demerval saviani - do senso comum consciencia filosofica.pdf

download demerval saviani - do senso comum consciencia filosofica.pdf

of 123

Transcript of demerval saviani - do senso comum consciencia filosofica.pdf

  • DERMEVAL SAVIANI

    EDUCAO: DO SENSO COMUM CONSCINCIA FILOSFICA

    COLEO EDUCAO CONTEMPORNEA

    11 Edio- 1996 -

    EDITORA AUTORES ASSOCIADOS

    Este trabalho rene estudos redigidos em diferentes oportunidades, obedecendo, porm, a um mesmo propsito: elevar a prtica educativa desenvolvida plos educadores brasileiros do nvel do senso comum ao nvel da conscincia filosfica.

    A introduo indica o ponto de convergncia do conjunto dos estudos que compem a obra. Os primeiros textos constituem estudos introdutrios Filosofia da Educao. Um segundo conjunto de textos refere-se, no geral, a "aspectos organizacionais do trabalho pedaggico na rea da educao". Por ltimo, so apresentados, em ordem cronolgica, alguns estudos sobre a educao brasileira.

    O livro constitui um til instrumento ao ensino das diferentes disciplinas pedaggicas, em especial das cadeiras de Introduo Educao e Estrutura e Funcionamento do Ensino, podendo tambm ser includo na programao do primeiro perodo letivo da disciplina Filosofia da Educao.

    DERMEVAL SAVIANI (1944), natural de Santo Antnio de Posse - SR cursou o primrio no Grupo Escolar de Vila Invernada, So Paulo - SP (1951 a 1954) e os cursos ginasial e colegial nos Seminrios de Cuiab - MT e Campo Grande - MS ( 955 a 1961). Iniciou os estudos filosficos no Seminrio Central de Aparecida do Norte -SP (|962). Formou-se em Filosofia pela PUC/SP (1966). Em 1971 doutorou-se em Filosofia da Educao pela PUC/SP e em 1986 obteve o ttulo de livre-docente em Historiada Educao na UNICAMP De 1967 a 1970 lecionou Filosofia, Histria, Histria da Arte e Histria e Filosofia da Educao nos cursos colegial e normal. Desde 967 professor do ensino superior. Atualmente, professor titular do departamento de Filosofia e Histria da Educao da Faculdade de Educao da UNICAMP.

    SUMRIO

    PREFCIO

  • INTRODUO, 1

    CAPTULO 1A FILOSOFIA NA FORMAO DO EDUCADOR, 9

    CAPTULO 2FUNO DO ENSINO DE FILOSOFIA DA EDUCAO DE HISTRIA DA EDUCAO, 25

    CAPTULO 3VALORES E OBJETIVOS NA EDUCAO, 35

    CAPTULO 4VALORES EM SUPERVISO PEDAGGICA: ABORDAGEM FILOSFICA, 41

    CAPTULO 5PARA UMA PEDAGOGIA COERENTE E EFICAZ, 47

    CAPTULO 6CONTRIBUIO A UMA DEFINIO DO CURSO DE PEDAGOGIA, 53

    CAPITULO 7SUBSDIOS PARA FUNDAMENTAO DA ESTRUTURA CURRICULAR DA PUC-SP, 63

    CAPTULO 8PARTICIPAO DA UNIVERSIDADE NO DESENVOLVIMENTO NACIONAL:

    UNIVERSIDADE E A PROBLEMTICA DA EDUCAO E CULTURA, 69

    CAPTULO 9O PROBLEMA DA PESQUISA NA PS-GRADUAO EM EDUCAO, 87

    CAPTULO 10UMA CONCEPO DE MESTRADO EM EDUCAO, 95

    CAPTULO 11DOUTORAMENTO EM EDUCAO: A EXPERINCIA DA PUC-SP, 101

    CAPTULO 12SUBSDIOS PARA o EQUACIONAMENTO DO PROBLEMA DO LIVRO

    DIDTICO EM FACE DA LEI N 5692/71, 107

    CAPTULO 13

  • ESTRUTURALISMO E EDUCAO BRASILEIRA, 117

    CAPTULO 14EDUCAO BRASILEIRA: PROBLEMAS, 131

    CAPTULO 15ANLISE CRTICA DA ORGANIZAO ESCOLAR BRASILEIRA

    ATRAVS DAS LEIS N""5.540/68 E 5.692/71, 145

    CAPTULO 16FUNES DE PRESERVAO E DE DEFORMAO DO CONGRESSO

    NACIONAL NA LEGISLAO DO ENSINO: UM ESTUDO DE POLTICA

    EDUCACIONAL, 171

    CAPTULO 17EDUCAO BRASILEIRA CONTEMPORNEA:

    OBSTCULOS,IMPASSES E SUPERAO, 175

    CAPTULO 18PAPEL DO DIRETOR DE ESCOLA NUMA SOCIEDADE EM CRISE, 207

    CAPTULO 19A ORIENTAO EDUCACIONAL NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO, 211

    BIBLIOGRAFIA CITADA, 243

    PREFCIO 11 EDIO A primeira edio deste livro foi posta em circulao em 1980. Naquela ocasio redigi um esclarecimento sobre a ordenao dos textos que compem esta obra nos seguintes termos:

    Em primeiro lugar foram reunidos os estudos que tratam da questo educacional em geral, constituindo um conjunto que poderamos chamar de "ensaios introdutrios filosofia da educao".

    Um segundo conjunto de textos rene documentos de trabalho elaborados pelo autor como exigncia das funes que vem desempenhando em organismos educacionais. Referem-se, no geral, a "aspectos organizacionais do trabalho pedaggico na rea de educao". Constitui, de certo modo, exceo a esta regra o estudo denominado "Participao da universidade no desenvolvimento nacional: a universidade e a problemtica da educao e cultura", uma vez que, mais do que a preocupao com aspectos organizacionais, procurou-se, a, levantar uma discusso terica sobre o problema da universidade. Foi includo, entretanto, nesse segundo grupo, j que foi escrito como documento de trabalho apresentado e discutido na XXVI11 Reunio Plenria do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras.

    Por ltimo, so apresentados, em ordem cronolgica, alguns estudos sobre a educao brasileira. O texto denominado "Funes de preservao e de deformao do Congresso Nacional na legislao do ensino" registra, de

    forma resumida, observaes decorrentes de uma pesquisa mais vasta empreendida pelo autor A deciso de public-lo decorreu da considerao de que nele se enunciam, esquematicamente, algumas teses suscetveis de inspirar interessantes pesquisas no campo da poltica educacional brasileira.

  • Esgotada a primeira edio, registrei as seguintes consideraes no prefcio segunda edio:

    Deixando de lado as apreciaes positivas, que constituram a quase totalidade dos comentrios que chegaram ao meu conhecimento, aproveito o pequeno espao deste prefcio para me referir a duas interpretaes, a meu ver equivocadas, de dois leitores: a primeira diz respeito a uma suposta leitura de Gramsci; a segunda, ao problema do mtodo ou da lgica. Ambas chegaram ao meu conhecimento informalmente. Se as tomo em considerao, simplesmente porque elas me oferecem o pretexto para um esclarecimento que eventualmente possa ser de interesse de um nmero maior de leitores.

    No primeiro caso trata-se de uma interpretao que incide sobre o texto introdutrio, que recebeu o mesmo ttulo do livro, tomando-o isoladamente e considerando-o como sendo uma leitura de Gramsci. A esse respeito cumpre esclarecer que de forma alguma se pretendeu, naquele texto, apresentar uma leitura de Gramsci. O objetivo do texto era muito simples e despretensioso. Pretendia to-somente justificar o ttulo dado ao conjunto de ensaios reunidos nesta obra. Se foram feitas diversas citaes de Gramsci, isto ocorreu simplesmente porque a temtica concernente relao entre senso comum e filosofia constante e central no pensamento gramsciano. E, ainda que eu tenha me preocupado com essa problemtica, independentemente da influncia do vigoroso pensador italiano, no senti necessidade de o proclamar, preferindo, ao contrrio, realar a relevncia do tema, pondo em evidencia que tais preocupaes j estavam fortemente presentes num autor hoje considerado clssico.

    Ademais, os leitores familiarizados com os meus trabalhos sabem que no a erudio, isto , a dissecao dos discursos anteriormente produzidos, a sua marca distintiva. No que eu despreze a erudio; ao contrrio, cultivo-a. Subordino-a, porm, ao objetivo de dar conta das questes concretas postas pela prtica histrica. Entendo, pois, que a erudio no o objetivo do discurso filosfico, mas um instrumento que possibilita a esse discurso constituir-se como filosfico. Da a minha resistncia aos chamados estudos monogrficos centrados na obra de determinado pensador. No entanto, no caso especfico de Gramsci, a partir dos estudos sistemticos e relativamente exaustivos que fiz sobre a obra do pensador italiano, penso estar em condio de efetuar uma leitura, talvez original, de sua obra, organizando-a em torno da questo da superao do senso comum em direo elaborao filosfica. Seria, em suma, uma leitura que tomaria como fio condutor o visceral antielitismo que atravessa de ponta a ponta a produo intelectual do autor em referncia. Entretanto, no foi isso o que pretendi fazer no texto em pauta. No se trata, pois, a, de uma leitura de Gramsci.

    Quanto questo do mtodo e da lgica, observo apenas que, ao afirmar: "no se elabora uma concepo sem mtodo; e no se atinge a coerncia sem lgica", eu estava, bvio, me referindo questo da elaborao de uma concepo de mundo adequada aos interesses populares, como j havia deixado claro nas consideraes anteriores. No se tratava, pois, de elaborar, a, a referida concepo e, sim, de indicar a exigncia lgico-metodolgica para essa elaborao. Assim como Marx, no texto denominado "Mtodo da economia poltica", no elaborou o materialismo histrico (a crtica da economia poltica), mas se preocupou em indicar o caminho (o mtodo) para essa elaborao, assim tambm, guardadas as devidas propores, tal foi a minha preocupao no texto que serviu de introduo ao livro. Igualmente uma leitura ingnua concluir que eu, ao mencionar o exemplo do modo como trabalhei uma questo especfica com os alunos em sala de aula, estivesse acreditando que a abordagem dialtica da educao pudesse se esgotar no interior da sala de aula e na relao interindividual. Com aquela ilustrao eu me propunha ao mesmo tempo a utilizar um recurso didtico que facilitasse ao leitor a compreenso da contradio como categoria lgica e, alm disso, evidenciar que, se pretendemos assumir a postura dialtica, devemos assumi-la permanentemente; logo, tambm no interior da sala de aula.

    A rapidez com que se esgotou a primeira edio manteve-se nas subseqentes ) que se evidencia pelo fato de que a ltima edio (a dcima) se encontra esgotada p/j h alguns meses. Essa regularidade evidencia que o interesse pela presente obra Continua vivo, mantendo-se, em conseqncia, a atualidade dos estudos nela includos neste livro, portanto, continua sendo um instrumento til ao ensino das diferentes disciplinas pedaggicas, em geral, e, em especial, das cadeiras de Introduo Educao e Estrutura e Funcionamento do Ensino podendo, tambm, ser includo na programao do primeiro perodo letivo da disciplina Filosofia da Educao.

