade, fazem com que tais agencias percebam e julguem sua clientela dentro dos marcos de referencia da ideologia dom:inant~reforQando, de forma decisiva, a desi­gualdade na distribuiQao do status de criminoso. (48)

No caso do consumo de drogas, 0 conservadorismQ, a [incompreensao de costumes alternativos, aincapacidade de

aceitar padroes de comportamento destoantes destes marcos de referencia da ideologia dominante, exercem urn papel fundamental nos julgamentoga!itudes ~ no entantQ, po­dem ceder diante da guestiio de classe.

~

(48) Sobre a atua<;iio das agencias judiciais, veja-se, Ileste volume, 0 trabalho illtitulado Papel Sodal, J uridico e Politico da Magistratura.

i Klr-JUNAL. UI:. ,lU::' IIl..A,;JU t.. i:..:;)AI ... ' I!'I

DlF8terLa a.ral da a.ura~.w~.

_ ...... ..,.T ....

0\ I:~~

(,

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

10

e (

I

l

(

(

(

l.

l. \-

"

Page 29: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

/ 60 Maria Lucia Karam

m(l1vmUOS pertencentes aos estratos superi­ores e medios, os juizes costumam experimentar urn senti'­mento de incomodo, uma maior preocupac;:ao em aplicar a pena, preocupac;ao que nao se manifesta quando se trata de individuos dos estratos inferiores, aos quais a pena e aplicada sem hesitac;:oes, pois menos com rometedora ara seu sta-

, tus social, ja baixo. sto exp lca urn ntimero significativo de a solvic;:oes de consumidores de drogas por "politica crimi­nal", que ja foram muito comuns, .na pratica da Justic;a" Criminal no Brasil, servindo para livrar reus pertencentes aos estratos superiores e medios, de boa aparencia, bern emprega­dos ou estudantes universitarios, como tambem explica 0 fato de que tais absolvic;:oes, nil<> obstante sua notoria improprie­dade tecnica, nunca provocaram os mesmos questionamentos suscitados pela tese, universalmente aplicavel, da inadmissi­bilidade da puniyao da posse de drogas para uso pessoal, seja pela inafetac;ao do bemjuridico protegido (a saude publica), .seja por sua contrariedade com urn ordenamentQjuridico garantidor da nao intervenc;:ao do Direito em condutas que nao afetem a terceiros. (49)

A d}stribuic;ao desigual do status de criminoso@eterrnina '. a ideia de criminalidade como urn comportamento caracteris­tico de individuos.provenientes daquelas camadas mais bai­xas e' maI£~inalizadas, levando a identificac;ao das classes subalternas como classes perigosafj No caso das drogas, pense-se, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro, em relac;ao as quais se passa a ideia de uma ligac;ao generalizada

(49) A respeito d. in.dmissibilidade d. punil'iio da posse de drogas para uso pessoal, veja-se, tambem neste volume, a trabalho Aquisi~ao, Guardae Posse de D,'ogas para Uso Pessoal - Ausencia de Tipicidade Penal.

j l '~. ''::

'M ·-l.

" I

"j -~ .• :.

Ii 3\

l,i ~,t-

De Crimes, Penas e Fantasias 61

de seus moradores com 0 trafico, reproduzindo-se a mesma linha que, internacionalmente, cria 0 ja mencionado estereo­tipo delitivo latinoamericano. Neste caso de paises perigo­sos, basta lembiarque, quando se fala de drogas, nao se pen­sa, por exemplo, na Suic;a, lavando mais branco,mas ape­nas na Colombia com seus carteis, ou na Bolivia com suas folhas decoca ..

Alem disso, em nome do clima de pii11ico, de alarme so­cial, da busca de maior repressao penal como solucao ainda que aparente,{Sa~cam-se principios fundamentais de urn direito garantidor. aratta cita pesquisa realizada pelo Institu­to de Pesquisas das Nac;oes Unidas para a Defesa Social (UNSDRI-Roma), sobre medidas penais no campo das dro­gas, em urn numero representativo de paises, com sistemas politicos diversos e diferentes niveis de desenvolvimento, onde se constatou al1endencia das legislac;oes em se afas~ de principios gerais do Direit<?J (50)

o proprio Baratta lembra que este e umdos campos oude a ac;ao policial tende a ultrapassar os limites da legalidade, fa..!Q qlle costuma ocorrer nos chamados crimes sem vitimas, ~ quais a policia deve assegurar material ~a, sem poder

. Gontar com a denuncia e a colabotac;ao da vitim~.

No Brasil, praticas comc!!nvasoes e buscas em domicilios sem mandado judiciaiJ mais do que serem comumente reali­zadas (naturalmente, apenas nos bairros popular§), sao co­mumente aceitas pelas agencias judiciais, que, em nome do combate as drogas, muitas vezes, se tomam coniventes com a

(50) Baratta, op. cit., nota 11um. 26.

Page 30: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

62 - Maria Lucia Karam

ilegalidadt<J}a se toma longinquo 0 tempo em que a Juns­prt;dencia brasileira considerava aquela perigosa tendencia de ultrapassagem dos limites da legalidade e opunha reservas a palavra isolada de policiais, diretarnente envolvidos na ocor­rencia, registrando-se, ao contrano, uma crescente superva­

. loriza9ao do testemunho de policiais, inclusive em detrimento de mitros testemunhoy-----

Tambem se pode observar, no Brasil, aquela tendencia legislativa, apontada na pesquisa dci UNSDRI, no sentido de

-l.Ima maior severidade violadora de princi __ ,~rais do Direito: a recente Lei 8.072/90, a chamada lei dos crimes hediondos, trouxe inconstitucional dispositivo que, contra­riando 0 principio da individualiza9ao da pena, estabelece que as penas privativas de liberdade, impostas a pessoas condena­das pela pnitica de condutas relativas ao trafico de drogas, deverao ser cumpridas, integralmente, em regime fechado. Ressalte-se que, antes mesmo da existencia de tal dispositivo, registravam -se inumeras decisoes judiciais, afmnando a inad­missibilidade de cumprimentG.cde penas resultantes de conde­na90espor tnifico em outro regime que nao 0 fechado, como que numa premoni9ao de sua vigencia.

Bara~ mostr!! que outros principios de urn direito penal . minimo,· entendido como criterio inspirador de uma justi9a

penal ajustada ao Estado de Direito e aos direitos humanos, sao viol ados na politica criminal vigente no campo das dro-g~~(51)- .. - -

(51) op.cit.,ps. 14/16. Sobre os principios deum direito penal minimo,collsulte­se, ainda, do proprio Baratta, Requisitos Minimos del ~espeto de los Derechos Rumanos en la Ley Penal, in Derecho Penal y Criminologi", 31, Universidad Externado de Colombia, Bogot;i, 1987, ps. 91/108.

11-­~ :~

~, ·,f

.'~I '1; -~l , -1'

., -j

:j~ ,.'jl

i ~I .~ -!I ·ll

i \ .... "i:;r.

~ ;i' ~ ~:,

"."

~ 'o"! t,

.J)e Crimes, Penas e Fantasias 63 ;: ".~;!> ,-

.. _ 0 principio da idoneidade, que exige a demonstra9ao de que acriminaliza9ao e urn meio util para controlar urn determinado problema social: como ja mencionado, 0 impac­to da interven9fu? do sistema penal na distribui9ao das drogas. e em seu consumo e irrelevante, criando, ao contrario, pro­blemas mais graves;

.. _ 0 principio da subsidiariedade, que impoe a preVIa comprova9ao de que nao existem outras altemativas que nao a criminaliza9ao: a interven9ao do sistema pem~l nao so nao considera as alternativas existentes, como .<!.inda afeta ru:gati­vament~ os sistemas~rapeutico-assistencial_~inf<?_r1!!~JiYo­educativg, como tambem ja apontado;

.. _ 0 principio da racionalidade, que exige que se compa­rem os beneficios e os custos sociais produzidos pela crimina­liza9ao: [?enhum discurso cientifico conseguiu demonstrar qualquer beneficio decorrente da-criminaliza9ao das drogas;} enquanto, ao contrario, ja se-demonstraram seus altos custos sociais, como os aqui expostos;

_ 0 principio da proporcionalidade@a pena a gravidade do dana social d6-aelito] particularrnente violado no caso da criminaliza9iio da posse de drogas para uso pessoal, em que sequer ha algum dana social, pretendendo-se punir uma conduta nitidamente privada, sem potencialidade para afetar bens--de terceiros.

Os altos custos SOCialS da criminaliza9ao, seus efeitos negativos, sua ineficacia para uma redu9ao significativa da distribuic;:ao e doc01\'!!\mlo e seus paradoxais papeis como fator de incentivo a produ9ao e estimulante de situa90es

(

e-c' (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

I

I

(

~ ..

',-

'--(,

(

Page 31: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

l

64 Maria Lucia Karam·

delitivas, impoem que urn discurso e uma pnitica; que pretendam se ocupar, seriamente, em enfrentar 0 aspecto problemitico das drogas, sejam acompanhados do rompi­mento com a fantasia da solu.yao penal.

4. Aliernativaspara 0 controle do aspecto problemtitico das drogas

. Evidentemente, nao se pretende apontar, aqui, f6rmulas acabadas de altemativas para, defmitivamente, controlar 0 aspecto problemitico das drogas. A descriminalizayao, 0 afastamen!9 da interven.yao do sistema penal a supera.yao da fantasia da solu.yao penal significam, antes de tudo, uma posi",ao realista, uma posi9ao d1!.0mpimento com falsas ou migicas solu.yoesJ· .

A descriminaliza.yao, 0 afastamento da interven.yao do sistema penal, a supera.yaoda fantasia da solu.yao penal significam, simplesmente,[§ rompimento com uma forma de controle que pouco controla, que, perversa e contra­ditoriamente, estimula 0 lucro e a violenciados oligop6lios do crime organizado, que, direta ou indiretamente,incentiY.a 0 consumo pfoblemitico das substancias queproibeJ.

Mas, descriminalizar nao significa liberalizar. Ao contri­rio, descriminalizar implica em librir maiores espayos para a \fria.yao de mecanismos nao penais de controle sobre a produ­.yao, a distribui.yao e 0 consumo de drogasJelirninando urn sistema contraproducente e de graves efeitos negativos, em prol da interven.yao de outros instrumentos, menos pemieio­sos e mais adequados, na busca de caminhos mais racionais e mais eficazes para tratar essa questao.

r

I j

De Crimes, Penas e Fantasias 65

Nalinha apontada por Baratta, (52) normas adrninistrativ!!S, apoiadas em san.yoes adequadas e racionais, teriam que ser implementadas,&ara 0 controle de qualidade das drogas (sem distin.yao entre as hoje lieitas e ilicitas~assim como para- 0

~ntrole da produ.yao e distribui.yao, impedindo a formayao de monop6lios e oligop6lio!Q bern como novas formas de ingereneia da criminalidade organizada no setor. Ao mesmo tempo, teriam que ser estabelecidas politicas intemacionais favorecedoras de medidas tendentes auncentivar atividades economicas alternativas nos paises produtoresJde forma a reduzir aprodu.yao de drogas in.desejiveis. -

o consumo teria que se submeter a limita.yoes, restringin­do-se, ou mesmo vedando-se, 0 uso em lugares publ~de determinadas drogas mais danosas, a exemplo do que, hoje, ji se come9a a fazer em rela.yao ao ~. Neste sentido, se poderia pensar em san.yoes, como a apreensao da droga e/ou a expulsao do consumidor do local onde esti vesse fazendo usa da mesma, ao lado da interdi.yao temporiria ou fechamento definitivo de estabeleeimentos onde se tolerasse tal uso, combinados com a imposi.yao de pesadas multas a seus donos.

Acompanhando tais medidas, poderia se pensar no simultaneo fomecimento aos consumidores de informa.yoes sobrea existencia elocalizavao de estabelecimentos terapeutico - assistenciais, bern como sobre as pr6prias drogas e seus efeitos, seja no momenta mesmo em que fossem surpreendi­dos usando drogas em locais nao p~tidos, seja atraves de urn convite para comparecimento posterior a postos de

(52) op. cit., ps. 25/26.

Page 32: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

66 Maria Lucia Karam

informa9ao, desde logo, afastando-se qualquer obrigatorie­dade -deste comparecimento ou de encaminhamentoa estabelecimentos terapeutico-assistenciais para avalia9ao de necessidade de tratamento, pois tambem os mecanismos nao penais de controle devem obedecer ao principio do respeito a vida privada, a libenIade e as oP90es individuais.

Mas, mais eficazes seriam as[medidas de informa9ao e educa9ao]de caniter mais geral, mais abrangente, e despidas de qualquer cunho repressivo, que se desenvolvessem atraves deamplasdiscussOes,<22!!).~rticipa9aoativadeorganiza¢es comunitirias, como associa90es de moradores, sindicatos, igrejas, gremios e diret6rios estudatitis) diversificando-se 0 conteudo das informa90es, segundo as caracteristicas dos setores a serem atingidos, sentindo-se e ouvindo-se as necessidades e opinioes de seus destinatarios, tendo-se flexibilidade na forma e no momenta de abordagem do tema.

Tais medidas de informa9ao e educa9ao teriam que, necessariamente, passar pela compreensao' global do tema, abordando e esclarecendo os aspectos hist6ricos, econo­micos, politicos e culturais da questiio, bern como a dimtm­sao real dos problemas eventualmente causados pelo uso imoderado das substiincias consideradas.

Ao lado destes mecanismos de controle, que, naturalmen­te, deveriam se dirigir a todas as -drogas, sem a distin9ao artificial que hoje se faz, uma das medidas mais importantes

~:e~~~;r~~~~:S afProibi9~~~~ qu_al~~~~ipo_~e~~,::aganda r-·-------- --De todo modo, novas medidas, novos instrumentos,

[, ;1 ~ --Il

~I , .~I ~ , ~ :ii .~

! ,~ "

i ,~ '-') "

:-::

i i ','I' ,~

l .~

j l~

l1:

~ i \

l. i I l' 1

D~ Crimes, Penas e Fantasias 67

certamente, surgiriam, ao se abandonar a facil e falsa soluyao penal.

; Talvez 0 caminho sej~ais arduo.0-fantasia e sempre mais facil e mais comod~Com certeza, e mais simples para os pais de urn menino drogado culpar 0 fantasma do traficante, que, supostamente, induziu seu filho ao vicio, do que perceber e tratar dos conflitos familiares lat{mtes, que, mais provavel­mente, motivaram 0 vicio. Como, certamente, e mais simples" para a sociedade, pennitir a desapropria9aci do conflito e transferi-Io para 0 Estado, esperando a enganosamente salva­dora interven9ao do sistema penal.

Se, no entanto, quisermos soIU9.Oe.s verdadeiramente eficazes, seni 'preciso pensar que a[interven!<..a9.9J:t sociedade civil, das comunidades organizadas, das pessoas diretamente efivolVidas, buscando e trazendosQ!u90t;S nascidas da

'convivel1cia; da solidarleciade, da proximidade do conflito, e que podera dar 0 salta de qualidade no tratamentodeeventuais situa90es problematicas provocadas pelo abuso51~5Ir()~!-s.J

-~,.--," ,._-._-- -- _.

Mas, mais do que isso, sera preciso ter claro que 0.as£.ect9 problematico das drogas deriva, basicamente, da contradiyao fundamental <ia sociedade capitalista, sendo~ma das muitas distoryoes geradas por um sistema de rela90es sociais de produ9ao, que transforma todo recurso de meio para satisfazer necessidades reais em meio de acumula9ao do capital, que transforma os produtores-consumidores de sujeitos do pro­cesso produtivo em objetos de manipula9ao]

E, assim, sera reciso ensa em nao descrer da uto ia e lutar para construir sociedades em que a p~~9~de-~

f"l1tlUW:;'l DE ..iUSil[,:.il, .£10 t . .:. SAN1~ ·';.t;:1! '"J;"":\'_'- ~:"':'i':.,..J. d.\-.l ,~~ioU1f(·Jt.~J1n.f').

(

r ("

\ (

(

(

(

(

(

(

r ~ (

(

(

(

(

(

(

(

(

(,

I (

I, , I,

I, , .. I. I. ,

Page 33: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

68 Maria L~cia Karam

obedes:a, nao it 16gica do lucro,~ it 16gica das verdadcil:illi necessidades do hornern; nao descrer da u~utar pa.p construir sociedades_ernque~ pessoas p~ ter rn~Les oportunidades de ser felizes e, portanto, rnenores necessida~ des de se drogar.

':}; ,

,t: ,~.

:'y

':t ~i~

J

':~'

.\:

Os crimes contra 0 patrimonio no Anteprojeto de Parte Especial do

. C6digo Penal brasileiro

f B~M,. fjf J1JSlICA.f.lQ c... t,.' ~NI. ii"~'ri. Q.F.~ da a.Q •• '~.~.

IJ ... J • HUI A

Page 34: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

~l ... '~ O.f,),'

L

s .( '~,;

'i1 ![o: ,~,

.,'-fl -,~

OS'CRIMES CONTRA 0 PATRIMONIO NOANTEPROJETO DE PARTE ESPECIAL DO

CODIGO PENAL BRASILEIRO

I - Introdu~iio

Seguindo-se a nova Parte Geral, em vigor desde 12 de . janeiro de 1985, encontra-se; no Congresso Nacional, 0

Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal Brasileiro, Anteprojeto este debatido, em vadas palestras e exposi~6es, que tiveram lugar no Rio de Janeiro, de 16 a21 de outubro de 1988, na Conferencia Intemacional de Direito Penal, promo­vida pela Procuradoria Geral da Defensoria Publica e pela Secretariade Estado de Justi~a do Rio de-Janeiro.

Este trabalho traduz, em linhas gerais, exposi~ao apresen­tada naquela Conferencia, em painel especificamente dedica­do ao tema Crimes contra ° Patrimonio, objeto do Titulo II do Anteprojeto em questiio.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

~

(

(

'. (

\ .'

(

\.

\

(

Page 35: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

)

72 Maria Lucia Karanl

Naquele momento, em que 0 Brasil dava seus primeiros passos em dire9ao a democracia, ainda se preparando para eleger seU Presidente da Republica, pela primeira vez depois de quase 30 anos, em,que 0 pais atravessava grave crise economica, em que explodiam serios conflitos sociais, ao mesmo tempo em que surgiam sinais de maior conscientiza-9ao e participa9ao politica do povo brasileiro, a Conferencia norteou suas preocupa90es no sentido do aperfei90amento e dabusca de perspectivas futuras para 0 Direito Penal, enquan­topasso importante dentro daquele processo de crise, de conscientiza9ao, de caminho para a democracia,

Quase tres anos depois, tais preocupa90es permanecem atuais: a grave crise economica se aprofundou, levando 0 pais a recessao e a indices de desemprego companiveis aos do periodo 81/85, paralelamente ao registro de crescentes perdas salariais e quedas no produto intemo bruto; os serios coriflitos sociais, latentes ou desencadeados, nao se resolveram, tradu­zindo a continuidade de politicas, que se express am nos vergonhosos indicadores sociais, que fazem do Brasil urn campeao da miseria e da violencia; e a democracia aparece como urn objetivo nao atingido" enfrentando urn caminho cheio de percal90s, ainda nos seus mesmos primeiros passos,

Tudo isto justiflca M<i validade a reprodu91io da analise feita, por ocasiao da Conferencia Intemacional de Direito Penal, que, a seguir, se expoe.

II - 0 Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal e a realidade brasileira A tarefa de analisar os crimes contra 0 patrimonio no

~ ,t .:t.1 ',r

"'I~'~( " Y , ;1 ;~.

,.'",,;j.,

.'] .!i.? 'f

~

_~i

De Crimes, Penas e Fantasias 73

Anteprojeto de Parte Especial do Cooigo Penal brasileiro, dentro da preocupa9ao com 0 aperfei90amento e a busca de perspectivas futuras para 0 Direito Penal, nao pode se restrin­gir ao exame formal dos dispositivos que contem as figuras previstas no Titulo II do Anteprojeto, as maiores ou menores transforma90es introduzidas, aos pontos mais positivos ou negativos, se comparados com a lei em vigor, nao podendo, enfun, tratar as figuras legais como mera abstra91io juridica.

Para contribuir para 0 aperfei90amento do Direito Pellal, [para efetivamente compreender seu significado e seu papel e,

assim, poder ver suas perspectivas futura~ tem-se que ir muito mais aleW.

o Direito Penal, enquanto parte do sistema:penal, e urn instrumento de controle social e, como tal, se insere na

Superestrutura de uma sociedade historicamentedeterminada, nao podendo, portanto, ser visto como urn fenomenoisolado, mas sim enquantq£roduto de urn determinado sistema social, condicionado por sua estrutura econ6mica e sua organiza9ao politic!!]

Neste sentido, ao [analisar os crimes contra 0 patrim6-niO)lO Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal brasi­leiro, e preciso, em primeiro lugar, pensar na sociedade, b~asileira, nos condicionamentos que regem as defmi90es legais, esmdl!ndo e compreendendo, nao s6 os crimes contra o patrimoni0, como todo 0 ~ito,§'nquanto expressao dos conflitos de classe e das contradi90es especificas, que carac­terizam a forma9aO social capitalista existente no Bras~ ,

, 0 iimbito deste trabalho nao permite urn desenvolvimento maior desta quesmo. Assim, em breve sintese, podemos

Page 36: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

74 Maria Lucia Karam

afmmir que tal fonnayao social, de capitalismo ~endetrt@, ~, fundamentalmente,tpela divisao em clas-­ses, com base na propriedade privada dos meios de prodw;ao, com base numa distribuiyao extremamente desigual dos bens e das oportunidades sociais, com base nll explorayao dos

abalhadores, da maioria da populayao, que vive em condi­oes miseniveis, por uma ~noria, essencialmente ligada ao apital internacional, que detem as riquezas e, con-

seqiientemente, 0 poder.

N~tit1o de fonnayao social, 0 sistema penal vai, n~es­saria~ente, ser urn sistema desig~algefletindo osinteresses e protegendo, de fonna especial, os bens juridicos praprios dessa minoria, que consti tui as chamadas classes dominantes,J de modo a fUE-cionar <;omo instrumento' de cQnservayaoJ! reprodu~ ~sa estrutura social, que, em sua essencia, e uma estrutura MYnsta ge modo a ser urn instrumento de dominac,:ao, a serviyo de uma ordem exploradora e opressora das grandes maiorias de despossuid00

Como lembra Eduardo Novoa Monreal, em quase todos os paises de nossa~erica Latina 0 Direito s~e para c~.ar e .. ao mesmo tempo, para ocultar uma@istribuic,:aodesigualde poder, dos bens e do uso da forya e para eximir os poderosos

-de toda responsabilidade pelas graves ayoes socialmente negativas que costumam realiza~(l)

Sendo a tarefa a que nos propomos 0 exame dos crimes contra 0 patrim6nio no Anteprojeto de Parte Especial do

(1) Eduardo -Novoa Monreal. Desorientacion Epistemologica en la Criminologia Critica?, in Doctrina Penal, 29 a 32, Buenos Aires, 1985, p. 271.

,:! i,);b· p~·}!t.X:.;.:\.. ;t,; Jr.'-

. ", ,.... ,', ,,~, .. ~ '! ;, :; -

'f-

.. ~

.. '" i :f!-'-~'-: !

-~~\' '::~11

.. ~ r 11 ~ ..

· ..

·I:·(~ (,1

',f'

De Crimes, Penas e Fantasias 7S

C6digo Penal brasileiro, vai nos interessar, no sistema penal, seu prirneiro momento, seu primeiro mecanismo, ou seja, 0 da produyao da lei penal, 0 da chamada criminalizayao prima­ria, quando e feita a seleyao dos bens juridicos que vao merecer a tutela penal e dos comportamentOs a eles ofensivos -

. que vern descritos nas figuras legais.

Como acontece com seus demais mecanismos - a aplicayao da lei e a execuyao das sanyoes - ja nesse prirneiro momento - 0 da produyao da lei - esta claramente presente 0 papel do sistema penal na manutenc,:ao e reproduyao da ordem explora­dora e opressora, que caracteriza a fomiayao social capitalista existente no Brasil.

. A~leyao e definiyao de bens juridicos e comportamentos com releviincia penal se faz de maneira classista) se faz fundamentalmente em defesa dos interess~daqueles que detem as riquezas e 0 poder, pois sao exatamente estes detentores das riguezas e do poder - as chamadas classes dominantes - que vao, eIIi ultima analise, defini~ que deve ou nao ser punido, 0 que deve ou nao ser criminalizado e em que intensidadti] -

Assini, ao contrario do milo difundido pela ideologia dominante, a lei penal brasilei£aJliao se destina a proteger apenas bens e valores essenciai§Jii"o sentido de bens comuns a todos os h()mens, tendendo sim a privilegiar os interesses -'- -- -daquela minoria, de detentores das riguezas e do poder.

Essa tyn~l1cia vai levar a que 0 processo de ~ao - . ~~iente, fundamentalmente, c~ <eompor~ment<?s5a­

racteristico~ das cam~is baixas e -marginaliza®s da

KltlUNAL Of JUSIICA ,ilO E.. E. SAN-' {'

elr.~.pla a.ral •• ••• r.'.r~.

(

(

r (

('

(

(

(

(

(

(

I (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

l

(

'.

\.

I

1-

(

(

Page 37: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

76 ,Maria Lucia Karam

popula9ao~xcluindo ou minimizando comportamentos so­cialmente dancisos, caracteristicos das classes dominantes e ligados a acumula9ao do capita!TI

Ao lado da prote9ao de bens comuns a todos os homens, como a vida, a liberdade, a integridade fisica e moral, es­

. te processo de criminaliz ao, na sociedade brasileir)l, acaba por instrumentalizar e dar a fiiiaxima prote9ao a proprie­dade priva~Ilermitindo,por outro lado, a falta de previsao legal, a impunidade de determinadas condutas de custo social ~ ----,.-

e politico muito mai~~o.

E exatamenteno estudo dos crimes contra 0 patrim6nio que essa maxima prote9ao da propriedade privada, essa defesa dos interesses das classes dominantes, aparecem de forma bastante expressiva, de forma bastante nitida, como poderemos ver, trabalhando nao s6 com 0 Anteprojeto, como com 0 C6digo Penal brasileiro em vigor.

Mas, inicialmente, vamos nos socorrer de Urn exemplo que nos e dado pelo Prof. Alfonso Zambrano Pasquel, da Univer­sidade de Guayaquil, que mostra;"tle forma particularrnente feliz, aquela fun9ao do Direito Penal, na maioria de nossos paises da America Latina, de I:naxima prote9ao da proprieda­de privada e de exclusao de comportamentos das classes dominantes muito mais danosos.

. Lembra 0 Prof. Zambrano gue, conforme as defini90es legais, devera se reputar comoJIurto a conduta do trabalhador que toma para si parte do que produz para 0 patrao, nao obstante, enquanto proletario, seja ele 0 dono legitimo da for9a de trabalho que gera 0 produto do qual esta se apropri­and6. Ao contrario, por falta de previsao legal, a cotiduta do

(f

, .

:If,

'De Crinles~ Penas e Fantasias 77

:Ratriio, que n~o gaga ao !!:abalhai?r nem sequer 0 acordadq, nao ira constltuir urn deli to. (2) ,

III - 0 Titulo II do Anteprojeto de Parte Especial do Codigo Penal brasileiro. .

1. 0 maior rigor do Anteprojeto na punil;iio do roubo e do furto

Entrando na analise mais especifica do Titulo II do Ante­projeto de Parte Especial do C6digo Penal Brasiieiro, ve.re~ que, mais do que reproduzir a l!<i,...atual naquela prote9ao desigual dos bens juridicos penalmente tutelados, naquela prote9ao maxima da propriedade privada em detrimento de outros bens mais importantes, 0 Anteprojeto acentua a desi­gualdade, tornando particularmente mais rigorosa 11 puni9ao doroubo e do furto, que sao, no Brasil, delitos caracteristicos das camadas mais baixas e marginalizadas da populavao.

Dando nova defini9ao ao roubo - "constranger alguem, mediante violencia ou grave amea9a, ou por qualquer outro meio, reduzir-lhe a capacidade de resistencia, com 0 fim de subtrair, para si au para outrem, coisa alheia movel" (arti­go 167) - 0 Anteprojeto faz do roubo delito de mera ativi­dade, ao contrario do que ocorre na lei em vigor, em que este se enquadra entre os delitos de resultado material. (3)

(2) Alfonso Zambrano Pasquel. Nueva Cdminologia y Derecho Penal, in Derecho Penal y Cdolinologia, 31, Universidad Extemado de Colombia, Bogot.'i, 1987, p. 72. (3) 0 C6digo Penal brasileiro ern vigor assim define 0 roubo, ern seuartigo 157: IfIlSubtrair coisa movel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameac;a au violencia it pessoa, ou depois de have-la, por qualquer meio, reduzido it impossibilidade de resistencia".

