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De pobreza, resistência e esperança: educação, juventudes e lutas contra-hegemônicas no Haiti Titulo Marques, Pâmela Marconatto - Autor/a; Autor(es) Buenos Aires Lugar CLACSO Editorial/Editor 2013 Fecha Serie Documentos de Trabajo, Red de Posgrados, no. 42 Colección Pobreza; Juventud; Universidades públicas; Educación universitaria; Educación; Luchas sociales; Contrahegemonía; Haití; Temas Doc. de trabajo / Informes Tipo de documento "http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/posgrados/20140120033041/Marconatto.pdf" URL Reconocimiento-No Comercial-Sin Derivadas CC BY-NC-ND http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es Licencia Segui buscando en la Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSO http://biblioteca.clacso.edu.ar Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) Latin American Council of Social Sciences (CLACSO) www.clacso.edu.ar

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De pobreza, resistência e esperança: educação, juventudes e lutas

contra-hegemônicas no Haiti

Titulo

Marques, Pâmela Marconatto - Autor/a; Autor(es)

Buenos Aires Lugar

CLACSO Editorial/Editor

2013 Fecha

Serie Documentos de Trabajo, Red de Posgrados, no. 42 Colección

Pobreza; Juventud; Universidades públicas; Educación universitaria; Educación;

Luchas sociales; Contrahegemonía; Haití;

Temas

Doc. de trabajo / Informes Tipo de documento

"http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/posgrados/20140120033041/Marconatto.pdf" URL

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RED DE POSGRADOSDOcumEntOS DE tRAbAjO

De pobreza, resistência e esperança: educação, juventudes e lutas contra-hegemônicas no Haiti

Pâmela Marconatto Marques

CLACSO#42

2013

Marconatto Marques, Pâmela De pobreza, resistência e esperança : educação, juventudes e lutas contra-hegemônicas no Haiti . - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires : CLACSO, 2013. E-Book.- (Red CLACSO de posgrados / Pablo Gentili)

ISBN 978-987-722-006-3

1. Educación. 2. Pobreza. I. Título CDD 362.5

Trabalho final apresentado à Escola de Montevideo, promovida pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, em parceria com a Red INJU e UNESCO..Las opiniones vertidas en este documento son exclusiva responsabilidad del autor y no necesariamente expresan la posición de CLACSO.

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Colección Red CLACSO de Posgrados en Ciencias SocialesCLACSO

#42

5RED DE POSGRADOS

Pâmela Marconatto Marques: Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Integração Latino-americana pela mesma instituição. Bacharel em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria.

Resumo

O trabalho proposto articula os relatos de uma visita a campo com uma in-vestigação teórica sobre as principais características da educação haitiana, do ensino básico ao superior, com ênfase em sua Universidade Pública e nas esperanças e perspectivas apresentadas, a partir daí à juventude haitana. Nesse sentido, propõe-se uma revisão da história de luta e resistência que permeia a Universidade de Estado do Haiti e, mais especificamente, o engajamento contra-hegemônico de seus jovens estudantes, aliada a uma abordagem das problemáticas surgidas e/ou acentuadas com o terremoto que assolou o país em janeiro de 2010. A título de conclusão, reforçamos a importância da educa-ção nos planos de reestruturação do país e da Universidade, enquanto espaço público privilegiado, em sua consolidação democrática.

Palavras-chave: Haiti; Educação e pobreza; Universidade Pública; Juventude e Lutas contra-hegemônicas.

Resumen

El trabajo propuesto articula relatos de una visita a campo con una investigación teórica acerca de las principales características de la educación en Haití, desde la primaria hasta la educación superior, con énfasis en la Universidad Pública, las esperanzas y perspectivas presentadas desde allí a las juventudes haitianas. En consecuencia, se propone una revisión de la historia de lucha y resistencia de la Universidad del Estado de Haití y, más concretamente, el compromiso contra-hegemónico de sus jóvenes estudiantes, junto con un enfoque de las problemáticas surgidas y / o acentuadas por el terremoto que asoló el país en enero de 2010. En conclusión, destacamos la importancia de la educación en los planes de reestructuración del país y de la Universidad, reconocida como espacio público privilegiado en su consolidación democrática.