    Hoje, ao ensejo desta 11 edio, as duas leituras equivocadas s quais me referi no prefacio 2 edio j caram no esquecimento. Em contrapartida, a acolhida dos leitores constitui um estmulo para que eu prossiga na tarefa de esclarecimento de nossa inteligncia a fim de tornar mais eficaz a dura luta que travamos para garantir o direito a uma educao de qualidade populao brasileira em seu conjunto.

    Campinas, fevereiro de 1994. Dermeval Saviani

    INTRODUO

  • Os textos reunidos neste volume foram escritos em diferentes oportunidades, no tendo sido pensados como captulos de um mesmo livro. A maior parte deles foi escrita com finalidade didtica, isto , foram redigidos para servirem de instrumentos s aulas por mim ministradas ou constituem transcries de palestras por mim proferidas. ainda a finalidade didtica a principal razo que me levou a ceder s insistentes sugestes para que esses trabalhos fossem reunidos num livro ficando, assim, disposio dos professores para sua utilizao. Relutei durante mais de dois anos a acatar a idia de tal publicao. Isto porque pensava que o seu uso estava estreitamente vinculado ao autor que os ampliava e lhes dava dimenses muito precisas e concretas na atividade em sala de aula; pensava tambm que, enquanto instrumento de trabalho, o material produzido dependia diretamente de seu autor e no se tinha garantias de que o mesmo material, utilizado por aqueles que no o produziram, poderia gerar os resultados promissores ento obtidos. Isto - bom esclarecer - no por limitaes dos professores que viessem a utiliz-lo, mas por limitaes do prprio material que eu julgava no suficientemente elaborado para ser dado a pblico.

    Entretanto, o fato concreto que tal material j escapou de meu controle, tendo sido amplamente utilizado por ex-alunos e colegas como instrumento de trabalho em sala de aula. Assim, vem sendo reproduzido a cada ano de forma precria atravs de mimegrafos (ou outros meios) para uso particular dos professores. Alguns dos textos foram publicados em revistas que, uma vez esgotadas, provocaram tambm

    1

    o recurso ao mimegrafo. A precariedade dessa reproduo tem levado os professores a me solicitar a publicao desse material, o que fao, finalmente, editando o presente livro.

    J que os diferentes ensaios aqui includos no foram escritos como partes de um mesmo livro, eles guardam certa independncia entre si, apresentando, em conseqncia, algumas inevitveis e compreensveis reiteraes. Tais reiteraes, dada a finalidade didtica da obra, revestem-se de conotao positiva, uma vez que, como afirma Gramsci, "a repetio o meio didtico mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular".(1)

    Apesar da independncia referida no pargrafo anterior, os textos no deixam de formar um conjunto unitrio, uma vez que foram elaborados com um propsito comum: elevar a prtica educativa desenvolvida plos educadores brasileiros do nvel do senso comum ao nvel da conscincia filosfica. Eis porque o presente volume recebe o ttulo de "Educao: do senso comum conscincia filosfica".

    O ttulo supra exige algumas observaes complementares.

    Passar do senso comum conscincia filosfica significa passar de uma concepo fragmentria, incoerente, desarticulada, implcita, degradada, mecnica, passiva e simplista a uma concepo unitria, coerente, articulada, explcita, original, intencional, ativa e cultivada.(2)

    Ora, as notas distintivas do senso comum acima enunciadas so intrnsecas mentalidade popular; entendido o povo como "o conjunto das classes subalternas e instrumentais de toda forma de sociedade at agora existente".(3) Em contrapartida, as caractersticas da conscincia filosfica constituem expresso de hegemonia. Com efeito, a concepo de mundo hegemnica exatamente aquela que, merc de sua expresso universalizada e seu alto grau de elaborao, logrou obter o consenso das diferentes camadas que integram a sociedade, vale dizer, logrou converter-se em senso comum. nesta forma, isto , de modo difuso, que a concepo

    1. GRAMSCI, A. O Materialismo Histrico, p. 20.

    2. O leitor ter percebido que senso comum e conscincia filosfica foram caracterizados por conceitos mutuamente contrapostos, de modo que se podem dispor os seguintes pares antinmicos: fragmentrio/unitrio, incoerente - coerente, desarticulado/articulado, implcito/ explcito, degradado/original, mecnico/intencional, passivo/ativo, simplista/cultivado. (Ver, a respeito, A.M. Cirese, "Conceptions du monde, philosophie spontane, folklore", in Dialectiques, n. 4-5, pp. 83-100.)

    3. GRAMSCI, A. - Letteratura e V/to Nazionale, p. 268.

    2

    dominante (hegemnica) atua sobre a mentalidade popular articulando-a em torno dos interesses dominantes e impedindo ao mesmo tempo a expresso elaborada dos interesses populares, o que concorre para inviabilizar a organizao das camadas subalternas enquanto classe. O senso comum , pois, contraditrio, dado que se constitui, num amlgama integrado por elementos implcitos na prtica transformadora do homem de massa e por elementos superficialmente explcitos caracterizados por conceitos herdados da tradio ou veiculados pela concepo hegemnica e acolhidos sem crtica.(4)

  • As consideraes supra j permitem perceber que as relaes entre senso comum e filosofia assumem a forma de uma relao de hegemonia cuja plena significao radica na estrutura da sociedade em que tal relao se trava. E numa formao social como a nossa, marcada pelo antagonismo de classes, as relaes entre senso comum e filosofia se travam na forma de luta - a luta hegemnica. Luta hegemnica significa precisamente: processo de desarticulao-rearticulao, isto , trata-se de desarticular dos interesses dominantes.aqueles elementos que esto articulados em torno deles, mas no so inerentes ideologia dominante e rearticul-los em torno dos interesses populares, dando-lhes a consistncia, a coeso e a coerncia de uma concepo de mundo elaborada, vale dizer, de uma filosofia.

    Considerando-se que "toda relao de hegemonia necessariamente uma relao pedaggica",(5) cabe entender a educao como um instrumento de luta. Luta para estabelecer uma nova relao hegemnica que permita constituir um novo bloco histrico sob a direo da classe fundamental dominada da sociedade capitalista o proletariado. Mas o proletariado no pode se erigir em fora hegemnica sem a elevao do nvel cultural das massas. Destaca-se aqui a importncia fundamental da educao. A forma de insero da educao na luta hegemnica configura dois momentos simultneos e organicamente articulados entre si: um momento negativo que consiste na crtica da concepo dominante (a ideologia burguesa); e um momento positivo que significa: trabalhar o senso comum de modo a extrair o seu ncleo vlido (o bom senso) e dar-lhe expresso elaborada com vistas formulao de uma concepo de mundo adequada aos interesses populares.

    Como realizar essa tarefa? Ora, no se elabora uma concepo sem mtodo; e no se atinge a coerncia sem lgica. Mais do que isso, se se trata de elaborar uma

    4. Cf. GRAMSCI, A. - II Materialismo Storico, p. 13,

    5. Ibidem, p. 3 l.

    3

    concepo que seja suscetvel de se tornar hegemnica, isto , que seja capaz de superar a concepo atualmente dominante, necessrio dispor de instrumentos lgico-metodolgicos cuja fora seja superior queles que garantem a fora e coerncia da concepo dominante. Aqui so fundamentais as indicaes contidas no texto de Marx denominado "Mtodo da Economia Poltica",(6) o qual coloca de modo correto a distino entre o concreto, o abstrato e o emprico. Com efeito, a lgica dialtica no outra coisa seno o processo de construo do concreto de pensamento (ela uma lgica concreta) ao passo que a lgica formal o processo de construo da forma de pensamento (ela , assim, uma lgica abstrata). Por a, pode-se compreender o que significa dizer que a lgica dialtica supera por incluso/ incorporao a lgica formal (incorporao, isto quer dizer que a lgica formal j no tal e sim parte integrante da lgica dialtica). Com efeito, o acesso ao concreto no se d sem a mediao do abstrato (mediao da anlise como escrevi em outro lugar(7) ou o "dtour" de que fala Kosik(8). Assim, aquilo que chamado de lgica formal ganha um significado novo e deixa de ser a lgica para se converter num momento da lgica dialtica. A construo do pensamento se daria, pois, da seguinte forma: parte-se do emprico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao concreto. Diferentemente, pois, da crena que caracteriza o empirismo, o positivismo, etc. (que confundem o concreto com o emprico) o concreto no o ponto de partida, mas o ponto de chegada do conhecimento. E no entanto, o concreto tambm o ponto de partida. Como entender isso? Poder-se-ia dizer que o concreto-ponto de partida o concreto real e o concreto-ponto de chegada o concreto pensado, isto , a apropriao pelo pensamento do real-concreto. Mais precisamente: o pensamento parte do emprico, mas este tem como suporte o real concreto.(9) Assim, o verdadeiro ponto de partida, bem como o verdadeiro ponto de chegada o concreto real. Desse modo, o emprico e o abstrato so momentos do processo de conhecimento, isto

    6. Cf. MARX, K. - Contribuio para a Crtica da Economia Poltica, pp. 228-237.

    7. Cf. SAVIANI, D. - Educao Brasileira: Estrutura e Sistema, pp. 28-29.

    8. Cf. KOSIK. K. - Dialtica do Concreto, pp. 9 e 21.

    9. O emprico, ao mesmo tempo que revela, oculta o concreto. Na linguagem de Kosik poder-se-ia substituir a dupla emprico-concreto pela dupla fenmeno-essncia. Deve-se notar, porm, que esta ltima dupla guarda ressonncias metafsicas e idealistas. Marx raramente a usa nas obras de maturidade. Kosik a recupera e articula esses conceitos numa "dialtica da totalidade concreta". Tal recuperao se deu, provavelmente, por influncia de Husserl e Heidegger cujos cursos Kosik teria assistido em Praga. Talvez seja por esta recuperao que certos crticos tendem a classificar Kosik como idealista.

    4

    , do processo de apropriao do concreto no pensamento. Por outro lado, o processo de conhecimento em seu conjunto um momento do processo concreto (o real-concreto). Processo, porque o concreto no o dado (o emprico) mas uma totalidade articulada, construda e em construo. O concreto , pois, histrico; ele se d e se revela na e pela prxis.

  • Portanto, a lgica dialtica no tem por objeto as leis que governam o pensamento enquanto pensamento. Seu objeto a expresso, no pensamento, das leis que governam o real. A lgica dialtica se caracteriza, pois, pela construo de categorias saturadas de concreto. Pode, pois, ser denominada a lgica dos contedos, por oposio lgica formal que , como o nome indica, a lgica das formas.

