Filosofia No Direito André Karam (1) TTese de Mestrado

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS CENTRO DE CIÊNCIAS J URÍDICAS E SOCIAIS P ROGRAMA DE PÓS -G RADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO ANDRÉ KARAM TRINDADE A FILOSOFIA  NO DIREITO:  COM GADAMER,  CONTRA HABERMAS, À PROCURA  DE  UM  PARADIGMA  DE  RACIONALIDADE  A PARTIR  DO  QUAL  SEJA  POSSÍVEL  PENSAR  PÓS-METAFISICAMENTE  A TEORIA DO  DIREITO CONTEMPORÂNEO P ROF .  D R .  L ENIO L UIZ S TRECK  ORIENTADOR S ÃO L EOPOLDO  2006

Transcript of Filosofia No Direito André Karam (1) TTese de Mestrado

  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    MESTRADO EM DIREITO

    ANDR KARAM TRINDADE

    A FILOSOFIA NO DIREITO: COM GADAMER, CONTRA HABERMAS,

    PROCURA DE UM PARADIGMA DE RACIONALIDADE A PARTIR

    DO QUAL SEJA POSSVEL PENSAR PS-METAFISICAMENTE

    A TEORIA DO DIREITO CONTEMPORNEO

    PROF. DR. LENIO LUIZ STRECK

    ORIENTADOR

    SO LEOPOLDO

    2006

  • ANDR KARAM TRINDADE

    A FILOSOFIA NO DIREITO: COM GADAMER, CONTRA HABERMAS,

    PROCURA DE UM PARADIGMA DE RACIONALIDADE A PARTIR

    DO QUAL SEJA POSSVEL PENSAR PS-METAFISICAMENTE

    A TEORIA DO DIREITO CONTEMPORNEO

    Dissertao de Mestrado apresen-tada junto ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), para obteno do ttulo de Mestre em Direito Pblico.

    Orientador: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck

    So Leopoldo, 5 de dezembro de 2006.

  • Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos

    Catalogao na Publicao: Bibliotecrio Vladimir Luciano Pinto - CRB 10/1112

    T833f Trindade, Andr Karam A filosofia no direito : com Gadamer, contra Habermas, procura de um paradigma de racionalidade a partir do qual seja possvel pensar ps-metafisicamente a teoria do direito contemporneo. / por Andr Karam Trindade. 2006. 351 f. ; 30cm.

    Dissertao (mestrado) Universidade do Vale do Rio dos

    Sinos, Programa de Ps-Graduao em Direito, 2006.

    Orientao: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, Cincias

    Jurdicas.

    1. Direito - Teoria. 2. Direito - Filosofia. 3. Direito -

  • Ao meu pai, que logo no incio me alertou

    das angstias que o direito me traria, por

    deixar que eu percorresse os mesmos desa-

    fios, porm atravs do meu prprio caminho;

    minha me, pelo apoio incondicional ao

    longo deste difcil semestre, mas, sobretudo,

    por proporcionar as condies de possibi-

    lidade para o desenvolvimento do trabalho;

    Elise, Laetitia e Lusa, minhas irms, na es-

    perana de que, um dia, compreendam e per-

    doem mais uma ausncia; afinal de contas,

    em alguma medida, somos como nossos pais;

    Betiuska, ria transcendental;

    queles que acreditam ser possvel pensar

    e fazer o direito de um modo diferente e

    lutam por isso, todos os dias, incansavel-

    mente, nas salas de aula e nos tribunais.

  • Meus mais sinceros agradecimentos:

    Ao Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, orientador

    dessa dissertao, pela adoo e confiana

    sempre depositada em mim;

    Aos Professores deste PPGD, em especial ao

    Prof. Dr. Jos Luis Bolzan de Morais, pela

    inestimvel amizade e constante aprendizado;

    Ao Prof. Dr. Ernildo Stein, pai filosfico de

    todos ns, por nos cuidar nos caminhos e

    armadilhas da floresta;

    Aos Membros do Instituto de Hermenutica

    Jurdica (IHJ), em especial ao Conselheiro Al-

    fredo Copetti Neto, pela diria convivncia;

    Dbora Fanton, pesquisadora do Instituto

    de Hermenutica Jurdica, pelo apoio logs-

    tico e pela ateno sempre dispensada;

    Coordenao de Aperfeioamento de Pes-

    soal de Nvel Superior (CAPES), pelo aux-

    lio sem o qual isso tudo no seria possvel.

  • Yo soy yo y mis circunstancias

    (Ortega y Gasset)

  • RESUMO

    O presente estudo trata dos problemas filosficos conexos teoria direito

    contempornea. Para tanto, apresenta a filosofia no direito, e no do direito,

    como o locus privilegiado em que se coloca e se pensa a trplice questo como

    se interpreta, como se aplica e como se fundamenta , inerente a qualquer teoria

    do direito que pretenda ser contempornea e/ou ps-metafsica. Analisa, em

    seguida, a decadncia do positivismo jurdico e a premente necessidade de

    teorizao do neoconstitucionalismo. Foca-se, ento, na pretenso habermasiana

    de construir uma teoria discursiva do direito capaz de superar as insuficincias

    atreladas ao paradigma da filosofia da conscincia. Procura, por fim,

    desenvolver algumas das crticas hermenuticas teoria procedimental, com

    base sobretudo em Gadamer, na tentativa de resgatar as condies de

    possibilidade para a elaborao de uma teoria jurdica contempornea, isto ,

    uma teoria do direito ps-positivista e ps-metafsica.

    PALAVRAS-CHAVES: filosofia no direito teoria do direito positivismo jurdico

    metafsica interpretao aplicao fundamentao ps-positivismo Ps-

    metafsica teoria do discurso argumentao Habermas hermenutica

    filosfica compreenso Gadamer validade do direito.

  • RIASSUNTO

    Questo studio tratta dei problemi filosofici connessi alla teoria del diritto

    contemporanea. Per tanto, presenta la filosofia nel diritto, e non del diritto, come

    il locus privilegiato in che si mette e si e si pensa la triplice questione come si

    interpreta, come si applica, come si fondamenta inerente a qualche teoria del

    diritto che pretende essere contemporanea oppure postmetafisica. Analizza, in

    seguita, la decadenza del positivsmo giuridico e la incalzante necessita della

    teorizzazione del neocostituzionalismo. Focaliza, doppo, la pretenzione

    habermasiana di costruire una teoria discorsiva del diritto capace di superare le

    insufficienze collegate al paradigma della filosofia della coscienza. Cerca, per

    fine, sviluppare alcuni critiche ermeneutiche alla teoria procedimentale, con base

    soprattutto in Gadamer, nel tentativo di riscattare le condizione di possibilit

    per le elaborazione di una teoria giuridica contemporanea, cio, una teoria del

    diritto postpositivista e postmetafisica.

    PAROLE CHIAVI: filosofia nel diritto teoria del diritto positivismo giuridico

    metafisica interpretazione applicazione fondamentazione postpositivismo

    postmetafisica teoria del discorso argomentazione Habermas ermeneutica

    filosofica compresione Gadamer validit del diritto.

  • SUMRIO

    CONSIDERAES PRELIMINARES ......................................................................... 11

    CAPTULO 1 A FILOSOFIA NO DIREITO OU O LOCUS DA TRPLICE QUESTO: ENTRE A DECADNCIA DO POSITIVISMO JURDICO E A TEORIZAO DO NEOCONSTITUCIONALISMO INTRODUO .................. 17

    1.1 POR QUE A FILOSOFIA NO DIREITO? ........................................................ 18

    1.2 O POSITIVISMO JURDICO E O MODO METAFSICO DE PENSAR O DIREITO E LIDAR COM A TRPLICE QUESTO DA TEORIA DO DIREITO CONTEMPORNEO ...................................................................... 27

    1.2.1 A questo da interpretao: o modus interpretandi no interior do paradigma epistemolgico da filosofia da conscincia ................................. 47

    1.2.1.1 O processo de (re)produo do sentido jurdico entre a voluntas legis e a voluntas legislatoris ............................................................................................ 49

    1.2.1.2 A teoria geral da interpretao de Betti ........................................................... 51

    1.2.1.3 A hermenutica como mtodo(logia) ............................................................... 57

    1.2.2 A questo da aplicao: entre o mecanismo e o decisionismo judicial ........ 60

    1.2.2.1 Entre a subsuno das regras nos casos fceis e a ponderao dos princpios dos casos difceis .............................................................................................. 61

    1.2.2.2 A irresponsabilidade judicial como resultado da subsuno .......................... 66

    1.2.2.3 A discricionariedade judicial como resultado da ponderao ........................ 68

    1.2.3 A questo da fundamentao: de onde vem e/ou at onde vai a validade do direito ............................................................................................................... 73

    1.2.3.1 Kelsen e a norma fundamental ......................................................................... 74

    1.2.3.2 Bobbio e o poder constituinte .......................................................................... 78

    1.2.3.3 Hart e a regra de reconhecimento .................................................................... 82

    1.3 O NEOCONSTITUCIONALISMO: ENTRE A NECESSIDADE DE UMA NOVA TEORIA DO DIREITO E A BUSCA DAQUILO QUE SE TEM DENOMINADO PARADIGMA PS-POSITIVISTA .................................... 86

    1.3.1 Ontem, os cdigos; hoje, as Constituies ................................................. 88

    1.3.2 A necessidade de uma nova teoria do direito ................................................ 96

    1.3.3 Em busca daquilo que se tem denominado paradigma ps-positivista ...... 100

    CAPTULO 2 HABERMAS E O PARADIGMA PROCEDIMENTAL: A TEO-RIA DISCURSIVA DO DIREITO EM BUSCA DE UMA LEGITIMAO PS-METAFSICA PARA OS SISTEMAS JURDICOS CONTEMPORNEOS ....... 110

    2.1 UMA APROXIMAO AO PENSAMENTO HABERMASIANO ................. 110

    2.1.1 Habermas e as influncias da Escola de Frankfurt ........................................ 111

  • 9

    2.1.2 O projeto epistemolgico inacabado da modernidade .................................. 115

    2.1.3 A primeira fase: esboo de uma proposta emancipatria ............................. 119

    2.1.4 A segunda fase: breves notas sobre a teoria da ao comunicativa .............. 123

    2.1.5 A terceira fase: a teoria discursiva do direito ................................................ 137

    2.2 A QUESTO DA INTERPRETAO: EM BUSCA DE UMA HERMENUTICA PROCEDIMENTAL ......................................................... 141

    2.2.1 O debate entre Habermas e Gadamer ............................................................. 141

    2.2.2 O papel da linguagem sob a tica da hermenutica crtica habermasiana .. 155

    2.2.3 A interpretao na teoria discursiva do direito ............................................. 158

    2.3 A QUESTO DA FUNDAMENTAO: DE QUE MODO A LEGITIMIDADE PODE SER RETIRADA DA LEGALIDADE ...................... 164

    2.3.1 Os sistemas jurdicos contemporneos: o direito entre faticidade e validade .............................................................................................................. 165

