Desejo e Prazer Gilles Deleuze

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Desejo e prazer Gilles Deleuze espaço michel foucault – www.filoesco.unb.br/foucault 1 Desejo e Prazer Gilles Deleuze DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, oct, 1994, pp. 57-65. A Uma das teses essenciais de Vigiar e Punir 1 dizia respeito aos dispositivos de poder. Ela me parecia essencial sob três aspectos: 1) Em si mesma e em relação a certo esquerdismo, notei a profunda novidade política dessa concepção de poder, por oposição a toda teoria do estado. 2) Em relação a Michel, ela era essencial, pois lhe permitia ultrapassar a dualidade das formações discursivas e das formações não-discursivas, que subsistia em A Arqueologia do Saber, e explicar como os dois tipos de formações se distribuíam ou se articulavam segmento por segmento (sem que um fosse reduzido ao outro, sem que fossem levados a se assemelharem etc.). Não se tratava de suprimir a distinção, mas de encontrar uma razão de suas relações. 3) Ela era também essencial graças a uma conseqüência precisa: os dispositivos de poder não procediam por repressão e nem por ideologia. Havia, portanto, ruptura com uma alternativa que era mais ou menos aceita por todo mundo. Em vez de repressão ou ideologia, VP formava um conceito de normalização e de disciplinas. B Parecia-me que essa tese sobre os dispositivos de poder tinha duas direções, de maneira alguma contraditórias, mas distintas. De qualquer modo, esses dispositivos eram irredutíveis a um aparelho de Estado. Porém, de acordo com uma direção, eles consistiam numa multiplicidade difusa, heterogênea, a dos microdispositivos. De acordo com a outra 1 As referências bibliográficas das obras de Foucault e suas respectivas abreviaturas utilizadas ao longo dessas notas (AS, VP e VS) estão especificadas no final.

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Desejo e Prazer

Gilles Deleuze

DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, oct, 1994, pp. 57-65.

A

Uma das teses essenciais de Vigiar e Punir1 dizia respeito aos dispositivos de poder. Ela me

parecia essencial sob três aspectos:

1) Em si mesma e em relação a certo esquerdismo, notei a profunda novidade política dessa

concepção de poder, por oposição a toda teoria do estado.

2) Em relação a Michel, ela era essencial, pois lhe permitia ultrapassar a dualidade das

formações discursivas e das formações não-discursivas, que subsistia em A Arqueologia do

Saber, e explicar como os dois tipos de formações se distribuíam ou se articulavam

segmento por segmento (sem que um fosse reduzido ao outro, sem que fossem levados a

se assemelharem etc.). Não se tratava de suprimir a distinção, mas de encontrar uma razão

de suas relações.

3) Ela era também essencial graças a uma conseqüência precisa: os dispositivos de poder

não procediam por repressão e nem por ideologia. Havia, portanto, ruptura com uma

alternativa que era mais ou menos aceita por todo mundo. Em vez de repressão ou

ideologia, VP formava um conceito de normalização e de disciplinas.

B

Parecia-me que essa tese sobre os dispositivos de poder tinha duas direções, de maneira

alguma contraditórias, mas distintas. De qualquer modo, esses dispositivos eram

irredutíveis a um aparelho de Estado. Porém, de acordo com uma direção, eles consistiam

numa multiplicidade difusa, heterogênea, a dos microdispositivos. De acordo com a outra

1 As referências bibliográficas das obras de Foucault e suas respectivas abreviaturas utilizadas ao longo dessas notas (AS, VP e VS) estão especificadas no final.

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direção, eles remetiam a um diagrama, a uma espécie de máquina abstrata imanente a todo

o campo social (o panoptismo, por exemplo, definido pela função geral de ver sem ser

visto, aplicável a uma multiplicidade qualquer). Eram como duas direções de microanálise,

igualmente importantes, pois a Segunda mostrava que Michel não se contentava com uma

"disseminação".