Page 38: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

78 Maria Lucia Karam

Esta nova defmi9ao do roubo torna quase impossive! a tentativa, que s6 podeni ser reconhecida em hip6teses raras, que dificilmente ocorrem na pratica, 0 que vai trazer como regra geral de pena para 0 roubo qualificado 0 minimo de 6 anosde reclusao, sendo que 0 Anteprojeto introduz como qualificadora a circunstiincia do roubo ser praticado durante a

'noite, ficando ainda mais dificil a realiza9ao de urn roubo simples, que, ja hoje, poucas vezes pode ser identificado. (4)

Essa mesma qualificadora e introduzida tambem no furto, o que, aliado ao tratamento dado pelo Anteprojeto ao privile­gio, mostra um agravamento das penas, ao contrario da impressao que se possa ter, a primeira vista, com a simples leitura dos limites minimos e maximos expressos no artigo 165. (5)

Ao tratar do privilegio, 0 Anteprojeto estabelece apenas a diminui9ao da pena ate a metade, excluindo aaplica9ao tiio somente de multa, que s6 sera possivel no caso de furto simples, pela substitui9ao prevista na Parte Geral. (6)

(4) No C6digo Penal brasileiro em vigor, qualificam 0 roubo as circunstancias, de ser 0 fata praticado com emprego de arma, ou em concurso de agentes, Oll

contra pessoa que esteja em serviyo de transporte de valores. A experiencia da justiya criminal no Brasil mostra que dificilmente um roubo e praticado sem que haja emprego de alguma especie de arma ou por urn agente sozinho. (5) 0 artigo 165 do Anteprojeto estabelece para 0 furto simples as penas de reclusao de 9 meses a 3 anos e multa e para 0 furto qualificado reclusiio de 2 ' a 6 anos e multa, etiquanto as penas previstas no artigo 155 do C6digo Penal em vigor sao, respectivamente, reclusao de 1 a 4 anos e multa e reclusao de 2 a 8 .anos e multa. (6) 0 artigo 60 § 29 da Parte Geral do C6digo Penal Brasileiro disp6e que, se for aplicada pena privativa de Iiberdade nao superior'a 6 meses, esta poden' ser substituida por pena de multa, desde que 0 reu seja prirnario e as circunstancias do fato e sua personalidade indiquem que essa substituiyao e suficiente como puniyaopara 0 delito praticado.

("

10:,1 ,"

--... ~ i~I' 'J!I '

"

De Crimes, Penas e Fantasias 79

No caso de furto qualificado - e devemos ter presente que, como no roubo, mais dificil sera a pratica de um furto simples, dada a introdu9ao da qualificadora ja referida da circunstiincia do fato se realizar durante anoite - impossivel sera a aplica9ao apenas de multa, 0 que hoje pode ocorrer, desde que ja se adote o entendimento que, apesar da reda9ao imprecisada lei em vigor, e, sem dllVida, tecnicamente 0 mais correto. (7) ,

Alem disso, 0 Anteprojeto ainda introduz no privilegio 0

requisito de bons antecedentes, que vem se somar a primarie­dade e ao pequeno valor da coisa objeto da subtrac;ao, previs­tos na lei em vigor.

E importante ressaltar que a referencia a primariedade, e, agora, ainda a bons antecedentes, constitui inaceicivel mani­festac;ao do chamado direito penal de autor. Toda responsabi­lidade penal - e, evidentemente, ai esci incluida a medida da pena - deve ser estabelecida unicamente emfullc;ao do desva­lor derivado das caracteristicas da conduta realizada e nao de caracteristicas pessoais do autor, como sao a primariedade e os bons antecedentes. 0 fundamento do privilegio no furto e tiio somente 0 menor dana causado ao patrimonio, nao se podendo admitir outras exigencias.

Na verdade, essa questiio do furto privilegiado nao deveria sequer estar sendo objeto desta discussao, pois como susten-

(7) 0 C6digo Penal Brasileiro em vigor, admitindo a dirninuiyao da pena privativa, de Iiberdade ou a aplicayao apenas de pena de multa, define 0 privilegio no § 22 do artigo 155, enquanto os tipos qualificados do furto vern descritos no § 42 do mesmo artigo, 0 que gera controversia doutrimiria e jurisprudencial quanta it aplicabilidade do privilegio ao furto qualificado. 0 Anteprojeto encerra tal controversia, ao situar a regra referente ao privilegio ap6s a defmiyao dos tipos qualificados do furto,

(

('

('

(

(

(

(

(

(

(

I (

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\. (

(

(

(

\

\.

i

(

Page 39: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

80 Maria Lucia Karam

tou a Prof. Lola Aniyar de Castro, em palestra proferida na Conferencia aqui mencionada; sobre a Questionada Tarefa de Criminalizar (A Prop6sito de urn Novo C6digo Penal para 0

Brasil), 0 furto de coisa de pequeno valor deveria mesmo e estar excluido totalmente de punibilidade, podendo ser con­trolado fora da esfera penal.

2. 0 roubo e 0 furto e a puni~iio de viola~oes a bens essenciais

Nao obstante a observa<;:ao feita acima, ainda vamosinsistir nessa questiio do privilegio, pois e interessante notar que, tanto a lelatual, quanto 0 Anteprojeto, nfu2.fazem qualquer referenciae primariedade e bons antecedentes, quando tratam do homicidio privilegiadtDHoje, como no Anteprojeto, os reguisitos do privilegio, no homicidio, limitam-se as cirGlJ!lS­tiincias de;o fato ser cometido sob 0 dominio de violenta emo<;:ao, logo em seguida a injusta provoca<;:ao da vitima, ou por motivo de relevante valor social ou moral, nada tendo a ver a diminui<;:ao de pena, no homicidio privilegiado, com primarkdade ou bons antecedentes.

Esta diferenca de tratamento do privilegio no furto e no homicidio ja e um exemplo eJggiiente da prote<;:ao maxi1I!a que se da a propriedade privad<i, em detrimento de bens essenciais, como a vida, a liberdade e a integridade fisica.

Outros exemplos podem ser encontrados, tomando como referencial a medida da pena.

Sem esquecer que, num sistema de merc~, a liberdade se

"'1 '"1· :j ";1

'>-.;

De Cl"imes, Penas e Fantasias 81

transforma em mercadoria, 0 que da a pena de prisao 0 ~do

basico dt@olocarpre<;:o ao valor da liberdad~(8), a medida da pena, de todo modo, constitui urn referencial do valor que se atribui aos bens juridicos penalmente tutelados e vaLservir para revelar, com a mesma eloquencia do exemplo dado de inicio, aquela prote<;:ao maxima da propriedade privada, cla- . ramente presente nao s6 no Anteprojeto; como no C6digo Penal brasileiro em vigor.

No Anteprojeto, urn furto simples (artigo 165) tern pena tres vezes maior do que uma lesao corporal dolosa (artigo 129), ou seja, reclusao de 9 meses a 3 anos para 0 furto e deten<;:ao de 3 meses a 1 ano para a lesao corporal, propor<;:iio pr6xima a da lei em vigor, que comina as mesmas penas para a lesao corporal, pun,indo 0 furto com penas de 1 a 4 anos de reclusao.

Tambem mantendo propor<;:ao pr6xima a da lei em vigor, no Anteprojeto, urn sequestro com fun de extorsao (artigo 169) tern pena de reclusao de 6 a 15 anos, tres vezes maior do que a pena cominada a urn sequestro com outro fim (artigo 151).

Vma lesao corporal comresultado gravissimo doloso tern, no Anteprojeto como no C6digo Penal em vigor, pena minima igual a do furto qualificado, ou seja, reclusao de 2 anos.

E 0 ponto mais estarrecedor do Anteprojeto: urn roubo

---(8) Veja-se Massimo Pavarini, La Invencion Penitenciaria: la Experiencia de los Estados Unidos de America en la Primera Mitad del Siglo XIX, in Carcel y Fabrica. Los Origenes del Sistema Penitenciario (Siglos XVI­XIX), Siglo XXI, Mexico, 1980, ps. 266 ss.

Page 40: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

82 Maria Lucia Karam

qualificado (artigo 167, panigrafo 3Q) tern pena mininia - 6

anosdereclusao - igualade urn homicidiodoloso (artigo 121).

Pensemos num exerrip19 concreto: 0 agente que, durante a noite, colocando a mao por dentro da camisa, fmgindo estar armado, amea9a alguem e subtrai seu relOgio. Para os elaboradores do Anteprojeto de Parte Especial do C6digo

, Penal brasileiro, essa conduta tern 0 mesmo desvalor da conduta de quem tira a vida de seu semelhante.

Pensemos num outro caso: ainda durante a noite, 0 agente ----------que passa correndo e tira a bolsa de alguem. Para os elabora-dores do Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal brasileiro, essa conduta tern 0 mesmo desvalor da conduta de quem, por exemplo, com urn estilete, fura os olhos de outrem, causando-lhe a cegueira.

Como acontece na apresenta9ao do Anteprojeto aqui exa­minado, 0 tratamento dado ao roubo costuma vir J!compa-~ , -

nhado da afirma9ao de uma falsa ideia, cada vez mais ~-~andeada pela ideologi~dominan~, qu~procura caractenZir:: 10 como a grande amea9a a paz, a tranqihlidade, a seguran9a, como 0 grande exemplo da violencia reinante na sociedade brasileira, gerando urn sentimento de panico na popula9ao e procurando justificar aquele rigor maior em sua puni9ao co­mo uma forma de prote9ao a pessoa.

o conteudo de tal discurso ja se desmorona com os exem­plos acima citados, pois e evidente que quem atllibui a urn homicidio doloso 0 mesmo desvalor de urn roubo, §uem atribui a uma lesao corporal dolosa gravissima 0 mesmo desvalor de urn furti\n~ tern a prote<;ao a pessoa como sua

I I ,~

" !I

.'1'

De Crimes, Penas e Fantasias 83

preocupa9~ mak>r.

Mas, alem disso, considerando que as fonnas mais graves de violencia sao, evidenterriente, aquelas ligadas a mortes e of ens as a integridade fisica, nao e dificil verificar quae falsa e essa ideia de que 0 roubo, no Brasil, e a maior das violencias.

Analisando dados da Divisao de Distribui9ao do .I.ribunal de Justi9a do Estado do Rio de Janeiro, vamos constatar que --. - -o numero de roubos, em que ocorrem lesoes corporais ou

mortes, e absolutamenteinexpressivg. Em registraram-se 57 distribui90es relativas a roubos com tais resultados. Em 1988, de 1 Q de janeiro a 30 de setembro, 0 numero destas distribui90es foi de 28.

Por outro lado, no mesmo ana de 1987, foram distribuidos 1.294 processos relativos a homicidios culposos e 3.726 relativos a lesoes corporais culposas. Em 1988, a propor9ao se mantem. No periodo de 1 Q de janeiro a 30 de setembro, tivemos 881 distl'ibui90es referentes a homicidios culposos e 2.567 a les6es corporais culposas, delitos que, em sua quase totalidade, ocorrem na circula9ao de veiculos.

"" , Nao fosse a popula9ao manipulada por aquele discurso mistificador, estivessem em cena pensamentos com algum compromisso com a realidade, certamente, urn motorista negligente seria, no Brasil, pelo menos umas cern vezes mais temido do que urn assaltante.

Mas, falando de mortes e lesoes corporais no Brasil, nao se podem esquecer os acidentes do trabalho, que alcan9am ni­veis absurdos. Milhares de trabalhadores morrem e sofrem

f KltiUhlM,- lJL ~c.""

Gl.l2"O\8lV'-Q;. ~~1L"1i),,1 dI...;;<. jJ~~I.~;!·\~ ".~.~·:;..lli

_ .... 11. I «'lITm81 A

(

C (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

\

(

(

i,

\

\

\

(~-

(

\

Page 41: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

84 Maria Lucia Karam

of ens as em sua integridade fisica, apenas por trabalhar. E a unica rea<;iio do Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal brasileiro e preyer, no artigo 217, a figura da omissao de medidas de higiene e seguran<;a do trabalho, com pena inferior a do furto simples: deten<;ao de 7 meses a 2 anos. E nao se

. preve sequer. a figura culposa, deixando, assim, fora do sistema penal grande parte dessas condutas, que tantos danos causam aos trabalhadores brasileiros.

Tampouco se pode esquecer que 0 Anteprojeto mantem a criminaliza<;ao do esbulh~o (artigo 171, paragrafc: 1Q

, II2/iJermitindo a puni<;ao daqueles que, privados de urn ~o de terra para viver e nela trabalhar, como acontece com milhares de pessoas no Brasil, eventualmente invadam algu­rna propriedade, ao mesmo tempo em que imensos latifun­dios improdutivos sao considerados legais e, mais do que is­so, ao mesmo temp!> em que a estrutura extremamente desi­gual e concentradora da propriedade da terra no Brasil aca bou por ser garantida pela tao esperada nova Constitui<;ao, pro­mulgada em 5 de outubro de 1988. ---3. 0 roubo e 0 furto e a puni<;iio de outros

comportamentos de custo social mais amplo

Aanalise dos Grimes contra 0 patrim6nio no Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal brasileiro vai mostrar tambem que af§tela dos bens juridicos e a criminaliza<;ao das condutas a eles ofensiva1independeEl do ~ior ~ m~r dana socEtl que tais_ condutas.j?rovocam, nao sendo este dana social a variavel principal da rea<;ao criminalizadora e da intensidade da amea<;a penal. Ao contrario, freqiientemente, essa rea<;iio

-$ ~~;

~ ~

De Crimes, Penas e Fantasias 85

penal esta em rela<;ao inversa com 0 dana social provocado.

Examinando 0 Titulo XII do Anteprojeto, que trata dos crimes contra a ordem econ6mica, fmanceira ou tributaria, verificamos que, em todas as figutas ali dcifinidas, s6 existe uma - a gestao fraudulenta ou temeraria (a:t1ig0390) - com pena (reclusao de 3 a 7 anos) superIor a do furto qualificado. Todas as outras condutas previstas naquele Titulo, condlltas que, como e 6bvio~ausam danossociais, prejuizos econ6micos ao pais, de forma evidentemente muito mais intensa do que roubos e furtos, ·sao punidas com penas menores do que as cominadas ao furto qualifica:d~ E aquela unica figura punida com pena superior a do furto qualificado tern, assim mesmo, pena inferior a do roubo simples.

No Titulo XIII, que trata dos crimes contra 0 meio ambiente e que, como 0 anterior, vern sendo muito l;~~;~a;;:-por introduzir figuras nao prevista3 no C6digo Penal brasileiro em vigor, somente a polui<;ao com resultado morte, defmida nos artigos 401, 402, 403 e seus paragrafos, tern pena superior a do furto qualificado, tambem, como era de se esperar, nilo maior do que a do roubo simples: 3 a 8 anos de reclusao.

o peculato e a corru£.@o sao talvez os grandes males do Brasil, sao/fjirvez"asc(;ndutas que mais prejuizos causem ao pai~ue assiste, ja sem muita surpresa, dada a sua freqiiencia, a uma lW'cessao de escandalos na administra<;ao publica) desvios_de verbas,malversa<;ao de fundos, escandalos re~C?ll!>~V'~is, inclusive, por boa parte do volume de nossa insustentavel ?ivida extern.!!, Entretanto, ao peculato (artigo 318 do Anteprojeto) se atribui pena minima de 2 anos de

iKHi!_~,:_:.~".i l-.- ,,-,. ::::·..'-t.Ri a-e.~

Gl~'0~~:/'J~ ~i,·::~l :;,." ~~O~W~~Ul~

Page 42: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

86 Maria Lucia Karam

reclusao, ou seja, igual Ii do furto qualificado, e Ii corrup<;:ao (artigo 325) pena minima de 1 ano, a metade de urn furto qualificado.

Urn outro exemplo, dentro do Titulo relativo aos crimes contra a ordem economica, fmanceira ou tributliria, e a sonega<;:ao I (artigo 399 do Anteprojeto), pnitica tam­oem s mais corriqueiras no Brasil e que, evidehtemente, tambem causa prejuizos enormes ao pais,A penaatribuida a tal delito e de deten<;:ao de 7 meses a 2 anos, ou seja, inferior Ii do furto simples. Alem disso, preve-se, para a sonega<;:ao fiscal, a repara<;:ao do dano como forma _de~xtin<;:aQ,.da punibilidade, 0 que mostra -aTIioamalS;-desigualdade de tta:tafueiito~'pois, no furto, a repara<;:ao do dano podeni funcio­nar apenas como dirninui<;:ao de pena, conforme a regra con­tida no artigo 16 da Parte Geral do Codigo Penal brasileiro.

Contribuindo tambem para a tendencia de privilegiar os interesses das classes dominantes e orientar 0 processo de crirninaliza<;:ao contra condutas caracteristicas das camadas mais baixas e marginalizadas da popula<;:ao, temos a propria formulayao tecnic~ das figuras delitivjls, que,)!ias condutas caracteristicas destas camadas mais baixas, e sempre mais simples, mais apertad~ enquanto, nas condutas caracteristicas

,---das classes dominantes, a formula<;:ao mesma das figuras delitivas da marg~m a intt':!}>f.eta<;:oes mais amplas. (9)

--_ - ----x_~ - -- - --_~ ______ ~ ______ --_ ....

Permanecendo no Titulo relativo aos crimes contra 0

(9) Sobre a formula9;;o das figuras delitivas, bern como sobre a relayao entre rea9;;o penal e dano social, veja-se Alessandro Baratta, Criminologia Critica yCriticadei DerechoPenal, SigloXXI,Mexico, 1986, ps.170/172e 184/185.

~4i 'I' (f.i

;.--

-c;.

t;' "<~

-'1111

rie Crimes, Penas e Fantasias 87

patrimonio, pensemos, por exemplo, no estelionato,. que

~rovoca interminaveis discussoes sobre fraude civil, fniude

penal e suas fronteiras, discuss6esque ocorrem quandose trata de grandes fraudes, praticadas na atividade empresarial. . No furto, no roubo, nao ha maiores dificuldades na adequacW tipi~enU:;;-do proprio ~stelionato, quando se trata, por exemplo, do conto-do-paco (10), tambem ja nao se levanta qualquer duvida quanta a seu enquadramento no tipo.

Alem disso, tern -se a propria limita<;:ao estrutural do Direito Penal, que, operando basicamente com a logica da individualiza<;:ao das condutas soeialmente negativas, nao vai . funcionar nos delitos cometldos na atividade das grandes empresas e do aparelho burocratico, sendo extremamente dificil responsabilizar os dirigentes, os mandantes e os beneficiarios desse tipo de conduta criminosa. (11)

Neste ponto, basta lenibrar dos crimes contra a economja popular, que estiveram em grande moda, no Brasil, ~te 0

'Plano-Cruzado. Naquela epoca, a repressao se voltava, no maximo, contra subgerentes de supermercados, naose conseguindo, em nenhum momento, responsabilizar as donos

(10) 0 chamado conto-do-paco e uma modalidade bastante rudimentar de estelionato, muito praticado por membros' das camadas mais baixas e marginalizadas da popula9ao brasileira, que consiste em enganar a vitima, fazcndo com que esta enc;ontre urn pacote de papel sem valor, com umas poucas cedulas verdadeiras de dinheiro porcima, supostatnente pertencente ao agente, R.ue the oferece uma inexistente recompensa, a ser buscada ·em Dutro lugar, desde que seja deixado como garantia algum bern, de que, assim, 0 agente se apropria, quando a vitima se afaSta em busca daquela recompensa inexistente. (11) Veja-se Alessandro Baratta, Requisitos Minimos del Respeto de los De.·echosHumanosen laLey Penal, Capitulo Criminologico 13, Universidad del Zulia, 1985, in Derecho Penal y Criminologia, 31,-ps. 101/102.

(

(

(

(

(

(

(

c' , (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

I,

" \

\ ,

~ , (-

Page 43: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

88 Maria Lucia Karam

das empresas, os beneficiarios desses delitos. E isto, n1i&<S6 por um defeito de aplica9ao da lei, mas por um defeito da lei mesma, pela dificuldade de enquadrar a conduta desses verdadeiros responsaveis dentro dos dispositivos legais.

Assim, a tao propalada novidade do Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal brasileiro, a maior criminaliza9ao

~os crimes contra a ardem econoffiica, dos crimes contra 0

meio ambiente, que vem sendo apr~sentada como um grande avan90, na realidaqe, nao passa de mais uma forma de mistifica9ao, mais uma forma de passar aquela falsa ideia de que 0 Direito Penal se destina a proteger a todas as pessoas e a todos os bens essenciais.

IV - Conclusiies

Este mito do Direito'Penal, destinado a P1:oteger bSns essenciais a todos os homens, Rarece desmoronar-se.

Arapida analise, aqui tentada, dos crimes cCmtra 0 patrimo­nio noAnteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal brasileiro ja mostra que este Anteprojeto, expressando um Di . Penal ~e uma sociedade desigual, estina-se sim a dar a maxima prote9ao a propriedade privada, a dirigir a repressao penal contra as camadas mais baixas e marginalizadas da popula9lio, manifestando-se como mais um instrumento de domina9ao, como mais um instrumento de conserva9ao e reprodu9ao da estrutura social injusta em que se baseia a sociedade brasi­leira.

o aperfei90amento e a busca de novas perspectivas para 0

I :~

.~ '.:! .~ 1

,-1 ~1

I .~ -'i 1'­r ~

.. ;

il 1 1! j j -l ~ .! i

0_1

.;

,j >1 'I 1

~.~

'---,i

. ~-1

.• ~ .J, .'il!

,:,':<

::;:~

:~'

. -~

De Crimes, Penas e Fantasias 89

Direito Penal, dentro de um caminho para a democracia, impoem, por um lado, a condena9ao deste Anteprojeto de Parte Especial doC6digo Penal brasileiro, mas sugerem taffibem a fixa9ao de alguns pontos minimos, que devem ser seguidos para se avan9ar naquele caminho.

Um Direito Penal, que se queira democratizar, precisa considerar a exigibilidade social de comportamentos alternativos e 0 espa90 de oportunidades que se colocam a disposi9ao do agente, quando vai estabelecer san90es.

Precisa, ainda, compreencie.r:_ os compo.r:tat!!~tos socialm.~llte negatiyos "Oils .c!a.~~e§.oprirnidaS>.£Qm.9 .. §~() 0 roU:1J6-e 0 .-furtQ, enquanto expressao das contradi90es da sociedade capitalista, enquanto uma resposta individual a essas contradi90es, lembrando que tais comportamentos sao ~muito menos danosos do que comportamentos socialmente, negativos das classes dominantes, como a criminalidade economica, como a criminalidade dos detentores do poder e de seus agentes, bern como outras condutas socialmente negativas, nao criminalizadas, essenciais a acumula9ao do capital. --Urn Direito Penal mais democnitico tem que se limitar a criminaliza9ao de viola90es a direitos fundamentais e somen­te estabelecer san90es proRorcionais ao dana social resultante

- -----.~-~.--__ .~-~--_""7

dos comportamentos crirninalizados .

-E preciso tambem at!<nder aos interesses das vitimas .. privilegiando as san oes restitutivas, que, especialmente nos crimes contra?p!l!~§.11J.2, se mos rani. muito mais adequa­dasparaii-soIu9ao do conflito trazido com a pratica do delito .

Page 44: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

90 Maria Lucia Karam

Estes sao apenas pontos basicos, que devem ser observadbs na tentativa de democratizayao do Direito Penal.

Mas, nao se pode esquecer que 0 combateefetivo aos c~portamentos~ente negativos e a realizayao de urn Dire!!2' verdadeiramente 'usto e democratico a am, I}ecessariamente, pela @uperayao do capitalismo e pela construyao de uma sociedade sem divisao em class~ em que toda a populayao, tendo 0 controle do poder, tenha, enflffi, atendidas suas necessidades reais.

~

Hi :1.3

'1'.;,"'

'.'1", .:1 ;" . • .~-

·m ""

1'\ ., ~ii ~~

t';

,.J:

:~\' )4 .0:.' F" q

':~~. " !¥

":@ ;,i iq;

~~ ,;~

i

Papel social, juridico e politico da magistratura

(

{

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

i,

(

(

\. (

l

(,

\.. (,

l \.

\.,

Page 45: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

,

'-' ~

~ ....

,)

)

PAPEL SOCIAL, JURfOICO E POLITICO OA MAGISTRATURA

I - Estado e junriio judicitiria

Sintetizando as defmiyoes mais correntes, podemos afu­mar que a.funrrao jtidichiria cOllsiste, basicamente,~~irimir, em cada caso concreto, as divergencias surgidas por ocasiao da aplicayao das leis, solucionando conflito~entre parti­culares, entre estes e 0 Estado ou mesmo entre orgaos do proprio Estado,{jazendo valer 0 ordenamento juddico, de forma coativa, toda vez que seu cumprimento nao se de sem resistenci~ 1)

Tem, assim, a funyao judiciiiria a fmalidade formal de 'Enterpretayao e aplicayao das leis, para dirirnir conflitos,

assegurar a defesa dos direitos legalmente protegidos e re­primir sua violayao. ,

Tal funrrao, embora possa seridentificada em todos os ti-

'(I) Veja-se, por exemplo, Celso Ribeiro Bastos, Cursu de Direito Constitucional, Sao Paulo, Saraiva, 1984,7' ed., ps, 178/192.

r n'.~UNAL DiEJijSl!~~[(; :;,\01 iE. E. SAJI.\l t·, Cll.U'at~lr't.c. ~~\",j)n:>J ~E\. tiio~;.urt;)'-l-)l~"

Page 46: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

94 Mada Lucia Karam

pos de Estados e fonnas;oes sociais, adquire eautonomia,no sentido de constituir atividade propria de uma instituis;ao determinada, somente apartiJ;: do Estado capitalista-" que vai

@onsagrar a impropriamerite chamada teoria da separas;ao de poderesdo Estad§lem que 0 exercicio das funs;oes legislativa, executiva e judichiria deve corresponder a orgaos fonnal­mente distintos e independentes.

E aindabartir do Estado capitalistiJIue a funs;ao judichiria adquire relevancia especttl, enquanto parte do aparelho de Estado, na medida em que, ao contnirio de outras fonnas;oes sociais, em que instituis;oes como a Igreja, 0 poder senhorial, etc., tinham, paralelamente ao Estado, 0 privilegio da re­pressao fisica organizada, na fonnas;ao social capitalista 0

EStado tern 0 monopolio dessa repressao[gue passa a existir, assirn, com urn carater propriamente polit~ que, em(g~an­de parte, e exercida atraves do chamado.Pqde;:h)diciai1"Q? ou seja, 0 6rgao estatal que tern como fun9ao primordial a judiciaria.

Sem pretender fazer urn estudo do Estado capitalistl!. que, evidentemente, fugiria ao ambito deste trabalho, enecessario, porem, ainda que em rapidas pinceladas, apontar.Jllgumas ~de suas caracteristicas basica~ gara que possamos c:s>mpree~er a funs;ao judiciaria, tal como ela se <lpresenta na sociedade em -. q~e Vlvemos.

o poder institucionalizado do Estado se constitui das estruturas politicas de uma fonnas;ao social historicamente

. determinada, surgindo a partir do momento em que o'§'umento da produtividade do trabalho e 0 desenvolvimento da proprie-

"','~

'\"

11

De Crimes, Penas e Fantasias 95

dade privada e das trocas, das diferens;as de riqueza, da possibilidade de empregar fors;a de trabalho alheia, superan­do a estrutura das sociedades primitivas, baseadas nas UH.iOes gentilicas, vao detenninar antagonismos entre os ageIites do . processo deprodu¢o, que vao se distribuir em classes sociais. (2)

o Estado e, assim, a,erganizas;ao de que se dota a sociedade dividida em classes, para manutens;ao das rela<;:oes baseadas na propriedade privada dos meios de produs;a~podendo ser concebido com<fIlrincipio de organizas;aoe fatorregula40r do equilibrio glob~tae urn modo de produs;ao e de uma fonnas;ao social no interior dos quais se manifestam contradis;oes entre classeD

Eo Estado ol§entro do exercicio dO'poder politico da classe ou classes que exercem dominas;ao sobre as outra~e suas funs:oes1 naturalmwte, vaq3orresponder aos interesses espe­cificos dessas classes dominantesJ .

Cada modo de proclus;ao vai gerar urn tipo basico de Estado e em cada fonnas;ao social especifica (modo de produs;ao .;:. sua superestrutura) este tipo de Estado podera se estruturar de diferentes fonnas, mantendo, porem, as caracteristicas funda­mentais detenninadas pelo modo de produs;aoa que cor­responde.

Vamos tratar aqui, assim, do Estado capitalista em seu tipo basicq, tendo claro que, em cada fonnas;ao social capitali~ta

(2) Sobre a origem do Estado, veja-se especialmente Engels: ~ A Origem da Familia, da Propriedade Privada e do EstadoM ,Rio, CiviIizayiio Brasileira, 1977,3' ed.

( \

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\.

(

(

(

\.

(

(

\ \ I.

( . \.

\..

\..

t... ,

Page 47: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

96 Maria Lucia Karam

historicamente detenninada, este tipo basico podera se apre­sentar de formas variadas.

