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DIAGNÓSTICO COMPLETO: CADEIA PRODUTIVA DA MODA E IMIGRAÇÃO - 2014 Realização: Aliança Empreendedora e INK Projeto: Uma Mensagem para a Liberdade Financiamento: Fundação Rockefeller CONTEXTO GERAL Após a Guerra Fria, com a Europa ainda se recuperando da II Guerra Mundial e a Ásia reestruturando suas economias, os Estados Unidos se tornaram a única superpotência mundial. No entanto, problemas internos e externos inibiram os EUA a exercerem uma completa hegemonia mundial, derivando assim no que o cientista político Samuel Huntington definiu como um mundo “uni-multipolar”. As relações de poder entre os atores internacionais mudaram fortemente. O Estado-nação, que até então este desempenhava o papel de ator central no desenvolvimento econômico e social, passou a ceder cotas de poder a novos atores: empresas privadas, empresas estatais e de capital misto e ONGs, e a tornar-se promotor e regulador do ambiente econômico. Estas mudanças e perdas de poder foram fortalecidas e transformadas por três fortes impactos nas estruturas econômicas e sociais: avanços tecnológicos nos transportes, mobilidade do capital e avanços nas telecomunicações. A redução nos custos de transporte e as melhorias dos canais de comunicação permitiram às empresas migrarem a produção para novos mercados internacionais mantendo apenas funções de design, estratégia e administração em seus países de origem. Este processo se acelerou em um crescimento de ordem geométrica a partir da segunda metade do Século XX, e modificou profundamente as estruturas de produção. Neste contexto, os Estados periféricos necessitaram mudar suas estratégias de desenvolvimento e perceberam que as empresas privadas eram atores fundamentais para tais objetivos. Esta nova necessidade dos países em desenvolvimento estava em convergência com os planos das empresas privadas: conquista de novos mercados e redução nos custos de produção. Os Estados periféricos criaram então condições para que as empresas pudessem explorar seus mercados, como por exemplo, implantação das unidades de produção em seus territórios. Da mesma forma que as empresas, os Estados passaram a competir entre si. Conforme obtinham melhores resultados econômicos, os Estados começaram a atrair cada vez mais e mais empresas e quanto menos desenvolvida sua economia, maiores eram as renúncias. Isenções de impostos, frouxidão das leis trabalhistas, oferta de mão-de-obra barata, desburocratização, capital público, etc. Interessava a estes Estados o capital tecnológico, acesso a mercados financeiros, geração de emprego e renda e fluxo de divisas e havia pouca visão de longo prazo sobre os custos econômicos e sociais que

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DIAGNÓSTICO COMPLETO: CADEIA PRODUTIVA DA MODA E IMIGRAÇÃO - 2014

Realização: Aliança Empreendedora e INK

Projeto: Uma Mensagem para a Liberdade Financiamento: Fundação Rockefeller

CONTEXTO GERAL

Após a Guerra Fria, com a Europa ainda se recuperando da II Guerra Mundial e a Ásia

reestruturando suas economias, os Estados Unidos se tornaram a única superpotência mundial. No

entanto, problemas internos e externos inibiram os EUA a exercerem uma completa hegemonia mundial,

derivando assim no que o cientista político Samuel Huntington definiu como um mundo “uni-multipolar”.

As relações de poder entre os atores internacionais mudaram fortemente.

O Estado-nação, que até então este desempenhava o papel de ator central no desenvolvimento

econômico e social, passou a ceder cotas de poder a novos atores: empresas privadas, empresas estatais

e de capital misto e ONGs, e a tornar-se promotor e regulador do ambiente econômico.

Estas mudanças e perdas de poder foram fortalecidas e transformadas por três fortes impactos

nas estruturas econômicas e sociais: avanços tecnológicos nos transportes, mobilidade do capital e

avanços nas telecomunicações. A redução nos custos de transporte e as melhorias dos canais de

comunicação permitiram às empresas migrarem a produção para novos mercados internacionais

mantendo apenas funções de design, estratégia e administração em seus países de origem. Este processo

se acelerou em um crescimento de ordem geométrica a partir da segunda metade do Século XX, e

modificou profundamente as estruturas de produção.

Neste contexto, os Estados periféricos necessitaram mudar suas estratégias de

desenvolvimento e perceberam que as empresas privadas eram atores fundamentais para tais objetivos.

Esta nova necessidade dos países em desenvolvimento estava em convergência com os planos das

empresas privadas: conquista de novos mercados e redução nos custos de produção. Os Estados

periféricos criaram então condições para que as empresas pudessem explorar seus mercados, como por

exemplo, implantação das unidades de produção em seus territórios.

Da mesma forma que as empresas, os Estados passaram a competir entre si. Conforme

obtinham melhores resultados econômicos, os Estados começaram a atrair cada vez mais e mais

empresas e quanto menos desenvolvida sua economia, maiores eram as renúncias. Isenções de impostos,

frouxidão das leis trabalhistas, oferta de mão-de-obra barata, desburocratização, capital público, etc.

Interessava a estes Estados o capital tecnológico, acesso a mercados financeiros, geração de emprego e

renda e fluxo de divisas e havia pouca visão de longo prazo sobre os custos econômicos e sociais que

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estas renúncias gerariam.

Na América Latina, estas mudanças chegaram em diferentes ritmos e estilos de estratégia.

Apenas na década de 90 a América Latina deixa de lado o Estado como agente central da economia,

adotando a visão dos estrategistas internacionais que repetiam a máxima predominante de “mais

mercados, melhores Estados”. Este modelo existe ideologicamente, mas na realidade há diferentes graus

de liberdade econômica. No Brasil o Estado segue sendo um ator fundamental na economia, seja pelos

tributos ou pelas próprias ações empresariais, e há muitas divergências sobre seu papel em relação aos

poderes de regulação, punição e controles de mercado, que podem influenciar direta ou indiretamente

as possibilidades e expectativas de ação dos diferentes atores envolvidos com o Projeto “A Message for

Freedom”.

A CADEIA PRODUTIVA

Desde a década de 1980, com a liberalização econômica, a indústria têxtil brasileira vive um

ambiente extremamente competitivo, pressionada pelos baixos preços praticados no mercado

internacional, especialmente pelos produtos chineses.

Ao mesmo tempo, a moda sofre pressão de preços em todo o mundo, e a tendência ao fast

fashion (moda rápida) fomenta ainda mais esta pressão. Fast fashion significa uma produção rápida e

contínua de novidades com menor qualidade (para serem mais “descartáveis” e acompanharem a moda)

e por preços mais acessíveis. O sistema requer coleções compactas e lançamentos constantes, retirando

das araras o que “não vende” e repondo pelo que “vende”, respondendo rapidamente aos consumidores.

Este movimento é criticado por gerar roupas quase que descartáveis, tanto para os consumidores que

usarão poucas vezes (pela qualidade e imagem das peças) quanto para as lojas, que consideram mais

barato descartar ou queimar uma coleção antiga do que deixar ocupando espaço na loja. Para que esse

modelo seja vantajoso, essas peças devem ter custos ínfimos para empresas, e toda a cadeia fica mais

pressionada.

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Na busca por redução de custos, as varejistas passaram a terceirizar a produção de suas peças,

cortando o alto custo da folha de pagamentos. Houve um momento de transição em que se criaram

grandes oficinas, com até 500 ou mais funcionários, que trabalhavam para 2 ou 3 marcas diferentes.

