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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES Programa de Mestrado em Direito,

DELAO BRASILEIRA: PRODUTO DA CONCENTRAO DE DISCURSOS PUNITIVOS

Natlia Oliveira de Carvalho

Rio de Janeiro 2007

Natlia Oliveira de Carvalho

DELAO BRASILEIRA: PRODUTO DA CONCENTRAO DE DISCURSOS PUNITIVOS

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre. rea de Concentrao: Direito Penal e Criminologia.

Orientador: Profa. Dra. Vera Malaguti Batista

Rio de Janeiro 2007

NATLIA OLIVEIRA DE CARVALHO

DELAO BRASILEIRA: PRODUTO DA CONCENTRAO DE DISCURSOS PUNITIVOS

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Cincias Penais. rea de Concentrao: Direito Penal e Criminologia.

Aprovada em

de

de 2007.

BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Profa. Dra. Vera Malaguti Batista Orientadora Universidade Candido Mendes _________________________________________________

_________________________________________________

Rio de Janeiro 2007

DEDICATRIA Aos meus pais, Rubens e Rosalina, e aos meus irmos, Carlo e Di, certa de que palavras no podem registrar as vozes da alma.

AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeo Vera, minha querida orientadora, pela disponibilidade, pela pacincia, pela ternura e, sobretudo, por revelar-me novos horizontes na compreenso dos discursos criminais. Ao Prof. Nilo, expresso minha gratido por viabilizar, a partir de seus singulares e instigantes estudos histricos, uma leitura das cincias penais que transcende o reducionismo do hoje. Agradeo tambm aos meus adorados Clevinho e Dora, exemplos de profissionais competentes, ticos e verdadeiros responsveis pela minha introduo ao mundo do crime. Ao meu grande amigo Marquinho, pelas sempre pertinentes crticas duras e doces ao meu trabalho. Aline, pela amizade, confiana e, principalmente, por me servir de modelo de mulher ntegra, me zelosa e profissional renomada. Enfim, agradeo, comovida, famlia Cezrio Raso, pelo carinho com que me acolheram e pela adoo do meu Pitoco. Obrigada, Lel, pela compreenso, torcida e incentivo.

Os prprios militares e policiais encarregados dos inquritos tinham desprezo pelos dedos-duros como, imagino, todo mundo tem, a no ser possivelmente, eles mesmos. E superado aquele clima terrvel seria de se esperar que algo to universalmente rejeitado, epdome da deslealdade, do oportunismo e da falta de carter, tambm se juntasse a um passado que ningum, ou quase ningum quer reviver. Mas no. O dedurismo permanece vivo e atuante, ameaando impor traos cada vez mais policialescos nossa sociedade. Joo Ubaldo Ribeiro (Jornal O Globo, 17.12.1995)

RESUMO O discurso poltico-criminal hegemnico esteve, em todos os tempos, vinculado s foras econmicas e sociais tambm hegemnicas. A histria da programao criminalizante no Brasil no se operou de maneira diversa, restando invariavelmente vinculada lgica estabelecida pelo processo de acumulao do capital e, por conseguinte, aos padres ditados pela ideologia dominante. Prestando-se, em verdade, consolidao das relaes de poder, o secular mote de luta contra o crime vem fazendo com que o Direito se preste a reproduzir, manter e legitimar as desigualdades sociais institudas. , pois, a partir da concepo do saber criminolgico como estratgia do poder imperante para a gesto dos contingentes humanos, proposta pelo conjunto de pensamentos que integram a chamada criminologia crtica, que se prope a anlise do instituto da delao premiada no ordenamento jurdico brasileiro. Inserida num alarmado contexto de pnico social generalizado frente ao exponencial crescimento da violncia fenmeno especialmente vivenciado por pases perifricos como o nosso a prtica institucionalizada de extorso da verdade do acusado resgatada com vigor, seja das fogueiras da Inquisio ou dos pores da ditadura. No esteio de um desenfreado processo de produo legislativo penal, permeado por um tnus patentemente repressivo e consonante com as diretrizes autoritrias de tolerncia zero produzidas pelos pases centrais, a delao premiada, maciamente inserida na legislao ptria nas ltimas dcadas, revela-se como autntico produto de uma engenhosa, perene e funcional poltica criminal pautada na concentrao de discursos punitivos. Palavras chaves: Delao premiada - Criminologia crtica. Legislao penal brasileira. Poltica criminal.

ABSTRACT The hegemonic political-criminological discourse has been, in all times, attached to directive economic and social forces. The historical course of the criminological program in Brazil was not operated by any diverse method, remaining, inevitably, the role of the logic established by the accumulation of capital, thus attending the patterns dictated by the dominant ideology. The described paradigm did actually served to the consolidation of power relations and the secular practice of combating crime is pointing that the role of the Institutions of Law are serving to reproduce, maintain and legitimate the institutionalized social gap. Hence, it is from the concept of criminology as a strategic tool of the ruling power in order to manage the mass, proposed by the critical-criminological school of thought that is presented the analytical institute of states evidence in the Brazilian juridical order. Inserted in the alarming context of generalized social panic and substantial growth of violence indicators - a widely experienced phenomenon in peripheral nations likewise Brazil the institutionalized practice of truth extortion is vigorously reinvented. Be from the fire of the holy inquisitors or the dungeons of dictatorship. In the context of a profuse criminal legislation production, permeated by evident repressive characteristics and in accordance to authoritarian directives of zero tolerance, suggested by core nations, the states evidence has been massively assimilated by the national legislation, as for the disclosure of an authentic of an ingenious, lasting and functional criminological policy, based on the concentration of punishing discourses. Key-words: States evidence. Critical criminology. Brazilian criminological legislation. Criminological policy.

SUMRIO 1 INTRODUO .......................................................................................................11 2 CRIMINOLOGIA CRTICA: A LEITURA DA REALIDADE SOCIAL DAS CINCIAS CRIMINAIS .............................................................................................19 2.1 DA ESCOLA CLSSICA CRIMINOLOGIA CRTICA.....................................19 2.1.1 A Escola Clssica......................................................................................21 2.1.2 O Positivismo ............................................................................................27 2.1.3 A Ideologia da Defesa Social ....................................................................32 2.1.4 Um Novo Paradigma Cientfico: o Labelling Approach..............................35 2.1.5 A Criminologia Crtica................................................................................37 2.2 A CONSTITUIO HISTRICA DO PENSAMENTO CRIMINOLGICO NO BRASIL: A ESCOLA CRTICA COMO NORTE ......................................................38 2.2.1 As Prticas Punitivas no Modelo Colonial-Mercantilista............................39 2.2.2 Os Influxos Liberais: O Cdigo Criminal de 1830 e o Cdigo de Processo Criminal de 1832 ................................................................................................40 2.2.3 O Cdigo da Repblica .............................................................................42 2.2.4 O Cdigo Penal do Estado Novo ..............................................................46 2.2.5 A Reforma da Parte Geral de 1984 e o Advento da Decodificao ..........48

3 POLTICA CRIMINAL BRASILEIRA: ASPECTOS DA CONTEMPORANEIDADE ..................................................................................................................................51 3.1 CONTEXTUALIZAO DO TEMA...................................................................51 3.1.1 Punio e Estrutura Social ........................................................................52 3.1.2 O Mundo Ps-Moderno .............................................................................55 3.1.2.1 Globalizao e Neoliberalismo ...........................................................55 3.1.2.2 Sociedades de Controle .....................................................................59 3.1.2.3 Os Inimigos do Sistema Penal............................................................62 3.2 A MDIA............................................................................................................65 3.3 O DISCURSO DO MEDO A LGICA DO BICHO-PAPO E A RETRICA DA INTRANSIGNCIA A DEMANDA DE PUNIO ...........................................74 3.4 DIREITO EMERGENCIAL: A CRUZADA CONTRA A CRIMINALIDADE..........79

3.5 A INVASO DA CULTURA EMERGENCIAL NO DIREITO PTRIO: A DELAO PREMIADA ..........................................................................................84

4 A DELAO PREMIADA NO ORDENAMENTO JURDICO PTRIO..................89 4.1 ABORDAGEM DOGMTICA ...........................................................................89 4.1.1 Prolegmenos ...........................................................................................89 4.1.2 Legislao Correlata .................................................................................90 4.1.3 Definio, Natureza Jurdica e Valor Probatrio .......................................97 4.1.4 Procedimento ..........................................................................................103 4. 2 A PERSPECTIVA TICA...............................................................................107 4.2.1 Traio e Sociedade ...............................................................................107 4.2.2 A tica como Filosofia Moral...................................................................109 4.2.3 tica e Delao .......................................................................................111 4.2.4 tica e Direito: Uma Perspectiva Integrada.............................................114 4.3 A DELAO BRASILEIRA: PRODUTO DA CONCENTRAO DE DISCURSOS PUNITIVOS ...................................................................................121 5 CONCLUSO ......................................................................................................127 6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................134

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1 INTRODUO

Para viver tenho de, a cada momento, acreditar no inacreditvel. Meu caminho a paixo. Sem essa divina loucura perco a lua e o sol, perco o horizonte. J.A. Gueiros

A histria que culminou com a elaborao do presente estudo no nova, j que o fascnio pelo mundo do crime acompanha-me desde a adolescncia. Nesse perodo, influenciada pelas narrativas policiais apaixonadas de meu pai, em geral permeadas por um modelo de banditismo romantizado que, segundo ele, era emocionantemente relatado no programa Ronda Policial, da ento Rdio Industrial, contaminei-me de maneira tal que, um pouco mais tarde, a escolha pela carreira jurdica mostrou-se inequvoca. Nos bancos da minha to querida Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora vivi momentos de pueril xtase com os primeiros ensinamentos acerca da teoria do crime, o que inevitavelmente consolidou-se numa declarada relao de amor com as cincias criminais. Contudo, foram duas experincias acadmicas prticas que me permitiram enxergar novas nuances nas teorias do Direito Penal e Processual Penal que aos meus olhos ingnuos sempre pareceram to perfeitas. A primeira delas abrangeu um perodo de quase dois anos de atuao junto Promotoria da 3 Vara Criminal de minha cidade, quando me inebriei pelo exerccio da atividade acusatria. A segunda, antagonicamente, constituiu-se num projeto de extenso para prestao de assistncia jurdica aos detentos de um presdio local, desenvolvido pela mesma Universidade. A insero no universo de um estabelecimento prisional, sobretudo a partir do contato direto com os presos e seus familiares, e conseqente acesso

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multiplicidade de relatos de seus passados, demonstrao das suas fragilidades diante do presente e s suas prospeces angustiadas em relao ao futuro, despertou-me uma sensibilidade no trato das questes criminais que as lies eminentemente dogmticas professadas no meio acadmico no me permitiriam desenvolver. Foi tambm da vivncia no ambiente carcerrio que a temtica da delao passou a despertar-me especial interesse, haja vista o absoluto repdio s prticas relacionadas alcagetagem segundo o implacvel cdigo de condutas vigente nesse meio. O fato que, com o tempo, a experincia vivida nesse centro de deteno reverteu-se numa viso niilista das cincias jurdicas que se agravou com um incio malfadado do exerccio da advocacia criminal, revelada, segundo j professado por Carneluti1, como autntica atividade de splica. Assim, confesso, sem grande convico, apresentou-se a carreira acadmica como uma opo, viabilizada pelo meu retorno Faculdade de Direito da UFJF na qualidade de professora substituta do conjunto de disciplinas afetas ao Direito Processual Penal. Detentora de um conhecimento exclusivamente dogmtico do processo penal, fui bem acolhida pelo meio discente, que reconhecia minha habilidade em repetir by heart os principais dispositivos do CPP e meu trabalho de preparao das aulas. Nessas o exame dos temas atinentes ao processo era sempre amparado pelo argumento de autoridade dos mais tradicionais processualistas, notadamente os italianos, alguns dos quais, s depois vim a saber, tratavam-se de legtimos representantes do fascismo de Mussolini. Lamento, por apenas cerca dois anos

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CARNELUTI, Francesco. As Misrias do Processo Penal. Traduo de Jos Antnio Cardinalli. 7. ed. Campinas: Bookseller, 2005.

