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VIAGEM A UMA ROMANIDADE INTEMPORAL “Um Deus passeando pela brisa da tarde” Mário de Carvalho Caminho, 11ª Edição, 2005, 327 páginas, 16,80€ É na fantástica escrita de Mário de Carvalho que nos perdemos, para no Império Romano nos encontrarmos. Numa compilação incrível de palavras, que se entrelaçam entre si como se tivessem nascido para estarem juntas, Mário de Carvalho desenha-nos um retrato fiel da vida numa cidade da Lusitânia à época do Imperador romano Marco Aurélio, ainda que, diga o autor, “Tarcisis, ou, mais propriamente, o município de Fortunata Ara Túlia Tarcisis, nunca [tenha existido]”. Baseada num retroceder do tempo, numa analepse que esconde uma tentativa de apaziguar o seu espírito atormentado, amparada a verdade em memórias alimentadas pela imaginação que lhe solta a escrita, a história é-nos narrada por Lúcio Valério Quíncio, antigo magistrado, ou duúnviro, de uma Tarcisis imaginária mas tão igual às cidades que, nas aulas de História, aprendemos a identificar como as típicas polis romanas, tal é a exactidão com que são reconstituídas as características culturais, políticas e quotidianas do Império. Estas recordações de Lúcio Valério não pecam em pormenores que, à primeira vista até demasiados, enriquecem a obra de uma forma única e brilhante: Descrições minuciosas de paisagens, acontecimentos e personagens levam o leitor a percepcionar na perfeição os contornos de uma realidade que não é sua mas que passa a ser sentida quase como familiar. Ao longo de 327 páginas, Mário de Carvalho conduz-nos então, pela voz de Lúcio Valério, aos confins de uma sociedade de classes os senhores e os seus escravos, mencionados vezes sem conta e assumindo até por vezes um protagonismo inesperado e ao funcionamento diário de uma cidade minada pela corrupção (ou desleixo) dos decênviros, uma espécie de coadjuvantes do duúnviro, e pelo súbito aparecimento de uma nova seita aqueles que se apelidavam de cristãos e deixavam a marca do peixe como símbolo intemporal das suas crenças que muitos tumultos entre o povo provocou. Tamanha é a pormenorização destes relatos, que viajam de discussões a suicídios, passando por momentos de ternura entre Lúcio e a sua dedicada mulher Mara, que quase nos esquecemos daquilo que assume contornos de centralismo na história: a permanente ameaça da invasão bárbara esperada há muito na descrença e subitamente sentida como real. É neste ambiente explosivo que Lúcio tenta equilibrar, na sua qualidade de governante máximo da cidade, a construção de uma muralha que proteja o seu povo dos mouros e os interesses de uma classe que, considerando-se privilegiada, não abdica das suas regalias em prol da defesa da cidade; ao mesmo tempo que procurará controlar, em acesos diálogos com Iunia, jovem por quem secretamente se apaixona, filha do seu velho amigo Máximo Cantaber e seduzida por um estrangeiro, Mílquion, aos encantos “do Deus que passeava no jardim, pela brisa da tarde”, a proclamação de uma nova

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Recensão literária

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VIAGEM A UMA ROMANIDADE INTEMPORAL

“Um Deus passeando pela brisa da tarde”

Mário de Carvalho

Caminho, 11ª Edição, 2005, 327 páginas, 16,80€

É na fantástica escrita de Mário de Carvalho que nos perdemos, para no Império

Romano nos encontrarmos.

Numa compilação incrível de palavras, que se entrelaçam entre si como se tivessem

nascido para estarem juntas, Mário de Carvalho desenha-nos um retrato fiel da vida

numa cidade da Lusitânia à época do Imperador romano Marco Aurélio, ainda que, diga

o autor, “Tarcisis, ou, mais propriamente, o município de Fortunata Ara Túlia Tarcisis,

nunca [tenha existido]”.