C

O livro A vontade de saber dá um novo passo em ralação a VP. O ponto de vista

permanece exatamente este: nem repressão, nem ideologia. Porém, e para dizê-lo em

poucas palavras, os dispositivos de poder não se contentam em ser normalizantes, mas

tendem a ser constituintes (da sexualidade). Eles não se contentam em formar saberes, mas

são constitutivos da verdade (verdade do poder). Já não mais se referem a "categorias",

apesar de tudo negativas (loucura, delinqüência como objeto de confinamento), mas a uma

categoria dita positiva (sexualidade). Este último ponto é confirmado pela entrevista dada a

La Quinzaine Littéraire (FOUCAULT, Michel. Les rapports de pouvoir passent à l'interieur

des corps. La Quinzaine Littéraire, nº 247, p. 4-6, 1-15/jan. 1977. Entrevista com Luccete

Finas). A esse respeito, portanto, creio ter havido na VS um novo avanço na análise. Eis o

perigo: será que Michel retorna a um análogo a um "sujeito constituinte", e por que

experimenta ele a necessidade de ressuscitar a verdade, mesmo fazendo dela um novo

conceito? Penso que essas falsas questões, que não são minhas, serão levantadas enquanto

Michel não tiver explicado mais.

D

Para mim, uma primeira questão era a natureza da microanálise que Michel estabelecia

desde VP. Entre "micro" e "macro", a diferença não era evidentemente de tamanho, no

sentido em que microdispositivos seriam concernentes a pequenos grupos, pois a família,

por exemplo, não tem menos extensão que qualquer outra formação. Trata-se menos ainda

de um dualismo extrínseco, pois há microdispositivos imanentes ao aparelho de Estado,

assim como há segmentos de aparelho de Estado que penetram também os

microdispositivos. Não há dualismo extrínseco, mas imanência completa das duas

dimensões. Seria então preciso compreender que a diferença é de escala? Uma página de

VS (p. 132) recusa explicitamente essa interpretação. Mas essa página parece remeter o

macro ao modelo estratégico e o micro ao modelo tático. Isso incomoda, pois me parece

que os microdispositivos, para Michel, têm toda uma dimensão estratégica, sobretudo se

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leva-se em conta que esse diagrama do qual são eles inseparáveis. Uma outra direção seria a

das "relações de força", vistas como aquilo que determina o micro (cf., notadamente, a

entrevista publicada em La Quinzaine). Mas Michel, creio eu, não desenvolveu ainda esse

ponto; sua concepção original das relações de força, o que ele denomina relação de força,

deve ser um conceito tão novo quanto todo o resto.

Em todo caso, há diferença de natureza, heterogeneidade entre micro e macro, o que de

modo algum exclui a imanência dos dois. Mas, no limite, minha questão seria a seguinte:

essa diferença de natureza permite que se fale ainda em dispositivos de poder? A noção de

Estado não é aplicável no nível de uma microanálise, pois, como diz Michel, não se trata de

miniaturizar o Estado. Mas seria mais aplicável a noção de poder? Não é também ela a

miniaturização de um conceito global?

Chego, assim, a minha primeira diferença com Michel, atualmente. Se com Félix Guattari,

falo em agenciamento de desejo, é por não estar seguro de que os microdispositivos

possam ser descritos em termos de poder. Para mim, agenciamento de desejo marca que o

desejo jamais é uma determinação "natural", nem "espontânea". Por exemplo, a feudalidade

é um agenciamento que põe em jogo novas relações com o animal (o cavalo), com a terra,

com a desterritorialização (a corrida do cavaleiro, a Cruzada), com as mulheres (o amor

cavalheiresco)... etc. Agenciamentos totalmente loucos, mas sempre historicamente

assinaláveis. De minha parte, diria que o desejo circula nesse agenciamento de

heterogêneos, nessa espécie de "simbiose": o desejo une-se a um agenciamento

determinado; há um co-funcionamento. Seguramente, um agenciamento de desejo

comportará dispositivos de poder (poderes feudais, por exemplo), mas será preciso situá-

los entre os diferentes componentes do agenciamento. Conforme um primeiro eixo, pode-

se descobrir nos agenciamentos de desejo os estados de coisas e as enunciações (o que

estaria em conformidade com a distinção feita por Michel dos dois tipos de formações ou

de multiplicidades). Conforme um outro eixo, seriam distinguidas as territorialidades ou

reterritorializações e os movimentos de desterritorialização que desencadeiam um

agenciamento (por exemplo, todos os movimentos de desterritorialização que arrebatam a

Igreja, a cavalaria, os camponeses). Os dispositivos de poder surgiriam em toda parte em

que se operam reterritorializações, mesmo abstratas. Logo, os dispositivos de poder seriam

um componente dos agenciamentos. Mas os agenciamentos também comportariam pontas

de desterritorialização. Em suma, não seriam os dispositivos de poder que agenciariam ou

que seriam constituintes, mas os agenciamentos de desejo é que disseminariam formações

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de poder segundo uma de suas dimensões. Isso me permitiriam responder a seguinte

questão, necessária para mim, mas não para Michel: como o poder pode ser desejado?