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depois de uma atuao pautada na repetio, ter-me cansado da docncia autmata. Assim, foi essa indignao que me levou a ingressar no Programa de Mestrado em Direito da UCAM, permitindo-me, ao empreender uma anlise crtica do saber encarnado pelo Direito, reconhecer na docncia no s uma vocao, mas fundamentalmente acreditar que, atravs dela, pode-se lanar os germes para um premente processo de transformao do secular papel de controle social ao qual vem se prestando a cincia jurdica.2 Desse modo, o resgate da delao premiada, instituto de razes patentemente inquisitrias, pelo ordenamento jurdico brasileiro, no bojo de um processo de autntica enxurrada legislativa penal repressiva e subseqente advento da decodificao h que ser entendido, no como uma realidade posta, mas, fundamentalmente, na perspectiva da anlise crtica das estratgias de poltica criminal empreendidas na contemporaneidade. O tema a ser trabalhado reveste-se, pois, de especial importncia e atualidade. Isso porque, em primeiro lugar, questiona o discurso jurdico hegemnico vigente, que alardeia a imperativa necessidade de recrudescimento no trato das questes criminais. Ademais, refutando a lgica estrategicamente reducionista pregada por esse modelo, o estudo pretende, ainda, ultrapassar a anlise dogmtica do instituto da colaborao brasileira. A partir da ruptura com ideal de legalidade inquestionvel, busca-se enxergar a institucionalizao da alcagetagem como produto antico, mas utilitrio desse processo de concentrao, disseminao e suposta legitimao de prticas duramente repressivas.

No Brasil, o emprego da sociologia no enfrentamento das questes criminais deu-se pioneiramente por Heleno Cludio Fragoso, o que pode ser visto em suas Lies, nas quais confere ao Direito Penal tnus de fundamental elemento de poltica social. (ver FRAGOSO, Heleno Cludio. Lies de Direito Penal: parte geral. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994)

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Para a realizao deste estudo, tomamos como referencial terico a criminologia segundo Rauter3, a mais pragmtica e utilitria entre as cincias humanas na sua vertente crtica, a fim de efetivamente compreender a reinsero macia do instituto da delao premiada no direito ptrio. A partir dessa linha de pensamento conflitual, de orientao marxista, trabalha-se com a idia de criminalizao como corolrio, funcionalmente estabelecido, das relaes de produo vigentes na sociedade. Assim, a partir da adoo desse paradigma criminolgico, prope-se uma reflexo, segundo o mtodo histrico analtico, macrossociolgica do fenmeno criminal, concebendo-o, no como fruto de um conflito social, mas, essencialmente, como decorrncia de um conflito de classes. As agncias oficiais de controle penal agiriam, pois, tradicionalmente, de forma seletiva, recrutando sua clientela nos estratos sociais mais baixos. Nesse esteio, visando demonstrar que o sistema penal e, in casu, especialmente a legislao penal, atende precipuamente consolidao do modelo de acumulao do capital vigente, empreende-se a anlise do desenvolvimento histrico das instituies de controle social no Brasil. Os componentes ideolgicos de uma tradio conservadora mostram-se presentes desde nossa fundao, sabidamente pautada na mxima de apropriao e dominao do gentio, bem como do dejeto para c transportado, o que inclua, em boa parte, degredados e fugitivos. Aqui, durante a maior parte de nossa histria, o poder punitivo exerceu-se na esfera privada, gozando de patente tnus de domesticidade.

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RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2003. p. 14.

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Contudo, se com o tempo a justia adquiriu feio institucional, no se pode negar que a apropriao privada do Estado, caracterizada pela preponderncia das elites na conduo da massa ignbil, sempre fez-se viva. Destarte, seja pelo ideal de complacncia para com os apaniguados do poder, contrastante com o mote da aplicao rigorosa da lei contra os inimigos, seja, noutro giro, pela negao do acesso cultura4, mecanismo consolidador da dominao, nosso sistema penal esteve pautado, em todos os tempos, num patente ideal de seletividade, que reproduz a verticalizada escala social estabelecida. O inflamado discurso do desmesurado crescimento da criminalidade relegitima, pois, a banalizao da violncia, que, em evidente permanncia histrica, resta institucionalizada. Assim, a violncia praticada pelo colonizador ao argumento da rebeldia dos nativos e, hoje, empregada pelo sistema diante do perigo representado por certos elementos, mostra-se como elemento constitutivo da cultura ptria. Da se afirmar que a sua incorporao rotina do brasileiro revela-se como um trao cultural to significativo quanto a cordialidade, embora, segundo adverte Da Matta5, prefiramos esconder nossa formao autoritria, violenta e hierrquica, vendendo a imagem de uma terra que no conheceu guerras e revolues. Diante do exposto, a anlise das estratgias de poltica criminal brasileiras da contemporaneidade parte de uma crtica severa ao discurso neopositivista vigente, que busca legitimar a perversidade excludente do empreendimento neoliberal. Na perspectiva da paradoxal coexistncia de um modelo de Estado de interveno mnima, no que tange promoo de polticas sociais pblicas, e mximo, no planoAt a chegada de D. Joo VI ao Brasil, em 1808, a Coroa Portuguesa no permitia a impresso de livros ou a criao de escolas na colnia. Segundo Holanda, os filhos aqui nascidos de portugueses abastados eram enviados a Coimbra para estudar, consolidando sua lealdade frente aos preceitos da dominao colonizadora. (ver HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. 26. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2005.) 5 Editorial O Lugar da morte violenta na cultura brasileira. In: Boletim do IBCCrim, ano 8, n. 91, So Paulo, junho de 2000.4

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da interveno penal, por meio da atuao desse ltimo o Estado penal6 que vem se buscando encobrir o dito custo social do progresso: a disseminao, efetivamente global, da misria. O estabelecimento de um discurso criminal transnacional, inspirado nas diretrizes repressivas ditadas, basicamente, pela matriz norte-americana, reveste-se de especial vigor em pases perifricos como o nosso, institucionalizando-se, com evidncia, na legislao penal. Esta, produzida em nveis vertiginosos, presta-se a atender aos reclames por punio, segundo uma falaciosa retrica de intransigncia alardeada pela mdia e cegamente incorporada pelo senso comum. O incitamento estratgico do debate sobre a violncia, gerado por um discurso macio de difuso do medo, faz com que, a bem de um pretenso ideal de implementao da paz social, reste legitimado o emprego de quaisquer meios hbeis a vencer a declarada guerra contra a criminalidade. O modelo blico adotado na luta contra o crime, com base no qual apregoa-se a utilizao macia do instituto da colaborao, remonta-nos s lies milenares de Sun Tzu7, em seu manual A Arte da Guerra. Segundo o estrategista chins, o emprego de agentes secretos, imprescindvel para o sucesso de um exrcito, abrangeria o aliciamento de agentes duplos, representados por espies integrantes do lado inimigo que, em troca de promessas, abrem o bico e traem seus comparsas. Assim, na perspectiva da suposta situao de exceo estabelecida, que a delao premiada, a partir da dcada de 90, passa a ser maciamente inserida no

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A migrao progressiva de um modelo de Estado Previdencirio para um Estado Penal trabalhada por Wacquant, ao empreender vigoroso estudo acerca da criminalizao da pobreza e subseqente conteno punitiva do contingente marginalizado, tomando-a como estratgia de poltica social. (ver WACQUANT, Loc. Punir os pobres: a nova gesto da misria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2003.) 7 TZU, Sun. A arte da guerra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. pp. 119-126.

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ordenamento jurdico ptrio, segundo a lgica do exponencial processo de produo legislativa penal instaurado. A partir da anlise do tratamento legal dado ao instituto, busca-se com respaldo eminentemente doutrinrio, haja vista a carncia de fonte jurisprudencial slida em razo de sua diminuta aplicao prtica, estabelecer a definio, a natureza jurdica e o valor probatrio da delao, bem como delimitar o procedimento estabelecido para a sua incidncia no processo criminal ptrio. O complexo debate tico travado em torno da institucionalizao da colaborao premiada mencionado, destacando-se a imperativa observncia pelo Direito do campo de atuao delimitado pela tica, de modo que a concluir que a suposta idoneidade do fim pretendido no legitima o emprego de quaisquer meios. Assim, mostra-se inaceitvel que a norma jurdica em um Estado de Direito, cujas proposies representam um parmetro de conduta a ser seguido por seus membros, se valha da delao, incitando a transgresso dos preceitos morais estabelecidos por essa mesma sociedade. Rompe-se, pois, com o reducionismo proposto pela identificao entre Direito e Lei, entendendo-se, com Lyra Filho que, a vinculao desta ltima a um ideal de consenso presumido ignora sua formao baseada na passividade das massas intoxicadas pela ideologia reinante. Segundo o autor, o hipottico pacto social firmado no legitima, por si s, uma organizao social, assim como o estabelecimento duma legalidade no importa, por si s, na legitimidade do poder.8 Destarte, no esteio da lgica do capital, cujos efeitos nefastos se acentuam com a instaurao de uma ordem globalizada, afirma-se que hoje a prevalncia do

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LYRA FILHO, Roberto. O que Direito? 17. ed. So Paulo: Brasiliense, 1995. p. 74.