Palabras clave: Haití, educación y pobreza, Universidad Pública; juventud y luchas contra-hegemónicas.

RED DE POSGRADOS

Abstract

The proposed essay articulates the reports of a field trip with a theoretical investigation of the main features of the Haitian education, from primary to ter-tiary level, with emphasis on its Public University, the hopes and perspectives presented since ir for the haitian youth. In this sense, we propose a review of the history of struggle and resistance that permeates the State University of Haiti and, more specifically, the counter-hegemonic engagement of their young students, together with an approach of the problems arising and / or marked with the earthquake that struck the country in January 2010. In conclusion, we emphasize the importance of education in the restructuring plans of the country and the University as privileged public space in its democratic consolidation.

Keywords: Haiti, Education and poverty; Public University; Youth and counter-hegemonic struggles.

Introdução

Em Março de 2008, como pesquisadora vinculada ao Projeto Brasil-Haiti, viajei, pela primeira vez, ao país caribenho. Há dois anos vinha estudando a situação do Haiti enquanto país menos avançado, categoria que reúne cerca dos cinquenta países mais pobres do mundo, de acordo com critérios tais como baixa renda, debilidade dos recursos humanos e vulnerabilidade econômica, acentuados por desastres naturais ou guerras civis1. Dentre esses países, constituídos por uma maioria africana, o Haiti é o único latino-americano.

Intrigava-me profundamente, nessa época, o fato de o Haiti ter sido a mais rica das colônias francesas no século XVIII, a primeira república negra a livrar-se do sistema de escravidão e da colonização, e, durante o século XX, ter-se torna-do o país mais pobre do continente e passado a integrar a “mal(-)dita” lista dos menos avançados. Desde o início de meus estudos, estimulada pelo consenso que dominava os foros multilaterais de discussão na última década do Séc. XX, apostando na educação como um dos principais elementos de superação da pobreza, decidi investigar as faces da educação haitiana, possivelmente uma das menos conhecidas da América Latina. Mais especialmente, interessava--me a educação como local de esperança, construção de possibilidades e perspectivas aos jovens haitianos. Os jovens a interessar-me, nesse sentido, encontram-se sobretudo nas regiões rurais do Haiti, integrando famílias muito pobres. Entretanto, ao contar a história de lutas contra-hegemônicas da Univer-sidade haitiana, também interessam-me os jovens a ela vinculados desde seu advento, durante a ditadura Duvalier, uma das mais sangrentas da história do país. Essa preocupação em situar esses jovens e não tomá-los como categoria universal e homogênea responde à advertência de Arce:

(...) se ha desarrollado en la conceptuación de la juventud como construcción sociocultural históricamente definida, aunque se ha avanzado poco en la delimitación de sus rasgos significantes y muchas veces se piensa lo juvenil fuera de su contexto social y relacional, o se le atribuye características omnicomprensivas, como si desde lo juvenil se pudiera interpretar al conjunto de elementos que definen los proyectos de vida de las y los jóvenes. (Arce apud Barbero, 2005:20)

Ressalta-se, ainda a noção trazida pelo autor recém citado de intensidade do tempo social como a mais hábil a explicar as distinções entre as condições de

1 As informações aqui constantes sobre os PMAs foram extraídas do sítio oficial da ONU dedicado ao tema: http://www.unric.org/pt/paises-menos-avancados acessado em 23 de dezembro de 2011.

