Dialogus 2010, v6. n1

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CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ” Departamentos de Geografia, História e Pedagogia DIALOGUS revista das graduações em licenciatura em Geografia, História e Pedagogia ISSN 1808-4656 DIALOGUS Ribeirão Preto v.6, n.1 p. 1-140 2010

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1DIALOGUS, Ribeirão Preto, v.6, n.1, 2010.

CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ”Departamentos de Geografia, História e Pedagogia

DIALOGUSrevista das graduações em licenciatura em

Geografia, História e Pedagogia

ISSN 1808-4656

DIALOGUS Ribeirão Preto v.6, n.1 p. 1-140 2010

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CENTRO UNIVERSITÁRIO BARÃO DE MAUÁ

Andréa Coelho Lastória, profª DrªAntônio Aparecido de Souza, prof. Ms.Antônio Carlos Lopes Petean, prof. Ms.Beatriz Ribeiro Soares, profª DrªCharlei Aparecido da Silva, prof. Dr.Dulce Maria Pamplona Guimarães, profª. Drª.Edvaldo Cesar Moretti, prof. Dr.Fábio Augusto Pacano, Prof. Ms.Francisco Sergio Bernardes Ladeira, prof. Dr.Ivan Aparecido Manoel, prof. Dr.José William Vesentini, prof. Dr.Aparecida Turolo Garcia, profª Drª José Luís Vieira de Almeida, prof. Dr.

Lélio Luiz de Oliveira, prof. Dr.Marcos Antonio Gomes Silvestre, prof. Ms.Maria Lúcia Lamounier, profª DrªNainora Maria Barbosa de Freitas, profª DrªPedro Paulo Funari, prof. Dr.Renato Leite Marcondes, prof. Dr.Robson Mendonça Pereira, prof. Dr.Ronildo Alves dos Santos, prof. Dr.Sedeval Nardoque, prof. Dr.Silvio Reinod Costa, prof. Dr.Taciana Mirna Sambrano, profª DrªVera Lúcia Salazar Pessoa, profª Drª

ChancelerProf. Dr.Nicolau Dinamarco Spinelli (in memorian)

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Diretoria ExecutivaSr. José Antonio P.Capito

Departamento Didático PedagógicoProfa. Esp. Dulce Aparecida Trindade do Val

Prof. Ms. Geraldo Alencar RibeiroProfa. Esp. Sara Maria Campos Soriani

Coordenadora das Graduações em Geografia e HistóriaProfa. Ms. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa

Coordenador da Graduação em PedagogiaProf. Ms. Cicero Barbosa do Nascimento

Comissão EditorialProf. Ms. Cícero Barbosa do Nascimento

Prof. Dr. Humberto Perinelli NetoProfa. Ms. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa

Prof. Dr. Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula Lopes

Conselho Editorial

Publicação Semestral/PublicationSolicita-se permuta/Exchange desired

DIALOGUSRua Ramos de Azevedo, n.423, Jardim Paulista

CEP: 14.090-180 – Ribeirão Preto - SP

DIALOGUS (Departamentos de Geografia, História e Pedagogia – Centro Universitário “Barão de Mauá”) Ribeirão Preto, SP – Brasil, 2010.2010, 6-1SSN 1808-4656

Capa: “Foto Noturna da Praça XV, 2008”. Ribeirão Preto, SP – 2010. Arquivo pessoal de Ricardo Pinghera.

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Prefácio

Chega, às mãos do leitor, a revista DIALOGUS v.6. E mais uma vez, nós do Centro Universitário Barão de Mauá sentimo-nos orgulhosos e honrados por apresen-tá-lo. A revista torna-se mais forte. O curso de Pedagogia junta-se aos cursos de Geografia e História para coordená-la. E a publicação que era, até então anual, passa a ser semestral. Esse número permanece, em sua essência, contendo os mesmos grandes diferenciais que sempre marcaram a DIALOGUS. Referimo-nos ao controle de quali-dade, cada vez mais exigente, imposto pelos coordenadores dos cursos de Geografia, História e Pedagogia e pelos docentes componentes da Comissão Editorial, para con-cretizar sua elaboração. E o cuidado com que é efetuada a seleção dos trabalhos que a compõem. Os temas tratados podem ser agrupados em três grandes vertentes que res-peitam as respectivas origens dos cursos envolvidos. O tema da educação faz-se pre-sente na entrevista de abertura: “Educação, contemporaneidade e formação docente: diálogos com José Romão”. Nessa entrevista, conduzida pelo prof. Dr. Humberto Perinelli Neto, são revelados, dentre outros, aspectos importantes para uma reflexão crítica a respeito da formação do docente de história e do pedagogo, e dos impactos da globalização e de seus desdobramentos sócio-culturais nos projetos educacionais brasileiros. Outros dois artigos ainda debatem assuntos referentes à educação: “A construção dos saberes da cultura escrita em Mato Grosso retratada nos cadernos escolares”, de Ana Lúcia Nunes da Cunha Vilela e “Condições de Trabalho e preca-rização do ensino médio público”, de Rodrigo Tavarayama e Maria Cristina Da Silveira Galan Fernandes. A história revela-se nos textos: “A participação da liga eleitoral católica na composição da Assembléia Constituinte de 1933”, de Filipe de Faria Dias Leite; “Ação e resistência dos cativos em Ribeirão Preto (1850-1888)”, de Antonio Carlos Soares Faria e Carlo Guimarães Monti e “Os ciganos no Brasil: exílio ritual ou rito de pas-sagem”, de Cláudia Bomfim. A geografia é discutida no artigo: “Perspectiva territorial da rede de informação sismográfica brasileira: rede sismográfica do sul e sudeste do Brasil-RSIS”, de Marcus Vinícius Albrecht Anversa e em um estudo regional: “Moder-nização no campo e urbanização na região de Ribeirão Preto – São Paulo (1950-2007)”, de Danton Leonel de Camargo Bini e Sarah Toniello Tahan.

Reitoria do Centro Universitário Barão de Mauá

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Apresentação ao sexto volume

Fechamos o ano de 2009 anunciando mudanças na elaboração da revista DIALOGUS e, conforme fora indicado, elas de fato ocorreram, já que neste ano corrente de 2010 modificações no sentido de estruturar cada vez melhor o periódico foram levadas adiante. A partir desta, podemos citar a semestralidade dos volumes, o recebimento de trabalhos em fluxo contínuo, a reorganização de funções na equipe de realização e a busca por base de dados e indexadores que possam divulgar amplamente aos leitores e colaboradores os trabalhos aqui publicados. Contudo, a mudança mais significativa foi a inclusão do curso de Pedagogia aos já envolvidos cursos de História e Geografia. Com isso, o espaço tradicional-mente dedicado à Educação na DIALOGUS ganha vigor e fica ainda mais reforçado o compromisso dos editores desta revista com a formação docente, preocupação que sempre tocou a direção do Centro Universitário Barão de Mauá. A DIALOGUS continua alicerçada em seus princípios fundadores, re-afir-mando que sua linha editorial está comprometida com a ética e seriedade necessárias à produção do conhecimento, caminho este que por vezes é longo, pois está engajado social e politicamente. Que os esforços movidos para este intento possam ser com-partilhados com os leitores.

Comissão Editorial

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SUMÁRIO/SUMMARY

ENTREVISTA/INTERVIEW

EDUCAÇÃO, CONTEMPORANEIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: DIÁLOGOS COM JOSÉ EUSTÁQUIO ROMÃOEducation, contemporaniety and teacher training: dialogues with José Eustáquio Romão Humberto PERINELLI NETO 11

DOSSIÊ/SPECIAL“AÇÕES E REAÇÕES DE GRUPOS HISTÓRICOS”/”ACTIONS AND REACTIONS

OF GROUP HISTORICAL”

OS CIGANOS E O BRASIL: EXÍLIO RITUAL OU RITO DEPASSAGEM?Gypsies and Brazil: ritual of exclusion or rite of passage? Cláudia BOMFIM 17

AÇÃO E RESISTÊNCIA DOS CATIVOS EM RIBEIRÃO PRETO (1850 A 1888)Action and resistance of the captives in Ribeirão Preto (1850 a 1888) Carlo Guimarães MONTI Antonio Carlos Soares FARIA 27

A PARTICIPAÇÃO DA LIGA ELEITORAL CATÓLICA NA COMPOSIÇÃO DA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DE 1933The participation of the Catholic Electoral League in the composition of the Constituent Council of 1933 Filipe de Faria Dias LEITE 49

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ARTIGOS/ARTICLES

EDUCAÇÃO/EDUCATION

A CONSTRUÇÃO DE SABERES DA CULTURA ESCRITA EM MATO GROSSO RETRATADA NOS CADERNOS ESCOLARESThe construction of knowledge of literacy culture in Mato Grosso (Brazil) the portrayed in school notebooks Ana Lúcia Nunes da Cunha VILELA 65