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ideal de eficincia induz ao desapego dos valores morais, segundo um cruel e dissimulado processo de desqualificao do humano. A utilizao do aparato repressivo estatal para enfrentar os temores incutidos no imaginrio social invocada vem sendo reiteradamente invocada na atual conjuntura, o que se revela patente na expedio macia de diplomas penais. Estes, atendendo sua perene funo simblica, prestam-se a fornecer uma resposta retrica ao argumento do restabelecimento da ordem, ora tida como frgil diante do caos. , ento, no contexto desse desenfreado processo de produo legislativa penal, permeado por enunciados repressivos emanados da ideologia da defesa social, da doutrina da segurana nacional e, ainda, das vetustas teorias acerca do inimigo do direito penal, que se opera a insero da delao premiada no ordenamento jurdico brasileiro. Buscando, pois, situar a institucionalizao da alcagetagem como verdadeiro produto de uma engenhosa, perene e funcional poltica criminal pautada na concentrao de discursos punitivos, iniciemos nossa jornada.

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2 CRIMINOLOGIA CRTICA: A LEITURA DA REALIDADE SOCIAL DAS CINCIAS CRIMINAIS

O real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia. Guimares Rosa

2.1 DA ESCOLA CLSSICA CRIMINOLOGIA CRTICA

Partindo-se da concepo de que os institutos penais e processuais penais, dentre os quais se insere a novel figura da delao premiada, se prestam a atender, em primeira anlise, ao programa do Estado para controle da criminalidade, h que se concluir que todas essas criaes compem as estratgias pblicas de poltica criminal.9 Para tanto, cumpre esclarecer que, embora intimamente relacionadas, poltica criminal e criminologia no se confundem, uma vez corresponder a primeira aos meios e procedimentos disponibilizados pelo sistema penal para coibir a prtica delitiva, enquanto segunda incumbiria a tarefa de interpretar criticamente a realidade social do Direito.10 No se pretende aqui estabelecer uma definio precisa de Criminologia, tarefa recorrentemente frustrante para muitos dos que dela se incumbiram e acabaram por incorrer num reducionismo pueril. Contudo, para fins de delimitao do presente objeto de conhecimento, h que se recorrer magistral lio professada

MUOZ CONDE, Francisco. Introduccin al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1984. p. 199. Discorrendo sobre poltica criminal, assevera o mestre espanhol que existe unanimidad en considerarla como el estdio de la utilidad de los medios empelados por el estado en la lucha contra la criminalidad.. 10 BATISTA, Nilo. Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 34. Segundo Batista, contudo, Zaffaroni questiona essa distino ao aduzir que todo saber criminolgico estaria previamente delimitado por um propsito poltico.

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por Lola Anyar de Castro11, segundo a qual, longe de pretender qualquer categorizao e com o enfoque crtico que lhe peculiar, a Criminologia seria:

[...] a atividade intelectual que os estuda os processos de criao das normas penais e das normas sociais que esto relacionadas com o comportamento desviante; os processos de infrao e de desvio destas normas; e reao social, formalizada ou no, que aquelas infraes ou desvios tenham provocado: o seu processo de criao, a sua forma, o seu contedo e os seus efeitos.

Destarte, entendida muito alm do simples exame causal-explicativo do crime e do criminoso, a Criminologia presta-se a interpretar os diversos mecanismos estatais de preveno e represso ao crime, abrangendo as polticas de segurana pblica, judiciria e penitenciria. Desse modo, sabendo-se que diversas podem ser as finalidades polticas hbeis a moldar os instrumentos persecutrios estatais, notadamente os jurdicos como o Direito Penal e Processual Penal, a Criminologia exerce, sem dvida, importante papel legitimador das estratgias de controle social empreendidas pelas classes dominantes. Reconhecendo-se a vulnerabilidade das cincias sociais influncia historicamente condicionada das ideologias, impe-se, para fins de se obter uma discusso efetivamente profcua acerca do tema, a anlise social da histria das principais concepes criminolgicas difundidas. Somente a partir do acesso ao saber encarnado por essa disciplina e das variantes concepes, com rupturas e permanncias, sobre seu objeto, seus mtodos e tcnicas de investigao, suas reas de interesse, etc torna-se deveras possvel compreender o impacto das teorias criminolgicas nas diretrizes de poltica criminal do Estado.

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Apud BATISTA, op. cit, p. 27.

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Pode-se afirmar com Dias12 que:

A perspectiva histrica apresenta, por ltimo, duas vantagens suplementares: pode, de um lado, constituir um antdoto eficaz contra a tentao da auto-suficincia e do unilateralismo terico e metodolgico; e pode, por outro lado, avalizar a capacidade de progresso duma cincia que j foi qualificada de rei sem reino. incontestvel que sabemos cada vez mais coisas sobre o problema do crime, apesar de talvez por isso mesmo pretendermos e necessitarmos saber muito mais.

2.1.1 A Escola Clssica Historicamente o delito sempre constituiu objeto de interesse e preocupao das sociedades, de modo que numerosas teorias sobre a criminalidade, algumas calcadas em crenas e representaes populares, outras j dotadas de certo rigor e pretenses generalizantes, tiveram lugar ao longo dos tempos. Contudo com a sistematizao implementada pela Escola Clssica que se permite afirmar pela gnese da cincia criminolgica.13 Conforme adverte Dias14, a ausncia de dimenso sistemtica que impede a possibilidade de falar de criminologia antes da escola clssica, no obstante a histria e antropologia cultural demonstrarem que o crime constituiu preocupao de todas as sociedades. Assim, representando o trnsito do pensamento metafsico ao pensamento abstrato, pode-se afirmar que as teorias sobre o crime, sobre o direito penal e sobre a pena desenvolvidas na Europa, nos sculos XVIII e primeira metade do sculo XIX, integrariam o mbito da chamada escola liberal clssica.

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DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinqente e a sociedade crimingena. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 5. 13 Muitos estudiosos afirmam que o nascimento da criminologia, enquanto cincia, ter-se-ia verificado com a publicao da clebre obra lombrosiana, L uomo delinqente, cuja primeira edio data de 1876. Nesse paradigma, a escola clssica constituiria etapa pr-cientfica da criminologia. 14 Op. cit., p. 6.

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Como marco histrico, h que se destacar o Iluminismo ou Ilustrao, movimento intelectual do sculo XVIII, que teve na Frana sua maior expresso, adotando como postulados bsicos a liberdade, o progresso e o homem. Segundo Aquino15,

[...] as origens do Iluminismo ligam-se aos progressos da Cincia e da Filosofia ocorridos no sculo XVII, principalmente ao racionalismo desenvolvido por Descartes e ao sensualismo (empirismo) de Locke, pois embora discordassem muito entre si e apresentassem grandes incoerncias, os filsofos aplicavam o mtodo dedutivo de Descartes, baseado na razo e no esprito crtico, poltica e religio, exaltando a Razo e o Progresso, em oposio Tradio.

Politicamente, passa-se a questionar a monarquia absoluta, opondo ao princpio do direito divino a vontade do povo e a liberdade dos indivduos. Sob a perspectiva religiosa, o ataque volta-se contra a Igreja Catlica, um dos pilares do absolutismo, defendendo-se uma religio natural, baseada na crena de um ser supremo. Os ataques dos filsofos s instituies do Antigo Regime contriburam decisivamente para o enfraquecimento de suas bases de apoio16, servindo de estopim onda revolucionria que acabou por viabilizar a ascenso da burguesia, j detentora do poder econmico, ao poder poltico. Nesse processo de ruptura com o passado, a Revoluo Francesa serve como instrumento de consolidao do sistema capitalista, com a eliminao do vnculo existente entre senhores feudais e servos e o subjacente surgimento de grandes massas de camponeses ociosos, que futuramente integraro a denominado proletariado.15

AQUINO, Rubim Santos Leo de et al. Histria das sociedades: das sociedades modernas s sociedades atuais. 3 ed. rev. e atual.. Rio de Janeiro: Ao Livro Tcnico, 1988. p.108. 16 Em meio decisiva expresso do pensamento burgus, simbolizada por Rousseau, Voltaire, Diderot e tantos outros, merece destaque a figura de Montesquieu, atipicamente oriundo da nobreza aristocrtica. Em O Esprito das Leis, clssico que bem resume suas idias, afirma inexistir uma forma de governo ideal hbil a servir a qualquer povo, em qualquer poca. De todo modo, trata a tendncia ao abuso do poder como verdade eterna, propugnando a doutrina dos trs poderes como instrumento de limitao dos arbtrios.

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Assim, o discurso libertrio da Idade das Luzes, que tambm servir de mote criminologia clssica, funda-se na idia do pacto social, que confere legitimao terico-poltica ao Estado consensual, entendido como a ordem instituda a partir de um acordo entre partes iguais. Emergem, pois, como postulados essenciais dessa nova ordem a primazia da liberdade individual, acompanhada da necessidade de conteno do poder poltico e do imprio da lei, instrumento nico a autorizar a sujeio de um homem a outro. Do ponto de vista legal, nessa perspectiva que surgem os ditos Cdigos Penais Liberais17, indubitveis instrumentos de defesa da classe emergente, calcados em mximas como o princpio da legalidade (poucas leis, claras e inequvocas), o da igualdade perante a lei, o da segurana jurdica (interpretao disciplinada na prpria lei), o da no-retroatividade das leis, alm de outras garantias de cunho processual. A Criminologia Clssica assume a herana liberal, racionalista e humanista do Iluminismo, sobretudo a premissa tipicamente jusnaturalista que atribui a origem do delito a uma deciso livre de seu autor. o que aduz Garca-Pablos de Molina18:

O mundo clssico partiu de uma imagem sublime, ideal, do ser humano como centro do universo, como dono e senhor absoluto de si mesmo, de seus atos. O dogma da liberdade no esquema clssico tornou iguais todos os homens (no h diferenas qualitativas ou quantitativas entre o O fenmeno da codificao devidamente estudado por DE CICCO, in Histria do pensamento jurdico e da filosofia do direito. 3. ed. reform. So Paulo: Saraiva, 2006, pp. 153-160, ao destacar que, no contexto do jusnaturalismo racionalista dos sculos XVII e XVIII, d-se a passagem do direito pblico para o privado. Assim, a nova teoria do Estado estrutura-se a partir da noo de intangibilidade da propriedade, de modo que a acepo coletiva do lema igualdade, uma das grandes bandeiras da Revoluo Francesa, cede lugar ao individualismo da liberdade pregada pelo mesmo movimento. O fundamento da codificao d-se, pois, com a idia de positivao do direito natural, constituindo-se, por obra do legislador, um corpo de princpios simples, uniformes e imutveis. Esclarece, ainda, o citado autor que em matria penal, por influncia de Kant e de Beccaria, insistiu-se no sculo XVIII sobre a idia de responsabilidade e imputabilidade, como provenientes da idia de liberdade, para depois ceder ao utilitarismo de Jeremias Bentham (Op. cit., p. 160). 18 GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flvio. Criminologia. 3. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 69.17

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homem delinqente e o no delinqente) e fundamenta a responsabilidade: o absurdo comportamento delitivo s pode ser atribudo ao mau uso da liberdade em uma concreta situao, no a razes internas ou a influncias externas. O crime, pois, possui suas razes em um profundo mistrio ou enigma. Para os clssicos, o delinqente um pecador que optou pelo mau [sic], embora pudesse e devesse respeitar a lei.