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vida das distintas juventudes e que “alude a procesos de vida diferenciados. Esto no sólo refiere a periodos específicos de la historia, sino también a la existencia de cambios desiguales o intensidades diferenciadas de vida” (idem). A partir dessa noção, entender-se-á, ao fim desse estudo, a perspectiva abso-lutamente diferenciada em que se inserem as juventudes haitianas, vivenciando um tempo social intensificado, denso e pesado, que lhes curva sobre a vida adulta desde muito cedo.

Ciente dessa necessidade de situar o estudo que se pretende oferecer aqui, procuraremos articular os relatos de uma visita de campo realizada no Haiti com uma investigação teórica que defina, ainda que de modo preliminar, as princi-pais características da educação haitiana, sobretudo daquela voltada ao Ensino Superior que encerra as oportunidades mais concretas aos jovens haitianos.

Ao propor uma interlocução teórica sobretudo com autores haitianos, atravessada por dados apresentados em reltórios internacionais e observação de campo tomamos por base, ainda, a advertência de Alvarado e Ospina de que:

El proceso dialéctico de diálogo (deve ser) permanente mediado por la reflexión crítica, en el que se busquen relaciones de nivel más complejo, más lejanas de la evidencia empírica, asociadas a la inferencia teórica; sólo desde ellas se puede lograr la reconstrucción global de un texto social. (ALVARADO,2009:83)

Busca-se, assim, trazer à tona as problemáticas surgidas e/ou acentuadas com o terremoto que assolou o país em janeiro de 2010 e os desafios/possibilidades instaurados por esse mesmo evento, ligadas à reconstrução da própria Univer-sidade e seu papel decisivo na reconstrução democrática do Haiti.

Escolas haitianas: exclusão e reforço da pobreza

As bases do ensino haitiano foram importadas da frança, quando da indepen-dência do Haiti, em 18042. Daí o fato de a língua oficial das escolas/universi-dades ter sido, durante a maior parte do tempo, o francês e não o kréyol3 e do pressuposto de que as instituições de ensino deveriam concentrar-se nas cidades e formar uma elite separada das massas ou das classes populares (INURED, 2010:13).

Ainda hoje, mesmo depois de reformas importantes4, as desigualdades sócio-educacionais manifestam-se com força nos diferentes tipos de escolas públicas e privadas, que afunilam drasticamente o caminho do haitiano até a Universidade. Joint (2008:185) distingue cinco categorias de escolas no Haiti:

I. escolas borlette (de loteria), escolas privadas, caracterizadas pela precariedade estrutural e de recursos humanos e, em razão de seu baixíssimo custo, frequentadas por alunos que não conseguiram

2 Para conhecer mais profundamente o processo de abolição da escravatura, seguido pela independência haitiana, ver: CASTOR, Susy. El significado histórico de La revolucion de Saint Domingue. OSAL, ano IV, no 12, 2003. Sua autora, Suzy Castor é uma conhecida historiadora e articuladora social haitiana, atual diretora do CRESFED – Centre de Fomartion et de Recherche Économique et Sociale pour Le Développment, no Haiti. 3 O créole é uma língua com elementos de francês e espanhol – as línguas faladas pelos colonizadores haitianos – fundamental na articulação do processo de independência haitiano. Na reforma educacional realizada 1979, passou a ser a língua oficial, a ser ensinada nas escolas públicas haitianas que, no entanto, somente contavam com material didático em francês, dificuldade que permanece nos dias atuais.4 Em 1879, por exemplo, deu-se uma das mais importantes reformas educacionais do Haiti, estabelecendo a criação de escolas rurais e campanhas de alfabetização de adultos camponeses. Um século depois, a taxa de escolarização das crianças e jovens haitianos (de 5 a 14 anos) havia passado de 8% para 52%. Entretanto, dos 48% dessas crianças e jovens em idade escolar que permaneciam sem acesso à escola, 79% estavam no meio rural (JOINT,pg.183).