Portanto, a primeira diferença seria esta: para mim o poder é uma afecção do desejo

(reafirmando-se que jamais o desejo é uma "realidade natural"). Tudo isso é muito

aproximativo: há relações mais complicadas, que não aponto, entre os dois movimentos, de

desterritorialização e de reterritorialização. Mas é nesse sentido que o desejo me pareceria

ser primeiro, apresentando-se, assim, como elemento de uma microanálise.

E

Não deixo de seguir Michel num ponto que me parece fundamental: nem ideologia, nem

repressão; por exemplo, os enunciados, ou, sobretudo as enunciações, nada têm a ver com

ideologia. Os agenciamentos de desejo nada têm a ver com repressão. Mas, evidentemente,

em relação aos nossos dispositivos de poder, não tenho a mesma firmeza de Michel; fico

indeciso, visto o estatuto ambíguo que eles apresentam para mim. Em VP, Michel diz que

eles normalizam e disciplinam, eu diria que eles codificam e reterritorializam (e suponho

que haja ai algo mais que uma distinção de palavras). Mas, visto que afirmo o primado do

desejo sobre o poder, ou o caráter secundário que tomam para mim os dispositivos de

poder, as operações destes guardam um efeito repressivo, pois esmagam não o desejo

como dado natural, mas as pontas dos agenciamentos do desejo. Tomo uma das teses mais

belas da VS: o dispositivo da sexualidade assenta a sexualidade sobre o sexo (sobre a

diferença de sexos... etc.; e a psicanálise está inteiramente à vontade na tentativa desse

rebatimento). Vejo ai um efeito de repressão, precisamente na fronteira do micro e do

macro: a sexualidade – como agenciamento de desejo historicamente variável e

determinável, com suas pontas de desterritorialização, de fluxo e de combinações – será

assentada sobre uma instancia molar, "o sexo". Mesmo que os procedimentos desse

rebatimento não sejam repressivos, o efeito (não ideológico) é repressivo, uma vez que os

agenciamentos são rompidos não só em suas potencialidades, mas em sua microrrealidade.

Desse modo, os agenciamentos só podem existir como fantasmas, que os mudam ou os

desviam completamente, ou como coisas vergonhosas... etc. Eis um pequeno problema que

muito me interessa: por que certos "perturbados", ao contrário do enuréxico e do

anoréxico, por exemplo, são mais passíveis e até mesmo dependentes da vergonha? Tenho

pois, necessidade de certo conceito de repressão sobre uma espontaneidade, mas porque,

tendo os agenciamentos coletivos muitas dimensões, os dispositivos de poder seriam

somente uma delas.

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F

Eis outro ponto fundamental: creio que a tese "nem repressão – nem ideologia" tem um

correlato, e talvez ela própria dependa desse correlato. Um campo social não se define por

suas contradições. A noção de contradição é global, inadequada, e que já implica

cumplicidade dos "contraditórios" nos dispositivos de poder (por exemplo, as duas classes,

a burguesia e o proletariado). Com efeito, parece-me que uma grande novidade da teoria do

poder, em Michel, seria ainda a seguinte: uma sociedade não se contradiz, ou se contradiz

muito pouco. Mais eis sua resposta: ela se estrategiza, ela estrategiza. Acho isso muito bom;

vejo bem a imensa diferença (estratégia - contradição), e eu precisaria ler Clausewitz sob

esse aspecto. Não me sinto à vontade nessa idéia.

De minha parte, diria o seguinte: uma sociedade, um campo social não se contradiz, mas

ele foge, e isto é primeiro. Ele foge de antemão por todos os lados; as linhas de fuga é que

são primeiras (mesmo que primeiro não seja cronológico). Longe de estar fora do campo

social ou dele sair, as linhas de fuga constituem seu rizoma ou cartografia. As linhas de fuga

são quase a mesma coisa que os movimentos de desterritorialização: elas não implicam

qualquer retorno à natureza; elas são as pontas de desterritorialização nos agenciamentos de

desejo. O que é primeiro na feudalidade são as linhas de fuga que ela supõe; o mesmo pode

ser dito dos séc. X-XIII; da formação do capitalismo. As linhas de fuga não são

forçosamente "revolucionárias", podendo ocorrer o contrário disso, mas são elas que os

dispositivos de poder vão colmatar, vão atar. Por exemplo, todas as linhas de

desterritorialização que se precipitam em torno do século XI: as últimas invasões, os

bandos de pilhagem, a desterritorialização da Igreja, as emigrações camponesas, a

transformação da cavalaria, a transformação das cidades, que abandonam cada vez mais os

modelos territoriais, a transformação da moeda, que se injeta em novos circuitos, a

mudança da condição feminina com temas do amor cortês, que desterritorializam até

mesmo o amor cavalheiresco... etc. A estratégia só poderá ser Segunda em relação às linhas

de fuga, às suas conjugações, às suas orientações, suas convergências e divergências.