No ~g capitalista, 0 E9der institucionaJizado como organiza<;ao da sociedade dividida em classes, como centro de exercicio do poder politico das classes dominantes, so pode se estabelecer a partir da autonomia relativa que 0 caracteri:yl, autonomiague 0 faz -seapresentar como situado acirna das classes, como representante do povo-na<;a.0.atraves de meca­nismos como' 0 sufragio universal, a representa<;ao popular, a impropriamente chamada separa<;ao de poderes, etc.

o divorcio total entre os meios de produ<;ao e 0 produtor direto, que nada mais possui senao sua propria for<;a de trabalho, a concorrencia, a complexidade maior das rela<;oes estabelecidas no processo de produ<;ao, com 0 desenvolvi­mento extraordinario das for<;as produtivas, a permanencia das classes da pequena produ<;ao, 0 fracionamento interno da burguesia, a ascensao e a luta politica organizada da classe operaria, saofatores que tornam condi<;ao irtdispensavelda domina<;ao essa autonomia relativa do Estado capitalista, que e a autonomia necessaria a organiza<;ao hegem6nica das classes dominantes e ao efetivo exercicio de sua domina<;ao. (3)

[A despeito das fURvoes legislativa, executiva e-judid:iria serem exercidas por institui<;oes distinta£}cujo funcionamen­to apresenta diferen<;as reais, 0 Estado capitalista fundona,

'. -

(3) Sobre a autonomia relativa do Estado capitalista, veja-se especialmente na obra de Marx·O 18 Brumario", Rio, Paz e Terra, 1978,4' ed.

De Crimes, Penas e Fantasias 97

em ultima analise, como unidade centralizada, ao constituir....a unidade politica das classes dominantes. ,

A fun<;iio judici:iria, como qualquer outra fun<;ao do Estado capitalista, e, assim, antes detudo, uma fun<;ao po,litica~e visa, em essencia,(! manuten<;ao e a reprodu<;ao d<ls rela<;oes baseadas na domina<;ao de classe sobre as quais se constitui a forma<;ao social capitalista]

II - Poder Judicilirio e domina~iio de classe

~, portanto, que a fun<;ao judis@;.la nao se esgota em sua fmalidade form'at de interpreta<;ao e aplica<;ao das leis, para dirimir confIltos, assegurar a defesa dos direitos legal­mente protegidos e reprimir sua viola<;ao, sendo, antes/fustru­mento de manuten<;ao e reprodu<;ao das rela<;oes de domi­na<;ao em que se baseia a forma<;ao social capitalisWpasse­mos a analisar como se desenvolve efetivamente ~..mwel nao ~rente da institui<;ao que chamamos de Poder Ju­diciario.

1. 0 direito a ser aplicado

Urn primeiro ponto de analise pode ser extraido da propria fmalidade formal da fun<;ao judiciaria.

Ao interpretar e aplicar as leis, 0 Poder Judiciario estara necessariamente exercendo aquela fun<;ao nao aparentede manter e reproduzir as rela<;oes de domina<;ao.

jy; leis a serem interpretadas e aplicadas constituem 0

direito positiv~, erne, enquanto conjunto dimormasdisciplina­doras das rela<;oes sociais, se insere..1!~perestrutura de uma

i KIHUi'iIAL lJt. JUS II\,;A ';':IU t.. t., ::>AI1II'"

1I1 ... ie:rla " ... al da .0.>'.'-.. ..

Page 48: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

98 Maria Lucia Karam

detenninada formiu;:ao social, expressando, assim, os CcinfliJ tos de classe e as contradiyoes especificas que a caracterizam.

Adotando a apropriada defmiryao de Juarez Cirino, pode­mos dizer que, na formacyao social capitalista, 0 direito e a expressao legal do modo de produyao capitalista e, assim, a' institucionalizayao normativa dos interesses e necessidades das classes dominantes, impondo e reproduzindoas relayoes de opressao e desigualdade em que se fundamenta 0 seu poder; de classe. (4)

Ao contnirio do que enuncia 0 principio da ~e de todos perante a lei, 0 direito da sociedade capitalista efundaskJ na desigualdade.

A partir da categoria civilista docontrato, estudos ja bastanteconhecidos desnudam 0 carater desigual do direito da sociedade capitalista, demonstrando como 0 direito dito igual setransforma em direito desigual.

Tomando a relayao basica da sociedade capitalista - a compra e venda da forya' de trabalho - que, em sua forma juridica, se expressa atraves do contrato de .trabalho, surge claramente a contradiyao entre a igualdade formal dos indi­vfduos como sujeitos no plano abstrato do direito e a desi­gualdade substancial da posiyao dos mesmos como indivf­duos reais nas relayoes de produyao. (5)

(4) Cirino, Juarez. "As Raizes do Crim,,",-Rio, Forense, 1984, p. 126. (5) Sobre 0 direito desigual da sociedade capitalista, veja-se, entre os textos de Marx, especialmente a "Critica del programa de Gotha", in Ohras Escogidas, Torno Ill, Moscou, Editorial Progreso, 1974, pp. 5_27. .

D~ Crimes, Penas e Fantasias 99

A igualdade forma.! dos sUJeltos no momento juridico contratual da@ompra-vendadaforya de trabalhQX 0 capitalista troca capital, sob a forma de salado, por trabalho, ou seja, a energia humana aplicada nos meios de produyao) e acompa­nhada, no moment.o~ da produyao, pela suborpinac;;ao (tendo como linica mercadoria. sua for9a de trabalho, 0 traba­lhador e obrigado a vende-Ia para sobreviver) e pela ex­plorayao (0 consumo da forya de trabalho produz urn valor excedente'- ~ mais-val~ - apropriado por seu comprador).

Mas, e no campo penal que talvez melhor se possa identi­fica~se carater desigual do direito da sociedade capitalista., pois, nao obstante 0 mito da iguald;de ser aqui ainda mais difundido e interiorizado,~ 0 direito penal 0 direito desigual pOI excelenci~

A seleyao e l.efini~ao de bens jurfdicQs e comportamentos com releviincia penal se faz de maneira classist51, tendendo a

[privilegiar os inter';-sses das classes dominantes'.J tendencia que vai levar a que 0 processo de criminalizayao se oriente, fundamentalmente, contra comportamentos caracteristicos dascamadas mais baixas e marginalizadas, excluindo ou minimizando comportamentos socialmente danosos, ca­racteristicos das classes dorninantes e ligados a acumulayao do capital. -lit 7Z:-..-iy--,Q ~~ ~ ~ W ... ~

Mais eloqliente do que 0 exemplo do contrato de trabalho antes referido, eo fato lembrado pelo Prof. Alfonso Zambrano Pasquel de que, conforme as definiyoes legais, devera se reputar como furto a conduta do trabalhador que toma para si parte do que produz para 0 patrao, nao obstante, enquanto proletario, seja ele 0 dono legitimo da forya de trabalho que

(

(

('

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

I (

(

(

(

\ (

(

\ (

\ (,

\_-

\,

\.

\,

\,

~i

"

Page 49: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

100 Maria Lucia Karam

gera 0 produto do qual esta se apropriando, quando, ao contnirio, por falta de previsao legal, a conduta do patrao, que nao paga ao trabalhador nem sequer 0 acordado, nao ira constituir urn delito. (6)'

Nao se destina 0 direito penal da sociecIade capitalista a proteger apenas bens e val ores essenciais, no sentido de bens comuns a todos os homens. Ao lade da protes;ao a vida, a liberdade, a integridade fisica e moral, 0 processo de criminl!:' lizas;ao acaba par instrumentalizar e dar aLPaxima protes;ao a propriedade privada, em detrimento daqueles bens essenciais~

Tomando a medida da pena como urn referencial do valor atribuido aos bens juridicos penalmente tutelados, podemos veressa afirmativa concretizada no direito penal brasileiro. Vma lesao corporal com resultado gravissimo doloso tern pena minima igual a do furto qualificado, ou seja, reclusao de 2 anos, Submeter criall4;:a ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigiliincia a tortura, como defmido na Lei nQ 8.069 (Estatuto da Crians;a e do Adolescente) e conduta punida com pena de reclusao de 1 a 5 anos, enquanto urn roubo simples tern pena de reclusiio de 4 a 10 anos. E 0 Anteprojeto de Parte Especial do C6digo Penal Brasileiro, a set apreciado pelo Congresso, chega a igualar a pena minima do roubo qualifica­do a do homicidio doloso: reclusao de 6 anos.

Por outro lado, a tutela dos bens juridicos e a criminaliza­s;ao das condutas a eles ofensivas independem do maior ou

(6) Zambrano Pasquel, Alfonso. "Nueva Criminologia y Derecho Penal", in Dei-echo Penal y Criminologia, 31, Universidad Externado de Colombia, Bogota, 1987, p. 72.

II " I

II

D'C Crimes, Penas e Fantasias -l01

menor dano social que tais condutas provocam, nao sendo este dano social a variavel principal da reas;ao criminalizadora e da intensidade da ameas;a penal. Ao contrario, freqiientemente, essa reas;ao penal esta em relas;ao inversa com 0 dana social provocado.

Ninguem tern duvida dos imensos prejuizos que 0 peculato e a corrups;ao causam a nosso pais, que assiste, ja sem muita surpresa, dada a sua freqiiencia, a uma sucessao de esciindalos na administrayao publica, desvios de verbas, malversayao de fundos, condutas que, evidentemente, causam danos sociais, prejl!izos economicos muito mais intensos do que furtos ou roubos. No entanto, ao peculato se atribui hoje pena minima de 2 anos de reclusao, ou seja, igual a do furto qualificado, e a corrupyao pena minima de 1 ano, penas essas repetidas no mencionado Anteprojeto.

Contribuindo tambem para a tendencia de privilegiar os interessesdas classes dominantes e orientar 0 processo de criminalizayao contra condutas caracteristicas das camadas mais baixas e marginalizadas, temos a propria formulayao tecnica das figuras delitivas, que, nas condutas caracteristicas destas camadas mais baixas, e sempre mais simples, mais apertada, enquanto, nas condutas caracteristicas das classes dominantes, a formulayao mesma das figuras delitivas da margem a interpretayoes mais amplas.

Alem disso, hi a propria limitayao estrutural do direito penal, que, operando basicamente com a logica da individu­alizayao das condutas socialmentenegativas, nao vai funcio­nar nos delitos cometidos na atividade das grandes empresas e do aparelho burocratico, sendo extremamente dificil respon-

Page 50: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

102 Maria Lucia Karam

sabilizar os dirigentes, os mandantes e os beneficiarios desse tipo de condutas criminosas. (7)

2. A aplica~ao do direito

E, portanto, este direito fundado na desigualdade que sera aplicado no exercicio concreto da fun9ao judiciaria, aplicayao que vai acentuar ainda mais seu carater desigual e seletivo.

A magistratura.2 na sociedade capitalista, e integrada pre­dominantemente por§dividuos de atitudes conservadoras,

-'_uL":"~~e uma visao dogmatica e acritica do direit~que encobre aquele seu papel de manutenyao e reproduyao das relayoes de dominayao em que se baseia a formayao social

capitalista.

A origem de classe dos integrantes da magistratura esta lirnitada aos setores medios e superiores da populayao, com exclusao das camadasmais baixas, registrando-se uma tenden­cia it predominancia de juizes vindos da pequena-burguesia.

~ ~ ----.~ ~

Pesguisa realizada na Republica Federal da Aleman!J.a, nos anos 70, constatou que 90% dos~ eram provenientes de estratos medios e superiores. Tambem na Inglat~ITa se demonstrou a exclusao das camadas mais baixas do aparelho judiciario. NaArgentina, nao obstante a ausencia de investi­gayoes sociol6gicas sobre a composi9ao social da magistra-

(7) Para uma visao critica do direito penal, veja'-se especialmente Alessandro Baratta: "Criminologia Critica y Critica del Derecbo Penal", Mexico, Siglo XXI,1986.

rn I; I .I,

II

.J' 101

;)1 ~'

~! j'

11

-11

~: ~i :'1 l~

, !:

'· .. ~l ':,~I

l' "~'

~).,

De Crimes, Penas e Fantasias 103

tura, a observa9ao pratica revela que a grande maioria de juizes vern da pequena-burguesia. (8)

No Brasi!, a mesma tendencia se manifesta. Pesquisa, .realizada em 1962 e mencionada por Jose Rico, revelava a presen9a de 17% de juizes oriundos da burguesia, 62% da pequena-burguesia e 4% de estratos inferiores. (9)

A simples observa9ao e conhecimento pessoais permitem afmnar que tal quadro permanece valido em linhas gerais, acentuando-se 0 peso da pequena-burguesia.

Mas, nao e a origem de classe a varia vel mais importante -- ~ - -para 0 conhecimento e compreensao da atuayao dos que exercem a fun9ao judiciaria.

A[ntegra9ao ao aparelho de Estad~e que vai reger essa atuas:ao, aos niveis politico e ideologico, pois, enquanto parte do aparelho de Estado, a fonna de exereicio da ~ judiciaria nao pode deixar de ser estritamentedeterminada --. ~ funcionamento de classe desse Estado.

A '!-tua~ao dos integrantes da magistratura, como de outras categorias pertencentes ao aparelho de Estado, nao e direta­mente detenninada pela sua atribui9ao de classe, pelo fun­cionamento politico das classes ou fra90es de que sairam, dependendo sim do funcionamemo concreto do poder d~

(8)Bergalli, Roberto. "Jueces e luteresses Sociales en Argentina", in C.-itica a la Criminologia, Bogota, Temis, 1982, pp. 245-265. (9) Rico, JoseM. "Crimen y Justicia en America Latina", Mexico, Siglo XXI, 1977, p. 267.

; .1-(1tiUNAL Ue .J U::> I II,;A .. ;JU L t... ~AN 1111

-81r.ter1a Q_ral d& _.oretar'.

(

('

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

{

(

. (

(

(

(.

(

(

" (

(.

(

\

Page 51: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

t'

104 Maria Lucia Karam

classe desse Estado, 0 que vai pennitir uma unidade e coeren­cia pr6prias aa(;tegoria, independentemente da diversidade do recrutamento e da atribuiyao de classe de seus integrantes individualmente considerados. (10)

No caso da magistratuia, some-se a isso 0 fato de que a condiyao profissional, a ideia de ~ funyao social, faz com queffeus integrantes se vejam ocupando uma posiyao consi­derada superior na sociedade, 0 que contribui para distancia­los ainda mais dos condicionamentos originais e do funcio-' namento politico caracteristico das classes ou tualmente inferiores de que possam ter saidoJ

Como fala Bergalli dos juizes argentinos originanos da pequena-burguesia, suas atitudes - expressadas atraves de suas decisoes - nao correspondem as de seu estrato social e passam a ser atitudes de[Eroteyao dos valores da classe

. superior, ante a falsa convicyao de que, por exercerem uma , funyao publica elevada, ja passaram a integrar uma posiyao social destacad<i) (11)

Os mecanismos ideol6gicos e politicos, que, ocultandoo caniter de classe do Estado capitalista, 0 apresentam como situado acima das classes, como representante do povo-nayao, como depositario do bern comum, agem de forrnaparticular­mente mais intensa quando se trata da funyao judiciliria.

Na t~ da ~eparayao de poderes'] a funyao judiciaria ap~ce~ 0 "poder" nao-politicC? do Estado, cuja atuayao

(10) Veja-se a amilise de Nieos Poulantzas sabre a burocracia em "Poder Politico e Classes Soeiais'", Sao Paulo, Martins Fontes, 1977, pp. 327 ss. (11) Bergalli, Roberto, op. cit., p. 247.

J 1: )1 !

,j

-;i

,,,"1,

jr

-1

De Crimes, Penas e Fantasias lOS

tern como pr!llcipal c~ca aGmparcialidad~o juiz, como pessoa neutra, desinteressada do litigio, que se coloca numa posiyao superpartes e decide tecnicamente.

. ---- --------Alem disso, em nome de uma suposta independ~, 0

Poder Judiciario p~rrnanect[!:echaao, mitificado e temidoJ

Em trabalho intitulado "EI derecho y el deber de discre---""---

par con las resoluciones judiciales", Francisca Sauquillo e Antonio Gomes Rufo, advogados do Ilustre Colegio de Ma­drid, falam dessas caracteristicas, mostrando que ninguem se desespera se sao criticados 0 Poder Legislativo e seus mem­bros, ou mesmo se e ironizada sua capacidade legislativa; que todo mundo tambem concorda com a legitimidade ou mesmo a necessidade de criticar 0 Poder Executivo, 0 que se ve a toda hora e a todo lugar; e que, ao contrario, 0 Poder Judiciario, escondido atras de uma courac,:a de ~ofmantem sua premissa de infalibilidade, com 0 acordo tacito :ros cidadaos, que parecem ter renunciado a fazer alguma coisa para derru bar tal courayf/( 12)

Essa couraya tambem se manifesta atraves da(s_olenidad~ que marca 0 exetcicio da funyao judiciaria, com a[institucio­nalizayao. do processo, a despersonalizayao do juiz, a orga­nizayao, a lingua gem e a conduta artificiais]que se costumam considerar inerentes a dignidade do Pader Judiciario.

Esses mecanismos ideo16gicos e politicos, essa organiza­yao do exercicio da funyao judiciaria, tornam a magistratura

. .-----~- ----- ~

(12) in Derecho Penal y Criminologia, 30, UniversidadExtemadode Colom­bia, Bogota, 1986, p. 100.

Page 52: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

106 Maria Lucia Karam

@m corpo isolado da sociedade, no qual 0 juiz, encerrado em sua torre de marfim, nega todo aspecto politico de sua ativi­dade, fechando-se a to<;1o controle popular, indiferente a dinamica das lutas travad~s na sociedade, as tensoes que nela ocorrem, as divisoes que nela S(O: formam:

Mais do que a origem de classe, sao esses mecanismos e essa organizayao determinantes das atitudes conservadoras e da aplicayao acritica do direito, da justiya orientada no sentido

. da realizayao dos interesses das classes dominantes. ~ ---------------o distanciamento, 0 isolamento da magistratura,.ua ade-

'sao aos valores das classes dominantes, levam a que sua atuayao se paute pela logica e pela razao do poder de classe do Estado, desconhecendo as condiyoes de vida e os valores das camadas mais baixas e marginalizadas, bern como as culturas altemativas, percebendo e julgando sua clientela dentro dos ~ de referencia da ideologia dominante. ~

Todos estes fatores sao especialmente acentuados~ti­ya crimin~, que, na aplicayao daquele direito desigual por excelencia de que falamos, vai exercer 0 mais forte papel na manutenyao e reproduyao das relayoes de dominayao em que se baseia a fonnayao social capitalista.

As relayoes desiguais de jistribuil(ii,o, que caracterizam 0 modo de produyao capitalista, diretamente decorrentes das relayoes de produyao, eis que e 0 modo de participayao na produyao que vai determinar as formas de distribuiyao dos bens produzidos, vaG se expressaraqui na distribuiscaoyQ~ial do status de criminoso, que, ja a partir do processo de criminalizayao primaria (elaborayao das leis penais), como

.•.•...

.. ~.

f L .l ~

:~ " -;:

.~ • ;~ J ,.

"c'i!.

.' f

.::~

~~ -;i ~J j~

i ~

" ~

,.-14 ::M

;~ ... (~;

';,"(

;~; .:~'

1···.

··:··-',C'

<,

De Crimes, Penas e Fantasias 107

vis to, vai recair preferencialmente sobre os membros das camadas mais baixas e marginalizadas.

A atuayao da justiya criminal vai favotecer ainda mais a distribuiyao desigual desse atributo negativo, selecionando . para fazer parte da populayao criminosa aqueles individuos pertencentes as camadas mais baixas e marginalizadas.

Como mostra Baratta, a/posiyao precaria no mercado de trabalho (desempregados, s~empregados, empregados com baixa qualificayao profissional), os defeitos de socializayao familiar, 0 baixo nivel de escolaridade~presentes naquelas camadas, §o, naq como se costuma apontar, causas da criminalidade, ~ sim caracteristicas gue vaG ter ~ia determinante na distribuicao do status de criminos9. (13)

A ayao dos estereotipos e preconceitos, a mencionada atuayao pautada pela logic a e pela razao do poder de dasse do Estado, a[ncapacidade do juiz empenetrar e cQll1preender 0 mundo dos imputados provenientes daquelas camadas mais baixas e marginalizadas, sao fatores, evidentemente, desfa­voraveis a esteiJ

A simples observayao e experiencia dodia-a-dia mostrl!..m uma clara tendencia da magistratura d~sperar urn comporta-,

jmento conforme a norma dos individuos pertencentes aos estratos superiores e medios e, ao contrario, a ver como naturalmente criminosos os individuos provenient~s dos es­tratos inferiore.:g0 que i~i nao so na fixayao de penas, nos

(13) Baratta, Alessandro, op. cit., p. 172,

f HlBUIIIAL Ot. ,.IV;:;! I'.,;'" -oJ''; r, <-. :::>,""',,, '"

Dll1,e.tti.rlo_QQK"I..}). "a kHh..,It'~'t.F"I\' a.i8

(

(

(

(

(

(

(

(

(

C (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

I (

(

(

\ \.

\,

\

(

\,

(,.

I. ... (

Page 53: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

108 Maria Lucia Karam

criterios que presidem a aplicac;ao CIa suspensao condicional da execuc;ao da pena privativa de liberdade, ou na sua substi­tuic;ao por penas pecunhirias ou restritivas de direitos, mas no proprio criterio de jul amento, na propria avaliacao ~s

........ ---prov~s.

Aos membros das camadas mais baixas e marginalizailits a pel!e, notadamente a privativa de liberdade, e aplicada ~em hesitayoes, e vista como@enos comprometedora para seu status social, ja baix~o contrario, e comum urn sentimento de incomodo dos juizes ao aplicarem uma pena, mesmo que nao seja privativa de liberdade,J3i individuos provenientes dos estratos medios e superiores, preocupados em "sujar sua folha penal':Jpreocupac;ao que nao se manifesta quando se trata de individuos dos estratos inferiores.

Sabendo-se, como ja demonstraram inumeros estudos cri­minologicos, desenvolvidos a partir das teorias do labelling­approacb, qu~ of:rirne nao e uma entidade preconstituida,' mas sirn uma qualidade atribuida a certos comportamentos por defmic;oes legais produzidas em urn momento e em uma sociedade historicamente determinado~e a atuacao da magis­tratura' que,l!l0 aplicar aquelas defmic;oes legais aos casos concretos, dara 0 status de criminosQlaqueles individuos que forem condenados, distinguindo-os dos individuos respeita­dores das leis e contribuindo, assirn, de forma decisiva, RNa sua estigmatizac;ao, para a construcao e propagacjLo de uma irnagem dog~, fomada fund3.mtmtalmente a partir do perfil daqueles individuos condenados; notadamente a pena privativa de liberdade.

Retomando 0 que ja foi dito sobre os fatores determinantes

~,

",fi " jj c~

~I

De Crimes, Penas e Fantasias 109

da distribuic;ao desigual do status de criminoso, ql!e 0 faz recair sobre as camadas mais baixas e marginalizadas, ~, assirn, claramente evidenciado 0 papelda magistratura na ~fmic;ao dil ideia de criminalidade como urn comportamento

caracteristico de individuos pertencentes aquelas camadas e na conseqiiente identificac;ao das classes subalternas como classes perigosa9definic;ao e identifi9!c;ao que constitUem uma das mais slgnificativas praticas da fun~o judiclfuia, e~9uantc{Instrumento de manutenc;ao e reproduc;ao das re­lac;oes de dominac;ao em que se baseia a formac;ao social capitalista)

III - Poder Judiciiirio e constru~iio da democracia

Toda a analise que aqui tentamos desenvolver aponta claramente para 0 fato de que a func;ao judiciaria, enquanto

'expressao do poder de classe do Estado capitalista, estii inerentemente voltada para a realizac;ao dos interesses das classes dominantes, sendo, como ja dito, uma func;ao politica, que visa, em essencia, a manutenc;iio e reproduc;iio das' re­lac;oes baseidas na dominac;iio de classe sobre as quais se constitui a formac;iio social capitalista.

E somente, portanto, com a guperac;iio das relac;oes de produC;iio sobre as quais se estruturam 0 modo de produC;iio e a formac;ao social capitalist9. que se P~ ter uma ~or-mac;iio teal da func;iio judiclaria. ,

Com .essa compreensiio dos mecanismos que regem 0

exercicio da func;iio judiciaria e 0 reconhecirnento de que sua

Page 54: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

110 Maria Lucia Karam

transfonna<;:ao real so podeni se dar nos marcos de uma sociedade estruturada sobre novas relayoes de produ<;:ao,~m que~propriedade dos mejos de produ<;:ao e 0 poder Politico sejam socializado~ ~, por~t~, der.nocratizadogpodem-;se ~pontar alg!!lJ.S obJetlvos malS lIDedlatos, no sentldo de S!"!!!! uma pnitica alternativa no 'exercicio da fun<;:ao judiciaria, voltada para os interesses das classes capazes de construir aquela nova sociedade.

Esse exerc~9i2. alternativo dafun<;:ao judiciaria podel£on­tribuir para 0 avan<;:o dessas classes em sua lutgque se da tambem no campo da superestrutura, delmeando, ao mesmo tempo, as perspectivas de urn novo funcionamento e umanova organiza<;:ao da fun<;:ao judiciaria, sob 0 ponto de vista dessas classes.

T~ sao as vertentes principais-que parece necessano seguir na concretiza<,:ao desse exercicio alternativo da fun<;:ao judiciaria: E compreensao critica da fun<;:ao judiciariii]@ cria<;:ao de mecanismos de particip~<;:ao popular no exercicio da fun<;:ao judiciari~ a busca de realiza<;:ao dos direitos

"humttnos'eomo petspectiva de atu8c;Ro do Poder Judiciario]

AEmpreensao critica da fun<;:ao judiciari~ iinpljc~ no Eonhecimento dos mecanismos politicos e ideologicos que detenninam a atua<;:ao da magistratur~como aqui procuramos

,'·esbo<;:ar. De posse desse conhecim~o, da explicita<;:ao da vincula<;:ao do direito e da fun<;:ao judiciaria ao poder de classe do Estado capitalista, sera possivel [£omper os mitos que cercam aquela atua<;:aolfom reflexos nao so na visao que os juizes tern de sua propria atividade, mas tambem - e 0 que e

't: ,:?tii ,,;, .~.?>' ::"r; ::!i' ~~~, '1!

1

De Crimes, Penas e Fantasias III

mais importante - na visao do conjunto da sociedade sobre tal atividade.

Esse e 0 primeiro a 'para a supera<;:ao do modele do C'juiz asseptico" de que fala ,?:affaron,i (14), ou seja; o{fuiz tecnico, neutro, que decide de fonna supostamente imparcial e, portanto, reproduz a desigualdade merente ao direito da sociedadecapitalisgendo, consequentemente, tambem urn primeiro pa~o no se~ da produ<;:ao de uma juri;?ruaencia

~' omprometida com os interesses das classes capazes de construir a nova sociedade e com a perspectiva de realiza<;:ao dos direitos humanos.

A produ~ dessa jurispD!d~ncia naturalmente vai el!Son­trar obsmculgs na mtegra<;:ao da magistratura ao aparelho de Estado, que, fazendo dependersua atuayao do funcionamento do poder de classe desse Estado, como mencionado anterior-

'mente, detennma as atitudes conservadoras predominantes entre seus membros, lirnitanc!o, assim, 0 alcance daquela compreensao critica da fun<;:ao judiciaria, no que se refere a atua<;:ao concreta dos juizes.

[!;.qui ja se coloca a segunda vertente apontad~ E a crialfBo de mecanismos de participa<;:ao popular~- requisito necessario do processo de democratiza<;:ao do poder politico - que podeui co~r um[?ontrapeso aos condicionamentos do poder de classe do Estado capitalista e fazer avan<;:ar a proposta de uma pratica alternativa no exercicioda fun<;:ao judiciariaJ

(14) Zaffaroni, Eugenio Raul e Larrandart, Lucila, "Administracion de Justicia y Reforrna Constitucional en la Argentina: La necesidad de un modelo" in Derecho Penal y Criminologia, 27-28, Universidad Externado de Colombia, Bogota, 1985/86, pp. 333-348 .. , ,.' ,-c,' ";"';: '" SANH;

'HU:HJl1l.t'l, 01::. .:VJ '. 'h"" ~.,~ l... ..... '

mlr0t~rl~ U0;~1 ct~ ~~aF@t%~~~

al'!UI .. I~Tmlifll~

(

(

(

(

(

{

(

(

C (

(

(

(

(

(

(

(

L (,

(

Z (

(

(

(

(,

\.

'­\.

\,

\.,

\..

'-. \.

Page 55: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

, , l (

\

112 Maria Lucia Kar-anl

. As fonnas gessa participac;ao popular, os niecanismos para sua concretizac;ao, nao tem sido objeto de maiores investi­gac;oes, estando a merecer um debate mais aprofundado.

. Apontaremos aqui,.assim, apenas alguns pontos que podem contribuir para 0 desenvolvimento desse debate.

Um primeiro ponto passa pela guestao dq:§onsentimento e do controle p6pulares no exerdcio da func;ao judiciari~ue, como 0 exerdcio de qualquer outra func;ao politica, deve estar subordinada aqueles consentimento e controle.