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pagar as taxas regulares de outra escola. São maioria na zona rural haitiana;

II. escolas médias, escolas privadas, caracterizadas como um pouco superiores que as borlette, mas ainda bem inferiores às congregacionais, uma vez que seu quadro de professores é inferior. Geralmente, são as melhores escolas da zona rural, dirigidas por particulares preocupados com a educação de seus próprios filhos. Dentre os alunos, aqueles que pagam regularmente as taxas recebem acompanhamento pedagógico;

III. escolas congregacionais, escolas privadas, normalmente compostas por um quadro de professores bem formado, estruturas pedagógicas e materiais didáticos mais ou menos adequados e acompanhamento pedagógico regular. São frequentadas, sobretudo, pelas classes populares urbanas. Nessas escolas, é comum a separação dos alunos de acordo com sua classe social: enquanto a turma da manhã é reservada às crianças cujos pais têm condições de pagar as taxas, a turma da tarde reúne as crianças pobres, cujos pais não as podem pagar e são recebidas a título de caridade.

IV. escolas internacionais, escolas privadas, localizadas apenas em setores urbanos e em pequeno número. Geralmente, essas instituições são geridas por estrangeiros e professores haitianos formados no exterior. Seu programa de ensino nada tem a ver com o sistema educacional haitiano, uma vez que aplicam apenas programas em vigor na frança, no Canadá e nos Estados Unidos. Estas instituições, freqüentadas sobretudo por filhos de funcionários internacionais e da elite haitiana, prepara o jovem para continuar seus estudos superiores no exterior e, por isso, são bastante caras.

V. liceus, escolas públicas, frequentada pelas camadas populares e, em menor número, por filhos das classes médias do país (comerciantes, funcionários públicos de baixo escalão, professores, etc) que não querem pagar escolas privadas. A maioria dos liceus tem a reputação de ter bons professores, mas são recorrentes atrasos e faltas.

Em visita a Léon, localidade próxima a Jerémie, na costa oeste haitiana, co-nheci diversas escolas rurais, a maioria delas escolas bourlette ou de loteria, e algumas médias. Por sua precariedade, essas escolinhas rurais lembravam aquelas vistas no Norte brasileiro, com a diferença de que, no Haiti, elas são privadas e não há qualquer programa de redistribuição de renda que possa auxiliar as famílias em seu pagamento. E, em um país onde 85% da população vive abaixo da linha da pobreza, a taxa paga à escola pode ser a diferença entre comer ou não. O Estado, por sua vez, não contribui, não fiscaliza e sequer conhece a maioria dessas escolas.

É importante ressaltar que 50% das crianças haitianas estão fora da escola5 e, entre as que estão dentro, mais de 80% frequentam escolas priva-

5 No alto índice de crianças fora da escola incluem-se, tem participação o fenômeno restavek, como são conhecidas crianças que, entregues por suas famílias, geralmente muito pobres, à alguma em melhores condições, tornam-se escravas domésticas, responsáveis, inclusive, pela iniciação sexual dos meninos da casa. Para saber mais sobre os restaveks, ver: Restavek: the persistence of child labour and slavery, relatório apresentado às Nações Unidas pela Fundação Restavèk Freedom em outubro de 2011, disponível em: http://lib.ohchr.org/HRBodies/UPR/Documents/session12/HT/RF-Restav%C3%A8kFreedom-eng.pdf acessado em 08 de fevereiro de 2012.

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das6. Nessas, a prática de “seleção por eliminação” vem afastando centenas de milhares de jovens do ensino médio e superior.

Através dessa prática, nas palavras de Joint, “os alunos fracos são gra-dativamente excluídos, e apenas os ‘mais fortes’ sobrevivem e chegam às últimas classes” (Joint, 2008: 187). A seleção por eliminação conta com exames aplicados regularmente ao final os ciclos de vida escolar7. Caso o aluno não obtenha aprovação, deve pagar uma taxa que aumenta proporcionalmente ao número de reprovações que o aluno tiver. Assim, se for reprovado por três anos consecutivos, terá de pagar uma taxa três vezes maior para voltar a repetir o ano escolar e, ao final, tentar mais uma vez a aprovação no exame.