A falta de preocupao etiolgica, qual seja, a busca das reais causas do comportamento criminoso conduz a uma concepo do delito como mera abstrao jurdico-formal, desprezando-se em absoluto o exame da pessoa do criminoso, bem como de seu meio ou realidade social.19 O reducionismo pregado pelo modelo observado por Baratta20, ao afirmar:

Como comportamento, o delito surgia da livre vontade do indivduo, no de causas patolgicas, e por isso, do ponto de vista da liberdade e da responsabilidade moral pelas prprias aes, o delinqente no era diferente, segundo a escola clssica, do indivduo normal.

Como conseqncia, o modelo de resposta ao delito prima pela satisfao da pretenso punitiva do Estado e da subseqente imposio de castigo ao delinqente, o que ensejaria acreditavam efeito dissuasrio e preventivo na comunidade. Assim, o direito penal e a pena serviriam como instrumentos de defesa da sociedade em face do crime, criando uma contramotivao sua prtica. Para tanto, o modelo dissuasrio clssico, segundo GARCA-PABLOS DE MOLINA21, tomaria por postulados:Cobertura normativa completa, sem fissuras, com clara tendncia intimidatria; rgos persecutrios bem dotados, eficazes e implacveis, sistema em perfeito estado de funcionamento que aplica com rigor e rapidez as penas, demonstrando a seriedade das cominaes legais, constituem os pilares do modelo clssico de resposta ao delito.

O carter eminentemente especulativo, aliado aos intangveis dogmas da liberdade, igualdade e benignidade das leis, mostra que o modelo clssico decerto revelou-se incapaz de oferecer aos poderes pblicos embasamento para a elaborao de um programa poltico-criminal de preveno e combate ao crime. 20 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 31. 21 Op. cit., p. 377.

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Como pioneiros da moderna criminologia, entendidos como representantes do pensamento clssico, merecem destaque Jeremy Bentham22, na Inglaterra, Anselm von Feurbach, na Alemanha, e, em especial, Francesco Carrara23 e Cesare Beccaria, na Itlia. A obra de Beccaria, datada de 1764, simboliza com especial maestria a filosofia poltica do pensamento iluminista europeu. Em Dei delitti e delle pene, o autor procura fundamentar, a partir do postulado do pacto social, a legitimidade do direito de punir24, bem como estabelecer como base da justia humana a noo de utilidade comum.25 Da decorre a idia de proporcionalidade como medida da pena, que deve corresponder ao mnimo sacrifcio necessrio da liberdade individual. Para Beccaria26, a eficcia preventiva da sano estaria, outrossim, vinculada certeza de punio e aplicao imediata das mesmas.

No o rigor do suplcio que previne os crimes com maior segurana, mas a certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexvel que s uma virtude do juiz quando as leis so brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitvel, causar sempre uma impresso mais forte do que o vago temor de um suplcio terrvel, em relao ao qual se apresenta alguma esperana de impunidade.

Indissocivel do nome de Bentham modelo arquitetnico por ele idealizado: um anel perifrico, onde se totalmente visto, sem nunca v; e uma torre central, de onde tudo se v, sem nunca ser visto. O Panptico, magistralmente tratado por Foucault em seu Vigiar e Punir, ampara-se na mxima de que o poder deve ser visvel e inverificvel. Ter-se-ia, assim, um mecanismo de observao altamente eficaz, com larga capacidade de penetrao no comportamento dos homens. 23 Segundo Baratta (Op. cit., pp.35-37), o magistrio carrariano, que exerceu grande influncia na moderna cincia do direito penal italiano, ampara-se na concepo do delito como um ente jurdico e no mero fato danoso para a sociedade e, por conseguinte, decorrente da violao de um direito. Por derradeiro, na viso de Carrara, a pena presta-se eminentemente defesa social, eliminando a eventual situao de perigo social oriunda da impunidade do delito. A razo do castigo no seria, pois, a retribuio ou tampouco a emenda do condenado. 24 Consultemos, pois, o corao humano; acharemos nele os princpios fundamentais do direito de punir. Ningum faz gratuitamente o sacrifcio de uma poro de sua liberdade visando unicamente ao bem pblico. Tais quimeras s se encontram nos romances. (...) Por conseguinte, s a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade (...) O conjunto de todas essas pores de liberdade o fundamento do direito de punir. (ver BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 6. ed. So Paulo: Edipro, 2001. pp. 16 e 17) 25 Segundo Baratta (Op. cit, p. 34), na sistemtica traada Beccaria, o dano social e a defesa social serviriam como elemento basilares estruturao das teorias do delito e da pena. 26 BECCARIA, op. cit, p. 61.

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Destarte, a partir do sculo XVIII, as hodiernas imposies, notadamente atravs de cerimnias pblicas, de suplcios passam a se tornar perigosas, haja vista o crescente sentimento de compaixo entre os membros das classes oprimidas. Instituiu-se, segundo Foucault, uma nova estratgia poltica e, conseqentemente, um sistema de controle social altamente eficaz: a instituio da punio, ao invs da vingana, como funo regular do Estado. Destaque-se, contudo, que a deslegitimao da vingana do soberano presta-se, no a punir menos, mas melhor; com mais eficcia e sem a ostentao dos suplcios. Pode-se afirmar com Dias que a obra de Beccaria revela com especial nitidez a ideologia da classe burguesa em ascenso que, imersa em relaes conflituosas tanto com as reminiscncias do Ancien Rgime quanto com a crescente massa de no-possidentes, viu-se compelida a redefinir sua estratgia de controle social, reforando a luta contra o crime e cobrindo as lacunas deixadas pelo velho poder punitivo tanto mais a criminalidade se convertia progressivamente em criminalidade patrimonial.27 Sob um enfoque crtico, h que se destacar, enfim, que, nesse contexto histrico, a to difundida noo de liberdade adquire feies diversas: para a classe em ascenso, condio para o desenvolvimento do mercado; j para os proletrios, ganha tnus de valor de troca, implicando a necessidade de venda de sua fora de trabalho. No sem razo que, paradoxalmente ao discurso da primazia da liberdade, Foucault28 refere-se aos sculos XVII e XVIII como O Grande Internamento, vez que surgiram instituies para excluir a mo-de-obra excedente (Centros de Recuperao) ou para ensinar a disciplina de fbrica (Centros de Trabalho).27 28

DIAS, op. cit, p. 10. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 28. ed. Petrpolis: Vozes, 2004.

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Nessa perspectiva, a classe proletria, j de antemo vista como perigosa, h que tomar como valor fundamental a aptido para o trabalho (assalariado), aceitando as condies impostas. Aos excludos desse trabalho duro e alienante, restaria, pois, o crcere, construindo-se, assim, a imagem do delinqente semelhana do inimigo de classe. Na esteira histrica desenvolvida, h que se destacar que, na primeira metade do sculo XIX, tem-se importante processo de ruptura com o pensamento ento vigente.

2.1.2 O Positivismo Face ao caos social instaurado com as Revolues Burguesas, cujos ecos chegaram at mesmo ao Novo Mundo, valendo-se citar a Independncia dos Estados Unidos (1776) e, no Brasil, a Inconfidncia Mineira (1789) e a Conjurao Baiana (1798), emerge a necessidade de se estabelecer ordem29. Tem-se, portanto, verdadeira reao conservadora aos ideais proclamados pela Revoluo Francesa, num processo de instituio da hierarquia como sistema de subordinao rgido. Submetendo o indivduo conscincia coletiva, com limitada possibilidade de interveno nos fatos sociais, ganha campo frtil a doutrina positivista, ao se prestar reconstruo da ordem social imagem da ordem natural. Nesse espectro, sobreleva-se o prestgio das Cincias Naturais, instaurando-se verdadeiro culto ao verificvel (experimentao) e ao quantificvel. O conhecimento torna-se possvel a partir do emprego de frmulas matemticas e taxionmicas, bem como da possibilidade de aplicao de uma lei geral para fenmenos similares.

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Vale aqui destacar a mxima comteana que aduz: Nenhum grande progresso pode efetivamente se realizar se no tende finalmente para a evidente consolidao da ordem. (ver COMTE, Auguste. Curso de filosofia poltica. So Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 11)

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Com a Revoluo Industrial, no final do sculo XVIII, consolida-se o poder da burguesia em expanso e a eficcia do cientificismo, novo saber inaugurado com base na fuso entre cincia e tcnica. A exaltao ao cientificismo faz com que a cincia seja entendida como nica forma de conhecimento possvel, notadamente atravs do emprego do mtodo das cincias da natureza. Este, por ser o nico efetivamente vlido, deveria ser estendido a todos os campos da atividade humana. Pode-se atribuir ao filsofo francs Auguste Comte o ttulo de representante maior desse movimento. Coube a ele retomar o empirismo do sculo XVII para, com base num rgido determinismo, colocar a razo a servio da descoberta das leis invariveis que regem os fenmenos (saber acabado). Partindo da premissa de que em cada um dos trs estados da vida humana (infncia, juventude e maturidade) o indivduo regido por uma lei fundamental, afirma que somente no ltimo deles, isto , no estado positivo, o esprito humano passaria a preocupar-se somente em descobrir suas leis efetivas, aliando raciocnio e observao. O termo positivo designaria, por isso, a busca pelo preciso, pelo certo; tudo isso em oposio s formas teolgicas ou metafsicas de explicao dos fenmenos. Assim, uma vez representando o pice da vida e do conhecimento humanos, cincia positiva incumbiria assegurar a marcha regular da sociedade industrial. Desse modo, os influxos legitimadores e reprodutores da Escola Positivista serviro de base chamada criminologia cientfica, a qual, igualmente desprovida de maior senso de auto-reflexo a partir de uma concepo do fenmeno criminal como dado ontolgico preconstitudo reao social e ao direito penal, passa a ter seu objeto de estudo focado nas causas da delinqncia.