Porém, com a terceirização do desenho, as grandes oficinas passaram a também ter dificuldades de

seguir o “ritmo” da fast fashion, e para ter a flexibilidade necessária para manter a competitividade

mesmo com a sazonalidade do mercado, passaram a manter muito menos funcionários costurando e a

quarteirizar os serviços recebidos.

Assim, as pequenas oficinas de costura se tornaram um eixo fundamental da cadeia. Tocadas na

década de 80 por chineses e coreanos que implementaram o sistema de pagamento por peça aos

trabalhadores, hoje são lideradas por migrantes latinos (especialmente bolivianos, paraguaios e em

menor número peruanos). As oficinas tem de 5 a 15 trabalhadores, muitos sem vínculos formais de

trabalho, e tem a flexibilidade necessária para sobreviver em um ambiente de altíssima incerteza e

flutuação de demanda. Em épocas de baixa demanda as oficinas de migrantes dão “férias coletivas” aos

trabalhadores, que buscam outros trabalhos em oficinas ou outras áreas, ou voltam a seus países de

origem para visitar familiares.

Antes da intensificação das investigações e denúncias, a maioria dos lojistas (sejam pequenos

lojistas ou grandes varejistas) não se preocupava em verificar as condições de trabalho ou a capacidade

produtiva das oficinas contratadas, pressionando por prazos e preços menores para conseguir manter-se

em dia com a fast fashion. Donos de grandes oficinas passaram a usar a quarteirização e se tornaram

mais intermediários do que produtores propriamente ditos. Hoje estes intermediários criam peças,

modelam, vendem para lojistas e fazem as encomendas para as pequenas oficinas, monopolizando o

contato e negociação com as grandes marcas e médios lojistas.

Muitos lojistas e varejistas ainda não se preocupam em

verificar a capacidade produtiva das oficinas que contratam,

mas depois são responsabilizados pelas quarteirizações, como

foi o caso da Inditex / Zara.

Por mais que a varejista realmente não soubesse das

condições de trabalho que os costureiros de suas roupas

tinham, ela foi responsabilizada e multada pelas condições de

trabalho análogas à escravidão em que estes se encontravam.

A ONG repórter Brasil criou um aplicativo de iPhone para

acompanhar marcas de grandes varejistas e suas ações de

combate ao trabalho escravo. Uma rápida consulta já mostra

que mesmo com a crescente pressão sobre os varejistas, a

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maioria segue com suas práticas inalteradas. Das 22 marcas apresentadas no aplicativo, apenas uma (a

C&A) possui avaliação positiva/verde, 14 possuem avaliação negativa/vermelha e as demais

intermediária/ amarela. Os critérios são os apresentados ao lado.

Os principais atores identificados na cadeia de produção são:

1. Grandes varejistas: grandes lojas, conhecidas mundialmente, encontradas na maioria dos

centros urbanos. Os preços de suas peças costumam ser mais baixos do que dos

varejistas medianos, mas dependem mais da marca e “status” da roupa do que do custo

de produção. A produção é baseada no modelo do fast fashion, terceirizam a produção e

pagam preços baixos pelas peças para sustentar o modelo. Não negociam diretamente

com as oficinas e em geral não fiscalizam a cadeia. Beneficiam-se diretamente da força

de trabalho de toda a cadeia produtiva. Compram sob demanda e querem a produção

com o menor preço, maior rapidez e qualidade mínima. Pressionam os concorrentes e o

resto da cadeia. Há um senso geral de que se uma marca se comprometer em mudar a

forma de operação da cadeia, será pressionada pelas outras a desistir do projeto.

2. Intermediários: grande parte são coreanos ou brasileiros. São ex-donos de oficinas

maiores ou pessoas que entendem a cadeia (provavelmente por terem sido explorados

no passado). Tem contatos com as grandes varejistas, são bem organizados em termos

de sua proteção jurídica e são contratados para produzir, mas subcontratam os serviços

das oficinas.

3. Oficinas: Os donos das oficinas são em sua maioria Bolivianos que conseguiram juntar

dinheiro para empreender e melhorar de vida. Tem consciência que a condição de

trabalho dos costureiros não é adequada, mas acreditam que estão dando oportunidade

para outros bolivianos melhorarem de vida assim como ele.

4. Costureiros: São a base da cadeia, produzem as peças por salários baixos, exaustivas

horas de trabalho e condições degradantes. Em sua maioria, imigrantes Bolivianos, que

vem para o Brasil com o sonho de juntar dinheiro e voltar para casa. Não se importam em

trabalhar nas condições que trabalham, pois já viviam em condição de pobreza na Bolívia,

já trabalhavam muitas horas lá. Estão correndo atrás do sonho e não se consideram

escravos.

5. Varejistas medianos: Marcas conhecidas nacionalmente, que se encontram, em sua

maioria, em shopping centers de padrão aquisitivo alto, pois costumam cobrar preços

altos pela originalidade e qualidade de seus produtos. São pressionados a entrar no

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modelo do fast fashion para competir com as constantes novidades das grandes redes,

perdendo seus diferenciais. Não possuem capacidade operacional para isso e acabam

terceirizado a produção para baratear o custo. Também, não fiscalizam o resto da cadeia.

Compram sob demanda e querem a produção com qualidade, preços baixos e rapidez.

6. Pequenas lojas: Lojas pequenas, que costumam ficar no centro da cidade. Seus preços

são baixos. Muitas das de São Paulo são gerenciadas por coreanos, que negociam

pessoalmente com os donos das oficinas. Compram a partir da oferta, mas procuram

produtos populares entre os consumidores, como peças que aparecem na televisão. O

que mais importa é o preço, por isso pressionam os donos das oficinas.

7. “Sacoleiros”: Donos de pequenas lojas em outras regiões do Brasil e da América Latina,

vem para São Paulo buscando produtos com preços baixos na Feira da Madrugada e 25

de Março (entre outros). Chegam em ônibus, carregam com mercadorias e voltam para

sua cidade de origem, onde revendem. Procuram produtos similares aos das pequenas

lojas locais.

8. Feirantes itinerantes: modalidade que tem se desenvolvido mais há poucos anos, são

geralmente bolivianos que produzem de forma independente (buscando fugir da pressão

dos intermediários) e vão para outras cidades buscar clientes entre pequenos lojistas que

não são sacoleiros e acabam tendo menos poder de barganha. Um exemplo foi

identificado em Curitiba, pela observação de uma barraca que foi montada em um local

próximo à rodovia que dá acesso à São Paulo (BR116) com uma faixa com a frase “A

Feirinha da Madrugada agora em Curitiba”. Há também relatos de casos menos fixos, em

que os costureiros e o dono da oficina produzem de segunda a quarta e quinta-feira este

sai para vender a produção, voltando no domingo. Os costureiros continuam a produção,

e o ciclo se repete semanalmente.

Um dos principais trabalhos acadêmicos consultados na investigação da cadeia produtiva e de

outros temas citados aqui foi a Dissertação de Mestrado de Tiago Rangel Côrtes, defendida em 2013 na

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP com o título “Os

Migrantes da Costura em São Paulo: retalhos de trabalho, cidade e Estado”. Várias informações

constantes lá foram omitidas, por se tratar de um trabalho de pesquisa muito mais extenso.