Podemos facilmente concluir que a maioria deles abandona os estudos já na primeira reprovação, dado o alto custo da taxa. Em minha viagem ao Haiti, ouvi muitas vezes a explicação de que o sistema havia sido criado para “evitar a vagabundagem entre os alunos” e manter na escola apenas os que a valori-zavam. Entretanto, em minhas caminhadas e em conversas com a população local soube que na maioria das escolas o turno de estudos é integral e como não há energia elétrica, os alunos têm dificuldade para estudar à noite. Para enfrentar a falta de energia, era comum ver jovens amontoando-se em torno dos postes de luz em postos de gasolina de multinacionais e subindo aos telhados com os primeiros raios de sol para estudar. Eis aí as marcas de uma distinta intensidade do tempo social vivenciada pelos jovens haitianos (Arce, op.cit).

Em razão disso, tememos que a educação haitiana seja um dos garan-tidores da reprodução de um sistema social fundado sobre a exclusão e, uma vez que não há qualquer regulação do ensino privado pelo Estado, acreditamos que a educação no Haiti não está inserida em um projeto de país e menos ainda voltada para a superação da pobreza.

O drama se acentua quando se tem a chance de conversar com as famílias que se sacrificam para pagar a escola dos filhos, e se percebe a fé inquebran-tável que depositam na educação como vetor quase exclusivo de mobilidade social. Sobretudo, percebi que essas famílias sonhavam com o ingresso de seus filhos na Universidade.

Minhas anfitriãs em Jerémie disseram-me que para um jovem que não vivesse ou não tivesse parentes na capital Porto Príncipe, onde a Universidade Pública do Haiti está instalada, cursar uma faculdade era praticamente impossí-vel. Sem dinheiro para as necessidades mais básicas, era impensável para uma família pobre – principalmente de camponeses – arcar com aluguel, alimentação e pagamento das taxas, pagas mesmo à Universidade Pública, de um filho em Porto Príncipe. A saída que muitos jovens da região vinham encontrando era o aprendizado da língua portuguesa – que as freiras brasileiras ofereciam – e a tentativa de uma bolsa de estudos no Brasil, também intermediada por elas. Junto dessa alternativa – que contemplava um ou dois jovens por ano – estava a mesma tentativa de bolsa em Universidades cubanas.

Conheci alguns jovens que vinham empenhando-se nos preparativos para a tentativa de uma bolsa no Brasil. Eles já falavam um português bastante correto, criavam e declamavam poesias em nosso idioma. Impressionou-me o desejo, manifesto por muitos deles, de voltar ao Haiti depois de formados, e

6 Os dados apresentados constam no projeto “Education for all in Haiti” de autoria do Banco Mundial, disponível no link:http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/COUNTRIES/LACEXT/0,,contentMDK:21896642~pagePK:146736~piPK:146830~theSitePK:258554,00.html acesso em 07 de fevereiro de 2012.7 A educação no Haiti é dividida em ensino básico, que compreende nove anos letivos, divididos em três ciclos, respectivamente de quatro, dois e três anos; nível médio ou secundário, que compreende quatro anos, levando à obtenção de um diploma de bacharelado e com a obtenção do mesmo, o jovem pode candidatar-se a uma vaga em nível superior, através de um exame de admissão.

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empregar seus conhecimentos no país8. Esses jovens constituíam a minoria que termina o ensino médio em regiões rurais.

A Universidade pública no Haiti

A única Universidade Pública do Haiti9 foi fundada em 1945, a partir da agre-gação de faculdades que já funcionavam autonomamente10, sob o nome de Universidade do Haiti11. Em 1960, ocorreu sua reinauguração sob o regime ditatorial de François Duvalier, quando recebeu o nome atual, Universidade de Estado do Haiti (UEH). Entretanto, há cerca de um século, faculdades como a de Direito já existiam no país, voltadas à formação dos quadros que determinaram um longo período de políticas e formação institucional do país.

