DESAFIOS NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS DO CAMPO: O CASO DA...

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47 ¹ Mestranda do Programa de PósGraduação em Geografia e Geociências da Universidade Federal de Santa Maria. ² Orientadora Profª. Drª. Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Maria. DESAFIOS NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS DO CAMPO: O CASO DA ESCOLA BERNARDINO FERNANDES, SANTA MARIA. Pâmela Corrêa Peres 1 Carmen Rejane Flores Wizniewsky 2 Introdução A geografia enquanto disciplina que estuda a sociedade através das relações sócio espaciais e das territorialidades produzidas, tem um papel singular nas implicações relativas à transformação social. Dessa forma, entendese que a geografia deve se destinar a transformar a realidade e não só explicála, tendo em vista que, a postura enquanto educador deve ser a de produzir uma ciência e um ensino que esteja voltado para a inserção social. É por essa razão que está sendo construída a educação do campo, voltada a territorializar/reterritorializar o conhecimento e saberes, trazendo a cidadania aos habitantes da área rural. Uma educação construída junto com seus sujeitos e a partir de suas necessidades. Kolling (1999) salienta que a luta por uma educação voltada à realidade dos sujeitos do campo tem como finalidade promover desenvolvimento sociocultural e econômico respeitando diferenças históricas, uma educação que contribua para a permanência e a reprodução dos homens do campo e a melhora de sua qualidade de vida. Para isso não basta ter escolas no campo, é necessário construir escolas do campo, escolas com um Projeto Político Pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à história e à cultura do povo trabalhador do campo. Neste contexto, é necessária a investigação da identidade dos lugares e dos sujeitos a partir das pessoas que ali habitam, reconhecendo e valorizando os saberes socialmente construídos ao longo da história de vida de cada membro da comunidade, para que se possa, fundamentado na educação do campo, assumir novas posturas e novas competências diante das problemáticas inerentes ao ensino rural. Por conseguinte, para refletirmos a respeito da educação do campo, temos que entender: Quem são esses sujeitos? Qual é a sua realidade? Qual o papel da escola na formação destes sujeitos? Para que isso seja possível, além de considerar que, para estes, a atividade produtiva constitui a primeira fonte de conhecimento, fazse necessário

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    ¹ Mestranda do Programa de PósGraduação em Geografia e Geociências da Universidade Federal de Santa Maria.² Orientadora Profª. Drª. Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Maria.

    DESAFIOS NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS DO CAMPO: O CASO DA ESCOLABERNARDINO FERNANDES, SANTA MARIA.

    Pâmela Corrêa Peres1Carmen Rejane Flores Wizniewsky2

    IntroduçãoA geografia enquanto disciplina que estuda a sociedade através das relações sócioespaciais e das territorialidades produzidas, tem um papel singular nas implicaçõesrelativas à transformação social. Dessa forma, entendese que a geografia deve sedestinar a transformar a realidade e não só explicála, tendo em vista que, a posturaenquanto educador deve ser a de produzir uma ciência e um ensino que esteja voltadopara a inserção social.É por essa razão que está sendo construída a educação do campo, voltada aterritorializar/reterritorializar o conhecimento e saberes, trazendo a cidadania aoshabitantes da área rural. Uma educação construída junto com seus sujeitos e a partir desuas necessidades.Kolling (1999) salienta que a luta por uma educação voltada à realidade dos sujeitosdo campo tem como finalidade promover desenvolvimento sociocultural e econômicorespeitando diferenças históricas, uma educação que contribua para a permanência e areprodução dos homens do campo e a melhora de sua qualidade de vida. Para isso nãobasta ter escolas no campo, é necessário construir escolas do campo, escolas com umProjeto Político Pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à história e àcultura do povo trabalhador do campo.Neste contexto, é necessária a investigação da identidade dos lugares e dos sujeitosa partir das pessoas que ali habitam, reconhecendo e valorizando os saberes socialmenteconstruídos ao longo da história de vida de cada membro da comunidade, para que sepossa, fundamentado na educação do campo, assumir novas posturas e novascompetências diante das problemáticas inerentes ao ensino rural.Por conseguinte, para refletirmos a respeito da educação do campo, temos queentender: Quem são esses sujeitos? Qual é a sua realidade? Qual o papel da escola naformação destes sujeitos? Para que isso seja possível, além de considerar que, paraestes, a atividade produtiva constitui a primeira fonte de conhecimento, fazse necessário

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    que os próprios sujeitos sociais se expressem relatando como é sua vida cotidiana,descrevendo as interrelações da escola com a dinâmica da comunidade.Assim, esta pesquisa toma como referência a comunidade da Escola Municipal deEnsino Fundamental Bernardino Fernandes, localizada no Distrito de Pains, município deSanta Maria/RS. A partir da comunidade escolar, analisouse a dinâmica do processoeducacional e procurouse apreender os desafios que seus sujeitos enfrentam naconstrução da Educação do Campo.

    O lugar: uma aproximação com a escolaAo observar a prática educacional tradicionalmente empregada na maioria dasescolas percebese que as relações instituídas entre educadores e educandos permeiam aimposição da autoridade e a transmissão de conhecimentos, onde o professor é o detentordo saber, e o aluno está na escola para aprender do professor. Esta educação édenominada por Freire de “educação bancária”, a qual o conhecimento está condicionado apassividade e ajustamento dos alunos frente à narração de conteúdos. Freire (1975, p. 81)assim descreve a concepção bancária de educação:

    [...] Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado ebem comportado, quando não falar ou dissertar sobre algocompletamente alheio á experiência dos educandos vem sendorealmente a suprema inquietação desta educação [...] Nele o educadoraparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cujatarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de suanarração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados datotalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação(FREIRE, 1975 p. 81).Na visão bancária, os estudantes passam a ser depósitos, arquivando informaçõesque não estabelecem uma efetiva conexão com a realidade vivenciada, concorrendo paraalienação destes enquanto sujeitos transformadores do mundo, ao inibir o desenvolvimentode consciência crítica e pensamento autônomo.Frente a esse contexto, no intuito de contrapor a educação bancária, os movimentossociais do campo constroem a Educação Básica do Campo. A mesma é alicerçada nasespecificidades dos povos do campo, promovendo a valorização do lugar como práticapedagógica, respeitando os saberes socialmente construídos e a história dos sujeitos.Assim, a educação do campo objetiva a formação de “homens históricos” Freire (1975),que atuem no mundo de modo a transformálo, tendo consciência de seu papel comoagente produtor do espaço social.