CONDIÇÕES DE TRABALHO E PRECARIZAÇÃO DO ENSINO MÉDIO PÚBLICOWorking conditions and precarious public high school Rodrigo TAVARAYAMA Maria Cristina Da Silveira Galan FERNANDES 85

GEOGRAFIA/GEOGRAPHY

PERSPECTIVA TERRITORIAL DA REDE DE INFORMAÇÃO SISMOGRÁFICA BRASILEIRA: A REDE SISMOGRÁFICA DO SUL E SUDESTE DO BRASIL - RSISPerspective of territorial network information seismograph brazilian: the Seismograph Network South and Southeast of Brazil - SNSS Marcus Vinícius Albrecht ANVERSA 101

MODERNIZAÇÃO NO CAMPO E URBANIZAÇÃO NA REGIÃO DE RIBEIRÃO PRETO - SP (1950-2007)Urbanization and modernization in the field in the region Ribeirão Preto - SP (1950-2007) Danton Leonel de Camargo BINI Sarah Toniello TAHAN 123

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ENTREVISTA / INTERVIEW

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EDUCAÇÃO, CONTEMPORANEIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: DIÁLOGOS COM JOSÉ EUSTÁQUIO ROMÃO

Humberto PERINELLI NETO*

Durante o mês de julho foi possível realizar a entrevista com o Prof. Dr. José Eustáquio Romão, estudioso que há quatro décadas se dedica a refletir sobre a edu-cação, seguindo de perto as concepções de Paulo Freire. Graduado em História, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1970), Doutor em Educação (1978) e Doutor em História Social (1996) pela Universidade de São Paulo, José Eustáquio Romão vivenciou uma rica carreira acadêmica dedicada ao ensino, pesquisa, extensão e gestão na Universidade Federal de Juiz de Fora, cidade mineira onde também ocupou cargos públicos na administração municipal (a de secretário municipal da educação, por exemplo). Espírito inquieto, após sua aposentadoria na Universidade Federal de Juiz de Fora, passou a se dedicar às pesquisas desenvolvidas no programa de Mestrado em Educação mantido pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE), em São Paulo, onde também coordena o Grupo de Pesquisa “Culturas e Educação”. Além disso, prosseguiu na condução de projetos associados ao Instituto Paulo Freire, instituição em que é diretor fundador e coordenador da Cátedra do Oprimido, bem como é responsável por projetos nacionais e internacionais na área de educação em parceria com o Ministério da Educação, a UNESCO, a Fundação Joaquim Nabuco, universidades nacionais e estrangeiras, entre outros. É autor de vários livros, dentre os quais se destacam: Poder local e educação (1992), Avaliação dialógica (1998); Dialética da diferença (2000); Pedagogia dialógica (2002), além de mais de três dezenas de artigos, publicados em periódicos científicos nacionais e estrangeiros. Apesar do envolvimento com vários projetos e demais compromissos, gra-ciosamente o Prof. José Eustáquio Romão aceitou o convite para responder esta en-trevista, desde o primeiro contato.

1) Em que pesa sua formação em história para reflexão de temas associados ao campo da Educação? José Eustáquio Romão – A formação em História tem me ajudado muito

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na intervenção e, especialmente, na reflexão em educação. Salvo raras exceções, o que se observa é que a formação do pedagogo peca bastante no que diz respeito à fundamentação sócio-histórico-política de seus profissionais e, na maioria das vezes, a reflexão pedagógica carece desses fundamentos de outras disciplinas do campo das Ciências Sociais. Felizmente, sinto-me privilegiado, pois a formação em História (graduação) e História Social (doutorado) deu-me uma base que tem me permitido dialogar com outros campos do conhecimento e isto parece-me fundamental na atu-ação e reflexão do educador.

2) Quais os efeitos da globalização para os projetos educacionais postos em prática em países como o Brasil?

José Eustáquio Romão – Como diz Boaventura de Souza Santos, há várias globalizações. Se nos referirmos à globalização hegemônica proposta pelo Neolibe-ralismo, o fenômeno afetou profundamente as políticas sociais em todo o mundo e, de modo especial, nos países da periferia do Capitalismo, porque dentre seus princípios fundamentais, podem-se destacar os ajustes financeiros e o consequente recuo do Estado na formulação, implantação e implementação de políticas sociais. Ora, a edu-cação insere-se no universo dessas políticas e, por isso, foi profundamente impactada com a redução de gastos, sacrificada no altar dos equilíbrios orçamentários públicos. Pode-se observar, por exemplo, no Ensino Superior brasileiro o fenomenal cresci-mento da rede privada, por conta da redução de investimentos nas universidades públicas e o represamento de uma demanda crescente de jovens que concluíram o Ensino Médio e não têm onde continuar seus estudos. 3) Levando em conta aspectos caracterizantes da contemporaneidade - como mul-ticulturalismo, redes sociais de comunicação, entre outros - qual o significado das concepções de Paulo Freire para as reflexões e práticas associadas à educação no quadro social atual?

José Eustáquio Romão – O pensamento de Paulo Freire é um dos mais multiculturais e um dos mais conectivos que conheço. Neste último aspecto, inclusive, é bom examinar a bela tese de doutoramento defendida pelo Prof. Dr. Jason Ferreira Mafra na Universidade de São Paulo e que leva por título “Paulo Freire, o Menino Conectivo”, sem falar que, há alguns anos, quando veio ao Brasil, Alvin Toffler, con-vidado para proferir conferência sobre redes de conexão e comunicação, teria dito que vivia no Brasil o homem que mais entendia do tema e que se chamava Paulo

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Freire. Com todos os descontos da declaração subjetiva de modéstia, o conferencista não precisava fazer uma referência direta ao educador pernambucano, se este não tivesse realmente desenvolvido uma práxis e uma reflexão conectivas. Quanto ao multiculturalismo, o próprio princípio fundante da Pedagogia Freiriana é um manifesto ao multiculturalismo, na medida em que ele propôs o “Círculo de Cultura” como me-todologia e como procedimento básico do processo educação. E que é o Círculo de Cultura, senão o encontro das culturas, por meio de seus sujeitos, que interagem, no círculo, com seus conhecimentos primeiros (imediatos) para a construção dos novos conhecimentos (mediatos)?

4) Que balanço pode ser feito sobre as políticas públicas de educação levadas a cabo a contar da redemocratização brasileira? José Eustáquio Romão – É muito difícil fazer um balanço adequado e ho-nesto de toda a educação brasileira da redemocratização, seja pela vastidão do tema, seja pela variedade de sistemas educacionais, redes de ensino, graus de escolariza-ção, modalidades etc. Numa visão panorâmica, pode-se dizer que o balanço é posi-tivo, apesar das decepções, sejam as decorrentes de um otimismo exagerado quando da redemocratização e, por isso, não atendidas, sejam as que frustraram legítimas ex-pectativas. Um exemplo das primeiras pode ser mencionado, quando nos lembramos de uma espécie de “messianismo pedagógico” que tomou conta de várias correntes de pensamento educacional, que pensavam ser a educação capaz de resolver todos os problemas de uma sociedade desigual e que saía de uma ditadura de mais de duas décadas. Um exemplo das segundas diz respeito à Educação de Adultos, analisando as políticas de governos ditos “progressistas”. 5) Em que medida podemos falar numa pós-modernidade e o que representa o em-prego deste termo nas reflexões e práticas associadas à educação?

José Eustáquio Romão – Não sou a pessoa mais indicada a falar sobre o tema, porque embora tenha lido muito os auto e hétero denominados “pós-moder-nistas”, acabei por não entender muito bem o que pretendiam (e pretendem). Posso falar apenas de uma impressão que me ficou: em que pese a heterogeneidade – de fato, eles não constituem uma corrente única de pensamento –, mais uma tentativa eurocêntrica de superação do eurocentismo. É claro que aí também se incluem os pensadores pós-modernos norte-americanos. Por isso, seria, talvez, mais correto falar de uma tentativa de superação da hegemonia com uma reflexão hegemônica. Os

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pós-modernistas pouco impactaram a educação, dada a sofisticação afetada de suas elucubrações, a não ser uma pequena parcela dos intelectualóides periféricos que pretendem sempre estar up to date com as últimas especulações metafísicas dos pensadores metropolitanos. 6) Como pensar a formação de educadores frente às contradições de nosso tempo?

José Eustáquio Romão – Estamos numa verdadeira encruzilhada da forma-ção docente. De um lado, as pressões sociais e do próprio pensamento pedagógico conservador sobre a manutenção de uma formação tradicional, que vinha resolvendo o problema da escola elitista de maneira razoável. De outro, a demanda de uma nova escola, agora “tomada” por classes sociais de todos os matizes. Nossas escolas de formação continuam preparando profissionais docentes como se eles fossem tra-balhar nas escolas de décadas atrás, ou seja, preparando-os para “darem aulas” para alunos de culturas diversificadas, porque de origem sócio-econômica diversa, como se lecionassem para um único e mesmo estudante. Esta ideia é de Bernstein, que desenvolveu o conceito de “daltonismo cultural”. O que mais precisamos hoje é de uma verdadeira “revolução paradigmática” nas escolas de formação, para que os edu-cadores de amanhã a transfiram para as salas de aula em que irão trabalhar. Paulo Freire oferece pistas interessantes para este propósito.