A democratizaGaodo poder politico naa pode£~er .Qlli! 0 fato de que os membros da magistratura nela ingressem

lillnicamente atraves de concurso de capacitac;ao tecnica ou por nomeac;ao do Poder Executivo, ainda que com autorizaC;ao do Poder Legislativo, e que, uma vez integrando a carreira, nao tenham que prestar contas de suas atividades perante oconjun-to da sociedade.

Uma fonna de aliar 0 ~ecimento t~~nico as exig§gcias d~clemocratizac;aopoderia ser a.fombinaC;ao do concurso de capacitac;ao com processos eletivo::gem cada etapa da carrei-ra. Por outro. lado, a criac;ao de conselhos externos, com~ (. participac;ao conjunta de representantes da magistratura, do f'l

ministerio publico, da defensoria publica, da advocacia e de J' organizac;oes comunitarias, para examinar representac;oes . contra integrantes da magistratura, abriria 0 necessario con­trole sobre seus atos.

Outro pontp fund<:imental para a concretizac;ao da partici­pac;ao popular no exercicio da funC;ao judiciaria seria aJ1p.­troduc;ao de juizes leigos, eleitos diretamente ou atraves de

:1 "~I

De Crimes, Penas e Fantasias 113

organizac;oes comunitaria~(associac;oes de moradores, sindi­catos, igrejas, etc.), por periodo deterrninado e sem possibi­lidade de reconduc;ao, paraatuarem conjuntamente e com as --_________ ~ __ ~ 0-'

mesmas atribuic;oes dosjuizes de carreira .

A propria instituiC;ao do. juri tambem poderia ser um .-caminho para a concretizac;ao desta participaC;ao popular, desde que sua composiC;ao siga os mesmos criterios acima indicados e sejam ampliadas as materias de sua competencia.

Vale ressaltar que 0 direito, enquanto conjunto de nonnas disciplinadoras de relac;oes sociais, pode, em seus aspectos [email protected] facilmente entendido ~licado pelos sujeitos dessas relac;oes sociaii) que, nas fonnas alternati:vas de exer­cicio da funC;ao judiciaria aqui propostas, teriam 0 apoio do conhecimento tecnico dos juizes de carreira para esclareci­mento de eventuais duvidas suscitadas pOI algumas quesiOes mais complexas. o@ireito e sua aplicac;ao sao fatos bem mais simples do que fazem crer as construc;oe~ dogm~s tao desenvolvidas pelos cultores das ciencias juridicasll cons~ truc;oes quase sempre artificiais, que con~ribuem p~institu­cionalizllrosaber enquanto instrumen.1:6 de dorninac;ap .

.. -.~-.- .... ~

Tambem deve ser .incentivada a criac;ao de fonnas de ~utogestao social pata soluc;ao de conflitos, de violac;oes de direitos3inclusi¥e em materia penal, com a intermediaC;ao de organizac;oes comunitarias e participac;ao ativa das partes diretamente envolvidas, lirnitando-se a intervenC;ao do apare­lho judiciario as questoes nao resolvidas daquela fonna. (15)

(15) Sobre fonnas de autogestiiosocial parasoluyiio deconflitos, especiahnente em materia penal, confonne as propostas abolicionistas, veja-se a exposiyao de Louk Hulsman em ~Peines Perdues", Paris, Centurion, 1982.

Page 56: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

114 Maria Lucia Karam

Vistos, assim, ainda que de fonna superficial, algunS dos mecanismos que podem pennitir a participa~ao popular no exercicio da fun~ao judiciliria, questiio que, como anterior­mente mencionado, deve ser aprofundada, resta examinar a terceira vertent,e proposta, ou seja, ~usca de realiza~ao dos direitos humanosJcomo perspectiva de atua~ao do Poder ludichirio.

Adotarido 0 conceito manejado pelo Prof. Alessandro Baratta e desenvolvido pelaProfa.1&l;!Aniyar de Castro (16), e possivel precisar 0 conteudo dos direitoshumanos, definin­do-osenquanto [!!ecessidades reais fundamentais, bu seja, aquelas necessidades indispensaveis a sobrevivencia da es­pecie humana como entidade biol6gica, espiritual e cUlturafl necessidades essas naturalmente historicamente determina­das e das quais se podem extrair os reflexos nonnativos cor­respondentes.

Atraves da classifica~ao proposta pela Profa.Lola Aniyar de Castro, podemos identificar as necessidades reais funda­mentais e, conseqiientemente, os direitos humanos, que pas­samos a enumerar.

1. Encontramos, como necessidade real fundamental, 0

metabolismo, a que correspondem os direitosa satisfa~ao da fome, a uma alimenta~ao saudavel que assegure condiyoes

(16) 0 conceito e a classitlcac;ao dos direitos humanos aqui expostos foram desenvolvidos em palestra proferida pela Profa. Lola Aniyar de Castro, sobre a "Questionada Tarefa de Criminalizar (A Prop6sito de urn Novo C6digo Penal para 0 Brasil)", na Conferencia Internacional de Direito Penal, promovida pela Procuradoria Geral da Defensoria PUblica e pela Secretaria de Estado de Justic;a do Rio de Janeiro e realizada no Rio de Janeiro, de 16 a 21 de outubro de 1988.

. ~

1 jl

De Crimes, Penas e Fantasias 115

otimas de nutriyao, ao acessoe utiliza~ao dos recursos natu­rais existentes.

2. Em seguida, a reprodu~ao e os direitos de parentesco, de identidade familiar e nacional, de livre atividade sexual, de prote~ao a familia, de pleno exercicio da cidadania e digni­dade social.

3. 0 bern estar corporal e os direitos ao abrigo, a uma habita~ao confortavel einviolavel, a urn meio ambiente saudavel.

4. 0 crescimento e os direitos a prote~ao da infancia, ao acesso a elementos de desenvolvllnento espiritual e corporal (educa~ao, cultura e infonna~ao), a prote~ao da velhice.

5. A saude e os direitos de tratamento com os recursos tecnicos e cientificos conhecidos, assistencia durante a invali­dez, medica~iio devida e prote~ao dos deficientes fisicos e mentais.

6. 0 movimento e os direitos a liberdade fisica e mental, a locomo~ao, ao trabalho, ao repouso e ao lazer.

7. Finalmente, a seguran~a e os direitos it conserva~o da vida e da integridade pessoal, it preserva~ao contra qualquer fonna de dana corporal produzidp pela natureza, por indivi­duos, coisas ou atividades empresariais ou pUblicas.

A busca de realiza~ao desses direitos, que, em nossa sociedade, sao negados it imensa maioria da popula~ao, deve nortear a atua~ao do Poder ludicilirio, atraves de interpre­ta~oes que favore~am sua introdu~ao nos casos concretos a

(

(:' , I,

(

(

(

(

(

(

('

(

(

(

( ,t

(

(

(! {

(

(

(

(

(

(

(,

\,

(.

\,.

\, .

'-..

('"

Page 57: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

, , , '-­~

116 Maria Lucia Karam

serem decididos no exercicio da fun9ao judiciaria.

Nesta interpreta9ao norteada pe1a busca de r~ltliza9~9s diJ:~itoshum~s, pode-se pensar, por exemplo~m materia de) questoes possessorias, na prevalencia dos direitos ao abrigo e ao acesso e utiliza9ao dos recursos naturais sobre 0 direito de propriedadi]

Na area penal, pode ser trabalhado 0 conceito de..£Q.:" cUIPabilidade{re. ferente a situa90es em que 0 imputado tenh~ escasso espa90 social, devendo a reprovabilidade da conduta antijuridica praticada por quem sofre de uma carencia social ser carregada pela sociedade que a motiva e nao pelo carente ~ nao pode supera-la. No mesmo sentido, deve se manejar

o conceito da inexigibilidade de ~conforme <L~a. Ao contrario da i~emreta<;ao dominante, que restringe a incidencia desta causa de exculpa9ao as hipoteses legisladas (coa9ao irresistivel e obediencia hienirquica), ha que dire­ciona-la..lJara as[Situa90es em que a realiza9ao da conduta antijuridica e determinada pelas condi90es de priva9ao de direitos humanogcomo acontece em comportamentos social­mente negativos carateristicos das camadas mais baixas e

,marginalizadas, como, por exemplo€furto eoroubo, que, em geral, constituem expressao das contradi90es da sociedade capitalista, enquanto resposta individual a tais contradi90esJ (17)

(17) Sobre 0 conceito de co-culpabilidade, veja-se 0 chamadoProjeto Zaffaroni sobre Direitos Humanos e Sistemas Penais Latino-americanos, pp. 97-101. Sobre a inexigibHidade de conduta confonne a nonna, veja-se Juarez Cirino: "Direito Pellal- A Nova Parte Geral", Rio, Forense, 1985, pp. 192-193 e 213-219.

j'

t ·~.'I 1

D~ Crimes, Penas e Fan~asias 117

Orientando-se, assim, a atua9ao da magistratura para a perspectiv:a de realiza9ao dos direitos humanos, Orlenta9ao esta evidentemente condicionada pelas ja apontadas com­preensao critica e concretiza9ao de mecanismos de partici­

-pa9ao popular no exercicio da fun9ao judiciliria, poder-se-a -camifthar naquele sentido da produ9ao de uma jurisprudencia corriprometida com os interesses e a luta das classes capazes de construir a sociedade estruturada sobre as rela90es de produ9ao e 0 poder politico socializados e democraticos, contribuindo, desta forma, para fazer do exercicio da fun-9ao judiciaria urn verdadeiro exercicio de distribui9ao de justi9a.

Page 58: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

;:t ~ ~ O:i

c: ::::: ~ ., VJ ::::: .. 2

~ b> ~> ~ C;;. II> r ~ C3 ..... II .. 0 C':> "f') - .. 0 ..... Oc) ~l

118 .. 1'111 ~ ~ a .. ... t_ ~VJ~

" t;;: ~1:::!0c) • tij .. ..... ~:::::

" II -i .... ~ 'B'":"l ~

~ '" !~ ..... ~ a. .. ;:::.::::: ~ III If ~ s-fg~ .. .. i;;I

" • ., rn ~~ 'g ~ .. rn 1:::!t5t5 ~ .. r.n ~ a ~ • ):> ~ ~ 2 ~:-:-~ -cr

Page 59: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

'\ '.'

"il

11

•.•. j .•.•. ' ~ (.

01

AQUISlgAo, GUARDA E POSSE DE DBOGAS PARA usa PESSOAL: AUSENCIA DE TIPICIDADE PENAL

"Ninguem pode ser obrigado a realizar ou nao realizar determinados atos, porque isso seria me­!hor para_e1e, porque 0 faria feliz ouporque,na opiniao dos demais, seria mais acertado ou justo. Estas sao boas razoes para discutir, para ponderar ou persuadir, mas nao para obrigar."

(J. Stuart Mill)

Produto do que se pode extrair de positivo na historia do pensamento liberal, estas palavras, escritas h<i mais de urn seculo (Sobre a Liberdade, 1858), talvez sejam a sintese mais perfeitada oiienta9ao a ser seguida no tratamento juridico da questao das drogas, ja demonstrando a inadmissi­bilidade da criminaliza93.0 de sua posse para uso pessoal.

o Direito constitui urn conjunto de normas disciplinadoras de rela90es' sociais, sendo, portanto, de sua essencia a ~r-

Page 60: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

122 Maria Lucia Karam

venya,? tao somente em condutas ~,.~o da ;:sfera iriCli­vidual, tenham potencialldade para atingir a terceiros. ~ ---

Das condutas privadas, ou seja, aquelas que nao afetam bens ou interesses deJ;erceiros, nao se pode dizer que sejam permitidas ou proibidas juridicamimte, nao cabendo daI-lLelas qualificayao juridica,' na medida em que, por sua propria

- - -defmiyao, 0 Direito nao deve alcanya-la ~

E neste s~~tido que, ao estabele~er normas proibitivas para proteyao de determinados bens juridicos, 0 Direito Penal tern que, necessariamente, ter em conta a repercussao na esfera de terceiros das condutas que ira criminalizar, nao podendo, em qualquer hipotese, ter por objeto condutas privadas, nao podendo, em gualquer hipotese, esquecer da necessaria dife­renya entre Direito e Moral, entre crime e pecado. -"

Este 0 fundamento basico da inadmissibilidade de crimi­nalizayiio da posse de drogas para uso pessoal, que, inegavel­mente, e uma conduta privada.

Mas, e se trabalhando com 0 conceito de tipicidade penal que melhor se vera, no Direito brasileiro, a inviabilidade de aplicayao da regra positivada no artigo 16 da Lei nQ 6.368/76, que da tipicidade legal as condutas de adquirir, guardar e trazer consigo drogas para uso pessoal.

E clara em nossa legislayao e vern exposta por nossos doutrinadores e aplicadores da lei a concepyao de que, nas infrayoes penais relativas a drogas, 0 bemjuridico tutelado e a saude publica.

o Prof. Heleno Fragoso, em suas "Liyoes de Direito

,:1 i.~·"·'! ;:~j.'i!< ." -'.' -,.: .... ,., , ..

. " . . ., .~- -.;: ~.:

r !.

\ . .' -

, ;::.

"t :Ji" :il ::;;

ffit ~::~ ,

A ~i' " 1M ~J

I it

.

•.. '.'5B; . -

De Crimes, Penas e Fantasias 123

Penal", defmia 0 objeto da tutela juridica em tais ilicitos penais como a saude publica, que se protege contra 0 mal causado pelo uso de drogas. (Parte Especial- aruC213 a 359 CP, Rio, Forense, 31 ed., p. 242).

Celso Delmanto, ao analisar a materia, tambem 0 afmnava, apontando expressamente, nos comentirios ao artigo 16 da Lei nQ 6.368/76, a saude publica comb objeto juridico do cri­me ali defmido. (T6xicos, Sao Paulo, Saraiva, 1982, p. 36).

Urn dos responsaveis pela elaborayao da Lei nQ 6.368/76, o ilustre Desembargador J oao de Deus Lacerda Menna Barre­to, em seu "Estudo Geral da Nova· Lei de Toxicos',,-(Rio, Freitas Bastos, 1982, ps. 65/66 e 90), refere-se ao bern juridico tutelado como sendo a incolumidade publica, mais particular­mente a saude publica, dizendo ainda que a mencionada lei considera os crimes de toxicos, em todas as suas modalidades, grave ameaya a sallde publica.

Assim tambem manifestam-se nossos Tribunais, como no acordao proferido em 16-01-86 pela Egregia 41 Camara Criminal do Tribunal de Justiya deste Estado, no Recursoem . Sentido Estrito n. 2.421, sendo relator 0 Desembargador Mariante da Fonseca, em que se afirma que:

"Ao punir os fatos apreciados na citada Lei nQ 6.368, 0 legislador teve em mira 0 perigo, ainda que meramente potencial, contra a saude publi-ca.'"

Ressalte-se que, quando vigorava 0 art. 281 do Codigo Penal, 0 proprio legislador nao deixava qualquer duvida

I"<IHUNAl. Ui:. JU::> III"iA ,~v [... 1:.. ;:,AN I~ .1 ... ,." .. a G.ral «a ...... ~ .. rl.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(,

(

C (

(

(

(

(

l

(

(

l (

(

l.

l

\

l

Page 61: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

124 Maria Lucia Karam

quanto a esta questiio, estando aquele dispositivo legal inseri­do no capitulo reservado aos crimes contra a saude publica, subdivisao do titulo relativo aos crimes contra a incolumi-dade publica. .

Os crimes contra a saude publica, como todos os crimes contra a incolumidade publica, tradicionalmente sao caracte­rizados pela natureza coletiva do bemjuridico tutelado, 0 que significa qu~, ainda.que bens ou interesses particulares pos­sam ser diretamente atingidos pelas condutas delituosas, 0 que a leiJ;1rott)~, em essencia, e 0 interesse geral da comunidade,

)em face do perigo indiscriminado que aquelas condutas /..s:ncerram.

Situam -se, assim, os crimes contra a saude publica entre as chamadas infra90es de perigo geral ou comlJllh

Hungria falava do perigo coletivo ou comum como aquele que afeta indeterminado numero de pessoas, constituindo 0

evento tipico dos crimes e contraven90es contra a incolumi­dade pUblica. (Comentlirios ao Codigo Penal, I, nil 50).

Manzini, citado pelo Prof;~lIeleno Fragoso - que detiMu 0 perigo comum como a exposi9ao de um numero indetermina­do de pessoas ou coisas a probabilidade de dana - afmnav1i que e 0 criterio da coletividade e da indeterrninayao das pessoas ofendidas que distingue os delitos contra it incolumidade publica (Cf. Li90es de Direito Penal, op. cit., ps. 151 e 153).

Explica~o primorosa sobre a natur~za de tais infra90es encontra -se no trabalho intitulado "EI Delito de Peligro por Conduccion Temeraria", do grande jurista espanhol Antonio

.:.+<

,l

.\-·1

\ <;.\~.

De Crimes, Penas e Fantasias 125

Beristain, em que ele assim as define:

"Los delitos de peligro general 0 comun son, como indican Welzel, Geerds y Finger, los que se refieren al. publico como conjunto de individuos, u objetos, indeterminados; por tanto, el peligro general puede referirse a solo una persona, 0 cosa, pero indetermi­nada, como parte de la colectividad." (in Cuestiones Penales y Criminologicas, Madrid, Reus, 1979, p. 304).

Como mostra 0 proprio Welzel (Das Deutsche Strafrecht, § 67), esta vincula9ao do perigo comum a coletividade se faz quer pela sua ocorrencia em rela9ao a uma multiplicidade de individuos, quer pela indeterrnina9ao da individualidade.

--Dentro desta vis!!:.o, ha que se conduir que asiTmra90es contra a saude publica caracterizam -se por fatos que encerram uma possibilidade de expansao do perjgo, capazes, desta forma, de atingir a um numero indeterminado de pessoaS7 ou a pessoas indeterminadas, enquanto parte da coletividade.

Ora, . e evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu proprio uso, adquire ou tem a posse de uma substiincia, que causa ou pode causar mal a saude, nao h:i como identificar of ens a a saude publica, dada a ausen­cia daquela expansibilidade do perigo.

Nesta linha de raciocinio, nao h:i como negar a incompa­tibilidade entre a aquisi9ao ou posse de drogas para uso pessoal - nao importa em que quantidade - e a of ens a a saude publica, pois nao ha como negar que a expansibilidade do

Page 62: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

126 Maria Lucia Karam

perigo e a destinac;:ao individual sao coisas antagonicas. A j(festinac;:ao pessoal nao se compatibiliza com 0 perigo para Linteresses juridicos alheios. Sao coisas conceitualmente an­tagonicas: ter algo para si proprio e 0 oposto de ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de logica sustentar que aprotec;:ao a saude publica envolve a puniyao da posse de drogaspara uso pessoal.

Considerimdo-se, portanto, como 0 fazem nossa legisl~ao bern como seus interpretes e aplicadores, que ° bemjuridico tutelado nas infrayoes penais relativas a drogas e a saude publica, e foryoso reconhecer a atipicidade das condutas previstas no art. 16 da Lei nQ 6.368/76, pois, onde nao hi of ens a ao bern juridico tutelado, nao pode haver fato tipico.

Ensina 0 Prot Eugenio Raul Zaffaroni, ao tratar da tipici­dade em seu "Tratado de Derecho Penal" (Buenos Aires, Ediar, 1981, vol. III, titulo III), que a amilise do tipo penal nao se esgota na verificayao da adequac;:ao da condtita a individu­alizayao, predominantemente descritiva, feita no preceito legal isolado,. com seus aspectos objetivos e subjetivos -adequac;:ao esta que constitui unicamente 0 tipo legal - reque­rendo a configurac;:ao do tipo penal a ocorrencia de lesao ou colocac;:ao em perigo do bern juiidico tutelado, pois a des­cric;:ao tipica de uma conduta pressupoe a existencia de uma norma e de urn bemjuridico a que se da a tutela penal, norma e bern juridico estes que sao revelados per aquela descric;:ao contida na lei e que a limitam, sendo uma necessidade logica daquela.

Assim, na materia aqui examinada, temos a norma - a

~

~>?

f-"

.• -\

"".

~

De Crimes, Penas e Fantasias 127

proibic;:ao de se por em perigo a saude da comunidade, 0 bern juridico que a norma tutela - a saude publica, efetivando-se tal -proibic;:ao atraves dos tipos descritos na Lei nQ 6.368/76.

.. Ora, se a norma e 0 bern juridico limitam 0 tipo legal, e' inconcebivel que haja uma conduta tipica fora desses lirnites, ou seja, e inconcebivel ver tipicidade numa conduta, que, como na aquisic;:ao ou posse de drogas para usopessoal, nao afete ao bern juridico tutelado, que se afmna ser a saude publica.

Logo, adotando-se a posic;:ao explicitada na lei e consa­grada na doutrina e na jurisprudencia, de que 0 bern juridico tutelado nas infrayoes relativas a drogas e a saude publica, apesar da existenciado art. 16 da Lei nQ 6.368/76, nao hacomo identificar tipicidade na aquisiyao ou posse daquelas subsrnn­cias para uso pessoal, na medida em que nao ha em tais condutas of ens a aquele bern juridico.

Na verdade, e inquestionavel que a aquisiyao ou posse de drogas para usa pessoal constitui unicamente urn perigo de autolesao. E uma analise sistematica de nosso Direito Penal tambem demonstra a impossibilidade de identificartipicidade penal em tais condutas, assim consideradas.

A impossibilidade de incriminayao .de. uma conduta, que constitui unicamente urn perigo de autolesao, ja se-revela em termos de senso comum.

" (_L

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\.

('

(

\

\

\ . Num sistema em que a tentativa de suicidio - ou seja, a (

ameaya ao bemjuridico mai~r, que e a vida -nao e punida, num \ sistema em que, no crime de lesoes corporais, nao se admite .

.-<ltjUhlAI,. UI;:, ,.I1.J~ I \~; •. \ ~>J 1:.. L :::'A1'4 Il~ l ..

1II1 ... t'n' • ...................... ~ .. rL.

• I." 1ft T ...... \

C

Page 63: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

' .. '\

128 Maria Lucia Karam

a of ens a concreta a integridade corporal ou a saude propiia, como identificar infrac;ao penal na conduta de uma pessoa que, pretendendo fazer uso de drogas, apenas poderia vir a causar urn mal a sua saude?

Urn minimo de coerencia exige, pelo menos, urn mesmo tratarnento para 0 perigo para a propria vida, para a autolesao e para 0 ~imples perigo de autolesao.

Mas, em harmonia com osenso comum, como sempre ocorre com a melhor teoria juridica, e a propria dogmatica que revela a atipicidade de uma tal conduta.

Recorrerido mais uma vez ao Prof. Eugenio Raul Zaffaro!lL (op. cit.), encontramos 0 conceito da tipicidade conglobante-> que consiste na analise do tipo legal de uma forma nao isola­da, mas sim relacionada com todo 0 universo normativo.

Segundo 0 Prof. Zaffaroni 0 tipo legal hi que ser conside­rado em sua relac;ao com a legislac;ao global, e a norma proibitiva por ele expressa nao e isolada, mas integra uma ordem juridic a, em que uma norma limita a outra, nao se permitindo seu descorihecimento mutuo, sendo assim impos~ sivel recbrihecer a tipicidade do perigo de autoksao numa ordem normativa quenao recorihece a tipicidade da propria autolesao, ou, mais ainda, da ameac;a a propria vida.

A aquisic;ao ou posse de drogas para uso pessoal, da mesma forma que a autolesao ou a tentativa de suicidio, situa-se na esfera de priv,acidage de cada urn, nao, podendo 0 Direito nela intervir.

E este 0 fundamento da impunibilidade da tentativa de

",.'

~

D~ Crimes, Penas e Fantasias 129

suicidio, ao contrario do que sustenta a doutrina tradicional, que, de forma pouco tecnica, eis que utilizavel nas· mais diversas hipoteses, argumenta com a inutilidade da pena para justificar a atipicidadedaquela conduta.

o que efetivamente fundamenta a impumbilidade da tenta­tiva de suicidio, como de qualquer of ens a a si proprio, e a questiio de que 0 Direito nao pode punir 0 autoprejuizo, nao pode intervir em condutas que nao saiam da esfera individual, que nao teriham potencialidade para afetar a terceiros.

Deve ser ressaltado que a afmnativa de que 0 suicidio, por si mesmo, nao e antijuridico nao se contradiz com a punic;ao da instigayao ou ajuda aquele, que se fundamenta no fato de o suicidio ser uma forma extremada de disposic;ao da vida, que nao pode sofrer a interferencia de ninguem que nao 0 proprio titular do direito a vida.

Ainda de acordo com as lic;oes do Prof. Zaffaroni, a intervenc;ao do Direito na esfera de privacidade de cada urn seria absurda, na medida em que seu objetivo e estabelecer uma convi vencia harmonica entre os individuos, de forma que cada urn teriha a possibilidade de dispor dos bens juridicos para se auto-realiiar, nao. sendo adrnissivel que este Direito pretenda tutelar bens contra a vontade expressa de seus titulares.

Neste sentido, e exemplar 0 artigo 19 da Constituic;ao Argentina, que talvez seja uma das normas que melhor tradu­za este principio, explicitando aquela necessaria diferenc;a entre Direito .e Moral, entre crime e pecado:

"Las acciones privadas de los hombres que de ningun

Page 64: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

130 Maria Lucia Karam·

modo of end an al orden y a la moral publica,· ni perjudiquen a un tercero esmn reservadas aDios y exentas de la autoridad de los magistrados."

Tal norma constitucional motivou a decisao cia Corte Supi(;ma de Justic;:a daquele pais vizinho, de 29 de agosto de 1986, sendo relator 0 eminente magistrado Dr. Enrique S. Petracchi, em que foi declarada a iJlconstitucionalidade.do art. 62 da Lei n2 20.m que, it semelhatlya de n@SSQ ar1J.6.da Lei n2 6.368/76, preve a punic;:ao da posse de drogas para uso pessoal, decisao que se fundamentou no fato de que a incri­minac;:ao da simples posse de drogas para uso pessoal inva­de a esfera reservada a liberdade individual, que nao pode ser submetida it autoridade de 6rgaos estatais.

Embora nao tenhamos um dispositivo constitucional tao claro quanto aquele da Constituic;:ao Argentina, 0 direito it intimidade e it vida privada, garantido no artigo 52,.inciso X de nossa Constituic;:ao Federal, petmite depreender, como se deve depreender de qualquer ordenamento juridico que se pretenda democnitico, que 0 Direito s6 pode intervir em condutas que tenham potencialidade para afetar a terceiros.

Antes mesmo da Constituic;:ao de 88 afirmar a garantia do direito it intimidade e a vida privada, ja se podia extrair este principio do conjunto de nosso ordenamento juridico.

Em 30 de abril de 1987, a Egregia Terceira Camara Cri­minal do Tribunal de Justic;:a do Estado do Rio Grande do SuI ja se pronunciava neste sentido, em ac6rdao proferido na Apelac;:ao n2 686.062.340, sendo relator 0 Desembargador Milton dos Santos Martins.

1 .,

" \ De Crimes, Penas e Fantasias 131

Aflando que 0 uso de drogas diz respeito it liberdade individual,decidiu aquela Egregia Camara suscitar a incons­titucionalidade do art. 16 da Lei n2 6.368/76, constando da ementa 0 seguinte:

"Se nao se quer reconhecer no consumidor da ciroga entorpecente uma vitima e um doente, como­viciado, dando-lhe tratamento adequado, pelo menos ha de se reconhecer enta~ sua liberdade pessoal garantida pela Constituic;:ao."

Assim, tambem·ao·se considerar que a aquisic;:ao ou posse de drogas para uso pessoal constituem unicamente um peri­go de autolesao, nao hi como identificar tipicidade penal em tais condutas, por ser sua incrirninac;:ao contradit6ria com 0

con junto de nosso ordenamento juridico.

Nao se nega aqui que a posse de drogas para uso pessoal e tipica, no sentido de estar descrita num preceito legal, nem ha duvida que 0 legislador quis punir tal conduta, pois, para isso, criou a regra do art-cUi da Lei n2 6.368/76.

o que se vern afirmando e a atipicidade penal desta posse de drogas para uso pessoal, em nenhummomento se negando sua tipicidade legal.

Talvez seja importanterelembrar que 0 tipo penal esta alem do tipo legal, sendo este (adequac;:ao da conduta it individuali­zac;:ao predominantemente descritiva feita no preceito legal, isolado, com seus aspectos objetivo e subjetivo) apenas parte daquele, que requer tambem a ocorrencia de lesao ou colo­cac;:ao em perigo do bem juridico tutelado, bern como a

; ;-\1~~t:ij;,M\t D~":- ,;H.r:; ~ ~t,~.~\ :~!U i.:.. L

j)1:.·v\·,-) .. ~·.1, ': i'i ,'.'-",

, -, '~:" #:5\) 11" f4 (<1 A

(

(

(

(

(

(

( . ( .

( ( .

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

~

(

(

(

l.

I

I.

I

l (

I~.

( , \! \..

Page 65: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

132 Maria Lucia Karam

contradiyao da conduta com a norma, considerada esta norma nao isoladamente, mas em harmonia com 0 conjunto do. ordenamento juridico do qual faz parte.