    2.3.2 O princpio do discurso a partir da relao de co-originaridade entre direito e moral .................................................................................................. 175

    2.3.3 Os discursos jurdicos de fundamentao prvia .......................................... 189

    2.4 A QUESTO DA APLICAO: A RESPOSTA CORRETA ATRAVS DO JUZO DE ADEQUABILIDADE ...................................................................... 197

    2.4.1 Os discursos jurdicos de aplicao ............................................................... 198

    2.4.2 O princpio da adequabilidade e a tese habermasiana da resposta correta .............................................................................................................. 204

    2.4.3 A teoria habermasiana da verdade consensual .............................................. 215

    2.5 O PENSAMENTO HABERMASIANO CONSTITUI EFETIVAMENTE UM PARADIGMA DE RACIONALIDADE PS-METAFSICO? ........................ 219

    CAPTULO 3 GADAMER E O PARADIGMA HERMENUTICO: AS CRTICAS TEORIA DISCURSIVA E AS CONDIES DE POSSIBI-LIDADE PARA SE PENSAR PS-METAFISICAMENTE O DIREITO ................ 221

    3.1 UMA APROXIMAO (S) HERMENUTICA(S) ....................................... 222

    3.1.1 A filosofia hermenutica ................................................................................. 222

    3.1.2 A hermenutica filosfica ............................................................................... 233

    3.1.3 A hermenutica jurdica .................................................................................. 241

    3.2 AS CRTICAS HERMENUTICAS AO PARADIGMA PROCEDIMENTAL E TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO ..................................................... 255

    3.2.1 O problema do papel desempenhado pela interpretao ............................. 256

    3.2.2 O problema da ciso entre discursos de fundamentao e discursos de aplicao ........................................................................................................... 260

    3.2.3 O problema da dupla estrutura da linguagem ............................................... 269

    3.2.4 O problema do conceito de mundo vivido ..................................................... 273

    3.2.5 O problema do afastamento do mundo prtico ............................................. 275

    3.2.6 O problema da verdade consensual ................................................................ 284

  • 10

    3.2.7 O problema da resposta correta procedimental ............................................. 293

    3.2.8 O problema da pretenso de universalidade da teoria habermasiana ......... 306

    CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 310

    BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 317

  • CONSIDERAES PRELIMINARES

    Sempre que se pensa que no h nada para se dizer, a literatura aparece

    como um bom comeo1. Melhor ainda quando compreendida no como

    expresso de seu tempo, como se costuma dizer, mas, sim, como processo de

    criao de um novo tempo. Segundo Oscar Wilde, o sculo XIX, como o

    conhecemos, em boa parte inveno de Balzac2.

    Partindo dessa premissa, pode-se dizer que, junto de Kafka e Sartre,

    Camus contribui sobremodo para a criao de boa parte do sculo XX, a partir

    daquilo que, em certa medida, denominou-se literatura do absurdo,

    principalmente com a publicao de sua principal obra, O estrangeiro, marcada

    pela seguinte passagem:

    Era o mesmo sol do dia em que enterrara mame, e, como ento, doa-me sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa dessa queimadura, que j no consegui suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que no me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um s frente. E, dessa vez, sem se levantar, o rabe tirou a faca, que me exibiu ao sol. A luz brilhou no ao e era como se uma longa lmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas plpebras, recobrindo-as com um vu morno e espesso, meus olhos ficaram cegos por trs daquela cortina de lgrimas e de sal. Sentia apenas os cmbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lmina brilhante da faca sempre diante de mim. Aquela espada incandescente corroia as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi ento que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o cu se abria em toda a sua extenso, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mo sobre o revlver. O gatilho cedeu, toquei i ventre polido da coronha e foi a, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo comeou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destrura o equilbrio do dia, o silncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Ento, atirei quatro vezes ainda no corpo j inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraa3.

    1 Cf. BARTHES, Roland. Aula. So Paulo: Cultrix, 1980, p. 18, para quem se, por no sei que excesso de socialismo ou de barbrie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, a disciplina literria que deveria ser salva, pois todas as cincias esto presentes no monumento literrio. 2 Cf. WILDE, Oscar. The Decay of Lying. In: WILDE, Oscar. Intentions. London: Methuen & Co., 1913, p. 33, segundo quem a literatura sempre antecipa a vida; no a copia, mas a amolda ao seu desgnio. 3 Cf. CAMUS, Albert. O estrangeiro. 10. ed. So Paulo: Crculo do Livro, 1985, p. 59-60.

  • 12

    O absurdo destacado por Camus, especialmente em O mito de Ssifo4

    decorre da sensao, reforada aps a Segunda Guerra Mundial, da total falta de

    sentido da existncia humana, o que implica reconhecer, em larga medida, os

    fracassos da racionalidade cartesiana, as arbitrariedades do positivismo, as

    inconsistncias das cincias e das epistemologias, as superficialidades das

    inmeras tentativas metafsicas de explicar e conhecer o mundo.

    O sculo XVII foi o sculo das matemticas, o sculo XVIII o das cincias e o sculo XIX o da biologia. O nosso sculo XX o sculo do medo... o que mais efectivamente nos chama a ateno neste mundo em que vivemos , em geral e em primeiro lugar, que a maioria dos homens [...] no tem futuro algum. Nenhuma vida vlida sem projeco no futuro5.

    Com efeito, a grande descoberta ocorrida nesta mudana de sculo que a

    cincia no mais o reino das certezas, de modo que tudo se comporta como se

    estivesse em luto permanente, (re)vivendo-se o mal-estar da cultura, agora em sua

    verso ps-moderna6.

    A velha aliana se quebrou. O homem sabe finalmente que est s, na imensido indiferente do universo, onde ele apareceu por acaso. Sabe agora que, como um cigano, est margem de um universo onde tem de viver, universo surdo sua msica, indiferente s suas esperanas, bem como aos seus sofrimentos ou seus crimes7.

    Enfim, pode-se dizer que a cincia comea a despertar de um sono

    profundo a era da tcnica e acordar para a finitude inerente ao ser humano,

    isto , comea a reconhecer as suas prprias limitaes cognitivas, algo para o

    que, de h muito, a literatura, como se viu, e sobretudo a filosofia j vinham

    apontando.

    4 Id. O mito de Ssifo. So Paulo: Record, 2004. 5 Id. Actuais. Lisboa: Livros do Brasil, [s. d.], p. 163-164. 6 Ver, para tanto, MORIN, Edgar. Complexidade e liberdade. In: MORIN, Edgar; PRIGOGINE, Ilya et al. A sociedade em busca de valores. Lisboa: Piaget, [s.d.], p. 239-254; PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. So Paulo: Unesp, 1996; FREUD, Sigmund. El mal-estar en la cultura. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. p. 3017-3067; e, ainda, BAUMAN, Zygmunt. Modernidade lquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. 7 Cf. MONOD apud PRIGOGINE, Ilya. O reencantamento do mundo. In: MORIN, Edgar; PRIGOGINE et al. A sociedade em busca de valores. Para fugir alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Piaget, [s.d.], p. 229.

  • 13

    Atingiu-se um estgio em que os dogmas prprios do pensamento

    moderno certeza, razo, verdade, mtodo, tcnica, lgica e, entre outros, a

    prpria dicotomia entre sujeito e objeto perdem sua consistncia,

    desmanchando-se no ar, visto que, atualmente, tudo efmero e leva o selo da

    provisoriedade.

    Contudo, preciso evitar radicalismos: se, de um lado, a literatura do

    absurdo mostra-se fundamental para o rompimento com a tradio metafsica;

    de outro, surge a necessidade de se construir uma nova maneira de pensar, um

    novo modo de filosofar, um novo paradigma, matriz ou standard de

    racionalidade, sob pena de se substituir o saudvel esprito da revolta atravs

    do qual o homem diz no, porm o faz porque antes afirma algo que lhe

    negado pelo niilismo, isto , pela simples negao absoluta de tudo8.

    Mas o que isso tudo tem a ver com o direito? a pergunta que, aqui,

    parece a mais natural9.

    Muito para no dizer tudo na medida em que pensar o direito no

    sculo XXI implica pensar a teoria do direito, mas, antes dela, a filosofia no

    direito, que sempre a subjaz. Trata-se, com efeito, de um exerccio que

    pressupe, obrigatoriamente, a escolha de um novo standard de racionalidade,

    capaz de refletir a respeito da necessidade de suplantar o positivismo jurdico;

    um exerccio que exige, invariavelmente, uma matriz filosfica apta a questionar

    os tradicionais e metafsicos modos de interpretar, aplicar e fundamentar o

    direito; um exerccio atravs do qual se possa buscar a libertao da teoria

    jurdica do paradigma epistemolgico da filosofia da conscincia e, ao fim e ao

    cabo, desenvolver um novo modelo terico de produo do direito, cujo suporte

    seja oferecido a partir de um paradigma ps-metafsico.

    Nesse contexto, a teoria discursiva desenvolvida por Jrgen Habermas

    uma daquelas que atualmente adquire grande importncia10 e, por isso, merece

    8 Ver, para tanto, CAMUS, Albert. O homem revoltado. 2. ed. Lisboa: Livros do Brasil, 1988. 9 A respeito da contribuio da literatura para o direito, consultar, obrigatoriamente, OST, Franois. Contar a lei. As fontes do imaginrio jurdico. So Leopoldo: Unisinos, 2004.

  • 14

    maior estudo e aprofundamento , tendo em vista a sua manifesta pretenso de

    apresentar uma legitimao ps-metafsica para os sistemas jurdicos

    contemporneos.

    Entretanto, questionar os pressupostos e a prpria validade da construo

    terica habermasiana sobretudo em face da notoriedade, espao e fora que

    esta vem ganhando no Brasil e demais pases da Amrica Latina, cuja realidade

    mostra-se sem precedentes tarefa que vem sendo muito pouco praticada na

    cultura jurdica brasileira.

    Assim sendo, parece pertinente, profcua e, acima de tudo, salutar a

    tentativa de esboar algumas reflexes crticas de vis nitidamente

    hermenutico, a partir sobretudo da filosofia de Gadamer acerca das

    insuficincias da teoria discursiva do direito elaborada por Habermas,

    especialmente a partir da publicao de sua obra Facticidad y validez11, no que diz

    respeito fundamentao ps-metafsica do direito.

    Para tanto, uma vez delimitado o objeto do presente e ambicioso estudo,

    cumpre referir que a dissertao estrutura-se sobre trs captulos, a seguir

    apresentados.