    A orientao metodolgica acima indicada pode ser ilustrada atravs do exemplo de uma questo lanada por mim aos alunos em sala de aula. A questo foi a seguinte: "o educador agente (causa) ou produto (efeito) da educao?". A partir das respostas dos alunos fui desenvolvendo com eles um raciocnio atravs do qual explorei as possibilidades da lgica formal, mediante o princpio de no-contradio, conduzindo-a at seu limiar, quando o estourar de seus quadros obrigou a recorrero princpio da contradio. Ora, o que fiz no foi outra coisa seno partir do emprico, analisando diversas situaes (a hetero-educao, a auto-educao, a educao da infncia e da juventude, a educao de adultos, a educao permanente, a educao dos educandos, a educao dos educadores, a educao dos educandos-educadores e dos educa-dores-educandos, etc.) atravs de sucessivas abstraes, isto , guiando-me pelo princpio de no-contradio. Assim, examinei, primeiro, a afirmao:"o educador no pode ser agente e produto da educao"; depois: "o educador no pode ser agente e produto da educao ao mesmo tempo", isto , ele pode ser agente e produto, no, porm, ao mesmo tempo; em seguida: "o educador no pode ser agente e produto da educao ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto", isto , ele pode ser agente e produto da educao ao mesmo tempo, no, porm, sob o mesmo aspecto; por ltimo, examinei a afirmao:"o educador agente e produto da educao ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto". A aceitao dessa afirmao implica o rompimento do princpio de no-contradio, vale dizer, a ultrapassagem dos quadros da lgica formal. Mas o que isto quer dizer seno que, atravs das mediaes do emprico e do abstrato, ns nos apropriamos, no plano do pensamento, do real-concreto, isto , o processo educativo enquanto sntese de mltiplas determinaes, processo este que constitui o suporte de todo o raciocnio, raciocnio esse que, por sua vez, se constituiu num dos momentos do prprio processo concreto da educao?

    5

    Percebe-se com relativa facilidade que a passagem do emprico ao concreto corresponde, em termos de concepo de mundo, passagem do senso comum conscincia filosfica. Com efeito, o exame da questo "o educador agente ou produto da educao?" foi feito a partir das respostas verbalizadas plos alunos o que tornou possvel efetuar simultaneamente a crtica da concepo dominante e elaborar o ncleo vlido do senso comum. A crtica da concepo dominante foi feita atravs da sua expresso em diferentes teorias pedaggicas (diretivismo, no-diretivismo, educao permanente, etc.) cuja presena foi detectada nas respostas dos alunos, as quais foram referidas sua matriz lgica fundamental: o princpio de no-contradio. A elaborao do bom-senso foi feita fazendo emergir das respostas dos alunos a educao como fenmeno concreto, vale dizer, a prtica educativa como totalidade orgnica que sintetiza as mltiplas determinaes caractersticas da sociedade que historicamente a produz, e cuja elaborao no plano do pensamento se torna possvel por referncia a um princpio superior capaz de articular forma e contedo: o princpio dialtico da contradio.

    De tudo o que foi dito conclui-se que a passagem do senso comum conscincia filosfica condio necessria para situar a educao numa perspectiva revolucionria. Com efeito, esta a nica maneira de convert-la em instrumento que possibilite aos membros das camadas populares a passagem da condio de "classe em si" para a condio de "classe para si". Ora, sem a formao da conscincia de classe no existe organizao e sem organizao no possvel a transformao revolucionria da sociedade.

    Cabe frisar, por fim, que o reconhecimento da importncia da educao traduz uma posio incompatvel com a postura elitista. Com efeito, preocupar-se com a educao significa preocupar-se com a elevao do nvel cultural das massas; significa, em consequncia, admitir que a defesa de privilgios (essncia mesma da postura elitista) uma atitude insustentvel. Isto porque a educao uma atividade que supe a heterogeneidade (diferena) no ponto de partida e a homogeneidade (igualdade) no ponto de chegada. Diante disso, a forma pela qual a classe dominante, atravs de suas elites, impede a elevao do nvel de conscincia das massas manifestando uma despreocupao, um descaso e at mesmo um desprezo pela educao. Por isso, Gramsci pde escrever:

    "Ns no podemos afirmarem s conscincia que a burguesia faa uso da escola no sentido de sua dominao de classe; se ela assim o fizesse isso significaria que a classe burguesa tem um programa escolar a ser cumprido com energia e perse-

    6

    verana; a escola seria uma escola viva. Isso no acontece: a burguesia, classe que domina o Estado, desinteressa-se da escola, deixa que os burocratas faam dela o que quiserem, deixa que os ministros da Educao sejam escolhidos ao acaso de interesses polticos, de intrigas, de "conchavos" de partidos e arranjos de gabinetes..."(10)

    Compreende-se ento que as elites que controlam, seja o aparelho governamental, seja o aparelho escolar, em especial as universidades, releguem a educao a uma questo que diz respeito meramente ao senso comum

  • (eufemisticamente chamado de bom-senso). Comportam-se como o jesuitismo cuja preocupao, segundo a crtica gramsciana, era manter as massas ao nvel do sincretismo que caracteriza o senso comum. Ao jesuitismo, Gramsci contrape o marxismo, ao afirmar:

    "A filosofia da prxis no busca manter os "simplrios" na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrrio, conduzi-los a uma concepo de vida superior. Se ela afirma a exigncia do contato entre os intelectuais e os simplrios no para limitar a atividade cientfica e para manter uma unidade ao nvel inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral, que torne politicamente possvel um progresso intelectual de massa e no apenas de pequenos grupos intelectuais.

    este o momento para se fazer ao mesmo tempo um alerta e uma denncia.

    Um alerta queles intelectuais que sinceramente buscam articular o melhor de seus esforos com a defesa dos interesses populares, no sentido de que meditem sobre a seguinte questo: at que ponto, o fato de no darem a devida importncia para a educao no neutraliza boa parte de seus esforos, levando-os mesmo a assumirem posies que, incoerentemente com os objetivos que perseguem, redundam direta ou indiretamente em mecanismos de discriminao e defesa de privilgios?

    Uma denncia daqueles intelectuais que, a despeito de assumirem posies progressistas nas ctedras universitrias, por devotarem manifesto ou velado desprezo educao e por lhe negarem o carter de objeto digno de ser tratado com a seriedade acometida s cincias e filosofia, participam, reforam e legitimam a grande mistificao que vem caracterizando o trato das questes educacionais neste pas. Nessa postura elitista, ignoram eles que sua prpria prtica, isto , a prtica que

    10. GRAMSCI, A. - LOrdine Nuovo: 1919-1920. pp. 255-256. l I. GRAMSCI, A. - Concepo Dialtica da Histria, p. 20.

    7

    desenvolvem na universidade no outra seno a prtica educativa, enredando-se, com isso, na contradio de desconhecerem sua prpria prtica ao mesmo tempo que se arvoram em intrpretes autorizados da prtica das populaes que eles prprios discriminam.

    A uns e a outros cabe lembrar a propsito da educao aquilo que Gramsci afirmou a respeito do folclore: A educao "no deve ser concebida como algo bizarro, mas como algo muito srio e que deve ser levado a srio. Somente assim o ensino ser mais eficiente e determinar realmente o nascimento de uma nova cultura entre as grandes massas populares, isto , desaparecer a separao entre cultura moderna e cultura popular ou folclore".(12)

    12. GRAMSCI, A. - Literatura e Vida Nacional, pp. 186-187. N.B.: No texto de Gramsci l-se: "O folclore no deve ser concebido..."

    8

    CAPTULO UM

    A FILOSOFIA NA FORMAO DO EDUCADOR

    A Filosofia da Educao entendida como reflexo sobre os problemas que surgem nas atividades educacionais, seu significado e funo.

    O objetivo deste texto(1) explicitar o sentido e a tarefa da filosofia na educao. Em que a filosofia poder nos ajudar a entender o fenmeno da educao? Ou, melhor dizendo: se pretendemos ser educadores, de que maneira e em que medida a filosofia poder contribuir para que alcancemos o nosso objetivo? Na verdade, a expresso "filosofia da educao" conhecida de todos. Qual , entretanto, o seu significado? Aceita-se correntemente como inquestionvel a existncia de uma dimenso filosfica na educao. Diz-se que toda educao deve ter uma orientao filosfica. Admite-se tambm que a filosofia desempenha papel imprescindvel na formao do educador. Tanto assim que a Filosofia da Educao figura como disciplina obrigatria do currculo mnimo dos cursos de Pedagogia. Mas em que se

  • baseia essa importncia concedida Filosofia? Teria ela bases reais ou seria mero fruto da tradio? Ser que o educador precisa realmente da filosofia? Que que determina essa necessidade? Em outros termos: que que leva o educador a filosofar? Ao colocar essa questo, ns estamos nos interrogando sobre o significado e a funo da Filosofia em si mesma. Poderamos, pois, extrapolar o mbito do educador e perguntar genericamente: que que leva o homem a filosofar? Com isto estamos em busca do ponto de partida da filosofia, ou seja, procuramos determinar aquilo que provoca o surgimento dessa atitu-

    1. Escrito em 1973 como texto didtico para os alunos da disciplina Filosofia da Educao l, do curso de Pedagogia - PUC/SP Publicado na Revista D/doto, n l, janeiro de 1975.

    9

    de no habitual, no espontnea existncia humana. Com efeito, todos e cada um de ns nos descobrimos existindo no mundo (existncia que agir, sentir, pensar). Tal existncia transcorre normalmente, espontaneamente, at que algo interrompe o seu curso, interfere no processo alterando a sua seqncia natural. A, ento, o homem levado, obrigado mesmo, a se deter e examinar, procurar descobrir o que esse algo. E a partir desse momento que ele comea a filosofar. O ponto de partida da filosofia , pois, esse algo a que damos o nome de problema. Eis, pois, o objeto da filosofia, aquilo de que trata a filosofia, aquilo que leva o homem a filosofar: so os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existncia.

    1. NOO DE PROBLEMA Mas que que se entende por problema? To habituados estamos ao uso dessa palavra que receio j tenhamos perdido de vista o seu significado.