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FLUXOS MIGRATÓRIOS E CONDIÇÕES DO MIGRANTE NA CADEIA DA COSTURA

O Mercosul se estabeleceu com o Tratado de Assunção, em 1991. Inicialmente Argentina, Brasil,

Paraguai e Uruguai eram integrantes do bloco, que tinha grandes pretensões. Por pressões

internacionais, conflitos internos e falta de poder de mobilização internacional o Mercosul se tornou

muito mais um bloco de intercâmbio comercial e apoio político do que efetivamente uma plataforma de

integração de fatores de produção. A Venezuela integrou o bloco como membro pleno em 2013 após

grande polêmica. O bloco tem cinco países associados – que tem direito a voz, mas não podem votar as

decisões: Chile, Bolívia, Colômbia, Equador e Peru; e dois países observadores: Nova Zelândia e México.

Os fluxos migratórios da América Latina foram aumentados e se tornaram mais livres a partir da

formação do bloco. Hoje cidadãos do Mercosul tem direito a vistos permanentes de trabalho, e estas

facilidades aumentaram o fluxo de migrantes se movimentando em busca de melhores condições de vida

e oportunidades de trabalho. O Brasil é um dos principais destinos destes migrantes.

Neste contexto, a população migrante boliviana de destaca em número de representantes e

também pela quantidade informação disponível em trabalhos acadêmicos, reportagens e espaços

conhecidos como a Feira da Madrugada e a Praça Kantuta, visitada pela equipe do projeto. Por esta razão

muitas vezes concentraremos a análise neste grupo. Porém, fica aqui destacado que segundo as

percepções e fatos encontrados pela equipe de campo e as publicações acadêmicas estudadas, o grande

número migrantes bolivianos tem mais a ver com as condições socioeconômicas da Bolívia e do Brasil do

que com a nacionalidade destes. Os bolivianos são inclusive o segundo grupo nacional a transitar na

posição de explorados pela cadeia da moda, pois até os anos 90 esta posição era ocupada por chineses e

coreanos, que hoje tem outro papel na cadeia.

A migração entre os Estados Partes do Mercosul foi regulamentada pelo decreto nº 6964, de 29

de setembro de 2009. Ele prevê que todo migrante proveniente de países do bloco e associados pode

solicitar permanência no Brasil com garantia de todos os direitos civis, incluindo o direito de trabalhar,

independente da condição migratória em que entrou no país, estão isentos de multas ou outras sanções

administrativas relativas à sua situação migratória. O decreto significou a regularização da situação

migratória de forma mais simplificada, sem exigências de contrato de trabalho ou qualificação.

O processo para obtenção de residência é teoricamente simples: consiste na concessão pela

Polícia Federal, de residência temporária de dois anos. Noventa dias antes do fim deste prazo o

estrangeiro deverá solicitar a transformação da residência provisória em permanente. Os pedidos de

transformação são analisados e decididos pelo Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de

Justiça vinculado ao Ministério da Justiça. Os requisitos para retirar a residência temporária são

agendamento de horário na Polícia Federal, apresentação de documentos e pagamento de taxas de

serviço (Taxa de registro de estrangeiro: R$ 64,58; Taxa de Expedição da CIE: R$124,23).

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Apesar deste acordo, hoje verifica-se a exigência de comprovação de saldo bancário igual ou

superior a US$835,00, apresentação de passagens de ida e volta e carta convite de um cidadão brasileiro

que se responsabilize pela estadia do migrante no país. Isto acontece especialmente na entrada pela

fronteira de Corumbá (MS). A Polícia Federal afirma que adotou o procedimento baseado no princípio de

reciprocidade, além de ser apontada como uma política de prevenção ao trabalho escravo que são

submetidos bolivianos em oficinas de costura no Brasil.

O preconceito, o sentimento de deslocamento, de falta de entendimento que a complexidade

associada às diversas leis e acordos de imigração e também a falta de segurança pela arbitrariedade e

falta de tato de alguns dos agentes envolvidos e entre os países gera, assim como o denunciado pela

Folha de São Paulo e pelo portal boliviano eldeber.com.bo, mais insegurança e desconfiança dos

migrantes, que muitas vezes acabam buscando caminhos ilegais e caindo em “armadilhas” do tráfico de

pessoas e do trabalho escravo.

O número de operadores de máquinas de costura do estado de São Paulo apontado pelo Censo

2010 mostra grande predominância de brasileiros – 90,73%, seguidos pelos bolivianos – 7,82%,

paraguaios – 0,84%, peruanos e portugueses – 0,16%, coreanos – 0,07% e outras nacionalidades – 0,21%.

Os dados sobre migrantes mostram evidências de serem subestimados, pois os fatores já apontados

fazem com que muitos não declarem sua nacionalidade e tenham seu mapeamento dificultado.

Organizações internacionais especializadas no tema do trabalho escravo e do tráfico de pessoas afirmam

que os dados referentes a estes problemas são muito pouco confiáveis e muito difíceis de mapear com

clareza devido à dificuldade de acessar e identificar os envolvidos.

Muitos migrantes seguem em situação irregular e ligados a oficinas informais ou tem relações

informais de trabalho, seja pela situação irregular no geral ou pelas barreiras encontradas para a emissão

de uma carteira de trabalho. Hoje, por exemplo, um cidadão do Mercosul com a situação migratória

regular precisa esperar em média 3 meses para o agendamento da visita necessária para a emissão de

sua carteira de trabalho. Se considerarmos que muitos vem com pouquíssimos recursos – buscando

exatamente trabalho e melhores condições de vida – este tempo somado às taxas e tempo necessários

para a regularização – se torna praticamente impeditivo da regularização do trabalhador, pois se não vem

já comprometido com um trabalho, em poucas semanas ele se envolve em atividades informais e passa a

ter grandes dificuldades de tempo para se regularizar.

Há também evidências de um grande volume de migrantes que vem para o Brasil atraído por

anúncios colocados em cidades – geralmente fronteiriças – bolivianas, especialmente a cidade de Puero

Quijarro, onde é comum encontrar muitos anúncios de oficinas de costura prometendo despesas de

viagem pagas e salários muitas vezes maiores que os praticados (encontramos informações sobre

anúncios que prometiam entre US$150 e US$500, e os salários reais variam muito mesmo). Jovens

bolivianos iniciando sua carreira, mesmo tendo trabalhos com “carteira assinada” na Bolívia, são atraídos

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por estas promessas e vem ao Brasil com a finalidade de juntar dinheiro e voltar a se estabelecer e apoiar

suas famílias na Bolívia.

Neste sentido, é interessante notar que o perfil dos brasileiros e dos migrantes operadores de

máquinas de costura mapeados é muito diferente. Enquanto a grande maioria dos operadores de

maquinas de costuras brasileiros são mulheres 90,8% (o mesmo acontece com os portugueses, que tem

uma dinâmica de migração diferente), os migrantes bolivianos da costura tem uma divisão de gênero

mais equilibrada, sendo 55,6% homens. Entre paraguaios a predominância de homens é ainda maior, de

63,9%. Enquanto as brasileiras tem em média mais que trinta anos, a maioria dos migrantes que operam

máquinas de costura tem entre 18 e 25 anos. As condições de trabalho e acesso a direitos das brasileiras

também são muito melhores do que a dos trabalhadores migrantes, por diversos fatores dentre os já

apresentados (dificuldades de tempo, custos e prazos para regularização) e outros que ainda serão

abordados.