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Conforme assevera Dias30, cerca de um sculo aps a publicao da obra de Beccaria, o clima poltico-intelectual do estudo do crime havia adquirido novas feies. As incuas reformas penais e penitencirias apregoadas pelo Iluminismo mostraram-se incapazes de deter os avanos da criminalidade, bem como das taxas de reincidncia. Essa falncia, operada num contexto de absoluto domnio das cincias empricas, especialmente com a publicao das obras de Charles Darwin31 (A origem das espcies, de 1859, e A ascendncia do homem, de 1871), induz a um inexorvel deslocamento do objeto de estudo da Criminologia, cujo paradigma passa a se focar no homem criminoso. Para a Escola Positivista, sob o espectro de uma viso naturalista de totalidade, o delito deixa de ser considerado to somente como ente jurdico, desprovido de qualquer valorao de ndole etiolgica. A mxima do livre-arbtrio32 como pressuposto bastante imputao, pregada pelos clssicos, cede espao compreenso desse fenmeno sob o prisma do complexo de causas biolgicas e psicolgicas do indivduo, bem como na totalidade social no qual se encontra o mesmo inserido. Trata-se de uma concepo determinista da realidade qual o homem pertence e, silogisticamente, da qual seu comportamento acaba por ser expresso. , assim, o homem delinqente o objeto dessa nova disciplina cientfica.

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Op. cit., pp. 10-14. A influncia de Darwin patente na obra lombrosiana. A tese central da antropologia criminal de Lombroso o atavismo insere-se com preciso nos parmetros do evolucionismo darwinista. Merece relevo a seguinte colocao: De tempos em tempos surgem desvios de formao fortemente pronunciados que podemos chamar de monstruosidades. Tais anomalias afetam alguns indivduos, entre milhes de outros nascidos no mesmo pas e alimentados quase da mesma maneira. (...) Todas essas alteraes de conformao, quer sejam pouco ou muito acentuadas e quer se manifestem em um grande nmero de indivduos que vivem em um mesmo grupo, podem ser consideradas como efeitos indefinidos das condies de existncia. (DARWIN, Op. cit, p. 71). Do mesmo modo, a Escola Positivista assumiu a tese da relevncia do legado recebido por meio da hereditariedade, bem como a da perda do protagonismo do ser humano, ambas propostas por Darwin. 32 Nas palavras de Ferri, o livre arbtrio no passaria de uma iluso subjetiva. (apud GARCAPABLOS DE MOLINA, op. cit., p. 69).

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Segundo Vera Malaguti Batista33, no limiar do sculo XIX que surge na Europa a criminologia como uma nova disciplina, ancorada nas teorias patolgicas da criminalidade que, a partir das caractersticas biolgicas e psicolgicas, classificava a humanidade entre normais e criminosos.. Como maiores expoentes da Escola Positivista, h que se destacar as obras dos italianos Lombroso, Garfalo e Ferri. Para o primeiro, a quem hodiernamente se atribui o ttulo de pai da criminologia cientfica, a criminalidade estaria essencialmente ligada a um fator antropolgico. A partir da utilizao do mtodo emprico, formula a sua teoria do criminoso nato, descrito como um tipo inferior, atvico e degenerado. Aduz, em seu Luomo delincuente, em represlia s crticas contra ele empreendidas, a seguinte colocao:

Criticam a teoria da hereditariedade do crime, pois, muito freqentemente, os causados tm parentes honestos. Mesmo entre os grandes criminosos faz-se esta constatao. Tudo isso verdade, mas verdade tambm que o maior nmero de criminosos vem de criminosos, ou de alcolatras ou de 34 tsicos, etc. e retornam todos degenerescncia sob outro nome.

A viso eminentemente antropolgica da criminalidade proposta por Lombroso depois ampliada por Garfalo, que pe em relevo o elemento psicolgico, e Ferri, que acresce o peso das condicionantes sociolgicas. De todo modo, a orientao positivista exprime a busca de uma explicao para a criminalidade fundada, segundo Baratta35, na diversidade ou anomalia dos autores de comportamentos criminalizantes.

BATISTA, Vera Malaguti. O mesmo olhar positivista. In: Boletim do IBCCRIM Edio especial, So Paulo, ano 8, n. 95, p. 8, 2000. 34 LOMBROSO, Csar. O homem delinqente. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001. p. 37 35 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 39.

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Da advm o papel desempenhado pela escola positiva, por exemplo, na formao dos ideais de eugenia, o que legitimou o desenvolvimento de modelos polticos como o fascismo, o nazismo e o integralismo, e na conceituao da loucura e demais doenas mentais.36 A despeito da inclinao desviante ser compreendida como elemento sintomtico da personalidade, ao autor do delito impe-se a necessidade de uma reao da sociedade. No entanto, em face do reconhecimento desse verdadeiro determinismo endgeno, vincula-se a reao criminal a uma ideologia de tratamento. Isso porque, a partir do sculo XIX, comeam a se superar os ideais mitolgicos, religiosos e supersticiosos sobre a loucura, a qual passa a ser encarada como uma doena mental e, como tal, fundamentalmente carecedora de tratamento hospitalar.37 A pena perde, assim, seu carter de retribuio jurdica ou tica, ganhando tnus curativo e reeducativo, muitas vezes atravs de substitutivos penais, a bem do cumprimento do seu papel de instrumento de defesa social. Como conseqncia, destaca Baratta38, tem-se a imposio indeterminada da pena, vez que a medida de sua durao estaria fatalmente ligada s condies do sujeito tratado.39

Cf. TRTIMA, Pedro. Crime e Castigo para alm do Equador. Belo Horizonte: Indita, 2002. Nesse sentido, merece destaque a figura do mdico francs P.H. Pinel, considerado um dos fundadores da moderna psiquiatria, iniciando uma nova era no diagnstico e tratamento das doenas mentais, sobretudo com a criao de abrigos e centros de reabilitao para os enfermos. 38 Op. cit., p. 40. 39 Segundo Garfalo, a falta de perspectiva de cura da anomalia psicolgica serviria para legitimar a eliminao do criminoso. o que aduz Para ns o juzo penal significa a designao do tipo de delinqente que se examina, como a pena significa o meio eliminativo necessrio segurana social. Ora, deste juzo pode admitir-se uma reviso e uma anulao em casos de erro: mas como pode imaginar-se que o chefe do Estado faa perdurar o perigo que os juzes reconheceram e procuraram evitar? No isto uma clara violao do direito que tem os cidados de serem libertados do contato de criminosos reconhecidos? Foi um ru declarado inbil para toda uma vida social ou para algumas condies especiais de vida, e eis que o governo por um decreto de perdo lhe d a aptido fisiolgica, o senso moral e os hbitos sociais que ele no tem! (ver GARFALO, R. Criminologia: estudo sobre o delito e a represso penal. Campinas: Pritas Editora, p. 287.37

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Do exposto, pode-se afirmar com Batista40 que definitivamente a escola positivista ignora a construo poltica do direito penal, bem como o surgimento no corpo social do comportamento desviante e real ontologia da reao social. Essa deliberada omisso permite que a criminologia positivista cumpra tarefa poltica de legitimao da natural ordem estabelecida.

2.1.3 A Ideologia da Defesa Social

A despeito, porm, de o pensamento positivista ter rompido com o paradigma moral-normativo da criminalidade adotado pelos clssicos, mostra-se imperativo o reconhecimento de que ambas as escolas sustentam a ideologia de um sistema penal baseado na defesa social. o que corrobora a lio de Baratta41, ao observar como ponto assente nas escolas clssica e positivista um modelo de cincia penal integrada, ou seja, um modelo no qual a cincia jurdica e a concepo geral de homem e da sociedade esto estreitamente ligadas. Assim, calcada numa concepo patentemente maniquesta, a ideologia da defesa social prega o delito como autntica encarnao do mal, contrapondo-se ao bem representado pela sociedade constituda. Nesse esteio, o Estado, como expresso dessa sociedade, est legitimado a reprimir as prticas desviantes atravs de suas instncias oficiais de controle social. Enfim, para a reafirmao dos valores e normas sociais interesses em tese protegidos pelo direito penal impese a reprovao e a punio do comportamento individual desviante.42

BATISTA, Nilo. Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. pp. 29-33 41 Op. cit., p. 41. 42 Segundo Baratta (Op. cit., p. 42), o contedo dessa ideologia teria se infiltrado com vigor no seio do pensamento jurdico e tambm do senso comum (every day theories). A nosso ver, o mote da defesa

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J no segundo quarto do sculo XIX, notadamente como decorrncia direta do processo de industrializao institudo, que fez surgir subrbios superpovoados e em condies de reconhecida degradao material e moral, passa-se a uma abordagem do crime como fenmeno coletivo, oriundo da prpria estrutura socioeconmica vigente. Sem configurar verdadeira ruptura com o sistema anterior, o estruturalfuncionalismo passa a examinar a conduta desviante a partir de uma matiz eminentemente sociolgica, tomando por base fatores como educao, famlia e ambiente material e rejeitando a concepo patolgica da criminalidade. Nesse contexto, sobreleva-se a figura de Emile Durkheim43 e sua teoria da anomia, consubstanciada no antagonismo entre as representaes pregadas pela estrutura cultural, que prescreve a todos os cidados meios legtimos para a consecuo das mais diversas metas, e a realidade oriunda da estrutura social. Esta, ao repartir desigualmente as possibilidades de acesso aos meios legtimos, induz a utilizao de meios ilegtimos, configurando-se, assim, o desvio.44 Visto como elemento funcional e no mais patolgico da vida social, o desvio, dentro de certos limites, ao provocar a reao social, estimula e mantm vivo o sentimento coletivo, exercendo influncia direta no desenvolvimento moral da sociedade. Na acepo funcionalista, o delito ganha verdadeiro status de agente regulador da vida social.

social e, em especial, o princpio do bem e do mal, continuam, hoje, a legitimar a macia atuao do Estado-Penal. 43 Durkheim, juntamente com Marx, costuma ser apontado como fundador das teorias sociolgicas contemporneas, inexoravelmente pautadas, em maior ou menor grau, na antinomia conflitoconsenso. 44 Robert Merton, representante da sociologia criminal estadunidense, aduziu ser o crime uma das formas individuais de adaptao do homem no contexto de uma sociedade agnica em torno de bens escassos. (apud DIAS, op. cit., p.37)

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Segundo Fragoso45, os anos que se seguiram Segunda Grande Guerra, com a fundao, na Itlia, por Filippo Gramatica de um Centro de Estudos da Defesa Social, o movimento se reformula a partir de um programa mnimo, de tnus igualmente pragmtico, atravs do qual se reedita a idia de que a luta contra a criminalidade deve ser uma das tarefas mais importantes da sociedade. No se negue, entrementes, que a Nova Defesa Social, mormente a partir da publicao, em 1954, da obra de Marc Ancel46, a despeito de reconhecer o direito penal como elemento integrante da poltica social do Estado, preconiza o antidogmatismo, enfatizando a necessidade de ruptura com a abordagem puramente jurdico-formal das questes criminais. Na mesma linha, tomando a sociologia como grande eixo e incorrendo em idntica superficialidade na anlise das causas do fenmeno crimingeno47 surgem, sobretudo a partir da dcada de 40, diversos esquemas tericos, aplicando sua anlise marcos tericos precisos (subcultural, ecolgico, conflitual, interacionista, etc). Pode-se afirmar que tais teorias, concentrando suas

investigaes nos problemas sociais ento vigentes, apresentam-se revestidas de particular empirismo, bem como de patente finalidade pragmtica. o que observa, por exemplo, na teoria das subculturas criminais48, desenvolvida pioneiramente por Clifford Schaw e Frederic Trascher e,

posteriormente, por Sutherland, ao justificar o desvio a partir da comunicao entre as subculturas. Existiriam normas e valores vigentes caractersticos de cada estrato social, no sendo mais cabvel a concepo do delito como conduta contrria aos

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FRAGOSO, Heleno Cludio. Prefcio da edio brasileira. In: ANCEL, Marc. A Nova Defesa Social: um movimento de poltica criminal humanista. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. VII. 46 Op. cit. 47 Observe-se que o paradigma etiolgico do positivismo buscar causas para a criminalidade permanece como eixo central das teorias criminolgicas. 48 BARATTA, op. cit., pp. 69-76.