E por isto que nao se pode aplicar a regra do art. 16 da Lei nQ 6.368/76, pois, embora haja tipicidade legal na posse de drogas para uso pessoal, faltam a tal conduta os demajs requisitosque integram a tipicidade penal.

Evidentemente, nao se pretende aqui desprezar preceitos legais ou se sobrepor a funyoes do legislador. 0 que se aponta apenas e a inaplicabilidade de urn dispositivo legal, por lhe faltarem requisitos exigiveis ao reconhecimento da tipicida­de penal, com base em interpretayao decorrente de nossa propria ordem normativa.

Nesse ponto, parece-nos importante citar mais uma vez 0

Prof. Eugenio Raul ~oni, sem duvida 0 maior penalista da America Latina na atualidade, destacando parte dos comentirios par ele feitos ao acordao da Corte Suprema de Justiya da Republica Argentina aqui mencionado, comentirios publicados no numero 5.485 da Revista de Jurisprudencia daquele pais.

Referin~o-se as posiyoes que sustentam que 0 unicojuiz da racionalidade da tipificayao de uma conduta deve ser 0

legislador, afirma 0 Prof. Zafj'a!.~ni:

"Serecibe toda la impresion de que el criterio delimitador proviene de la escision mas absoluta entre dos universos paralelos hasta el infmito y que ni siquiera en el infinito se unen: el del "ser" y el

De"Crinles, Penas e Fantasias 133

del "deber ser", esto es, el de las "relaciones de causalidad" y el de las "relaciones de normatividad". Esta "esquizofrenizacion" del saber ha servido para preservar al derecho de cualquier "contaminacion" con la realidad y ha fomentado una actitud judicial que pretende reducir la fun­cion deIjuez a la de un mero "aplicador" nO~lruy racional de las leyes".

Mais adiante, observa:

"En el planjuridico, no todo es binario, puesto que ese seria lenguaje de "computar", pero un codigo adecuado para abarcar los matices que la realidad presenta. No puede adrnitirse que el legislador sea omnipotente para tipificar acciones y reproducir conminaciones, aunque la realidad senale las claras consecuencias contradictorias de su decision. Tampoco puede afirmarse que el juez tenga el poder de controlar politicamente al legislador, discutiendole en cada caso laoportunidad y acierto de su decision tipificadara. La disytmtiva asi planteada es falsa y oculta la verdad, pues de 10 que se trata es de un control minimo de racionali­dad, sin perjuicio del poder amplio que tiene el legislador. EI legislador'tiene un margen muy amplio de decision politica pero&l juez tiene el deber de exigirle un minimo de racionalidad en la seleccion de las conductas que erirninaliz~porque es de la esencia, del sistema repubUc.anQ la raeionalidad delos aetos de gobiemo." -----------------

Page 66: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

134 Maria Lucia Karam

E esta racionalidade que falta na criminalizas;ao de con­dutas que nao atingem 0 bern juridico tutelado. E esta racionalidade que falta na criminalizas;ao de condutas que constituem unicamente urn perigo de autolesao, numa ordem normativa que nao pune a pr6pria autolesao ou a tentativ~ de suicidio.

Embora as questoes aqui discutidas situem-se num plano dogmatico, a dimensao do problema das drogas em nossa sociedade parece tornar aconselhavel tecer algumas consideras;oes sobre pontos, que se colocam muito mais no campo da politica de combate itquelas substiincias. -

---- ---p- -_. -~---- .. ----------

E comum ouvir afmnayoes de que a impunidade da posse ------.- ---.

de drogas para~ pessoal i!lcentivaria a disse~ao de tais substancias.

Entretanto, uma analise mais racional revela que tal afirmas;ao nao parte de dados concretos, sendo mera suposi-9ao,suposi<;:iio que tambem seria possivel fazer num sentido oposto, pois nao e irrazoavel pensar que a ameas;a depunis;ao pode, nao so ser inocua no sentido de evitar 0 consumo, como ate funcionar como uma atras;ao a mais notadamente entre os jovens e adolescentes, setor onde 0 problema e especialmente preocupante.

Por outro lade, a ameas;a de pUIlls;ao pade funcionar tambem como urn obstaculo para a recuperas;ao do viciado, pais e inegavel que, para se submetera tratamento, 0 viciado vai ter que revelar a pratica da conduul punivel, 0 que pode ser urn inibidor it busca daquele tratamento.

;

I "

Ii

I ,

li -i

"

De Crimes, Penas e Fantasias 135

Tambem nao ha dados concretos que demonstrem que a punis;ao do consumidor tenha alguma conseqiiencia relevante

. no combate ao trafico. A simples observas;ao dos processos que tramitam na Justis;a Criminal permite afirmar quee

. rarissimo encontrar casos em que a prisaodo consumidodeva it identificas;ao do fornecedor.

Mas, melhor argumento para desfazer essa suposis;ao de que 0 consumidor deve ser punido por ser uma via de acesso, . ou urn apendice do traficante, encontra-se rio voto do Dr. Enrique S. Petracchi, no acordao ja mencionado da Corte Suprema de Justis;a da Republica Argentina, em que aquele eminente magistrado diz:

"Considerar que el consumidor es el mejor medio disponible para llegar al traficante, par€ce insosteni­ble por dos fuertes razones. Ante todo, porque si el argumento se llevara a sus maximas consecuencias

. serianotoriamente autocontradictorio. Enefecto, pen­sar que el arresto de los simples consumidores, que no han provocado danos a tercero ni of en dido al ordeny la moral publicos por la exhibicion de su consumo, es un instrumento idoneo para llegar al traftt:ante, en­tranaria afirmar que para una eficacia mayor en la represion del aparato de comercializacion de drogas, el Estado deberia fomentar el consumo, con 10 que tal actividad se haria mas visible y se contaria, ademas, con innumerables proveedores de infonnacion. De igual modo, si se generalizara tal argumento vendria a consagrarse el principio de que es posible combatir toda conducta no deseada mediante el castigo de

(

( (

(

(

(

(

(

(

C (

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(.

I~

l (

l

Page 67: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

I

136 Maria Lucia Karam

quien e:> su victima, desde que siempre la victima y su situacion son condicion necesaria de la existencia del delito."

Outra afirmayao, tambem comumente feita, e a de que 0 consumidor seria urn traficante em potencial e estaria propen­so a praticatoutros crimes.

Tal argumento, alem de constituir uma perigosa adesao ao direito penal do autor, tampouco se ampara em dados concre­tos, nao havendo pesquisas disponiveis sobre a signifidincia ou nao do numero de consumidores que se tomam traficantes, quer a titulo gratuito, entregando pequenas quantidades a amigos, quer a titulo oneroso, comercializando para poder adquirir, JE'em ha estudos serios que demonstrem alguma vinculayao entre 0 consumo de certas drogas e a pratica de delitos diverso~J

De qualquer forma, 0 que parece mais questionavel em tal argumento e a defesa dapuniyao de condutas n3.o concretiza­das, de condutas meramente potenciais. Como afirma 0 ja citado Dr. Enrique S. Petracchi em seu voto aqui referido:

"castigar a quien consume en razon de que es un potencial traficante equivaldria a castigar, por te-, nencia, vgr.: a un coleccionista fanatico porque es un potencial ladron de los objetos de la especie que colecciona."

Se 0 consumidor pode vir a ser um',traficante, sua puniyao por tal conduta so podera se dar no momento em que ele assirn se tomar, no momento em que deixar a esfera individual para

'.~ :,1 -"

"> ~ '[

-;:

':; j

De Crimes, Penas e Fantasias 137

atingir a bens juridicos alheios. A simples cogitayao de que a droga que se tenha com destinayao pessoal possa vir amanha a ser transferida para terceiros, ou que seu usopossa vir a ter repercussoes sociais, jamais poderia servii de fundamento , para a intervenyao penal. o Direito n3.o pode trabalhar com meras suposiyoes, so pmlendo intervir no momenta em que tais possibilidade:;;passem a existir p.um plano concreto .

• Enquanto permaneya a destinayao pessoal, enquanto 0 uso

da droga nao atinja a terceiros, tem-se uma conduta privada, em cujo ambito 0 Direito nao pode penetrar, por maiores que possam ser os danos ao individuo que tal conduta eventual­mente possa causar.

Tanto no que se refere a crimes em geral praticados sob a influencia de drogas, como no que diz respeito it hipotese de transfonnayao do consumidor em fomecedor, 0 que S0- deve ter em conta e que, se 0 abuso de certas drogas pode facilitar o cometimento de infrayoes penais, a puniyao devera estar sempre associada it realizayao concreta de taisinfrayoes, e nao a uma merapossibilidade de sua ocorrencia.

i }ti;{;~gY{.J5~l_t !}f. .;;t}E~-lf~{;.~ ,;M). f,~ ifL ~\!:. j(~'-"

·"""':,.-'l ,:·;/''c.t~ :'\::::. C;;,J'-Ji..'L''I3..;.:.;,,:

(")1",", "OlcOQ.'\ '-' i L.J L;, U "', u ", ~

Page 68: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam
Page 69: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

fl '11

0'-'

'-,

, , I

~,

VIOLENCIA E DIREITOS HUMANOS

Ggncomitantemente ao aprofundamento de urn antigo e grave processo de deterioras:ao economica e ~l, ja ha algum tempo, vive-se, no'Brasil, urn clima dUiinico, de alarme social em tomo do fenomeno da violencia, acompa­nhado por uma cllodeia discursiva de castigo e severidade, de apelo a ordem, de d~il~!lcda de maior repressao, a ponto de se ter aberto espayo para uma incivilizada, in-acioha!, antide­mocratica e inconstitucional proposta de consulta popular para oficializayao da mais cruel, desumana e degradante de todas as puniyoes: a pena de morte.

Nas preocupayoes enos discursos dominan..!,es, e clara a aproxima<;iig que se faz entre violencia e crin!..e, podendo-se constatar uma quase imediata identificayao da criminalidade convencional como traduyao da ideia de violencia, a motivar o elogio e 0 desejo da puniSiio.

Ao mesmo tempo, desqualifica-se 0 conceito de d~tos Jmmanos, que, no discurso irracional e autoritiri~l£assa a ser visto como instrumento de proteyao de crirninos~em detri-

Page 70: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

142 Maria Lucia Karam

mento de suas vitimas, ou da maioria dos cidadaos que se imaginam respeitadores das leis.

Uma compreensao mais racional da realidade justifica e "impOe uma investigao;ao mais ordenada dos fenomenos que nela ocorrem, precisando significados econstruindo concei­tos, que, nascendo da observao;ao mesma da realidade, possaro servir para, efetivamente, interpreUi-la e compreende-la.

AlPrecisao dos conceitos de direitos humanos e de violen­ciifque, como se procurani demonstrar, g:lli!!"dam estrei_ta relacao, conceitos estes examinados a partir e em consonancia com 0 real encontrado nesta sociedade historicamente deter­minada, qlle constitui, hoje, 0 Brasil, e 0 objetiv.2.-deste tnlbaih(), desta tentativa de contribuir para uma analise mais racional de urn fenomeno, tao centralmente presente nos discursos e preocupao;oes, quanto pouco compreendido.

I - Para uma conceituaflio de direitos humanos e de vioIencia

Uma primeira opo;ao para se chegar a um conceito de direitos humanos poderia partir do estudo de textos norma­tivos, desde as precursoras declarao;oes da Independencia Americana e da Revoluo;ao Francesa, ate a Declarao;ao Uni­versal dos Direitos do Homem, de 1948, e demais declarao;oes ~e direitos e pactos internacionais e regionais, que a desen­volveram e aprofundararo, chegando-se, ainda, aos direitos e garantias fundamentais, enumerados no Titulo II de nossa Constituio;ao Federal.

~

! ,11

il ~I , ,if :.g, ,eo-

~" .

if

DeCrimes,Penas e Fantasias 143

No entanto, seguindo aproposta aqui colocada, no sentido de investigar os fenomenos que ocorrem na realidade, a partir de sua observao;ao mesma,parece mais proveitosa uma outra opo;ao: buscar uma conceitna<;1io de direitos hnmanoonao nos textos normativos, mas a partir do real e do concreto, ch~an­QQ, com sua analise, aos reflexos normativos que dai sepodem extrair.

Neste senti do, partindo da constatao;ao do que. Barat@. chama de necessidadesreais fundamentais, ou seja, aqueles bens indispensaveis a sobrevivencia da especie humana, como entidade biol6gica, espiritual e cultural, sera possivel chegar a uma maior precisao e estabelecer urn conceito hist6rico-social dos direitos humanos.

Entendido que as necessidades reais fundamentais nao se manifestam de uma forma idealista, no sentido de serem eternas e imuUiveis, sendo sim historicamente deterrninadas, manifestando-se de acordo com as mudano;as e 0 pro gresso da civilizao;ao e do pensamento, sera possivel identificar aquelas necessidades que, apresentando caracteristicas que as tornem passiveis de adaptao;ao aquelas mudano;ase aquele progresso, possaro ser objeto de generalizao;ao.

Lola Aniyar de Castro, tomando elementos de uma analise e uina d[scussao racionais dos conhecimentos da biologia, da

. etica e da cuitura, desenvolveu 0 conceito de Baratta, pre­cisando estas necessidades basic as, atraves da hist6ria,com seus correspondentes culturais, para propor sua classificayao em sete grandes grupos, que assim se identificam:

1. as necessidades relacionadas com 0 metabolismo e 0

(

(

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\,

(

\

c

\,

(

I ..

I (

(

\,

4'-._~

c

Page 71: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

(

·, . . :,'

144

-,;1-/"<-

."".r . Maria Lucia Karam

. sustentobiologico do homem;

2. as necessidades ligadas it reprodu<;iio e a seu correspon­dente cultural - 0 parentesco;

.1. as necessidades relacionadas com 0 bern estar corporal eo abrigo;

4. as necessidades de crescimento e exercitayao;

.1. as necessidades relacionadas it saude e it higiene;

.§.. as necessidades de movimento, de realizayao de ativi­Jades; e

1: as necessidades de seguranya e, portanto, de proteyao.

Desta classificayao, extrai a Profa. Lola Aniyar de Castro os r~~olJllativos possiveis,permitindo a igentificJl.9iio concreta de quais seriam os direitos humanos, enquanto direitos it satisfayao daquelas necessidades reais fundamen­tais, para a sobrevivencia da especie humana, como entidade biologica, espiritual e cultural.

Tais direitos podem ser, ~,~numerados: (DDas necessiclades relacionadas ao metabolismo, surgem

os direitos it satisfayao da fome, a uma alimentayao saudivei, asseguradora de condiyoes otimas de nutriyao, os direitos ao acesso e utilizayao dos recursos naturais existentes.

Ci) Da reproduyao e do parentesco vern os direitos de identidade familiar e nacional, de livre atividade sexual, de proteyao it familia, de pleno exercicio da cidadania e digni­dade social.

{

D~ Crimes, Penas e Fantasias 145

t1)o bern estar corporal e 0 abrigo vao gerar os direitos a uma habitayao conforuivel e inviohivel e a urn meio ambiente saudavel.

@ 0 crescimento e a exerciiayao implicam nos direitos it proteyao da infiincia, ao acesso a elementos de desenvolvi­mento espiritual e corporal (educayao, cultura e informayao), no dire\to it proteyao da velhice.

(DDa saude e da higiene nascem os direitos de tratamento com os recursos tecnicos e cientificos conhecidos, de assis­tencia durante a invalidez, de acesso it medicayao devida, de proteyao aos deficientes fisicos e mentais.

® 0 movirnento e as atividades, implicando tanto no movimento corporal como no espiritual, trazem 0 direito it liberdade fisica e mental, 0 direito de locomoyao e de opiniao, bern como 0 direito ao trabalho e a seus opostos, 0 repouso e o lazer.

(j) Finalmente, a seguranya e a necessidade de proteyao geram 0 direito it conservayao da vida e da integridade pessoal, o direito it preservayao contra qualquer forma de dana corpo- . ral produzido, seja pela natureza, seja por individuos, coisas, ou atividades empresariais ou publicas.

E Eom base na identificayao destas necessidades funda­mentais e dos direitos human~ a partir delas precisados, que se pode superar a parcial visao de violencia, reduzida pelos discursos dorninantes it id6ia de condutas geradas pela crirni­nalidade convencional, para, construindo urn conceito mais real e mais abrangente, definir como violentos todos os

~

,:--::jtlUf"tJJ}.l Dt .... ji.k.~:: r~{;~:~l.1i ·£jU t.. t.. ~/.<,~~.l. c'

r.:j~.:.·~,)<,·VA'\~ ·~:'j{.t):j."'f~l ~l~" QIib«J~Qt;!l,R')if~_

Page 72: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

146 Mai'J'aLucia Karam

fen6menos gue,[]mpedindo a satisfas;ao daquelas necessi­dades e, portanto, violando os direitos humanos, constituem atentados a sobrevivencia biologica, espiritual e cultural da ~pecie human~

II-Urn painel da violenciana realiddde brasileira

A simples demonstras;ao das necessidades reais fundamen­tais e dos direitos humanos delas decorrentes, como aqui enumerados, por si so, revela que 0 desatendimento destas necessidad~s e a conse,qtientenegacao destes direitps$ao uma tragica regra na sociedade brasil~.

Tambem basta esta demonstras;ao para revelar as inumeras trlanifestas:oes de violencia aqui presentes,[?tingindo de forma

jParticularmente mais grave as camadas mais baixas e margi­nalizadas da po~ulas;a~os muitos milhoes de excluidos, que habitam 0 lado India deste pais tao desigual que, ao mesmo tempo que seinclui entre as dezmaiores economias do mundo, ocupa 0 octagesimo lugar em desenvolvimento humimo.

Retomando os grupos de necessidades e direitos, objeto da classificas;ao exposta, e possivel construir urn painel das prin,.gipais manifestas;oes de violencia na realidade bra~ra.

m Metabolismo (alimentas;ao, nutris;ao,acesso aos recursos naturais).

Habitam 0 Brasil§Ulhoes de crians;as e adultos subnutri­do§Jo que se espelha na fragil compieicao fisica dos bra~­rC!§. em media Wem mais baixos.Qo que os norte-americanos,

D~ Crinles, Penas e Fantasias 147

povo etnicamen.!.e semelhante a nos. 0 indice de cresc~to, que, para a Organizas;ao ~undial da Saude, c<;mstitui om>1hor indicador ~obre 0 es~do de saude e nutris;a~revela 0 deficit de altura do povo brasileiro, mesmo em urn Estado como Sao Paulo, onde, pesquisa realizada, em 1990, pelo Instituto Nacional de Alimentas;ao e Nutris;ao, registrou 5,6% de cri­ans;as ate 5 anos consideradas nanicas, percentagein superior ao dobro do indice padrao da OMS e que, nos Estados do Norte e do Nordeste, atinge indicessuperiores a 20%.

Segundo a mesma pesquisa, ha umaL!elas;ao direta entre baixa estatura e pobrez<Q registrando-se quatro vezes mais homens nanicos em familias cuja renda mensal nao passa de urn quarto do salario minima por pessoa, do que em outras de renda igual ou superior a 2,2 saJarios por pessoa.

Mase realidade da nega<;ao do direito a satisfa<;ao da fome dispensa estatistica£l bastando ~ em volSa, para ver; em qualquer das grandes cidades brasileiras, 0 triste espetaculo da miseria, a tao degradante quanta comum busca de alimentos -- --'-

em depositos de lixo.

As constantes e acumuladas perdas salariais, resultantes de '. seguidas politicas econ6micas, que insistem emjogarsobre os

saJarios todo 0 peso do combate a infla<;ao, aliadas aos ~ e liberados pres-os dos produtos alimenticjps,&mam ina­cessiveJ:. 0 direito a uma alimentas;ao, asseguradora de con­di<;oes otimas de nutris;a~esmo entre a populas;ao integrada ao mercado de trabalho.

A organizas;ao da produs;ao impede 0 acesso da maioria do povo brasileiro aos imensos recursos naturais aqui existentes.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( (

(

(

(

(

(

\ ( I

i ( . ( I . I ~ I (

I.

\ (

(

\.... I

\. ~.

~'

Page 73: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

148 Maria Lucia Karam

A uma concentra<;ao extrema da propriedade da terra, que constitui a marca originaria, atehoje nao superada, da hist6ria econ6mica do Brasil, soma-se aL!6gica do produzir para exportar, em detrimento'do mercado interno"1que se mantem

'pouco desenvolvido, Asconseqiiencias se iazem sentir na escassez e nbs pre<;os altos, na contradit6ria presen<;a da fome num pais de que ja se disse que "onde se plantando, tudo da".

, Nenhurn'planejamems> existe@ara obtenyao de produtos alimenticios mais nutritivos e baratos:Jnao obstante as inume­ras possibilidades oferecidas, quer pela abundiincia de nossos r~ursos natnrais, quer pelo instrumental cientifico ja dis­ponivel nesta area,

Por outro lado, a falta de controle de qualidade dos produ­tos, de que e urn exemplQ o !!!ill nao reprimido de agrot6.xicos, afeta a boa nutriyao ate mesmo dos poucos privilegiados que tern pleno acesso aos alimentos.

2. Reproduyao (identidade familiar e nacional).

o primeiro capitUlo da desproteyao da familia, no Brasil, descreve a falta de urn programa de planejamento famili<!L serio, 0 que abre espaco para urn grande e crescente numero de esteriliza¢oe? de mulheres, bern como para mais uma triste marca brasileira: nosso pais e considerado 0 recordista mun­dial de abortos. Estatisticas da Organizayao Mundial da Saude mostram que a{1axa anual de'interrupyoes da gravidez, no Brasil, supera a de nascimento~ E a <;riminalizas;ao ainda agrava esse quadro, ao fazer com que, peIo fato da ilegalidade, a maioria dos ~bortos se de em condicoes absolutamente

De ·CrinleS, Penas e Fantasias 149

precarias, com mortes e danos para a saude de milhoes de mulheres. Mas, aqui, como em outros tantos campos, nao sao todas as mulheres igualmente atingidas: apesar da proibiyao legal, as [mulheres, das, camadas mais altas realizam seus abortos livremente; em clinicas bern equipadas, de endereyos conhecidos, sem maiores riscosJ

Por outro lado, tem-se urn precario atimdimento pre-natal as gestantes, especialmente nas zonas'rurais, sendo este urn dos mais relevantes dados na determjua~dos altos indices, --- ~'- - --------demortalidade i!lfill:!!il, registrados no BrasiL

Aos problemas da reproduyao, aos obstaculos enfrentados para se nascer vivo, vern se somar os multiplos fatores econ6micos, sociais e culturais, provocadores da desestru­turayao das estruturas familiares.~essas familias desestru­turadas, germinam as insensibilidades, as agressoes a cri­anc;as, que, a semelhanya das agressoes contra mulheres e dos atentados sexuais, reproduzem as relayoes de poder, a hierar­quizacao presente em nossa sociedade, a imposiyao'da vOB:t:l>­de do mais forte]

A privayao da identidade familiar chega a fazer de hebes urn ojJjeto comercJal, mais urn produto em nossa pauta de exportacoes. Quando mais cresci~as, muitas de nossas cri­anc;as cont.i.m.!.<!!n transformadas em mercadorias;@prostitu­iyao infanti1} urn entre os muitos tragicos lados da vida das meninas que habitam as ruas.

Num pais que se intitula 'uma democracia racial, n~o sao poucos os preconceitos, velados ou nao. A igualdade formal, a proibiyao da discriminayao, opoe-se 0 reaL As marcas de

Page 74: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

150 Maria Lucia Karam

uma coloniza<;ao, que se fez com 0 genocidio dos povos indigenas, que aqui moravam, e com a escravidao de povos africanos, de suas terras.,arrancados, perduram, seja no des­respeito a identidade, as tradi<;oes, a lingua, ao patrimonio

. cultural e a integridade temtorial dos raros povos indigenas sobreviventes, seja nos embranquecidos valores culturais dominantes, na objetividade racista que faz dos descendentes dos escravos os selni-libertos contingentes maiores dos ex­cluidos deste pais.

Mas, nosso ~parthejq Bio e s6 ~l. Brancos e negros podem aqui se igualar, quando surge a outra discrimina<;ao maior, a que separa {ielo acesso as riquezas, a que faz com que o ,I % m~s rico da popula<;ao tenha uma participa<;ao maiorna renda nacioE-al do que os 50% mais pobreE, a que indele­velmente divide 0 pais em uns poucos privilegiados e lnilhoes de deserdados.

~sa discrimina<;ao de classe, essa divisao entre senhores e escravos, latifundiarios e sem-terra, grandes empresarios e trabalhadores mal pagos:) conta a hist6ria econolnica do Brasil, a hist6ria da repetida produ<;ao de desigualdades, a hist6ria da nega<;ao da dignidade social, da nega<;ao- da ci­dadania.

Para a maiOIia da popula<;ao brasileira, tao escassos quanto os bens materiais sao os bens do poder politico 0 s6 recente­mente conquistado direito de eleger representantes, em todos os niveis, constitui apenas urn pressu,posto da conquista da cidadania. A@ificiUuta diaria pela sobrevivencia, a desinfor­ma<;ao, a desmobiliza<;ao gerada pela inconsciencia do real, a snbmissao e 0 fatalism~xcluem as mais amplas camadas ga

u:

\'

·1~

I

De Crinles, Penas e Fantasias 151

popula<;ao da participa'Vii 0 p~ da consciencia e do ~er­cTclo dos direitos da cidadania. Ausente da sociedade, a cldadania tampouco se apresenta no exercicio do poder do Estado brasileiro, historicamente-,autoritario, centralizador, institucionafizador da exchisao ...

3. Bern Estar Corporal (abrigo e meio ambiente).

o processo de concentraca9 da prorriedade da teqa em maos de uma minoria, que vern desde a epoca colonial, com a divisao do pais em capitanias hereditarias e, depois, em sesmarias, entregues a uns poucos grandes senhores portu­gueses, desenvolve-se pOI toda a hist6ria do Brasil, chegando aos dias de hoje, quando asdezoito maiores proprjed~des rurais sozinhas detem dezoito milhoes de hectares rierrit6rio equivalente ao ocupado por tres paises, ou seja, Portugal,

-S_ui<;:a e Holanda juntos), ao mesmo tempo em qU@lhoesde familias tern pouca terra ou nao tern nenhuma.J

Este proces~o, que expulsa milhoes de lavradores, deixan­do-os sem a terra onde viver e de ondelirar sua subsistencia, alem dos conflitos que gera no campo, com suas mortes anunciadas e impunes, leva a inchac;:ao dos centros urbanos,

. '. onde 0 mesmo processo se repete: aqui§mbem 0 espac;:o e desigualmente dividid~ aqui tambem sao milhoes os que nao tern onde se abrigar e muito poucos os que gozam do direito a uma habitac;:ao confortavei.

As habita<;oes precarias, onde familias inteiras, muitas vezes, vivem em urn unico comodo, habitac;:oes construidas em locais inseguros, sem agua encanada, sem liga<;ao a redes de esgoto e de tratamento de lixo, sao a submoradia de lnilhoes

" (

(

(

(

(

(

(

(

(

(,

(

(

I' (

(

(

(

(

<.

<.

(

(

\

\ (

(

\. (

\. .\-

"

Page 75: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

"

152 Maria Lucia Karam

de brasileiros, ainda assim em melhor situayao do que 6s grandes contingentes de habitantes das ruas.

, A especulayao imobililiria, os@wgramashabitacionaisque' acabaram fmanciando moradias para os setores ja privilegia­do~so 18 % dos investimentos do extinto BNH se destinaram a pwjetos populare~mpurraram a maioria da populayao para as submoradi~ Mesmo as parcelas que tiveram acesso aos chamados conjuntos do BNH - mais para guetos do que pwpriamente conjuntos - receberam residencias mal construi­das, edificadas sem levar em conta os materiais de cada regiao, as condiyoes climaticas e as tecnologias disponiveis, do que resultou sua deteriorayao em poucos anos de uso.

A inviolabilidade de tais habitayoes ja e ignorada por sua propria distribuiyao espacial, por sua propria precariedade, que nao pelmitem a necessaria privacidade de seus mora­dares.

Mas a isto, somam-se os a,tentados praticados pela ayao direta do proprio Estado~ seus agentes policiai~que nao hesitam em realizar suas blitzen, seus espetaculos de terror oficiaIKnvadi.ndo, SO,b qualquerpretexto e sem nem cogitar del

~andado judicial, os domicilios situ ados em locais de concen­ayao das camadas mais baixas e marginalizadas da popu­

ayai{A inviolabilidade, consagrada nos textos norrnativos, como ocorre com outws bens e direitos, so tern validade para os poucos privilegiados, que vivem no lade Belgica de nosso pais.

o respeito a terra, a natureza, ao meio ambiente, e esque­cido por urn projeto consumista e destruidor, por urn processo

.~

~ 'i '~

;j :j

_-1

-;.j j

,I

cl ,'I ~I

~I

De Crinles, Penas e Fantasias 153

, produtivo que gera a contaminayao do ar e da agua,que leva ao esgotamento de recursos naturais, que perrnite 0 desmata­mento e as queimadas, que pwvoca,a extinyao de especies.