    1.1. Os Usos Correntes da Palavra "Problema": Um dos usos mais frequentes da palavra problema , por exemplo, aquele que a considera como sinnimo de questo. Neste sentido, qualquer pergunta, qualquer indagao considerada problema. Esta identificao resulta, porm, insuficiente para revelar o verdadeiro carter, isto , a especificidade do problema. Com efeito, se eu pergunto a um dos leitores: "quantos anos voc tem?", parece claro que eu estou lhe propondo uma questo; e parece igualmente claro que isto no traz qualquer conotao problemtica. Na verdade, a resposta ser simples e imediata. No se conclua da, todavia, que a especificidade do problema consiste no elevado grau de complexidade que uma questo comporta. Neste caso estariam excludos da noo de problema as questes simples, reservando-se aquele nome apenas para as questes complexas. No se trata disso. Por mais que elevemos o grau de complexidade, mesmo que alcemos a complexidade de uma questo a um grau infinito, no isto que ir caracteriz-la como problema. Se eu complico a pergunta feita ao meu suposto leitor e lhe solicito determinar quantos meses, ou mesmo, quantos segundos perfazem a sua existncia, ainda assim no estamos diante de algo problemtico. A resposta no ser simples e imediata mas nem por isso o referido leitor se perturbar. Provavelmente, retrucar com segurana:" d-me tempo para fazer os clculos e

    10

    lhe apresentarei a resposta"; ou ento: "uma questo como essa totalmente destituda de interesse; no vale a pena perder tempo com ela". Note-se que o uso da palavra problema para designar os exerccios escolares (de modo especial os de matemtica) se enquadra nesta primeira acepo. So, com efeito, questes. E mais, questes cujas respostas so de antemo conhecidas. Isto evidente em relao ao professor, mas no deixa de ocorrer tambm no que diz respeito ao aluno. Na verdade, o aluno sabe que o professor sabe a resposta; e sabe tambm que, se ele aplicar os procedimentos transmitidos na seqncia das aulas, a resposta ser obtida com certeza. Se algum problema ele tem, no se trata a do desconhecimento das respostas s questes propostas mas, eventualmente, da necessidade de saber quais as possveis conseqncias que poder acarretar o fato de no aplicar os procedimentos transmitidos nas aulas. Isto, porm, ser esclarecido mais adiante. O que gostaria de deixar claro no momento que uma questo, em si, no suficiente para caracterizar o significado da palavra problema. Isto porque uma questo pode comportar (e o comporta com freqncia, segundo se explicou acima) resposta j conhecida. E quando a resposta desconhecida? Estaramos a diante de um problema? Aqui, porm, ns j estamos abordando uma segunda forma do uso comum e corrente da palavra. Trata-se do problema como no-saber.

    De acordo com esta acepo, problema significa tudo aquilo que se desconhece. Ou, como dizem os dicionrios, "coisa inexplicvel, incompreensvel" (cf. Caldas Aulete, Dicionrio Contemporneo da Lngua Portuguesa, vol. IV verbete problema, Ed. Delta). Levada ao extremo, tal interpretao acaba por identificar o termo problema com mistrio, enigma (o que tambm pode ser comprovado numa consulta aos dicionrios). No entanto, ainda aqui, o fato de desconhecermos algo, a circunstncia de no sabermos a resposta a determinada questo, no suficiente para

  • caracterizar o problema. Com efeito, se retomo o dilogo com o meu suposto leitor e lhe pergunto agora: "quais os nomes de cada uma das ilhas que compem o arquiplago das Filipinas?" (cerca de 7.100 ilhas). Ou: "Quais os nomes de cada uma das Ilhas Virgens (cerca de 53), territrio do Mar das Antilhas incorporado aos EE.UU.?" Com certeza, o referido leitor no saber responder a estas perguntas e, mesmo, possvel que sequer soubesse da existncia das tais ilhas Virgens. evidente, Contudo, que essa situao no se configura como problemtica. E quando o no-saber levado a um grau extremo, implicando a impossibilidade absoluta do saber, configura-se, como j se disse, o mistrio. Mistrio, porm, no sinnimo de problema. , ao contrrio e frequentemente, a soluo do problema, e, qui, de

    11

    todos os problemas. D prova disso a experincia religiosa. A atitude de f implica a aceitao do mistrio. O homem de f vive da confiana no desconhecido ou, melhor dizendo, no incognoscvel. Este a fonte da qual brota a soluo para todos os problemas. Com isto no quero dizer que a atitude de f no possa revestir-se, em determinadas circunstncias, de certo carter problemtico. Apenas quero frisar que o problema no est na aceitao do mistrio, na confiana no incognoscvel. Esta uma necessidade inerente ao ato de f. O problema da atitude de f estar no fato de que essa necessidade no possa ser satisfeita, ou seja, na possibilidade de que a confiana no incognoscvel venha a ser abalada.

    Em suma, as coisas que ns ignoramos so muitas e ns sabemos disso. Todavia, este fato, como tambm a conscincia deste fato, ou mesmo, a aceitao da existncia de fenmenos que ultrapassam irredutivelmente e de modo absoluto a nossa capacidade de conhecimento, nada disso suficiente para caracterizar o significado essencial que a palavra problema encerra.

    O uso comum do termo, cujo constitutivo fundamental estamos buscando, registra outros vocbulos tais como obstculo, dificuldade, dvida, etc. No preciso, porm, muita argcia para se perceber a insuficincia dos mesmos em face do objetivo de nossa busca. Existem muitos obstculos que no constituem problema algum. Quanto ao vocbulo "dificuldade", interessante notar as seguintes definies de "problema", encontradas nos dicionrios: "coisa de difcil explicao" (cf. Caldas Aulete, citado) e "coisa difcil de explicar" (cf. Francisco Fernandes, D/c. Brs. Contemporneo, p. 867). Julgamos suprfluo comentar semelhantes definies, uma vez que as consideraes anteriores j evidenciaram suficientemente que no o grau de dificuldade (mesmo que seja elevado ao infinito) que permite considerar algo como problemtico. Por fim, a dvida tem, a partir de sua etimologia, o significado de uma dupla possibilidade. Implica, pois, a existncia de duas hipteses em princpio igualmente vlidas, embora mutuamente excludentes. Ora, em determinadas circunstncias perfeitamente possvel manter as duas hipteses sem que isto represente problema algum. O ceticismo um exemplo tpico. vida cotidiana assim como a histria da cincia e da filosofia nos oferecem inmeras ilustraes da "dvida no problemtica". Tomemos apenas um exemplo da experincia cotidiana: imaginemos dois garotos caminhando em direo escola; a cem metros desta, um deles lana ao outro o seguinte desafio:" duvido que voc seja capaz de chegar antes de mim". Nesta frase, ambas as hipteses, ou seja, "voc capaz" e "voc no capaz" so igualmente admissveis, embora mutuamente excludentes. Ao dizer "duvido", o

    12

    desafiante estava indicando: "no nego, em princpio, a sua capacidade; mas, at que voc me demonstre o contrrio, no posso tampouco admiti-la". O desafiado poder aceitar o desafio e uma das hipteses ser comprovada, dissipando-se conseqentemente a dvida. Poder, contudo, no aceitar e a dvida persistir sem que isto implique problema algum.

    1.2. Necessidade de se Recuperar a Problematicidade do "Problema" Notamos, pois, que o uso comum e corrente da palavra problema acaba por nos conduzir seguinte concluso, aparentemente incongruente: "o problema no problemtico". Isto permitiu a Julin Maras(2) afirmar:

    "Os ltimos sculos da histria europia abusaram levianamente da denominao "problema"; qualificando assim toda pergunta, o homem moderno, e principalmente a partir do ltimo sculo, habituou-se a viver tranquilamente entre problemas, distrado do dramatismo de uma situao quando esta se torna problemtica, isto , quando no se pode estar nela e por isso exige uma soluo."

    Se o problema deixou de ser problemtico, cumpre, ento, recuperar a problematicidade do problema. Estamos aqui diante de uma situao que ilustra com propriedade o processo global no qual se desenrola a existncia humana. Examinamos alguns fenmenos, ou seja, algumas formas de manifestao do problema. No entanto, o fenmeno, ao mesmo tempo que revela (manifesta) a essncia, a esconde. Trata-se daquilo a que Karel Kosik(3) denominou "o mundo da pseudo-concreticidade". Importa destruir esta "pseudo-concreticidade" a fim de captar a verdadeira concreti-cidade. Esta a tarefe da cincia e da filosofia. Ora, captar a verdadeira concreticidade no outra coisa seno captar a essncia. No se trata, porm, de algo subsistente em si e por si que esteja oculto por detrs da cortina dos fenmenos. A essncia um produto do modo pelo qual o homem produz sua prpria existncia. Quando o homem considera as manifestaes de sua prpria existncia como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu, ele

  • est vivendo no mundo da "pseudo-concreticidade". Ele toma como essncia aquilo que apenas fenmeno, isto , aquilo que apenas manifestao da essncia. No caso que estamos

    2. MARAS, J. - Introduo Filosofia, p. 22.

    3. KOSIK, K. - Dialtica do Concreto, especialmente pp. 9-20.

    13

    examinando, ele toma por problema aquilo que apenas manifestao do problema.

    Aps essas consideraes, cabe perguntar agora: qual , ento, a essncia do problema? No processo de produo de sua prpria existncia o homem se defronta com situaes ineludveis, isto : enfrenta necessidades de cuja satisfao depende a continuidade mesma da existncia (no confundir existncia, aqui empregada, com subsistncia no estrito sentido econmico do termo). Ora, este conceito de necessidade fundamental para se entender o significado essencial da palavra problema. Trata-se, pois, de algo muito simples, embora frequentemente ignorado. A essncia do problema a necessidade. Com isto possvel agora destruir a "pseudo-concreticidade" e captar a verdadeira "concreticidade". Com isto, o fenmeno pode revelar a essncia e no apenas ocult-la. Com isto ns podemos, enfim, recuperar os usos correntes do termo "problema", superando as suas insuficincias ao referi-los nota essencial que lhes impregna de problematicidade: a necessidade. Assim, uma questo, em si, no caracteriza o problema, nem mesmo aquela cuja resposta desconhecida; mas uma questo cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer; eis a um problema. Algo que eu no sei no problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, ento, diante de um problema. Da mesma forma, um obstculo que necessrio transpor, uma dificuldade que precisa ser superada, uma dvida que no pode deixar de ser dissipada so situaes que se configuram como verdadeiramente problemticas.

    A esta altura, importante evitar uma possvel confuso. Se consignamos como nota definitria fundamental do conceito de problema a necessidade, no se creia com isso que estamos subjetivizando o significado do problema. Tal confuso possvel uma vez que o termmetro imediato da noo de necessidade a experincia individual, o que pode fazer oscilar enormemente o conceito de problema em funo da diversidade de indivduos e da multiplicidade de circunstncias pelas quais transita diariamente cada indivduo. Deve-se notar, contudo, que o problema, assim como qualquer outro aspecto da existncia humana, apresenta um lado subjetivo e um lado objetivo, intimamente conexionados numa unidade dialtica. Com efeito, o homem constri a sua existncia, mas o faz a partir de circunstncias dadas, objetivamente determinadas. Alm disso, , ele prprio, um ser objetivo sem o que no seria real. A verdadeira compreenso do conceito de problema supe, como j foi dito, a necessidade. Esta s pode existir se ascender ao plano consciente, ou seja, se for sentida pelo homem como tal (aspecto subjetivo); h, porm, circunstncias concretas que objetivizam a necessidade sentida, tornando possvel, de um lado, avaliar o seu carter

    14

    real ou suposto (fictcio) e, de outro, prover os meios de satisfaz-la. Diramos, pois, que o conceito de problema implica tanto a. conscientizao de uma situao de necessidade (aspecto subjetivo) como uma situao conscientizadora da necessidade (aspecto objetivo).