Estes dados, cruzados com as observações do campo, mostram ainda uma diferença grande na

forma de estabelecimento destes migrantes. Especialmente os bolivianos e paraguaios se destacam por

circularem e se fixarem nas cidades através das oficinas de costura. Peruanos apresentam maior

diversidade de ocupações. Apesar do discurso de representantes de ONGs e dos próprios representantes

da comunidade, a migração relacionada a costura mostra indícios de ocorrer mais por redes sociais (como

“parentes” – foram identificados vínculos próximos e bastante distantes nestas relações, como primos de

terceiro grau ou parentes de parentes que não possuem vínculo direto, mas ainda assim são

mencionados como parentes) e pelas condições socioeconômicas da Bolívia do que por algum fator que

conecte a cultura ou identidade nacional dos bolivianos com a costura.

Eles se organizam em bairros como o Bom Retiro, Brás, Pari – que por serem mais antigos

concentram a comunidade de forma mais organizada e migrantes com maior nível educacional – e outros

mais recentes como Casa Verde, Vila Nova Cachoeirinha, Itapevi, Santa Izabel, Jardim Brasil e cidades da

região metropolitana como Guarulhos, Itapevi, etc. Há grande fluxo entre eles e também outros locais.

Estas “migrações” internas acontecem por diversos motivos, como relata outra entrevistada:

“Conheci uma família que morava na Vila Nova Cachoeirinha. Moravam nos

fundos de uma casa e tinham uma oficina que ia muito bem. Compraram um bom

carro, e logo – pela atenção que o carro chamava – a casa foi assaltada. Eles

juntaram suas coisas e se mudaram daquela casa pelo medo que sentiam de que

fosse assaltada novamente. Incentivei que eles fizessem um B.O., mas não

quiseram porque não eram regularizados. Quando fui a uma reunião do conselho

municipal de segurança e relatei os frequentes assaltos na região, especialmente

à comunidade migrante, a polícia duvidou de mim e disse que não tinha como

mobilizar esforços para policiamento, pois não havia nenhum boletim de

ocorrência relatando assaltos naquela região.”

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Através das pesquisas e visitas a campo, identificamos cinco diferentes grupos de migrantes

entre os trabalhadores da cadeia da costura, apresentados na tabela abaixo. Esta classificação foi definida

pela percepção da equipe de campo, não pretendendo ser exaustiva das possibilidades e diversidade dos

migrantes, nem afirmando ter bases cientificas e estatísticas. Sua função é reunir as percepções

encontradas afim de facilitar a compreensão dos diferentes grupos envolvidos e potenciais beneficiados

pelo projeto. Esta tabela também não inclui, por exemplo, os aliciadores dos trabalhadores traficados,

que geralmente são da mesma nacionalidade e transitam entre os dois países.

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Identificação Intenções Principais desafios

Pioneiros – vieram com 18 a 30 anos, ao longo da

década de 90, buscando melhores condições de vida.

Substituíram os coreanos na operação das maquinas

de costura e buscaram estabelecer suas próprias

oficinas e canais de comercialização para “fugir” da

exploração, mas continuam precisando se sujeitar aos

preços praticados pelos intermediários ou tendo

péssimas condições de trabalho, como é o caso dos

que comercializam na Feira da Madrugada (eles

produzem até dez da noite, dormem, acordam 4 da

manhã para ir para a feira e montar o stand. Ficam na

feira até 14 ou 15h, voltam a produzir até às 22h, e o

ciclo recomeça.) Como vieram jovens e com foco em

trabalhar, dizem que “perderam sua juventude para a

máquina de costura”, e tem baixa escolaridade e pouca

proatividade na busca de conhecimentos que não

sejam diretamente relacionados às suas necessidades

mais diretas – como é o caso da nota fiscal eletrônica.

Inicialmente vinham com o objetivo de passar alguns poucos

anos (2 ou 3), fazer economias e retornar à Bolívia. Porém,

constituíram família no Brasil (geralmente voltaram para se

casar e trouxeram a esposa), e seus filhos (nascidos e

criados no Brasil) não querem voltar à Bolívia junto com os

pais, o que acaba fazendo com que se estabeleçam de forma

mais definitiva no Brasil.

São eles os que geralmente buscam organizar ou participar

de associações e cooperativas que tem como objetivo

melhorar as condições deles mesmos, geralmente focadas

nas vendas, como é o caso da COOBIVECO.

Demonstram certa abertura para aprender mais sobre

gestão, mas questionam as possibilidades de negociação

(pois tentam exaustivamente aumentar os preços pagos

pelos intermediários sem sucesso) e as cooperativas e

associações tem grandes dificuldades de manter suas

atividades e gestão, aumentando a desconfiança.

Como donos de oficinas, mencionam a dificuldade de

encontrar e manter trabalhadores comprometidos.

Como pais e mães de família, se esforçam para que

seus filhos estudem e não sigam o trabalho com a

oficinas de costura, pelas dificuldades práticas e legais

que encontram diariamente.

Não tem conhecimento sobre a precificação ideal para

suas atividades, e especialmente em épocas de

escassez de trabalhos (janeiro e julho) aceitam

pagamentos irrisórios para não ficarem sem nenhuma

receita para pagar despesas fixas como aluguel, contas

de água, luz, alimentação, etc.

“Novos pioneiros” ou familiares: geralmente tem

parentes (mesmo que bastante distantes como já

mencionado) ou amigos que já estão no Brasil e vem

atraídos pelas experiências e ganhos destes, com a

mesma intenção de ficar pouco tempo e juntar

dinheiro para se estabelecer melhor no pais de origem

ou apoiar familiares que ficam. Alguns tem o mesmo

destino que os pioneiros apresentados acima, outros

migram para outros lugares que parecem mais

Como tem o objetivo claro de trabalhar e juntar o maior

volume de dinheiro possível, estes jovens – geralmente de

baixa escolaridade e de origem humilde – escolhem a opção

de trabalho que conseguem encontrar que mais se encaixa

com este objetivo. Como na costura o pagamento é feito por

peça e há conhecidos deles envolvidos e que oferecem

moradia e alimentação, se envolvem em oficinas de costura

e trabalham duro todo o tempo que conseguem. Em um

depoimento, um entrevistado disse “Eu começava a

São bastante vulneráveis a trabalhar em condições

análogas à escravidão e resistem a esta terminologia.

Se forem perguntados, vão dizer que trabalham com

costura em situação “normal”.

Tem grande mobilidade entre oficinas. Se cansam ou

tem algum conflito com o empregador ou colegas

buscam outra oficina de costura e replicam o mesmo

ciclo.

Como o convívio entre os trabalhadores é muito

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vantajosos, e outros acabam realmente voltando para

o país de origem após um período de trabalho intenso.