Nao obstante os disc1J[sos oficiais, a natureza nao se reconhece, na pratica, 0 valor de base do pwcesso biologico da vida, de patrim6nio do processo civilizatorio.

4. Crescimento (proteyao a infiincia e a velhice; educayao e inforrnayao ).

No pais dos meninos e meninas de rua, das crianyas e adolescentes que sobrevivem -mas, por pouco tempo _ vendendo as mais diversas mercadorias nas esquinas, mendi­gando, delinqiiindo, ou sonhando e escapando com sua cola de sapateiw, ate serem mortos pelos que os veem como futuros criminosos, a1[espwteyao da infiincia e tao eloqiiente, que/

"J todos os escritos a respeito se tornam superfluos]

o Brasil pouco investe em educayao.

A falta de creches e pre-escolas convive com 0 ensino absolutamente precario da rede escolar publica de 1 Q grau, um ensino ministrado por pwfessores despreparados e dt::SYf!lo­ri~s, urn Ensino voltado para a realidade' das classe~ dominantes, totalmente desvinculado dos val ores, da vida, do

( mundo, da historia das crianyas que freqiientam essas escolas. Muitas dessas crianyas logo acabam saindo, desestimuladas pela repetencia, ou empurradas para a luta pela sobrevivencia.

Dados colhidos em nove Estados brasileiws, inclusive Sao Paulo, Parana e Santa Catarina, pelo Instituto Nacional de

,"

Page 76: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

154 Maria Lucia Karam

Estudos e Pesquisas Educacionais do Ministerio da Educa9ao, mostram que apenas 14,79% dos jovens, na faixa etaria de 15 a 19 anos, esmo cursandoo 22 grau. Os restantes 85,21 % esmo fora da escola, quer por minca terem ingressado nela, quer por integrarem aqueles contingentes que a abandonam antes da conclusao do curso.

tora da esc0llt, os adolescentes - e tambem as crian9as -privados doensino e do brinquedo, ingressam no mercado ~ tmbalho, formal ou informal,engrossando as legioe~e ~plorados: dadosdo IBGErevelam que 7 milhoes de crianr,;as e adolescentes, entre 10 e 17 anos, trabalham, sendo que, destes, 66 % cumprem mais de 40 horas semanais, recebendo pouco mais da metade do salario minimo.

So uma pequena minoria tern acesso a educa9ao superior, ao mesmo tempo em que 0 numero de adultos analfabetos ou semi-alfabetizados chega a cerca de 35% da popula9ao.

Este pais, que nao investe n~ educar,;aG de $eu pova, kualmen.!..e despreza sua cuJhlra 0 modele do mercado, do consumo e do negocio reduz arte e cultura a espet<iculo, a produto rent<ivel, gerando uma industria colonizada, subjugada a produr,;oes culturais centrais, especialmente norte-america­nas.f5!ivemos na America Latina e desconhecemos totalmen­te a cultura de nossos vizinhosJ

Ignorando que a cultura e urn valor em si mesma, que se mede pelo prazer da cria9ao, pela consciencia que forma, pela sensibilidade que toca, pela imaginar,;ab que atir,;a, as politicas para 0 setor jamais permitiram 0 destmvolvimento de uma produ9ao, que se fizesse por si e para 0 con junto da socie~ .

~ l.ll j ','

.J

,~

?'

i-'

'.:-:

ii ~

De Crimes, Penas e Fantasias 155

dade, cada vez mais privada de uma atividade, drasticamente atingida pelos recentes e destruidores cortes de urn projeto de reforma administrativa, de urn 5UPOStO enxugamento da maquina estatal. .

Os~eios massivos.de informa9ao sao controlados por uns poucos e poderosos empresarios privado§J"gue, pouco ou na­da informando acerca do real, decidem 0 que vao divulgar" editam a r~de conforme seus interessps ~ sua ideologja, apropriam-se do imaginarlo coletivo e, assim, tentam dirigir os aconteciment~s, em beneficio da ordem dominante, ~

Sem acesso Ii educa9ao, a cultura e a informar,;ao, sem conhecimento e sem consciencia do real, a maioria do povo brasileiro se ve tolhida em seu direito ao desenvolvimento espiritual, em seu crescimento em dire9ao a cidadania, em seu processo de conquista do direito de ser protagonista de seu proprio destino.

Como nos demais paises de nossa margem, a ~xpectativa de vida, em media, nao passa dos 62 anos, doze anos a menos do qie vive, tambem em media, urn habitantedos paises centrais. E, aquelesde nos, que conseguem chegar a velhice, chegam desprotegidos. Ao desamparo ea falta de assistencia, atingindo preferencialmente os sobreviventes da miseria, somam-se 0 ~chamento do mercado de tnibalho, a aposentadoria mal paga, ainexistencia de quaisquerprogramas de incentivo aos idoso.,9 privados de espa90 na sociedade, privados do respeito, que deveriam receber pela experiencia e pelo saber acumulados ao longo de suas vidas.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( , ( ,

1 (

('

(

(

(

(,

(

(

(

\ (

(

(

\

. (

\.

k

\ \.

\ \ (

Page 77: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

156 Maria Lucia Karan)

5. Saude (tratamento e assistencia).

Grande parte do quadro ate aqui apresentado poderia se repetir neste t6pico. Os f~.I!.i)wenos, que impedem a satisfa-9ao das necessid'.l;des ligadas a saude, se inscrevem entre os fenomenos mais gerais, que geram a pobreza e a miseria da grande maioria do povo b;:;;'sileiro. ------

AKalta deatendimento a ges';'nte, asubnutrixao, a ausencia de saneamento hasico, a higiene precaria' nas submoradias e ~as. ruasJque se ~azem ?e lar: sao responsaveis pelo~~ mdlces de mortaltdade mfantIl e pelas doenxas da nusena, como a hanseniase, a malaria, a esquistossomose, a doenxa d-;:; Chagas, a dengue, que, no Brasil, seguem rumo oposto ao percorrido em outras plagas: as doen¥Jts infecciosas, ~ controladas na maioria dos paises, aqui, mais do que continuarem presentes, registram cu~as ascendentes.

Ate mesmo os Qwblemas mais simples, ~ oLfontrole de doenxas preveniveis por vacina~no Brasil, nao sao resolvidos. Os indices de paralisia infantil cresceram, a partir de 1983, e criancas ainda morrem de tetano, ~ia, s~o e raiva. E isto ocorre nao por falta de vacinas em numew suficiente, mas por distorxoes, que permitem 0 apodreci­mento de remedios por falta de utilizaxao: conforme.dados levantados pelo UNICEF, em 1989, s6 no Nordeste, onde meio milhao de crianxas deixam de ser vacinadas por ano, dois terxos das doses de vacina disponiveis ficam inutilizadas e acabam se deteriorando nos postos de saude.

A este quadro, somam -se as doenxas da modernidade, como 0 cancer, as cardiovasculares e, agora, a Aids, que

("

"'i

..:~

De Crinles, Penas e -Fantasias 157

chegam sem que o sistema de saude implantado no pais tenha se preparado para trata-Ias. 0 setor publico, ha anos, enfrenta uma situayiio calamitosa, urn suc'ateamento resultante da falta de investintentos, de. verbas desviadas para 0 setor privado, para alguns hospitais e dinicas conveniados, que atendem prioritariamente a saude do lucw de seus donos.

Convivendo com a proliferaxao das doenxas da miseria e com a situaxao ca6tica de hospitais publicos, em que1!altam desde lenxois para os leitos ate materiais como gases e esparadrapo~ tem-se, do outro lado, tecnicas avanGadi.ssi!uas e equipamentos carissimos~omo os grandes centws de to­mografia computadorizad~ que muito poucos tem aces§.Q.

As consultas de cinco min!:ltos, com medicos mal ~o~, sem condixoes de trabalho e acumulando empregos, refletem a desvalorizaxao profissional,,o pacto perverso, de que fala SergioArouca, em que o Bstado finge que~, 0 profissional finge que trabalh~ e 0 paciente nao pode fingir que tern saud~

=- Medicamentos essenciais, que .[altam para a maioria da populaxa~seja pelas deficiencias e distorxoes nos programas de distribuixao, seja pelos prexos descontrolados das vendas de tais produtos, convivem com 0 excesso de remedios d~necessarios e nocivos,§xpostos nas farmadas e vendidos livremente:J muitos deles de comercializaxao proibida em seus paises de origem: os oli 0 olios transna . nai que dominam 0 setor, trazem para n6s os medicamentos que nao servem para eles. _.

Aos deficientes fisico~s, mais do que nao se dar a assistencia e a protexao devidas, se nega 0 minima de respeito.

iHIHUNAL DE J1JSIICA -DO-t.. t.. ::'ANtW

alr_terL& garal da •• D'.~.r1.

Page 78: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

158 Maria'LuCia Karam

A logica do lucro, da produtividade, do homem" coglO mercadoria destinada a vender sua fon;a de tr~ nao sabe e mioquer conviver,c::oin os que nao podem produzir no ritmo exigido para a rentabilidade do capitaL

Nao ha uma I1reocupac,;a~seria em seEiotar as cidades de instrumentais, que possam facilitar a vida de deficientes fisicosJcomo, por exemJ2lo, rampaspara a circulac;a9 de

'paraplegicos.Nao ha programas educacionais especializados, que atendam as necessidades dos deficientes e superem, ao menos em parte, suas carencias. Tomando-se como exem­plo 0 autismo, e sabido que uma boa assistencia pode levar a um mvel razoavel de desenvolvimento e convivencia. Mas, neste campo, ate mesmo entidades privadas (acessiveis a uns poucos privilegiados), que se dedicam a educac;ao de autistas, sao raras e com custostiio altos que dificilmente conse­guem se manter.

Os deficientes mentais, discriminados e estigmatizados, sofrem intemacoes em'institui9~S totais, em tudo semelhan­tes as prisoes.fAo ;jntrariO de todas as recomendac;oes da modema psiquiatria os manic6mios continuam sendo a regra de urn suposto tratamento. A propria lei penal consagra esta distorc;ao, ao estabelecer a intemac;ao como regra para aqueles que, cometendo alguminjusto, sejam, pela deficiencia mental, incapazes de culpabilidade, consagrando tambem 0

preconceito, ao presumiclosperigosos.

6. Movimento (trabalho, liberdade fisica e mental).

o trabalho, como organizado lJ:a sociedade capitalista"1

T

"'

'I

, <it ....

De Crimes, Penas e Fantasias 159

implica, ja de inicio, numal£erda para aquele que vende sua energia em troca do salai~~ necessario para sua sobrevi­vencia. Af~o,ao ser aplicada sobre os meios de produc;ao e ge~r os P!odlltos que se transformarao em , mercadori~s, produz tambem urn valor ellcediW-te, que sera

Gpropriado pelo propriewio dos' meios de produc;ao e dos produtos geradosJAlem de nao se apropriar do que produz, alem de gerar aquele valor excedente, 0 dono da foWa de trabalho§ao determina 0 que e como produzir;:)submetendo­se a uma estrutura subordinadora, departamentalizada, ---------- -'

verticalizada e hierarguizada, que caracteriza a empresa capitalista e quellira do trabalhador qualquer poder de deci­sao e criac;aoJ

Mas, no Brasil, mesmo 0 direito a este trabalho alienante e --- -negado fa parcelas cada vez maiores da populac;ao] como resultado de uma politica econ6mica recessiva, geradora de demissoes (no primeiro semestre do ana de 1990, quando a recessao apenas se anunciava, segundo dados da FIESP,so no mes de abril e nas duasprimeiras semanas de maio, a industria paulista havia demitido mais trabalhadores do que durante todo 0 ana de 1982, periodo em que tambem se viveu forte recessao), vindo os novos demitidos engrossar os ja anteriormente significativos numeros de desempregados e subempregados, de excluidos da economia formal.

Poroutro lado, os que sobrevivem integrados ao mercado de trabalho/Os que tern assegurado 0 "direito" de vender sua forc;a de tra'balho, tem sua remunerac;ao aviltada por perdas salariais cumulativas] pelas ja mencionadas politicas econ6micas, que insistem em jogar sobre os salarios todo 0

(

(

( (-

['

(

( ( i

(I ( I \ I (

( I (I (I ( I

( I ( I ,

(

(

\

\,

(

I

l

\

(

t _

l (

l

\ \

Page 79: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

, "

160 Maria Lucia Karanl

peso do combate a infla<;ao.

De urn salario minimo, que, nos ultimos quatro anos, em tennos re~is, atingiu.os.mais baixos niveis, desde sua institui­<;ao em 1940, nao passando de 60 dolares, 0 arrocho salarial, repetido e constante, da ao trabalho, no Brasil, mesmo 0

trabalho qualifieado,~ma das piores remunera<;oes do mun­dil' bastando lembrar que cerca de 82 % dos assalariados brasileiros nao reeebem mais do que cinco daqueles salarios literalmente minimos.

o trabalho mal remunerado caminha junto com 0 traba­lho excessiv~: grandes contingentes de assalariados se veem for<;ados a aumentar suas jornadas, realizando horas-extras ou atividades aut6nomas, para, assim, suprir 0 deficit do salario basico.

As op<;oes de llloradia distante, aliadas a urn sistema de transportes coletiv.Qs extremamente .precario~onsomem lon­gas horas com a loeomo<;aCiifeita em condi<;oes, muitas vezes, insuporciveis. Roberto da Mattaja mostrou a semelhan<;a dos quebra-quebras de 6nibus e trens, a que sao levados seus usuarios, pela revolta, pelo desespero e pela impaciencia, com a destrui<;ao das maquinas pelos trabalhadores, na Inglaterra dos tempos da Revolu<;ao Industrial.

Estas horas gastas ~~Ioc()mover, aliadas ao trab~l1o excessivQ, deixam poueo tempo para 0 repouso. !h no pouco tempo que sobra,@ao sao muitas as op<;oes de lazei)de utilizayao do escasso tempo livre. .

Como as ja em siEestritas atividades culturaiSjas demais

I ,

De Crimes, Penas e Fantasias 161

op<;oes de laz~r concentram-se nosu>airros privilegiados da's cldade©que, a16m de se/!>eneficiarem das condi<;oes naturai:D (as praias, por exemplo, localizam-se nestes bairros, mais valorizados) elEoderem con14r e pagar por projetos privados:J (entre outras coisas, pense-se nos predios; com quadras de esporte, play-grounds, etc.), ainda Q'ecebem os maiores investimentos dopoder publicQ)nesta area, sob 0 pretextQ de incentivo ao turis1}lo. .

Urn reflexo do estrangulamento das alternativas de lazer e a propria perda de urn dos poucos motivos de alegria dos brasileiros: a decadencia de nosso futebol, a que hoje assis­timos, tern muito a ver com 0 lazer, tornadc[Proibitivo para a maioria da popula<;ao brasileir~ Aespeculacao imobiliari.Jl, a construyao desordenada e eoncentrada, a inchacao dos centros urbanos, eixaram pouco espa<;o para as areas onde se forja­yam os craques 0 que, aliando-se ao tempo gasto na luta pela sobrevivencia, cada vez mais re~erva aos que tern acesso a clubes e podem dispor de horas livres a oportunidade de treinar e, eventualmente, despontarprofissionalmente. E quan­to menos pessoas se dediquem ao esporte, menos as possibili­dades desurgirem grandes atletas.

o direito a liberdade fisica e mental e 0 direito ee livre expressao de opinioes avanyaram significativamente com 0

fim da ditadtira militar e a eonquista das liber~9~a­tic as mais elementares.

Entretanto, esse ~iireito de liberdade continua sendo}Qega­do, de muitas fonnas, as camadasmais baixas e marginaliza-das da popula<;ao~ .

i' ~,::'/ ;.t_ :..> .. _,~ .. ;:-,:"".,,:":-~~, _.~.~\; ,- :i1~_":Aifl~(-"tl

·_;~Y.:J//i".\i __ , ;: ;.';',1 !~: i.:,:,', .. "',

n~rJr ~r~?-'r'''(-'

Page 80: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

162 Maria Lucia Karam

Sao estas camaclas que, prioritariamente, sofrem as prisoes ilegais, ou apenas aparentemente legais, como se da nos casos oe utilizac,:aoda contravenc,:ao de vadiagem, que, partindo da mais explicita consagnic,:ao da desigualdade na lei penal brasileira (s6 pode ser considerado vadio quemnao tiver renda para viver no 6cio), setransformou em forma mal disfarc;ada de prisao para averiguac;oes.

.Tambem e destas camaclas que sai a clientela de urn si§!.e~ rna penal seletivo e, por isso mesmo, injus!g, que tern na pri­sao 0 seu centro. E a prisao nao significa apenas a priva­c;ao. da liberdade fisica. A liberdade mental e aqui profunda­mente a~~@ue exige a submissao total a uma ordem artificial e autoritana, detenninante de uma sub­cultura, que reproduz as caracteristicas basicas cia socieclade capitalista - 0 egoismo, a submissao, a explorac,:ao do mais fraco - humilhando, aviltando e degra<iando.

7. Seguran~a (conservac;ao da vida e da integridade pessoal).

No Brasil, as causas de morte,[Siue se costumam cp.amar de naturai~como visto, decorrem.> em ~,@cP genera­lizado desatendimento as necessidades reais fundamentais e da generalizada violac,:ao dos dlreitos humanojJdelas decor-rentes, ate agora examinados. .

~. ultimo grup6da classificac,:ao aqui adotada ~ das chamadassausas externa~, ou traumas, igualmente determi­nantes de urn elevado numero de violac;oes do direito a conservac,:ao da vida e da integridade pessoal.

A violencia interpessoal e as acidentes constituern a tercei-

De Crimes, Penas e Fantasias 163

ra maior causa de mortes em nosso pais.

Dentre estas causas, eo transito que ocupa 0 primeiro lugar, sendo responsavel pelo maiornumero de mortes violentas, estimadas em 50rnil por ano, correspondenteSa urn terc;o do total de mortes por trauma§, 0 que, por si s6, ja demonstra que -preocupac;oes nao rnistificadoras corn a seguranc;a deveriam se concentrar, muito mais, neste terreno, do que na histeria do combate a criminalidade convencional.

E estes dados nao dao toda a dimensao da violencia descontroladado triinsito, pois, aJem da impressionante quan­tidade de mortes, ha que stlconsiderar 0 numero ainda maior de pessoas que sofrem danos cOlJ?orais, resultantes da circu­lac;ao de veiculos, numero, em 'medi~ tres-vezes superior ao de mortes.

A vida e a integridade corporal tampouco se preservam na ja em si dura atividade labor-ativa, emnosso pais. Sao milhares os brasileiros que, trabalhando em§ondic,:oes de seguranc,:a e higiene absolutament~ precaria~ corn equipamentos inade­quados ou inexistentes, sem receberem instruc;oes sobre cis cuidados necessarios, anualmente, perdem a vida ou sofrem lesoes, nesta atividade laborativa.

Embora sem estatisticas confiaveis, eis que muitas ocor­rencias nao chegam a ser noticiaclas, os acidentes no trabalho, sem duvida, constituem uma das principais causas de morte e violac,:oes a integridade corporal, no Brasil, paradoxalmente fora do alcance do sistema penal. Sao rarissimos os ingueritos policiais instaurados para apurac;ao de mortes e danos corpQ:. rais na atividade laborativa, mortes e danos· corporais estes

(

(

(

(

(

(

(

( ,­, f (

(

(

(

( (

(

(

(i

( i

I. (

(

(

(

\

(

(

l I.

e

(

Page 81: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

164 Maria Lucia Karam

que, em sua maioria, indubitavelmente, se relacionam a condutas negligentes dos responsaveis pelasempresas em que os mesmos ocorrem.

Os anos corporais e mortes, produzidos por fenomenos da natureza se reproduzem a cada ano, sem que hajam ac;:oes efetivas 0 :gstado para preveni-Ios. E sao as camadas majs baixas e marginalizadas, oshabitantesdas submoradias, pre­cariamente construidas em locais inseguros, os que, tambem aqui, sao os mais atingidos: basta lemhrar da~esoes e mortes resultantes de quedas de barracog por ocasiao de chuvas

l0rtes, que encontram na&.lta de contenc;:ao. de encostasJna (lmprevisao de canais para escoamento da agua~ nos detritos

nao recolhido~o meio propicio para a destruic;:ao.

As mortes provocadas por hornicidios doloso~ seguindo­se aquelas ocorridas na cixculac;:ao de veiculos, respondem por 25 % do total de mortes por traumas.

~ntre estes hornicidios, devem se destacar, inicialmente, as mortes anunciadas e impunes daqueles que, po campo, aMm de serem privados da terra, se veem privados cia vida, por pi.s.toleiros~ soldo dos grandes latifundiarios,::)

Papel extremamente relevante tern tambem a violencia punitiv.t!, que se realiza(fora do direito, a chamada repressao inform~responsavel por significativa parcela do numero total de hornicidios no Brasil.

As attu.t~egajs das agencias policia}s provocam intimeras mortes, sistematicamente apresentadas como re­sultados de enfrentamentos com supostos crirninosos ou

~ .~

1

·:I

b

I

'I

-~

.. t, .~1

De Crimes, Penase Fantasias 165

suspeitos, em situac;:oes de repressao ao crime, de reac;:ao armada destes supostos crirninosos ou suspeitos, atuac;:oes essas legitirnadas em eutos de res1s®§iiJUao previstos na legislac;:ao, sob 0 manto d,e urn inexistente cumprimento de dever legal, sem que sofram maiores questionamento~ inobs­tante os eloqiientes indicios de se constituirem numa das formas extralegais de aplicac;:ao da pena de morte.

Dados oficiais da Policia Militar do Estado jle SaO Paulo, divulgados em pesquisa do N udeo de Estudos da Violencia da USp, revelam que, de 1983 a 1988, os mortos em tais enfren­tamentos, naquele Estado, foram 2.633, sendo que destes apenas 241 eram policiais, ou seja, mais de 90% dos mortos encontravam-se entre os supostos sriminosos ou suspeitos, numa despropon;ao nao esperavel em situac;:oes de confrontos abertos, que pressupoem urn certo equilibrio de baixas entre os contendores.

Os mesmos dados revelam que, ~ estes supostos crimi­noSos ou suspeitos, 0 numero de feridos nao chegou a metade 40 numerode mortos, enguan~, @o lado aos policiais, 0 numero de feridos}.como e normal em conflitos desta nature-

. za, foi <NiPze veze~ maior do que 0 de mortos, evidenciando­se, no minimo, uma dara~disposic;:ao, por parte da policia, no sentido de atirar para matar.

o elevado numero de mortes impressiona ainda mais, quando se toma, por exemplo, 0 ana de 1985: os dados ja referidos registram, entre os supostos crirninosos ou suspei­tos, 585 mortos; neste mesmoano, em Nova York, cidade de tamanho comparavel a Sao Paulo e conhecida pela violencia, os mortos civis em enfrentamentos com a policia foram 12.

Page 82: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

166 Maria Lucia·K .........

Complementando 0 quadro de atuacyoes ilegais, pouco questionadas, as agencias policiais sao ainda responsaveis por atentados a integrid;tde corporal de supostos crirnino­sos ou suspeitos, fazendo' da tortura seu£Petodo de apuracyao de infracyoes, substituindo a inteligencia e as recnicas moder­nas de investigacyao pela mais primitiva truculenchg

A repressao informal prossegue fazendo suas vitimas e engordandci as estatisticas dos homicidios, atraves dos grupos 9!; exterminio, que, reproduzindo de forma mais selvagem as diretrizes da repressao formal, se encarregam de eliminar os supOStOS criminoso~e, mais recentemente, os futuros sUQos­tos criminosos -§s criancyas e adolescentes das rua§ - para

. -prot{<ger 0 patrim6nio de seus contratantes

A estas execucyoes extra-oficiais, a estas aplicacyoes extra­legais da pena de morte, somam -se os linchamentos momento culminante da repressao e do controle socia em que a interiorizacao,&elas classes subaltema~da visao dominame de yiolencia, , ue a identifica com a criminalidade conven­cional, produz a forma mais perfeita desta repressao e deste -controle: aE!uto- estruicyao dosdommados~

III - Uma conclusiio desmistificadora

A precisll.Q dos conceitos de direitos humanos e de violen­cia, a partir da observac;:ao da realidade, demonstra a falicia da visao dominante,~,fncobrindo os principais fenomenos

iCOnfiguradores de atentados a sobrevivencia biol6gica, espi­ritual e cultural da especie humana, concentra em condutas caracteristicas da criminalidade convencional a ideia de viO .. -lencia] .

.<

I ,.

~

De Crimes, Penas e Fantasias 167

. No painel aqui sumariamente montado e possivel, desde logo, constaW ofPequenissimo papel da criminalidade con­vencional na prodUcyao da violencia e Iia violacyao dos direitos humanos de todos os cidadao~quer os pretensamente "bons", quer os supostamente "maus".

Tambem a partir deste painel,@esmonta-se a ideia de que os atos violentos provenham de pobres e miseravei:ga yisiio, as vezes are bern intencionada, dos que confundemoobreza e ." ~

miseria com criminalidade e violencia.

Mostra a breve enumeracyaoaqui feita, que, ao contririo, os £9bres e miseraveis deste pais,(longe de serem os produtores da violenci~sao suas principais vitima§. inclusive da grande parcelados homicidios, deterrninados pOf;8/il.uela mesma falsa ideia gue,l§onfunclindo-os com criminooos, leva a aceitac;:ao, ao incentivo e ao aplauso de seu exterminioJ

A observacao e a compreensao do real desvend.!Lm as multiplas faces da violencia no Brasil,fi trigica e continua hist6ria de uma formac;:ao social excludente e discriminadora,

. 0 reiterado descompromisso do Estado brasileiro com os direitos humano~desnudando,ao mesmo tempo, 0 djSCJ!TSO mistificador e perverso, que pretendeetraves de mais violen­. cia emaiores violac;:oes aos direitos humanos, fazer da punicyao . e do castigo a cruel panaceia para 0 mal entendido sentimento de medo e inseguranc;:a, por esse mesmo discurso alimentadO)

AL!?bservac;:ao e a compreensao do reaDtambem desv~n­dam 0 caminho do rom imento e da su era' ao desta hist6ria <Ie violencias, desigualdades e exclusoes, como unico e ur­gente passo no sentido da construcyao de uma sociedade, que possa satisfazer as necessidades e respeitar os direitos dos habitantes destepais chamado BrasilJ

( . (

(-

I

(

(

(

(

(

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

I.

(

!

\. \. (.

l , i\_

\. \.

Page 83: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam
Page 84: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

~:

1 -

T

'.,

.:-,

:1>

,}.

;:~~

i~1 'U~

ALGUMAS NOTAS SOBRE PENAS E PRISOES

~ituac;6es conflitivas ou I>i0l:>l~ml!JiGas, como sao aquelas em que se manifestam condutas definidas como .crimes, podem gerar di~~el*_s _r~1lc;6es. Hulsman c~nta uma Pllra.h6c !i que permite compreender isto:

- Cinco estudantes moram juntos. Em urn dado momento, urn deles se arremessa contra a televisiio e a que bra, quebrando tambem alguns pratos. Como irao reagir seus companheiros? N enhum deles ficara cont:ente, e claro. Mas, cada urn, analisando 0 fato it sua maneira, podeni adotar uma atitude diferente.

o estudante nQ 2, furioso, declara naopoder mais conviver com 0 primeiro e fala em expulsa-Io de casa. 0 estudante nQ 3 declara: ."Trata-se sim de comprar urn novo aparelho 'de televisiio e outros pratos, e que ele pague'\ 0 estudante nQ 4, bastante traumatizado com 0 que acaba de acontecer, se exalta: "Ele esta seriamente doente; e precisoprocurar

(

(

( (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( (

(

(

(

(

(

" (

(

(

~

\

I"

(

(

\.

i,

\.

\.

Page 85: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

172 Maria Lucia Karam

urn medico, fazer com que ele seja examinado por urn psiquiatra, etc ... ". 0 ultimo, enfIm, murmura: "Nos pensavamos que nosentendiamos bern, mas alguma coisa nao funcionou em nossa comuni­dade, para que urn tal gesto tenha sido possiveL. Fa9amos todosjuntos urn exame de consciencia". (1)

. Aqui aparecem as diversas reacoes. pos:,ivei.s numa tal situa9ao: 0 estilo punithw, 0 estilo <;ompensat6rio, 0 ,!era~1J­tieo, 0 conciliador. Tais rea90es normalmente se manifestam, quando as pessoas diretamente envolvidas no conflito ou na situa9iio problematica podem, racionalmente, discutiremanejar seus aspectos e solU90es. Ao lade da rea9ao punitiv-<t, surgem outros estilos <:Ie.-controle; propoem-se outras medidas, de natureza educativa, assistencial, reparat6ria, etc.

Entretanto,quando intery'!'<!ll 0 §iste~<!..p(')l!<ll, com a crimi­naliza9ao de condutas, que constituem algumas destas situ­a90es conflitivas ou problematicas, ao mesmo tempo em que a solu9ao do conflito se transfere para 0 ambito do Estado, todos os outros estilos sao' excluidos, para se concentraLo contrQle ~~~tiva.