    No primeiro captulo, aps situar o locus da discusso, destacando a

    importncia do estudo da filosofia no direito, procurar-se- demonstrar a

    decadncia do positivismo jurdico, a partir da insuficincia das respostas por

    ele dadas trplice questo como se interpreta, subtilitas intelligendi, explicandi e

    applicandi; como se aplica, entre o mecanicismo e o decisionismo judicial; como

    se fundamenta, de onde vem e/ou at onde vai a validade do direito , e o

    surgimento do neonconstitucionalismo, como modelo de Estado constitucional

    de direito e reao terico-filosfica ao tradicional modo de (re)produo do

    direito, denunciando a necessidade de uma nova teoria do direito para o direito

    contemporneo, mas cujas bases exigem, obrigatoriamente, um paradigma ps-

    10 No se desconsidera, aqui, evidentemente, a importncia dos estudos levados a cabo por Alexy, voltado teoria da argumentao, e dos trabalhos desenvolvidos por Luhmann e Teubner, no que se refere teoria autopoitica do direito. 11 HABERMAS, Jrgen. Facticidad y validez. 4. ed. Madrid: Trotta, 2005.

  • 15

    positivista e ps-metafsico, a partir do qual seja possvel repensar o direito do

    sculo XXI.

    No segundo captulo, apresentar-se- a posio de Habermas e o seu o

    projeto (epistemolgico) inacabado da modernidade, em que se desenvolvem,

    primeiro, a teoria do agir comunicativo e, depois, a teoria discursiva do direito,

    atravs da qual se pretende apresentar uma fundamentao ps-metafsica para

    os sistemas jurdicos complexos. Em seguida, abordar-se- a trplice questo da

    teoria do direito contempornea objeto de estudo da filosofia no direito sob a

    perspectiva habermasiana: a questo da interpretao, ligada leitura do giro

    ontolgico, ao papel da linguagem e importncia da interpretao na teoria

    discursiva; a questo da fundamentao, vinculada tenso entre faticidade e

    validade, ao princpio do discurso e idia de discursos de justificao prvia; e,

    por fim, a questo da aplicao, atrelada idia de discursos de aplicao, tese

    da resposta correta e verdade consensual. Ao final, colocar-se-o ainda

    algumas indagaes a respeito do suporte que o paradigma procedimental pode

    fornecer teoria (discursiva) do direito.

    No terceiro captulo, introduzir-se- a posio de Gadamer cuja

    hermenutica filosfica herdeira da filosofia hermenutica de Heidegger ,

    tendo em vista a importante contribuio do seu pensamento para o campo do

    direito, para, com base nos aportes trazidos pela hermenutica, desenvolver uma

    anlise crtica da teoria discursiva do direito, a fim de verificar em que medida o

    paradigma que lhe d suporte mostra-se adequado a difcil tarefa de pensar a

    teoria do direito contemporneo.

    Destaque-se, por fim, que este trabalho no possui nenhum carter

    inovador e tampouco original , sendo apenas um resultado evidentemente

    que parcial dos estudos e pesquisas que, de h muito, vm sendo

    desenvolvidos junto ao Programa de Ps-Graduao em Direito da UNISINOS,

    mais especificamente linha de pesquisa intitulada Hermenutica Constituio,

    e Concretizao de Direitos.

  • 16

    Trata-se, com efeito, do retrato de mais uma batalha na cruzada contra o

    positivismo jurdico e as teorias discursivas do direito, cujos crditos devem ser,

    desde o incio, compartilhados em sua totalidade com o orientador dessa

    dissertao. Isso porque, se, de um lado, h considervel nmero de professores

    sobretudo em Minas Gerais, onde est se fazendo escola , que defende a

    postura habermasiana, subscrevendo a teoria discursiva do direito, dentre os

    quais se destacam Menelick de Carvalho Netto, Marcelo Campos Galuppo,

    Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, lvaro Ricardo de Souza Cruz, Luiz

    Moreira, Lucio Antnio Chamon Junior e, especialmente, Rogrio Gesta Leal

    em face da importante e indita discusso que vem propondo tanto nas salas de

    aula, quanto nas sesses da cmara em que atua junto ao Tribunal de Justia do

    Estado do Rio Grande do Sul ; de outro, a crtica vem sendo feita, quase que

    exclusivamente, por Lenio Luiz Streck, que, como uma espcie de integrante de

    um poderoso exrcito de um homem s agora acompanhado por seu fiel

    escudeiro tem se dedicado incansavelmente hermenutica filosfica e, com

    ela, combatido os discpulos e seguidores habermasianos de forma contudente,

    sofisticada e, filosoficamente, consistente.

  • CAPTULO 1

    A FILOSOFIA NO DIREITO OU O LOCUS DA TRPLICE QUESTO:

    ENTRE A DECADNCIA DO POSITIVISMO JURDICO E

    A TEORIZAO DO NEOCONSTITUCIONALISMO

    O presente captulo tem como objetivo contextualizar e colocar a trplice

    questo como se interpreta, como se aplica e como se fundamenta , relativa

    necessidade de uma nova teoria do direito, tema este que assume especial

    relevncia para o pensamento jurdico contemporneo, sobretudo neste incio de

    sculo XXI.

    Para isso, parte-se do pressuposto de que a filosofia no direito (1.1), e no

    do direito, o locus privilegiado em que exsurge o objeto deste estudo, tendo em

    vista que nele onde se pensa e reflete a respeito dos paradigmas de

    racionalidade que subjazem a todo e qualquer discurso jurdico.

    Em seguida, denunciar-se- a decadncia do positivismo jurdico,

    demonstrando como ele ainda pensa metafisicamente o direito (1.2), a partir da

    questo da interpretao (1.2.1), marcada pelo processo de reproduo do sentido

    jurdico atravs da busca da voluntas legis e da voluntas legislatoris (1.2.1.1), que

    encontra embasamento terico pela teoria geral da interpretao de Betti (1.2.1.2)

    e redunda na idia de hermenutica como metodologia (1.2.1.3); da questo da

    aplicao (1.2.2), entre a subsuno das regras nos casos fceis e a ponderao dos

    princpios nos casos difceis (1.2.2.1), bem como a problemtica da

    irresponsabilidade judicial decorrente da subsuno (1.2.2.2) e a problemtica da

    discricionariedade judicial decorrente da ponderao (1.2.2.3); e, finalmente, da

    questo da fundamentao (1.2.3), problema atrelado validade do direito, sobre o

    qual merecem destaque as preocupaes de Kelsen, com a criao da norma

    fundamental (1.2.3.1), de Bobbio, com o deslocamento para a legitimao do

  • 18

    poder constituinte (1.2.3.2), e de Hart, com a formulao da regra de

    reconhecimento (1.2.3.3).

    Feito isso, em reao terico e filosfica ao positivismo jurdico e ao

    tradicional modo de (re)produo do direito, apresentar-se- o

    neoconstitucionalismo (1.3), movimento que pode ser identificado, em certa

    medida, com o constitucionalismo oriundo do segundo ps-guerra (1.3.1), que

    evidencia a premente necessidade de uma nova teoria do direito (1.3.2), mas

    cujas bases dependem do surgimento daquilo que, na falta de uma denominao

    melhor, tem se chamado paradigma ps-positivista (1.3.3), atravs do qual

    possvel um pensar autntico e ps-metafsico do direito contemporneo,

    superando as limitaes atreladas ao positivismo jurdico e, sobretudo,

    filosofia da conscincia.

    1.1. POR QUE A FILOSOFIA NO DIREITO?

    As perguntas feitas pelos filsofos freqentemente se assemelham quelas

    feitas pelas crianas: o que aquela coisa? (ontologia), como que sabes?

    (epistemologia) e a mais atrevida de todas elas mas por que assim?

    (fundamento).

    Essa aproximao simplesmente acontece porque a pergunta filosfica

    resgata a indagao inerente queles que chegam ao mundo, isto , queles que

    ainda no foram subjugados pelo mundo, ou seja, as crianas12. Entretanto, com

    o passar dos anos e o natural desenvolvimento mental, o ser humano perde

    gradualmente essa curiosidade indagadora e, na medida em que se torna adulto,

    passa a se conformar com as respostas que lhe so fornecidas.

    A pergunta o que o direito?, por exemplo, uma pergunta, at certo

    ponto, infantil, qual um adulto normalmente responderia o direito o direito,

    ora, e, quem sabe, passasse a descrev-lo. O filsofo faz tambm essa mesma

  • 19

    pergunta, mas quando algum lhe d essa mesma resposta ele no se satisfaz. E

    quando algum lhe responde o direito um conjunto de normas vlidas, ele

    pergunta o que so as normas? como que se faz para saber quando se est diante de

    normas vlidas? e, finalmente, por que assim?

    Ocorre que, quando questes desse tipo transformam-se em contedo

    programtico de um currculo oficial, cria-se um grande problema no ensino

    jurdico, na medida em que isso irrita a quase totalidade dos alunos, que,

    inevitavelmente, se perguntam para que estou estudando isso?13

    Isso fica muito evidente quando se percebe, nas salas de aula, o desprezo

    aliado ao cinismo latente em relao s disciplinas propeduticas por parte dos

    estudantes, para os quais, enquanto o importante ganhar dinheiro, as questes

    ligadas, por exemplo, justia so algo meramente literrio, sem nenhuma

    aplicao prtica14.

    Ademais, os operadores do direito acreditam, freqentemente, que os

    filsofos do direito escrevem e produzem apenas para colegas de mtier, como se

    fossem meros observadores do sistema jurdico ao invs de seus participantes15.

    O resultado desse enclausuramento jurdico conhecido de todos: o profissional

    do direito rejeita o saber filosfico, rotulando-o de conhecimento intil, ou, na

    melhor das hipteses, de cultura geral16.

    No de se estranhar, nesse contexto, que sejam cada vez mais raros os

    chamados juristas cultos. Desde a sua formao e depois no exerccio de sua

    profisso, o jurista percebe as disciplinas de base introduo ao direito,

    12 Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Filosofia do direito: do perguntador infantil ao neurtico filosofante. In: ALVES, Alr Caff et al. O que a filosofia do direito? Barueri: Manole, 2004. p. 110-111. 13 Id., ibid., p. 112-113. 14 Nesse sentido, ver COMPARATO, Fbio Konder. O direito como parte da tica. In: ALVES, Alar Caff et al. O que a filosofia do direito? Barueri: Manole, 2004, p. 8. 15 Cf. HIERRO, Liborio. Por qu ser positivista? Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, n. 25, p. 263-302, 2002, p. 274-275. 16 Para tanto, consultar PEPE, Albano Marcos Bastos; WARAT, Luis Alberto. Filosofia do direito: uma introduo crtica. In: WARAT. Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito. Florianpolis: Boiteux, 2004, v. 2, p. 49.

  • 20

    histria do direito, filosofia do direito, sociologia do direito, etc. como um luxo

    para o qual no dispe de tempo17.

    Ora, observa-se, assim, que existe uma ntida m compreenso acerca do

    que seja a filosofia problemtica que evidentemente transcende os limites

    desse trabalho e, sobretudo, qual a sua importncia para o direito ponto este

    sobre o qual se dedicar maior ateno.