Confiam mais nos parentes do que nas instituições

(inclusive bancos) brasileiras, e por isso tem pouco

interesse em se regularizar.

trabalhar as 8, parava para almoçar, depois voltava a

trabalhar até à noite. Se eu parasse de trabalhar, não tinha o

que fazer. Ia fazer o que? Assistir novela? Prefiro trabalhar

mais.”

intenso (geralmente trabalham e dormem na mesma

casa, e as separações dos quartos onde dormem

famílias inteiras dividindo uma cama, ou jovens homens

e mulheres são feitas com armários ou lençóis e o

banheiro é compartilhado, havendo pouca privacidade)

“Sonho no Brasil” – jovens de 18 a 30 anos que vem

para o Brasil buscando oportunidades de trabalho e

estudo, não necessariamente na costura. Vem atraídos

pela imagem positiva do Brasil ou convidados por

amigos e parentes.

Projetos como o !Si Yo Puedo! atraem e apoiam estes

jovens, mobilizando-os principalmente na Praça

Kantuta, espaço de convivência da comunidade

boliviana aos domingos.

Os filhos e netos de migrantes “pioneiros” se parecem

bastante aos membros desta categoria.

Vem com o desejo de se estabelecer no Brasil, trabalhar

aqui e talvez voltar para o país de origem, mas não

necessariamente. Quando são filhos ou netos, vão visitar

eventualmente, mas se estabelecem aqui. Nas visitas de

campo foi relatado o caso (isolado, mas representativo) de

um jovem boliviano de 24 anos que veio para o Brasil “fazer

a vida aqui” e nem sabia da relação dos bolivianos com as

oficinas de costura. Encontrou moradia (um colchão,

banheiro e um espaço para deixar suas coisas) em um

estabelecimento comercial de uma liderança da

comunidade boliviana e com as economias que trouxe se

regularizou, fez um curso de corretor de imóveis e está

trabalhando como corretor profissional.

O idioma é uma das grandes barreiras a ser transposta

pelos jovens migrantes com intenção de se estabelecer

mais definitivamente no Brasil. Há poucas opções de

cursos, mas parece que tem aumentado.

A desconfiança geral nas instituições ligadas aos

serviços voltados para migrantes e a falta de

conhecimento sobre os tramites da regularização

também são barreiras para os jovens migrantes, que às

vezes se envolvem primeiro na costura para ganhar

algum dinheiro e entender como as coisas funcionam, e

depois saem desta profissão buscando novas

oportunidades.

Traficados / Aliciados – há muito menos informação

disponível sobre estes. O acesso a eles é quase

exclusivo dos donos de oficina que empregam este tipo

de trabalho e das ONGs que trabalham com apoio na

obtenção de direitos (como o CAMI), mas somente

quando conseguem encontrar informação sobre onde

buscar apoio e aos trabalhadores resgatados em

operações policiais. Parecem ser bastante diversos,

tendo em comum a situação de pobreza no país de

origem.

São aliciados por anúncios de salários promissores e

despesas de viagem cobertas pelo empregador, incluindo,

por exemplo, a alimentação durante a viagem. Entram no

país em ônibus e vans fretados que entram pela fronteira de

Foz do Iguaçu, onde há maior fluxo e menor fiscalização.

Chegam diretamente na oficina onde irão trabalhar.

Não tem acesso a nenhuma informação sobre a cidade,

idioma, serviços de apoio e etc.

São geralmente os casos mais extremos, e que acabam

aparecendo mais na mídia quando são descobertos.

Incluem casos de trabalho infantil, casos de assédio

físico e moral dos trabalhadores, retenção de

documentos dos trabalhadores, etc.

Há relatos de “quadrilhas” de tráfico de pessoas

formadas por donos de oficinas e criminosos.

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Mulheres – as mulheres serão separadas aqui por

terem alguns pontos específicos. Dados os riscos de

violência (especialmente sexual) das viagens

transfronteiriças, as mulheres geralmente vêm muito

jovens aliciadas como trabalhadoras traficadas

diretamente para uma oficina de costura, são trazidas

em um segundo momento por seus familiares já

estabelecidos no Brasil ou são parte da segunda ou

terceira geração (estas já tem características diferentes

das descritas aqui, pois são cidadãs brasileiras

“plenas”). Apesar de ser um público pouco aparente,

foram encontradas várias publicações e eventos

realizados sobre temas diretamente relacionados à

vida das mulheres migrantes, como uma publicação

sobre a violência doméstica e como a mulher migrante

pode se proteger, denunciar e buscar apoio.

Em todos os depoimentos colhidos, apresenta-se a

relevância do trabalho das mulheres como trabalhadoras

nas oficinas de costura, seja na operação de máquinas de

costura ou no cuidado da limpeza do espaço de trabalho e

moradia e na preparação dos alimentos.

Também há o curioso caso de uma esposa de dono de

oficina que é modelista (costureira responsável pelo

desenho de moldes e costura de peças que serão modelos

para as oficinas) em uma oficina intermediária de

propriedade de um coreano. Questionado sobre a razão de

ela não trabalhar para a oficina da família, o dono da oficina

explicou que eles possuem uma renda mais constante com

ela trabalhando fora, e que eles já não fazem modelagem na

oficina porque agora só respondem à encomendas.

A violência e assédio moral, psicológico, patrimonial,

físico e sexual são crimes previstos pela Lei Maria da

Penha com o objetivo de proteger as mulheres de

crimes comuns no Brasil. Estes mesmos crimes

acontecem contra as mulheres migrantes, que tem sua

situação agravada pelos fatores intrínsecos à sua

condição de migrante, como a falta de informação

sobre a legislação nacional e a desconfiança e

arbitrariedade das autoridades em relação à proteção

de direitos de cidadãos de outras nacionalidades.

Foi relatado também por um entrevistado que muitas

mulheres tem problemas com sua regularização no

Brasil por terem antecedentes criminais no país. Em sua

vinda, algumas acabam sendo convencidas por

criminosos a receber de 100 a 150 dólares para

carregar consigo pacotes para “amigos” que estarão

esperando por elas no Terminal da Barra Funda. Estes

pacotes contém drogas, e se há fiscalização do ônibus

elas são fichadas já na sua entrada no Brasil. Este

antecedente criminal impede a retirada do visto

permanente e da carteira de trabalho, deixando-as

mais vulneráveis a situações piores de trabalho.

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O foco de todos os grupos apresentados acima é o trabalho, e este foco gera conflitos

conceituais em relação à percepção do trabalho escravo pelo potencial público alvo. Em um depoimento,

um “pioneiro” que está há mais de 20 anos no Brasil diz (tradução livre):

“Este tema do trabalho escravo é complicado. Nós viemos para trabalhar,

queremos estar o mais perto do lugar de trabalho, não temos dinheiro

para alugar um espaço separado para morar e nem para nos alimentar

fora. Queremos que todo o dinheiro seja usado para enviar para nossa

família que ficou na Bolívia ou para irmos até lá visita-los.”

Um ponto interessante mencionado em diversas entrevistas, reportagens e pesquisas é que

muitas vezes há horas (ainda mais) adicionais de trabalho para entregar uma encomenda maior no prazo

estabelecido. É então combinado entre os trabalhadores e donos de oficina que após a entrega da

encomenda haverá uma “festa”. Todos trabalham 16 a 18 horas por dia para entregar a encomenda, e

depois da entrega saem para almoçar, ou cozinham um almoço especial, com comidas típicas, e cerveja

boliviana.