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    Neste contexto, é de fundamental importância a articulação dos movimentos sociais eorganizações da sociedade civil na construção da educação do campo, de modo a garantiro vínculo com sujeitos sociais concretos: a classe trabalhadora do campo. SegundoCaldart (2004), a educação do campo se constitui:[...] como processo de construção de um projeto de educação dostrabalhadores e das trabalhadoras do campo, gestado desde o pontode vista dos camponeses e da trajetória de luta de suas organizações.Isto quer dizer que se trata de pensar a educação (política e pedagogia)desde os interesses sociais, políticos, culturais de um determinadogrupo social; ou tratase de pensar a educação (que é um processouniversal) desde uma particularidade, ou seja, desde sujeitos concretosque se movimentam dentro de determinadas condições sociais deexistência em um dado tempo histórico. (CALDART, 2004, p. 17)

    A autora complementa apresentando a discussão de que a educação deve ser no edo campo, pois a população rural tem direito a ser educada no lugar onde vive, da mesmaforma que tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a suaparticipação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais.(CALDART, 2002)Logo, o lugar é uma dimensão que não pode ser ignorada pela escola, sobretudo naeducação do campo, pois o modo de vida de cada sujeito que habita a comunidade ruralestá impregnada da bagagem cultural trazida pelos primeiros camponeses, não obstanteas influências globais. Assim:Cada sociedade, através de sua história, constrói seus costumes, suaforma de viver, ou seja, sua cultura, que dá identidade a uma sociedadelocal consciente das semelhanças culturais existentes entre os seusmembros. Quando a sociedade perde esta consciência cultural, perdetambém sua identidade cultural. (SILVA, 2003, p. 37)

    Portanto, é nesta categoria geográfica que se identificam os conflitos e acordosinerentes da própria existência dos sujeitos, ou seja, de suas experiências e significaçõesdiferenciadas.Ressaltase que cada indivíduo constrói um sentimento em relação ao lugar em quevive, este sentimento pode ser de apego ou repúdio, dependendo das experiências e dosistema de valores intrínseco a cada um, ou seja, as referências pessoais direcionam asformas como os indivíduos percebem e constituem a paisagem. Este sentimento é definidopor Tuan (1980) como Topofilia, sendo o “elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambientefísico”.

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    Contudo, a relação de afetividade que os indivíduos desenvolvem com o lugarsomente se consolida devido a interesses estabelecidos, através de uma intenção prédeterminada pelos atributos objetivos do espaço, pois é através das atividades alidesenvolvidas que os lugares constituem identidade e significado. Por essa razão, o lugarnão se constitui de uma localidade qualquer, mas aquela que possui significado nareprodução social de um indivíduo ou grupo.Ao se analisar a inserção do lugar no espaço, é necessário ter clareza que o lugarpassa agora a ser influenciado pela globalização, mas não totalmente, pois o lugar ainda éproduzido a partir da manutenção da cultura, dos costumes e dos saberes das pessoas,através de sua relação cotidiana.Neste contexto, o docente tem a responsabilidade de incluir no processo educacionala forma com que os discentes percebem e se relacionam com o mundo que os cerca,considerando de maneira recíproca, o que acontece no diaadia do lugar em que elesvivem e o que passa em outros lugares do mundo.Assim, é preciso uma educação que leve em conta as especificidades dos lugares,uma vez que, cada fragmento do espaço possui formas de vida diferenciadas, o quedemanda um olhar pedagógico que contemple essas diferenças, respeitando e valorizandoo saber social da comunidade que ali produz e reproduz seu espaço de vida.Neste contexto, para que se constitua uma efetiva transformação no processo ensinoaprendizagem é de fundamental importância entender a dinâmica dos lugares em que asescolas rurais estão inseridas, conjugado com a compreensão do processo histórico quedesencadeou as questões educacionais hoje vigentes.

    Evolução da educação brasileira no contexto da escola ruralHistoricamente a educação rural foi negligenciada pelos governos, já que não houveempenho do poder público em implantar um sistema educacional adequado àsnecessidades dos povos do campo. Na verdade, o Estado tratou a população do campocom políticas compensatórias, programas e projetos emergenciais.Lucas (2008) salienta que o modelo de desenvolvimento brasileiro, comandado pelaselites, passava a noção de que a população rural não precisava aprender a ler e aescrever, negando a população do campo o direito de acesso e permanência na escola.Somase a isso a dicotomia cidade e campo a partir da década de 1930, que atribuíaao rural o papel de coadjuvante no sistema urbanoindustrial, sendo interpretado comosinônimo de atraso, num grau inferior ao sujeito que vive nas cidades, e que por ocupar talposição precisa evoluir.

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    Somente nas primeiras décadas do século XX é que a educação rural passou aconstar como preocupação do governo brasileiro, pois era necessário melhorar ascondições de vida dos camponeses para fixálos a terra, diminuindo assim, sua migraçãopara as cidades e evitando a baixa da produtividade, ou seja, atendendo as expectativasda oligarquia rural. Destacase o ruralismo pedagógico de 1930, ideia de um grupo deeducadores que defendiam uma escola rural que atendesse aos interesses enecessidades do grupo social do qual faz parte.É a partir de 1940 que grandes contribuições e financiamentos estrangeiros passam aintervir nos rumos da educação brasileira, o que, apesar da subordinação e dependênciaao capital externo, ocasionou significativo avanço na implementação de escolas rurais.Neste momento, tomam forma os pacotes tecnológicos impostos pelas instituições quepatrocinaram a extensão e educação rural brasileira. Devese enfatizar que não équestionada a adaptação desses métodos e técnicas a realidade do Brasil, contribuindopara o surgimento de diversas problemáticas sociais e ambientais.Cabe destacar, no final da década 1950, o projeto de expansão das escolas no meiorural desenvolvido pelo então Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,tais escolas são chamadas "Brizoletas”. Essa concepção de escolas do campo vêmimpregnada de um entendimento da necessidade de Reforma Agrária, apontando paraaspirações de liberdade política, de igualdade social de direito ao trabalho à terra, à saúdee ao conhecimento dos trabalhadores rurais (KOLLING, 1999).A educação rural na década de 1970 foi marcada, segundo Calazans (1993, p.37)“pela transformação social, expressas nas alterações ocorridas nas relações de trabalho”.Nesta mesma perspectiva, a Lei 5.692/71 tinha como principal objetivo aprofissionalização, introduzindo a alternativa de um segundo grau chamado preparaçãopara o trabalho. Por outro lado, através do princípio da descentralização, esta leiproporcionou gradativamente o suporte para a municipalização do ensino rural, poisatravés de projetos como o Pronasec, o Promunicípio, exigiram dos municípios umaorganização mais apurada do processo de ensino nas comunidades rurais.Com a introdução do projeto neoliberal, no final da década de 1980 aumentaquantitativamente a oferta de educação, todavia a qualidade da educação diminui. Nestecontexto a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei 9.394/96visa transformar cidadãos em consumidores, sem questionar a subordinação e aexploração do sistema.Contudo, a LDB estabelece alguns avanços, como a adaptação do calendário escolaràs especificidades do lugar, permitindo a autonomia do ano letivo frente ao ano civil. A LDBgarante ainda a possibilidade de complementação da base curricular comum comconteúdos diferenciados, que atendam as demandas intrínsecas aos lugares e seussujeitos.