Encontro também aí o primado do desejo, pois o desejo está precisamente nas linhas de

fuga, na conjugação e dissociação de fluxo. O desejo se confunde com elas.

Parece-me, então, que Michel encontra um problema que não tem o mesmo estatuto para

mim. Com efeito, se os dispositivos de poder são de alguma maneira constituintes, só pode

haver contra eles fenômenos de "resistência", e a questão incide sobre o estatuto desses

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fenômenos. Sem dúvida, eles serão menos ainda ideológicos e anti-repressivos. Daí a

importância das duas páginas de VS, nas quais Michel afirma: que não me façam dizer que

esses fenômenos sejam um engodo... mas, qual estatuto vai lhes dar ele? Há várias direções

aqui: 1) aquela da VS (p. 126-7), na qual fenômenos de resistência seriam como uma

imagem invertida dos dispositivos; teriam eles as mesmas características, difusão,

heterogeneidade... etc.; eles estariam “frente a frente”. Mas essa direção parece-me bloquear

as saídas tanto quanto encontrar uma. 2) A direção apontada na entrevista relativa à função

política do intelectual: se os dispositivos de poder são constitutivos de verdade, se há uma

verdade do poder, deve haver aí, como contra estratégias, uma espécie de poder da verdade

contra os poderes. Donde, em Michel, o problema do papel do intelectual, donde sua

maneira de reintroduzir a categoria de verdade, o que me leva a perguntar o seguinte:

renovando completamente essa categoria, ao faze-la depender do poder, ele encontrará

nessa renovação uma matéria retornável contra o poder? Mas aqui não vejo como. É

preciso esperar que Michel, no nível da microanálise, diga essa nova concepção de verdade.

3) A terceira direção é a dos prazeres, do corpo e seus prazeres. Também aqui, mesma a

expectativa para mim: como os prazeres animam contrapoderes, e como ele concebe essa

noção de prazer?

Certos problemas que se colocam para mim não se colocam para Michel, porque eles são

de antemão resolvidos pelas pesquisas que são próprias dele. Inversamente, para encorajar-

me, digo-me que outros problemas não se colocam para mim e se colocam para ele por

necessidade de suas teses e sentimentos. As linhas de fuga, os movimentos de

desterritorialização, como determinações coletivas históricas, não me parecem ter

equivalente em Michel. Para mim, não há o problema de um estatuto dos fenômenos de

resistência: já que as linhas de fuga são determinações primeiras, já que o desejo agencia o

campo social, são, sobretudo os dispositivos de poder que se acham produzidos por esses

agenciamentos, ao mesmo tempo em que esmagam ou os colmatam. Compartilho do

horror de Michel por aqueles que se dizem marginais: acho cada vez menos suportável o

romantismo da loucura, da delinqüência, da perversão, da droga. Mas para mim, não são

criadas pelos marginais as linhas de fuga, isto é, os agenciamentos de desejo. Ao contrário,

elas são linhas objetivas que atravessam uma sociedade, na qual os marginais instalam-se

aqui ou ali para fazer um círculo, um circuito, uma recodificação. Não tenho, pois, a

necessidade de um estatuto dos fenômenos de resistência, uma vez que o primeiro dado de

uma sociedade é que nela tudo foge, tudo se desterritorializa. Daí porque o estatuto do

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intelectual e o problema político não serem os mesmos para Michel e para mim. Tentarei

dizer ainda agora como vejo essa diferença.

G

Na última vez que nos vimos, Michel, como muita gentileza e afeição, disse-me mais ou

menos o seguinte: não posso suportar a palavra desejo, mesmo que você a empregue de

outro modo, não posso impedir-me de pensar ou de viver que desejo = falta, ou que desejo

se diz reprimido. Michel acrescentou: então, para mim o que chamo de “prazer” talvez seja

o que você denomina “desejo” de qualquer modo, tenho a necessidade de outra palavra

que não desejo.