PERINELLI NETO, Humberto. Education, contemporaniety and teacher training: dialogues with José Eustáquio Romão. DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.6, n.1, 2010, p.11-15.

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DOSSIÊ/SPECIAL“AÇÕES E REAÇÕES DE GRUPOS HISTÓRICOS”/”

ACTIONS AND REACTIONS OF GROUP HISTORICAL”

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OS CIGANOS E O BRASIL: EXÍLIO RITUALOU RITO DE PASSAGEM?

Cláudia BOMFIM*

RESUMO: Os ciganos são personagens de uma história curiosa no Brasil: chegaram no século XVI desterrados pela Inquisição e pela política de saneamento da metrópole, no Rio de Janeiro do século XIX foram integrados a sociedade colonial e hoje são adorados como entidades religiosas. Atentando para essa história, questiona-se nesse texto a relação entre a exclusão e a integração destes ciganos que povoaram a colônia, bem como o fato de viverem no desterro um rito de passagem, ao invés de um exílio ritual.

PALAVRAS-CHAVE: ciganos; desterro; colonização.

Em 2006, o dia 24 de maio1 foi instituído por meio de decreto do presidente Lula, o Dia Nacional do Cigano. A criação desta data comemorativa foi justificada pelo “reconhecimento da importância da contribuição da etnia cigana no processo de formação da história e da identidade cultural brasileira”, num discurso que se assemelha ao de Mello Morais Filho que no final do século XIX defendia os ciganos como a quarta etnia formadora do povo brasileiro e da tão discutida “identidade nacional”. O curioso é observar como essas falas alimentam uma maneira diferente de enxergar os ciganos, maneira esta que me parece tipicamente brasileira. Uma representação carregada de um simbolismo cujas mensagens decodificam a transitividade entre o positivo e o negativo a que este povo remete. Enquanto o mundo inteiro ainda experimenta a perseguição a esta etnia, no Brasil existem mulheres que se consideram ciganas de alma, Santa Sara Kali possui um altar no Parque Garota de Ipanema (no Rio de Janeiro) e comemora-se o Dia Nacional do Cigano.

* É docente do Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e analista de qualidade da Fundação Getúlio Vargas (RJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, possui mestrado em Sociologia e Antropologia pelo mesmo Programa e graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.1Dia de Santa Sara Kali, padroeira dos ciganos.

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Este estudo pretende, pois, mostrar que os ciganos são personagens de uma história curiosa no Brasil: chegaram no século XVI desterrados pela Inquisição e pela política de saneamento da metrópole que os via como sujos; no Rio de Janeiro do século XIX foram integrados à sociedade colonial vistos como alegres e hoje são adorados como entidades religiosas. Ao considerar que o Brasil era comparado ao purgatório e a travessia marítima a um ritual de limpeza, busco compreender, numa perspectiva globalizante e de longa duração, a relação entre a exclusão e a integração destes ciganos que povoaram a colônia e que, em lugar de terem no desterro um exílio ritual, acabaram por vivenciar um rito de passagem. Uma nova imagem social dos ciganos foi construída na colônia associando-os à sensualidade e à alegria. No Rio de Janeiro do século XIX, os ciganos habitavam o que hoje é a Praça Tiradentes, possuíam uma rua com seu nome, eram comerciantes e traficantes de escravos e participavam de festas protocolares da corte portuguesa. Aos poucos a cultura cigana passou a fazer parte do cenário carioca, participando de um processo de integração que mesclava cultura ibérica e cultura colonial. Hoje os ciganos são muito mais que uma etnia e encarnam uma representação que desperta medo ao mesmo tempo em que é adorada. Experimenta-se a aceitação de uma figura liminar, criando um trânsito entre pólos opostos, estabelecendo uma fluidez de fronteiras que permite encontrá-los nos cultos afro-brasileiros, na literatura, na música, na mídia e em nosso calendário de datas comemorativas.

Inquisição e desterro: Brasil como exílio ritual

Em 1547 estabelece-se de forma definitiva o Tribunal da Inquisição em Portugal através da bula do papa Paulo III - Meditatio Cordis. A partir deste momento a Igreja se une à Coroa na luta contra as ameaças sociais, religiosas e morais, fortalecendo a idéia do poder do rei como representante de Deus (PIERONI, 1998). Equilibrando interesses, o Tribunal acabou funcionando como um instrumento de controle teológico e social, organizando um tipo de procedimento corretivo cujo mecanismo atendia tanto ao poder secular quanto ao relgioso. A idéia de penitência da Igreja se alia à de castigo do Estado, que por sua vez via no “desviante” um perigo que devia ser vigiado, investigado e punido. Neste contexto, um pensamento começou a incentivar parte das ações da Inquisição: a idéia de que a mais importante colônia de Portugal era um lugar muito distante, separado da metrópole pelo mar e por uma diversidade de riscos e doenças, insalubre e infestada do vício, um verdadeiro purgatório (SOUZA, 1993). Presente em

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A Divina Comédia, de Dante Aliguieri, a concepção de purgatório como um inferno de duração limitada passa a ser associado ora a um estado entre o Paraíso e o Inferno, ora a um lugar; um mundo intermediário, passageiro e purificador (PIERONI, 1997) E parece ter sido sob esta ótica que desembargadores e inquisidores enxergaram nas colônias portuguesas locais de purificação dos desvios e improbidades existentes no Reino. Um estado espíritual que ocupou temporalidade e espacialidade precisas, já que com a expansão marítima, os indesejáveis do Reino puderam ser banidos para as terras ultramarinas. (Idem)

E na cidade de Lisboa os corregedores da corte e da cidade, e juízes de crime della, se informarão particularmente cada três mezes, se há nella algumas pessoas ociosas e vadias, assi homens como mulheres. [...] E padecendo a cada hum dos ditos corregedores, que merecem mor castigo, o farão saber aos desembargadores do paço e com seu parecer alterarão as ditas penas mandando-os embarcar para o Brazil ou para Galés, per o tempo, que lhes bem parecer. (Ordenações Filipinas, 1579)

Brasil: Terra de perigos, inferno terrestre para cristãos ou não cristãos. Tribunais inquisitoriais, decretos e leis convergem para este mesmo ponto, vendo no desterro a possibilidade de penitência e castigo. Para o Estado, a importância estava em limpar o Reino usando o desterro como castigo, para a Igreja, purificar através da penitência que o desterro representava. “Purgar para Deus e sanear para o Rei” (SOUZA, 1993, p.89). A travessia marítima pretendia deixar afundada no Atlântico parte da sujeira herética desses degredados, que só poderiam ser totalmente purificados através de um “exílio ritual” que, além disso, mantinha a metrópole distante dos impuros e longe do risco de contaminação. Interessante notar, no entanto, o quão paradoxal se nos apresenta esta formulação que associa o Brasil ao inferno e ao purgatório, já que também é recorrente a presença de uma visão paradisíaca desta nova terra. Na carta de Pero Vaz e Caminha, na de Américo Vespúcio dirigida a Francesco de Médici, ou entre os cronistas quinhentistas, esse processo edênico que transcendentaliza a Natureza2 também deu à colônia portuguesa um status de terra prometida. Tal idealização do paraíso nas cosmologias cristãs sempre esteve relacionada a uma natureza idílica, associada à fertilidade, à vegetação luxuriante e à amenidade do clima. A visão do Brasil como natureza fez parte da romantização das terras ultramarinas e acabou criando raízes que fundamentaram o ufanismo que, segundo José Murilo de Carvalho,

2Sobre este tema ver: Holanda (1959).

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sobrevive até os dias de hoje (1998). O sagrado e o profano que o Brasil representava talvez tenha sido o principal fator para que a colônia se transformasse em estado intermediário, locus privilegiado de purificação onde as almas poderiam esperar o momento da visão beatífica de Deus (Pieroni, 1998), o purgatório por excelência. O desterro surge, portanto, como parte integrante de um ideário que vê a colônia numa relação dialética entre o sagrado e o profano, num processo que alternava exclusão e incorporação, na medida em que buscava introduzir este indivíduo, marginalizado na metrópole, numa sociedade colonial em estruturação.