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    Diante deste contexto, composto por constantes omissões, negligências e/outratamento inadequado das particularidades educativas dos povos do campo nas políticaseducacionais o Conselho Nacional de Educação CNE ratificou, em 2002, as DiretrizesOperacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Salientase que a mesma éfruto da pressão coletiva exercida pelos movimentos sociais do campo, que ao longo desuas lutas por igualdade social, fizeram do processo educacional um meio de construçãode sujeitos históricos comprometidos com a transformação da sociedade.Entretanto, a simples proclamação de diretrizes não garante a concretização de umaefetiva Educação do Campo, sendo necessário estabelecer em que medida tais instruçõessão realmente aplicadas no cotidiano escolar, identificando as limitações e potencialidadesque se apresentam no contexto ensinoaprendizagem das escolas rurais, no caso desteestudo na Escola Bernardino Fernandes.

    A escola no contexto do lugarO lugar onde se insere a escola é denominado Pains, 3° Distrito do município deSanta Maria. Este município localizase na região central do Estado do Rio Grande do Sul.Com uma área de 133,42 km² e um total de 3.556 habitantes, apresenta uma densidadedemográfica de 37 habitantes por km².Pains é um distrito rural com predomínio de propriedades pequenas, onde aagricultura familiar merece destaque, tendo como principal sistema produtivo abovinocultura de leite. Nos últimos anos, o distrito de Pains tem experimentado um maiordesenvolvimento econômico, constituindose como importante bacia leiteira do municípiode Santa Maria. Em menor número, as propriedades com mais de 100 hectares estão, emgrande medida, direcionadas à produção de soja e arroz.Em relação à configuração espacial do distrito destacase o depoimento de um sujeitointegrante da comunidade C.43:

    O distrito é formado por várias comunidades como das Tronqueiras,Lagão Douro, São Geraldo que tem igreja e cemitério, a Água Boa comCentro Comunitário e frigorífico, a comunidade do Passo da Capivaracom seu CTG, a igreja, Clube da 3º. Idade e outro cemitério. São todoslugares que concentram um número maior de pessoas e atividades quenão são agrícolas e antes não existiam aqui.Desta forma, ao longo de sua evolução histórica, o distrito vem sofrendo astransformações do espaço rural, atualmente se configurando numa zona rururbana, poiscompreende áreas com características mistas de ocupação, mesclando atividades da

    ³ Neste trabalho os entrevistados serão referenciados por letras seguidas do número da entrevista.

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    agropecuária e da agroindústria com atividades urbanas.Localizada no coração do distrito, está situada a Escola Municipal BernadinoFernandes que possui todo o Ensino Fundamental e funciona de forma integral e em diasalternados. Foi fundada em 1953 e atualmente, constituise numa Escola Núcleo, formadapelo agrupamento de várias escolas multisseriadas e unidocentes do entorno, a partir doProjeto de Experiências Pedagógicas “Nuclearização de Escolas da Zona Rural”.Remetendose à nucleação, os professores expressam ser positiva como forma demanter a escola no meio rural, pois “escola pequena não tem as mesmas condições de sesustentar,” (P.6), além disso, “ajuda a promover a integração das diversas comunidades”(P.3).O corpo discente da escola é oriundo de famílias compostas de quatro a cincopessoas, cuja maioria são descendentes de imigrantes italianos, professando a religiãocatólica, e tendo a agricultura de autoconsumo como importante aliada para a reproduçãofamiliar. Os pais dos alunos são predominantemente pequenos proprietários, seguido deum também significativo número de chacareiros sem residência fixa, o que, neste caso,ocasiona constante entrada e saída de alunos da escola durante o ano letivo. A maior partedos alunos mora distante da escola, em outras localidades como Água Boa, Passo daCapivara, São Sebastião, utilizando o transporte escolar mantido pela Prefeitura Municipal.

    A escola Bernardino Fernandes vista pelos professores e equipe diretivaA escola Bernardino Fernandes possui 12 professores, entretanto somente a metadedeles disponibilizouse a responder ao questionário. A equipe gestora, composta peladiretora e vicediretora, respondeu conjuntamente a entrevista.A opção de unir os relatos dos professores e da direção da escola deuse em funçãoda complementação das respostas obtidas, possibilitando uma melhor visualização dadinâmica escolar.É a partir da interação dos sujeitos sociais com a escola que se estabelece oprocesso de construção de uma verdadeira educação do campo, fundamentada no diálogoe na flexibilização dos conflitos. Neste sentido, é de fundamental importância que ossujeitos que a compõe também se dediquem à discussão e planejamento, tendo comoespaço as reuniões pedagógicas de avaliação e aprendizagem.Na escola em questão, notouse não haver reuniões periódicas com todos osdocentes. A direção justifica em razão das séries terem aulas em dias alternados, sendodifícil reunir a totalidade dos professores, aliado ao fato dos mesmos trabalharem tambémem escolas urbanas, o que dificulta o acesso à escola em outros horários. O gestores