    Entretanto, no se pretende, aqui, responder s perguntas o que o

    direito?18, qual o seu sentido hoje?19, por que o direito?20, o que a filosofia do direito?21,

    para que a filosofia do direito?22; e, tampouco, tratar das questes tradicionalmente

    ligadas filosofia do direito como as teorias da justia e as principais correntes

    do pensamento jurdico ao longo dos sculos, por exemplo , atravs das quais

    se fazem, diariamente, inmeras anlises metodolgicas e descries histricas

    do direito na sociedade, demarcando-se as mudanas significativas dos modelos

    existentes, sem que se apresentem quaisquer procedimentos reflexivos quanto

    aos temas abordados23.

    necessrio, ao contrrio, reconhecer a necessidade de ultrapassar a

    simples filosofia do direito que objetifica/entifica o direito, a partir de um

    pensamento j institudo e alheio dinmica da histria que nega a reflexo da

    incompletude e impossibilita o desvelar do fenmeno jurdico e pensar a

    17 Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Gulbenkian, 2004, p. 1. De outra banda, merece destaque especial a crtica de CALSAMIGLIA, Albert. Problemas abiertos em la filosofa del derecho. Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, n. 1, p. 43-47, 1984, p. 47, para quem uma filosofia jurdica tal e como ele a entende abriria o campo dos problemas jurdicos para alm dos estritos limites da tcnica jurdica. Colaboraria na dinamizao dos estudos do direito e intentaria estabelecer canais de comunicao com outras reas desenvolvidas do pensamento social. Estou convencido de que maioria dos cientistas sociais interessam os problemas que delineiam o direito. Qui o que no os interessa seja a forma como os tratam os juristas. 18 Cf. GRAU, Eros Roberto. Direito. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionrio de filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 225-229. 19 Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antnio. O direito hoje e com que sentido. Lisboa: Piaget, 2002. 20 Cf. COTTA, Sergio. Perch il diritto. 2. ed. Brescia: La Scuola, 1983. 21 Cf. ALVES, Alar Caff et al. O que a filosofia do direito? Barueri: Manole, 2004. p. 77-106. 22 Cf. TROPER, Michel. Cos' la filosofia del diritto. Milano: Giuffr, 2003. 23 Ver, nesse sentido, PEPE; WARAT, op. cit.; e, ainda, GUASTINI, Riccardo. Das fontes s normas. So Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 376-377, para quem existem setores da filosofia do direito.

  • 21

    filosofia no direito, nos termos propostos de modo absolutamente indito por

    Lenio Streck24.

    Isso, contudo, requer alguns cuidados, conforme alerta Stein25, haja vista

    que as aplicaes da filosofia no direito so ora consideradas um corpo estranho,

    ora assimiladas como algo que prprio do direito e que pouco, ou quase nada,

    tem a ver com a filosofia propriamente26.

    Destaque-se, aqui, em face da pertinncia para o presente estudo, a

    diviso proposta por Stein27, segundo a qual h trs tipos de filosofia: a filosofia

    de ornamentao, ou cosmtica, predominante no mundo, atravs da qual se

    produz um conjunto de texto, que podem ser impressos, cuja utilidade,

    normalmente, encontra-se ligada citao daquilo que interessa, seja num

    sermo, num discurso de paraninfo, ou num arrazoado jurdico; a filosofia de

    orientao28, atravs da qual se produz um trabalho filosfico, um pequeno texto

    sobre a moral, a esttica, a metafsica, etc., sem que haja compromisso com um

    mtodo ou com um paradigma determinados, mas que se mostra de maior

    utilidade, principalmente aos pedagogos, antroplogos, economistas, juristas e

    outros tantos, que procuram uma orientao para certas questes fundamentais,

    isto , serve queles que precisam se apoiar numa passagem filosfica

    interessante; e, por fim, a filosofia que apresenta paradigmas de racionalidade, que a

    verdadeira filosofia, atravs da qual cada filsofo trilha no apenas o seu

    24 Ver, para tanto, STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituio, hermenutica e teoria discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 25 Cf. STEIN, Ernildo, Exerccios de fenomenologia. Iju: Uniju, 2004, p. 153-154: Para podermos encontrar um caminho que no leve a esses impasses repetidos temos que rever o modo como pensada a Filosofia como um corretivo para o positivismo e o dogmatismo no Direito. Em qualquer poca usaram-se recursos estranhos para a orientao no universo da positividade. privilgio de nosso tempo termos chegado a uma exacerbao do positivismo e a um superfatualismo nas tentativas de fundamentao. por isso que estamos postos diante da alternativa: ou encontramos um modo de pensar a relao entre Filosofia e Direito em uma nova dimenso, ou permanecemos na corrida interminvel de um Direito que se especializa para esconder o impasse de seu vazio. 26 Id. ibid., p. 153-154: Em geral pedimos Filosofia que nos venha socorrer mediante uma discusso epistemolgica. Assim, escolhemos uma Filosofia para nos orientar na discusso de mtodo no Direito. Esperamos, ento, dessa Filosofia, que nos oriente no que se refere aos limites e ao fundamento. Em grande parte das discusses jurdicas o recurso a uma Filosofia terminou sendo incorporado ao prprio edifcio jurdico, absolutizando, desse modo, uma Filosofia. 27 Id. ibid., p. 135 e 155-157. 28 Sobre a filosofia de orientao, bom exemplo pode ser encontrado em GUASTINI, Riccardo. Das fontes s normas. So Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 370-376, que apresenta e se filia filosofia jurdica de orientao analtica.

  • 22

    projeto, mas tambm trilha os filsofos da histria da filosofia, na medida em

    que est voltada, especialmente, para a inaugurao de certos standards de

    racionalidade, ou melhor, para a produo de algo que, antes, na filosofia, no

    aparecia desta maneira, isto , para a produo de um elemento que se torna

    uma espcie de uma matriz de inteligibilidade especfica, que representa um

    determinado mtodo, um modo de filosofar, um projeto filosfico, uma teoria da

    verdade, uma matriz de inteligibilidade, enfim, um paradigma de

    racionalidade29.

    Nesse contexto, o problema aparece na medida em que, diferentemente do

    suposto pelo sentido (demasiado) comum dos juristas, a filosofia no serve de

    ornamento para o discurso jurdico e, muito menos, de orientao, ou refgio,

    para as perplexidades decorrentes dos limites e tentativas de fundamentao do

    direito30. Da mesma forma, tampouco se pode compactuar com o pensamento

    jurdico de que possvel encontrar na lgica da argumentao de carter

    puramente axiomtico-dedutivo a principal funo da filosofia31.

    Isso porque existe uma diferena fundamental descoberta apenas

    quando da revoluo kantiana, com o surgimento da teoria do conhecimento e

    superao e inverso da relao objetivstica entre o discurso ordinrio, em que

    se encontram as linguagens naturais e as linguagens cientficas, e o discurso

    filosfico, que tem uma linguagem prpria e especial a linguagem filosfica ,

    vinculada justamente a partir de uma matriz de inteligibilidade, isto , de um

    determinado mtodo filosfico.

    29 Sobre o j clssico conceito kuhniano de paradigma, constitudo na dcada de 1960 e ora adotado, ver KUHN, Thomas. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 1994, para quem paradigmas so realizaes cientficas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de uma cincia. 30 Ver, para tanto, STEIN, Exerccio de fenomenologia, op. cit., p. 156: Quando se espera, no Direito, que a Filosofia lhe preste servios no que se refere ao limite e fundamentao, o que se quer encontrar elementos de racionalidade que garantem orientao e espaos de validade intersubjetiva. O estado de coisas que designamos como uma espcie de encontro entre Direito e Filosofia pode ser descrito como um vetor ou um standard de racionalidade. Este no pode ser produzido pelo discurso jurdico, nem mesmo pode-se pressupor que esse discurso seja capaz da melhor escolha de um standard de racionalidade. Em todo caso, o Direito ir encontrar a partir desse standard uma teoria filosfica capaz de orientar o levantamento de problemas e o conjunto de problemas a serem resolvidos. 31 Id., ibid., p. 157.

  • 23

    Conforme aduz Stein, preciso de uma espcie de ncleo paradigmtico,

    ou standard de racionalidade, para que se possa aplicar, adequadamente, a

    filosofia. Isso se mostra importante, sobretudo, quando se fala da aplicao da

    filosofia aos campos do direito, da psicologia, da antropologia, da economia, da

    psicanlise, etc., de modo que, enquanto predominar a aplicao das filosofias

    de ornamentao e de orientao nos campos das cincias humanas, nada se

    estar fazendo alm de apenas complicar os textos das cincias humanas, visto

    que, assim sendo, no h nenhum tipo de articulao filosfica propriamente

    vlida: , justamente, por isso que no existe filosofia do direito ou filosofia da

    psicologia, por exemplo, simplesmente porque se utiliza um filsofo32.

    Dito de outro modo, sempre que se quiser aplicar a filosofia a um

    determinado campo por exemplo, no direito, na psicanlise, na poltica

    necessria a utilizao daqueles autores que inauguraram certos paradigmas

    filosficos, isto , autores que fundaram standards de racionalidade ou matrizes

    de inteligibilidade33.

    Com efeito, pode-se dizer que o grande problema relativo a filosofia no

    direito decorre, ao fim e ao cabo, do fato de que o jurista se move, geralmente,

    no raso da filosofia, que a linguagem comum, natural, cientfica positivista

    como se ver logo em seguida , enquanto, na verdade, a filosofia resulta de

    uma dobra da linguagem, cujas conseqncias so determinantes para se pensar

    e fazer o direito.

    Nessa linha, Stein34 ensina que a filosofia possui um papel exclusivo no

    nvel do discurso jurdico, uma vez que apenas ela que pode trazer os

    32 Id., ibid., p. 158: Se assim fosse, ento a Filosofia apenas viria confirmar o carter de positividade que apresentado pelo Direito. Poderamos at dizer que a filosofia, em lugar de apresentar os limites do Direito, antes confirmaria o positivismo jurdico. 33 Nesse sentido, Stein (Exerccios de fenomenologia, op. cit., p. 159) afirma que tal standard que tambm poderia ser chamado de dimenso transcendental , encontra-se situado para alm da lgica formal e suas aplicaes. Com esse transcendental no-clssico, estar-se-ia, ento, dispondo de uma dimenso organizadora e estruturante com que sempre se opera quando se lida com processo de argumentao e at de validao do discurso jurdico. Esse standard seria, portanto, constitudo por um modo de ser que condio de possibilidade de qualquer discurso e que, portanto, sempre est presente operativamente na produo de uma fixao de limites ou de fundamentao. 34 Id., ibid., p. 161: Essas formas de standards de racionalidade apresentados como transcendentais no-clssicos [...] so as condies de possibilidade de qualquer conhecimento emprico ou de carter no-filosfico. Ao escolhermos, portanto, uma Filosofia para pensar o fundamento do discurso jurdico, temos

  • 24

    elementos que constituem no s o campo conceitual e argumentativo do direito,

    mas, sobretudo, o espao em que ele se move, que sustentado, ao fim e ao cabo,

    pelo modo como se realiza a filosofia.

    preciso entender, portanto, que inadmissvel, atualmente, continuar

    acreditando que seja possvel fazer direito sem filosofia. O direito ,

    inevitavelmente, filosofia aplicada; e a filosofia, por sua vez, no mero

    ornamento ou orientao, mas, sim, condio de possibilidade. Ou melhor:

    poder-se-ia at mesmo dizer que, para o estudo do direito, a filosofia, mais

    especificamente no que diz respeito aos paradigmas de racionalidade atrelados

    ao fenmeno jurdico, to importante como, para o estudo da fsica ou da

    engenheira, a matemtica35.