A Universidade conta, atualmente12, com cerca de 15 mil estudantes, 1.100 mil professores e 400 funcionários, divididos em suas onze unidades na capital e sete outras distribuídas pelo país e um número crescente de candi-datos buscando admissão.

Um dos grandes problemas da UEH está no fato de que, assim como todas as universidades privadas, tampouco ela possui um campus central e as unida-des acima descritas se encontram dispersas por toda a cidade, obrigando os alunos a deslocamentos muito dispendiosos, em termos de tempo e recursos, através de uma cidade cujos engarrafamentos (já mesmo antes de o terremoto destruir ou bloquear grande parte das principais ruas, avenidas e estradas) não ficam em nada a dever a qualquer outra caótica metrópole latino-americana.

Ainda, cita-se a clara concentração da Universidade Pública – mas tam-bém das privadas – na capital Porto Príncipe (departamento Oeste), como demonstram os gráficos abaixo:

8 Mais tarde confirmaria a impopularidade dessa disposição entre os jovens que vêem na Universidade, sobretudo, o passaporte para um país estrangeiro, de onde possam enviar remessas de dinheiro às famílias que permanecem no Haiti e aumentando os números da diáspora haitiana.9 As informações acerca da UEH foram retiradas de dois importantes relatórios: um deles feito pelos brasileiros Nascimento e Tomhas (2010) para o Ministério da Educação do Brasil, e o outro pelo INURED (2010), instituto de pesquisa e desenvolvimento sediado em Porto Príncipe.10 As faculdades referidas são Direito, Ciências, Medicina e a Escola de Agricultura.11 Há, além da UEH, alguns centros de pesquisa e formação públicos, quase todos concentrados em Porto Príncipe e suas imediações.12 Esses dados referem-se à situação imediatamente anterior ao terremoto.

Gráfico 1 - Dispersão das Instituições Gráfico 2 – Distribuição espacial dos de Ensino Superior no Haiti Estudantes no Ensino Superior no Haiti

Fonte: elaboração própria a partir do Relatório do INURED (2010)

20%

80%

Porto Principe

Resto del País Instituciones Privadas

Instituciones Públicas

29.754

4.44612.335 6.781

Porto Principe e inmediaçoes

Resto do País

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Acerca da gestão interna dessa Universidade, apenas com o fim da ditadura Duvalier (1957-1986) e a promulgação de uma nova constituição (1987) é que deixou de ser completamente dirigida pelo Estado e passou a contar com au-tonomia e independência. Em 1997, foram aprovados os termos dessa nova condição, as “Disposições transitórias relativas à organização da administração central da Universidade de Estado do Haiti (1997)”, que enfatizavam a partici-pação e representação democrática na gestão da Universidade.

Esse documento também estipulava que os líderes da administração central da Universidade fossem apontados por meio de eleições abertas a pro-fessores, alunos e funcionários e, ainda, apontava como órgão máximo, acima da Reitoria, um conselho formado por integrantes de um conselho executivo, coordenadores de unidade, um professor e um aluno. Ainda assim, inúmeros relatórios apontam problemas nesse sistema aparentemente democrático de governança, que contrastam com a postura que sua comunidade acadêmica adotou ao longo das últimas décadas, em relação à cena política do país, analisada a partir de agora.

Uma história de luta e resistência

Desde seu advento, mas em especial durante a vigência das ditaduras Duvalier, a UEH sofreu contínuas intervenções do poder estatal, tornando-se um dos alvos preferenciais da obsessão anticomunista que se espalhou pelo país, como no restante da América Latina:

faculdades e institutos sofreram intervenção direta, o movimen-to estudantil foi banido e seus líderes perseguidos, professores e alunos foram sequestrados, presos, torturados e mortos, além de outros tantos que buscaram refúgio no exílio (Nascimento;Thomaz, 2010:56)13.