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    afirmam que esta deficiência é compensada pela intensa convivência dos professores nosdias em que possuem aula na escola. Embora a direção enfatize que o desenvolvimentodo projeto escolar não é prejudicado, devese ter em mente que é através da troca deideias e da reflexão sistemática sobre o trabalho que acontece a práxis pedagógica e seestabelece a construção de uma educação efetivamente democrática.Com exceção de um professor que preferiu não responder, os demais afirmam que aescola segue as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo,expondo que o PPP foi construído sob essa orientação. Unanimemente o corpo docente daescola afirmou procurar utilizarse da realidade para exemplificar e explanar os conteúdosabordados.Contudo, muitas das aspirações e proposições explícitas no PPP não sãodesenvolvidas em sua plenitude, como explica a representante da direção da escola: “ainserção destas práticas educativas adaptadas às diretrizes acontece através de algunsprojetos voltados aos aspectos rurais e a diversidade sóciocultural do campo, entretanto,não são todos os professores que correspondem ao projeto da escola”. Percebese,portanto, uma contradição entre o relato dos professores e a visão da equipe diretiva,corroborando certo isolamento interno, à medida que a integração entre os diferentes níveisescolares não acontece, uma vez que, não existe uma ação global, interdisciplinar, integrede fato todos os âmbitos do ambiente escolar.No entanto, mesmo que haja deficiências, vislumbrase uma iniciativa de inclusão daspráticas agrícolas no currículo da escola, ou melhor, de valorização do trabalho no campocomo princípio educativo através da elaboração de uma horta nas dependências da escola.Este projeto, coordenado pelo professor da disciplina de educação física4, possibilita aosdiscentes uma experiência coletiva de construção de conhecimento, uma vez que cada umdeles, através de sua prática cotidiana, poderá contribuir para o êxito das tarefas relativas àhorta da escola. Entretanto, não é observada a participação dos pais dos alunos nesteprojeto, subutilizando sua capacidade de aproximar a escola da comunidade.Sobre a importância deste projeto a diretora expõe:Os alunos de toda a escola participam do plantio e dos cuidados coma horta. Paralelamente, existe um projeto de elaboração de umminhocário, da professora de ciências, que até ganhou um prêmio daEmbrapa em Brasília5. Todos gostam de participar, e a horta tambémcontribui para o processo pedagógico através do aprendizado daimportância dos alimentos, de se manter hábitos alimentares saudáveis,

    4 Este relata que tem prazer em trabalhar com a horta da escola, pois nasceu e cresceu no meio rural, trabalhando até hojecom atividades agrárias (criação de gado e lavoura).5 Alusão ao projeto Ação x Sustentabilidade – Comunidade escolar e Embrapa, premiado no III Concurso das Minibibliotecas.A coleção de livros que compõe a minibiblioteca entregue a escola trata de temas como preservação ambiental, educação ecidadania, cultivo de hortas e quintais, criação de animais, cuidados com o solo e a água, e, até mesmo, sobre como iniciaruma pequena agroindústria de alimentos. Estes livros são retirados inclusive pelos pais de alunos, tornandose instrumentode apreensão de conhecimento por parte de toda comunidade.

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    da necessidade de cuidar o meio ambiente, não usando agrotóxicos,que prejudicam a saúde, enfim de se ter uma melhor qualidade de vida.É a partir deste projeto que surgem essas discussões. (Diretora daEscola Municipal Bernardino Fernandes, 2006)Complementando a análise da relação participativa da comunidade, a gestora declaraque existe uma integração muito forte entre escola e comunidade, não somente dos paisdos alunos, como também dos demais moradores do entorno da escola. Ela argumentaque muitas aquisições foram feitas graças à colaboração da comunidade em geral, queestá sempre participando das festividades, das promoções e sempre que possívelajudando com a doação de alimentos, que enriquecem a merenda escolar. Ela salienta quea escola não pede recursos, sendo esta colaboração espontânea. É possível perceber nodiscurso da gestora que essa integração acontece principalmente a partir do suprimentodas necessidades materiais, sendo necessário um olhar mais abrangente da comunidadeao processo pedagógico da escola, pois este influenciará decisivamente nodesenvolvimento do lugar.Dessa forma, quando indagado se os docentes conhecem o lugar onde se insere aescola, apenas uma professora expôs conhecer minimamente as localidades de origemdos alunos, o restante afirma apenas conhecer o entorno da escola, alegando quegeralmente recebem a visita dos pais em suas classes.A P.2 lembra que no ano de 2000 foi realizado um projeto que previa a elaboração deum resgate histórico da escola e de sua comunidade por meio de visitas/viagens àslocalidades para a realização de atividades de integração e pesquisas com os moradores,mas que nem todos os professores participaram. A questão a ser refletida é como osprofessores poderão relacionar os conteúdos de suas disciplinas com o cotidianovivenciado por seus alunos se não o conhecem?Outro item analisado diz respeito à formação dos professores que trabalham nasescolas rurais, tendo em vista que, a capacitação específica, inicial e continuada deprofessores é cada vez mais enfocada como principio norteador de uma educaçãotransformadora, pois o professor, como agente mediador do processo de construção

    humana tem “o papel de possibilitar dinâmicas pedagógicas queresgatem a cultura e o significado de se viver no campo com dignidade”Wizniewsky (2007, p. 10).Diante desse contexto, foi inquirido se os professores possuíam formação específicapara ministrar aulas em escolas do campo e se tinham alguma identificação com o meiorural. Os professores da escola foram unânimes em dizer que a sua formação inicial nãoos preparou para lecionar numa escola rural. A P.6 explica como se deu a dinâmica de suaformação enquanto acadêmica:

