Desamparo Periférico 0404
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Notas sobre o desamparo perifrico: crise e regresso das massas no Brasil do sculo
XXI.
Por Leomir C. Hilrio Doutorando em Psicologia Social pela UERJ.
O argumento que gostaria de expor neste pequeno o seguinte: a partir do Junho
de 2013, tornou-se evidente, dentre tantos outros fenmenos, o ressurgimento e
fortalecimento do conservadorismo na cena poltica e social brasileira, cuja caracterstica
principal o rechao da esquerda acompanhado por sua culpabilizao pelas mazelas
sociais. O seu mecanismo bsico o de pr a esquerda e tudo o que ela representa no
lugar de onde emerge o mal-estar social difuso que as massas experimentam
cotidianamente embora no consigam lhe dar inteligibilidade. Assim procedendo, este
ressurgir do conservadorismo participa da dinmica global de sadas fetichistas para a
crise sistmica de maneira particular e perifrica por meio daquilo que vou tentar chamar
de politicismo, que para mim a face histrica e perifrica do que Freud denominou de
desamparo1.
Em primeiro lugar, entendo que estamos atravessando no mais uma crise do
capitalismo a ser superada por uma nova conjuntura de crescimento econmico. Em vez
de conjuntural, esta crise atual estrutural. Dito de outra maneira, a crise sistmica, ou
seja, ela acusa o limite lgico de desenvolvimento interno do capitalismo. Isso significa
dizer que o capitalismo no constrangido apenas externamente, atravs do esgotamento
de recursos naturais, por exemplo, mas principalmente por sua dinmica interna, sua
infindvel busca pela valorizao do valor (Marx) que atualmente solapa suas prprias
bases que a tornam possvel, detectvel na mudana da composio orgnica do capital e
na produo de uma massa suprflua, para citar dois exemplos internos. Nos idos tempos
de expanso sistmica, o capital como sujeito do processo de valorizao produziu
1 Tomo a elaborao freudiana do desamparo (Hilflosigkeit) a partir dos textos Mal-Estar na Civilizao e
Inibio, Sintoma e Angstia, a qual leio em duas chaves: denotando a impotncia do recm-nascido de
empreender uma ao coordenada e eficaz que satisfaa suas necessidades (motorische Hilflosigkeit) e
significando a dinmica econmica na qual ocorre um aumento da tenso da necessidade que o aparelho
psquico no pode ainda dominar (psychische Hilflosigkeit). Ou seja, o que me parece fundamental no
desamparo freudiano esta dinmica na qual o psiquismo no autnomo e se v submergido pelas tenses
do mundo, as quais produzem nele o estado gerador do desamparo, diante do qual ele procura desesperada
e ineficazmente se livrar. Aqui exercito o meu entendimento do encontro entre Marx e Freud, cujas bases
lancei no artigo A sombra marxiana em Freud, ou o descompasso constitutivo de um encontro, publicado na Revista Psicologia & Sociedade, em 2014, disponvel em:
http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n3/a03v26n3.pdf. Por fim, a inspirao para este pequeno texto veio
sobretudo de Moishe Postone, em especial o texto History and Helpleness: Mass Mobilization and Contemporary Forms of Anticapitalism, disponvel em http://www.platypus1917.org/wp-content/uploads/readings/postonemoishe_historyhelplessness.pdf.
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civilizao e barbrie concomitantemente, numa dialtica muito bem descrita por Adorno
e Horkheimer. Contudo, no momento de seu declnio, ela acaba por produzir mais
barbrie do que civilizao, ou, uma barbrie civilizada (Lwy). Isso porque a crise
deixou de ser um episdio passageiro para ser o prprio modus operandi do capitalismo
em colapso histrico. O capitalismo , hoje, a crise.
As caractersticas desta crise atual podem ser expostas da seguinte maneira: a) ela
tem amplitude universal, pois acomete mbitos diferenciados, tais quais as finanas, a
economia, o clima, a ecologia, a subjetividade, a poltica, a tica, a religio etc.; b) ela
tem alcance global, pois no restrita a um pas ou um conjunto delimitado de pases; c)
sua escala de tempo extensa, contnua e permanente; e d) em contraste com os colapsos
espetaculares que marcaram algumas crises do passado, esta crise rastejante
(Mszros), o que pressupe uma espcie de administrao da crise.
No mbito macroeconmico, isto aparece na busca e manuteno da
governabilidade. Aqui no Brasil, por exemplo, o governo do PT produziu eficazes
tcnicas de gesto da barbrie (M. Menegat), cujo objetivo foi o de manter o essencial
de uma forma social que desmorona. Num contexto de crise sistmica, no est mais posto
uma transformao do pas, mas sim a criao de tcnicas de minimizao e conteno
da misria. Na esfera do pensamento social crtico, a preocupao deixou de ser com a
formao nacional como em Caio Prado Jr., Antnio Cndido, Roberto Schwarz,
Francisco de Oliveira etc. para mobilizar-se para estudos pragmticos voltado para
solues tcnicas e controle social. O fato que este arranjo social brasileiro orientado
para gerir a barbrie j se depara com seus limites objetivos uma vez que a crise j no
pode ser mais ser vista como uma marolinha (Lula) e se configura cada vez mais como
um turbilho que arrasta o Brasil para o seu centro. Na medida em que no pode mais ser
negada, a crise tem que ser experimentada brasileira.