    Essas observaes foram necessrias a fim de tornar compreensvel o uso de expresses como "pseudo-concreticidade" e, no caso especfico, "pseudo-problema". Na verdade, se problema aquela necessidade que cada indivduo sente, no teria sentido falar-se em "pseudo-problema". O problema existiria toda vez que cada indivduo o sentisse como tal, no importando as circunstncias de manifestao do fenmeno. Sabemos, porm, que uma reflexo sobre as condies objetivas em que os homens produzem a prpria existncia nos permite detectara ocorrncia daquilo que est sendo denominado "pseudo-problema". A estrutura escolar (em geral por reflexo da estrutura . social) frtil em exemplos dessa natureza. Muitas das questes que integram os currculos escolares so destitudas de contedo problemtico, podendo-se aplicar a elas aquilo que dissemos a propsito dos exerccios escolares: "se algum problema o aluno tem, no se trata a do desconhecimento das respostas s questes propostas mas, eventualmente, da necessidade de saber quais as possveis conseqncias que lhe poder acarretar o fato de no aplicar os procedimentos transmitidos nas aulas". Toda uma srie de mecanismos artificiais desencadeada como resposta ao carter artificioso das questes propostas. O referido carter artificioso configura, evidentemente, o que denominamos "pseudo-problema". Um raciocnio extremado tornar bvio o que acabamos de dizer: suponhamos que as 7.100 ilhas do arquiplago das Filipinas tenham, cada uma, um nome determinado. Suponhamos, ainda, que um professor de Geografia exija de seus alunos o conhecimento de todos esses nomes. Os alunos estaro, ento, diante de um problema: como conseguir a aprovao em face dessa exigncia? Uma vez que eles no necessitam saber os nomes das ilhas (isso no problema), mas precisam ser aprovados, partiro em busca dos artifcios ("pseudo-solues") que lhes garantam a aprovao. Est aberto o caminho para a fraude, para a impostura. Com este fenmeno esto relacionados os ditos j generalizados, como: "os alunos aprendem apesar dos professores", ou "a nica vez que a minha educao foi interrompida foi quando estive na escola" (Bernard Shaw).(4)

  • 4. Cf. POSTMAN, N. & WEINGARTNER, C. - Contestao; Nora Frmula de Ensino, p. 77. Recomendamos a leitura de todo o cap. IV - Em busca da relevncia, pp. 65-87, onde so encontrados diversos exemplos de "pseudo-problemas".

    15

    O "pseudo-problema", como j se disse, possvel em virtude de que os fenmenos no apenas revelam a essncia, mas tambm a ocultam. A conscincia dessa possibilidade torna imprescindvel um exame detido das condies objetivas em que se desenvolve a nossa atividade educativa.

    Em suma: problema, apesar do desgaste determinado pelo uso excessivo do termo, possui um sentido profundamente vital e altamente dramtico para a existncia humana, pois indica uma situao de impasse. Trata-se de uma necessidade que se impe objetivamente e assumida subjetivamente. O afrontamento, pelo homem, dos problemas que a realidade apresenta, eis a, o que a filosofia. Isto significa, ento, que a filosofia no se caracteriza por um contedo especfico, mas ela , fundamentalmente, uma atitude; uma atitude que o homem toma perante a realidade. Ao desafio da realidade, representado pelo problema, o homem responde com a reflexo.

    2. NOO DE REFLEXO E que significa reflexo? A palavra nos vem do verbo latino Yeflectere" que significa "voltar atrs". , pois, um re-pensar, ou seja, um pensamento em segundo grau. Poderamos, pois, dizer: se toda reflexo pensamento, nem todo pensamento reflexo. Esta um pensamento consciente de si mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o grau de adequao que mantm com os dados objetivos, de medir-se com o real. Pode aplicar-se s impresses e opinies, aos conhecimentos cientficos e tcnicos, interrogando-se sobre o seu significado. Refletir o ato de retomar, reconsiderar os dados disponveis, revisar, vasculhar numa busca constante de significado. examinar detidamente, prestar ateno, analisar com cuidado. E isto o filosofar.

    At aqui a atitude filosfica parece bastante simples, pois uma vez que ela uma reflexo sobre os problemas e uma vez que todos e cada homem tm problemas inevitavelmente, segue-se que cada homem naturalmente levado a refletir, portanto, a filosofar. Aqui, porm, a coisa comea a se complicar.

    3. AS EXIGNCIAS DA REFLEXO FILOSFICA Com efeito, se a filosofia realmente uma reflexo sobre os problemas que a realidade apresenta, entretanto ela no qualquer tipo de reflexo. Para que uma reflexo possa ser adjetivada de filosfica, preciso que se satisfaa uma srie de exigncias que vou resumir em apenas trs requisitos: a radicalidade, o rigor e a

    16

    globalidade. Quero dizer, em suma, que a reflexo filosfica, para ser tal, deve ser radical, rigorosa e de conjunto.

    Radical: Em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais, entendida a palavra radical no seu sentido mais prprio e imediato. Quer dizer, preciso que se v at s razes da questo, at seus fundamentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma reflexo em profundidade.

    Rigorosa: Em segundo lugar e como que para garantir a primeira exigncia, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo mtodos determinados, colocando-se em questo as concluses da sabedoria popular e as generalizaes apressadas que a cincia pode ensejar.

    De conjunto: Em terceiro lugar, o problema no pode ser examinado de modo pardal, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o aspecto em questo com os demais aspectos do contexto em que est inserido. neste ponto que a filosofia se distingue da dncia de um modo mais marcante. Com efeito, ao contrrio da cincia, a filosofia no tem objeto determinado; ela dirige-se a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemtico; seu campo de ao o problema, esteja onde estiver. Melhor dizendo, seu campo de ao o problema enquanto no se sabe ainda onde ele est; por isso se diz que a filosofia busca. E nesse sentido tambm que se pode dizer que a filosofia abre caminho para a cincia; atravs da reflexo, ela localiza o problema tornando possvel a sua delimitao na rea de tal ou qual cincia que pode ento analis-lo e, qui, solucion-lo. Alm disso, enquanto a cincia isola o seu aspecto do contexto e o analisa separadamente, a filosofia, embora dirigindo-se s vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em funo do conjunto.

    A exposio sumria e isolada de cada um dos itens acima descritos no nos deve iludir. No se trata de categorias auto-suficientes que se justapem numa somatria suscetvel de caracterizar, pelo efeito mgico de sua juno, a reflexo filosfica. A profundidade (radicalidade) essencial atitude filosfica do mesmo modo que a viso de conjunto. Ambas se relacionam dialeticamente por virtude da ntima conexo que mantm com o mesmo movimento metodolgico, cujo rigor (criticidade) garante ao mesmo tempo a radicalidade, a universalidade e a unidade da

  • 17

    reflexo filosfica.(5) Deste modo, a concepo amplamente difundida segundo a qual o aprofundamento determina um afastamento da perspectiva de conjunto, e, vice-versa: a ampliao do campo de abrangncia acarreta uma inevitvel superficializao, uma iluso de ptica decorrente do pensar formal, o nosso modo comum de pensar que herdamos da tradio ocidental. A inconsistncia dessa concepo vem sendo fartamente ilustrada plos avanos da cincia contempornea, cuja penetrao no mago do processo objetivo faz estourar os quadros do pensamento tradicional. a isto que se convencionou chamara crise das cincias (em especial da Fsica e da Matemtica).6 No se trata, porm, de uma crise das cincias (em nenhuma poca da Histria experimentaram progresso to intenso), mas de uma crise da Lgica Formal.

    Com efeito, o aprofundamento na compreenso dos fenmenos se liga a uma concepo geral da realidade, exigindo uma reinterpretao global do modo de pensar essa realidade. Ento, a lgica formal, em que os termos contraditrios mutuamente se excluem (princpio de no-contradio), inevitavelmente entra em crise, postulando a sua substituio pela lgica dialtica, em que os termos contraditrios mutuamente se incluem (princpio de contradio, ou lei da unidade dos contrrios). Por isso, a lgica formal acaba por enredar a atitude filosfica numa gama de contradies frequentemente dissimuladas atravs de uma postura idealista, seja ela crtica (que se reconhece como tal) ou ingnua (que se autodenomina realista). A viso dialtica, ao contrrio, nos arma de um instrumento, ou seja, de um mtodo rigoroso (crtico) capaz de nos propiciar a compreenso adequada da radicalidade e da globalidade na unidade da reflexo filosfica.

    Afirmamos antes que o problema apresenta um lado objetivo e um lado subjetivo, caracterizando-se este pela tomada de conscincia da necessidade. As consideraes supra deixaram claro que a reflexo provocada pelo problema e, ao mesmo tempo, dialeticamente, constitui-se numa resposta ao problema. Ora, assim sendo, a reflexo se caracteriza por um aprofundamento da conscincia da situao problemtica, acarretando (em especial no caso da reflexo filosfica, por virtude das exigncias que lhe so inerentes) um salto qualitativo que leva superao

    5. Mesmo pensadores no afeioados ao modo de pensar dialtico admitem implcita ou explicitamente o que acabamos de dizer. Cf., por ex., COTTIER, in Revista Nova et Veteras,: "deux traits sont caractristiques du philosophe: l'universalit de son champ de vision et Ia recherche de raisons profondes".

    6. Cf. a respeito, PINTO, A. V - Cincia e Existncia, especialmente o cap. IX.

    18

    do problema no seu nvel originrio. Esta dialtica reflexo-problema necessrio ser compreendida para que se evite privilegiar, indevidamente, seja a reflexo (o que levaria a um subjetivismo, acreditando-se que o homem tenha um poder quase absoluto sobre os problemas, podendo manipul-los a seu bel-prazer), seja o problema (o que implicaria reific-lo desligando-o de sua estrita vinculao com a existncia humana, sem a qual a essncia do problema no pode ser apreendida, como j foi explicado).

    Por fim, necessria uma observao sobre a expresso bastante difundida, "problema filosfico". Cabe perguntar: "existem problemas que no so filosficos?" Na verdade, um problema, em si, no filosfico, nem cientfico, artstico ou religioso. A atitude que o homem toma perante os problemas que filosfica, cientfica, artstica ou religiosa ou de mero bom-senso. A expresso que estamos analisando resultante, pois, do uso corrente da palavra problema (j abordado) que a d como sinnimo de questo, tema, assunto. Aqueles assuntos, que so objeto de estudo dos cientistas, por exemplo, so denominados "problemas cientficos". Da as derivaes "problemas sociolgicos", "problemas psicolgicos", "problemas qumicos", etc. Mas como aceitar essa interpretao no caso da filosofia que, como foi dito antes, no tem objeto determinado? Como aceit-la, se qualquer assunto pode ser objeto de reflexo filosfica? O uso comum e corrente tem se pautado, ento, pelo seguinte paralelismo: assim como "problemas cientficos" so aquelas questes de que se ocupam os cientistas, "problemas filosficos" no so outra coisa seno aquelas questes de que se tm ocupado os filsofos. No se deve esquecer, porm, que no porque os filsofos se ocuparam com tais assuntos que eles so problemas; mas, ao contrrio: porque eles so (ou foram) problemas que os filsofos se ocuparam e se preocuparam com eles. Resta, ento, a seguinte alternativa: a expresso "problemas filosficos" uma manifestao corrente da ] linguagem e, como fenmeno, ao mesmo tempo revela e oculta a essncia do , filosofar. Oculta, na medida em que compartimentalizando tambm a atitude filosfica (bem a gosto do modo formalista de pensar) a reduz a uns tantos assuntos j de antemo catalogveis, empobrecendo um trabalho que deveria ser essencialmente criador. Revela, enquanto pode chamar a ateno para alguns problemas que se revestem de tamanha magnitude, em face das condies concretas em que o homem produz a sua existncia, que exigem, em carter prioritrio, uma reflexo radical, rigorosa e de conjunto. Tratar-se-ia, por

    19

    conseguinte, de problemas que pem em tela, de imediato e de modo inconteste, a necessidade da filosofia. Estaria

  • justificado, nessas circunstncias, o uso da expresso "problema filosfico".