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    Na verdade, quando fiz a minha faculdade não existia uma interaçãoentre o meio acadêmico e a sociedade, principalmente com os sujeitossociais do campo. A nossa formação foi muito compartimentada, semuma maior preocupação em associar os conteúdos à realidade local.Contudo, mesmo que este paradigma continue a refletir a universidade de hoje,vislumbrase um movimento de mudança, destacandose a atuação do Grupo de Pesquisaem Educação e Território (GPET) da Universidade Federal de Santa Maria, que há algunsanos vem pesquisando e desenvolvendo projetos de extensão em educação do campo.Neste sentido, foi realizado durante o ano de 2006, em parceria com a Secretaria Municipalde Educação de Santa Maria, o Curso de Formação Continuada para professores da redemunicipal de ensino rural, em que foram realizados diversos encontros que discutiram eorientaram sobre a temática em questão.Ainda sobre a participação da universidade em problemáticas inerentes ao ensinorural, a diretora expõe que diversas vezes foi atrás de auxílio nos cursos da UFSM paraimplantar projetos e realizar atividades, porém, muito pouco obteve como resposta, aentrevistada enfatiza que “poucos são os professores e alunos que se sensibilizam com anossa causa, a maioria não gosta de trabalhar com a educação rural, muito menos comfilhos de agricultores familiares”.Neste relato observase o preconceito arraigado ao conceito de campo e seussujeitos. Temse a zona rural como lugar atrasado, que precisa ser desenvolvido, evisualizamse seus sujeitos sem a mesma importância e significado do que os sujeitosurbanos.Quando questionados sobre as perspectivas relacionadas ao futuro dos alunos daescola, os docentes afirmam que a tendência é prosseguir os estudos na cidade, sendopoucos os que permanecem trabalhando no campo. A vicediretora confirma estapropensão relatando que mesmo diante das dificuldades enfrentadas pelos alunos de umaescola rural, como desmotivação dos pais, falta de transporte e carência de recursosfinanceiros, muitos conseguem perfazer uma trajetória de sucesso profissional,frequentando curso superior e conquistando um emprego mais rentável.Neste sentido é importante salientar a proximidade da escola e de sua comunidadecom a Universidade Federal de Santa Maria, o que facilita dar seguimento aos estudos,principalmente em razão da existência do Colégio Politécnico da UFSM, que possui oensino médio e sequenciais pós ensino médio com habilitações ligadas ao meio rural, comoo Técnico em Agroindústria e o Técnico em Agropecuária.Grande parte dos discentes relata incentivar os discentes a estudar para que, aoretornar ao campo, não precisem trabalhar diretamente como mãodeobra nas lidas docampo, mas sim, tenham suporte e qualificação para serem patrões. Esta perspectiva

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    contraria a proposta de educação do campo, que preconiza a ligação dos seres humanoscom a própria produção das condições de existência social dentro de uma concepçãoigualitária de distribuição de renda e de terra, norteada pelos princípios éticos daconvivência solidária.Dessa forma, ao responderem o questionamento sobre o que julgam importanteensinar aos alunos de escola do campo, se estabelecem algumas contradições. Osprofessores reconhecem a importância de valorizar os saberes intrínsecos ao meio que oaluno vivencia, para que estes permaneçam junto a suas famílias, entretanto, dizemensinar o mesmo que os alunos da cidade aprendem, tentando apenas contextualizar. AP.5 justifica este comportamento explicando que “os alunos do campo não são mais osmesmos, o meio rural não está tão distante do urbano, por isso é preciso preparálos paraconcorrer em pé de igualdade com os sujeitos da cidade, senão eles não têm chancenenhuma”.É interessante notar que, apesar de todas as problemáticas expostas, os resultados àquestão relativa ao tipo de sujeito que é formado por esta escola apresentou um panoramabastante otimista dos docentes, como se pode observar nos seguintes relatos: “Eu acreditoque a educação nesta escola forma sujeitos conscientes de seu papel enquanto cidadãos,que valorizam o meio rural e acreditam no seu progresso” e “Com certeza indivíduossocialmente mais responsáveis, valorizam a escola, participativos, preocupados com ofuturo da sociedade”.Frente a esses relatos vale ressaltar que é necessário avaliar o que de fato configurase a realidade escolar e o que é inerente a forma como os professores projetam eidealizam a sua prática educativa.Em relação ao futuro da educação e do campo foi unânime a consciência daimportância da educação para a formação do sujeito como ser social e consequentementepara o desenvolvimento do campo. Mas também foi exposto que a mesma está deixandode cumprir seu papel devido a diversos fatores, geralmente ligados aodescomprometimento do poder público tanto nas questões relacionadas à educaçãoquanto nas relativas ao campo, eximindo a responsabilidade do professor. Neste sentido oprofessor P.6 afirma que:A educação necessita de muito mais apoio e acompanhamento porparte dos políticos, pois somente através dela é possível transformar asociedade. Assim como o campo deveria ser mais valorizado,considerandose à importância que este tem para a manutenção dacidade.

    A professora P.5 faz referência ao êxodo rural manifestando sua preocupação quantoao futuro da educação rural no município

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    Não se observa o aumento das matriculas, na verdade elas têmdiminuído. Esse ano, aqui na escola foi preciso juntar o 1º e 2º anos,pois não havia alunos suficientes para fechar uma turma de cada série.O campo não cresce e as famílias são pouco numerosas emcomparação com antigamente. E se tiver poucos alunos eles fecham àescola e mandam os alunos para estudarem na cidade, o que se tornainviável para algumas famílias de agricultores, que precisam de seusfilhos perto de casa, para ajudar nos afazeres do campo.O tecido sócioeconômico e cultural do meio rural é formado por essas famílias deagricultores a que se refere o depoimento acima. A manutenção do legado de sabereshistoricamente construídos por esses agricultores familiares é de importância vital, devendoser preservados a partir de uma educação nas escolas rurais voltada para os interesses docampo, considerando que a escolha e afirmação do jovem pelo trabalho na terra vai sendoconstruída e sustentada no decorrer de sua vivência com a família e com a escola.

    A escola Bernardino Fernandes vista pelo poder públicoA entrevista direcionada a Secretaria Municipal de Educação foi respondida pelasupervisora das escolas rurais, que possui formação em geografia. Está no cargo fazquatro anos, porém trabalha em escolas rurais desde 1990. A rede municipal de ensinorural de Santa Maria atende aproximadamente 1018 alunos, distribuídos em nove escolasnos diferentes distritos do município, oferecendo ensino fundamental regular. Somente aEscola João da Maia Braga oferece ensino fundamental na modalidade EJA (Educação deJovens e Adultos), no turno da noite.Até 1990 as escolas rurais de Santa Maria contemplavam o ensino de 1ª a 4ª sériecom turmas multisseriadas e unidocentes, possuindo mais de 150 escolas. Após éestabelecida uma política municipal de nucleação das escolas rurais, ou seja, a escolanúcleo recebe alunos oriundos de escolas rurais desativadas, através de transporteescolar.A entrevistada acompanhou a trajetória da escola após a nucleação, no ano de 1992.Ressalta a existência de uma relação de parceria entre a SMED6 e as escolas, no sentidode assessorar em atividades administrativas e pedagógicas, e que dentro daspossibilidades procura atender as reivindicações.No entanto, são apontados como principais dificuldades das escolas do meio rural aescassez de recursos financeiros, a manutenção do transporte escolar em localidades maisdistantes da sede do município e a falta de alunos em algumas escolas rurais, o quesegundo a entrevistada acaba por inviabilizar a manutenção dessas escolas. Entretanto,