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valores vigentes. A estratificao social desenvolveria subculturas criminais como reao das camadas desfavorecidas e, portanto, mais fortemente marginalizadas: vagabundos, alcolatras e drogados, dentre outros.49 De todo modo, o reconhecimento da existncia de grupos diferentes importou na relativizao dos sistemas de valores vigentes, refutando-se a prpria idia do absoluto livre-arbtrio. Trabalha-se a idia de individualizao, ainda que dentro da estrutura social, de modo que, por essa razo, h que se reconhecer a generosidade dessa teoria para o perodo. Fundamental releitura da teoria das subculturas criminais foi feita por Gresham Sykes e David Matza, atravs da anlise das tcnicas de neutralizao.50 Segundo esta, o comportamento desviante aprendido e adotado com base em um sistema de valores e normas alternativo, ou seja, diverso do preconizado pela ordem instituda. Trata-se de uma teoria de mdio alcance, sobretudo por simplesmente aceitar as condies socioeconmicas como condicionantes do fenmeno criminal e ignorar que os delinqentes tambm esto submetidos a mecanismos de socializao que servem de base ao comportamento conformista. Carecedora de um exame mais profundo da lgica da produo e valorizao do capital, no foi hbil a concluir que a distribuio de oportunidades sociais e riquezas , em ltima anlise, determinada.

2.1.4 Um Novo Paradigma Cientfico: o Labelling Approach com o advento do rotulacionismo que a condio de delinqente passa a ser encarada como produto do sistema penal. Nesta direo de pesquisa no se pode compreender a criminalidade caso no se estude a ao do sistema penal.49

A teoria das subculturas criminais encaixa-se com especial peculiaridade na perspectiva histrica e poltica do fordismo norte-americano: lei seca, imigrao e juventude transviada. 50 BARATTA, op. cit., pp. 77-83.

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Assim, o labelling approach preocupou-se em avaliar a atuao das instncias oficiais de controle social (legislao, polcia, juzes e instituies penitencirias, dentre outras) na produo das identidades desviantes. Fala-se em criminalizao e no mais em criminalidade, passando-se a indagar quem definido como criminoso. Do estudo das trs grandes escolas criminolgicas, quais sejam, a liberalclssica, a positivista e a estrutural funcionalista, o grande ponto de ruptura entre suas estruturas verifica-se com o deslocamento do objeto de estudo, constitudo, respectivamente, no delito, no delinqente e na estrutura social. Na perspectiva das permanncias, nenhuma delas desligou-se do paradigma etiolgico, desviando seu eixo central tentativa de responder perturbadora indagao: para qu serve a criminalizao? nesse esteio que a teoria da rotulao promove um desvio do objeto central da investigao criminolgica, tomando o paradigma da reao social ou da definio. No se pode negar que no processo de criminalizao de uma dada sociedade, como assevera Baratta51, as etiquetas da criminalidade e o status de criminoso so atribudos a certos comportamentos e a certos sujeitos, assim como para o funcionamento da reao social informal e institucional.. Observe-se, porm, que paralelamente aos comportamentos proibidos, coexistem muitos outros, que so avaliados de forma neutra e, portanto, permitidos. Com base nisso, constatada a existncia de um poder de definio dos padres de negatividade social e de reao, a distribuio desses d-se de maneira implacavelmente vinculada desigualdade instituda no corpo social. Assim, tomando-se por base a secular lgica da desproporo da distribuio do poder e

51

BARATTA, op. cit., p. 211.

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dos recursos nas sociedades, tem-se o ponto de partida para o desenvolvimento do vasto campo do pensamento criminolgico intitulado criminologia crtica.

2.1.5 A Criminologia Crtica Tomando como integrante dessa concepo crtica o campo do pensamento criminolgico que rompe com o paradigma etiolgico e, por conseguinte, com a noo ontolgica de criminalidade, a criminologia crtica desponta reclamando uma reflexo analtica sobre o funcionamento real do poder e das instituies de controle social. Essa nova criminologia atenta-se, sobretudo, para o fato de que a opinio dita pblica, cegamente impregnada dos padres estabelecidos pela ideologia dominante52, reveste-se de um falacioso senso de unidade na luta contra o crime, que, em verdade, se presta consolidao das relaes de poder. Nessa linha, vse que o direito serve para reproduzir, manter e legitimar as relaes de desigualdade da estrutura social. H que se observar, ainda, na perspectiva crtica que nos proposta por esta teoria53, que, em todos os tempos, as eventuais tenses oriundas das massas marginalizadas ensejaram um incremento das tticas penais de disciplina e represso. Na conjuntura atual, segundo a lgica do empreendimento neoliberal globalizado, o processo de criminalizao segue como o mais poderoso mecanismo de reproduo das desigualdades sociais institudas, atravs da paradoxal52

Idem, p. 213. Segundo Baratta, o elemento ideolgico no contingente, mas inerente estrutura e forma de funcionamento do sistema penal. 53 Segundo prognose de Lyra Filho, o itinerrio da criminologia crtica haveria que desembocar numa criminologia dialtica, atravs da qual as contradies do sistema seriam efetivamente percebidas. No despertar dessa conscincia crtica, o conceito de crime seria tomado como parte de um afazer criminolgico que h de estudar, conjuntamente, o processo de aberrao e a gnese das normas ticas e, em especial, as jurdicas, apropriando-se da relatividade das formalizaes, sendo, pois, compreendido e explicado na perspectiva da dialtica de valores. (ver LYRA FILHO, Roberto. Criminologia Dialtica. Rio de Janeiro: Borsoi,1972. p. 67.)

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coexistncia de um Estado de Direito, fruto de lutas secularmente travadas, de feies patentemente autoritrias no que tange ao vasto campo de empreendimento do sistema penal. Diante dessa funcionalidade das contradies do prprio sistema, a razo crtica inexoravelmente induz-nos necessidade de superao desse modelo penal, o que, naturalmente, de maneira diversa da criminologia tradicional no se pode dar de maneira imediata. dessa proposta de profunda reforma, que, segundo Baratta54, emerge a grande fora da criminologia crtica, j que, seja a mdio ou longo prazo, somente atravs da anlise crtica do sistema e da reconstruo dos problemas sociais ser possvel cogitar-se de uma poltica criminal verdadeiramente libertadora.

2.2 A CONSTITUIO HISTRICA DO PENSAMENTO CRIMINOLGICO NO BRASIL: A ESCOLA CRTICA COMO NORTE Retomando-se a concepo da criminologia como um saber que

historicamente integra as estratgias do poder institudo na gesto dos contingentes humanos, impende-se para uma efetiva anlise crtica dos institutos criminais de ontem e de hoje, o exame das estruturas econmico-sociais vigentes ao longo dos tempos. Desse modo, vista da concepo do saber criminolgico como patente instrumento de dominao, que busca a instaurao de uma ordem social composta por indivduos teis, na perspectiva da produo, e dceis, do ponto de vista

54

BARATTA, op. cit., p. 216.

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poltico55, pretende-se verdadeiramente conhecer o papel da criminologia no Brasil ao longo de nosso processo histrico de criminalizao.

2.2.1 As Prticas Punitivas no Modelo Colonial-Mercantilista A despeito de no se poder afirmar, basicamente em razo da ausncia de uma dimenso sistemtica, a existncia de uma cincia criminolgica antes do sculo XVIII, o processo de criminalizao acompanhou, em todos os tempos, a histria das sociedades, o que tambm se deu em relao brasileira. Assim, a histria da programao criminalizante no Brasil do sculo XVI56 tem incio com os usos punitivos tpicos do mercantilismo, direcionados basicamente ao corpo do suspeito ou condenado, atravs das gals, dos aoites e da morte, por exemplo. A despeito da vigncia das Ordenaes do Reino de Portugal no mbito colonial, diz-se que as primeiras delas as Afonsinas e as Manuelinas no tiveram influncia nas prticas punitivas do Brasil-Colnia57, as quais, em verdade, eram exercidas de maneira desregulada e, precipuamente, na esfera privada. Coexistindo com as prticas penais domsticas nsitas ao modelo escravocrata, a entrada em vigor das Ordenaes Filipinas fez com que esse diploma escrito passasse a representar uma referncia da programao

criminalizante em nossas terras a partir do limiar do sculo XVII, perdurando at a promulgao do cdigo criminal de 1830.

FOUCAULT, op. cit., p. 193. Relata-se que a primeira prtica delitiva em terras tupiniquins deu-se em 25 de agosto de 1501, no espao territorial hoje correspondente cidade de Natal, quando umas mulheres ndias abateram, assaram e comeram um tripulante da primeira viagem portuguesa de Amrico Vespcio. Curiosamente, a despeito da revolta da tripulao, por ordem do capito-mor no houve represlia. (ver BATISTA, Nilo et al. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 412.) 57 BATISTA et al, op. cit., p. 413.56

55

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A crueldade das Ordenaes Filipinas, relacionada com a idia de intimidao pelo terror do castigo, mereceu destaque nas obras de Frederico Marques58, que, corroborando o pensamento de Melo Freire, destacou que seu Livro V compendiou a barbrie penal que as monarquias absolutistas da Europa haviam transplantado do livro terrvel do Digesto, para suas leis odiosas e desumanas, e Anbal Bruno59, que a caracterizou

[...] pela dureza das punies, pela freqncia com que era aplicvel a pena de morte e pela maneira de execut-la, morte por enforcamento, morte pelo fogo at ser o corpo reduzido a p, morte cruel precedida de tormentos cuja crueldade ficava ao arbtrio do juiz; mutilaes, marca de fogo, aoites abundantemente aplicados, penas infamantes, degredos, confiscao de bens.