    4. NOO DE FILOSOFIA Esclarecendo o significado essencial de problema; explicitados a noo de reflexo e os requisitos fundamentais para que ela seja adjetivada de filosfica, podemos, finalmente, conceituar a filosofia como uma REFLEXO (RADICAL, RIGOROSA E DE CONJUNTO) SOBRE OS PROBLEMAS QUE A REALIDADE APRESENTA.

    A partir da, fcil concluir a respeito do significado da expresso "Filosofia da Educao". Esta no seria outra coisa seno uma REFLEXO (RADICAL, RIGOROSA E DE CONJUNTO) SOBRE OS PROBLEMAS QUE A REALIDADE EDUCACIONAL APRESENTA.

    5. NOO DO "FILOSOFIA DE VIDA" Mas ser que isso nos diz alguma coisa? Quando ouvimos falar em filosofia da educao no me parece que ocorra em nosso esprito a idia acima. Com efeito, ouvimos falar em Filosofia da Educao da Escola Nova, Filosofia da Educao da Escola Tradicional, Filosofia da Educao do Governo de So Paulo, Filosofia da Educao da Igreja Catlica, etc.; e sabemos que no se trata a da reflexo da Igreja Catlica, dos educadores da Escola Nova ou do Governo de So Paulo sobre os problemas educacionais; a palavra filosofia refere-se a orientao, aos princpios e normas que regem aquelas entidades. Tal orientao pode ou no ser conseqncia da reflexo. Com efeito, a nossa ao segue sempre certa orientao; a todos momentos estamos fazendo escolhas, mas isso no significa que estamos sempre refletindo; a ao no pressupe necessariamente a reflexo; podemos agir sem refletir (embora no nos seja possvel agir sem pensar). Neste caso, ns decidimos, fazemos escolhas espontaneamente, seguindo os padres, a orientao que o prprio meio nos impe. assim que ns escolhemos nossos clubes preferidos, nossas amizades; assim que os pais escolhem o tipo de escola para os seus filhos, colocando-os em colgio de padres (ou freiras) ou em colgio do Estado; assim tambm que certos professores elaboram o programa de suas cadeiras (vendo o que os outros costumam transmitir, transcrevendo os itens do ndice de certos livros

    20

    didticos, etc.); e assim, ainda, que se fundam certas escolas ou que o Governo toma certas medidas. Nessas situaes ns no temos conscincia clara, explcita do porqu fazemos assim e no de outro modo. Tudo ocorre normalmente, naturalmente, espontaneamente, sem problemas. Proponho que se chame a esse tipo de orientao "filosofia de vida".(7) Todos e cada um de ns temos a nossa "filosofia de vida". Esta se constitui a partir da famlia, do ambiente em que somos criados.

    6. NOO DE "IDEOLOGIA" Mas, como j dissemos, quando surge o problema, ou seja, quando no sei que rumo tomar e preciso saber, quando no sei escolher e preciso saber, a surge a exigncia do filosofar, a eu comeo a refletir. Essa reflexo aberta; pois se eu preciso saber e no sei, isto significa que eu no tenho a resposta; busco uma resposta e, em princpio, ela pode ser encontrada em qualquer ponto (da, a necessidade de uma reflexo de conjunto). medida, porm, que a reflexo prossegue, as coisas comeam a ficar mais claras e a resposta vai se delineando. Estrutura-se ento uma orientao, princpios so estabelecidos, objetivos so definidos e a ao toma rumos novos tornando-se compreensvel, fundamentada, mais coerente. Note-se que tambm aqui se trata de princpios e normas que orientam a nossa ao. Mas aqui ns temos conscincia clara, explcita do porqu fazemos assim e no de outro modo. Contrapondo-se "filosofia de vida", proponho que se chame a esse segundo tipo de orientao, "ideologia".(8) Observe-se, ainda, que a opo ideolgica pode tambm se opor "filosofia de vida" (pense-se no burgus que se decida por uma ideologia revolucionria): neste caso, o

    7. Esta noo de "filosofia de vida" corresponde, na terminologia gramsciana, ao conceito de "senso comum". Cf. GRAMSCI, A. - Quaderni del Crcere, especialmente o caderno 10. (Na traduo brasileira, ver, Concepo Dialtica da Historio, em especial a Parte I.)

    8. Para uma discusso dos diversos sentidos da palavra "ideologia", ver, FURTER, R -Educao e Reflexo, Cap. 4; GABEL, J. - dologies; DUMONT, R Ls Idologies; e a coletnea de Lenk, K. - E Concepto de Ideloga que traz, inclusive, uma abordagem histrica do problema. Sobre o trabalho de R Furter, cit., observe-se que ele vale mais pelas indicaes bibliogrficas que contm do que pelas interpretaes do autor. Para uma discusso sobre as relaes entre ideologia e falsa conscincia, ver, GABEL, j. - La Fausse Consence e SCHAFF. A. - Histria e Verdade, pp. l 55-171. Por fim, cabe lembrar que a noo adotada neste texto, ainda que sem pretenses de alar-se ao plano de uma teoria da

  • ideologia, obtm forte apoio em GFIAMSCI, A. - Concepo Dialtica da Histria. (Ver principalmente, pp. 61-63 e 114-119.)

    21

    conflito pode acarretar certas incoerncias na ao, determinadas pela superposio ora de uma, ora de outra. Aqui se faz mais necessria ainda a vigilncia da reflexo.

    7. ESQUEMATIZAO DA DIALICA "AO-PROBLEMA-REFLEXO-AO" Podemos, pois, para facilitar a compreenso, formular o seguinte diagrama:

    1. Ao (fundada na filosofia de vida) suscita

    2. Problema (exige reflexo: a filosofia) que leva

    3. Ideologia (conseqncia da reflexo) que acarreta

    4. Ao (fundada na ideologia).

    No se trata, porm, de uma seqncia lgica ou cronolgica; uma seqncia dialtica. Portanto, no se age primeiro, depois se reflete, depois se organiza a ao e por fim age-se novamente. Trata-se de um processo em que esses momentos se interpenetram, desenrolando o fio da existncia humana na sua totalidade. E como no existe reflexo total, a ao trar sempre novos problemas que estaro sempre exigindo a reflexo; por isso, a filosofia sempre necessria e a ideologia ser sempre parcial, fragmentria e supervel.(9) Assim, poderamos continuar o diagrama anterior, da seguinte forma:

    4. Ao (fundada na ideologia) suscita

    5. Novos Problemas (exigem reflexo: a filosofia) que levam

    6. Reformulao da ideologia (organizao da ao) que acarreta

    7. Reformulao da ao (fundada na ideologia reformulada).

    8. NOO DE FILOSOFIA DA EDUCAO Portanto, o que conhecemos normalmente pelo nome de filosofia da educao no o propriamente, mas identifica-se (de acordo com a terminologia proposta) ora

    9. Esta maneira de colocar as relaes entre filosofia e ideologia nos permite ao mesmo tempo assinalar a oportunidade da distino entre saber e ideologia e evitar sua possvel limitao. Tal limitao consiste em que o saber geralmente posto como o outro que exclui (porque, ao revelar suas origens, a dissipa) a ideologia. Com isto, acaba-se por defender o carter desinteressado do saber. Cabe, pois, lembrar que o saber sempre interessado, vale dizer, o saber supe sempre a ideologia da mesma forma que esta supe sempre o saber. Com efeito, a ideologia s pode ser identificada como tal, ao nvel do saber. A ideologia que no supe o saber, supe-se saber. Ver, por exemplo, ALTHUSSER, L. - Ideologia e Aparelhos Ideolgicos de Estado e a apresentao de CHAU, Marilena - Ideologia e Mobilizao Popular.

    22

    com a "filosofia de vida", ora com a "ideologia". Acreditamos, porm, que a filosofia da educao s ser mesmo indispensvel formao do educador; se ela for encarada, tal como estamos propondo, como uma REFLEXO (RADICAL, RIGOROSA E DE CONJUNTO) SOBRE OS PROBLEMAS QUE A REALIDADE EDUCACIONAL APRESENTA.

    Podemos, enfim, responder pergunta colocada no incio: que que leva o educador a filosofar? O que leva o educador a filosofar so os problemas (entendido esse termo com o significado que lhe foi consignado) que ele encontra ao realizar a tarefa educativa. E como a educao visa o homem, conveniente comear por uma reflexo sobre a realidade humana, procurando descobrir quais os aspectos que ele comporta, quais as suas exigncias referindo-as sempre situao existencial concreta do homem brasileiro, pois a (ou pelo menos a partir da) que se desenvolver o nosso trabalho. Assim, a tarefa da Filosofia da Educao ser oferecer aos educadores um mtodo de reflexo que lhes permita encarar os problemas educacionais, penetrando na sua complexidade e encaminhando a soluo de questes tais

  • como: o conflito entre "filosofia de vida" e "ideologia" na atividade do educador; a necessidade da opo ideolgica e suas implicaes; o carter parcial, fragmentrio e supervel das ideologias e o conflito entre diferentes ideologias; a possibilidade, legitimidade, valor e limites da educao; a relao entre meios e fins na educao (como usar meios velhos em funo de objetivos novos?); a relao entre teoria e prtica (como a teoria pode dinamizar ou cristalizar a prtica educacional?); possvel redefinir objetivos para a educao brasileira? Quais os condicionamentos da atividade educacional? Em que medida possvel super-los e em que medida preciso contar com eles?

    O elenco de questes acima mencionado apenas um exemplo do carter problemtico da atividade educacional, o que explica a importncia e a necessidade da reflexo filosfica para o educador. Alm desses, citados ao acaso, muitos outros problemas o educador ter que enfrentar. Alguns deles so previsveis; outros sero decorrncia do prprio desenvolvimento da ao. E se o educador no tiver desenvolvido uma capacidade de refletir profundamente, rigorosamente e globalmente, suas possibilidades de xito estaro bastante diminudas.