    Dito de outro modo, apenas atravs da filosofia no direito que se torna

    possvel pensar ps-metafisicamente o direito, superarando a afirmao

    baseada na diferena entre uma semntica jurdica, que trata dos objetos

    jurdicos no mundo, e a uma semntica filosfica, que no trata de objetos de

    que no direito no se pensa, uma vez que o direito no se move no mesmo nvel

    lingstico da filosofia36.

    Assim sendo, a filosofia no direito deve ser entendida, antes de tudo,

    como a disciplina filosfica e no da cincia jurdica37 que permite ao jurista

    pensar as questes filosficas mais caras e fundamentais ao direito, e no do

    de ter presente a natureza do standard de racionalidade que elegemos. Explicit-lo significa descobrir, no Direito, um discurso que subjaz, como dimenso hermenutica profunda, ao processo lgico-discursivo do sistema jurdico. Em geral, verificaremos que o Direito carrega consigo uma espcie de standard de racionalidade ingnuo. Isso quer dizer que a dogmtica jurdica tende e reproduzir a diferena entre a racionalidade I e a racionalidade II, ou entre a racionalidade de carter entificador quando busca a validao do discurso jurdico. 35 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ps-modernidmo, ps-positivismo e o Direito como Filosofia. In: OLIVERIA JUNIOR, Jos Alcebades (Org.). O poder das metforas. Homenagem aos 35 anos de docncia de Luis Alberto Warat. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 63. Na mesma linha, Kaufmann vai sustentar que a filosofia diferentemente da dogmtica deve, pelo menos, tentar indagar aquilo que est por detrs dos problemas e pressupostos fundamentais das cincias e dos sistemas. Por outras palavras, a filosofia tem de adotar uma atitude que transcenda os sistemas. Esta atitude no , porm, a da tbua rasa. Foi justamente a hermenutica mais recente que mostrou que o preconceito ou a pr-compreenso uma condio transcendental para o entendimento de contedos de significado, donde resulta o seu particular significado, sobretudo para as cincia do direito, j que esta se debrua, essencialmente, sobre textos lingsticos (cf. KAUFMANN; HASSEMER, op. cit., p. 26-27). 36 Ver, para tanto, HEIDEGGER, Martin. Qu significa pensar? Buenos Aires: Editorial Nova, 1964; e, na mesma linha, STEIN, Ernildo. Pensar pensar a diferena: filosofia e conhecimento emprico. Iju: Uniju, 2002. 37 Cf. KAUFMANN, op. cit., p. 12.

  • 25

    direito. A filosofia no direito deve ser entendida como o locus privilegiado que

    permite ao jurista dar conta do fato de que o direito muito mais complexo do

    que parece num primeiro momento visto que ele opera normativa e

    objetificadamente com todas as dimenses ligadas aos existenciais humanos38,

    isto , com todas as questes atreladas s condies humanas e, sobretudo, que

    possibilita fazer com que o jurista perceba que preciso lidar, filosoficamente,

    com isso, na medida em que, no campo jurdico, ele sempre se move de acordo

    com um determinado paradigma ou standard de racionalidade39.

    Sem concorrer com a filosofia do direito, cujo objeto de estudo o

    pensamento filosfico acerca de questes tico-jurdicas pensadas desde a

    Antigidade40, e tampouco com a dogmtica jurdica, cujo objeto de estudo o

    arcabouo tcnico-instrumental do direito41, a filosofia no direito exsurge como

    elemento central e intransponvel para a elaborao das contemporneas

    teorias do direito, na contramo da proposta de Michel Troper, para quem

    necessria uma filosofia do direito de juristas, e no uma filosofia do direito de

    filsofos42.

    Segundo Kaufmann43, a teoria do direito denominao bastante antiga44,

    mas cuja utilizao recente para designar um campo especfico, mas ainda

    38 Cf. COTTA, Perch il diritto, op. cit., p. 23-36. 39 Cf. KAUFMANN, op. cit., p. 12. 40 Cf. SALDANHA, Nelson. Filosofia do direito na contemporaneidade. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionrio de filosofia do direito. So Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 343-347. 41 Cf. KAUFMANN, op. cit., p. 12-19. 42 Cf. TROPER, op. cit., p. 7-10; e, ainda, GUASTINI, Riccardo. Das fontes s normas. So Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 368-370, para quem a filosofia do direito dos filsofos resume-se a uma concepo do mundo, aplicada mecanicamente ao direito, por parte de quem dispe apenas de noes muito elementares de direito, na esteira do que diz Bobbio, alm de suscitar uma certa hostilidade nos juristas, que no a compreendem e no reconhecem a sua utilidade prtica. J a filosofia do direito dos juristas, ao contrrio, estaria ligada concepo da filosofia que prpria do empirismo e das correntes analticas modernistas, segundo as quais a filosofia no uma teoria de alguma coisa, mas simplesmente um mtodo ligado anlise lgica da linguagem: a filosofia a lgica das cincias, e seu objeto a linguagem das cincias. De outra banda, Habermas faz uma advertncia pertinente, logo no incio sua obra Direito e democracia (op. cit. , p. 9), no sentido de que se, de um lado, atualmente, na Alemanha, a filosofia do direito no mais tarefa exclusiva dos filsofos, o que resultou na sugestiva migrao da disciplina da filosofia do direito para as facldades de direito, em face da necessidade de contato com a realidade social; de outro, no se pode incorrer no equvoco de que a filosofia do direito deve limitar-se quela especializada juridicamente, que, por exemplo, como ponto forte aa discusso dos fundamentos do direito penal. 43 Cf. KAUFMANN, op. cit., p. 19-20; KAUFMANN; HASSEMER, op. cit., p. 32-36. A respeito daquilo que se entende por teoria (geral) do direito, consultar LARIGUET, Guillermo. Acerca de las llamadas Teorias Generales del Derecho. In: COMANDUCCI, Paolo; GUASTINI, Riccardo (Orgs.). Analisi e diritto 2002-2003. Torino: Giappichelli, 2004. p. 141-182. Sobre a mobilidade das fronteiras entre a filosofia

  • 26

    impreciso, da cincia jurdica caracteriza-se fundamentalmente por pretender a

    emancipao da filosofia geral, isto , por buscar a construo autonomamente

    do saber jurdico, estabelecendo suas prprias formas, estruturas e categorias.

    Ocorre que, no obstante a tentativa de descolar-se da filosofia, as teorias

    do direito contemporneo que no se alicerarem sobre slidos e consistentes

    aportes filosficos esto inevitavelmente fadadas ao insucesso: no h teoria do

    direito sem que haja filosofia no direito, isso porque, como j referido, a filosofia

    habita o direito.

    Dito de outro modo, a filosofia no direito assume, portanto, especial

    relevncia neste incio de sculo XXI, na medida em que ela que vai preocupar-

    se em pensar os problemas filosficos implcitos e inerentes trplice questo

    ps-positivista que move as teorias direito contemporneas: como se interpreta,

    como se aplica e como se fundamenta, em busca do alcance das condies

    interpretativas capazes de garantir uma resposta correta diante da

    indeterminabilidade do direito45.

    Nesse contexto que se tornam evidentes as insuficincias do positivismo

    jurdico e, portanto, exsurge o denominado neoconstitucionalismo, momento a

    do direito e a teoria do direito e, ainda, os possveis sentidos expresso da teoria geral do direito, consultar GUASTINI, Das fontes s normas, op. cit., p. 367-368 e 378-379, respectivamente. 44 A respeito do surgimento e das implicaes daquilo que se denominou Teoria Geral do Direito, ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Estudo prvio: em que sentido haveria hoje uma Teoria Geral do Direito? Por uma reconstruo crtica do direito e do Estado democrtico de direito na alta modernidade. In: CHAMON JUNIOR, Lcio Antnio. Teoria geral do direito moderno. Por uma reconstruo crtico-discursiva na alta modernidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. XXI-XXII, para quem a clssica noo positivista de Teoria Geral do Direito encontra-se ligada, inicialmente, chamada jurisprudncia pandectista dos conceitos, medida que se apresentaria como um sistema de conceitos fundamentais subjacentes dogmtica jurdica, assumindo um papel de uma espcie de dogmtica geral do direito positivo, seja do direito pblico, seja do direito privado. No entanto, contra essa matriz positivista da Teoria Geral do Direito, exsurge o enfoque marcadamente analtico da chamada Enciclopdia Jurdica, cujo objetivo era apresentar as especificidades dos diversos ramos, reas ou classes do direito. Desse modo, enquanto a Teoria Geral do Direito buscava construir um sistema de conceitos comuns a todo o direito, a Enciclopdia Jurdica tentava classificar, estabelecer distines e identificar diferenciaes no interior do direito. Em suma: a Teoria Geral do Direito operava por condensao; a Enciclopdia Jurdica, por deslocamento. 45 Ver, para tanto, STRECK, Verdade e consenso, op. cit. No mesmo sentido, porm a partir de outra matriz terica, ver a aproximao de CATTONI DE OLIVEIRA, Estudo prvio..., op. cit., p. XXV, para quem: Num contexto ps-positivista, pode-se reflexiva e reconstrutivamente afirmar que as teorias do direito movem-se sobre o pano de fundo de concepes paradigmtico-jurdicas acerca das distines, finalidades e perspectivas de interpretao e aplicao do direito e, assim, podem ser compreendidas como reconstrues paradigmticas do direito, como a problematizao de paradigmas do direito (Habermas) que pressupem um modelo de sociedade contempornea (Wieacher), a fim de se descrever/prescrever

  • 27

    partir do qual se mostra necessrio pensar em uma teoria ps-metafsica para o

    direito contemporneo.

    Contudo, no sendo tarefa simples nem mesmo localizar o problema,

    coloc-lo requer cuidado especial, sobretudo se levado em considerao que um

    emaranhado de conhecimentos acerca de opinies doutrinrias sobre a filosofia

    no so filosofia, mas representam, quando muito, cincia da filosofia, na feliz

    expresso de Heidegger46.