A saúde é também um tema central para muitos que vem ao Brasil. O SUS, com todos os seus

desafios, é um sistema muito mais avançado que os existentes na Bolívia e no Paraguai, e há migrantes

que chegam ao Brasil buscando um transplante ou até uma consulta para uma doença mais grave. E os

hospitais e clinicas de São Paulo já sentem esta presença há alguns anos. Em visita de campo, fomos

convidados por uma dentista boliviana para participar de uma reunião realizada com voluntárias do

Hospital Sírio-Libanês, referência em saúde em São Paulo, onde a dentista apresentou questões

especificas da cultura boliviana em relação à saúde e higiene bucal das crianças. Encontramos em campo

a preocupação de vários migrantes com a tuberculose, pois há poucos dias um membro da comunidade

havia falecido devido à doença. A matéria abaixo evidencia vários pontos de atenção em relação à saúde

do migrante e sua relação com o SUS. A matéria é de 2003, e segundo depoimento de membros da

comunidade hoje em dia o atendimento ao migrante tem sido oferecido normalmente em São Paulo.

As estatísticas disponíveis divergem sobre o número de migrantes bolivianos em São Paulo,

variando de 40 até 500 mil pessoas. Parte desta dificuldade de mapeamento do tamanho da comunidade

migrante se dá pela não regularização de muitos dos migrantes, e outra parte pelo altíssimo grau de

mobilidade dos migrantes, que buscam sempre o local que irá oferecer mais oportunidades de realizarem

seu sonho de formar uma poupança e voltar para seu país de origem.

Portanto, um dos principais fatores que define a decisão de ir ou ficar no Brasil ou na Argentina,

mais que laços familiares, possibilidades de trabalho decente ou serviços de saúde é a busca por

melhores taxas de câmbio. Ou seja, quanto mais valorizada a moeda estrangeira em relação à moeda

boliviana, maior a tendência de os migrantes ficarem no pais. Se o Brasil ou a Argentina tem grandes

variações cambiais e um ou outro se mostra mais vantajoso, segundo os bolivianos entrevistados há

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grande fluxo de migrantes entre estes dois países. Adicionalmente, a Argentina possui a vantagem do

idioma, mas as condições de trabalho são muito similares e segundo alguns relatos, há mais preconceito.

No Brasil, o preconceito é aparentemente menos sentido, mas fica claro que existe. Um dos

entrevistados relatou que, procurando um imóvel para alugar, ligou para várias imobiliárias e corretores.

Nas ligações todos se mostravam muito disponíveis, falavam bem do imóvel e mencionavam o valor do

aluguel. Reafirmado o interesse, era agendada uma visita, e nela os corretores já demonstravam um

comportamento totalmente diferente, destacando os pontos negativos do imóvel e falando um preço

maior de aluguel, o que evidencia um preconceito velado. Inclusive esta discriminação é percebida

mesmo em relação, por exemplo, a médicos bolivianos que vem atuar no Brasil. Coincidentemente um

dos membros da equipe de campo presenciou este preconceito, pois estava buscando um apartamento

para alugar, e uma corretora disse “se você quiser alugar este, me avise logo, porque tem um boliviano –

médico até – que já está preparando a documentação, mas se você quiser damos preferência para você”.

INSTITUIÇÕES

Entender esta atitude de negação do racismo e intolerância é fundamental para compreender o

papel das instituições e organizações que afetam e/ou são afetadas pela imigração crescente dos

bolivianos no Brasil.

Considerando que as organizações atuam sob instituições formais (leis e regras escritas), o

desempenho e a confiança nestas últimas são fundamentais para o desempenho das primeiras.

Claro que deve-se considerar ainda as instituições informais (tradições, padrões de cultura,

normas de comportamento), que influenciam fortemente a elaboração e até mesmo a estabilidade das

instituições formais. Estados, como a Bolívia e o Brasil, que possuem uma forte fragmentação linguística e

étnica, tendem a possuir instituições formais mais frágeis. A desigualdade social elevada tende a construir

instituições informais como mecanismos de defesa e proteção coletiva. Não necessariamente são

instituições ruins, mas em geral são menos adequadas aos mercados e com uma maior resistências as

mudanças.

As mudanças promovidas com as reformas econômicas no Brasil na década de 90, não foi

necessariamente também uma mudança política. Embora sob uma nova Constituição (1988), algumas

instituições brasileiras, como no caso da Lei de Imigração, ainda são escritas da época da ditadura, o que

ocasiona um choque de interesses entre as necessidades de integração comercial (livre mobilidade de

capital humano como membro do Mercosul, por exemplo) e o não direito a voto nas eleições para os

migrantes (voz política).

Constantes mudanças nas leis de integração entre os dois países, como a recente exigência

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tanto por parte da Bolívia como por parte do Brasil em exigir novos documentos e comprovantes (acho

importante especificar um pouco mais ou colar o link para a noticia aqui), colaboram para que as

organizações que atuam para solucionar, ou ao menos mitigar, os problemas da integração dos migrantes

junto a sociedade venham a sofrer dificuldades de desempenho e aumentar os custos de transação,

dando espaço para que organizações ilegais atuem no mercado como, por exemplo, o tráfico de pessoas.

DIFICULDADES E FORMAS DE COMUNICAÇÃO

Um ponto importante para o sucesso do projeto, a partir da definição clara da sua forma de

atuação, será a comunicação com os atores chave envolvidos na lógica proposta para contribuir para a

resolução do problema. Há grandes desafios de comunicação colocados, seja pelos meios disponíveis ou

pelas mensagens que se pretende passar. Como a Aliança Empreendedora e a Fundação Rockefeller são

novas neste cenário (pelo menos localmente), terão também que trabalhar com a grande desconfiança

que existe entre os atores e com novos projetos.

Há relatos de ações que acabaram sendo “julgadas” como tentativas de “se aproveitar” dos

envolvidos, como foi o caso de um relato feito por um ex-dono de oficina, que disse que uma ONG

cobrou 10% sobre encomenda para apoiar a negociação direta com cadeias maiores.

Cada um dos públicos identificados como partes da cadeia tem formas diferentes e especificas

de acesso a informações, e os diferentes meios e linguagem ideal terão que ser investigados de acordo

com a intenção da comunicação. Este ponto está sendo destacado por ser visto como eixo fundamental

para o sucesso do projeto, pois a impressão geral coletada em campo a partir da perspectiva dos

migrantes é que eles geralmente são colocados como “vilões” e “exploradores” na mídia, e isto os

incomoda.

Houve relatos de que inclusive os coreanos, apesar de aparecerem menos nos casos

noticiados, se incomodam com a forma como são apresentados. Casos como o dos jovens que

estavam “à venda” na praça Kantuta geraram desconforto e choque aos entrevistados, pois

entendem que a maioria dos migrantes vem ao Brasil buscando melhores oportunidades e .

condições de vida, e que os casos como o mencionado não são parte desta maioria, apesar de serem mais

mostrados pela mídia.

Apesar de dispersa por várias regiões da cidade e – cada vez mais – do Estado de São Paulo, a

comunidade migrante – especialmente boliviana – ligada à costura de forma mais “livre” (em

contraposição aos traficados) apresenta indícios de ser fortemente conectada, trocando informações de

forma presencial, em espaços públicos e abertos como a Praça Kantuta, o Parque do Trote na Vila

Guilherme e a Feira da Madrugada ou em reuniões organizadas pelas associações, cooperativas ou ONGs

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que apoiam estes migrantes. Também há intensa troca de informações por meio das rádios web que

transmitem programas em idiomas tradicionais (quíchua e aimara), espanhol e português, geralmente

misturados. Alguns programas fazem até conexões diretas com a Bolívia e Paraguai, repassando

informações sobre os acontecimentos recentes, como a enchente que gerou uma grande mobilização da

comunidade boliviana para a arrecadação de roupas e alimentos não perecíveis que foram enviados para

as vítimas.