    6 Secretaria Municipal de Educação de Santa Maria

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    devese destacar que a educação básica é direito de todos, sendo de fundamentalimportância que esta se processe no ambiente vivenciado pelo educando, afim de que sejareconhecido seu modo próprio de vida social enquanto elemento construtor de suaidentidade. Além disso, a maior quantidade de escolas dispersas no espaço rural domunicípio evitaria que os educandos despendessem muito tempo no transporte escolar.Diante desse contexto, questionouse como a secretaria percebe, enquantoinstituição, a importância da escola na formação do homem do campo, obtendose aseguinte resposta:A escola é um espaço de saber formal, mas principalmente de vivência,desta forma é essencial, pois possibilita a permanência no campo.Através da educação se possibilita uma visão de mundo mais ampla,tomando consciência de seu papel na sociedade. A educação é ocaminho acessível para o desenvolvimento social do educando,possibilitando, desta forma, o crescimento da região. (SecretariaMunicipal de Educação).

    Ao analisarmos este relato podese inferir que a entrevistada, enquanto representanteda secretaria de educação, tem ciência do importante papel desempenhado pela educaçãona formação dos sujeitos sociais e consequentemente nas relações intrínsecas aodesenvolvimento endógeno. No entanto, cabe ser avaliado em que medida estascolocações estão fazendo parte das políticas publicas municipais para a educação rural.Quanto a organização do Projeto Político Pedagógico da escola BernardinoFernandes a representante da SMED ratifica o que foi mencionado anteriormente pelosgestores e professores, ou seja, que este foi montado dentro da escola, de forma coletiva eparticipativa, atendendo aos princípios a que se destina. Ela afirma que de nada adiantariase não fosse desta maneira, pois este é primeiro passo para a construção de uma escola“do” campo, como se pode observar neste relato: “Sempre que necessário auxiliamos asescolas na elaboração do PPP, mas é sabido que este deve partir da própria comunidadeescolar, do contrário não tem validade, não cumpre sua finalidade”. (SMED)Entretanto, mesmo que a construção do PPP seja feita a partir das necessidades dacomunidade escolar, a entrevistada admite que o sistema de ensino municipal rural demaneira geral (composto de nove escolas) apresenta uma grande dificuldade no que tangea efetivação das adaptações necessárias às peculiaridades da vida rural, ou seja, nãoexistem conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades einteresses dos alunos e nem uma organização administrativa e pedagógica própria dasescolas rurais, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e ascondições climáticas, conforme nos confirma o relato abaixo descrito:

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    As escolas buscam atender as especificidades do contexto rural, atravésde atividades com a comunidade que contempla. Por não possuir7nenhuma orientação específica para a composição da grade curricular,essa aproximação com o ambiente rural é cumprida nos projetosdesenvolvidos pelas escolas, sendo que apenas uma escola da redemunicipal de ensino possui técnicas agrícolas na base curricular.(Secretaria Municipal de Educação).A entrevistada ressalta ainda que cada escola possui sua equipe diretiva e a basecurricular igual ao da escola urbana, porém, os conteúdos a serem ministrados sãoplanejados com o supervisor pedagógico tentando aproximar ao contexto do aluno equando possível contemplar os saberes sociais presentes no campo, afirmação estacontrariada pelos relatos dos discentes da escola estudada.Ao ser questionado como a SMED pretende trabalhar com as Diretrizes Operacionaispara Educação Básica nas Escolas do Campo a entrevistada coloca que mesmo que estasestejam sendo à base de muitas reflexões, realizadas em palestras, cursos e semináriosrealizados pela secretaria ainda se faz necessário efetivar na prática alguns pontos, comoexemplo cita o incremento da política de formação específica para os professores.Neste sentido cabe salientar que o processo de formação continuada não deve serestringir a mero treinamento, precisase superar a concepção em que o objetivo central é aacumulação de novas técnicas pelo professor, priorizando a reflexão crítica sobre suaprática pedagógica, já que é a partir da análise e reflexão de seu contexto de trabalho queos professores e demais funcionários podem reconstruir sua práxis e posteriormentepromover mudanças tanto no âmbito pessoal (renovação dos saberes da experiência),quanto nas formas de organização e de gestão da escola.Este pensamento se contrapõe as respostas que os professores apresentaram sobreformação continuada, referindose a alguns cursos de aperfeiçoamento profissionalrealizados, geralmente com frequência anual, por instituições públicas envolvidas nossistemas educativos.

    Em 2006, em parceria com a UFSM foi oferecido um curso aosprofessores rurais, tendo como tema central a construção do PPP, oque foi bem interessante. Já nos anos de 2008 e 2009 realizamosoficinas e palestras com recursos do FNDE8 não só para professores,mas para todos os funcionários e comunidade escolar das escolas ruraisda Rede Municipal Ensino, onde realizamos troca de experiências ediscussões sobre as novas tecnologias da informação e comunicaçãona educação. (Secretaria Municipal de Educação).Não se pode desconsiderar o aprendizado de novas teorias e metodologias nestescursos de aperfeiçoamento profissional, entretanto, esse aprendizado somente será válido

    7 Se referindo a Secretaria da Educação do Município de Santa Maria.8 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

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    caso houver uma comparação crítica entre as novas ideias ou práticas e o contextoespecífico de atuação do educador.Ressaltase que destes encontros não foi formalizada, através de documentos,nenhuma linha de pensamento e/ou conduta a ser seguida pela Rede Municipal de EnsinoRural de Santa Maria. Assim, não se verifica uma diretriz que tenha como fundamentaçãoas pesquisas e os debates que estão emergindo nestes espaços com relação à educaçãodo campo no município.A representante da SMED expõe ainda que a proposta que norteia o ensino rural estaembasada na proposta pedagógica de nucleação das escolas rurais, que é a dissertaçãoda professora Irene Fernandes dos Santos defendida em 1992, e cada escola rural deveriaorganizar sua estrutura didáticopedagógica de acordo com suas especificidades. Dessaforma, concluise que os parâmetros atualmente seguidos pela Secretaria de Educação doMunicípio são anteriores ao estabelecimento das Diretrizes Operacionais para EducaçãoBásica nas Escolas do Campo, cabendo aos gestores e educadores das escolas rurais, namaioria dos casos carentes de um embasamento teórico e metodológico, efetuarem asreformulações para adaptaremse aos preceitos das referidas Diretrizes.