Destaque-se que, consoante conjuntura de terror generalizado, o instituto da delao premiada fazia-se presente no Ttulo CXVI do Livro V das Ordenaes Filipinas. A longevidade das Filipinas, corroboradas pela Assemblia Constituinte, deuse mesmo aps a Independncia, o que permitiu o seu paradoxal convvio com a nossa primeira Carta Constitucional, de 1824, elaborada sob os auspcios antiabsolutistas advindos das revolues burguesas na Europa.

2.2.2 Os Influxos Liberais: O Cdigo Criminal de 1830 e o Cdigo de Processo Criminal de 1832 Muito embora no se possa falar na ocorrncia de uma efetiva revoluo burguesa entre ns, as idias liberais, impraticveis no plano real, ao menos em nvel retrico, no podiam ser descartadas.58

MARQUES, Jos Frederico. Tratado de Direito Penal. 1. ed. atual. So Paulo: Bookseller, 1997. v. 1, p. 116. 59 BRUNO, Anbal. Direito Penal. Parte Geral - tomo I. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 160.

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Isso porque todo o engendramento do sistema penal brasileiro d-se com base no paradoxo da coexistncia entre liberalismo e escravido, vez que a Constituio de 1824, em seu art. 179, inc. XXII, a manteve sob a frmula circunloquial60 da garantia do direito de propriedade em toda a sua plenitude. Os historiadores do direito penal referem-se a esse perodo como sendo marcado pela humanizao das leis e dos mtodos punitivos, traos caractersticos das sociedades ditas civilizadas. Segundo Rauter61, no Brasil, os juristas liberais sadam este processo humanizador e olham para o passado com indignao. Entretanto a incompatibilidade do discurso liberal com a realidade estabelecida no Brasil, onde a ao do Estado sempre se deu de forma violenta, faznos deparar com contradies como a vedao constitucional acerca do emprego de penas cruis e a previso dos aoites pelo Cdigo Criminal ou a consagrao do princpio da reserva legal neste ltimo e a autorizao, no Cdigo de Processo Criminal de 1832, da cominao de certas penalidades pelo juiz de paz em relao aos suspeitos de certas prticas criminosas.62 O fato que o projeto liberal sucumbiu instaurao de um autntico Estado policial, materializado por um ideal de vigilantismo estruturado em boa parte pelo Cdigo de Processo Criminal de Primeira Instncia, que disseminou a administrao concreta do poder punitivo num vasto espectro de abrangncia, seja pelos grandes proprietrios locais, seja, num outro extremo, pelo prprio Ministro da Justia.63 Interessante observar que j nesse perodo, o fenmeno contemporneo da proliferao das leis penais e processuais penais opera-se em nveis exponenciais, o que na verdade decorria das idas e vindas na tentativa de conciliar o inconcilivel.

60 61

BATISTA et al, op. cit., p. 423. RAUTER, op. cit., p. 21. 62 BATISTA et al, op. cit., pp. 424-425. 63 Idem, ibidem.

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Nesse sentido, destaca-se a indignao de Braz Florentino, ao destacar a inviabilidade de conhecimento da legislao vigente pelos prprios profissionais do Direito, sem prever que o futuro seria muito pior.64 na conjuntura do fracasso do projeto liberal, inadequado manuteno dos quadros favorveis explorao, por parte das oligarquias dominantes, da plebe, incluindo, claro, os escravos, que se firmam as razes do nosso sempre corrente autoritarismo policial.

2.2.3 O Cdigo da Repblica A suposta inviabilidade do liberalismo poltico passa agora a ser recolocada pelos prprios juristas pautada na ineficcia da legislao at ento vigente no que tange ao combate criminalidade. Paralelamente manuteno da estrutura econmica agroexportadora, pautada na grande propriedade rural e nas tpicas relaes de coronelismo, exsurge um processo de industrializao, em boa parte, empreendido pela instaurao de empresas estrangeiras no pas, baseado na explorao desmedida da fora de trabalho. Desse modelo adveio uma significativa ampliao do mbito de abrangncia do rol de dominados: os escravos libertos, os imigrantes indesejados, os proletrios anarquistas e os demais desclassificados urbanos (prostitutas e cftens, desempregados, capoeiras e mais tarde malandros).65 J no final do sculo XIX, chegam ao Brasil os ventos do discurso de uma autntica cincia criminolgica pautada na neutra observao da figura do homem delinqente, que passa a ser visto como ser anormal.

BATISTA et al, op. cit., p. 438. Ibid., p. 442. Destaque-se ser esse o contexto no qual se empreende a criminalizao da vadiagem como fruto do temor representado pelas hordas de escravos libertos, pobres desocupados e praticantes de capoeira.65

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Reduzindo, portanto, ingenuamente, o criminoso simples condio de agente transgressor da lei, o direito penal liberal teria pecado por carecer de uma avaliao cientfica do homem e da sociedade, revelando-se incapaz de promover a efetiva defesa da sociedade. Lastreada por critrios cientficos, a escola antropolgica ou positivista, operou inmeras transformaes no trato das questes criminais, valendo destacar66 o questionamento da noo de livre arbtrio e responsabilidade, vez que nossos atos seriam precipuamente controlados pelos instintos, e no pela razo; a necessidade de tratamento diferenciado para os homens dotados de personalidade especial; a vinculao da pena a um ideal bsico de eficincia, legitimando-se, inclusive, sua indeterminao em face dos anormais impassveis de intimidao e recuperao; a caracterizao da funo julgadora como eminentemente tcnica, pautada numa concepo naturalista das leis como mecanismos de defesa do corpo social. O grande empreendimento do positivismo no Brasil d-se a partir do momento em que se adere premissa, supostamente cientfica, segundo a qual, no dizer de Bevilqua, existe um morbus que impele ao delito.67 A tese lombrosiana, que vincula a identificao do criminoso a caracteres de ordem fsica, ganha amplitude com a vinculao, engendrada por Ferri, do delinqente a uma anormalidade moral; o que permite a substituio do discurso da inferioridade jurdica do escravismo pelo da inferioridade biolgica.68

66 67

RAUTER, op. cit., pp. 27-30. Apud RAUTER, op. cit., p. 34. 68 BATISTA et al, op. cit., p. 442.

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No sem razo que Rosa Del Olmo69 registra a receptividade que o positivismo criminolgico encontrou na Amrica Latina, haja vista prestar fundamental papel legitimador das hegemonias locais institudas. Assim, a anormalidade e a inclinao para o crime passa a ser reconhecida mormente nos hbitos de vida, degenerao moral esta tambm entendida como transmissvel hereditariamente. Isso permite, no dizer de Rauter70, que os criminlogos passem a se atentar para os costumes brasileiros, de modo que o samba, o carnaval e a miscigenao seriam indcios de uma incapacidade para o controle moral, que explica tambm a indolncia para o trabalho, a tendncia para o desrespeito autoridade e finalmente para o crime. tambm a partir do incio do sculo XX que o discurso mdico passa a interagir com o criminolgico, notadamente atravs da atuao dos saberes psi. O criminoso passa a ser visto como um doente, de modo que a priso d-se em nome da cura, e no mais da punio, representando um tratamento que se reverte em benefcio do prprio preso. nesse contexto que surgem as avaliaes sobre a personalidade do delinqente com base em instrumentos tcnico-cientficos (laudos psiquitricos e sociais, dentre outros), o que, na prtica, permitiu um aumento substancial do campo de incidncia da velha e boa pena de priso. Assim, ao argumento da defesa da sociedade contra esses elementos nocivos, articula-se um projeto institucional de incremento e maior rigor das penas. Nesse esteio, revela-se imperante o desenvolvimento de uma atuao preventiva em relao s rals, dada a ausncia de freios morais e a devassido

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DEL OLMO, Rosa. Amrica Latina y su criminologa. Mxico: Siglo Veinteuno Editores, 1981, p.125. 70 Op. cit., p. 37.

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dos costumes favorecida pela misria71, o que passa a se dar atravs de um intenso vigilantismo policial. O reducionismo no trato das questes sociais como casos de polcia, fruto do ideal positivista, foi estudado por Trtima72 a partir das publicaes da polcia carioca no incio do sculo XX. Notadamente com a reforma da Polcia do ento Distrito Federal de 1907, teve-se o efetivo engendramento do novo esprito cientfico no plano desta instituio que, secularmente dotada de implacvel vocao coercitiva, o que permitiu uma atuao legitimamente guiada por critrios como raa, etnia e classe social. Somente a neutralizao desses grupos tidos como inferiores permitiria uma vida em sociedade mais sadia. Trao igualmente presente na primeira Repblica foi o fenmeno da superproduo de leis penais extravagantes, o que, em todos os tempos, prestou-se ampla incidncia do sistema penal, mormente na tarefa de atingir seus alvos sociais.73 Dessa enxurrada legislativa resultou, em 1932, a Consolidao das Leis Penais, que, em verdade, prestou-se sistematizao da estrutura criminal vigente, preservando a estrutura original do Cdigo de 1890 e inserindo acrscimos e alteraes. Do exposto, a programao criminalizante da primeira Repblica, na qual coexistem as oligarquias institudas e uma incipiente classe burguesa em ascenso, buscou estabelecer um sistema penal de manuteno da ordem amparado na delimitao e subseqente preservao de espaos sociais, cujas bem delimitadas fronteiras no poderiam ser ultrapassadas, funcional ou mesmo territorialmente74.

RAUTER, op. cit., p. 37. TRTIMA, op. cit., pp. 109-155. 73 BATISTA et al, op. cit., p. 446. 74 BATISTA et al, op. cit., p. 457. Segundo os autores, com base no estabelecimento dessa geopoltica criminal que surgem as favelas, j vinculadas a uma pobreza com forte tendncia s prticas infracionais.72

71

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Qualquer tentativa de deslocamento desses lugares estabelecidos, seja do ponto de vista do questionamento da ideologia vigente, na figura do operrio que parecesse flertar com o anarquismo, seja na tica da transposio geogrfica das fronteiras impostas, na pessoa da prostituta que atuasse fora do seu antro, revelavase perigosa e, portanto, carecedora da atuao do sistema repressivo.