Baseada num retroceder do tempo, numa analepse que esconde uma tentativa de

apaziguar o seu espírito atormentado, amparada a verdade em memórias alimentadas

pela imaginação que lhe solta a escrita, a história é-nos narrada por Lúcio Valério

Quíncio, antigo magistrado, ou duúnviro, de uma Tarcisis imaginária mas tão igual às

cidades que, nas aulas de História, aprendemos a identificar como as típicas polis

romanas, tal é a exactidão com que são reconstituídas as características culturais,

políticas e quotidianas do Império.

Estas recordações de Lúcio Valério não pecam em pormenores que, à primeira vista até

demasiados, enriquecem a obra de uma forma única e brilhante: Descrições minuciosas

de paisagens, acontecimentos e personagens levam o leitor a percepcionar na perfeição

os contornos de uma realidade que não é sua mas que passa a ser sentida quase como

familiar.

Ao longo de 327 páginas, Mário de Carvalho conduz-nos então, pela voz de Lúcio

Valério, aos confins de uma sociedade de classes – os senhores e os seus escravos,

mencionados vezes sem conta e assumindo até por vezes um protagonismo inesperado –

e ao funcionamento diário de uma cidade minada pela corrupção (ou desleixo) dos

decênviros, uma espécie de coadjuvantes do duúnviro, e pelo súbito aparecimento de

uma nova seita – aqueles que se apelidavam de cristãos e deixavam a marca do peixe

como símbolo intemporal das suas crenças – que muitos tumultos entre o povo

provocou.

Tamanha é a pormenorização destes relatos, que viajam de discussões a suicídios,

passando por momentos de ternura entre Lúcio e a sua dedicada mulher Mara, que

quase nos esquecemos daquilo que assume contornos de centralismo na história: a

permanente ameaça da invasão bárbara esperada há muito na descrença e subitamente

sentida como real.

É neste ambiente explosivo que Lúcio tenta equilibrar, na sua qualidade de governante

máximo da cidade, a construção de uma muralha que proteja o seu povo dos mouros e

os interesses de uma classe que, considerando-se privilegiada, não abdica das suas

regalias em prol da defesa da cidade; ao mesmo tempo que procurará controlar, em

acesos diálogos com Iunia, jovem por quem secretamente se apaixona, filha do seu

velho amigo Máximo Cantaber e seduzida por um estrangeiro, Mílquion, aos encantos

“do Deus que passeava no jardim, pela brisa da tarde”, a proclamação de uma nova

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religião, não admitida pelas leis romanas, vista como imoral pela maioria dos cidadãos

de Tarcisis e questionadora dos valores da romanidade, como o politeísmo, os banhos

públicos e a realização de jogos e lutas entre gladiadores.

É na guerra com os bárbaros, que nos é introduzida repentinamente, como que

anunciando novos ventos, que a desilusão acontece, que nos invade a sensação de que o

prometido não é devido: tão proclamada na narração de Lúcio, tão esperada, temida e ao

mesmo tempo desvalorizada pelos habitantes de Tarcisis, mas sempre presente nas suas

mentes, a batalha, ainda que guarde detalhes trágicos, conta-se em meras páginas que,

quando lidas, quase obrigam o leitor a perguntar-se, num murmúrio, “foi só isto?”

Por outro lado, o fim dado aos cristãos recupera já a genialidade descoberta em Mário

de Carvalho, o seu discurso pormenorizado a encaixar numa incursão de ideias

surpreendentes, que, contradizendo toda a expectativa criada pelo leitor, levam a um

desfecho quase completamente inesperado.

Esta é, por tudo isto, uma história original, fresca, imponente e que já foi premiada,

entre outros, com o importante e conceituado prémio literário Giuseppe Acerbi. Ainda

assim, é uma obra que vale sobretudo pelos seus contornos literários, pela íntima

relação que o autor estabelece com a sua língua e que está marcada em cada palavra, em

cada frase, em cada enumeração, que encerram em si uma magia perturbadora e, apesar

disso ou se calhar por isso mesmo, cativante.