A etapa inicial do processo de criminaliza9ao - 0 momento de sele9ao das condutas que vao ser definidas como crimes, 0

momento de gera9ao da lei penal - e tambem 0 momento de gera9ao do instrumento, que ira materializar esta rea9ao punitiva excltisiva, ou seja, a pena. E a pena 0 instrumento .-(1) Louk Hulsman e Jacqueline Bemat de Celis, Peines Perdues _ Ie systeme penal en question, Paris, Le Centurion, 1982, ps. 114/115.

'-.}-'

I -

y

i

j i

,,-"'"

De Crimes, Penas e Fantasias 173

essencial e caracteristicQJ;!gt.ki_llSllli!!, que !heda seu carater diferenciill, delimitador do ambito do Direito Penal.·

Muitos sao os mecanismosideo~s utilizados n.afgn­~menta9ao e Jegitimi!.9iLo de tal instrumento.Girando em tome de duas i~asicas - a&tribui9ao e a preven9acf1- as diversas tentativas de fundamentar e legitimar a pena produ­ziram varhis teorias,tiadicionalmente classifIcadas como

@:bsolutas, relativas e mista~

As teorias absolutaS-. surgiram sustentando que a ]2!llia

enc.ontra suajustifIcagio em si mesma, baseando-se na ideia da retribui9ao, do castigo, da compensa9ao do mal, represen-

~.

tado pela infra9ao, com 0 mal, representado pelo sofrimento da pena.

Opondo-se a estas, nasceram as teorias .relati vas (divididas entre aprevencao geral e a preven9ao especial), em que se' concebe a pena como urn meio para obtencao de fIns ulteri­ores, partindo de urn criterio utilitarista, mais diretamente afiiiado com 0 objetivo de controle social.

Numa primeira apoxima9ao, pode-se apontar, nas teorias . relativas da preven9ao geral, a tentativ.a de justiflca9ao da pena, a partir de sua atua9ao sobre os membros da comunidade juridiea que nao delinqiiiram, visando, com esta atua9ao, produzir efeitos dissuas6rios, de intimida9ao, ou de coa9ao psieol6gica, de modo a afastar do delito outros possiveis futuros infratores, atraves da amea9a da pena e de sua efetiva aplica9ao sobre aqueles que delinqiiiram.

Nas teorias relativas da preven9ao ~ecial, defende-se a

i f~~bi,.Je~"~L ~J.~L- ,1,·, ... '.':;;. I -,., ' .. ~S ~J C\:;:

~i.lIs~WiJri:.;~. t'F·;)'<;',,"}. .• ':\;I ~:,:::'·f."tr·( __ ,\(,'rh_~~>2.~

Page 86: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

174 Maria Lucia Karam

atua9iio diretamente sobre 0 autor da infra9iio, sobre 0 ape- . nado, com 0 objetivo declarado de evitar que 0 mesmo volte a delinqiiir, atraves de sua corre9iio ou ressocializ:a9iio, de sua intimida9iio, ou, fina4nen~, de sua segrega9iio.

Asteorias mistas, em geral, partem das teorias absolutas, procurando ~brir suas falhas corn elementos das teorias relativas, apontando a impraticabilidade da retribui~ com

. . .

. todas suas conseqiiencias, sem contudo aderir totalmente it preven9iio. Traduziriam as teorias mistas, a grosse modo, a ideia de preven9iio geral, mediante a retribui9iio justa.

Mais ~ecentemente, e dentro ainda de uma visiio idealista e legitimante, aparece a ~a, a que Baratta chama de pre­ven9iio-integra9iio ou preven<;iio positiva (2), que, de uma perspectiva funcionalista, ve a pena, niio como retribui9iio de ummaI, nem tampouco como produtora de efeitos dissuaso­rios (a preven9iio negativa), tendo sim com~n9ao primor­dial a preven9iio positiva, no sentido de exercitar 0 reconhe­cimento da nonna e a fidelidade ao direito, por parte dos membros da sociedade70 delito e visto como uma amea9a it integridade e it estabHldade social, enquanto expressao<sun-· bolica de uma falta de fidelidade ao direito, sendo a pena, por sua vez, a expressiio simbolica oposta itquela representada pelo delito.

Substitui-se, assim, 0 princlplO POSitlVO da preven9iio especial (reeduca9iio) e 0 negativo da preven9iio geral (dis-

(2) Alessandro Baratta, Integracion-Preverlcion: Una Nueva Fundamentacion de la Pena dentro de la Teoria Sistemica, in Derecho Penal y Criminologia, 29, Universidad Extemado de Colombia, Bogota, 1986, ps. 79/97.

'y'

I , { t··

De Crimes, Penas e Fantasias 175

suasiio) por urn principio positivo de preven9iio geral: a pena como urn exercicio de reconhecimento e de fidelidade a norma.

Como as demais, esta teoria sistemico-funcionalista cons­titui uma clas muitas tentativas defundamentar a pena e

. esconder a profunda crise de legitima9iio, que atravessam 0

Direito e 0 sistema penal, fundamentando, por outro lado, os movimentos de expansiio da rea9iio punitiva, enquanto forma de manuten9iio e reprodu9iio da realidade social, de coesiio e sobrevivencia de uma dada organiza9iio politica, social e economica.

A historia demonstra que a fun9iio de p!.even9iio $~l _~ativa nunca funcionou: a amea9a, mediante normas pe­nais, niio evita a pnitica de delitos ou a fonna9iio de conflitos; ao contnirio, eles se multiplicaram e se sofisticaram. 0 efeito dissuasorio niio se comprovou, estando, ao contnirio, de­monstradoque a apari9iio do delito niio esta relacionJida cern 0 numero de pessoas punidas, ou com a intensidade das penas impostas.

Oponto rnajs gravt< da ide~cle ~~ negativa; porem, e que esta, como aproposta de preven9iio geral positiva, encerra aensagra9ao da aliena9iio da subjetividade e da centralidade do homem em beneficio do sistem~deslo­cando 0 homem de sua posi9iio de sujeito e fim de seu proprio mundo, para tormi-lo objeto de abstra90es normativas e instrumento de fun90es sociais.

(/

(

( (-

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\

" (

(

C

"

(

(

Page 87: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

176 Maria Lucia Karam

Nas palavras de Baratta,

"En especial, el sl,ljeto en la incriminaci6n de responsabilidadpenal deja de ser el fin de la intervenci6n institucional, para convertirse en el soporte sico-fisico de una acci6n simb6lica, cuyos filles estrin fuera de 61 y -de la cual constituye unicamente un ·instrumento .. Parece . que, aunque con expresiones y lenguaje bien diferentes ymas abstractos, la teoria sist6mica replantea la figura del "chivo expiatorio", de Ia c.ual se sirve la teoria sicoanalitica del delito y de la petia para mostrar el componente irracional de los sistemas punitivos." (3)

De urn outro angulo e paralelamente a este surgimento das novas propostas de prevenc,:ao, 0 crescimento das grandes manipulac,:Oes dos sentimentos de. inseguranc,:a e medo, da identificac,:ao de violencia com criminalidade, motivando reac,:.oes emocionais de desejo de castigo e punic,:ao,funda­menta urn renascimento do retribucionismo.

A irracionalidade da pena retributiva ja se manifesta,em pAilcipio, porsua1incapacidade de esclarecer a razao pela qual se deveria compensar urn mal com outro mal de igual pro­porc,:ao]quando, mesmo se aceitando as teses contratualistas originarias que the serviram de fundamento, ou as posic,:6es neo-contratualistas mais recentes, apareceria mais l6gic~ Q~ela repara9ao do dano material ou moral causado pelo

(3) op. cit., p. 97.

De Crimes, Penas e Fantasias 177

deli to, especialmente porque ai se levariam em conta os interesses das pessoas dir.etamente afetadas.

Mas, como ha mais de duzentos anos ja se denunciava, a falacia de tais construc,:6es aparece, ainda mais fortemente, em sua pretensao de fazer da pena retributiva uma pena justa, numa sociedade sem justic,:a distributiva. Hoje, como ha duzentosanos,rii.ant6m:se ertillel!.te..ain a ao delioI que Wo", indiv'd,,", """"jodos d, "'"' ='Ios b"'''"" ~o ocorre com a maioria da populac,:ao de nosso pais, estariam obrigados a respeitar as leis. (4)

Zaffaroni, relembrando as objec,:6es as propostas retribu­cionistas originarias, demonstra a igual falacia do novo refu­gio retribucionista, apontando a ilegitimidade da pena, assim entendida, em sociedades reais, onde a punic,:ao nao alcanc,:a a todos os violadores do direito e onde 0 espac;o social 6 desigualmente ~istribuido. (5)

Quanto as teorias relativas da prevenc;ao especial, sua inviabi1idad~ 6 ~vidente, num sistemarepressivo, que faz da prisao 0 seu centro. A id6ia de ressocializac;ao, com seu objetivo declarado de evitar que 0 apenado volte a delinqUir, 6 absolutamente incompativel com 0 fato da segregac;ao. Urn \minimo de racioCinio 16gico repudia a id6ia de Se pretender Eintegrar algu6m it sociedade, afastando-a dela.

(4) Vejam-se as conhccidas objel'oes que Jean Paul Marat formulou ao retribucionismo, em Sua obra filos6fica.

(5) Eugenio Raul Zaffaroni, En Busea de las Penas Perdidas, Buenos Aires, Ediar, 1989, ps. 84/86.

Page 88: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

178 Maria Lucia Karam

Como tambem demonstra Zaffar..Qni,

"Sabemo~ que la ejecuciOn penal no reoocializa ni cumple ninguna de las funciones "re" que se la

.... ~- --han inventado ("re" - socializacion, personaliza-cion, individuacion, educaciori, insercion, etc.), que todo eso es mentira y que pretender enseiiarle a un hombre ~ vivir en sociedad mediante el encierro es, como dice Carlos Elbert, algo tan absurdo como pretender entrenar a alguien para jugar futbol dentro de un ascensor." (6)'

As tradicionais teorias absolutas; relativas e mistas tern no 'irraci6nalism<? 0 seu ponto em ,~2lJmmy irracionalismo este que desmonta suas pretensoes fundamentadoras da pena. Trabalhando apenas com os conflitos visiveis, com os crimes conhecidose registrados, omitem a questiio fundamtmtal de que a resposta penal ~ se ~t0aemumnu~ extre­mamente restrito de casos em que a lei e violada, 0 que compromete -suas pretenso(;s generalizadoras. .

Mostra Nilo Batista_que

"0 combate que 0 direito penal pode oferecer ae crime praticamente se reduz - desde que a pesqUi~a empirica demonstrou 0 preca.rio desempenho do chamado "efeito intimidador' da pena, sob cuja egide sistemas inteiros foram construidos - ~ crime acontecido (sendo minima sua atua9ao

(6) Eugenio Raul Zaffaroni, EI Sistema Periat'm1l!s·pglses de America Latina, in Sistema Penal para 0 Terceiro MU<'nio, Rio de Janeiro, Ed. Revan, 1991, p. 223.

. ~,

De"Crimes, Penas e Fantasias 179

preventiva) erJ!gistra,g.o (a chamada crirninali­dade aparente, que, como tambem a pesquisa empirica revelou, e muito inferior. - em alguns casos, escandalosamente inferior: pense-se por exemplo no aborfumento- Ii criminalidade real, sendo a diferen9a denotninada cifra ocu1t~)." (gri­fos no original) (7)

J?iante destas cifras ocmtas, 0 irracionalislllo' das teorias tradicionais se poe a descoberto-,- Tomecse, por exemplo, a ideia dalpreven9ao geral positiva;Jla pena como urn exercicio de reco'iiliecimento e de fidelidade Ii norma. Diante destas cifras ocultas,L!er-se-ia que reconhecer que as viola90es nao conhecidas da lei penal nao produziriam desorganiza9ao social, nem constituiriam a amea9a Ii integridade e Ii estabi­lidade sociag que estaria a exigir a resposta penal.

Mas, e a propria falta de racionalidade da pena que deter­rnina este irracionalismo essencial das teorias, cuja pretensao e fundamenm-Ia e legitima-Ia.

A ~na caracteriza-se por ~ ser urn instrument014§p.eo ~ resolver conflitos, sendo exatamente esta caracteristica que a distinguedas demais san90es juridicas. ~nse-se, por exemplo, no campo da lei civil, nas san90es que determinam -a priva9ao de algum bern ou direito, para repara9ao do dano, ou para compelir alguem a realizar urn ato devido, para anuJ:ar atos realizados,para interromper urn processo lesivo, ou para impedir sua ocorrencia. Tais san90es, pelo menos abstrata-

(7) Nilo Batista, Introdu~ao Critica ao Direito Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, Ed. Revan, 1990, p. 21.

(-';"

(I

( (-

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

l (

(

(

(

(

(

(

\

\ , , I,

I.

l ( ,

l

l

Page 89: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

180 Maria Lucia Karam

mente, constituem uma forma de soluyao de'Conflitos. Ape­na, ao contnirio, nem abstratamente, e forma de solucionar conflitos.

Veja-se 0 que diz Zaffaroni:

"Pero el model0 penal, tal como 10 ha subrayado el abolicionismo y otras criticas, desde qt:!e la victima desaparecio por efecto de la expropriacign del conflicto por el sob~!ill-0 por el estado, ha

@.ejadodeserunmodel0 de solucionde confiictos, por supresion de una de las partes del conflictoJ Esto explica la multiplicacion increible de teorias de la pena (y consiguientes teorias del derecho penal) y la errabunda peregrinacion filosofica del saber penal y hasta casi su avidez ideologica.

La operatividad de los sistemas penales no ha variado mucho en la realidad en los ultimos ciento treinta afios, pero la dlversidad discursiva con que se 10 ha querido legitimar en ese mismo tiempo es . asombrosa y, en forma indirecta, es un claro indi­cio de su irreductible carencia de racionalidad.

EI mismo nombre de "pen a" indica un sufrimiento, pero sufrimiento hay en casi todas las sanciones juridicas: s~frimos cuando nos embargan la casa, cuando nos cobran un interes punitorio,

. nos anulan un proceso, nos ponen en cuarentena, nos llevan por la fuerza a dt1clarar como testigos, etc. Ninguno de estos sufrimientosse llama "pena", . porque tienen un sentido, es decir, conforme a,

f \ 11 ., i

.1\

·11 ] 'l '~ "~'. , 1

I

~,,;

f

"

De Crimes, Penas e Fantasias 181

modelos abstractos todos sirven para resolver algun conflicto. La pena, en lugar, como sufrimienJ.o huerfano de racionali<kd, hace varios siglos que busca un sentido y no 10 encuentra, sencillamente porque no 10 tiene, mas que como manifestacion de poder." (grifo no original) (8)

Este sofrimento oUad de racionalidade atinge dirnertsoes extremas, ao seconcretizar num sistema punitivo, que tern na prisao sua instituiyao primordial.

Para efetivamente compreende'r~o, e preciso seguira sugestiio,de Hulsman e ve-lo de dentro:~foryar-se para imaginar e interiorizar 0 que e a prisaoj superando 0 pensamento purarriente abstrato, que coloca em primeiro lugar a "ordem", 0 "interesse geral", a "seguranya publica", a "defesa dos valores sociais"; que faz crer na ilus~ ~inistra de ~,l'Para protegercnos da "delinquencia", e necessario e suficiente botar na cadeia algumas deienas de milhares de pessoa~ que fala muito pouco dessas pessoas encarceradas em nosso nome. (9)

A privayao da liberdade, 0 isolamento, a separayao, a distiincia do meio familiar e social, a perda de contato com as experiencias da1vida normal de urn ser humano, tudo isto constitui um sofrimento consideravel.

Mas, a este sofrimento logo se somam as dares fisicas: a privayao de ar, de sol, de luz, de espayo, as alojamentos superpovoados e prorniscuos, as condiyoes sanitirias precarias

(8) Zaffaroni, En Busea de las Penas Perdidas, op, cit., p, 210 (9) Louk Hulsman, Peines Perdues, op, cit., ps. 63/66.

. KltJUi1lAI.. iJC ..11.1;;:' i ''''''''' ~.,'~ L.

..>-'.';.l'~ li '~-

Q\reterla Qa~Bl d~ aQCW~~n'La

Page 90: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

182 Maria Lueia Karam

e humilhantes, a falta de higiene, a alimenta¢o muitas vezes deteriorada, a violencia das torturas, dos espancamentos e enclausuramentos em '~celas de castigo", das agressoes, atentados sexuais e homiCidios brutais.

I5!rande parte destes l:omicidios brutai~, entre as proprios presos, nasce da convivencia fon;:ada, que faz com que qualquer incidente, qualquer divergencia, qualquer desentendimento, qualquer antipatia, qualquer dificuldade de relacionamento, assumam proporyoes insupoi:tivei~O desgaste da convivencia entre pessoas, que, eventualmente, nao se entendam, aqui e inevitivel. As pessoas que MO se ajustam, os inimigos, sao@brigados a se ver todos os dias, a

. ocupar 0 mesmo espayo, a que, evidentemente, acirra os iinimos, eleva a tensao, exacerba os sentimentos de odio]' levando, muitas vezes, a que urn presomate outro, por ----mQti~aJ:l.arentemente sem importiincLa.

Tendo a disciplina como centro de uma pnitica, onde se exige a submissao total a uma ordem artificial e autoritiria, detenninante da normalidade ou anormalidade da conduta, e a prisao a[!llstiincia social onde 0 controle se mostra em sua maxima autoridade sobre 0 individuo.),

. Os regulamentos, ~os quais 0 preso deve obedecer sem expJicayoes, nem possibilidades de questionamentoZ) a permanente vigiIancia, a aplicayao de puniyoes por quaisquer transgressoes aqueles regulamentos, 0 sistema de regalias,§m que direitos basicos se transformam em recompensas par comportamentos que a administrayab defme como bOllSi:) sufocam as melhores qualidades da pessoa e incentivam a ~ -,-_. -~~

submissao, a delayao, a falta de iniciativ:a, a passividade, a

"

I I I

:1

j

~ i i,

{: j I Ii

jl

'. De Crimes, Penas e Fantasias 183

dissimula¢o e a covardia. ~----" ------------

Adominayao, ditada pelo exercicio dopoder, da formayao dos "corpos doceis", do adestramento e da disciplina, (10) e a marca fundamental desta instituiyao, que "se comporta como uma verdadeira maquina deteriorante." (11)

o autoritarismo e a opressaQ, presentes ria sociedade,,aqui. . se ac;ntua~Jl.iyels_extremps,&eja na pratica dos agentes i~titucionai~"seja nas relayoes desenvolvidas entre os pro­pnos presos . .J

Myriam Pugliese de Castro aponta esta questiio, mostrando 'que:

"No interior da prisao a teia de relayoes sociais se assemelha a urn caleidoscopio. Existe uma hierarquia que monta uma ordemsocial sui generis uma vez que 0 encarceramento possibilita a construyao de uma experiencia, de um modo de vida na instituiyao permeado pelo autoritarismo matetializado na dominayao como forma de realizayao de uma ordem social especifica. ( ... ) Esta dominayao, com varias nuances, tanto e aparente como "invisivel"; tanto e praticada por agentes institucionais~ como ocorre entre a populayaocarceraria. Na articulayao dessas for-

(10) Veja-se a obra ja classica de Michel Foucault, Vigiar e Punk, Petropolis, Ed. Vozes, 1977. (l1)Zaffaroni, En Busea ... , op. cit., p. 139.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\ (

(

(

(

(

I..

i

\

I.

i,

l

\.

I.. (

Page 91: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

(

(

(

(

,

"

184 Maria Lucllt Karam

mas parece residir 0 "segredo" de uma ordemql1e funciona pelo avesso." (12)

Esta ordem social, que funciona pelo avesso, que tern efeitos altamente deteriorantes, condiciona a reproduyiio de sua clientela, exercendo 0 mais alto grau de estigmatizayiio e marginaliza<;:ao de todo 0 sistema punitivo. A distancia social entre os apenados e'agueles que, aparentemente, obedecem as J~§ ~ecisiva para a forma<;:ao da imagem do criminoso, bern como para a interioriza<;:ao e efetivo cumprimento deste pa­

, p.<illde criminoso, sendo esta uma das funcoes -[!alvez a mais important~- nao declaradas da pena privativa de liberdade.

A prisB,9 praduz, hoje, urn setor de marginaliza<;:ao social e tern importantes filllcoes na manuten<;:ao e reprodu<;:~_~a formayao social capitalista. D~ seu papel n«!!ansforma<;:ao da massa indisciplinada de camponeses, expulsos do campo e separados dos meios de produ<;:3.o, em individuos adaptados a

, disciplina da fabrica, nos primordios do capitalism~(13) -matriz historica, que continua-condicionando sua existencia -a seu papel[egulador db mercado de trabalho (superexplora<;:ao dos egressos, efei tos na concorrencia com outros trabalhadoies e no pre<;:o da vendada for<;:a de trabalho, absor<;:ao do exercito industrial de reservi2J, a prisao tern" hoje, entre suas funs:~

(12) Myriam Mesquita Pugliese de Castro, Ciranda do Mcdo - controlee dontina~ao no cotidiano da prisao, in Revista USP, nQ 9, Sao Paulo, 1991, p. 58. (13)Sobre as origens da pena privativa de liberdade, consulte-se, espedalmente, Foucault, Vigiar e Punir, op. cit., D. Melossi eM. Pavarini, Carcely Fabrica - los origenes del sistema penitenciario, Mex,ico, Siglo XXI, 1980, e G. Rusche e 0, Kirchheimer, Punishment and Social Structure, New York, Russell & Russel, 1968.

II

,-

~. , I :1 I • l :i .'f".

D'e Crimes, Penas e Fantasias 185

reais, fi fornecimento de mao-de-obra para as atividades ligadas a circula<;:ao ilegal do capita!Jmao-de-obra cujo recrutamento se faz, preferencialmente, ~ a populasito criminalizada,[mpedidadeexercerqualquertrabalhohonesto, pelos mecanismos de rejei<;:ao, produzidos e incentivados pelas proprias agencias do sistema penaO

, ,Mas, e ~aquela construyiip e propagayiio da imagem do criminoso, do perigoso, do inimig6Jimagem fonnada basicamente arpartir do perfil dos apenados, selecionados..nas camada~. mais baixas emarginalizadas' da £<:>Q!da.«ao, ~ ~ exerce seu mais relevant~--p-apel na manut~11.<;:a9 e r~?_da formacao social capit~listliy ~ ~-~-'='-~--

Levando a identifica<;:ao das classes subaltemas como classes perigosas e a ocuJta«ao de condutas e fatos social­mente .r;nais danosos, leva, ainda, a separa<;:aodos apenados de suas proprias classes de origem, voltando-os contra elas e, ao J mesmo tempo, desviando a aten<;:ao dessas classes de seus II inimigos estruturais. (14) -,_= __ ._ __' ''----

Estes e outros mecanismos, ocultados pelas tradicionais teorias legitimadoras, mantem, por sobre a destrui<;:ao e 0

aniquilamento, por sobre 0 sofrimento inutil e a dor desper­di<;:ada das "penas perdidas", a prisao como, a monstruosa op<;:ao, de que falao Ministro ~andro Lins e Silva.

Vejam-se suas palavras:

"Prisao e de fato uma monstruosa op<;:ao. 0

(14) A este respeito, consulte-se Alessandro Baratta, Criminologia Critica y Critica del Derecho Penal, Mex,ico, Siglo XXI, 1986, ps. 19355.

Page 92: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

186 Maria Lucia Karam

cativeiro das cadeias perpetua-se ante a in­sensibilidade da maioria, como uma fonna ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, como sonharam~ nossos an­tepassados? Positivamente,jamaisse viual­guem sair de urn drcere melhor do que quando e:n.trou. Eo estigma da prisao? Quem da trabalho aoindividuo que cump~.pena por crime consideradograve? Os egressos do carcere estao sujeitos a uma outra terrivel condenayao: o"desemprego. Pior que tudo, sao atirados a uma obrigatoria ma~miliza­yao. (1.egalmente, dentro dosp~ar6es con­vencionaisnao podem viver ou sobreviveiJA sociedade que os enclausurou, sob 0 pretexto hipocrita de reinseri-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, ai . sim, de haver altemativa, 0 ex -condenado s6 tern uma soluyao:'LIDcorporar-se ao crime organizadQ]Nao e demais martelar: a cadeia fabrica delinqiientes, cuja quantidade cresce na medida e na proporyao em que for maior o numero de presos ou condenados.

Osfariseus de todos os matizes, naopoden" do deixar de reconhecer a evidencia dos maleficios da prisao, bradamque a pena tern carater intirnidativo e serve como retribuiyao do mal causado pelo infr'ator da nonna penal. o fator intirnidativo pode ser exercido por

. outras fonnas de puniyao, que nao a cadeia,

-'

" -

r··

D~ Crimes, Penas e Fantasias 187

e, quanta a retribuiyao, seria urn retorno a pena castigo, anticientifica, verdadeiro taliaopatrocina­do pelo Estado.» (15)

Entre as praticas reforyado.ras da.prisao. co.mo. centro. do. sistema punitivo, 0. tratamento dado. a einciOenCl'it o.cupa Iugar de destaque, sendo. urn o.s ato.res mais relevantes na prevalencia d;;' enc;:arceramento., no. processo. de deterio.rayiio.,

. na pro.duyao da irnagem e do. cumprimento do. papel de crirninoso..

A inclusao da reiterayao. deliVva entre as circunstancias que agravam a pena aplicavel c~ntradiz-se co.m a essencia da catego.ria em que se inclui:(nao. dizendo. respeito ao. fato da infrayao. exarninada, a reiterayao. delitiva nao. pode serenten­dida co.mo. circunstanciiJ que e uma particularidade, urn acidente, que aco.mpanha urn deterrninado fato. ou situayao..

Nenhuill·dos argumento.s, que procuram fundamentar a agravayao. da pe:n.a-peia reincidencia, resiste a urn exame de sua racionalidade, ja co.ntaminada po.r aquela co.ntradiyao. inicial.

[Qs que apo.ntam para a maio.r periculo.sidade do. reincidente incorrem em postulado.s do. chamado direito. penal de autor-;J . . .

estes sirn de perigo.sidade histo.ricamente demo.nstrada. Po.r o.utro lado, como mostra Zaffaroni, a periculo.sidade e urn juizo. fatico. e se se presume juris et de jure nao. co.nfigura,

(15) Evandro liDs e Silva, De Beccaria a Filippo Gramatica, in Sistema penal para 0 Terceiro Milenio, Rio de Janeiro, Ed. Revan, 1991, p. 40 .

('\

(I ( I (I (I ( I

1 (

(I 1

(

(I

( 1

( 1

( I

(I

( 1

(I

( I

( 1

( I

~ : ( 1

I (

(

(

\. \

\ , '.

\.

I.

"­(

\

Page 93: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

I

('

" r

188 , Maria Lucia Karam

como se pretende, uma "periculosidade presumida", mas siin uma "fic~ao de periculosidade." (16)

Os argumentos,' que giram em tomo do maior gKau de cllJ£abiIidll<le ou de uma maior decisao na vontade do autor reincidente,contradizem as proprias fmalidades, que seus defensores costum;!ffi atribuir Ii peE.a;@e, com 0 cumpriinento de uma pena anterior, se refor~ou a motiva~ao contniria Ii norma, 0 que sedemonstra e que aquela pena foi contraprodu­cente e criminalizant~o que toma urn paradoxo a insistencia nesta mesma rea~ao punitiva.

Outros argumentos, como 0 da dupla violacao normatiYa ou 0 da maior afeta~ao do aspecto subjetivo da seguran~a jurldica, tampouco conseguem disfar~ar seu artificialismo e, da'mesma forma que os del)1ais,§,ao podem se sobrepor ao fato incontestavel de que 0 agravamento da pena de urn delito, com base em urn outro deIito anteriormente praticado, pelo qual seu autor ja foi apenado, constitui uma evidente violil1;:ao" do principio de que ninguem pode ser julgado duas vezes pelo 'mesmo fato (non bis in idem).

Mas, em nossa legisla~ao, mais do que esta ,.irracional agravac;ao da pena sao as demais conseqiien~ atribuidas Ii reincidencia, os fatores primordiais na reafirma~ao da prisao como centro do sistema penal, reafirma~ao que se faz, na pnitica, inobstante 0 discurso, que na propria Exposi~ao de

. Motivos da Parte Geral do C6digo Penal, pretende reconhecer ' a "a~ao criminogena cada vez maior do carcere" e anunciar

(16) Eugenio Raul Zaffaroni, Manual de Derecho Penal - Parte General, Buenos Aires, Ediar, 5' ed., 1986, p. 716.

T . ~-

I

I

,.'jIo,

'. De Crimes, Penas e Fantasias 189

uma nova orientac;ao voltada para uma poIitica criminal, que restrinja a pena privativa de liberdade "aos casos de reconhe­cida necessidade". (17)

Impedindo a.substitui9io da: ~na privativ_~de Iib~L<lade..ou asuspe1!§.Qj;:_Qtldkion~1 de sua execuc;ao, no caso de rein­cidsn(;ia em crimes.de. tipos dolosos,. ao mesmo tempo que iinp0nQo 0 cUllrprimento daquela pena em regiine fec~, 0 - -,

simples fato da reincidencia deixa como unica e monstruosa-opc;ao 0 carcere.