2.2.4 O Cdigo Penal do Estado Novo O sistema penal inaugurado com o Cdigo de 1940 vinculou-se

sensivelmente ao conjunto de transformaes empreendidas pela chamada revoluo de 30. No esteio da ecloso do crescimento industrial brasileiro, institui-se um estado forte, centralizado e intervencionista, que teve como uma de suas notas marcantes a incorporao do proletariado ao cenrio poltico nacional, sobretudo atravs da elaborao da legislao previdenciria e trabalhista correlatas, bem como pela implantao de organizaes sindicais. A instaurao de um autntico estado previdencirio, na perspectiva assistencialista imanente a este modelo, importou num ideal de limitao do poder punitivo atravs de medidas como o abrandamento de penas, a proteo dos indivduos fragilizados e a preocupao com os abusos no empreendimento da administrao pblica. A questo criminal passou a ser vista sob uma tica eminentemente social, o que, fatalmente, imprimiu aos mecanismos de privao da liberdade patente tnus neutralizador. Destarte, observe-se que, prestando-se ao seu compromisso perene com a defesa social, a criminologia, enquanto cincia do sistema penal, serviu, nesse perodo, para imprimir tnus eminentemente disciplinar s prticas criminais tradicionais. A incorporao dessa tecnologia disciplinar pelo CP de 1940 deu-se, de

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acordo com Rauter75, atravs da adoo do critrio da periculosidade para a aplicao da pena e da implementao do instituto da medida de segurana como integrante do gnero sano penal. Desse modo, o paradigma da periculosidade, vinculado personalidade do criminoso, e no ao delito, fez com que o sentido da pena no se justificasse to somente pelo ideal de punio, mas tambm pelo de tratamento e reforma do delinqente. Em verdade, o que se permitiu, atendendo precipuamente a preceitos de vigilncia e segregao, foi a imposio a essa classe de criminosos de uma autntica pena, arbitrria e prolongada, vez que condicionada cura da doena e cessao da periculosidade. No se negue, pois, que o Cdigo de 1940 operou a transformao das prticas judicirias vigentes, permitindo, essencialmente, a ampliao do poder repressivo estatal em nome da cincia. As dcadas posteriores foram marcadas por um intenso trabalho de produo legislativa na esfera penal, o que levou Batista76 a classificar as leis penais desse perodo em cinco grandes grupos: um primeiro marcado por patente restrio ao poder punitivo, sobretudo pelo ideal de abrandamento de penas; um segundo e um terceiro caracterizados, respectivamente, pelo ideal de interveno econmica e pelo estabelecimento de uma incipiente tutela ambiental; um quarto referente preservao do patrimnio pblico, bem como sua administrao; e, finalmente, um quinto grupo vinculado proteo dos indivduos socialmente vulnerveis. Imperativa, ademais, a meno ao programa de criminalizao destinado represso de ndole poltica, que ganhou vigor aps o golpe de 1964, incorporando os preceitos da doutrina da segurana nacional. Foi nesse perodo, notadamente75 76

RAUTER, op. cit., p. 70. BATISTA et al, op. cit., pp. 475-477.

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entre 1968 e 1974, que se engendrou o subsistema penal77 DOPS/DOI-CODI, articulado com base na atuao conjunta das reparties policiais civis e das instituies militares, responsvel pela disseminao da tortura, morte e

subseqente desaparecimento de corpos de centenas de pessoas. Assim, a despeito da existncia de subsistemas, como o promovido pela institucionalizao do discurso mdico-psiquitrico, atravs das medidas de segurana, ou pela estruturao do modelo de represso policial sumria do DOPS/DOI-CODI, pode-se afirmar que o Cdigo Penal de 1940 representou o alicerce da programao criminalizante desenvolvida pelo estado do bem-estar. Embora elaborado sob a gide de um regime ditatorial, sob inegvel influncia do Cdigo Rocco italiano, consubstanciada na sua prpria Exposio de Motivos, o Cdigo Penal de 1940 pautou-se, segundo Fragoso78, nas bases de um direito punitivo democrtico e liberal.

2.2.5 A Reforma da Parte Geral de 1984 e o Advento da Decodificao Sem a inevitvel meno ao Cdigo Penal de 1969, cuja vigncia, reiteramente postergada, jamais se implementou, houve em 1984 uma significativa reformulao da Parte Geral do CP de 1940, acompanhada da elaborao de nossa primeira lei de execues penais. Dentre as alteraes estabelecidas, merecem destaque a supresso das medidas de segurana para imputveis e a superao, em relao aos semiimputveis, do sistema do duplo binrio pelo vicariante, bem como a diminuio dos efeitos da reincidncia, a eliminao da possibilidade de perpetuao da pena

77 78

BATISTA et al, op. cit., p. 478. FRAGOSO, op. cit., p. 66.

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limitada ao mximo de trinta anos, e a instituio das penas restritivas de direitos como substitutivos s privativas de liberdade de menor monta. O que, de fato, pode-se concluir que a reforma de 1984, operada a partir do incio dessa dcada, j na perspectiva da abertura poltica que se empreendeu, pautou-se num suposto rompimento com o modelo tecnocrtico vigente. Este, respaldado pelo argumento de autoridade da cincia e guiado pelo mote da segurana pblica, legitimou a macia adoo de mecanismos repressivos, ocultando a engenhosa ideologia de sujeio que verdadeiramente o orientou. Sem, contudo, nos apegarmos a uma anlise mais detida da estrutura instalada pela reforma penal de 1984, as transformaes econmicas e culturais que importaram na adoo daquilo que se intitulou neoliberalismo ou globalizao, importaram no estabelecimento de um sistema penal altamente seletivo e, por essa razo, pautado num discurso compreensivelmente paradoxal: aos cidadosconsumidores apregoa-se a adoo de medidas despenalizadoras; aos

consumidores falhos (no-cidados) busca-se a neutralizao, primorosamente atendida com a privao da liberdade. Segundo Batista79, a minimizao do papel do Estado, vez que o efetivo poder planetrio se desloca para os monoplios ou oligoplios transnacionais, cingido a uma funo precipuamente arrecadadora, faz com que este seja concebido como um empreendimento empresarial, guiado por critrios de eficcia. Na lgica desse sistema, o crescimento exponencial do contingente humano de excludos, presumidamente vinculado noo de perigo, combatido por um processo de hipercriminalizao, viabilizado pela edio macia de leis penais e processuais penais. a era da decodificao.

79

BATISTA et al, op. cit., pp. 406-407.

50

Em tempos de medo generalizado e clamor por segurana, legitima-se o sistema penal do estado neoliberal, vigilante, invasivo e, nesse esteio, cultor da delao.

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3 POLTICA CRIMINAL BRASILEIRA: ASPECTOS DA CONTEMPORANEIDADE

Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva e de sede so tantas vezes gestos naturais. Caetano Veloso

3.1 CONTEXTUALIZAO DO TEMA

Transcendendo-se a concepo de poltica criminal como sendo o programa de diretrizes bsicas propostas pelo Estado no combate criminalidade e, por conseguinte, buscando evidenciar seus aspectos silenciados ou negados, adota-se, na presente abordagem, uma perspectiva de anlise dialtica entre a doutrina penal e a teoria poltica do Estado de direito. Isso porque qualquer estudo de cunho crtico acerca das estratgias de poltica criminal contemporneas deve partir, inexoravelmente, do grande paradoxo institudo: como, em tempos de singular valorizao de direitos e garantias fundamentais dos indivduos, admitir-se a constante privao, na esfera punitiva, desses valores ticos e ideolgicos do regime democrtico? Assim, a compreenso da atual poltica criminal empreendida no contexto ptrio e, em especial, a insero do instituto da delao premiada como uma de suas estratgias de atuao, h que passar pelo exame das condies econmicas, polticas e sociais estabelecidas pela nova ordem mundial. Em tempos de transnacionalizao do controle social, exsurge um discurso criminolgico universal, prontamente absorvido pelos pases dependentes, onde o prestgio do estrangeiro nota marcante das sociedades. No Brasil, essa matriz discursiva comum encontra territrio frtil para sua propagao, o que se pode

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verificar, por exemplo, com a importao do instituto da colaborao premiada do direito italiano e estadunidense e sua subseqente e malfadada implementao no ordenamento jurdico ptrio. Na tentativa de desvelar a relao entre as prticas punitivas modernas e os saberes engendrados pelas relaes do poder, pretende-se, mormente com respaldo na epistemologia foucaultiana, desmistificar as representaes da realidade que nos vm sendo imposta.

3.1.1 Punio e Estrutura Social Para tornar possvel a compreenso do mecanismo invisvel que norteia o discurso poltico-criminal contemporneo, impe-se a adoo de um enfoque macrossociolgico, a fim de promover a historicizao do mesmo, bem como estabelecer ligao com a superestrutura vigente. A relao entre o mercado de trabalho e o sistema penal, feita pioneiramente por Rusche e Kirchheimer80 no auge do fordismo, demonstra a vinculao direta desse ltimo ao processo de acumulao do capital. De fato, qualquer sociedade poltica organizada impe penalidades para aqueles que violam os valores sociais, em regra consubstanciados em leis, tidos como essenciais para a estabilidade e a prpria sobrevivncia do grupo. Em razo disso, a proteo da sociedade objetivo declarado de todo tipo de tratamento penal, variando, ao longo dos tempos, os meios utilizados para assegurar essa proteo. A devida compreenso, entretanto, dos sistemas penais institudos

pressupe, como assevera Rusche, despir a instituio social da pena de seu vis80

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2004.

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ideolgico e de seu escopo jurdico e, por fim, trabalh-la a partir de suas verdadeiras relaes.81 Sabendo-se que a transformao dos sistemas penais no pode ser explicada somente com base nas exigncias da luta contra o crime, torna-se imperativa a anlise das prticas punitivas adotadas com base nas foras sociais e econmicas ento vigentes. Fundamentalmente, pode-se afirmar que o objetivo de cada pena a defesa daqueles valores que o grupo social dominante elege como vitais para toda a sociedade. Da implacvel correspondncia das formas especficas de punio adotadas ao estgio de desenvolvimento econmico da sociedade, elucida-nos Rusche:

evidente que a escravido como forma de punio impossvel sem uma economia escravista, que a priso com trabalho forado impossvel sem a manufatura ou a indstria, que fianas para todas as classes da sociedade so 82 impossveis em uma economia monetria.

Assim, num giro rpido, no sculo XVII, por exemplo, o correcionalismo tinha sentido econmico, promovendo a explorao da mo-de-obra, ento escassa na priso. J no limiar do sculo XVIII, com a incorporao da ideologia burguesa pelo Iluminismo, a priso passa a ter fundamentao no ideal de justia, contrapondo-se indeterminao do absolutismo. Surge uma nova estratgia poltica, que implica punir ao invs de vingar. No sculo XIX, todavia, a despeito do discurso de garantias iluminista, o fenmeno das multides enfurecidas acaba por induzir uma poltica de controle social pelo sistema penal, restando consolidada a necessidade instrumental da pena. O estabelecimento de formas gerais de categorizao, iniciado a partir do

81 82

RUSCHE & KIRCHHEIMER, op. cit., p. 19. Ibid., p. 20.

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sculo XVII, culmina, aqui, na idia de rigorosa disciplina aliada permanente vigilncia, pontos de partida para a elaborao das teorias dos corpos dceis e do panoptismo foucaultianos. Destarte, no se pode negar que Punio e Estrutura Social falhou ao profetizar que, a partir do sculo XX , com o avano do capitalismo, ter-se-ia o declnio da pena privativa de liberdade e o s