A longa tradio brasileira de transformaes pelo alto, para usar uma expresso
de Carlos Nelson Coutinho, incrustou na forma perifrica brasileira a ideia de que
determinados grupos sociais subalternos so os nicos responsveis pelas mazelas pelas
quais passa o Brasil, entendido como nao portadora de alguma magia interna que a
credenciaria para um futuro promissor. Tudo se passa como se o Brasil fosse
essencialmente uma grande nao e o problema fossem grupos internos que atrapalham a
sua plena realizao e consolidao. Desta forma, a crise perde toda sua dimenso
objetiva, ampla e global para adquirir feio politicista, voluntarista e local. Isto significa
dizer que em vez de ser compreendida naquilo que tem de histrica, a crise entendida
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como resultado das aes de grupos determinados. Bom exemplo disso foi a
desvalorizao de R$ 610 bilhes de reais da Petrobrs, em dezembro de 2014, fazendo
com que a empresa passasse a valer menos do que antes do pr-sal, e a resposta miditica
que fala em Petrolo referindo-se investigao da Polcia Federal chamada Lava
Jato que teria movimentado cerca de R$ 10 bilhes. Em suma: o foco deixa de ser a
especulao financeira em torno da fico do pr-sal como parte integrante do
capitalismo-cassino (R. Kurz) e passa a ser a ao de grupos corruptos responsveis pela
derrocada da Petrobrs. Porm, fica a pergunta: como explicar os outros R$ 600 bilhes?
Na vigncia dessa crise sistmica, o mundo aparece cotidianamente como
dominado pelo caos e pela desordem, ameaador portanto. Isto est na base de certo mal-
estar difuso experimentado pelas massas, que no sabem nome-lo porm no podem
esquivar-se da estranha sensao de que as coisas vo muito mal e tendem a piorar. Os
indivduos demandam algum tipo de referencial seguro, estvel, como contrapartida. Uma
das sadas , claramente, o fortalecimento religio como antdoto desordem. Por meio
de uma ordem rgida, os indivduos tentam encontrar um modo de se opor desordem e
ao caos sistmico. O mundo ameaador e instvel passa a ser lido na chave religiosa de
decadncia de valores e sua superao vista a partir do resgate da tradio. No Oriente
Mdio, o anti-semitismo aparece como forma fetichizada de oposio crise (M.
Postone), na medida em que o desenvolvimento global do capital que desestabiliza
naes, regies e a vida das pessoas, atribudo aos Judeus. Isto , o anti-semitismo
uma revolta contra este dinamismo impessoal e destrutivo do capital, entendido, no
entanto, como orquestrado pelos Judeus ou pelo Grande Sat, como o aiatol Khomeini
se referia aos Estados Unidos.
Cumpre destacar que cada regio do globo tem suas formas especficas de
oposio crise sistmica. No contexto europeu, a xenofobia e a rejeio aos imigrantes
assume a feio da crise. Tambm l os efeitos da crise so lidos a partir da
responsabilizao de determinados grupos de pessoas cuja excluso traria de volta o
arranjo social anterior, dos Trente Glorieuses (J. Fourasti), de estabilidade financeira,
crescimento econmico, poltico e social. A extrema direita europeia conseguiu aprovar,
em 2009, por meio de plebiscito com 52% de aprovao, a legalizao da expulso, ao
final do cumprimento da pena, de todos os estrangeiros condenados por crimes como
homicdio, estupro, trfico de drogas, dentre outros. Os imigrantes so acusados de serem
a raiz de todos os problemas. Nesta operao, o sistema sai ileso politicamente.
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Com essa espcie de fetichizao no sentido freudiano, isto , como algo que
literalmente tapa uma realidade que gera sofrimento, substituindo-a pelo fetiche, a
idologia d uma volta no parafuso e conecta-se com o fetiche marxiano, aquele que torna
incognoscvel a dinmica objetiva da mercadoria. A crise sistmica sofre duas aes
fetichistas: a) sua realidade histrica impessoal substituda pela vontade de sujeitos
coletivos que deliberadamente a produzem; e b) com isso, a prpria crtica radical do
capitalismo perde suas prprias bases. A finalidade do fetiche social sempre a de manter
inclume o capitalismo, neste caso em questo a natureza da crise que resta obnubilada.
