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LISA MAXWELL TRADUÇÃO: Lavínia Fávero

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TRADUÇÃO: Lavínia Fávero

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título original The Last MagicianBrazilian Portuguese language copyright © 2017 by Vergara & Riba Editoras S.A.Original English language copyright © 2017 by Lisa MaxwellPublished by arragement with Simon Pulse, an Imprint of Simon & Schuster Children’s Publishing DivisionAll rights reserved. No part of this book may be reproduced or transmitted in any form or by any means,

electronic or mechanical, including photocopying, recording or by any information storage and retrieval system,

without permission in writing from the Publisher.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras.

edição Fabrício Valério e Flavia Lago editora-assistente Thaíse Costa Macêdopreparação Boris Fatigatirevisão Flávia Yacubiandireção de arte Ana Soltdiagramação Gabrielly Alice da Silvacolaboração Rodrigo Caetanodesign de capa Russell Gordonilustração e lettering de capa © 2017 Craig Howell ilustração de contracapa © 2017 Cliff Nielsen

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Maxwell, Lisa

O último dos magos / Lisa Maxwell ; tradução Lavínia Fávero.

– 1. ed. – São Paulo : Plataforma21, 2017. (O último dos magos ; I)

Título original: The Last Magician.

ISBN 978-85-92783-43-3

1. Ficção fantástica 2. Ficção – Literatura juvenil I. Título II. Série.

17-08039 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção fantástica : Literatura juvenil 028.5

Todos os direitos desta edição reservados à

VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) 4612-2866plataforma21.com.br | [email protected]

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Para Har ry, prova de que a magia existe

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O M A G O

Março de 1902 – Ponte do Brooklyn

O Mago ficou parado no limite do seu mundo e lançou um último olhar para a cidade. Os pináculos das igrejas se er-guiam como dentes pontudos, e as janelas sem vista dos

prédios decrépitos brilhavam ao nascer do sol. Ele a amara, um dia. Naquelas ruas sem lei, um menino podia se tornar o que quisesse – e ele havia se tornado. Mas, no fim, a cidade não era nada além de uma prisão. E agora o mataria. Ponto-final.

Era tão cedo que a ponte estava vazia, um vão solitário que abar-cava os dois lados do rio. Seus cabos, lá no alto, estavam iluminados pela luz suave do amanhecer, e os únicos sons eram os das ondas, lá embaixo, e o crepitar das tábuas de madeira debaixo dos seus pés. Por um instante, ele se permitiu imaginar que uma multidão tinha co-meçado a se formar. Quase podia enxergar o rosto tenso de cada um, em burburinho silencioso, esperando sua última tentativa de enganar a morte. Levantou um dos braços e saudou a plateia invisível. Na sua cabeça, os presentes irromperam em vivas. Então o Mago se forçou a dar o sorriso que sempre estampava em cima do palco: aquele, que era pouco mais do que uma mentira.

Mas, até aí, os mentirosos são os melhores magos. E ele, por acaso, era excepcional.

À medida que foi baixando o braço, o silêncio e o vazio da ponte foram tomando conta dele, e a dura realidade ficou bem clara. Sua vida até podia ter sido construída sobre um alicerce de mentiras, mas sua

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morte seria o seu número mais grandioso. Porque, pela primeira vez, não seria uma enganação. Pela primeira vez, seria uma verdade total. Seu último número de escapismo.

Ele tremeu, só de pensar. Ou, quem sabe, o tremor fora causado, simplesmente, pelo vento gélido que atravessava o tecido fino do seu casaco. Mais algumas semanas, e o ar não seria nem um pouco gelado.

“Melhor assim.” A primavera era ótima e tudo mais, mas o fedor pútrido das ruas e os prédios sem ar eram outra coisa, completamente diferente, no verão. Aquela sensação de ter gotas de suor escorrendo o tempo todo pelas suas costas. O jeito que a cidade meio que enlou-quecia por causa do calor. Disso ele não sentiria a menor falta.

O que, claro, era mais uma mentira.“Ainda posso ir embora”, pensou, tomado de um desespero súbito.

Poderia atravessar o que restava da ponte e arriscar a sorte cruzando a Beira.

Talvez fosse mesmo para o outro lado. Algumas pessoas tinham feito isso, afinal de contas. Talvez, simplesmente, acabasse como a mãe. Ele bem que merecia.