Evidentemente, mais uma vez, trata-se de outra coisa e não de uma questão de palavra,

embora, de minha parte, suporte muito pouco a palavra “prazer”. Mas por quê? Para mim,

desejo não comporta qualquer falta. Ele não é um dado natural. Está constantemente unido

a um agenciamento que funciona. Em vez de ser estrutura ou gênese, ele é, contrariamente,

processo. Em vez de ser sentimento, ele é, contrariamente, afeto. Em vez de ser

subjetividade, ele é, contrariamente “hecceidade” (individualidade de uma jornada, de uma

estação, de uma vida). Em vez de ser coisa ou pessoa, ele é contrariamente, acontecimento.

O desejo implica, sobretudo a constituição de um campo de imanência ou de um “corpo

sem órgãos”, que se define somente por zonas de intensidade, de limiares, de gradientes, de

fluxos. Esse corpo é tanto biológico quanto coletivo e político; é sobre ele que os

agenciamentos se fazem e se desfazem; é ele o portador das pontas de desterritorialização

dos agenciamentos ou linhas de fuga. O corpo sem órgãos varia (o da feudalidade não é o

mesmo do capitalismo). Se o denomino corpo sem órgãos, é porque ele se opõe a todos os

estratos de organização, tanto aos da organização do organismo quanto aos das

organizações de poder. São precisamente as organizações do corpo, em seu conjunto, que

quebrarão o plano da imanência e imporão ao desejo um outro tipo de “plano”,

estratificando a cada vez o corpo sem órgãos.

Se digo tudo isso de maneira tão confusa, é porque vários problemas colocam-se para mim

em relação a Michel: 1) Não posso dar ao prazer qualquer valor positivo, porque o prazer

parece-me interromper o processo imanente do desejo; o prazer parece-me estar do lado

dos estratos e da organização; é no mesmo movimento que o desejo é apresentado como

submetido de dentro à lei e escandido de fora pelos prazeres; nos dois casos, há negação de

um campo de imanência próprio do desejo. Digo a mim mesmo que não é por acaso que

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Michel atribui certa importância a Sade, e eu, ao contrário, a Masoch. Não seria suficiente

dizer que sou masoquista e que Michel é sádico. Poderia ser conveniente dizer isso, mas

não verdadeiro. O que me interessa em Masoch não são as dores, mas a idéia de que o

prazer vem interromper a positividade do desejo e a constituição de seu campo de

imanência; assim também, mas de outro modo, há no amor cortês a constituição de um

plano de imanência ou de um corpo sem órgãos, no qual o desejo, que de nada carece,

resguarda-se tanto quanto possível de prazeres que viriam interromper seu processo.

Parece-me que o prazer é o único meio para uma pessoa ou sujeito "reencontrar-se" num

processo que o transborda. É uma reterritorialização. Do meu ponto de vista, é da mesma

maneira que o desejo é relacionado à lei da falta e à norma do prazer.

2) Em compensação, é essencial a idéia de Michel segundo a qual os dispositivos de poder

têm com o corpo uma relação imediata e direta. Mas, para mim, ela é essencial se se

considera que esses dispositivos impõem uma organização aos corpos. O corpo sem órgãos

está ligado ao agente de desterritorialização (e, por ai, ao plano de imanência do desejo), ao

passo que todas as organizações, todo o sistema daquilo que Michel chama de "biopoder",

opera reterritorializações do corpo.

3) Poderia eu pensar em equivalências do tipo: o que para mim é o "corpo sem órgãos -

desejos" corresponde ao que, para Michel, é "corpo - prazeres"? Posso relacionar a

distinção "corpo-carne", da qual falava Michel, com a distinção "corpo sem órgãos -

organismo"? Há uma página muito importante em VS (p.190) sobre a vida apresentada

como o dá um estatuto possível às forças de resistência. Essa vida, para mim, aquela

mesma de que fala Lawrence, de modo alguém é a Natureza; ela é justamente o plano de

imanência do desejo, plano variável através de todos os agenciamentos determinados.

Relaciono a concepção de desejo em Lawrence com as linhas de forças positivas. (Pequeno

detalhe: a maneira pela qual, no final de VS, Michel se serve de Lawrence é oposta à

maneira pela qual, eu me sirvo deste).

H

Será que Michel avançou no problema que nos ocupava, qual seja, o de manter os direitos

de uma microanálise (difusão, heterogeneidade, caráter parcelar) e, todavia, encontrar uma

espécie de princípio de unificação que não seja do tipo “Estado”, “partido”, totalização,

representação?