Seu produto a fantasia social (S. Zizek), isto , a construo de uma sociedade que
exista, que no seja antagonicamente dividida, em que a relao entre suas diferentes
partes seja orgnica e complementar. Sua manobra , em suma, retirar a falha sistmica
do interior de sua dinmica autocontraditria para desloc-la em determinado grupo
social, isto , a negatividade constitutiva do social assume existncia positiva emprica
por meio do fetiche.
aqui que me parece estar o cerne da questo. Este entendimento de que h
algum orquestrando consciente e deliberadamente movimentos sistmicos globais o
ncleo do que estou chamando de politicismo, que a nossa forma brasileira fetichizada
de nos opor a este mundo em caos e desordem. Lembremos do fortalecimento do
conservadorismo, desde pedidos de volta da Ditadura Militar, passando pelo
ressurgimento do Integralismo, at evidentes retrocessos na cena poltica brasileira, como
o dficit nas discusses acerca do aborto, a questo de gnero, a punitiva, dentre outras.
Tudo se passa como se, diante da crise sistmica que provoca caos e desordem, fosse
necessria a ao de resguardar pontos nevrlgicos da ordem em declnio (a famlia, a
priso, a nao etc.) e, para isso, preciso batalhar para pr no comando um grupo poltico
adequado esta misso. Uma vez no comando, tal grupo adequado instauraria a ordem
que solucionaria tal mal-estar difuso experimentado pelos indivduos. Uma poltica bem
feita com polticos ticos e preparados nos salvar da crise, esta a crena fundamental.
Penso que o politicismo a nossa sada fetichista para a crise e a nossa resposta
para o desamparo atual das massas historicamente produzidas na periferia brasileira. Nada
mais natural, portanto, que a crise sistmica seja experimentada aqui no Brasil sob a forma
do colapso da governabilidade petista. O que sistmico e histrico emerge como
nacional e subjetivista, isto , como desvencilhado do movimento mundial e resultado das
aes de grupos determinados. Feita esta operao, a modificao sistmica sai do
horizonte e o que entra em seu lugar a proposta de um choque de gesto.
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Um outro fator a ser notado a agressividade constitutiva deste posicionamento
fetichista. Adjetivos como petralhas, corruptos etc., saram do campo da crtica ao
PT para ampliar-se em direo a todo aquele que de algum modo se localize no espectro
mais esquerda do campo poltico. A agressividade constitutiva destes rtulos no
acidental, mas o prprio modus operandi sem o qual tal oposio fetichista no funciona.
Na medida em que a crise sistmica perde sua objetividade global sistmica, o que resta
em seu lugar somente grupos responsabilizados que devem ser extirpados do campo
social. A validade deste discurso proporcionada no pelo argumento, mas pelo dio,
pela raiva.
Esta agressividade tem ainda uma outra funo. Ela opera como fora de coeso
de uma massa dispersa unida apenas pelo mal-estar constante e inominvel. Isto o que
Freud certa feita chamou de narcisismo das pequenas diferenas, um tipo de mecanismo
psicossocial por meio do qual a agressividade em relao ao grupo antagnico funciona
como princpio coesionador de outro. No contexto perifrico brasileiro, onde
constitutivamente falta o nexo moral2 (C. Prado Jr.), a coeso social apenas se produziu
em meio ao que podemos chamar de ressentimento ao que somos em relao ao que
podemos ser. como se fosse sempre necessrio encontrar culpados internos pela nossa
m formao nacional. Nomear os que representam os obstculos para que o Brasil ainda
no se apresente como grande potncia mundial. Se as massas aqui no Brasil jamais
fizeram uma revoluo clssica nos moldes da Revoluo Francesa, como se ela fosse
incapaz de faz-lo e, assim sendo, as massas somente atrapalham, as minorias, no fundo
majoritrias, so as nomeadas como obstculos: ndios, negros, mulheres, travestis,
transexuais, militantes de esquerda, pobres etc.
Durante os sculos XIX e XX, boa parte da crtica social de esquerda sempre
apostou todas as suas fichas em que o sistema capitalista seria substitudo por uma forma
social superior e isto seria realizado por meio das aes de massas revolucionrias
conscientes de seu papel histrico. No entanto, diante do caos e da desordem produzidos
pela crise sistmica, as massas perifricas no esto prximas deste diagnstico e a
barbrie anuncia a possibilidade de uma forma social mais desigual e destrutiva. A
2 Tomo aquela expresso nexo moral no seu sentido amplo de conjunto de foras de aglutinao, complexo de relaes humanas que mantm ligados e unidos indivduos de uma sociedade e os fundem
num todo coeso e compacto. A sociedade colonial se definir antes pela desagregao, pelas foras
dispersivas; mas elas so em nosso caso as da inrcia; e essa inrcia, embora infecunda, explica
suficientemente a relativa estabilidade da estrutura colonial (Caio Prado Jr., A formao do Brasil Contemporneo, Cia das Letras, 1942/2011, p. 366).
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barbrie tem no s acometido as massas como tambm encontrado nelas ressonncia.
Walter Benjamin afirmou uma vez que apenas em nome dos desesperanados que a
esperana nos dada. O que se pode dizer, talvez, que as massas perifricas nunca foram
adequadas a nenhum sistema social, nem o capitalismo conseguiu integr-las. Ser que a
forma social dessas mltiplas massas perifricas ainda estar porvir?