Havia uma pequena chance de sobreviver e, se isso acontecesse, talvez pudesse recomeçar. Tinha vários números para apresentar. Já mudara de vida e de nome antes e poderia fazê-lo de novo. Poderia tentar.

Mas sabia que não tinha como dar certo. Ir embora seria apenas um tipo diferente de morte. E a Ordem, que não era afetada pela Beira como ele, jamais desistiria de caçá-lo. Quando o encontrasse – e o en-contraria – não lhe daria paz. A Ordem não pararia de usá-lo, até não sobrar mais nada.

O Mago arriscaria a sorte pulando na água.Subiu na grade de proteção e teve que se segurar no cabo para

manter o equilíbrio, naquele vento forte de primavera. Lá longe, na direção da cidade, ouviu o ranger das carruagens e os gritos loucos e raivosos das pessoas, assinalando que o momento de indecisão havia passado.

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“Um único passo é uma coisa tão pequena.” Tinha dado incontá-veis passos todos os dias, sem sequer perceber. Mas aquele passo…

O ruído no começo da ponte ficou mais alto, mais próximo, e ele soube que havia chegado a hora. Se o pegassem, não haveria magia, números ou mentiras capazes de ajudá-lo. Então, antes que o alcanças-sem, soltou o cabo, deu aquele último passo e foi – com o Livro – para o único lugar aonde a Ordem não poderia segui-lo.

A última coisa que ouviu foram os gemidos afrontosos do Livro. Ou talvez tenha sido o som que irrompia de sua garganta à medida que ele se entregava ao ar.

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A L A D R A

Dezembro de 1926 – Upper West Side

N ão foi em um passe de mágica que Esta conseguiu deixar a festa sem ser notada. As notas alegres do piano foram fi-cando mais baixas à medida que ela se afastava do salão de

baile. Qualquer que seja o ano, ninguém presta muita atenção à cria-dagem. Por isso, ninguém percebeu quando ela foi embora. E ninguém percebeu que seu largo vestido preto estava um pouco amontoado na lateral, marcando a faca escondida no meio das saias.

Mas, até aí, é comum as pessoas não notarem o que está bem na frente do seu nariz.

Mesmo através das portas pesadas, ainda ouvia de leve as notas do ragtime que o quarteto tocava. O fantasma da melodia, alegre demais, a seguiu pelo hall de entrada, com seu imponente pé-direito em madeira entalhada e pedra polida. Tamanha grandeza, no entanto, não a co-moveu. Mal ficou impressionada e, definitivamente, não se intimidou. Pelo contrário: movia-se com confiança – “que é uma espécie de má-gica”, pensou. As pessoas acreditam na confiança, mesmo quando não deveriam. Talvez, principalmente quando não deveriam.

O imenso lustre de cristal até lançava feixes de luz pelo hall caver-noso, mas os cantos do cômodo e o teto alto, com molduras de ma-deira, permaneciam escuros. Atrás das palmeiras, que alcançavam dois andares de altura, mais sombras estavam à espera. O hall podia parecer vazio, mas havia muitos lugares para se esconder na mansão, muitas chances de alguém estar olhando. Esta continuou seu caminho.

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Quando chegou à elaborada e grandiosa escadaria, olhou para o primeiro piso, onde havia um enorme órgão de tubos. No andar de cima, na área privativa da casa, havia quartos cheios de objetos de arte, joias, vasos de valor inestimável e inúmeras antiguidades – fáceis de roubar, já que todos estavam no salão de baile, bêbados e distraídos com a festa barulhenta. Mas Esta não estava lá por causa desses tesou-ros, por mais tentadores que fossem.

E, definitivamente, eram tentadores.Ela parou por um segundo, mas então o relógio tocou, com-

pletando mais uma hora e assinalando que estava mais atrasada do que imaginara. Olhou para trás, por cautela passou pela escadaria e entrou em um corredor que levava a uma parte mais escondida da mansão.

Fazia silêncio. Tudo estava quieto. O ruído da festa não a seguia mais, e ela finalmente pôde soltar um pouco os ombros, liberando um suspiro e relaxando os músculos das costas, saindo da postura ereta e dura da criada que fingia ser. Inclinou a cabeça para o lado e começou a alongar o pescoço. Mas, antes que pudesse sentir o desejado alívio, alguém segurou seu braço e a puxou para a escuridão.

