Deus jung

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1 DEUS IMAGO DEI JUNG Ercilia Simone Dalvio Magaldi Poucos indivíduos buscaram tanto a Deus, ou a sua compreensão, como Carl Gustav Jung. Ele usou mais de 6.000 vezes a palavra Deus em seus escritos e, principalmente, nos últimos dez anos de sua vida usou 166 vezes o termo Imago Dei, Imagem de Deus ou Deus-imagem. Suas principais referências a Deus pertencem a Resposta a Jô, mais de 550 referências a Deus e Javé; Mysterium Coniunctionis mais de 400 vezes; Aion mais de 300 vezes, no Zaratustra de Nietzsche mais de 1.000 vezes, Psicologia e Religião mais de 200 vezes e em Memórias Sonhos e Reflexões mais de 300 . Seu interesse fixava-se menos no Deus transcendente e Criador do que no Deus imanente e interior, realidade psíquica: “É apenas através da psique que podemos estabelecer que Deus age sobre nós” 1 . Jung detectava a existência de um Arquétipo de Completude no Inconsciente Coletivo, ocupando uma posição central e ordenadora que o aproximava do Deus-imagem. Esse também é o Arquétipo da Unidade “O processo de individuação,(...)subordina o múltiplo ao Uno. O Uno porém é Deus, ao qual, em nós, corresponde a imago Dei, a imagem de Deus” 2 . Desde os primórdios da Filosofia, em Orfeu e Pitágoras, a idéia do Uno esteve presente, e seu apogeu deu-se com Plotino no início da era Cristã, quando foi substituído pelo Arquétipo do Cristo. Mas o que é imago? “As imagos são conseqüência da experiência pessoal, combinada com imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. Como tudo o que é inconsciente, elas são experimentadas em projeção. ´Quanto mais limitado for o campo de consciência de uma pessoa, tanto mais numerosos serão os conteúdos psíquicos (imagos) que lhe ocorrem como aparições quase-externas, seja sob forma de espíritos, seja como potências mágicas projetadas sobre pessoas vivas (mágicos, feiticeiras,, etc.)” 3 . Para Jung a imagem contém e amplifica o símbolo, e “é sempre uma expressão da totalidade percebida e percebível, apreendida e apreensível, pelo indivíduo.” 4 . Ainda neste Dicionário temos: “Jung diz sobre a imagem: Ela, sem dúvida realmente expressa conteúdos inconscientes, mas não o todo deles, apenas aqueles que estão momentaneamente constelados. Essa 1 Resposta a Jô. P.106. 2 Os Arquétipos e o Inc.Coletivo. P. 626. 3 Daryl SHARP. Léxico junguiano. 4 In. Dic. Crítico de Análise Junguiana.

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DEUS – IMAGO DEI – JUNG Ercilia Simone Dalvio Magaldi

Poucos indivíduos buscaram tanto a Deus, ou a sua compreensão, como Carl Gustav Jung. Ele usou mais de 6.000 vezes a palavra Deus em seus escritos e, principalmente, nos últimos dez anos de sua vida usou 166 vezes o termo Imago Dei, Imagem de Deus ou Deus-imagem. Suas principais referências a Deus pertencem a Resposta a Jô, mais de 550 referências a Deus e Javé; Mysterium Coniunctionis mais de 400 vezes; Aion mais de 300 vezes, no Zaratustra de Nietzsche mais de 1.000 vezes, Psicologia e Religião mais de 200 vezes e em Memórias Sonhos e Reflexões mais de 300 . Seu interesse fixava-se menos no Deus transcendente e Criador do que no Deus imanente e interior, realidade psíquica: “É apenas através da psique que podemos estabelecer que Deus age sobre nós”1. Jung detectava a existência de um Arquétipo de Completude no Inconsciente Coletivo, ocupando uma posição central e ordenadora que o aproximava do Deus-imagem. Esse também é o Arquétipo da Unidade “O processo de individuação,(...)subordina o múltiplo ao Uno. O Uno porém é Deus, ao qual, em nós, corresponde a imago Dei, a imagem de Deus”2. Desde os primórdios da Filosofia, em Orfeu e Pitágoras, a idéia do Uno esteve presente, e seu apogeu deu-se com Plotino no início da era Cristã, quando foi substituído pelo Arquétipo do Cristo. Mas o que é imago? “As imagos são conseqüência da experiência pessoal, combinada com imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. Como tudo o que é inconsciente, elas são experimentadas em projeção. ´Quanto mais limitado for o campo de consciência de uma pessoa, tanto mais numerosos serão os conteúdos psíquicos (imagos) que lhe ocorrem como aparições quase-externas, seja sob forma de espíritos, seja como potências mágicas projetadas sobre pessoas vivas (mágicos, feiticeiras,, etc.)”3. Para Jung a imagem contém e amplifica o símbolo, e “é sempre uma expressão da totalidade percebida e percebível, apreendida e apreensível, pelo indivíduo.”4. Ainda neste Dicionário temos: “Jung diz sobre a imagem: Ela, sem dúvida realmente expressa conteúdos inconscientes, mas não o todo deles, apenas aqueles que estão momentaneamente constelados. Essa