    1.2. O POSITIVISMO JURDICO E O MODO METAFSICO DE PENSAR O

    DIREITO E LIDAR COM A TRPLICE QUESTO DA TEORIA DO

    DIREITO CONTEMPORNEA

    Discorrer, mesmo que brevemente, sobre o positivismo jurdico suas

    origens, diferentes momentos, principais caractersticas, aspectos e variaes,

    etc. no se trata, com certeza, de uma tarefa simples, como outrora se pde

    imaginar.

    Para tanto, impe-se mergulhar na histria; e isto no possvel fazer sem

    recorrer inevitavelmente obra Sul positivismo giuridico47 lanada por Bobbio,

    em 1961, logo aps a realizao de um encontro, na cidade de Bellagio, na Itlia,

    do qual participaram Hart e Ross, entre outros tantos , texto que pode ser

    considerado o balano daquele grande evento e, conseqentemente, referncia

    obrigatria para qualquer estudo sobre o tema.

    Cumpre referir, preliminarmente, conforme alerta Bobbio48, que o termo

    positivismo jurdico, utilizado apenas a partir do final do sculo XVIII, no deriva

    da expresso positivismo em sentido filosfico, muito embora tenha havido forte

    ligao entre os dois movimentos e alguns positivistas jurdicos fossem tambm

    de que modo esse direito deve ser compreendido de modo a cumprir, num dado contexto, as funes a ele normativamente atribudas no processo de integrao social. 46 Cf. HEIDEGGER apud KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried (Orgs.). Introduo filosofia do direito e teoria do direito contemporneas. Lisboa: Gulbenkian, 2002, p. 32. 47 Cf. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico So Paulo: cone, 1995.

  • 28

    positivistas no sentido filosfico, mas, antes, origina-se do termo direito positivo,

    que se contrape clssica expresso direito natural.

    No toa, pois, que se diz serem dois os grandes paradigmas

    hegemnicos que marcaram profundamente a teoria e a filosofia do direito ao

    longo da historia49: o jusnaturalismo, voltado para o direito natural50; e o

    juspositivismo, voltado para o direito positivo51.

    Entretanto, convm destacar que a distino conceitual entre direito natural

    e direito positivo no recente como se pode pensar, em face da freqente

    associao ao positivismo jurdico , mas, ao contrrio, j se apresentava no

    incio da civilizao ocidental, na longnqua Grcia clssica, em especial nas

    discusses entre Plato e Aristteles.

    Com efeito, desde a Antigidade, passando por toda a Idade Mdia e pela

    Modernidade, at o incio do sculo XIX, o direito sempre foi definido a partir da

    individualizao dessas duas acepes: o direito natural e o direito positivo. Elas

    no eram, contudo, consideradas diferentes em relao sua qualificao. Se

    havia uma diferena entre ambas, esta se referia apenas sua graduao, no

    sentido de saber qual delas era considerada superior, isto , saber qual delas se

    encontrava em um plano superior52.

    Para o jusnaturalismo doutrina calcada na idia de direito natural e

    sustentada desde a Grcia antiga at os idos do sculo XIX53 , o direito positivo

    48 Id., ibid., p. 15. 49 Segundo Kaufmann (Filosofia do direito, op. cit., p. 31), h interrogaes que surgem em todos os tempos e em todas as culturas ainda que sejam respondidas de modos diferentes ao longo do tempo. Umas das mais importantes e recorrentes dessas interrogaes muito bem ilustrada atravs da tragdia Antgona, de Sfocles a de saber se o homem pode dispor livremente do direito, ou melhor: como se do a sua interpretao, aplicao e fundamentao. 50 Sobre o tema, consultar BEDIN, Gilmar Antonio. Direito natural. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionrio de filosofia do direito. So Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 240-243. 51 Sobre o tema, consultar BARZOTTO, Luis Fernando. Positivismo jurdico. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionrio de filosofia do direito. So Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 642-647. 52 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 25. 53 Tendo em vista a impossibilidade do desenvolvimento de maiores consideraes a respeito do jusnaturalismo, em razo dos limites e objetivos do presente trabalho, remete-se o leitor a GILISSEN, John. Introduo histrica ao direito. Lisboa: Gulbenkian, 1988; ELLSCHEID, Gnter. O problema do direito natural. In: KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried (Orgs.). Introduo filosofia do direito e teoria do direito contemporneas. Lisboa: Gulbenkian, 2002. p. 211-280; e, ainda, LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito na histria. Lies introdutrias. So Paulo: Max Limonad, 2000, p. 29-212.

  • 29

    deve ser objeto de uma valorao que tem como referncia um sistema superior

    de normas e princpios que lhe conferem validade, o que implica reconhecer a

    existncia de um direito natural superior quele estabelecido pela vontade do

    soberano54.

    Tal concepo se encontra, evidentemente, atrelada idia de que a justia

    o valor fundante do direito de modo que no se considera lei o que no for justo

    e pode ser resumida atravs das seguintes premissas jusnaturalistas: (a) o

    direito positivo deve ser analisado a partir de contedos superiores; (b) esses

    contedos possuem como fonte uma determinada categoria universal, eterna e

    imutvel; (c) o ideal de justia deve sempre prevalecer sobre as disposies

    formalmente positivadas55.

    Segundo Bedin, as concepes de justia utilizadas pelos defensores do

    jusnaturalismo podem ser diferentemente apresentadas de acordo com os

    momentos histricos pelos quais passou a doutrina do direito natural: no mundo

    antigo, a referncia de justia era imanente prpria natureza (direito natural

    cosmolgico); no mundo medieval, a referncia de justia era indissocivel da

    figura de Deus (direito natural teolgico); no mundo moderno, a referncia de

    justia era ligada natureza humana (direito natural antropolgico)56.

    Todavia, a evoluo das concepes de justia no interior das doutrinas

    do direito natural, em especial a ltima delas, a responsvel pelo prprio

    esgotamento da doutrina do direito natural e, paradoxalmente, pelo escoamento

    naquilo que se denominar, mais tarde, positivismo jurdico.

    Pode-se dizer, inclusive, que o jusnaturalismo moderno doutrina do

    direito natural baseada em um modelo de racionalidade caracterizado pela

    excessiva confiana no poder da razo representa a doutrina que antecede e

    possibilita o paradigma positivista do direito, o que se d em face,

    fundamentalmente, de duas razes.

    54 Cf. BEDIN, op. cit., p. 240. 55 Id., ibid., p. 241. 56 Id., ibid., p. 241-242.

  • 30

    De um lado, com a passagem do mythos para o logos57 e,

    conseqentemente, o desenvolvimento e aperfeioamento das cincias o que

    marca, em certa medida, o advento da modernidade , inicia-se uma nova ordem

    cientfica, baseada em um modelo de racionalidade que possibilita apenas uma

    forma de conhecimento, aquele fundamentado em verdades cientficas.

    As descobertas da teoria heliocntrica de Coprnico, das leis sobre as

    rbitas planetrias de Kepler e das leis sobre a queda dos corpos de Galileu

    transformam, de maneira radical, a viso que o homem tem do mundo58.

    Mais: com o auxlio de uma razo tcnico-instrumental, o homem volta-se

    para o domnio da natureza, isto , da condio de assujeitado passa de

    assujeitador das coisas. O universo que se abre, muito embora infinito, pode ser

    ento apreendido atravs do mtodo e dominado atravs da tcnica pelas

    cincias.

    entre o renascimento (sc. XVI) e o iluminismo (sc. XVII) que se d o

    nascimento do indivduo soberano, cuja autonomia a grande promessa da

    modernidade59. A clivagem entre o mundo da natureza e o mundo da cultura e a

    hipostasia de valores essencialmente humanos, ou seja, daquilo que possibilita

    ao homem a existncia diferenciada dos demais seres, tm como conseqncia a

    supervalorizao da razo.

    A questo da natureza humana e das formas de relao do homem com o

    mundo, fundadas pelas concepes platnicas de mundo sensvel e mundo

    inteligvel, reproduzida nos conceitos cartesianos de res cogitans e res extensa,

    perpetuando-se nas formulaes desenvolvidas na modernidade.

    Com base na crena de que o uso da razo conduz verdade, a cincia

    busca certezas, estruturando-se a partir dos seguintes fundamentos: a ordem,

    que, concebida, ou no, como produto da perfeio divina, configura-se como

    determinismo; a separabilidade, que corresponde tanto decomposio do objeto,

    57 Cf. KAUFMANN, op. cit., p. 32. 58 Ver, para tanto, SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as cincias. 8. ed. Porto: Afrontamentos, 1996, p. 11.

  • 31

    como tambm anulao da subjetividade do sujeito cognoscente; e a lgica,

    fundada nos princpios aristotlicos e nos processos silogsticos de induo e de

    deduo60.

    Se conhecer significa quantificar e o rigor cientfico encontra-se

    relacionado ao rigor das medies, no de se estranhar o lugar central da

    matemtica na cincia moderna. Tudo que no quantificvel , por bvio,

    cientificamente irrelevante. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder

    determinar relaes sistemticas entre o que se separou61.

    As garantias de verdade e de certeza, asseguradas pela preciso inerente

    ao campo da matemtica, provocaram a transposio dos princpios e

    fundamentos racionalistas das cincias da natureza para o plano das cincias

    humanas e sociais, isto , causaram aquilo que se pode denominar endurecimento

    das cincias do esprito62.

    Nesse sentido, no se pode olvidar que Descartes, Spinoza e Leibniz,

    representantes do paradigma cientfico, so alguns dos principais responsveis

    pela construo de um mtodo cujo principal objetivo produzir e tornar

    manifesta a unidade da cincia63.

    Nesse contexto que se desenvolve a concepo de um direito natural

    laico e racionalista, fundando-se, conseqentemente, a Escola de Direito Natural,

    59 Cf. ROMAN, Jol. Autonomia e vulnerabilidade do indivduo moderno. In: MORIN, Edgar; PRIGONINE, Ilya et al. A sociedade em busca de valores. Lisboa: Piaget, [s.d.], p. 40. 60 Nesse sentido, ver MORIN, Edgar. Complexidade e liberdade. In: MORIN, Edgar; PRIGOGINE, Ilya et al. A sociedade em busca de valores. Lisboa: Piaget, [s.d.], p. 240-247. 61 Cf. SANTOS, op. cit., p. 15. 62 Destaque-se, aqui, as influncias do cartesianismo no desenvolvimento da hermenutica tradicional, que teve de compatibilizar-se com os limites da teoria da deciso jurdica. Para tanto, mostrou-se necessrio estabelecer regras e mtodos nos termos inaugurados por Schleiemarcher capazes de permitir uma compreenso objetiva de quaisquer pensamentos e textos que se manifestassem por meio de palavras, conforme se ver mais adiante (cf. SOUZA CRUZ, Jurisdio constitucional democrtica, op. cit., p. 74-80). 63 Ver, para tanto, HUPFFER, Haide Maria. Educao jurdica e hermenutica filosfica. 2006. 380f. Tese de Doutorado. Programa de Ps-Graduao em Direito. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, So Leopoldo, 2006, p. 35-37. A respeito, especificamente, da influncia de Descartes no direito moderno, consultar MAIA, Alexandre da. O embasamento epistemolgico como legimitao do conhecimento e da formao da lei na modernidade: uma leitura a partir de Descartes. Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica - Direito, Estado e Democracia, Porto Alegre, n. 4, p. 13-37, 2006. Sobre o paradigma cientfico, o racionalismo jurdico e as origens do positivismo jurdico, ver, ainda, SOUZA CRUZ, Jurisdio constitucional democrtica, op. cit., p. 55-65.