Por instinto, girou o corpo, agarrando firme o pulso do agressor, então, com todo o seu peso, o puxou para a frente e para baixo, até ele soltar um grito abafado, com o cotovelo ao ponto de quebrar.

– Que droga, Esta, sou eu – sussurrou a voz conhecida. Estava uma ou duas oitavas mais aguda do que o normal, por causa da pressão que ela ainda exercia sobre o seu braço.

Xingando-o baixinho, Esta soltou o braço de Logan e o sacudiu, enojada.

– Você devia saber que não pode me agarrar desse jeito. – Seu co-ração ainda palpitava, e ela não conseguiu sentir nenhum remorso por Logan estar esfregando o próprio braço. – Aliás, qual é a sua?

– Você está atrasada – disparou Logan, com o belo rosto bem pró-ximo ao dela.

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Com cabelo dourado e olhos azuis do tipo que inspiram garotas que não sabem nada da vida senão escrever poemas, Logan Sullivan era mestre em usar a sua aparência em benefício próprio. Mulheres o desejavam, e homens desejavam ser como ele, mas Logan não tentava seduzir Esta. Não mais.

– Bem, estou aqui agora.– Você deveria estar aqui há dez minutos. Por onde andou? – indagou.Esta não precisava responder. Irritaria Logan ainda mais se man-

tivesse segredo, mas não conseguiu conter o sorriso satisfeito e mos-trou o prendedor de gravata de diamante que roubara de um velho de mãozinhas afoitas, no salão de baile.

– Sério? – disse Logan, olhando feio para Esta. – Você arriscou o serviço por isso?

– Era isso ou dar um soco nele – respondeu, encarando Logan para enfatizar o argumento. – Não gosto que passem a mão em mim, Logan.

Na verdade, não foi uma decisão esbarrar no velho quando ele ten-tou agarrar uma jovem criada, e fingir que limpava champanhe do casaco enquanto pegava o prendedor da gravata de seda. Esta talvez devesse ter se afastado, mas não o fez. Não pôde.

Logan continuou olhando feio para ela, mas Esta se recusou a se arrepender. Arrependimento é coisa de gente que arrasta o passado consigo por todos os lados, e Esta nunca foi de carregar esse tipo de peso morto. Além disso, quem, em sã consciência, se arrependeria de um diamante? Mesmo naquele corredor mal iluminado, a pedra era uma beleza: toda reluzente. Também dava segurança a Esta, não apenas por seu valor, mas por lembrá-la de que, acontecesse o que acontecesse, ela sobreviveria. A inebriante descarga de adrenalina ainda corria por suas veias, e nem mesmo a irritação de Logan era capaz de aplacá-la.

– Você gosta de qualquer coisa que o serviço exija – retrucou Logan, cerrando os olhos para ela.

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– É, gosto – disse, com a voz baixa, nem um pouco intimidada. – Sempre gostei, sempre vou gostar. O Professor sabe disso, e pensei que você também teria se dado conta, a essa altura.

Esta olhou feio para Logan por mais um segundo, depois lançou outro olhar satisfeito para o diamante, só para irritá-lo. Definitiva-mente, tinha quase quatro quilates, mais do que ela havia pensado.

– Não podemos nos dar ao luxo de correr riscos desnecessários esta noite – continuou ele, ainda com a cabeça nos negócios. Claramente, ainda acreditando que tinha algum tipo de autoridade naquela situação.

Esta ignorou a acusação e guardou o diamante.– Nem foi um risco – argumentou, sincera. – Vamos embora bem

antes de o velhaco notar sua falta. E você sabe que não tem como ele ter visto que fui eu que o roubei.

Suas vítimas nunca percebiam. Esta lançou um olhar desafiador para Logan.

Ele abriu a boca, como se fosse argumentar, mas Esta o cortou:– E, então, você encontrou?Esta já sabia a resposta: é claro que ele havia encontrado. Logan era

capaz de encontrar qualquer coisa. Essa era a sua razão de ser. Pelo me-nos, a razão de fazer parte da equipe do Professor. Mas permitiu que ele se gabasse um pouco porque precisava que Logan não tocasse mais no assunto do diamante. Os dois não tinham tempo para um dos seus ataques, e por mais que odiasse admitir, Esta tinha, sim, se atrasado.