1 Resposta a Jô. P.106.

2 Os Arquétipos e o Inc.Coletivo. P. 626.

3 Daryl SHARP. Léxico junguiano.

4 In. Dic. Crítico de Análise Junguiana.

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constelação é o resultado da atividade espontânea do INCONSCIENTE, por um lado, e da momentânea situação consciente, pelo outro...A INTERPRETAÇÃO de seu significado, portanto, não pode partir nem do consciente exclusivamente nem do inconsciente exclusivamente, mas somente do relacionamento recíproco destes.” E como podemos compreender imago Dei ou imagem de Deus? “Em termos psicológicos, Jung postulava a realidade de uma imagem de Deus como um SÍMBOLO unificador e transcendente capaz de reunir fragmentos psíquicos heterogêneos ou unir OPOSTOS polarizados. Como qualquer IMAGEM, é um produto psíquico distinto do objeto que ela tenta representar e para o qual aponta. A imagem de Deus aponta para uma realidade que transcende a CONSCIÊNCIA, é extraordinariamente numinosa, obriga à atenção, atrai ENERGIA e é análoga a uma idéia que, de forma semelhante, se impôs à humanidade em todas as partes do mundo e em todas as eras. Como tal, é uma imagem de totalidade e ´como o valor máximo e dominante supremo na hierarquia psíquica, a imagem de Deus está imediatamente relacionada com o SELF ou é idêntica a ele`. Entretanto, sendo uma imagem de totalidade, a imagem de Deus possui dois lados: um BOM, o outro, MAL.

Esclarecendo e diferenciando Deus e a imagem de Deus, Jung escreveu: ´É por causa da constante indiscriminação entre objeto e imago que as pessoas não conseguem fazer uma distinção conceitual entre Deus e imagem de Deus, e portanto pensam que, quando se fala imagem de Deus, está-se falando de Deus e apresentando explicações teológicas. Não cabe à psicologia, como uma ciência, exigir uma hipostatização da imagem de Deus. Porém, sendo os fatos como são, tem de contar com a existência de uma imagem de Deus...a imagem de Deus corresponde a um COMPLEXO definido de fatos psicológicos, sendo, assim, uma quantidade com que podemos operar; mas o que Deus é em si mesmo permanece uma questão fora da competência de toda psicologia`(CW 8. p.528). Do ponto de vista psicoterapêutico, a imagem de Deus funciona como uma igreja interior, por assim dizer; como um continente psíquico, um quadro de referência, um sistema de valores e árbitro moral. Jung aceitava como uma imagem de Deus tudo quanto um indivíduo alegava experimentar como Deus, aquilo que representava o valor máximo para uma pessoa, quer expresso consciente quer inconsciente, e motivos religiosos típicos que