Estes dispositivos de nossa legisla~ao talvez expliquem, peIo menos em parte, a presenc;a, nas prisoes do Estado do Rio de Janeiro, de uma maioria de condenados a penas inferiores a 7 anos, talvez ajudando a explicar tambem 0 fato de que cerca de urn quarto dos habitantes desl'as mesmas prisoes foram encarcerados unicamente pela pnitica de furto, delito cuja escassa lesividade so pode set negada por quem, assumi­damente, reconhec;a a protec;ao maxima da propriedade pri­vada, como objetivo da lei penal. (18)

Os dados do Censo Penitenciario do Estado do Rio 'de Janeiro revelam )1ma outra pnitica reforc;adora da prisao como centro do sistema punitivo. Realizado quase quatro anos depois da entrada' em vigor da nova Parte Geral do C6digo Penal, que, ao disciplinar os regimes de cumprimento da pena . privativa de liberdade, alargou as possibilidades deincidencia

(17) Lei n2 7.209/84 - Exposiyao de Motivos, item 26. (18) Os dados constarn do Censo Penitencilirio do Estado do Rio de Janeiro,

,realizado pela Secretaria de Estado de Justic;a, ern seternbro de 1988: 56,98.% dos presos receberam condenayoes a penas inferiores a 7 anos; entre 8.672 presos, 2.050 cumpriarn pena pela pratica de furto;

Page 94: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

190 Maria Lucia Karam

dos regimes aberto e semi-aberto, 0 Censo Penitenchirio demonstra uma clara resisteneia das ageneias judiciais a estes regimes mais brandos, a fazer da imposiyao do regime fechado . a regra: nao obstante a .conStatayao da presenya de 46,58% de apenados primarios e da ja referida maioria de condenayoes inferiores a 7 anos, 85, 33% da populayao carceraria do Esta­do do Rio de Janeiro cumpria suas penas em regime fechado, cuja maiornoeividade na afrrmayao do encarceramento, da

. deteriorayao ~ do estigma e evidente.

A esta tendeneia, que ja se verificava na pratica das agencias judieiais, veio se somar a tendeneia legislativa, que, acompanhando as campanhas'de lei e ordem e as manipu­

.layoes dos sentimentos de inseguranya e medo, produziu aLei nQ 8.072{90 (a chamada lei dos crimes hediondos) e, com ela, dispositivo estabelecendo, para os crimes ali referidos, 0

cumprimento integral da pena em regime fechado.

Sobrepondo-se ao principio da individualizayao da pena, garantido em norma cOnStitucional, tal dispositivo, entretan­to, nao provocou maiores questionamentos. Nossa legislayao nao deixa duvida de que a determinayao do regime inieial de cumprimento da pena privativa de liberdade e um dos aspectos do principio individualizador, remetendo-a as mesmas cir­cunstiineias que impoe se jam consideradas no estabeleeimen­to da natureza e da quantidade da pena aplicavel ao condena­do. Mas, se ainda houvesse alguma duvida, a Exposiyao de Motivos da Parte Geral do C6digo Perial a esclare­ceria, dizendo-se ali, textualmente, que ;'cabe ao juiz fixar 0

regime inicial de cumprimento da perra privativa de liberdade, fator indispensavel da individualizayao que se completara no

1 1

l

'"t'

De Crimes, Penas e Fantasias 191

curso do procedimento execut6rio". (19)

E, elevado 0 principio da individualizayao da pena ao patamar de garantia constitueional, tampouco poderia haver duvida da inconstitueionalidade de dispositivo legal, que, vedando a possibilidade de estabelecimento inieial e/ou pro­gressao . para outros regimes que nao 0 fechado, veda a considerayaode um dos fatores indispensaveis a concretiza-

. yao daquele principio.

Na mesma linha de desrespeito a principios garantidores e normas constitueionais, para afirmayao do encarceramento, da deteriorayao e do estigma, outra tendencia aponta para 0

emprego abusivo da prisao provis6ria. Tambem neste caso, a prlitica das agencias judieiais se reproduziu na mesma "hedi­onda" Lei nQ 8.072/90, (20) que veda a concessao de liberdade provis6ria aos presos em flagriineia referente aos delitos ali mencionados.

A prisao provis6ria, determinada pela natureza, ou pela suposta gravidade, do delito atribuido ao indieiado ou proces­sado, nao se compatibiliza com 0 principio - tambem, entre nos, elevado ao patamar de garantia constitueional - da chamada "presunyao de inocencia".

o encarceramento anterior ao julgamento e medida,mais do que qualquer outra, de carater excepeional. A legalidade processual remete tal medida a criterios evidenciadores de

(19) Lei nQ 7.209/84· Exposiyiio d~'Motivos, item 50. (20) A Lei nO, 8.072/90 foi assim apeJidada pe10 Prof. Tourinho Fillio, em conferencia proferida na abertura do Simp6sio de Direito Penal e Direito Processual Penal: Reflexos Constitucionais, Inovayoes e Tendencias, realizado no Rio de Janeiro, em nov. de 1990, pelo Instituto de Estudos Juridicos.

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

l

\

\. (

(

(

\.

\ \,

(,

I.,

\.

\. \,

Page 95: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

192 Maria Lucia Karnm

que a pennanencia do indiciado ou processado em liberdade constituiria ameaya para 0 nonnal desenvolvirnento do pro­cesso ou para a eventual aplicayao futura da pena, nada tendo aver, portanto, com a natureza do delito atribuido, cuja efetiva ocorrencia so podera passar do terreno dashipoteses para. 0

plano do concreto, quando da cogniyao defmitiva do merito, a ser feita no momento da sentenya.

A prisao provis6ria, deterrninada pela natureza, ou suposta gravidade, do delito atribuido ao indiciado ou processado, viola a legalidade processual, a nonna constitucional e princi-

I piqs de urn direito garantidor, constituindo-se numa verdadei­ra antecipayao da pena, numa condenayao imposta sem pro­cesso e sem julgamento .

. \ No entanto, a tendencia ao emprego abusivo da prisao L _PfOvis6ria predomina e se acentua, acentuando igualmente a

earga deteriorante e criminalizante da reayao punitiva, carga esta provocada, nao s6 pela irnposiyao fonnal da pena, mas a partir do simples contato com 0 sistema penal.

A reayao punitiva, como 0 estilo unico de controle de situayoes problematicas ou conflitivas - conseqiiencia da intervenyao do sistem<j. penal - ja se mostrou inid6nea para solucionar tais situayoes,ja demonstrou ser aquele sofrimento orfao de racicinalidade, de que fala Zaffaroni.

Uma atitude mais racional e mais humana apori'h para caminhos outros que nao os de penas e prisoes. Uma atitude

. mais racional e mais humana aponta para respostas e para estilos, que favoreyam nao os interesse~ de manutenyao e -reproduyao de sistemas desiguais e perversos, mas que sirn pennitam a libertayao e a emancipayao do homem.

A fantasia do sistema penal

I t-e; '; l'H:~k UC ,,~~,J'::" ~ ii.~.<i.J ,~'jU t. 1:.. ~

:LI. ftu\!]w110 "-J(:)H't~.l 61@ .QOUllC \:., l.-" j- •

a !IUd ~ 11'J! ~ o@)

Page 96: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

i

-A FANTASIA DO SISTEMA PENAL

~ O£6digo dej?efesa doSonsumidor (Lei nQ 8.078/90) traz, entre seus dispositivos, algumas regras, que, facilmente, poderiam se aplicar ao sistema penal.

Ao tratar da publicidade, na Sevao III do Capitulo V do Titulo I, es~belece 0 seguinte:

Art. 37 - E proibida toda publicidade enganosa ou ,abusiva.

Panigr~fo 1 Q -E enganosa qualquermodalidade de informa­

vao ou comunica9ao de caniter publicitirio, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissao, capaz de induzir emerro 0 consumidor a respeito da natureza, caracteristicas, qualidade, quanti dade, propriedades, origem, pre90 e quaisquer' outros dados sobre produtos e serv19os.

Paragrafo 2Q -E abusiva, dentre outras, a publicidade dis­criminat6ria de qualquer natureza, a que, incite Ii violencia, explore 0 medo ou. a

~

(' 1

(' 1

(

( ( I

(I

(' 1

(I

('

(I

(I

!

(

(I

(I

( I

~: (

I 1'1

~I 1

(I

II C

1

\1 \

1

1.1 i.

1

\.'1

II

\ \.

1

I.

Page 97: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

196 Maria L "cia lrnram

supersti9ao, se aproveite da deficiencia de julgamento e experiencia da crian9a, desrespeite valores ambientais ou que seja capaz de induzir 0 consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigo­sa it sua saude ou seguran9a.

Panigrafo.32 - Para os efeitos deste Codigo, al'ublicidac:le e enganosa por omissao quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serv19o.

Mais adiante, 0 mesmo Codigo traz todo urn Titulo dedi­cado a materia penal, criminalizando condutas, entre as quais, no art. 67, a publicidade en anosaOliabu . -:--

. ------Esta criminaliza9ao da publicidade enganosa ou abusiva

encerra um.ironico £aradoxo: na verdade, aE?aiseficaz e' j'ierversa venda de urn produto, atraves da omissao dedados essenciais e da divulga9ao de informa90es, inteira ou parcialmente falsas, capazes de induzir em-erro a respeitci da natureza, caracteristicas, qualidade, origens, propriedades, etc., ou deincitar it violencia eexploraromedo,e, exatamente, a "venda"do sistema penal.

Anunciado como 0 "produto" destinado a fomecer segu­r<:t!\ClLe tranqiiiIidade a p'opulac;aQ, atraves da p~dos' autores de condutas, que a lei define como crimes, sua propaganda apresenta a ideia de que violencia e igual a crime, mediante a utiliza9ao de alguns fatos que·comovem e assustam o conjunto da sociedade, especialmente roubos, estupros, seqiiestros, ou, emmenor intensidade, homicidios,( 0 homicidio

i

'Ji

J I

I.

De Crin1es, Penas e Fantasias 197

nao costuma ser visto como urn crime tao grave; a Lei nQ 8.072/90, por exemplo, ao estabelecer quais seriam os crimes hediondos, neles nao inclui 0 homicidio: matar alguem nem sempre e alguma coisa companivel a umseqiiestro, a urn estupro ou aci tnifico de drogas, sendo-o, naturalmente, quando acompanha urn roubo ou uma extcirsao, ou seja, algum ataque it propriedade privada).

. A falsa ideia,1.9ue reduz violencia a criminalidade convencional, come9a por ocultar 0 carater violento de outros fatos mais danososl Partindo-se de urn conceito extraido do real, e possivel cfefinir violencia como todo atentado it sobrevivencia biologica, espiritual e cultural da especie humana, sendo, certamente, os mais graves destes atentados aqueles que afetam a conserva9ao da vida e da integridade corporal.

f!jver e conservar a integridade corporal, no Brasil, signi­fica, antes de tudo, escapar da mortaIidade infantij}o menor indice, que conseguimos registrar, e 0 de 4~bitos por 1.000 nascidos vivos, na regiao suI - dobro dos indices registrados nos paises centrais ou em Cuba),' da subnutris:ao (30% das crian9as ate 5 anos, em nosso pais, sofrem de desnutri9ao), do sem numero de doei1s:as ja controladas em outros pai~( aqui, morre-se ate de sarampo), das precarias condic;6es de habitagio e saneamento (menos da metade dos municipios brasileiros possui rede coletora de esgotos),enfim'Fcapar da po5reza-e'\

Cia miseria cr6~

Mas, mesma quan~ l:§.e . cansideram martes e lesoes carparais, pravocadas por causas extemas, onde se incluiriam

Page 98: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

198 Maria Lucia Karam

as resultantes de roubos, seqiiestros, estupros e homicidios dolosos)verifica-sequenaosaoestesprodutosdacriminalidade convencional os fatos deplaior peso, sendo sim o trans ito 0

responsavel pelo maior numero de mort~s (estimadas em?O mil por ano, 0 que corresponde a urn teryo do total de mqrtes por causas -extemas) e de danos corporais (estimados em numero tres vezes superior ao de mortes).

Ocultando 0 carater violento destes' e de outros fatos qualitativa e quantitativamente mais danosos, a publicidade do sistema penal, trabalhando com esta falsa ideia que reduz v10lencia a criminalidade convencional,Cexplora 0 _ medo, criando urn c1ims. de panico, de alarme social, a que costuma se seguir urn crescimento da demanda de mais repressao, de maior ayao policial, de penas mais rigorosaiJc1ima este que desencadeia e e alimentado pelas chamadas campanhas de lei e ordem.

Tais campanhas @anipulam emoyoes, selecionando e propagandeando alguns crimes mais crueis, para, assim, produzir e generalizar uma indignayao moral contra os que sao identificados como criminosoiJAo mesmo tempo,atemorizam a populayao, fazendo com que esta perceba comoamea~ maior a sua seguranva, como perigo maior de mortes e danos corporais, a ayao 'de estupradores, seqiiestrador~s _ e, principalmente, assaltantes.,

~ Aqui, alem da ocultayao daqueles outros perigos e ameayas ! objetivamente maiores, como os do transito, Qmitem-sedados,

f cgmo 01i.que revelam que roubos, com: resultado morte o~_, ~~s corpot,ais graves, representam;'em media, apenas 5 ~

I ! I­I •

r

t

"

De Crimes, Penas e Fantasias 199

6% do total de roubos cOnhecidos, conforme se pode verificar nas estatisticas da Divisao de Distribuiyao -do Tribunal de J ustiya do Estad6 do Rio de Janeiro, sendo tais dados referentes a capital, centro onde tais crimes acontecem com maior freqiiencia.

Para a efidcia desta f:ibrica da realidade, como!Zaffaroni J denomina os aparelhos de propaganda do sistema penal, e decisivo 0 papel desempenhado pelos meios massivos de inforrnayao, como, alias, acontece com a publici dade criadora de necessidades artificiais de consumo de outros produtos e servlYos.

Nas sociedades atuais, a apreensaci da realidade se faz, cada vez mais, atraves dos meios massivos: as experiencias diretas da realidade cedem espayo e passam a ser experiencias do espetaculo da realidade, qlle e passado pelos meios massivos de informayao, da mesma forma que a pr6pria comunicayao entre as pessoas se refere muito mais as experiencias apreendidas atraves do espetaculo do que as experiencias vividas.

Em situayoes, em que se manifesta uma homogeneidade de­comportamentos e significados, alcanyando a maioria dos agentes, a exceyao de urn unico grupo visto como desviado, como ocorre com a ideia de criminalidade (0 criminoso e sempre considerado como 0 "~UtrO"), 0 poder de influencia dos meios massivos de inforrnayao e ainda maior, alimentan­do-se das atitudes homogeneas pre-existentes, para reforya­las e ativa-Ias, oferecendo urn elemento de agregayao e de consenso, que facilitara a produyao de uma falsa imagem

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

\ (

(

(

(

(

(

\. \.

\. (

\.

l (

(

\..

Page 99: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

200 Maria Lucia Karam

da realidade, bern como sua aceitac;:ao e introje9ao.

o aumento do eS,Eaco dado it divulgacao de crimes aGOnle­cidos e sua dramatizaca6U,em como a publicidade excessiva e concentradaem casos de maior crueldad~aproximamtais fatos das pessoa~, que passam a ve-Ios como acontecendo eEl intensidade maior do que a efetivamente existent~na reali­dade. Poroutro Iado,da-se uma quase automliticaassociac;:ao dos casos mais crueis e assustadores com a generalidade das condutas definidas como crimes.

Estatisticas sao divulgadas, ~em que se aponte 0 fato de que a mensurac;:ao da crirninalidade e oe impossivel re!rliza­c;:ao, na medida emEiue 0 numero de crimes nao conhecidos e infrnitamente superior ao de crimes registrados, 0 que impede uma afirmac;:ao real sobre 0 aumento ou a diminuic;:ao dos crimes efetivamente acontecidoD Criam-se tambem crenc;:as, que sao prontamente assimiladas, sem quaisquer questionamentos. Ha tempos que se afirma, por exemplo, que a maioria dos habitantes do Rio de Janeiro ja foi vitima de, no minimo, urn roubo. Entretanto, pesquisa realizada pelo Ibope, no Grande Rio, em julho de 1990 - e, naturalmente, pouco divulgada - cantem a informac;:a@ de que 62 % dos entrevista­dos responderam que nunca tinham sido assaltados.

Manipulando dados distorcidos e,ocultando outrqs,LdlvUl­ga~, assim, sem bases reais, a ideia de urn aumento descon­trolado da criminalidade convencional, fortalecendo a crenc;:a no crescimento do perigo e da ameac;:a e estimulando os sentimentos de medo e inseguranc;:a.

Esta publicidade enganosa cria 0 fantasma da crirninaJi-

I

I j ,

, .,

~

De Crimes, Penas e Fantasias 201

~e, para, em seguida,tvender" a ideia da intervenc;:ao do sistema penal, como a altemativa unicgcomo a forma de se conseguir a tao almejada seguranc;:a, fazendo crer que, com a reac;:ao punitiva, todos os problemas estarao sendo soluciona­dos.

[]:te mesmo setores mais conscientes e progressistas cos­tumam Se deixar seduzir por esta ilus6ria soluc;:a<il apenas reivindicando maior igualdade, mais repressao penal aos atentados ao meio ambiente 'ou it criminalidade economica, talvez satisfeitos com a criminalizac;:ao .de novas condutas, trazida pelo C6digo de Defesa do Consumidor.

Como diz 0 Prof. Norberto Spolansky, ha uma Vlsao "in genua e magicibLSegundo a qual, com 0 Direito Penal, se pode resolver todo tipo de problema, desde a protec;:ao da vida ate a soluc;:ao da inflac;:aoJ. (in 0 Delito de Posse de Entorpe­centes' e as Ac;:5es Privadas dos Homens, Cadernos de Advocacia Criminal, vol. 1, Porto Alegm, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 102).

Esta visao in genua e magica comec;:a esguecendo~e, na realidade,J§ sistema, penal s6 opera em urn numero reduzidis-

. simo de casosJao mesmo tempo em que e anunciado, sempre com grande estardalha~o, 0 esclarecimento de urn ou outro crime de maior repercussao, fazendo com que a populac;:ao imediatamente se sinta mais segura, ao ver na prisao todos ou alguns dos envolvidos, uma quantidade infinita de outros crimes permanece desconhecida ou impu~. Basta pensar, por exemplo, que, num pais como 0 Brasil, onde esciindalos na Adrninistrac;:ao Publica sao quase uma rotina, sao rarissimos'

Page 100: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

202 Maria Lucia Karam

os casos de pessoas processadas, condenadasou presas, por peculato ou corrup.yao (0 Censo Penitenchirio do Estado do

. Rio de Janeiro, realizado em setembro de 1988, encontrou 9 presos por peculato e 3 por corrup.yao passiva).

E a impunidade nao acqntece apenas por questoes conjun­turais ou por deficiencias operacionais.~sele.yao de crimino­sos e uma.caracteristica inerente ao sistema penapO ,sistema,. penal nao' se destina a punir todas as pessoas ql'le cometem crimes e nem poderia fazeclo sob ena de' rocessar e unir, por varias vezes, toda a populas:ao. ~

Quem poderia dizer que nunca cometeu um crime: um pequeno furto, um atestado medico falso, um jeitinho para pagar menos imposto de renda (ou seja, uma sonega.yao fiscal), uma propina para 0 guarda, ou, pelo menos, um adulterio ... ? Fosse efetivamente cumprida a lei penal, para que se punissem todos os casos em que se desse sua viola.yao, praticamente nao haveria ninguem que nao fosse varias vezes processado e punido, tendo-se que propor comoconseqiien­

. cia, tao logica quanta absurda, al.!fansforrna.yao da sociedade em um imenso presidio, 0 que tambem nao funcionaria,pois dificilmente sobraria alguem para julgar, ou para exercer a fun.yao de carcereircQ

Ora, se uma grande quantidade de fatos, teoricamente merecedores de que a eles se aplicasse a lei penal, deve necessariamente ficar de fora da_in~rven.yao do sistema penal, sob pena de se provocar aquela absurda conseqiiencia de punir, por varias vezes, praticamente tocia a popula.yao, nao ha como negar que 0 sistema penal e consttuido para funcion3ir

1 , :1 ,1

r

1--

q

.('<

De Crimes, Penas e Fantasias 203

apenas marginalme!!-!e,[!endo na excepcionalidade de sua atua.yao e, portanto, na ineficacia, sua propria condi.yao de existenci0

Neste ponto,se poderia levantar a questiio de que nein mesmo a maxima maquiavelica do fimque j ustifica os meios . poderia ser aplicada, para sustentar a defesa do sistema penal.

Ainda que se aceitasse que. sell f1m fosse, como diz it publicidade, fornecer seguran.ya e tranquilidade a popula.yao, atraves do combate a violencia, sendo, assim, um fim jus­tific<ivel, a etica dos resultados, que acompanha aquela maxi­ma, nao estaria sendo obedecida, na medida'em que, para ser considerado justificado, 0 fim ha que ser passivel de ser alcan.yado com uma certa probabilidade, 0 que nao ocorreria aqui, seja por este alcance necessariamente reduzido do sistema penal no controle da pratica de condutas definidas como crimes, seja pelo fato anteriormente apontado de que violencias quantitativa e qualitativamente mais expressivas se localizam em outros campos nao·criminalizados. .

Mas, mais do que a inefic<icia e a impossibilidade de curnprimento do fim anunciado, a atua.yao excepcionalI!>ase­ada na sele.yao arbitraria de um ou outro autor de condutas definidas como crimeS, para que, sendo pres~, processado ou condenado, seja identificado e, assim, passe a desempenhar 0

papel de criminoso, enquanto os demais seguem desempe­nhando seus papeis de cidadaos respeitadores das leiQ~­monstra a injusti.y~CJue e da essenc~ do sis.!e.Illl!..p.~nal.

'IndG&es-¥.alcu:es ou principios, que costumam fundamen-~ .~-----.,

tar---a i~rven"ao do sistema penal, sendo propagandeados ---

(

(-

(

(

(

(

(

(

(

(

(

( (

(

( I ( I ( I

I ( I ( I \ I ( 1

( (I .1

( I

(

C.

I,

I (

l.

I

I ..

\.

\.

Page 101: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

204 Maria Lucia Karam

como propriedades de tal "produto" anunciado -fj igualda:de perante a lei, a seguran«a, a pUn1«ao do criminoso como realiza«ao da justi«ru- desmoronam, diante desta sua aplicac;;ao ~letiva - e; portanto, injusta - a urn numero minimo de violadores da lei.

Mas, alem disso, isolando, estigmatizando!, ainda subme­tendo aquelesque seleciona ao inutil e desumano sofrimen~o da prisao, b sistema penal ~ destes selecionados[pessoas

UmaiS desadaptadas ao convivio social e, conseqiientemente, mais aptas a cometer novos crimes e agressoes a sociedade, funcionando, ja por isso, como urn alimentador da violencia" o que faz da demanda de maior repressao penal uma atitude urn tanto sadomasoquista.

lL\ ideia de pena, de afasiamento do convivio social, de puni«ao, baseia-se no maniqueismo simplista, que divide as pessoas entre boas e mas) fazendo com que 0 papel de

. criminoso seja tambem 0 papel do "mau", do "~Utro", do anormal, distinto das demais pessoas, pertencente a U1l)a especie aparte.

Esta visao incentiva e justifica, desde aberra«oes, como a defesa da 6ficializa«ao de puni«oes crueis e desumanas, como a pyna de morte; ate a pratica dos mais perversos crimes, como o sistematico exterminio de criafi«as e adolescentes, vistos

J como possiveis futuros criminosos.

Ha uma reflexao.,ge urn poeta alemao, Hans Magnus ) Enzensberger, que ajuda a compreender esta questiio:

) , "Para 0 individuo, a condena«ao de urn outro _ •• 0

j

c: ... ,

~·4 -

',»-

, .f". I

De Crimes, Penas e Fantasias 205

de modo geral urn criminoso e sempre considerado como este "outro" - equivale a uma presta9iio de contas. Quando se e culpado, se e castigado. Portanto, quando nao se e castigado, se e inocente. Asatisfa«ao . com que acoletividade obs.erva a procUIa de urn prisioneiro que fugiu esta cheia de ensinamentos. De repente, £~imos em metaforas tomadas de empresti­mo da iinguagem usada pelos ca«adores. 0 criminoso e urn animal selvagem que temos permissao para abater; atraves de urn plebiscito, chegariamos sempre a uma extensao do costume - de resto inqualificavel - que tern a policia de atirar ao menor pretexto. 0 desejo da pena de morte e tambem muito popular; especialmente depois da descoberta de pretensos atentados aos costumes, que contem uma enorme for«a publicitaria e por ocasiao dos quais vemos este desejo inchar em ondas de histeria. A tendencia a transformar 0 criminoso em bode expiatorio remonta . a mais distante antigiiidade; mas, nas atuais circuns­tiincias, ela aparece com maior nitidez do que nunca. Quanto mais aumenta a culpabilidade coletiva, mais seus encadeamentos sao difusos, mais anonirnas·e invisiveis as suasfontes, mais se torna urgente levar o peso a individuos isolados e facilmente reco­nheciveis." (Reflexoes diante de uma vitrine, in Revista USP, nQ 9, Sao Paulo, 1991, ps. 18/19).

Produ~~.1!.Y, neste campo, urn processo semelhanteC.ao que alimenta a repressao politica das diotaduras] em que a maioria da popula«ao convive, e pouco informada e faz questiio de desconhecer as atrocidades cometidas contra inimigos do

Page 102: De Crimes, Penas e Fantasias - Maria Lúcia Karam

206 Maria Lucia Karam

regime, apresentados como perigosos" estranhos e distantes.' ideia de que algo precisa ser feito para manter a ordem, que

acaba por admitir todo.tipo de violencia - da tortura ao exterminio - contra os dissidentes, igualmente alimenta a repressao a criminalidade convencional, nas democracias mais ou menos reais, provocando e permitindo crimes e violencias ol!tras, maiores do que as que se diz pretender combater.

A seleyao dos que vao desempenhar 0 papei de criminoso, de mau, de inirnigo - os bodes expiat6rios - naturalmente, tambem obedece a regra basica da sociedade capitalista, ou

, seja, a desigualdade na distribuiyao de bens. Como se trata aqui da distribuiyao dB urn atributo negativo, os escolhidos para receber toda a carga de estigma, de injustiya e de violencia, direta ou indiretamente provocada pelo sistema penal, sao preferencial e necessariamente os membros das classes subaltemas, fato facilmente constatavel, no Brasil, bastando olhar para quem esta pres~ ou para quem e vitima dos grupos de exterminio. Mas, mesmo nos Estados do bem­estar social, onde as desigualdades nao sao tao ,acentuadas como aqui, a ayao do sistema penal tambem segue a regra pasicado capitalismo: nos Paises Baixos, por exemplo, como relata Hulsman, constatou-se que, na categoria desfavorecida, representando 35 % da populayao, 1 horriem em cada' 5 esteve

,na prisao, enquanto na categoria favorecida, representando 15% da populayao, a proporyao era de 1homem a cada 70.

Esta desigualdade, tao facilmente constatavel, e, no entan­to, encoberta por uma publicidade tao enganosa e eficaz, que, apesar disto, consegue "vender" a ideia da soluyaopenal como

"i'

<"(,

De Crimes, Penas e Fantasias 207

alguma coisa desejavel, ate mesmo para os setores mais conscientes e progressistas, que, como anteriormente mencionado, costumam s.e lirnitar a ilus6ria reivindicayao de maior repressao a cririlinalidade economica, esquecidos da . imunidade dos poderosos, invulneraveis' a ayao do sistema penal, exceto em pouquissimos casos; em que conflitos entre os setores hegemonicos permitem a retirada da cobertura de inVlilnerabiliOa<1e e 0 sacrificio de urn ou outro membra das . classes dominantes, que colida com 0 poder maior, a que ja nao sirva.

Mas, onde a efidcia publicitaria do sistema penal se manifesta mais forte e perversamente e em sua atuacao sobre as classes subaltemas, que,@esejando a soluyao penal, nao percebem que sao elas pr6prias as vitimas preferenciais daquela carga de estigma, injustiya e violencia; que, levadas . a aplaudir a soluyao extrema da pena de morte Qficializada ou extra-ofioial, nao percebem que estao assinando suas pr6prias sentenyas de morte]

(/Pazendo acreditar na fantasia deuma falsa soluyao, que, alem de ineficaz e inutil, causa sofrimentos desnecessarios,

; seletiva e desigualmente distribuidos, provocando, ainda, urn enorme volume de violencia, sob a forma de deteriorayao moral, privayao de liberdade e morte, 0 sistema penal pode­ria, facilmente, se enquadrar entre os produtos e serviyos potencialmente nocivos ou perigosos, cuja publicidade enganosa ou abusiva se .pretende proibir, atraves da parado­xal criayao de novos crimes, por uma lei penal, que, assim, contraria a si mesma.

(

(

\ (

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(

(,

l

(

l

"­~

l