Logan espremeu os lábios, como se lutasse contra a vontade de continuar a ladainha sobre o diamante, mas – como sempre – seu ego venceu, e ele confirmou:

– Está no salão de bilhar, como esperávamos.– Vá na frente – disse ela, com uma expressão que, esperava, fosse

gentil o suficiente. Conhecia a planta da mansão tão bem quanto Logan, mas sabia, por experiência própria, que era melhor deixar o garoto se sentir útil ou, quem sabe, até um pouco no comando da si-tuação. Na pior das hipóteses, ele sairia do seu pé.

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Logan hesitou por mais um instante, mas finalmente meneou a ca-beça. Esta o seguiu em silêncio, com um ar muito presunçoso, pelo corredor mal iluminado.

As paredes em volta dos dois estavam repletas de pinturas de nobres austeros de diversos Estados europeus falidos. Mas Charles Schwab, o dono da mansão, estava tão distante da realeza quanto Esta. Vinha de uma família de imigrantes alemães, e todo mundo na cidade sabia disso. A casa não ajudara em nada: fora construída do lado errado do Central Park, ocupava uma quadra inteira, com seus cristais e detalhes folhados a ouro, rebuscados demais. O que havia dentro dela podia até valer uma fortuna, mas, em Nova York, nem mesmo uma fortuna era capaz de comprar a admissão nos círculos sociais mais exclusivos.

Pena que isso não duraria muito. Dentro de alguns anos, a Quinta---Feira Negra chegaria, trazendo a Grande Depressão, e todas as obras de arte daquelas paredes, assim como todos os móveis, seriam liquida-dos para pagar as dívidas de Schwab. A mansão ficaria vazia por uma década, quando seria demolida para dar lugar a mais um prédio de apartamentos comuns. Se o lugar não fosse tão explicitamente cafona, até que seria triste.

Mas ainda faltavam alguns anos para isso, e Esta não tinha tempo para se preocupar com o futuro dos magnatas do aço. Muito menos quando tinha um serviço a fazer e menos tempo do que planejara.

Os dois viraram em outro corredor, que terminava em uma pesada porta de madeira. Antes de abri-la, Logan prestou atenção aos ruídos. Por um segundo, Esta temeu que ele fosse entrar no cômodo também.

Em vez disso, Logan balançou a cabeça, sério, e disse:– Fico de guarda.Grata por não ter Logan no seu cangote enquanto trabalhava, Esta

mergulhou no cheiro de lustra-móveis e charutos. Um espaço bem masculino, o salão de bilhar não era cheio dos enfeites dourados e dos cristais que adornavam o resto da casa. Pelo contrário: as poltronas de

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couro capitonê estavam dispostas em pequenos grupos, e uma enorme mesa de bilhar era o centro das atenções, parecendo um altar.

O cômodo estava abafado, por causa do fogo da lareira, e Esta pu-xou a gola alta do vestido, avaliando os riscos de desabotoar a gola ou de enrolar as mangas. Precisava ficar à vontade para trabalhar, e nin-guém além de Logan estava ali…

– Ande logo – reclamou ele. – Schwab vai começar o leilão logo, logo, e precisamos cair fora antes.

Ainda de costas para Logan, Esta olhou ao redor do salão e se obri-gou a respirar fundo para não matá-lo.

– Você descobriu onde está o cofre?– Na estante – respondeu Logan, depois fechou a porta, aprisionan-

do-a no cômodo sufocante.O silêncio que a cercava só era quebrado pelo tique-taque com-

passado de um relógio de pé – tique… taque… tique –, lembrando que, a cada segundo que passava, os dois ficavam um segundo mais perto de serem descobertos. E, se fossem vistos…

Mas Esta afastou esse medo da sua cabeça e focou no que fora fazer ali. A parede oposta à enorme lareira estava repleta de prateleiras, com volumes de capa de couro idênticas. Esta admirou-os, passando os de-dos de leve sobre as lombadas novinhas em folha.

– Onde você está? – sussurrou.Os títulos brilhavam de leve na luz fraca, guardando segredos, en-

quanto Esta tateava a parte de baixo das prateleiras. Não demorou muito para encontrar o que estava procurando: um pequeno botão enterrado na madeira, onde nenhum criado poderia esbarrar aciden-talmente, e que apenas um ladrão pensaria em buscar. Quando Esta o apertou, ativou um mecanismo dentro das prateleiras, em um clique firme e preciso que fez um quarto da parede vir para a frente, o sufi-ciente para ela puxar as prateleiras articuladas.