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recorriam periodicamente na história das idéias, dogma, MITO, RITUAL, e arte.”5. Quanto ao Deus criador e transcendente a psicologia, portanto, se cala, mas quanto a existência de um Deus imanente, interior, a psique nos dá provas de que existe e é o núcleo de maior importância ao mesmo tempo que se refere a totalidade psíquica. Assim como o SELF, assim como um dos símbolos de sua representação a MANDALA: “Apesar de a mandala ser apenas um símbolo do si-mesmo como totalidade psíquica, é ao mesmo tempo uma imagem de Deus, uma imago dei, porquanto o ponto central, o círculo e a quaternidade são símbolos há muito conhecidos de Deus. Da indiferenciação empírica do ´si-mesmo` e ´Deus` resulta na teosofia indiana a identidade do Purusha-Atmã pessoal e suprapessoal. Na literatura eclesiástica e alquímica cita-se frequentemente a seguinte frase: Deus é uma esfera infinita (ou círculo), cujo ponto central está em toda parte, sua periferia porém em parte alguma.”6. As experiências de Jung levaram-no a constatar que Deus é um a priori da consciência e não sua invenção. A existência de um Deus-imagem na psique corresponde a um complexo definido de fatos psicológicos, há um arquétipo de completude nas profundezas do inconsciente coletivo: “Ele interpretou como provável que esse arquétipo seja baseado no INSTINTO ESPIRITUAL, que ocupa uma posição central e ´o aproxima do Deus-imagem”7. Deus existe? “Jung empreendeu extensas alterações e aperfeiçoamentos, incluindo mudanças na fraseologia da existência de Deus, escrevendo que o intelecto humano pode nunca resolver a questão e que a existência física de Deus é uma questão irrespondível. Ele declarou que provas são supérfluas, pois em toda parte está presente a idéia de um ser divino todo-poderoso, inconscientemente e não conscientemente, porque é um arquétipo, uma imagem primordial, como um modo inato de funcionamento psíquico. Jung enfatizou que suas observações psicológicas não eram prova da existência de Deus, mas provavam apenas a existência de um ´Deus-imagem` arquetípico, com a qualidade de numinoso ou espírito imponente”8. Para Jung, no entanto, Deus era real, ele sabia, como uma certeza que transcende a lógica formal da racionalidade que Deus era uma presença incontestável na sua vida e que muitas vezes

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6 Os Arquétipos e o Inc. Coletivo. P. 572.

7 Ronald R. DYER, Ph.D. Pensamentos de Jung sobre Deus. P. 14.

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agiu em seu lugar. Ele experienciara Deus de maneira muito direta e profunda, o que lhe dava uma convicção inabalável de que Deus era uma realidade nele próprio e em toda parte. E que essa realidade era divina, numinosa, apresentava-se como o totalmente outro, embora infinitamente presente em si-mesmo. Para a psicologia Deus é um complexo autônomo, para a psique uma realidade. O círculo e a tetraktys são os símbolos mais representativos de Deus. Embora muitas vezes se refiram ao quatérnio, a representação de Deus se dá quando o 4 se encontra em lugar sagrado ou se refere a mana. Em um seminário sobre Nietzsche, de 1936, Jung afirmou que “Deus nunca foi inventado”, e em Psicologia e Religião “não criamos Deus, nós o escolhemos”, portanto Deus é psicologicamente real . Quando Jung fala de Deus ou Javé ele está se referindo ao Deus-imagem dentro da psique humana. Deus é uma coincidência oppositorum (coincidência de opostos) e nele encontramos o Amor e o Temor, há o risco de essas coincidências serem extremadas e aí encontraremos a esquizofrenia do devoto que vivenciando esse conflito acaba por sucumbir. Como os homens-bombas muçulmanos, que cultuam um Deus sem medida, sem equilíbrio. Não era diferente o Deus de Jô e também o Deus do Apocalipse de João que apresenta esse caráter dúbio de Deus: “Um mar de graça encontra-se com um fervente lago de fogo”. Essa natureza paradoxal, no entender de Jung em Resposta a Jó, tem um efeito sobre os seres humanos, como um conflito aparentemente insolúvel. Neste livro, devemos entender a evolução de Javé através do confronto inconsciente com a consciência de Jô, devido a essa inconsciência de Javé é que ele não podia dispor de uma moralidade (ingrediente da persona). A Deus se ama e se teme. Para Jung a plenitude da vida se encontrava na relação com o Sagrado, em Cartas Vol II ele diz a uma ministra protestante: “Compartilho inteiramente de sua opinião de que o homem vive inteiramente quando, e apenas quando, ele se relaciona com Deus, com aquele que dirige seus passos e determina seu destino”. No entanto, vemos o conflito de Jung com a figura do Deus-Pai do Novo Testamento quando escreve em A Vida Simbólica sobre a atitude irascível e vingativa do Pai, quando esse exige o cruel sacrifício da morte de Jesus: “Eu não permitiria que meu filho fosse assassinado para me reconciliar com meus filhos desobedientes”. No final de Resposta a Jó, Jung diz: “É apenas através da psique que podemos estabelecer que Deus age sobre nós, mas