A travessia marítima e a chegada ao novo mundo: um rito de passagem

Normalmente definidos como nômades, boêmios e de vida incerta, se havia um grupo com o perfil exato do “merecedor de desterro”, este era o dos ciganos. Para o imaginário ibérico os ciganos representavam uma parcela da “sujeira” que poluía a metrópole, a personificação do mal que merecia ser purificado. Em leis como a de D. Filipe, de 1592 e de D. José I, de 1760, nota-se a preocupação tanto em proibir a entrada de ciganos no reino, bem como a utilização de seus trajes, de sua língua e do nomadismo, em Portugal e no Brasil:

Ey por bem e mando, que todos os ciganos [...] se saião dos ditos Reinos, onde mais não entrarão sob pena de morte natural. E, porém querendo ficar, o poderão fazer com tanto que não andem em trajos de Ciganos nestes Reinos, nem falem sua lingoa [...] e se avisinhem nos Lugares, sem andarem vagabundos [...] (Apud. Mello et. al., 2000, p.3)El Rey faço saber aos que este alvará de ley virem que sendome presente que os ciganos, que deste reyno tem sido degredados para o Estado do Brazil vivem tanto à disposição de sua vontade que uzando dos seus prejudiciais costumes com total infração das minhas leys causão intolerável incomodo aos moradores [...]. Quanto baste se execute logo, a sentença de extermínio, sem que della possa ter mais recurso [...] todos os governadores [...] da Bahia [...] (Apud. COELHO, 1882, p.262).

No entanto, mesmo com todos os esforços que a administração pombalina3 imprimiu no sentido de controlar a metrópole, com relação aos ciganos no Brasil

3 Sebastião José de Carvalho e Melo foi escolhido por Dom José I para o cargo de Secretário de Estado. Também conhecido por Marquês de Pombal, ficou conhecido, dentre muitas outras ações, pela realização de reformas que tinham a intenção de centralizar e controlar ainda mais a administração colonial.

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colônia, o que se tem é uma história de integração e incorporação, num processo que acabou por diluir fronteiras étnicas e culturais (MELLO et. al., 2000), frustrando as expectativas iniciais da coroa. Se na ocasião de sua chegada os ciganos eram vistos com estranheza, levando-se em consideração a persistência do imaginário ibérico a seu respeito, a partir do século XIX é possível observar uma pequena mudança em sua imagem social. Até então vistos apenas como ladrões, vagabundos e feiticeiros, passam a ser associados também à sensualidade, à alegria, à beleza. Quando a corte portuguesa chega ao Rio de Janeiro encontra uma comunidade cigana perfeitamente ajustada à colônia: traficantes de escravos, artesãos e em postos oficiais, os ciganos conquistaram riquezas e tiveram dentre eles um dos cidadãos mais ricos do Rio de Janeiro à época (Idem), além disso, parecia haver uma constante participação de ciganos em programas de festas protocolares. O Barão de Eschwege (Apud. SAINT-HILAIRE, 1976), por exemplo, narra a participação de um grupo cigano na comemoração pública do casamento da Princesa D. Maria Teresa, primogênita do Príncipe Regente. Mello Moraes Filho (1981) também descreve a apresentação de ciganos nas comemorações oficiais da elevação do Brasil a Reino em 1815 e nas comemorações quando do casamento de D. Pedro I com a Princesa D. Leolpoldina. Outra narrativa vem do Padre Perereca que relata a presença de ciganos nas festividades para sua majestade do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, no Campo de Santana (SANTOS, 1981). Todos esses relatos deixam claro que os ciganos conquistaram um espaço próprio e estruturado e que ao mesmo tempo estava inserido numa relação de fronteiras não muito rígidas, nem muito bem definidas. Tinham suas características peculiares, mas eram elemento integrante da sociedade colonial do Rio de Janeiro do século XIX. Os ciganos tinham sua própria rua e uma localização geográfica4 que os distinguia, sem necessariamente excluí-los. Aos poucos esta cultura cigana, também arraigada de princípios ibéricos, passou a fazer parte do cenário brasileiro. O exílio ritual a que foram submetidos os ciganos através do desterro, transformou o que para os tribunais inquisitoriais portugueses seria o purgatório, em paraíso. A travessia marítima teria, neste contexto, funcionado como um rito de passagem, na medida em que marcou a transição de um status social a outro, um renascimento simbólico. Nômades ou sedentários, o que isto

4 A atual Rua da Constituição no século XIX era denominada Rua dos Ciganos, enquanto o então Largo do Rocio (hoje Praça Tirandentes) configurava-se como local de residências tipicamente ciganas. (Moraes Filho, 1981)

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quer dizer é que, apesar de todo o intento de desestruturação de suas características, sua língua, seus trajes – por meio de decretos ou através do desterro –, o que se tem é a expansão territorial de sua cultura, que pode ser notada até os dias de hoje em nossas práticas, funcionando como elemento de interação entre cultura cigana, cultura colonial e cultura da metrópole.

Um cigano à brasileira: ambiguidade e diferença

Há no Brasil hoje cerca de 800 mil ciganos5, entre nômades e sedentários6. No entanto, há um pressuposto fundamental para qualquer estudo que tenha como objeto os chamados ciganos, que é a compreensão de que “cigano” é um termo genérico inventado na Europa do Século XV. Os estudos atuais sobre o tema sugerem que: 1) os ciganos não se autodenominam ciganos; 2) este grupo se subdivide em três grandes grupos com língua e etnia diferentes, a saber: a) Os ROM, ou Roma, falam a língua romani e são divididos em vários subgrupos, com denominações próprias, como Kalderash, Matchuaia, Lovara e Curara7. Predominantes nos países balcânicos, mas que a partir do Século XIX migraram também para outros países europeus e para as Américas; b) os SINTI, que falam a língua sintó e são mais encontrados na Alemanha, Itália e França, onde também são chamados Manouch, e os c) CALON ou KALÉ, que falam a língua caló e que são os considerados como “ciganos ibéricos”. A partir desta leitura é preciso que, primeiramente, se deixe de lado o conceito de identidade única e toda uniformização que ele pressupõe, e que se busque pensar este grupo genérico tendo por base o princípio da diferença. Em seguida, cabe salientar que até o presente momento privilegiei o estudo da chegada ao Brasil dos ciganos calóns, que foram incorporados à sociedade carioca, vivenciando uma integração que não havia sido experimentada por eles na Península Ibérica. E, por fim, considerar que hoje os ciganos são muito mais que uma etnia e encarnam uma representação que desperta medo ao mesmo tempo em que é adorada. Lembro-me muito bem de um acampamento cigano pelo qual passei quando criança em viajava com minha avó que, muito preocupada, alertava para os perigos

5 Estimativas fornecidas pela Pastoral dos Nômades do Brasil.6 Como os ciganos que vivem no Catumbi e em Copacabana, bairros da cidade do Rio de Janeiro.7 Segundo Franz Moonen (1996), estes grupos e dezenas de subgrupos, têm os nomes que, muitas vezes, derivam de antigas profissões (Kalderash = caldeireiros; Ursari = domadores de ursos, e.o.) ou procedência geográfica (Moldovaia, Piemontesi, e.o.).

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que eu corria caso saísse desacompanhada de um adulto por aquela região, já que “aqueles ciganos roubavam crianças”. Bem se sabe que não era uma preocupação isolada de minha avó, pois esta é uma das representações dos ciganos compartilhada pelo senso comum: “ladrões de crianças e cavalos, mentirosos, traiçoeiros, saltimbancos, sujos e bruxos”. Por outro lado, experimenta-se a aceitação da figura dos ciganos investindo-os de positividade, criando um trânsito entre pólos opostos, estabelecendo uma fluidez de fronteiras que permite encontrá-los nos cultos afro-brasileiros, na literatura, na música, nas telenovelas e em nosso calendário de datas comemorativas. Existe hoje, uma idealização da condição cigana que muito nos remete aos relatos de cronistas e viajantes do século XIX: alegres, sensuais, dançarinos e cantores, livres para correr o mundo. Basta citar que, na ocasião do meu mestrado tive a oportunidade de estudar um grupo de mulheres, acima de 40 anos, que freqüentavam festas denominadas “ciganas” realizadas em clubes cariocas e que viam nestas a possibilidade de se transformarem em ciganas de alma, embora não tivessem qualquer relação de fato com a etnia cigana. Tais “festas ciganas” fazem parte, até hoje, do calendário anual de clubes de bairros cariocas como o Grajaú e a Tijuca. Possuem um público fiel e garantido, contam com a participação de grupos que interpretam músicas ciganas, além de apresentações de dança cigana. Segundo suas frequentadoras, as festas seriam uma forma de homenagear “os ciganos e sua cultura” (BOMFIM, 2000). No entanto, como explicar que enquanto há mulheres que fogem de ciganas que insistem em ler suas mãos em praça pública, outras fazem questão de dizer que são ciganas de alma e reverenciam a cultura cigana? A resposta a esta pergunta parece estar no fato de que a construção simbólica destes grupos a respeito dos ciganos privilegia elos que ligam imagens aparentemente distintas. No Rio de Janeiro, existem duas representações sobre os ciganos que ao mesmo tempo em que são polares se completam, havendo uma espécie de interseção representacional entre a positividade e a negatividade significadas pelos ciganos. Tem-se a imagem de vilões temidos e ameaçadores que povoa o imaginário popular, ao mesmo tempo em que há uma visão romântica e romantizada da vida cigana e dos ciganos. É possível que se esteja diante da premissa descrita por Victor Turner (1974) de que membros de grupos étnicos e culturais desprezados ou proscritos desempenham importantes papéis nos mitos e nos contos populares, como representantes ou expressões de valores humanos universais, havendo uma correlação entre a marginalidade social e certo tipo de poder. (DOUGLAS, 1966). Podendo despertar paixão e repulsa, situando-se entre o sagrado e o profano,