    9. CONCLUSO Assim encarada, a filosofia da educao no ter como funo fixar "a priori" princpios e objetivos para a educao; tambm no se reduzir a uma teoria geral da educao

    23

    enquanto sistematizao dos seus resultados. Sua funo ser acompanhar reflexiva e criticamente a atividade educacional de modo a explicitar os seus fundamentos, esclarecer a tarefa e a contribuio das diversas disciplinas pedaggicas e avaliar o significado das solues escolhidas. Com isso, a ao pedaggica resultar mais coerente, mais lcida, mais justa;10 mais humana, enfim.

    l 0. Cf. FURTER, R - Educao e Reflexo, pp. 6-27.

    24

    CAPTULO DOIS

    FUNO DO ENSINO DE FILOSOFIA DA EDUCAO E DE HISTRIA DA EDUCAO

    1. Como se pode ver pela programao deste Encontro, o tema central gira em torno do magistrio de Filosofia da Educao e de Histria da Educao. Como profissionais que atuam nessas reas, reunimo-nos, pois, para debater o prprio sentido daquilo que estamos fazendo.

    Por que importante analisarmos mais profundamente (e em conjunto) o trabalho que estamos desenvolvendo no momento atual?

    Se fizermos um levantamento rpido dessas disciplinas do ponto de vista do lugar que ocupam na organizao dos cursos, veremos que, em relao ao curso de Pedagogia (onde so obrigatrias, j que figuram no currculo mnimo aprovado pelo CFE), veremos que h trs situaes bsicas com as quais os professores podem se defrontar.

    Com efeito, temos alguns cursos em que Histria e Filosofia da Educao constituem uma nica disciplina; h outros, porm, em que ambas so dadas em separado, permitindo-nos detectaras seguintes situaes: 1. professores de Histria e Filosofia da Educao; 2. professores de Filosofia da Educao; e 3. professores de Histria da Educao. Ora, em cada uma dessas situaes a organizao programtica da (ou das) disciplina(s) vai assumir matizes diferentes.

    Se sairmos do curso de Pedagogia iremos verificar que a disciplina Filosofia da

    1. Palestra proferida no IX Encontro da Associao de Professores Universitrios de Filosofia e Histria da Educao, realizado de 22 a 24 de julho de 1974, em So Paulo.

    25

  • Educao aparece (se bem que no em carter obrigatrio) com uma certa freqncia nos cursos de graduao em Filosofia, assumindo a uma conotao diferente, pois no a mesma coisa lecionar essa disciplina para alunos de Filosofia e de Pedagogia.

    Alm disso, a disciplina Filosofia da Educao tem sido colocada ultimamente (e tambm aqui no em carter obrigatrio) nos cursos de Licenciatura, assumindo tambm a uma conotao diferente. Com efeito, a referida-disciplina ser desenvolvida durante um semestre apenas, para alunos de diferentes cursos: Letras, Geografia, Histria, Matemtica, Fsica, Cincias Sociais, Psicologia, etc.

    Quanto disciplina Histria da Educao, esta no aparece em outros cursos que no o de Pedagogia, pelo menos com uma freqncia que merea uma meno especial.

    Em face dessas diferentes situaes, vamos verificar que h um problema comum. E deste problema que ns partiremos. H uma tendncia a se colocar a nfase na primeira palavra da locuo - uma nfase seja na filosofia, seja na histria - e a segunda palavra - a educao - aparece como um apndice, como uma mera conseqncia. Constatamos, pois, que o professor de Filosofia da Educao est preocupado com a "filosofia"; ele est preocupado em "dominar" aquilo que se chamaria o campo da Filosofia, da mesma forma que o professor de Histria da Educao est preocupado em dominar o campo da Histria e a Educao acaba ficando na penumbra.

    Em conseqncia desta nfase na primeira palavra da locuo, pode-se notar que mesmo esta primeira palavra no suficientemente caracterizada, quer dizer, enquanto se est preocupado com a filosofia (como professor de Filosofia da Educao), enquanto se est preocupado com a histria (como professor de Histria da Educao) no se chega a explicitar suficientemente o que significa Filosofia e o que significa Histria. Nesses casos, eu, como professor, entendo a Filosofia como alguma coisa j constituda e que preciso dominar para poder dar conta da minha tarefa; trata-se, pois, de alguma coisa que est fora de mim; qual o seu significado, isto algo que no surge a mim como problemtico. A Filosofia entendida como tendo, "a priori", um significado prprio e isto no passvel de questionamento. O que se questiona como posso eu dominar o campo que a Filosofia abrange.

    O mesmo se diga em relao Histria. Em face desta situao, tanto a Filosofia como a Histria acabam por ser encaradas segundo a perspectiva tradicional, sem que seja explicitado suficientemente o significado de cada um desses termos. Em conseqncia, o professor acaba se detendo nas abordagens comumente feitas sob

    26

    o nome de Filosofia e sob o nome de Histria, sem refletir mais profundamente para verificar se aquilo que est recebendo o nome de Filosofia merece precisamente este nome ou no; o mesmo se diga em relao Histria - por exemplo: no caso da Histria da Educao, possvel que o professor desenvolva uma programao partindo dos acontecimentos e se detendo numa histria das doutrinas pedaggicas. Nesse caso, o seu problema como professor de Histria da Educao ser como se pode dominar todo o contedo das doutrinas pedaggicas que foram desenvolvidas atravs da Histria. Cabe, porm, perguntar: o objetivo de um curso de Histria da Educao se esgota na exposio das doutrinas pedaggicas? Ou, em outros termos: a exposio das doutrinas pedaggicas, a mais ampla possvel, que permite que se atinja o objetivo do ensino de Histria da Educao? Estamos de tal modo absorvidos pela necessidade de conhecer quais so essas correntes e de transmitir esses conhecimentos para os alunos que ns no nos indagamos se fazer Histria da Educao e se ensinar Histria da Educao isto, ou se no seria outra coisa.

    2. A partir da situao detectada no tpico anterior, podemos caracterizar as trs linhas bsicas que nos parecem assumir os programas destas duas disciplinas: Filosofia da Educao e Histria da Educao, sejam elas ministradas separada ou conjuntamente. Uma primeira forma de se organizar a programao consiste em se filiar a uma determinada corrente j constituda, a um pensamento j elaborado - neste caso, a Filosofia da Educao ser ministrada, por exemplo, na perspectiva do existencialismo, ou do pragmatismo, ou dotomismo, etc.

    A segunda forma se caracteriza pela postura ecltica. Em vez de se filiar a uma corrente, levam-se em conta todas as correntes; isto pode ocorrer tanto em sentido diacrnico como em sentido sincrnico, ou seja, tanto na sucesso cronolgica das correntes atravs dos tempos, como na coexistncia de diversas correntes no mesmo tempo - no caso da Filosofia da Educao constata-se, ento, a preocupao de se mostrar o pensamento grego, o pensamento medieval, as correntes do pensamento moderno e do pensamento contemporneo.

    A justaposio das diferentes correntes constitui o que estamos chamando de postura ecltica. Por vezes, em face da dificuldade de se abranger todas as correntes, tenta-se, pelo menos, expor as correntes mais prximas de ns, elaborando-se a programao na base da exposio das correntes do pensamento contemporneo. Neste caso, temos a predominncia do plano sincrnico; a postura ecltica, todavia, continua prevalecendo.

    27

  • No caso da Histria da Educao, a nfase na primeira palavra da locuo acaba por fazer predominar (talvez pelo fato mesmo de ser Histria) a diacronia. Quando se concentra a ateno nas instituies educacionais, passa-se, ento, em revista essas instituies desde a antiguidade grega at a poca contempornea.

    Cabe registrar ainda uma terceira forma que decorre do desejo de se escapar s duas alternativas antes mencionadas. No querendo se filiar previamente a determinada corrente, e buscando evitar tambm a postura ecltica, alguns professores procuram novas sadas, organizando programas, por exemplo, a partir de temas, na forma de seminrios, estimulando os alunos a constiturem grupos de estudo por sua prpria iniciativa, etc. Tais tentativas, porm, via de regra, resultam inconsistentes e um tanto frustradoras.

    Como superar o problema? Deveramos optar por uma corrente? E como optar? A opo vai implicar o conhecimento das diversas alternativas para que ela seja consciente; empreender-se-, ento, um exame srio, profundo, de todas as correntes para que se possa optar? Em face dos alunos: coloco-os diretamente dentro da minha opo ou deixo-os livres para fazerem a sua opo? Neste caso, a trajetria que eu empreendi para chegar minha opo deveria fazer com que os alunos tambm a percorressem para faz-los chegar sua opo? Como, nesse caso, abordar todas as correntes num tempo curto e como escapar postura ecltica?

    Estamos diante de uma situao problemtica e que justifica a colocao do tema deste encontro, bem como o tema desta palestra.

    A reflexo desenvolvida at agora em termos de constatao da situao concreta em que os professores de Histria e Filosofia da Educao esto, evidenciou que em face das locues "histria da educao" e "filosofia da educao", a nfase era dada na primeira palavra em detrimento da segunda. Far efeitos desta palestra, proponho que se coloque a nfase na segunda palavra e se veja at onde se poder caminhar com esta reviravolta no enfoque da(s) disciplina(s) que constitui(em) a nossa preocupao e a nossa rea de atuao profissional.

    3. Centremos, pois, a nossa ateno na educao e a partir da procuremos abordar a Filosofia e a Histria. Ao se propor isto, pode ser lanada uma questo: ns no estamos passando de uma hipertrofia a outra? Se se hipertrofiava a primeira palavra, vamos hipertrofiar a segunda e deixar na penumbra a primeira? No estaramos, neste caso, sendo to unilaterais quanto na situao antes analisada sendo, em conseqncia, alvo das mesmas crticas e enredando-nos nos mesmos problemas antes levantados?

    28

    No entanto, se centrarmos nossa ateno na Educao, ou seja, na problemtica educacional, possivelmente teremos, a partir da, condies para esclarecer o significado da Filosofia e da Histria; em conseqncia, a primeira palavra da locuo no ficar na penumbra, mas ao contrrio, se desvelar e irromper com toda a fora que lhe prpria. E por que isto? Porque a Filosofia no se exerce no vazio, da mesma forma que a Histria no se d em abstraio; quer dizer, a Filosofia uma atitude que se dirige a algo e a Histria uma histria concreta, portanto, histria de alguma coisa.

    Se ns nos preocuparmos com a problemtica educacional, tentaremos examinar a partir da em que a Filosofia pode ajudar a esclarecer os problemas da educao e em que a Histria pode nos ajudar a entender esta problemtica educacional que nos preocupa. Com efeito, se tomamos, por exemplo, a Filosofia, verificamos que o seu objeto so os problemas que surgem na existncia humana.

    Se estamos preocupados com a Filosofia da Educao, a filosofia s ter sentido na medida em que nos permitir explicitar a problemtica educacional. Se ela ocultar a problemtica educacional no estar contribuindo para preencher a sua prpria funo e como tal estar se traindo enquanto filosofia.

    Se voltarmos quela atitude inicial - nfase na primeira palavra - que acabava por tornar o seu sentido no suficientemente caracterizado, veremos que, partindo de um pensamento j elaborado, no estamos desenvolvendo uma reflexo e, como tal, no estamos filosofando. Os resultados da reflexo filosfica no so a reflexo filosfica, apesar da tendncia freqente de se tomar os resultados pelo prprio processo.