  • 32

    cujo pensamento jurdico passa a dominar a cincia jurdica nos sculos XVII e

    XVIII64.

    De outro lado, paralelamente nova ordem cientfica, cumpre referir que

    as razes do positivismo jurdico tambm se encontram, inevitavelmente,

    vinculadas formao do Estado moderno65, que, com a dissoluo da sociedade

    medieval, concentra em si todos os poderes, dentre eles o da criao exclusiva do

    direito, isto , o monoplio da produo normativa, o que redunda no princpio

    da legalidade, inerente ao Estado de Direito66.

    Se antes do Estado moderno, o juiz tinha liberdade de escolha na

    determinao da norma a aplicar, podendo deduzi-la do costume, recorrer

    quelas elaboradas pelos juristas, basear-se em critrios eqitativos; com a sua

    formao e desenvolvimento, ele fica vinculado unicamente aplicao das

    normas emanadas do rgo legiferante67.

    Dito de outro modo, com a formao do Estado moderno, subtrada do

    juiz a faculdade de dispor sobre as normas a aplicar na resoluo das

    controvrsias, sendo-lhe imposta a obrigao de aplicar apenas as normas postas

    pelo Estado, o nico criador do direito68.

    Nesse sentido, como um dos precursores do positivismo jurdico, Hobbes

    destaca-se por combater a common law, defendendo o poder exclusivo do

    soberano de pr o direito, uma vez que isto seria indispensvel para assegurar o

    poder absoluto do Estado69.

    Segundo o fundador da primeira teoria do Estado moderno, a polmica

    poderia ser resumida do seguinte modo: de um lado, existem as leis do direito

    natural, porm no h nada que as tornem obrigatrias; de outro, o Estado, que

    64 Cf. HUPFFER, op. cit., p. 30. 65 Ver, para tanto, STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jos Luis Bolzan de. Cincia poltica e teoria geral do Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 24-45; BONAVIDES, Paulo. Do absolutismo ao constitucionalismo. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n. 5, p. 553-595, 2004, p. 557-563; e, tambm, CAPELLA, Juan Ramon. Fruto proibido. Uma aproximao histrico-terica ao estudo do direito e do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 66 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 26-27. 67 Id., ibid., p. 28. 68 Id., ibid., p. 29. 69 Id., ibid., p. 34.

  • 33

    surgiu com a finalidade de estabelecer padres de conduta e regulamentar as

    relaes sociais, produz normas jurdicas que so respeitadas em face da coao

    estatal.

    Muito embora no possa deixar de ser considerado jusnaturalista, na linha

    dos escritores polticos e jurdicos do sculo XVII, Hobbes termina por coloca em

    xeque a subsistncia do direito natural na medida em que nega a legitimidade da

    common law, isto , a legitimidade de um direito preexistente ao Estado e

    independente deste70.

    Tal problemtica objeto de uma das suas ltimas obras Dilogo entre um

    filsofo e um jurista71, na qual um filsofo, que o representa, combate a common

    law, enquanto um estudioso do direito, que representa um discpulo de Sir

    Edward Coke, a defende , onde aparece, ento, uma concepo jurdica tpica

    do positivismo: uma lei a ordem daquele ou daqueles que tm o poder soberano, dada

    queles que so seus sditos, declarando publicamente e de modo claro o que todos

    podem fazer e o que devem se abster de fazer72.

    Segundo Bobbio73, a definio hobbesiana contm duas caractersticas

    inerentes concepo positivista do direito: o formalismo, manifesto no fato de a

    definio proposta no fazer qualquer referncia ao contedo e tampouco ao fim

    do direito, mas decorrer apenas da autoridade daquele que pe as normas; e o

    imperativismo, explcito na idia de comando, uma vez que o direito seria o

    conjunto de normas com as quais o soberano ordena ou probe determinados

    comportamentos aos seus sditos.

    Assim sendo, ao examinar a tradio as doutrinas de Aristteles, Grotius

    e Pufendorf, o surgimento do Estado moderno, a revoluo cientifica, o

    racionalismo e o projeto iluminista para a humanidade , observa-se nitidamente

    que o direito natural caminhava para a construo do positivismo jurdico, na

    medida em que assumia o carter de um saber cientfico, universalmente vlido,

    70 Id., ibid., p. 34-35. 71 Cf. HOBBES, Thomas. Dilogo entre um filsofo e um jurista. So Paulo: Landy, 2001. 72 Id., ibid., p. 36. 73 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 36.

  • 34

    tendo na lei a expresso da vontade do Estado, baseada em uma racionalidade

    prtico-dedutiva74.

    Ademais, no se pode olvidar que o prprio iluminismo foi, fortemente,

    influenciado pelo jusnaturalismo do sculo XVII, que propunha uma sociedade

    constituda a partir de bases naturais e racionais. Segundo o jusnaturalismo

    moderno, ou iluminista, os homens eram todos iguais, ideal esse que, anos mais

    tarde, ser resgatado e registrado expressamente na Dclaration des Droits de

    lHomme et du Citoyen75.

    No entanto, aps a Revoluo Francesa, antecipando a eventual tenso

    entre juzes e legisladores, o Estado liberal acolhe a soluo absolutista dada ao

    problema eliminar poderes intermedirios e concentrar o poder pleno e

    ilimitado , lanando mo do dogma da onipotncia do legislador76, cujas

    codificaes elaboradas representam o triunfo celebrado pelo iluminismo e pelo

    liberalismo77.

    Desse modo, o deslocamento para o legislador da tarefa de pr normas

    iguais para todos, operado pelo Estado liberal, representa uma garantia dos

    cidados contra as arbitrariedades decorrentes da liberdade do juiz de aplicar as

    normas que bem entender na soluo dos conflitos78.

    Nessa mesma linha, com o advento da clssica teoria da separao de

    poderes, desenvolvida por Montesquieu, surge a tese segundo a qual no se

    74 Ver, para tanto, HUPFFER, op. cit., p. 52. A respeito do tema, ver, tambm, SILVA, Ovdio Baptista da. Processo e ideologia. O paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 5-87. 75 Destaque-se, por oportuno, que a Revoluo Francesa representa, para muitos autores, o pice do jusnaturalismo revolucionrio: um sistema racional e ideal de valores atuando contra a legalidade absolutista estabelecida. 76 Nesse sentido, ver ZAGREBELSKY, Gustav. El derecho dctil. Ley, derechos, justicia. 6. ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 33: La concepcin del derecho propia del Estado de derecho, del principio de legalidad y del concepto de ley del que hemos hablado era el positivismo jurdico como ciencia de la legislacin positiva. La idea expresada por esta frmula presupone una situacin histtico-concreta: la concentracin de la produccin jurdica en una sola instancia constitucional, la instancia legislativa. Su significado supone una reduccin de todo lo qu pertenence al mundo del derecho esto es, los derechos y la justicia a lo dispuesto por la ley. Esta simplificacin lleva a concebir la actividad e los juristas como in mero servicio a la ley, si no incluso como su simple exgesis, es decir, conduce a la pura y simple bsqueda de la voluntad del legislador. 77 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 38; e, ainda, SILVA, Processo e ideologia, op. cit., p. 5-87. 78 Ver, por todos, MATTEUCCI, Nicola. Organizacin del poder y liberdad. Histria del constitucionalismo moderno. Madrid: Trotta, 1998; e, tambm, DUSO, Giuseppe (Org.). O poder. Histria da filosofia poltica moderna. Petrpolis: Vozes, 2005.

  • 35

    deve deixar ao juiz qualquer liberdade para que ele exera a sua fantasia

    legislativa: a deciso do juiz deve ser uma reproduo fiel da lei79.

    Com efeito, a subordinao dos juzes lei tende unicamente a garantir

    aquilo que o mais valioso para o liberalismo: a segurana jurdica, para que o

    cidado tenha certeza a respeito da legalidade de seus comportamentos80.

    Para Bobbio, em que pese os escritores racionalistas do sculo XVIII terem

    teorizado sobre a onipotncia do legislador, ainda no se pode falar em

    positivismo jurdico propriamente dito, haja vista que o pensamento liberal

    mantm conceitos ligados filosofia jusnaturalista, tais como o estado de

    natureza, a lei natural, o contrato social, etc., e que o direito natural cumpre a

    funo de colmatar as lacunas do direito positivo81.

    Apenas com a idia de codificao que desaparece o direito natural,

    solidificando-se o positivismo jurdico. Entretanto, observa Bobbio82, o fenmeno

    da codificao se d de um modo muito curioso: na Alemanha, os homens

    cultos, dentre ele Savigny, conseguiram retard-la por quase um sculo porque

    acreditavam que as condies no lhe eram favorveis; na Frana, houve

    codificao, porm sem que tenha ocorrido, de fato, a sua teorizao; na

    Inglaterra, ao contrrio, no houve a codificao, mas foi elaborada ampla teoria

    a partir dos aportes de Bentham e Austin.

    Nesse contexto, sendo a Frana o palco onde se d o fenmeno da

    codificao, merece destaque especial o papel desempenhado pelo Cdigo de

    Napoleo (1804), obra do pensamento iluminista da segunda metade do sculo

    XVIII, originria de idia que adquire consistncia poltica durante a Revoluo

    Francesa, mais especificamente com a Constituio de 1791, na qual resta

    consagrado o princpio da codificao83, segundo o qual ser feito um cdigo de leis

    civis comuns a todo o reino84.

    79 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 40. 80 Id., ibid., p. 40. 81 Id., ibid., p. 91. 82 Id., ibid., p. 42-43. 83 La proclamacin francesa de los derechos operaba as como legitimacin de una potestad legislativa que, en el mbito de la direccin renovadora que tena confiada, era soberana, es decir, capaz de vencer

  • 36

    Contudo, quaisquer que pudessem ter sido as intenes dos constituintes

    franceses (1789-1791), a promissora idia da lei como codificao do direito no

    podia mais do que se revelar inimiga do valor jurdico da prpria Dclaration85.