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a representação que se tem hoje dos ciganos no Rio de Janeiro pode ser manipulada criando a possibilidade de aceitação e adoração de uma figura que se caracteriza como liminar. Tal manipulação cria um elo entre pólos opostos e antagônicos, possibilitando o trânsito entre eles quando convém. A ressignificação dessa identidade, na verdade, expressa um sistema social fundado na relação, no elo, no intermediário, que acaba por promover a dinâmica social, criando o que Roberto Da Matta chamou de “zonas de conversação” (1991) entre posições polares. Se entidades liminares encontram-se no meio e entre as posições articuladas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial (TURNER, 1974), em vez de excluí-las considerando-as simplesmente como anômalas, no caso brasileiro é sempre preferível relacionar e necessariamente incluir, pondo todos os elementos em gradação. Tomando por base este viés analítico é preciso considerar que as coisas do mundo poderiam ser classificadas como sagradas e profanas, além de mais sagradas e menos sagradas, de mais profanas e menos profanas, uma escala graduada entre o eu/eles, o perto/longe (LEACH, 1983). A lógica brasileira, neste contexto, seria relacional no sentido de que estaria sempre buscando maximizar as relações e a inclusão, criando zonas de ambiguidade permanente. Poderíamos, portanto, dizer que os ciganos brasileiros encontram-se nesta zona de ambiguidade permanente. Isso porque, desde sua chegada ao Brasil não há um espaço fixo, na representação que se tem deste grupo étnico onde enquadrá-los. Eles estão sempre no meio, entre o negativo e o positivo, participando de um processo que ressignifica identidades a partir de referências simbólicas e culturais, esboçando a existência de uma rede de significantes e significados que se (con)fundem criando um “cigano à brasileira”.

Considerações Finais

O presente estudo, em última análise, pretende demonstrar que ser cigano pode representar pureza ou perigo, dependendo da situação. A idéia que está nas entrelinhas dessa interpretação é a de que a sociedade brasileira tem vários espelhos nos quais pode se mirar simultaneamente. Interpretar a sociedade brasileira sob esta ótica sugere compreendê-la como uma sociedade de éticas múltiplas; sendo possível ser uma pessoa em casa, outra na rua ou outra na igreja, no terreiro, no centro espírita, por exemplo. Essa multiplicidade remete a uma perspectiva relacional que permite compreender como as mediações engendram práticas de gradações, buscando maximizar as relações e a inclusão, criando zonas de ambiguidade permanente (Da Matta, 1991). Arrisco dizer, portanto, que os ciganos que vivem hoje no Brasil

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encontraram seu lugar nessa zona de ambigüidade. A começar pela definição do que é ser cigano, que se configura como uma rede de significantes e significados que esboça a existência de uma identidade étnica virtual criada de recortes de várias representações. Esse bricolage engloba várias concepções acerca dos ciganos que podem ser percebidas a partir de uma observação mais atenta das nossas crenças religiosas e dos discursos do senso comum. Ciganos, no singular, pode representar um indivíduo livre, que não respeita convenções sociais, podendo ser associado a ladrão. Usado no plural, este termo pode querer representar um grupo étnico ou determinados guias espirituais. Essa conotação religiosa também é percebida na utilização da categoria “povo cigano”, que tanto pode representar uma etnia, quanto uma determinada linha de guias espirituais. Seu feminino, “cigana” também é sinônimo de liberdade, mas uma liberdade positiva, associada à juventude, à jovialidade, à beleza e à sensualidade. No entanto, ser uma “cigana” é ser bela e sensual, enquanto ter uma “cigana” representa ter uma cigana espiritual como guia, no sentido umbandista do termo. Enfim, o estudo das representações sociais sobre os ciganos serve como exemplo para confirmar a fluidez de fronteiras como uma das características principais de nossa cultura, trazendo a reflexão acerca da manipulação identitária e da interconexão entre laico e religioso como fundamentos de nossas práticas cotidianas.

BOMFIM, Cláudia. Gypsies and Brazil: ritual of exclusion or rite of passage? DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.6, n.1, 2010, p.17-26.

ABSTRACT: Gypsies are actors of a wizard history in Brazil. They arrived in the XVIth Century exiled by the Inquisition and by the metropolis sanitation politics, in Rio de Janeiro in the XIXth Century they were integrated in the colonial society and today they are adored as religious entities. Paying attention to this history, one wonders if this text the relationship between exclusion and integration of gypsies who settled in the colony, and the fact that they live in exile, a rite os passage, rather than a ritual exile.

KEYWORDS: gypsies; deportation; settling.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS E FONTES

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AÇÃO E RESISTÊNCIA DOS CATIVOS EMRIBEIRÃO PRETO (1850 A 1888)

Carlo Guimarães MONTI*Antonio Carlos Soares FARIA**

RESUMO: Este artigo tem por proposta analisar as formas de ações e resistências dos cativos de Ribeirão Preto entre 1850 e 1888. As análises e as reflexões que apresentamos procuram compreender as mudanças ocorridas em Ribeirão Preto, bem como entender os conflitos existentes entre senhores e escravos no final do século XIX, numa tentativa de recuperar o papel dos cativos enquanto agentes históricos envoltos no período de eliminação do cativeiro no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: escravidão; Ribeirão Preto; resistência.

O estudo da escravidão negra no Brasil vem, ao longo do tempo, demonstrando diferenças que são muito mais o resultado de posicionamentos diversos sobre a escravidão no país. Um destes posicionamentos é representado pelos embates entre benevolência e violência como definidoras da escravidão no Brasil. Observamos, cada vez mais, que a história da escravidão nas últimas décadas vem estimulando novas discussões sobre pontos fundamentais até então pouco abordados, renovando o campo de estudos. Novos temas, gerados pela utilização de novas fontes, como processos crimes, ações de liberdade, autos de corpo de delito, possibilitaram que novas interpretações tivessem vez. Apontar as formas de ações e resistências dos cativos é o objetivo central deste trabalho, utilizando um leque de documentos ainda pouco trabalhados para Ribeirão Preto. Esta é uma tarefa bem complexa, principalmente porque a escravidão ultrapassava as porteiras das fazendas e as ruas das cidades. Por meio de perseguições e castigos, verdadeiros obstáculos eram impostos pela sociedade, com suas leis e costumes, gerando dificuldades para o estudo destas relações, tendo muitas destas

* Professor do CEUBM nas graduações em História, Turismo e da especialização em História, Cultura e Sociedade em que é coordenador. É mestre em História Social pela USP-SP.** Graduado em Ciências Sociais pela UNESP, FCL de Araraquara com especialização em História, Cultura e Sociedade pelo CEUBM.

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sido caladas. Entretanto, isto não impossibilitou que os escravos conseguissem desenvolver suas estratégias e seus espaços de resistência para além do controle senhorial e escravista, e o método ora trabalhado busca encontrar estes casos, que são significativos para entendermos a prática da resistência escrava na cidade. Podemos afirmar que, mesmo em uma sociedade de ocupação recente como a do Oeste Paulista, as várias formas de controle senhorial estiveram presentes assim como ocorreu nas áreas de ocupação mais antiga. Em Ribeirão Preto, no que tange ao cativeiro, as leis abolicionistas que indicavam novos tempos para as relações escravistas tiveram, na verdade, que ser buscadas pelos escravos, já que em muitos casos os senhores não permitiam a aplicação destas. Esses conflitos existentes na relação entre senhor e escravo são a ideia central deste trabalho. Buscando demonstrar as características das relações escravistas, marcadas pela resistência cativa e pela manutenção dos poderes senhoriais, propõe-se o uso de fontes como processos crimes, ações de liberdade, autos de depósito de pecúlio, queixas, execuções cíveis, manutenções de posse e autos de corpo de delito, depositados no Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. Será por meio da junção destas várias fontes que se pretende remontar o cotidiano da resistência escrava em Ribeirão Preto, no período anterior a abolição.