Assim como no Brasil e grande parte da América Latina, a atitude estatal re-pressiva, longe de desmobilizar, contribuiu para elevar o grau de politização da comunidade universitária que, ao lado de organizações populares, comunidades eclesiais de base e o movimento sindical, formou um dos mais importantes centros de resistência organizada à ditadura.

É interessante registrar que esse diálogo com a sociedade civil resistiu ao final da ditadura, quando a Universidade firmou-se como centro de deba-tes e de resistência a governos que não se mostrassem comprometidos com os ideais de desenvolvimento nacional, democratização radical e melhora da qualidade de vida dos haitianos (Jadotte, 2005:23).

O papel político da UEH foi mais uma vez reforçado durante o período conhecido como coup d´etat no Haiti, em referência ao golpe militar que re-tira Jean-Bertrand Aristide, o presidente democraticamente eleito, do poder (1991-1994). Nesse período, a Universidade - principalmente seu movimento estudantil - voltou a sofrer intensa perseguição, ao transformar-se num “bastião da defesa do retorno à ordem constitucional” (Nascimento; Thomaz, 2010:58). Novamente, centenas de estudantes foram presos e torturados, e muitos deles permanecem desaparecidos até hoje.

A volta de Aristide ao poder, em 1994, nos braços do mesmo país do qual suspeitava-se ter apoiado o golpe – EUA, não foi capaz, porém, de instaurar normalidade à convulsionada estrutura nacional. Na Universidade, tem inicio um período de greves marcado pela radicalização do movimento estudantil e da estafa do corpo docente, ambos, outrora apoiadores, a partir de então, oposicionistas ao governo de Aristide, que, cada vez mais, passou a apostar

13 O saldo desse período é superior a 30.000 desaparecidos e mais de um milhão de exilados.

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no uso da violência por meio de forças paramilitares.A deposição do presidente, em fevereiro de 2004, inaugura mais um

período de presença internacional no Haiti14, desta vez através da MINUSTAH. A resposta da Universidade Pública é mais uma vez a mobilização em torno de uma plataforma de rejeição à intervenção, seja sob a forma de resistência à presença ostensiva das tropas no país, seja sob protestos contra a ineficiência desses contingentes. Essa oposição rendeu uma série de confrontos entre a MINUSTAH e a UEH, ignorados pelos meios de comunicação.

O evento mais recente a somar-se ao histórico de convulsão que viveu a UEH desde sua fundação está o terremoto de 12 de janeiro de 2010. Dessa vez, há que se enfrentar a morte de turmas inteiras de estudantes, de um número considerável de professores e da destruição de mais de 80% de sua estrutura física. O impressionante relatório de Nascimento e Thomas indica que turmas inteiras de Enfermagem e Lingüística pereceram sob os escombros, enquanto outras, como as Direito e Etnologia, salvaram-se por estarem no pátio durante os desabamentos, as primeiras comemorando os cento e cinquenta anos do curso e as segundas protestando contra o assassinato de um professor por um encapuzado na porta de uma sala de aula. Além disso, perdeu-se praticamente toda a infra-estrutura de atendimento médico e cirúrgico e todo o material para atendimento ambulatorial, todos essenciais ao atendimento da população na situação de calamidade que se seguiu ao terremoto.

Segundo Nascimento e Thomaz (2010:43), os prédios da Universidade que permanecem em pé tornaram-se asilo para os desabrigados (que ainda hoje passam de 500.000), atendidos pela própria população acadêmica, entre a preocupação com o futuro que se desenharia a partir dali e a necessidade de ajudar a população desesperada. Soma-se a isso o fato de que até quase um ano após o terremoto não existiam espaços alternativos suficientes que pudessem ser utilizados para a realização de atividades acadêmicas em ca-ráter provisório, uma vez que praticamente todos os espaços públicos foram convertidos em campos de refugiados ou em centros de atendimento de saúde ou distribuição de alimentos.