    Mais: se o Cdigo de Napoleo considerado o marco de uma nova

    tradio jurdica, que sepulta de vez aquela que a precede, isto decorre dos seus

    primeiros intrpretes, e no dos redatores do texto legal, dentre os quais se

    destacou Portalis86.

    A emblemtica discusso cujos efeitos se reproduzem at os dias de hoje

    gira em torno do significado atribudo ao famoso art. 4 do Cdigo

    napolenico: o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silncio, da obscuridade ou

    da insuficincia da lei, poder ser processado como culpvel de justia denegada.

    O referido dispositivo legal institui aquilo que se conhece por princpio do

    non liquet, segundo o qual o juiz deve em cada caso resolver a controvrsia que

    lhe submetida, estando excluda a possibilidade de abster-se de decidir sob o

    argumento de que a lei no oferece regula decidendi87.

    O grande problema se d nos casos de insuficincia e silncio da lei, em

    que o juiz deve supri-la, deduzindo de qualquer modo a regra para resolver a

    controvrsia que lhe foi submetida. A pretenso dos redatores do art. 4 do

    Cdigo era deixar aberta a possibilidade da livre criao do direito por parte do

    juiz. No entanto, a soluo adotada pelo positivismo jurdico em sentido estrito

    foi a de que o dogma da onipotncia do legislador est ligado ao dogma da

    completude do ordenamento jurdico, isto , de que o juiz deve sempre

    encontrar as respostas no interior da prpria lei, tendo em vista que nela esto

    todos los obstculos del pasado que hubieran podido impedir o ralentizar su obra innovadora. La idea o mejor, la ideologia de la codificacin, esto es, la idea de la fundamentacin ex novo de todo el derecho en un nico sistema positivo de normas precisas y completas, condicionado solamente por la coherencia con sus principios inspiradores, es la primera y ms importante consecuencia de la Dclaration (cf. ZAGREBELSKY, El derecho dctil, op. cit., p. 52). 84 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 65-66. 85 Ver, nesse sentido, ZAGREBELSKY, El derecho dctil, op. cit., p. 53, para quem No tuvo lugar, pues, el sometimiento de la ley al control de los derechos sino que, al contrario, seprodujo el control de legalidad de los derechos, cuya verdadera Constitucin jurdicamente opeante no fue la Dclaration, sino el Code Civil, no en vano denominado con frecuencia la Constitucin de la burguesa liberal. 86 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 73. 87 Id., ibid., p. 74.

  • 37

    contidos os princpios que permitem individualizar uma disciplina jurdica para

    cada caso atravs da interpretao88.

    Nesse sentido, a leitura do art. 4 do Cdigo de Napoleo fator

    determinante na fundao da escola dos intrpretes do Cdigo Civil,

    denominada Escola da Exegese, no transcorrer do sculo XIX, movimento

    doutrinrio marcado por assumir um tratamento cientfico do cdigo e reduzi-lo

    a comentrios, artigo por artigo, de forma sistemtica e metodolgica89.

    Alm disso, tal escola no s desconsiderava todo o direito precedente,

    mas tambm acreditava que o cdigo contivesse, em si, as normas para todos os

    casos futuros, recorrendo inteno do legislador quando necessrio, e limitava-

    se a uma interpretao passiva e mecnica da lei90.

    As causas que concorrem para o seu advento, cujos reflexos no

    desenvolvimento do positivismo jurdico so ser facilmente percebidos, podem

    ser resumidas da seguinte forma: (a) o prprio fenmeno da codificao, que

    simplifica a resoluo dos conflitos na medida em que reduz as fontes do direito

    lei; (b) o fato de, poca, a mentalidade dos juristas estar absolutamente

    dominada pelo princpio da autoridade; (c) a idia de fidelidade ao cdigo,

    mormente em face da recente doutrina da separao de poderes; (d) o princpio

    da certeza do direito, decorrente da revoluo cientfica levada a cabo pelo

    racionalismo, mediante a utilizao de mtodos e critrios capazes de garantir

    exatido e segurana s anlises do direito; e, por fim, (e) as presses exercidas

    pelo regime napolenico sobre os estabelecimentos de ensino superior no

    sentido de que fossem abandonadas as teorias e concepes jusnaturalistas,

    devendo ser lecionado apenas o direito positivo91.

    88 Id., ibid., p. 74-75. 89 A respeito das origens do positivismo jurdico e das influncias da Escola da Exegese na cultura jurdica atual, ver BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. A interpretao jurdica no Estado democrtico de direito: contribuio a partir da teoria do discurso de Jrgen Habermas. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.). Jurisdio e hermenutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 303-307. 90 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 77-78. 91 Id., ibid., p. 78-83.

  • 38

    Suas principais caractersticas eram (a) a inverso das relaes tradicionais

    entre direito natural e direito positivo, atravs da qual os juristas, timidamente,

    desvalorizam a importncia e o significado prtico do jusnaturalismo; (b) a

    concepo rigidamente estatal do direito, segundo a qual jurdicas so

    exclusivamente as normas postas pelo Estado; (c) a interpretao fundada na

    vontade da lei, a partir da inteno do legislador, como j referido

    anteriormente; (d) o culto do texto da lei, a partir da identificao do direito com

    o direito positivo, mediante o qual o intrprete deve ser rigorosamente

    subordinado s disposies do cdigo; e (e) o respeito ao princpio de

    autoridade92.

    Observa-se, desse modo, que o positivismo jurdico nasce justamente do

    impulso histrico para a legislao93 que exsurge para pr ordem ao caos do

    direito primitivo e para fornecer ao Estado um instrumento eficaz para a

    interveno na vida social, sobretudo ao assimilar postulado antimetafsico,

    positivo-dogmtico, estruturalmente formal e cientfico , isto , no momento em

    que a lei torna-se a fonte exclusiva do direito, e seu resultado ltimo

    representado pela codificao94.

    Dito de outro modo, pode-se afirmar que a concepo de positivismo

    jurdico nasce to-somente quando direito positivo e direito natural deixam de

    ser considerados direito no mesmo sentido, e o direito positivo passa a ser

    entendido como direito em sentido nico e prprio95.

    Com o positivismo jurdico, portanto, ocorre a excluso do direito natural

    da categoria conceitual do direito96 e, conseqentemente, a reduo de todo o

    92 Id., ibid., p. 83-89. 93 Cf. HUPFFER , op. cit., p. 47: A excessiva confiana no poder da razo foi transportada para o direito quando da criao dos primeiros cdigos. O dogma do racionalismo o valor da certeza no direito, sua universalidade e sua verdade est na tecnicidade, no formalismo e na exegese normativista assumida pelo positivismo jurdico. 94 BOBBIO, O positvismo jurdico, op. cit., p. 119. 95 Sobre o fenmeno da positivao do direito, ver FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2003, p. 72-81. 96 Dentre as acusaes direcionadas ao jusnaturalismo destacam-se (a) a de que falta clareza na sua proposta, visto que um de seus elementos centrais a natureza plurvoco, no possuindo densidade semntica suficiente para ser objetivamente analisado e estudado; (b) a de que a expresso direito no remete aos trs elementos definidores do fenmeno jurdico: carter positivo de coao, determinabilidade semntica de suas prescries e suporte poltico estatal para sua efetividade; e,

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    direito ao direito positivo, o que resulta na seguinte frmula: o positivismo

    jurdico a doutrina segundo a qual no existe outro direito seno o positivo97.

    Contudo, necessrio atentar para o fato de que, muito o embora o germe

    do positivismo jurdico tenha sido plantado com a positivao, ele significa

    muito mais do que ela, consistindo em uma verdadeira epistemologia e/ou

    ideologia de leitura do direito positivo essencialmente metafsica , segundo a

    qual o conhecimento jurdico deve ser convertido em cincia, a parir da crena

    na autosuficincia da lei98.

    Cumpre referir, aqui, que a expresso positivismo serve para designar

    aquelas correntes filosficas que se caracterizam pela adeso realidade e pela

    rejeio de especulaes no justificveis por uma referncia ao dado emprico,

    tendo em vista que o termo positivo pretende afirmar o valor do mundo objetivo,

    dado, posto, real, em relao quele meramente pensado, desejado ou valorizado

    por um sujeito qualquer99.

    Assim sendo, ao contrrio do jusnaturalismo, que pretendia poder afirmar

    a natureza racional de algumas normas, o positivismo afirmar que o direito o

    resultado dos atos de vontade identificados socialmente, repudiando a idia de

    que ele possa derivar da razo100, haja vista que no h uma ordem no mundo

    que d sustentao a essas normas, no h uma natureza humana ou natureza das

    coisas que possa ser assumida como fonte de normas101.

    sobretudo, (c) a de que o seu ideal de justia relativo e subjetivo, no sendo passvel de demonstrao o fato de que a mesma concepo possa ser aplicada a todos os povos e em todas as pocas (cf. BEDIN, op. cit., p. 242). 97 Cf. BOBBIO, O positivismo jurdico, op. cit., p. 26. 98 Nesse sentido, ver GALUPPO, Marcelo Campos. A epistemologia jurdica entre o positivismo e o ps-positivismo. Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica Crtica dogmtica, Porto Alegre, n. 3, p. 195-206, 2005, p. 198. 99 Ver, para tanto, BARZOTTO, op. cit., p. 642. 100 Cf. HUPFFER, op. cit., p. 54: Bobbio um dos autores que melhor resume essa posio dizendo que o direito natural no direito como o o direito positivo e, em segundo lugar, diz que o direito natural um equvoco; portanto, no serve para fundamentar um acordo unnime sobre o que se entender por justo ou injusto. Seu fundamento est em que no h unanimidade sobre o que se conceitua como natural. Enfatizar essa questo significa, para Bobbio, uma forma de mostrar a impossibilidade de a sociedade ser regida por um sistema de legitimidade natural, ou seja, por um direito natural que tem como dogma valores naturais e imutveis no tempo. Essa caracterstica, para ele, no garante nem segurana, nem paz, principalmente porque carece do atributo da eficcia. Na mesma linha, ver, ainda, KELSEN, Hans. A justia e o direito natural. Coimbra: Armnio Amado, 1963. 101 Cf. BARZOTTO, op. cit., p. 644.

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    Tendo em vista tal contexto, no qual se verifica a preocupao do

    positivismo com a necessidade de superar a metafsica a partir da realidade,

    entendida como tudo o que estivesse ao alcance da razo e, ao mesmo tempo,

    pudesse ser evidenciado atravs da experincia e da demonstrao analtica, o

    direito passa a ser concebido como um conjunto de normas, de contedo

    arbitrrio, promulgadas de modo formalmente correto102.

    Em outras palavras, em contraste com o jusnaturalismo, segundo o qual o

    direito objetivamente cognoscvel e preexistente, na natureza, na lei divina, na

    razo, o positivismo jurdico considera que o direito no est predeterminado,

    ou pelo menos os contedos jurdicos preexistentes no so cognoscveis