Formação de Ribeirão Preto

A ocupação deste Sertão paulista começa no final dos setecentos, com os desbravadores mineiros, criadores de gado e agricultores em busca de terras livres para se estabelecerem. Esse fluxo populacional se deslocou principalmente do sul de Minas, para a região entre os rios Pardo e Mojiguaçu, tendo em vista as transformações ocorridas na economia. Em outra vertente migratória, os habitantes de São Paulo, a partir do século XVIII, iniciam o deslocamento para a região do “Sertão Desconhecido”. Nos arredores do caminho, foram estabelecidos diversos sítios e pousos, a fim de garantir apoio aos viajantes. Muitos desses pousos acabaram se transformando em núcleos populacionais, seguidos de arraiais, freguesias e vilas. O avanço para a região do Oeste Paulista, que se deu por essas duas frentes, teve a primeira delas estabelecendo os núcleos de Mogi Guaçu, Mogi Mirim e Caconde, estendendo esta ocupação aos núcleos de Casa Branca, São Simão e Cajuru. Já a segunda frente, adentrando a província de São Paulo mais ao norte, estabelece os núcleos de Franca e Batatais. É possível notar que a ocupação realizada pelas duas

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frentes converge para a então região de Ribeirão Preto. (PINTO, 2000, p. 38-39) O caminho realizado também por mineiros, através de Franca e Batatais, teria como destino o que é hoje Ribeirão Preto, mas em um número bem mais reduzido do que aquele proveniente de Mogi Guaçu, que passava por Casa Branca e São Simão.1 (PINTO, 2000, p. 39-41). Para o estudo de Ribeirão Preto, deve-se ter como ponto de partida o núcleo de São Simão, principalmente a fazenda Rio Pardo. A formação do patrimônio de São Sebastião, iniciada na década de 1840, seria o primeiro passo para a concretização do núcleo populacional. A formação da futura vila de Ribeirão Preto foi um capítulo repleto de disputas judiciais pela posse dessas terras. Entre 1845 e 1856 foram realizadas inúmeras tentativas de doação de terras para a formação do patrimônio de São Sebastião, porém, todas foram recusadas pela Igreja, algumas por não atenderem as exigências mínimas de valor para a doação de terras, outras pelo fato de estarem sendo disputadas judicialmente. Em 1856, doações de terras provenientes da fazenda Barra do Retiro somadas às doações anteriores feitas pela fazenda Retiro foram aceitas pela Igreja. Os doadores foram: João Alves da Silva Primo, Mariano Pedroso de Almeida, José Alves da Silva, José Borges da Costa, Inácio Bruno da Costa e Severiano João da Silva. Estas terras dariam origem em 19 de junho de 1856 ao patrimônio de São Sebastião, onde foi erigida uma capela provisória. Uma economia pré-cafeeira, por assim dizer, formada por lavradores, principalmente por criadores de gado que viviam da lavoura, da criação de subsistência e do pequeno comércio garantido pelo excedente da produção, é o que movimentava os negócios locais. Este tipo de economia parece ter sido determinante para que o município recebesse o café, permitindo a ocupação do solo, a permanência dos moradores e a mão-de-obra. Foi a introdução da cultura cafeeira responsável por atrair uma grande parcela da população que passaria a viver em Ribeirão Preto. A chegada dos trilhos da ferrovia, em 1883, através da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, foi outro

1A Estrada dos Goiases começava em Mojimirim e ia até o Rio Grande. Na Província de Minas Gerais continuava com outro nome. Além de Casa Branca, eram pousos desta estrada: Anhumas, Oriçanga, Cercado (I), Itaqui, Taquarantã, Itupeva, Jaquaramirim, Cocais, Pissarão, Capão, Ribeirão, Estiva, Tambaú, Paciência (I), Pederneiras, Cercado (II), Rio Pardo, Cubatão (Cajuru), Rafael, Araraquara, Batatais, Paciência (II), Santa Bárbara, Bagres (Franca), Salgado, José Reis, Vieiras, Monjolinho, Calção de Couro, Rio das Pedras e Rio Grande. (LAGES, 1996, p. 39)

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marco importante, uma vez que agilizou a distribuição da produção, além de trazer imigrantes e escravos para o trabalho nas plantações de café.Em 1874 foi feito um levantamento sobre a população de Ribeirão Preto e suas ocupações econômicas. Este primeiro censo nos revela que existia uma população que totalizava 4.695 indivíduos livres e 857 indivíduos cativos. (BASSANEZI, 1998, p. 37). Um novo levantamento populacional, realizado em 1886, aponta para uma população já com 10.420 habitantes, representando um crescimento de quase 88%. Os dados computados pelo censo revelam uma população livre de 9.041 pessoas e a cativa com 1.379 pessoas. O crescimento da população cativa foi de 61,0%, crescimento que pode ser considerado extraordinário, pois se deu justamente em uma época de crise da mão-de-obra escrava, às vésperas do fim da escravidão. (BASSANEZI, 1999, p. 106,213).Ocorre também um espantoso crescimento da população estrangeira. Este contingente populacional, que representava apenas três indivíduos, em 1886 passa a ser de 761 membros, ou seja, 7,30% da população total. O incremento no fluxo imigrante, antes da abolição da escravidão, nos revela que a mão-de-obra escrava foi utilizada juntamente com o trabalho assalariado. (PINTO, 2004, p.5-6). Outra constatação possível de se fazer é que o aumento no número da população cativa e livre, ocorrida entre 1872 e 1886, mostra o dinamismo vivido pela sociedade ribeirãopretana, reflexo do surgimento da cultura cafeeira. (LOPES, 2005, p. 48) Ribeirão Preto teve o café como principal atividade econômica de exploração intensiva da terra. Esta atividade vai provocar uma série de transformações na economia da localidade. Importante lembrar que a implantação da cultura cafeeira em Ribeirão Preto ocorreria de forma diferente de outras regiões produtoras de São Paulo, como Campinas e Rio Claro, onde a cultura da cana-de-açúcar foi responsável por alavancar os recursos necessários para o desenvolvimento do café. A década de 1870 é o momento da chegada dos cafeicultores, que vêm a Ribeirão Preto com alguma experiência de outras regiões. Já em 1880, a cidade passava definitivamente a ser identificada pela cultura do café, época em que ocorreu uma corrida à região do novo “Eldorado do Oeste Paulista”. (LAGES, 1996, p. 247) Em 1876, chegam a Ribeirão Preto,

[...] os irmãos Barreto, cafeicultores de Rezende, deixam o vale do Paraíba para estabelecerem-se em Ribeirão Preto. Em 1877, já existiam as fazendas com milhares de pés de café de propriedade de Manoel Otaviano Junqueira, José Bento Junqueira, Rodrigo Barreto e Manoel da Cunha Diniz Junqueira. Logo chegaram outros que

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foram mais tarde considerados “reis do café” como Martinho Prado Júnior, Henrique Dumont e Francisco Schimidt. (LAGES, 1996, p. 247-248).

É um período de grande valorização da terra e também de um amplo processo de concentração fundiária. Incluído na frente pioneira, o café provocou um rápido aquecimento do mercado de terras. Segundo Luciana Lopes, o valor do alqueire comercializado durante a década de 1870 subiu, em média, 45,9%, quando comparado com o valor da década anterior. Esta sociedade que se formou antes da chegada da atividade cafeeira e continuou a se estruturar depois dela é que será o foco de nossas análises. Para realizar o referido estudo, fez-se uso da produção historiográfica das décadas de 1980 e 1990, dos trabalhos regionais e também das fontes primárias, que possibilitaram a reconstrução do cotidiano das relações sociais de uma sociedade, pois, essas novas fontes reconstroem as ações, percepções próprias, estratégias e mecanismos de lutas construídas, no dia-a-dia, de todos os segmentos sociais envolvidos no contexto escravista brasileiro (REIS, 1996, p. 179). Ao reconstruir este cotidiano entre os senhores e os escravos de uma determinada localidade, é possível inferir como ocorria o processo histórico revelando as práticas dos distintos grupos sociais.