    A Filosofia da Educao s poder prestar um servio formao dos educadores na medida em que contribuir para que os educadores adotem esta postura reflexiva para com a problemtica educacional. Se, ao contrrio, ns, enquanto educadores, nos limitarmos a tomar conhecimento de determinados resultados a que se chegou a partir de determinadas reflexes, ento no estaremos desenvolvendo a reflexo filosfica propriamente dita, vale dizer, estaremos abdicando da tarefa prpria da filosofia. Logo veremos que consideraes semelhantes podem ser feitas em relao Histria da Educao.

    Parece-me, pois, que a nossa preocupao, enquanto profissionais ligados Filosofia da Educao e Histria da Educao, dever estar concentrada na problemtica educacional. Sem isso, estaremos traindo nossa prpria atitude

  • filosfica ou histrica. neste sentido que poderemos superar a hipertrofia tanto do primeiro

    29

    como do segundo termo, porque a recuperaremos o sentido da locuo como tal,

    Trata-se, com efeito, de Filosofia da Educao e no simplesmente de Filosofia (porque neste caso a prpria Filosofia se esvaziaria); no tambm da Educao sem a postura reflexiva (porque neste caso a Educao no seria um processo intencionalmente conduzido).

    No caso da Histria da Educao, temos a mesma situao: trata-se de Histria da Educao e no de Histria (porque neste caso tambm o nosso projeto se esvazia) e nem apenas de Educao (porque neste caso ela seria desenraizada). O concreto histrico e para dar conta da problemtica concreta da educao necessrio assumir a postura histrica.

    V-se, pois, que, a partir da abordagem indicada acima, teremos uma unidade dos dois termos da locuo; uma unidade sem ambigidade. Portanto, no se trata de flutuar ou oscilar entre um projeto filosfico e um projeto pedaggico; um projeto histrico e um projeto pedaggico. As ambigidades, flutuaes e oscilaes podem ser superadas se e somente se a nossa ateno se concentrar na problemtica educacional concreta.

    Tal atitude o constitutivo essencial da Filosofia, o que pode ser ilustrado atravs dos exemplos mencionados na histria do pensamento humano. Se tomarmos, por exemplo, Aristteles, Plato, ou outros pensadores reconhecidos como filsofos, veremos que tais pensadores fizeram filosofia exatamente na medida em que pensaram os problemas de sua poca. Hoje, quando tomamos contato com os resultados do pensamento aristotlico, tais produtos aparecem como algo acabado, como algo j constitudo, parecendo possuir existncia autnoma, independentemente do processo que o gerou; no entanto, a filosofia de Aristteles o processo de reflexo que ele desenvolveu para chegar a esses resultados.

    Se ns assumimos a atitude filosfica, cumpre-nos desenvolver um processo de reflexo sobre os problemas que a nossa poca est colocando; e se se trata de filosofia da educao, isso implica assumir a atitude de reflexo sobre os problemas educacionais que a nossa situao concreta est nos colocando. Transmisso pura e simples dos resultados da reflexo de Aristteles, da reflexo de Kant, da reflexo de Sartre, e assim por diante, no constitui propriamente a tarefa da Filosofia.

    Exemplifiquemos o que foi dito acima, com uma referncia ao pensamento de Kant.

    O problema com que Kant se preocupou era, efetivamente, um problema fundamental na sua poca. Formado na tradio racionalista que vinha de Descartes,

    30

    absorvendo os conhecimentos de Leibniz atravs de seu mestre (Wolff), Kant entrou em contato com o pensamento de Hume que, segundo suas prprias palavras, o despertou do sono dogmtico em que vivia, acreditando que a perspectiva racionalista era o perspectiva vlida. Na medida em que entra em contato com a obra de Hume, que colocava os problemas numa perspectiva diversa daquela em que Kant havia sido formado, ento ele se defronta com um problema capital que pode ser expresso nos seguintes termos: como se explica o conhecimento? Segundo a perspectiva racionalista ou segundo a perspectiva empirista? Ao lado disto, Newton acabara de sistematizar a cincia fsica e ao mesmo tempo em que ele - Kant - travou conhecimento com os debates dos filsofos, vale dizer, com as concluses contraditrias a que eram conduzidos os filsofos, ele notava a objetividade da cincia fsico-matemtica na forma como havia sido exposta por Newton.

    Em face da situao acima descrita, Kant se colocou a questo fundamental: como possvel o conhecimento humano? Observe-se que ele no perguntou se era possvel o conhecimento humano; isto, com efeito, j no era problema em sua poca, uma vez que os xitos da cincia fsico-matemtica estavam a para evidenciar que era possvel o conhecimento humano. Como era possvel, a estava o problema - e toda a sua reflexo se desenvolveu no sentido de explicar esse problema.

    Hoje, ao expormos o pensamento de Kant, via de regra, aquilo aparece com um grande teor de aridez e na medida em que os alunos no tm sequer esse referencial histrico, mais rido ainda se torna aquele pensamento que, enquanto vivo, estava revestido de todo um dinamismo e de todo um significado; agora, porm, j constitudo e acabado e lanado a alunos que no esto preocupados dado que em sua existncia no irrompeu o problema kantiano (como possvel o conhecimento humano?), ento a exposio do pensamento de Kant alm de difcil de ser acompanhada se torna estril e, ao fim e ao cabo, se torna anti-filosfica; em vez de formar uma atitude filosfica, deforma o sentido da palavra, e por vezes chega at mesmo a criar uma atitude negativa em face da Filosofia. Trata-se, com efeito, de uma situao relativamente familiar a diversos professores, qual seja: ao iniciar um curso de Filosofia da Educao, defrontam-se com alunos que se colocam, "a priori", numa atitude negativa em face da Filosofia; nesses casos, necessita-se de um desgaste razoavelmente grande para quebrar, primeiro, esses preconceitos em face da Filosofia afim

  • de poder, posteriormente, desenvolver um trabalho positivo no sentido de desencadear a atitude filosfica nos alunos.

    O fundamental, portanto, que os alunos assumam essa atitude filosfica; que

    31

    eles sejam capazes de refletir sobre os problemas com os quais eles se defrontam e, no caso da Educao, que eles sejam capazes de refletir sobre os problemas educacionais.

    No que diz respeito Histria da Educao, verifica-se fenmeno semelhante: a Histria, por obra da hipertrofia da primeira palavra da locuo, acaba por no ser compreendida, o seu significado acaba por no ser explicitado claramente; assim, a Histria acaba sendo absorvida no sentido tradicional de seqncia de fatos ou seqncia de idias, resumindo-se a uma mera cronologia.

    Ao se reduzir a Histria a uma seqncia de fatos ou de idias, ocorre a um agravante maior: tais fatos (ou idias) acabam por se resumir naquilo que eu chamaria de "fatos de supra-estrutura", isto , aqueles fatos que se evidenciam mas que no explicam o processo histrico concreto, sendo, ao contrrio, explicados pelo processo histrico concreto. Em conseqncia, o ensino da Histria, em lugar de explicitar o mencionado processo, apenas expe os fatos de supra-estrutura, resultando, da, o carter inspido de que se reveste esse tipo de ensino. E a Histria, semelhana da Filosofia, acaba por se tornar, tambm ela, uma disciplina "chata", uma vez que ser necessrio reter uma srie grande de fatos (ou de idias) geralmente desprovidos de sentido; assim, a memorizao acaba sendo o recurso de que o aluno (e por vezes o professor) lana mo para se situar em face do problema da Histria.

    Usando de uma imagem, poderamos descrever o processo histrico por analogia com o teatro.

    No cenrio da Histria temos os atores e os autores da Histria, do mesmo modo que numa pea teatral temos os atores e o autor da pea. O autor no aparece; no entanto, a obra sua e os atores representam aquele papel que lhes foi designado na trama da pea, trama essa que obra do autor da pea. Rara os expectadores, os atores esto em evidncia e so por vezes cultuados, surgindo como dolos. Em contrapartida, os autores esto ocultos nos bastidores, ficando, geralmente, na penumbra, quando no so totalmente esquecidos.

    Na Historiografia temos, pois, o seguinte fenmeno: os fatos de bastidores que so os fundamentais, dado que nos permitiriam compreender o que est acontecendo, tais fatos no so explorados suficientemente, enquanto que os fatos de supra-estrutura (ligados imagem dos atores) so mencionados numa seqncia cronolgica sem que se entenda bem porque em determinado momento quem esteve em evidncia foi este ator e no outro e que papel representava este ator;

    32

    quer dizer, que foras ele estava representando, foras essas que nos permitiriam compreender qual a matriz bsica daquele momento histrico. Dessa forma, a Historiografia tende a se resumir na apresentao de uma srie de nomes, fatos e datas e o recurso para se reter esses dados ter que ser a memorizao mecnica, uma vez que a compreenso da trama da Histria se perde.

    Ora, a compreenso da trama da Histria s ser garantida se forem levados em conta os "dados de bastidores", vale dizer, se se examina a base material da sociedade cuja histria est sendo reconstituda. Tal procedimento supe um processo de investigao que no se limita quilo que convencionalmente chamado de Histria da Educao, mas implica investigaes de ordem econmica, poltica e social do pas em cujo seio se desenvolve o fenmeno educativo que se quer compreender, uma vez que esse processo de investigao que far emergir a problemtica educacional concreta.

    Na medida em que ns, professores de Histria da Educao, assumimos essa atitude de investigao; na medida em que ns, em face dos alunos, estimulamos esta mesma atitude, eis como estaremos contribuindo efetivamente para o avano do campo de conhecimento que constitui a Histria da Educao e, no nosso caso especfico, para o desenvolvimento da Histria da Educao Brasileira.

    4. Em concluso, cabe observar que um curso de Filosofia da Educao ou de Histria da Educao assumir caractersticas marcadamente diversas das tradicionais, se ns, enquanto professores, nos colocarmos na perspectiva apresentada neste texto. Tal mudana de perspectiva s ser possvel, obviamente, se estivermos empenhados em assumir at s ltimas conseqncias o papel que nos cabe na rea de Filosofia da Educao e/ou Histria da Educao.

    33

  • CAPTULO TRS

    VALORES E OBJETIVOS NA EDUCAO

    A reflexo(1) sobre os problemas educacionais inevitavelmente nos levar questo dos valores. Com efeito, se esses problemas trazem a necessidade de uma reformulao da ao, torna-se necessrio saber o que se visa com essa ao, ou seja, quais so os seus objetivos. E determinar objetivos implica definir prioridades, decidir sobre o que vlido e o que no vlido. Alm disso - todos concordam - a educao visa o homem; na verdade, que sentido ter a educao se ela no estiver voltada para a promoo do homem? Uma viso histrica da educao mostra como esta esteve sempre preocupada em formar determinado tipo de homem. Os tipos variam de acordo com as diferentes exigncias d