Além disso, os autores mencionados apontam que, com as perdas hu-manas e materiais

praticamente se esgotaram os recursos das estruturas de suporte familiar que asseguravam as condições mínimas para que os estu-dantes pudessem se manter na capital enquanto frequentavam as universidades (Nascimento y Thomas, 2010: pg.23);

Mas os desafios a serem enfrentados pela UEH e sua comunidade acadêmica não se restringem à situação pós-terremoto. Nascimento e Thomaz apontam outros problemas significativos que já marcavam a Universidade Pública no Haiti antes do desastre (Nascimento y Thomas, 2010: pg.23). Entre eles:

• Uma situação de crise interna particularmente aguda na UEH, devido à mobilização dos estudantes em favor de uma plataforma ampla de rei-vindicações de reforma universitária e relacionadas com a política traba-lhista do governo nacional, que, gerando um impasse de longa duração, ocasionou a interrupção das aulas em várias faculdades e não poucos enfrentamentos diretos entre estudantes, funcionários, professores e administradores e mesmo em alguns casos com a polícia e capacetes azuis da MINUSTAH;

• Uma marcada sub-representação e elevada especialização involuntária feminina em meio ao corpo discente de praticamente todas as áreas, com

14 O Haiti sofreu uma ocupação americana no início do século XX.

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a exceção da enfermagem. A participação das estudantes nos cursos superiores, seja em outras áreas da saúde, seja em cursos técnicos ou das ciências humanas, tem-se mantido extremamente baixo ao longo dos anos, e isso apesar de um desempenho escolar equiparável (ou mesmo melhor, diriam muitos) ao dos seus colegas. Um problema como esse denuncia a persistência de fatores econômicos e de segurança envolvidos na decisão das mulheres de deixar o sistema escolar antecipadamente ou de optar em meio a um espectro muito estreito de carreiras;

• A ausência de uma biblioteca universitária central e o material bibliográ-fico extremamente precário e obsoleto utilizado pelos alunos de todas as áreas, fazendo-lhes despender consideráveis recursos na aquisição de livros importados. A Biblioteca Nacional não chegava a representar uma alternativa viável, na medida em que, apesar da boa vontade de seus funcionários, contava com instalações e equipamentos muito precários, com um acervo fragmentário e desordenado e com coleções que, mes-mo antes do terremoto, estavam armazenadas em péssimas condições, correndo o risco de serem danificadas;

• O papel desimportante ocupado pela pesquisa e a formação de profes-sores, incumbência relegada ao segundo plano por instituições quase inteiramente voltadas para o ensino, reproduzindo geração após geração uma escassez crônica de professores qualificados e de pesquisadores em número suficiente para sustentar atividades vitais de investigação, especialmente em áreas estratégicas para a reconstrução do país e o desenvolvimento de sua economia, como a gestão de recursos ambien-tais, produção de alimentos, manejo da infraestrutura etc. A carência na limitação de formação de quadros voltados para a pesquisa na área das Ciências Humanas se reflete na fragilidade ou mesmo inexistência de indicadores sociais e econômicos confiáveis, o que implica numa imensa dificuldade para a formulação de políticas públicas.

Entre as muitas perguntas que se impõem sobre o destino desses jovens, dessa Universidade e desse país, emerge a convicção de que a educação merece destaque nos planos de reconstrução nacional e a Universidade, em especial, deve ser reconhecida como espaço público privilegiado, onde Estado, comunidade acadêmica e sociedade civil podem, em concerto e democrati-camente, discutir os rumos de um país onde a esperança e a resistência vêm, corajosamente, sobrevivendo às mais profundas desigualdades.

Referências Bibliográficas

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