    A Escola Bernardino Fernandes vista pelos alunosOs alunos configuramse como atores essenciais no processo ensinoaprendizagem,visto que, a prática educativa fundamentase na construção do conhecimento destes.Logo, é de suma importância que se reflita a complexidade escolar considerando aperspectiva destes sujeitos.Desta forma, estabeleceuse um questionário estruturado para a coleta deinformações junto aos alunos. Este foi aplicado à turma do 9º ano, 15 alunos com idademédia de 14 anos. Escolheuse o 9º ano por acreditar que o maior período de vivência naescola possibilitaria uma melhor apreensão da realidade deste estabelecimento de ensino.No quadro abaixo estão expostas às respostas coletadas sobre as atividadesrealizadas pelos alunos após as aulas e suas respectivas idades. Salientase que, nestetrabalho, se fará referência aos alunos através das letras do alfabeto.

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    Ao se analisar as respostas dos questionários, verificase que, assim como jámencionado pela vicediretora, existem dois perfis de alunos estudando na escola: algunstem um vínculo forte com o espaço rural, ajudam os pais em casa e nas lidas do campo,porém, a maioria possui hábitos mais urbanos, sobretudo os que residem no Alto daCapivara, perto do Frigorífico Silva, onde seus pais não trabalham com agricultura.Ressaltase que o trabalho se configura como um princípio educativa para os jovens.Assim, é de extrema importância que estes sejam parte integrante do processo deprodução: planejamento, trabalho e projeção de investimentos, afim de que eles se sintamsujeitos de sua existência social, criando e cultivando a sua identidade de agricultor familiarcamponês.

    Aluno Idade Atividades realizadas depois da aulaA 14 Ajudar a mãe na casaB 14 Não respondeuC 14 EstudarD 14 Estudar, ajudar com gado e cavalo, ajudar na limpeza.E 13 Ajudar nas tarefas domésticasF 14 Tratar animaisG 15 Serviços de lida com gadoH 14 Escutar música e conversar com familiaresI 17 Tratar os porcos, cortar lenha, entre outros.J 14 Ajudar nas lidas de campoK 15 Não respondeuL 14 Estudar, jogar basquete, computador.M 14 Computador para jogarN 15 Tarefas da escolaO 15 Ajudar nas tarefas de casa, fazer os temas.

    QUADRO I – Alunos do 9º ano com sua respectiva idade e atividades realizadas depois da aula.

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    Ao observar o Quadro II verificase que todos os alunos do 9º ano pretendemprosseguir os estudos, o que de fato é pertinente devido a relativa proximidade com a sededo município. Entretanto, cabe lembrar que a principal queixa dos moradores dacomunidade é a carência dos horários de transporte público, podendo configurarse, paraalguns, num obstáculo a realização deste objetivo.Neste sentido, o ensino médio no meio rural apresentase como a principalreivindicação da comunidade, todavia, ao ser exposto essa problemática a representanteda Secretária Municipal de Educação de Santa Maria, esta deixou claro não existir nenhumprojeto que contemple tal reivindicação, enfatizando que o ensino médio não é deresponsabilidade do município.Cabe destacar que os alunos sentem a necessidade de estudar para que possam termelhores condições de vida futura. Essa noção está intimamente ligada a uma profissãourbana, que denote maior prestígio e renda que a profissão de agricultor familiar,confirmandose a relação de subordinação e inferioridade designada ao homem do campopresente no imaginário social. Esta condição deveria estar sendo superada através de umaeducação transformadora e libertária, que integrasse e valorizasse os saberescampesinos, ou seja, o ensino deveria contribuir com a formação do sujeito enquantoagricultor, e não servir de argumento ao êxodo rural.

    Aluno Gostaria de continuar seus estudos? Por quê?A Sim. Para ter um futuro melhor.B Sim. Porque quero me formar e arrumar um emprego e ir embora da casa dos meus pais.C Sim. Porque se eu não estudar não vou ter um bom futuro.D Sim. Porque preciso de uma formação.E Sim. Pois é a única forma de arranjar uma profissão.F Sim. Para alcançar meus sonhos.G Sim. Para ter um bom currículo.H Sim. Porque é necessário na vida de qualquer pessoa.I Sim. Porque sem estudar ninguém vai para frente.J Vou prosseguir em frente sem parar. Pois para ter uma profissão adequada precisase ter estudo.K Sim, não há muitas possibilidades sem estudo.L Sim. Porque ele é tudo na nossa vida.M Gostaria porque sem estudo sou um zero a esquerdaN Sim. Porque pretendo ser alguém na vida.O Para manter uma vida melhor, com mais possibilidades.

    QUADRO II – Respostas dos alunos sobre o prosseguimento dos estudos.