Ao mesmo tempo, os migrantes traficados para o Brasil para trabalhar nas oficinas tem acesso

muito mais limitado a qualquer meio de comunicação, sendo muitas vezes monitorados por seus

empregadores. Não há contato com as rádios segundo relatos de um ex-dono de oficina alguns nem tem

acesso a celulares, somente a um telefone fixo do empregador para fazerem chamadas para familiares na

Bolívia, que são descontadas de seu salário posteriormente.

LEGISLAÇÃO E PERCEPÇÕES – TRABALHO ESCRAVO

Mais de um século depois da assinatura da Lei Áurea, o Brasil e o mundo ainda não

podem dizer que estão livres do trabalho escravo. A Organização Internacional do Trabalho (OIT)

estima que existam pelo menos 12,3 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado em todo

o mundo, e no mínimo 1,3 milhão na América Latina. Os lucros gerados pelos produtos do

trabalho escravo a cada ano chegam a US$ 31,7 bilhões, sendo que metade disso fica em países

ricos, industrializados.

Com base nas observações sobre as condições de trabalho em diversos países, a OIT

aprovou, em 1930, a Convenção 29, que pede a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório.

Compreendendo “trabalho forçado ou obrigatório" como todo trabalho ou serviço exigido de

uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Mais tarde, em 1957, a Convenção 105 foi além, ao proibir, nos países que assinaram o

documento, “o uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou

de educação política; como castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; como

mobilização de mão de obra; como medida disciplinar no trabalho; como punição por

participação em greves; ou como medida de discriminação”.

O Brasil, que assina as convenções, só reconheceu em 1995 que trabalhadores locais

ainda eram submetidos a trabalho escravo. Mesmo com seguidas denúncias, foi preciso que o

país fosse processado junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) para que começasse a

combater o problema.

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Hoje, a OIT aponta como exemplo a política pública e as ações de Estado brasileiras

para reprimir a ocorrência de trabalho escravo, porém o país ainda enfrenta grandes

dificuldades para punir os responsáveis pelo trabalho escravo.

Em 1995, foi criado o Grupo Executivo de Repressão do Trabalho Forçado, responsável por

coordenar e implementar as providências necessárias à repressão ao trabalho forçado; e também o

Grupo Especial de Fiscalização Móvel que visa regularizar os vínculos empregatícios dos trabalhadores

encontrados e libertá-los da condição de escravidão. Da criação do grupo até 2012, 43.545 pessoas foram

libertadas do trabalho escravo no Brasil.

Em 2003, foi lançado o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, e para o

seu acompanhamento foi criada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

(Conatrae), com a participação de instituições da sociedade civil pioneiras nas ações de combate

ao trabalho escravo no país. O plano expressa uma política pública permanente que deve ser

fiscalizada por um órgão ou fórum nacional dedicado à repressão do trabalho escravo e também

medidas a serem cumpridas pelos diversos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário,

Ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira.

Em dezembro do mesmo ano, o Congresso aprovou uma alteração no Código Penal

para estabelecer parâmetros objetivos para definir o que chama de "trabalho em condições

análogas à escravidão". O texto do art. 149 do Decreto-Lei no 2.848/40, expõe que: “Reduzir

alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada

exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por

qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

A pena para esse crime é reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena

correspondente à violência. A pena pode chegar a 12 anos se o crime for cometido contra

criança ou por preconceito. A iniciativa acompanhou a legislação internacional, que considera o

trabalho escravo um crime que pode ser equiparado ao genocídio e julgado pelo Tribunal Penal

Internacional.

Nas mesmas penas incorre quem: cerceia o uso de qualquer meio de transporte por

parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; e mantém vigilância ostensiva

no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o

fim de retê-lo no local de trabalho.

Porém, a legislação praticamente não foi aplicada, deixando no ar a sensação de

impunidade, apontada pela OIT como uma das principais causas do trabalho forçado no mundo.

Tanto que já há propostas no Congresso que aumentam a pena e tentam definir de maneira

mais precisa o crime da escravização contemporânea.

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Estão em debate também, alguns instrumentos legais que o Ministério Público do

Trabalho poderá utilizar para buscar a responsabilização judicial de empresas que comandam

cadeias produtivas e terceirizam sua produção, pela contratação de funcionários que trabalham

em condições análogas à da escravidão.

Um deles é a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho que proíbe a terceirização da

atividade-fim das empresas. Contudo, há questionamentos sobre ela no STF, que ainda não pacificou

entendimento sobre o assunto.

Outro é a Teoria do Domínio de Fato, que poderá ser utilizada assim que for consolidado o

julgamento do mensalão no STF. A Teoria afirma que é autor (clique para acessar a definição jurídica de

autoria), e não mero partícipe, a pessoa que, mesmo não tendo praticado diretamente a infração penal

(clique para acessar a definição jurídica de infração penal), decidiu e ordenou sua prática a subordinado

seu, o qual foi efetivamente o agente que diretamente a praticou em obediência ao primeiro.

Especificamente em São Paulo, no dia 28/01/13 foi regulamentada a lei paulista número

14.946, de autoria do deputado estadual Carlos Bezerra Junior, vice-presidente da Comissão de Direitos

Humanos. A lei decreta que além das penas previstas na legislação própria, será cassada a eficácia da

inscrição no cadastro de contribuintes do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias

e sobre prestações de serviços de transporte interestadual intermunicipal e de comunicação (ICMS) dos

estabelecimentos que comercializarem produtos em cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas

etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo.

Sem o registro no ICMS, as empresas ficam impedidas de estabelecer relações comerciais no

estado. A punição também atinge sócios e empresas terceirizadas, que não poderão solicitar pedido de

inscrição de nova empresa, no mesmo ramo de atividade por dez anos. Os envolvidos perdem ainda o

direito de receber créditos do Tesouro do Estado de São Paulo.

Para a cassação do registro estadual da empresa será necessária apenas a decisão de um

colegiado de juízes. A ação poderá ocorrer tanto na esfera criminal quanto na trabalhista, mesmo que

exista possibilidade de recurso. O decreto altera a regulamentação anterior, feita pela Portaria CAT 19 da

Secretaria Estadual da Fazenda, que previa que o processo de cassação seria baseado em condenação

criminal transitada em julgado, de pessoa vinculada à empresa que tenha feito exploração de trabalho

escravo.

No dia 27/05/13, através da lei nº 15.764, foi instituída a Comissão Municipal de Erradicação do

Trabalho Escravo (COMTRAE), órgão colegiado da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania

(SMDHC). O decreto lei nº54.432 de 07/10/2013, regulamenta a COMTRAE/SP, que tem por finalidade

propor mecanismos para a prevenção e o enfrentamento ao trabalho escravo no âmbito do Município de

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São Paulo, em articulação com o II Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e o II Plano

Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

Como já mencionado, muitas vezes os trabalhadores “mais livres” não entendem sua situação

como análoga à escravidão, mas como uma escolha para gerar uma poupança e voltar ao seu país de

origem (mesmo que isso acabe não acontecendo, é a intenção de muitos). Inclusive, eles expressam que

“não há algemas, ninguém está preso ao trabalho, então não é escravo”. Porém, de acordo com a

legislação vigente, há vários elementos que enquadram o tipo de trabalho que realizam nesta categoria.