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somos incapazes de distinguir que essas ações emanam de Deus ou do inconsciente. Não podemos dizer se Deus e o inconsciente são duas entidades diferentes. Ambos são conceitos fronteiriços para conteúdos transcendentais . Mas empiricamente pode ser estabelecido, com um grau suficiente de probabilidade, que há no inconsciente um arquétipo de completude que se manifesta espontaneamente através de sonhos, etc., e uma tendência, independente da vontade consciente, para relacionar outros arquétipos a esse centro”. Porém, não devemos confundir o inconsciente com a própria imago-Dei, porque o próprio Jung acrescenta: “o Deus-imagem não coincide com o inconsciente tal e qual, mas com um seu conteúdo especial: o arquétipo do Self”. Portanto, é o arquétipo do Self que não pode ser distinguido da Imago-Dei. Daí ser o processo de individuação o encontro do ego com o Self ou com a Imago-Dei. Bem, creio que este passeio acerca da imago-Dei foi suficiente para esclarecer essa idéia. No entanto, como pretender atingir a Deus e vivenciar a mais sublime e terrível polaridade: eu e o Totalmente Outro, mortalidade/imortalidade, imanência/transcendência, etc., como realizar o casamento sagrado se nem o casamento profano conseguimos aproximar do sagrado? Para isso termino transcrevendo os parágrafos 232/233/234 de Civilização em Transição uma das mais belas e esclarecedoras obras de Jung, espero que estas palavras vos ajudem a encontrar o rumo do vosso Significado:

O amor tem mais do que um ponto em comum com a convicção religiosa: exige uma aceitação incondicional e uma entrega total. Assim como o fiel que se entrega a seu Deus participa da manifestação da graça divina, também o amor só revela seus mais altos segredos e maravilhas àquele que é capaz de entrega total e de fidelidade ao sentimento. Pelo fato de isto ser muito difícil, poucos mortais podem orgulhar-se de tê-lo conseguido. Mas, por ser o amor devotado e fiel o mais belo, nunca se deveria procurar o que pode torná-lo fácil. Alguém que se apavora e recua diante da dificuldade do amor é péssimo cavaleiro de sua amada. O amor é como Deus: ambos só se revelam aos seus mais bravos cavaleiros. Da mesma forma critico o casamento experimental. O simples fato de assumir um casamento experimental significa que existe de antemão uma reserva: a pessoa quer certificar-se, não quer queimar a mão, não quer arriscar nada. Mas com isto se impede a realização de uma verdadeira experiência. Não é possível sentir os terrores do gelo polar na simples

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leitura de um livro, nem se escala o Himalaia assistindo a um filme. O amor custa caro e nunca deveríamos tentar torná-lo barato. Nossas más qualidades, nosso egoísmo, nossa covardia, nossa esperteza mundana, nossa ambição, tudo isso quer persuadir-nos a não levar a sério o amor. Mas o amor só nos recompensará se o levarmos a sério. Considero um desacerto falarmos nos dias de hoje da problemática sexual sem vinculá-la ao amor. As duas questões nunca deveriam ser separadas, pois se existe algo como problemática sexual esta só pode ser resolvida pelo amor. Qualquer outra solução seria um substituto prejudicial. A sexualidade simplesmente experimentada como sexualidade é animalesca. Mas como expressão do amor é santificada. Por isso não perguntamos o que alguém faz, mas como o faz. Se o faz por amor e no espírito do amor, então serve a um Deus; e o que quer que faça não cabe a nós julgá-lo pois está enobrecido