Exatamente como esperava: um cofre com segredo da marca Herring-Hall-Marvin. Com espessura de oito centímetros, em aço

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fundido, grande o bastante para um homem sentar confortavelmente lá dentro, era o cofre mais sofisticado que se poderia comprar em 1923. Esta nunca tinha visto um tão novo. Aquele modelo específico era bri-lhante, laqueado de verde-escuro, com o nome Schwab gravado em uma caligrafia ornamentada. Um belo cofre para guardar as coisas que os ricos têm na mais alta conta. Por sorte, Esta desvendara combina-ções mais desafiadoras do que aquela quando tinha 8 anos.

Dobrou os dedos, ansiosa. Passara a noite toda se sentindo fora de si: o vestido incômodo que usava, ter que olhar para o chão quando lhe dirigiam a palavra… Era como desempenhar um papel que não lhe caía bem. Mas ali, na frente do cofre, finalmente pôde se sentir à vontade, ser ela mesma.

Encostou a orelha na porta e começou a girar o mecanismo. Um clique… dois… o som do atrito do metal nos cilindros internos, en-quanto ela escutava as batidas do coração do segredo.

Os segundos passavam, tique-taqueando com uma certeza fatal. Mas, quanto mais trabalhava, mais Esta relaxava. Entendia segredos de cofre melhor do que pessoas. Segredos não mudavam por capricho ou por causa do clima, e ainda estava por vir uma combinação que Esta não pudesse desvendar. Em questão de minutos, tinha descoberto três dos quatro números. Girou o mecanismo novamente, prestes a desco-brir o quarto…

– Esta? – sussurrou Logan, atrapalhando sua concentração. – Já ter-minou?

E lá se foi o último número. Ela virou para trás, fazendo cara feia.– Poderia ter terminado, se você me deixasse em paz.– Ande logo – disparou e voltou a se esconder no corredor, fe-

chando a porta.– “Ande logo” – resmungou Esta, imitando o tom imperioso de

Logan, abaixando-se novamente para ouvir os cliques. Até parece que a arte de arrombar cofres podia ser exercida com pressa. Até parece que Logan tinha alguma ideia de como fazer aquilo sozinho.

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Quando o último cilindro se encaixou no lugar certo, ela sentiu uma satisfação extrema. Agora era só tentar a combinação. Só mais um mi-nuto, e o conteúdo do cofre estaria à sua disposição. E, em mais um minuto, ela e Logan cairiam fora. Schwab jamais ficaria sabendo.

– Esta?Ela soltou um palavrão.– Que foi agora?Não olhou para Logan dessa vez e manteve o foco na segunda – e

incorreta – combinação.– Vem vindo alguém – respondeu ele, olhando para trás. – Vou dis-

traí-lo.Foi então que Esta olhou para Logan e viu a expressão tensa dele,

de ansiedade.– Logan… – disse, mas ele já tinha ido embora.Pensou em ajudá-lo, mas abandonou a ideia e se virou para o cofre.

Logan sabia se cuidar sozinho. Ele cuidaria dos dois, porque era assim que faziam. Era assim que trabalhavam. Esta tinha que fazer sua parte e deixar Logan fazer a dele.

Mais duas combinações incorretas, e o calor do cômodo começou a tomar conta da sua pele, o cheiro de tabaco e fumaça de madeira queimavam a garganta. Esta secou a testa com a manga e queria esque-cer a sensação de que o vestido a estrangulava.

Tentou de novo, ignorando a trilha de suor que escorria pelas suas costas, por baixo de todas aquelas camadas de tecido. Oito. Vinte e um. Treze. Vinte e cinco. Deu um puxão na maçaneta e, para seu alívio, a pesada porta do cofre se abriu.

Vindo do lado de fora, ouviu um trovejar baixo de vozes masculinas, mas estava ocupada demais, avaliando o conteúdo do cofre, para pres-tar atenção. As diversas prateleiras e compartimentos estavam repletos de envelopes de lona, com ações e títulos do Tesouro, pastas-arquivo cheias de papéis, pilhas de notas de tamanho exagerado, arrumadas com cuidado. Esta olhou para o dinheiro, decepcionada por não poder

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levar uma sequer daquelas cédulas esquisitas. Para o plano deles dar certo, Schwab não podia ficar sabendo que alguém estivera ali.