É importante notar que esta diferença de percepção é um dos itens mais importantes na

comunicação do projeto, já que diferentes atores podem inclusive ser ofendidos pela utilização de um

posicionamento ou outro, já que todos os envolvidos tem conhecimentos e percepções diferentes sobre

o tema.

DENÚNCIAS DE TRABALHO ESCRAVO

Fizemos o processo de denúncia, mas não chegamos ao final do processo por não ter de fato o

que denunciar. A denúncia incialmente parece relativamente simples para uma pessoa com domínio de

português e confiança em realizar a denúncia, e segundo informações obtidas por telefone, pode ser

realizada por qualquer pessoa que tenha suspeitas de trabalho escravo, precisando informar somente o

nome do denunciado, cidade, estado e a descrição das irregularidades praticadas pelo denunciado.

Ao longo do processo, porém, aparecem várias informações conflitantes e confusas, e ligando

para a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em São Paulo para saber mais informações

sobre como denunciar havendo envolvimento de migrantes, duas vezes fui colocada em espera até a

ligação cair.

Uma das telas seguindo o formulário de denúncia do Ministério Público do Trabalho de São

Paulo mostra o seguinte texto: “Estou ciente de que, pelo artigo 339 do Código Penal, constitui crime de

denunciação caluniosa "dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração

de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém

imputando-lhe crime de que o sabe inocente", com pena de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto. ” Não

continuamos o processo para saber que informações seriam pedidas, e por telefone sempre fomos

orientados a procurar no site, mesmo depois de explicar que não faríamos uma denúncia no momento.

Não há um número de telefone especifico para denúncias ou informações sobre trabalho

escravo, somente para o trabalho infantil. Um excelente exemplo que poderia ser seguido é a central

nacional de atendimento à mulher, que funciona através do número telefônico 180, que oferece apoio

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24h por dia e 7 dias por semana recebendo ligações para repassar informações para qualquer cidadão

que queira saber sobre, especialmente, temas relacionados à Lei Maria da Penha. As atendentes estão

preparadas para explicar de forma simples e clara o que se enquadra como crime, quem pode denunciar,

onde e como a denúncia pode ser feita e se há outros serviços – municipais ou estaduais – de apoio à

mulher localmente. A ligação pode ser feita de qualquer telefone.

No site do Ministério Público do Trabalho (federal), há um formulário simples onde a denúncia

pode ser feita de forma anônima, mas não parece muito efetivo. Esta impressão (destacando que sim, é

uma impressão) vem do fato de ao acessar um blog que dava o link e explicava como fazer a denúncia

havia muitos comentários – aparentemente de trabalhadores – pedindo ajuda e dizendo que haviam feito

a denúncia pelo site e nenhuma providencia havia sido tomada. No mesmo site, encontra-se a seguinte

recomendação: “Para formalizar uma denúncia, basta acessar o portal www.mpt.gov.br. Na parte

superior da tela haverá o link “Procuradorias Regionais do Trabalho”, a qual remeterá para o site da

Regional pretendida. Neste as denúncias poderão ser feitas eletronicamente, clicando-se no link

“Denúncias”, porém, também poderão ser registradas pessoalmente ou por telefone, respectivamente no

endereço e número disponibilizados no site”.

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CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

Refletindo sobre todas as informações colocadas anteriormente e outras estudadas,

apresentamos aqui algumas recomendações e conclusões.

Como apresentado ao longo deste relatório, muitos dos donos de oficinas são também

explorados pela cadeia, e este parece ser um dos fatores mais relevantes para a exploração final do

trabalhador. Acreditamos que apesar de que se oferecêssemos o trabalho mais “tradicional” da Aliança

Empreendedora aos donos de oficina, que tem características claramente similares ao perfil de

microempreendedores já apoiados, haveria demanda e impacto, podemos estar sendo coniventes com o

tráfico de pessoas e trabalho escravo ao trabalhar somente sob esta perspectiva. Ao mesmo tempo,

oferecer este apoio com condições de apresentação de evidencias de que a oficina não realiza tais

práticas faria sentido, mas aumentaria muito o volume de trabalho sem zerar o risco de estarmos

apoiando infratores. Apoiar organizações formadas por donos de oficina para melhorarem suas condições

na cadeia também faria sentido, pois eles também são explorados pela cadeia.

Sugerimos fortemente o desenvolvimento de um código de ética a ser seguido pelos envolvidos

com o projeto, em que se comprometam a não participar de atividades como o tráfico de pessoas e de

somente trabalhar com imigrantes regularizados ou em vias de regularização.

Também não podemos trabalhar apenas com a base da cadeia. Este projeto demanda a atuação

estratégica na base e na ponta da cadeia, utilizando a credibilidade e rede de contatos da Aliança

Empreendedora e da Fundação Rockefeller de forma conjunta e estratégica para mobilizar atores

internacionais diretamente envolvidos com a causa (especialmente as grandes varejistas) para que se

comprometam com ações de longo prazo provocadas pela experiência do projeto. Este trabalho de

mobilização precisa ter algum trabalho de base já desenvolvido para ser iniciado, ou contar com o apoio

de organizações que já atuam internacionalmente com a causa, como é o caso da Clean Clothes

Campaign.

Também acreditamos que será necessário se articular fortemente com os atores já envolvidos

com a causa, mas sempre mantendo a imparcialidade, pois parecem haver divergências de opiniões e

formas de atuação que podem gerar conflitos. É importante que a Aliança Empreendedora e a Fundação

Rockefeller sim apoiem e sejam apoiados por estas organizações para aumentar as chances de sucesso do

projeto, porém acreditamos que o projeto deva seguir sua própria perspectiva, não “tomando partido”

em eventuais divergências que encontre entre os atores do campo.

Outra percepção que acreditamos ser relevante é que internacionalmente há uma ligação

intima entre o tráfico de pessoas e o trabalho escravo. Organizações que atuam internacionalmente na

causa e também as instituições locais geralmente atuam em três pautas simultaneamente: tráfico de

pessoas (exploração sexual de mulheres e crianças é um grande e recorrente subtópico), trabalho escravo

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(sendo dado muito mais foco ao meio rural) e também trabalho infantil. Isso prejudica a causa do projeto

por haver pouco apoio específico disponível, poucas informações e entendimento da causa por

organizações tradicionais do meio. Ao mesmo tempo, se apresenta como uma grande oportunidade de

pioneirismo, liderança e fortalecimento de uma causa que apenas começa a aparecer no “radar” nacional

e internacional.

Em 2013, pela primeira vez desde 2003, quando as informações começaram a ser coletadas, o

número de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em atividades urbanas superou

a quantidade de casos ocorridos em áreas rurais.

Este fato pode demonstrar que nos próximos anos haverá um crescimento do trabalho em

torno da causa, ou seja, acreditamos que há uma tendência que apoia a continuidade e aprofundamento

do trabalho que está sendo iniciado.