Senhores e escravos: entre leis e revoltas

No Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto foram consultados os processos referentes ao Primeiro Ofício Cível, entre 1850 e 1888, nos quais os escravos figuravam como réus e/ou vítimas. Foram analisados alguns casos envolvendo escravos e senhores, referentes a ações de liberdade, corpo de delito, manutenção de posse, liberdade de ingênuos e queixa, a fim de tentar descortinar o cotidiano dos senhores e escravos em Ribeirão Preto, na segunda metade do século XIX. Observamos que a produção historiográfica sobre a escravidão nas últimas décadas vem cada vez mais propiciando novas discussões sobre questões fundamentais, até então pouco estudadas, renovando o campo de abordagem dos temas e utilizando essas fontes, até então pouco exploradas. São fontes importantes, uma vez que não apenas fornecem relatos de senhores, agregados e escravos, a respeito de um mesmo fato, como também revelam ao historiador o dia-a-dia das relações de dominação e exploração entre senhores e escravos, ainda que estas informações possam estar filtradas pela pena do escrivão. A instituição da escravidão sempre foi marcada pela violência. Esta se iniciava

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no momento da captura e retirada dos negros do continente africano, continuando durante o seu transporte até a América, e depois na venda e separação de seus familiares. Vivendo em um mundo diferente, dominados pelo homem branco, tratados como inferiores e forçados à obediência e à submissão, a violência não abandonou nem mesmo seus descendentes nascidos no Brasil, que mesmo com um conhecimento dos costumes, continuavam alijados de qualquer tipo de direito, eternizando a relação de dominação. Entretanto, muitos reagiram a essa situação. A análise dos processos crimes que serviram de fontes para este artigo é uma tentativa de contribuir para uma imagem do negro diferente daquela que o ressaltava como um ser incapaz de agir e refletir segundo sua vontade; para além de meros reflexos de seus senhores. Vários fatores revelam a resistência dos escravos contra o cativeiro, tais como os suicídios e as fugas, demonstrando, de maneira imediata, a luta pela aquisição da liberdade. Existiram outras formas de resistência que contribuíram para a obtenção da liberdade, como as tentativas de assassinato, as lesões corporais e as destruições da propriedade, além de atos mais sutis, como o “corpo mole”, as sabotagens e os abortos. De acordo com Reis e Silva (1989, p.15), “[...] Qualquer indício que revele a capacidade dos escravos, de conquistar espaços ou de ampliá-los, segundo seus interesses, deve ser valorizado. [...]”. O aumento da criminalidade escrava no século XIX é um fato apontado por vários trabalhos, mas, talvez, ainda não exista um consenso acerca do motivo que teria levado os cativos a tal comportamento. Diante da edição da Lei nº 4, de 10 de junho de 1835, podemos afirmar que, no século XIX, as atitudes dos escravos contra seus senhores, feitores e livres, levaram a um debate efetivo de como coibir a violência escrava. Percebeu-se que era necessário mais do que manter os cativos enquanto garantia econômica. Também, a partir do aspecto político e jurídico, era essencial conter as inúmeras revoltas do período, que colocavam em risco a manutenção do sistema. A lei acima citada determinava como deviam ser punidos os escravos que matassem, ferissem ou cometessem ofensa física contra seus senhores:

Art.1º: Serão punidos com pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem. (BRASIL. Lei n. 4 de 10 de junho de 1835).

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O objetivo desta lei era eliminar as insurreições ou qualquer ato grave cometido pelos escravos contra seus senhores e seus prepostos, o que nos leva a acreditar que o século XIX foi um período de grande mobilização escrava contra o cativeiro.A pena de morte ao escravo que cometesse assassinato foi utilizada até 1876, quando foi totalmente abolida no país. No século XIX, uma parte da sociedade cobrava leis rigorosas para a punição dos escravos, mas, também podemos perceber um movimento social defendendo o fim da escravidão no país, denunciando os abusos cometidos contra os escravos: o movimento abolicionista. A partir de meados do século XIX, uma união de fatores internos e externos tornou cada vez mais desfavorável a escravidão no Brasil, suscitando novas discussões sobre a abolição no país. Outras tentativas já haviam sido feitas, como a lei que tornava livres os africanos que chegassem ao país (1831), mas a dificuldade de fiscalização e o desinteresse inviabilizaram seu cumprimento, tornando-a letra morta. Anos depois, diante de inúmeras pressões inglesas, foi aprovada pelo Parlamento brasileiro a Lei Eusébio de Queiroz, abolindo o tráfico internacional de escravos para o país. Apesar do caráter lento e gradual em que essas medidas eram tomadas, sinalizavam que o Brasil abandonaria a escravidão definitivamente. Outro duro golpe no escravismo foi a criação da lei que eliminava a condição servil dos nascidos das mulheres escravas: a Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, Lei Rio Branco, também conhecida como Lei do Ventre Livre. Era um sistema complexo, que visava à extinção gradual do escravismo no Brasil, garantindo, sobretudo, os interesses dos proprietários e a condição livre dos que nascessem a partir daquele período. Além da garantia do ventre livre, ainda que em condições extremamente vantajosas aos senhores das cativas, esta lei reconhecia ao cativo, pela primeira vez, o direito ao acúmulo de um pecúlio, para que, em posse desse, comprasse sua liberdade. Este fato foi importante porque, até então, a concessão da liberdade estava a cargo da vontade pessoal dos senhores, pelo menos no que tangia aos mecanismos jurídicos. Percebe-se também neste momento, em várias regiões do país, um incremento nas revoltas escravas, tanto no aspecto coletivo, quanto no individual, o que possibilitou aos escravos e àquelas que agiam em seu favor novas maneiras de buscar alternativas para o abandono da condição servil.2 Portanto, mesmo diante

2 Para trabalhos de história regional que abordam a resistência cativa ver: SILVA, C. M., 1996, SOUSA, C., 1998, SANTOS, L. L., 2000, FERREIRA, R. A, 2003.

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de suas falhas e omissões, é inegável que a Lei nº 2.040 abalou sensivelmente a escravidão no Brasil. Estas revoltas, ocorridas a partir da segunda metade do século XIX, representam uma maior tomada de consciência e o repúdio à manutenção do cativeiro, pelos escravos que sempre souberam agir, segundo Reis e Silva (1989, p.74):

[...] nos momentos mais oportunos, quando a sociedade está dividida, seja por guerra de invasão, seja por dissenções internas, seja ainda por ocasiões festivas, [...]. Muitos, por toda parte e em todos os períodos, aproveitam-se das desarrumações da casa [...].

No período em questão, podemos observar claramente esta divisão da sociedade. A Justiça, enquanto mediadora dos conflitos sociais entre senhores e escravos, na abolição da pena de açoites (1886)3 que, apesar de ser praticada de forma privada, significou um forte abalo ao poder dos senhores. Por fim, o fato do imperador perdoar reiteradamente as penas dos escravos e de comutar as condenações de pena de morte baseadas na Lei nº 4, de 10 de junho de 1835. Estas foram importantes mudanças institucionais, estabelecidas nas duas últimas décadas da escravidão e percebidas pela massa cativa, colaborando, assim, para o início do fim do cativeiro no país. Influenciados por todos esses acontecimentos, os cativos de Ribeirão Preto também irão se beneficiar deste momento de maior consciência no que tange ao fim do cativeiro no Brasil, procurando atuar na Justiça local, por meio de seus curadores, na Justiça local para adquirir sua liberdade.

Atitudes e questionamentos da escravidão em Ribeirão Preto

A análise e a interpretação dos processos a seguir nos possibilitou desvendar as formas de ações e resistências dos escravos de Ribeirão Preto no final do século XIX. Os processos analisados estão divididos em várias categorias. Passamos a identificar alguns dos documentos que utilizamos nesta pesquisa, com a intenção de facilitar a compreensão do leitor, que pode não estar familiarizado com estas fontes. Deste modo, também podemos ajudar a suscitar nos leitores o grande exponencial do

3 A Lei N. 3310 de 15 de outubro de 1886, revoga o art. 60 do Código Criminal e a Lei N. 4 de 10 de junho de 1835, na parte em que impõe a pena de açoites.

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uso dessas fontes. O depósito de pecúlio é um tipo de documento que se destaca por ser um importante instrumento para os escravos que reivindicavam a liberdade na Justiça, por meio do depósito de um pagamento. Conhecida como Liberdade por pecúlio ou Ações de Liberdade, este tipo de alforria obteve respaldo legal na Lei n. 2.040:

Art. 4º: É permitida ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo pecúlio. (BRASIL. Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871).

Uma vez com o pecúlio necessário, o cativo podia solicitar a liberdade por meio das ações de liberdade. Assim, os escravos, representados por curadores, reivindicavam na Justiça a alforria. Este ato demandava grande complexidade e sutileza, pois tratava da difícil tarefa de reconhecer as negociações entre senhores e escravos e, de outro lado, da questão da preservação do direito à propriedade.

A Lei nº 2.040 previa, ainda, a Liberdade de ingênuos:

Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annual de escravos. (BRASIL. Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871).

Outro documento que utilizamos é o auto de corpo de delito, que consistia na investigação realizada por profissionais, a fim de constatar lesões causadas por castigos excessivos, bem como estupros, praticados por escravos ou contra escravos. A autópsia ou exame cadavérico era realizado quando se encontrava um cadáver e seu objetivo era averiguar a causa da morte, o que, em uma sociedade escravocrata, acabava por compor as relações havidas no cativeiro. Escravos, senhores e libertos protagonizaram inúmeros episódios importantes no cotidiano de Ribeirão Preto na segunda metade do século XIX. A análise das fontes primárias nos possibilitou o resgate de algumas dessas histórias. Foram selecionados para este resgate alguns processos do Primeiro Ofício de Ribeirão Preto, documentos do Fórum, depositados no Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. Sem dúvida nenhuma, devemos enfatizar a participação do negro no processo de desmantelamento do sistema escravista.