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Primeiramente, do lado do próprio poder, retorno às duas direções de VP: de um lado,

caráter difuso e parcelar dos microdispositivos, mas, de outro lado, também diagrama ou

máquina abstrata cobrindo o conjunto do campo social. Parece-me que a relação entre

essas duas instâncias da microanálise permanecia como um problema em VP. Creio que a

questão muda um pouco em VS: aqui, as duas direções da microanálise serão, sobretudo as

microdisciplinas, de um lado e, de outro, os processos biopolíticos (pp 183 e ss.). Foi o que

eu quis dizer no item C destas notas. Ora, o ponto de vista de VP sugeria que o diagrama,

irredutível à instância global do Estado, operava talvez uma microunificação dos pequenos

dispositivos. Será preciso compreender agora que os processos biopolíticos é que terão essa

função? Confesso que a noção de diagrama me parecia muito rica: será que Michel a

reencontrará nesse novo terreno?

Mas do lado das linhas de resistência, ou daquilo que denomino linhas de fuga, como

conceber as relações ou as conjugações, as conjunções, os processos de unificação? Eu

diria que o campo de imanência do coletivo, onde em dado momento se fazem os

agenciamentos e onde eles traçam suas linhas de fuga, é também um verdadeiro diagrama.

É preciso, então, encontrar o agenciamento complexo capaz de efetuar esse diagrama,

operando a conjunção das linhas e das pontas de desterritorialização. É nesse sentido que

eu falava de uma máquina de guerra totalmente diferente do aparelho de Estado e das

instituições militares como também dos dispositivos de poder. De um lado, portanto,

teríamos Estado-diagrama do poder, sendo o Estado o aparelho molar que efetua os

microdados do diagrama entendido como plano de organização; de outra parte, teríamos

máquina de guerra-diagrama das linhas de fuga, sendo a máquina de guerra o agenciamento

que efetua os microdados do diagrama entendido como plano de imanência. Paro neste

ponto porque isso colocaria em jogo dois tipos de planos muito diferentes, uma espécie de

plano transcendental de organização contra o plano imanente dos agenciamentos, e porque

tornaríamos a cair nos problemas precedentes. E aqui já não sei como situar-me em relação

às pesquisas atuais de Michel.

(Adição: o que me interessa nos dois estados opostos do plano ou do diagrama é seu

confronto histórico sob formas muito diversas: num caso, tem-se um plano de organização

e de desenvolvimento que é oculto por natureza, mas que dá a ver tudo o que é visível; no

outro, tem-se um plano de imanência, onde há tão-somente velocidades e lentidões, não-

desenvolvimento, e onde tudo é visto, ouvido... etc. O primeiro plano não se confunde

com o Estado, mas está ligado a este; o segundo, ao contrário, está ligado a uma máquina

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de guerra, a um devaneio de máquina de guerra. No nível da natureza, por exemplo, Cuvier

e também Goethe concebem o primeiro plano; Hölderlin, em Hypérion, e mais ainda,

Kleist concebem o segundo tipo. De pronto, dois tipos de intelectuais, e convém comparar

o que Michel diz a esse respeito com o que ele próprio diz sobre a posição do intelectual.

Ou então, em música, onde se confrontam as duas concepções do plano sonoro. Pergunto

se o liame poder-saber, tal como Michel o analisa, poderia ser assim exemplificado: os

poderes implicam um plano-diagrama do primeiro tipo [por exemplo, a cidade grega e a

geometria euclidiana]; mas, inversamente, do lado dos contrapoderes e mais ou menos em

relação com máquinas de guerra, há o outro tipo de plano, espécie de saberes “menores” [a

geometria arquimediana, ou a geometria das catedrais, que será contrabatida pelo Estado].

Todo um saber apropriado a linhas de resistência e que não tem a mesa forma do outro

saber?)

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel (1969). L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard. (AS)

_____ (1975). Surveiller et punir – naissance de la prison. Paris: Gallimard (VP)

_____ (1976a). La volonté de savoir. Paris: Gallimard (VS)

_____ (1976b). La fonction politique de l’inctellectuel. Politique Hebdo, 29 de novembro – 5 de

dezembro.

_____ (1977). Les rapports de pouvoir passent à l’interieur des corps. (entrevista com Lucette

Finas). La Quinzaine Littéraire, n. 247: 4-6, 1-15 jan.