Encontrou o que procurava em uma das prateleiras de baixo.– Olá, belezinha – ronronou, pegando a caixa preta alongada. Mal

a tinha segurado com as duas mãos quando as vozes se ergueram no corredor.

– Isso é um ultraje! Eu poderia acabar com o senhor com um simples telegrama – vociferava Logan, e sua voz podia ser ouvida através da pesada porta de madeira. – Quando eu contar para o meu tio… Não, para o meu avô sobre o tratamento terrível que recebi aqui – continuou –, o senhor não conseguirá fechar mais um ne-gócio sequer deste lado do Mississippi. E, provavelmente, nem do outro. Ninguém que tenha alguma importância falará com o senhor depois de eu…

“Deve estar falando com Schwab”, pensou Esta, tirando um grampo do cabelo e começando a tentativa de abrir a fechadura da caixa. Schwab tentava deixar sua marca na cidade há anos. A casa fazia parte desse plano, mas o conteúdo daquela caixa era uma parte ainda mais importante. E era do conteúdo daquela caixa que Esta precisava.

– Seja razoável, Jack – disse outra voz, provavelmente de Schwab. – Tenho certeza de que é apenas um mal-entendido.

O pânico começou a subir devagar pela pele de Esta, à medida que seu cérebro absorvia as palavras do homem. “Jack”? Então não era só Schwab que estava lá fora.

Por melhor que Logan fosse, nunca era bom estar em menor nú-mero. Entrar e sair rápido, fazendo o mínimo de contato. Essa era a regra que os mantinha vivos.

Esta sacudiu o grampo na fechadura por alguns segundos, até sentir o mecanismo ceder, e a caixa se abrir.

– Tire suas mãos imundas de mim! – gritou Logan, alto o suficiente para Esta ouvir. Era um sinal de que a situação estava se complicando a uma velocidade que ele não conseguiria conter.

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Ela pôs a caixa de volta na prateleira, para conseguir levantar as saias e pegar a faca que escondera ali. Mesmo com aquela confusão no corredor, Esta sentiu uma onda de admiração pelas habilidades de Mari, ao comparar a faca que trazia à adaga cravejada que estava sobre o forro de veludo preto da caixa. Sua amiga conseguira mais uma vez. Não que isso a surpreendesse.

Mariana Cestero podia replicar qualquer coisa: qualquer objeto de qualquer época, incluindo o convite em alto-relevo para a festa da-quela noite e a adaga de quinze centímetros que Esta carregava en-tre as dobras da saia. A única coisa que Mari não conseguira replicar exatamente foi a pedra no cabo da adaga, o Coração do Faraó, pois a pedra era mais do que parecia ser.

Uma granada não lapidada que, diziam, fora removida de uma das tumbas do Vale dos Reis. Acreditava-se que a pedra continha o poder do fogo, o elemento mais difícil de manipular. Fogo, água, terra, ar e espírito, os cinco elementos que a Ordem da Ortus Aurea estava obce-cada em entender e se utilizar para construir o seu poder.

Mas eles estavam enganados, é claro. Magia elemental não pas-sava de um conto de fadas inventado por aqueles que não possuíam magia nenhuma – os Sundren –, para explicar as coisas que não conseguiam entender. Só que interpretar mal esse tipo de magia não tornava a Ordem menos perigosa. Só porque a pedra não con-trolava o fogo não significava que não havia algo de especial no Coração do Faraó. O Professor Lachlan não desejaria possuí-la se aquilo não fosse verdade.

Mesmo sob a luz suave da lareira, a granada quase brilhava, de tão bem polida. Sem fazer nenhum esforço, Esta podia sentir o magne-tismo da gema, sentir-se atraída, não do mesmo modo que fora atraída pelo prendedor de gravata de diamante, mas em um nível mais pro-fundo, mais inato.

Afinal de contas, a magia elemental até podia ser um conto de fa-das, mas a magia em si era real o suficiente.

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Organizações como a Ordem da Ortus Aurea tentavam se apo-derar da magia há séculos. Schwab comprara a adaga e organizara o leilão daquela noite na esperança de entrar na Ordem por meio do dinheiro. Mas, como a única magia que a Ordem possuía era ceri-monial, artificial e corrompida – práticas pseudocientíficas como a alquimia e a teurgia –, seus membros não teriam como sentir o que Esta sentia. Só descobririam que a pedra feita por Mari era falsa bem depois, quando fossem fazer experimentos e tentar conjurar o poder dela. E, mesmo então, concluiriam que havia sido Schwab quem os enganara… ou que Schwab não sabia diferenciar a pedra falsa da ver-dadeira. Já o milionário acreditaria que o antiquário que lhe vendera a adaga lhe aplicara um golpe. Ninguém se daria conta da verdade: que o Coração do Faraó fora roubado bem debaixo dos seus narizes.