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    Ao reportarmonos a questão sobre o que os educandos acham de residir do campo,verificase que mais da metade (53%) deles gosta de morar no campo, sobretudo pelatranquilidade, ausência de violência, e de acordo com a Aluna N pela “possibilidade deaprender várias coisas que não se aprende na cidade, aprendemos a sobreviver de váriasformas”, referindose, possivelmente, aos saberes do campo e as formas de reproduçãosocial intrínsecas aos agricultores familiares.No entanto, 27% dos alunos responderam não gostar de morar no campo, julgandoruim. As motivações de tal resposta remetenos a visão idealizada da cidade, supondo umlugar melhor, como expõem o Aluno A “Não gosto daqui, quero morar na cidade, que é maislegal, bonito, tem muitas coisas para se fazer, já cansei de morar no campo”. Além disso, oespaço urbano é visto como mais importante do que o espaço rural, “cada coisa que se temque fazer ou comprar tem que ir para cidade, que é distante, mas é lá que tudo acontece”(Aluno K).Dessa forma, praticamente a metade dos educandos (47%) gostaria de morar nacidade. Dentre as diversas justificativas destacamse a proximidade das coisas, apossibilidade de prosseguir os estudos e as oportunidades de emprego. Entre os alunosque não pretendem abandonar o campo, constatase uma maior identificação com a terra eo reconhecimento da sua atuação na história do lugar onde vivem, como podemosperceber no seguinte relato “Eu não gostaria de ir para a cidade e simplesmente largar tudoo que tenho, que meus pais conseguiram com tanto esforço” (Aluno J).Ao serem questionados sobre como gostariam que fossem as aulas ministradas pelasprofessoras, verificouse que, dos 15 alunos, cinco responderam não querer que elasmudem, ou que gostam delas como são. Outros alunos apontam para aulas menoscansativas, mais divertidas, menos chatas, o que indica a necessidade de uma dinâmicaeducativa mais alegre e criativa, que estimule os alunos a fazer parte do processo deaprendizado, construindo o conhecimento a partir de saberes já adquiridos. Somase a issoa insatisfação de outros em relação ao horário de aulas, sugerindo aulas num só turno.Contudo, as aulas em tempo integral e dias alternados em escolas rurais visam auxiliar osfilhos de agricultores familiares na condução de seus afazeres nas propriedades, entretantopodem tornarse maçantes caso não sejam bem estruturadas.Existe também a preocupação de alguns alunos quanto à necessidade de disciplinasbaseadas em atividades do cotidiano da comunidade, com mais liberdade, ou seja,voltadas aos aspectos culturais, produtivos e sociais das relações camponesas. Nestesentido, Kolling (1999) complementa:O currículo deve trabalhar mais o vínculo entre educação e cultura nosentido de fazer da escola um espaço de desenvolvimento cultural, masnão somente dos estudantes, mas das comunidades. Valorizar a cultura

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    dos grupos sociais que vivem no campo; conhecer outras expressõesculturais; produzir uma nova cultura, vinculada aos desafios do tempohistórico em que vivem educadores e educandos e às opções sociaisem que estão envolvidos. (KOLLING, 1999, p. 70)Quando questionados se aprenderam na escola algo que serviu para melhorar seuconhecimento sobre como trabalhar no campo, cerca de 60% dos alunos respondeuafirmativamente, corroborando a iniciativa de alguns educadores da escola que procuramdesenvolver projetos voltados à realidade agrária. Deste modo, as disciplinas maisinteressantes na percepção dos educandos são ciências e educação física, casualmenteas quais afirmam mais aprenderem conhecimentos de como trabalhar no campo. Entre asdisciplinas que os alunos dizem sentir mais dificuldade estão matemática e física, matériasestas com cálculos, que geralmente são ministradas de forma pouco dinâmica, semcontextualização com a realidade.Conhecer o lugar é de suma importância para o processo educacional, pois é a partirdeste que se compreende a realidade local e posteriormente relações mais amplas. Destemodo, ao serem questionados se conheciam a história do lugar onde moravam, apenascinco alunos afirmaram possuir alguma informação, geralmente transmitida através dahistoria oral contada por familiares e vizinhos. Salientase que apesar de ter sido realizadoum projeto na escola que buscava resgatar a história da comunidade (relatado peladireção), este não foi mencionado no questionário como fonte de tal conhecimento.A percepção do conflito sócioambiental presente no lugar vivenciado, advindo damodernização da agricultura, é destaque no depoimento do Aluno O. Tal depoimentoevidencia uma consciência ecológica crítica, pois se preocupa com a introdução deaparatos tecnológicos sem considerar o meio ambiente: “Meu pai e meus vizinhosdisseram que aqui era um local bem tranquilo, mas hoje em dia, com as máquinas, o arlimpo e puro está se indo com nosso sossego, e isso é muito preocupante”.

    Considerações FinaisPor muito tempo, a educação rural não foi priorizada pelas legislações educacionaisbrasileiras. Em geral, as políticas públicas não eram elaboradas para atender asespecificidades dos sujeitos do campo, mas tinham como objetivo a adaptação do espaçorural as necessidades do modo de vida urbano.Diante desse quadro de exclusão e dependência, surgem no seio dos movimentossociais do campo, discussões e reflexões de uma escola voltada à atender asnecessidades intrínsecas aos sujeitos do campo, respeitandoos, para que estes possam

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    reproduzir sua cultura e valores. Assim, são gestadas as Diretrizes Operacionais paraEducação Básica das Escolas do Campo, fruto de uma luta popular em prol de umaeducação digna para os habitantes do meio rural. Estas diretrizes deveriam estar sendocolocadas em prática em todas as escolas rurais, servindo como parâmetro para aconstrução de uma escola inovadora, a escola do campo, com base em propostaseducacionais engajadas à dinâmica da população local, por meio da participação ecooperação dos sujeitos sociais que ali vivem.No entanto, este pressuposto não foi confirmado na escola onde se desenvolveu essetrabalho, pois, apesar de existirem esforços, não foi constatado uma efetiva mudança noprocesso educacional, visto que, embasado nos procedimentos adotados a escola segueformando sujeitos sociais que não estabelecem uma verdadeira identidade com o campo,logo, permanecem descompromissados com um projeto de desenvolvimento integrado esustentável para a comunidade rural a qual estão inseridos.Ressaltase que o estabelecimento das Diretrizes Operacionais para Educação Básicadas Escolas do Campo dentro do contexto local (município de Santa Maria) fica a critériodas intenções político partidárias do governo vigente, dificultando um trabalho sistemático econtínuo, visto que, não há uma política pública efetiva que estimule a escola a reconhecere consolidar em seu cotidiano uma linha de trabalho que reflita as especificidades dossujeitos do campo.Somase a isso o fato das atividades realizadas na escola não modificarem a estruturapolítico pedagógica da mesma e muito menos a consciência do educador, não osprovocando a repensar suas atitudes frente ao processo ensinoaprendizado. Para que issoaconteça é necessário proceder fundamentandose em metodologias participativas, queestimulem a ação conjunta da comunidade na elaboração das demandas locais e nareflexão das ideias e dos ideais que permearão a práxis pedagógica da escola.Portanto, somente quando a escola se enquadrar verdadeiramente e de maneiraconcreta nos princípios da Educação do Campo, ela passará a cumprir seu real papel nadinâmica social, ao comprometerse na luta pela melhoria das condições de vida e trabalhono campo, através da construção de referenciais culturais e políticos que possibilitem aintervenção do homem rural na sua realidade, ou seja, formando sujeitos conscientes desua conduta frente ao desenvolvimento do lugar onde vive e se reproduz, a suacomunidade rural.

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