Esta fez a troca, colocando a adaga falsificada dentro da caixa for-rada de veludo e guardando a adaga verdadeira no bolsinho escondido da saia. Era mais pesada do que aquela que carregara a noite inteira, como se o Coração do Faraó tivesse um peso e uma densidade inespe-rados, que Mari não fora capaz de prever. Por um instante, Esta temeu que Schwab percebesse, sim, a diferença. Então pensou na casa – naquela tentativa exagerada de mostrar quantos dígitos tinha sua conta ban-cária – e esqueceu o medo. O magnata não era do tipo que entendia quais detalhes eram realmente importantes.

Fora do salão, algo se espatifou, e uma voz desconhecida gritou. Com movimentos mais rápidos, Esta trancou a caixa, colocou com cuidado na prateleira, exatamente onde estava, e fechou o cofre. Já tra-vava a estante quando ouviu Logan gritar – um gemido inarticulado de dor.

E então um tiro alvejou a noite.“Não!”, pensou Esta, correndo até a porta, com o disparo ainda

zunindo nos ouvidos. Precisava chegar aonde Logan estava. O garoto até podia ser um pé no saco, mas era o seu pé no saco. E era a sua obri-gação tirar os dois dali em segurança.

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Do outro lado do corredor, Logan estava deitado no chão, tentando se levantar, enquanto Schwab tentava tirar a arma de um homem loiro com sinais de calvície, usando um smoking saliente em volta da cintura larga. Lutando contra o dono da casa, o loiro apontou a arma para Logan mais uma vez.

Esta entendeu a situação na hora e, imediatamente, respirou fundo para se acalmar, obrigando-se a ignorar o caos que se decortinava à sua frente. Concentrou a atenção no ritmo compassado do seu coração.

Tum. Tum. Tum.Compassado como os cilindros de um cofre se movendo para o seu

devido lugar.Tum. Tum. Tum.Na próxima batida, o tempo ficou mais espesso para ela, o mundo à

sua volta quase congelou: as mandíbulas balançantes de Schwab para-ram de se mexer. As gotas de suor raivoso que pingavam das têmporas do homem loiro pareceram ficar suspensas no ar, caindo em uma câ-mera penosamente lenta no chão.

Parecia que alguém estava adiantando o mundo como se fosse um filme, quadro por quadro, com todo o cuidado. E ela era este alguém.

“Encontre o intervalo entre o que é e o que não é”, ensinara o Professor Lachlan.

Porque a magia não está nos elementos. A magia vive nos espaços, nos vazios entre todas as coisas, conectando-as. Está ali, à espera da-queles que sabem encontrá-la, daqueles que têm a habilidade nata de entender essas conexões: os Mageus.

Daqueles como Esta.Ela não precisara usar magia naquela noite, até então, nem para fu-

gir da festa nem para abrir o cofre, mas precisou naquele momento, então se abriu às suas possibilidades. Para Esta, era algo quase tão natu-ral quanto respirar encontrar os espaços entre os segundos e as batidas do coração dos outros. Correu até Logan, roubando tempo, e atraves-sou voando aquele quadro vivo quase congelado.

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Esta, no entanto, não era capaz de parar completamente o tempo. Não podia reverter o momento e impedir que o dedo do homem loiro apertasse o gatilho de novo.

Ainda não estava ao lado de Logan quando o som do tiro esti-lhaçou a sua concentração. Tinha perdido o controle do tempo, e o mundo voltou a girar bruscamente. Para Esta, pareceu que levou uma eternidade entre passar pela porta do salão de bilhar e chegar aonde estava, exposta, no corredor. Mas para os dois homens, a aparição pare-ceu instantânea. Para membros da Ordem, aquilo seria imediatamente reconhecível como efeito da magia.

Os homens congelaram por um instante, com os olhos quase cô-micos de tão arregalados. Mas então, o loiro se recompôs. Soltou-se de Schwab, levantou a arma e mirou.

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