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No período analisado (1850-1888), a forte percepção dos escravos sobre seus mínimos direitos e a confiança de resolver seus desígnios por intermédio da Justiça estiveram muito presentes. Entretanto, os obstáculos para isto eram muitos, principalmente porque a reivindicação escrava geralmente se chocava com o direito da propriedade. A escrava Dorothea Francisca do Nascimento, seu marido João e o proprietário de ambos, Antonio Beraldo de Azevedo, protagonizaram inúmeros capítulos na Justiça que nos dão uma clara visão dos embates ocorridos entre os que desejavam perpetuar a escravidão e aqueles que buscavam as novas leis com o intuito de se verem livres do cativeiro. O primeiro episódio envolvendo esta trama ocorreu nos autos processo de autos de depósito de pecúlio. O promotor público e curador geral de órfãos, Ildefonso de Assis Pinto, faz o pedido ao escrivão para entregar o pecúlio de 135$000 de Dorothea na Collectoria com a finalidade de obter a liberdade da mesma. Dorothea era matriculada, desde 31 de agosto de 1872, por Sabino Fernandes do Nascimento, seu proprietário, sob o número de ordem 98 e nº 2 na relação. (APHRP, Depósito de pecúlio, caixa 17-A, 1880). Aparentemente, seria mais um caso típico de depósito de pecúlio para a obtenção de liberdade, mas veremos que inúmeros acontecimentos envolvendo esta escrava ainda estariam por vir, os quais demonstram as dificuldades que compunham a aplicação das leis abolicionistas. Passados cerca de dois meses do depósito do pecúlio da escrava, esta se encontrava listada para ser liberta pelo fundo de emancipação, constituído nos municípios através da Lei nº 2.040, com recursos do governo imperial, para classificar e alforriar os escravos. O fundo contava com a importância de 947$288 e, ainda, com o pecúlio de 135$000, depositados em nome de Dorothea. Na prática, o que se pode observar sobre este instrumento de liberdade, é que os fundos de emancipação tiveram um resultado tímido até bem próximo de 1888. A escrava estava listada no inventário do falecido Sabino Fernandes do Nascimento, mas um erro ocorrido em sua matrícula dificultou o andamento do processo. Ela havia sido matriculada com o nome de Eleutéria e classificada no fundo como Dorothea (preta), sendo assim, em cada documento a dita escrava estava com um nome. Diante do ocorrido, Antonio Beraldo do Nascimento, seu atual proprietário, um fazendeiro de café da localidade, é intimado a comprovar se tinha em sua propriedade

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outra escrava de nome Dorothea ou se Dorothea era a escrava que foi matriculada como Eleutéria. O proprietário reconhece que não existe outra Dorothea, tendo sido mesmo um erro na matricula. Alega, também, desconhecer o motivo do engano. (APHRP, Ação de liberdade, caixa 17-A, 1880). Desfeita a confusão, o curador geral, Ildefonso de Assis Pinto, sinaliza para que prossiga o processo de liberdade da escrava, uma vez que a questão dos nomes nada mais era que um equívoco. Ela foi liberta pela quantia de 900$000, deduzido deste valor seu pecúlio de 135$000. No dia 9 de agosto de 1880, a escrava recebe a carta de alforria, passando a ser considerada uma liberta. (APHRP, Ação de liberdade, caixa 17-A, 1880). Um mês depois de alcançar a liberdade, a recém-liberta entra com uma petição requerendo que seus filhos com o escravo João Criollo, também de propriedade de Antonio Beraldo de Azevedo, seu antigo proprietário, sejam entregues por este. São quatro crianças: Joaquim, de 7 anos de idade; João Baptista, de 5 anos de idade; Áurea, de 3 anos e Amélia, de 1 ano e meio de idade. Segundo a petição impetrada, todos deveriam ser livres pela Lei nº 2.040, artigo 1º, § 4º. (APHRP, Liberdade de ingênuos, caixa 17-A, 1880).

Art. 1º: Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. § 4º: Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito annos que estejam em poder do senhor della por virtude do §1º, lhe serão entregues, excepto se preferir deixá-los, e o senhor annuir a ficar com elles. (BRASIL. Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871).

O pedido também foi fundamentado no Decreto nº 5.135, de novembro de 1872. O referido Decreto regulamentou a classificação dos escravos a serem libertos pelo fundo. Corrigia a falha da lei nº 2.040, que apenas descrevia as fontes de recursos com que contaria o fundo. O artigo 9º do Decreto n. 5.135, especifica que:

Art. 9º: A mulher escrava, que obtiver sua liberdade, tem o direito de conduzir comsigo os filhos menores de 8 annos (Lei – art. 1º § 4º), os quaes ficarão desde logo sujeitos à legislação commum. Poderá, porém, deixá-los em poder do senhor, se este annuir a ficar com elles (BRASIL. Decreto n. 5.135 de 13 de novembro de 1872).

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A recém-liberta já havia deixado a casa e o domínio de seu patrono e desejava conservar seus filhos em sua companhia. O Juiz Municipal Manoel José França, 2º suplente, manda que se intime Antonio Beraldo de Azevedo, antigo proprietário de Dorothea, a comparecer, no prazo de 24 horas, para devolver os filhos da mesma. Caso descumprisse a ordem, os ingênuos poderiam ser apreendidos. (APHRP, Liberdade de ingênuos, caixa 17-A, 1880). Agora começariam de fato os embates jurídicos envolvendo Dorothea, seu marido João (escravo) e Antonio Beraldo de Azevedo, o senhor. Azevedo aceita entregar os filhos de Dorothea, exceto o primeiro, Joaquim, alegando que este era maior de 8 anos de idade, como procura demonstrar no documento paroquial, o livro de registro de nascimento. Por este documento, Joaquim, filho de Dorothea, teria sido batizado em 1º de janeiro de 1872, com data de nascimento em 21 de dezembro de 1871. (APHRP, Liberdade de ingênuos, caixa 17-A, 1880). De acordo com a Lei nº 2.040, em seu artigo 1º, todos os filhos da mulher escrava, que nascessem no Império a partir da data da lei, seriam considerados de condição livre. Porém, a defesa de Azevedo se baseia no § 1º do artigo 1º da mesma lei para resguardar o direito de permanecer com o filho mais velho de Dorothea e João. O § 1º do artigo 1º estabelece que:

Os ditos filhos menores, ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quaes terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito annos completos.Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos.A declaração do senhor, deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar à idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilisar-se dos serviços do menor. (BRASIL. Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871)

Para compreendermos melhor esta situação, precisamos lembrar que Dorothea adquiriu sua alforria em 9 de agosto de 1880. Se fizermos as contas, segundo o documento paroquial apresentado por Azevedo, em 9 de agosto o ingênuo Joaquim possuía mais de 8 anos de idade e, diante disso, como prevê o §1º do artigo 1º, da Lei nº 2.040, deveria ter sido feita pelo senhor a declaração, dentro de 30 dias, a contar daquele em que o menor completasse 8 anos de idade, mas, sem esta, ficava clara a

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opção pelo uso dos serviços do menor. Azevedo estaria então respaldado pela lei para garantir para si o direito de ficar com o ingênuo. Diante deste impasse, o Juiz indefere a petição de Dorothea, por haver uma divergência entre esta e o documento apresentado por Azevedo. O caso é encerrado desta maneira e, por esta razão, não sabemos quais os rumos tomados nesta questão a partir daí. Se o caso foi resolvido a favor de Dorothea ou de Antonio Beraldo de Azevedo não sabemos, mas um fato nos chama a atenção: manter um escravo na localidade na década de 1880 era importante economicamente, pois Ribeirão Preto, nesta época, estava em grande desenvolvimento por causa do café. O caso envolvendo a disputa entre Dorothea e Azevedo, pela posse do menor Joaquim, parece ser um revide de Azevedo por perder Dorothea e seus filhos, uma demonstração de controle sobre os cativos, para além da lei. Em plena disputa pela liberdade dos ingênuos de Dorothea, Antonio Beraldo de Azevedo, encaminha à Justiça uma petição reivindicando a manutenção da posse da ex-escrava Dorothea.Azevedo alega que Dorothea e Eleutéria não seriam a mesma escrava e que, portanto, Dorothea ainda lhe pertencia, negando, desta forma, as informações que tinha dado anteriormente, em uma tentativa de manipulação das leis em proveito próprio. O Juiz, diante do argumento apresentado por Azevedo, pede que se faça uma revisão no livro de matrícula dos escravos do finado Sabino Fernandes do Nascimento, antigo proprietário de Eleutéria ou Dorothea. No livro de registro de escravos, Eleutéria aparece sob o número de ordem 98 e número 2 na relação, dado que correspondia àquele apresentado por Dorothea quando de seu pedido de depósito de pecúlio. (APHRP, Manutenção de posse, caixa 17-A, 1880). O Juiz relata que se a petição fosse da escrava batizada de Dorothea, esta ficaria forra pelo fato de não ter sido matriculada; e se fosse de Eleutéria, então, esta seria considerada, e como de fato estava, liberta pelo fundo de emancipação. Portanto, os nomes em questão poderiam ser dois (Dorothea e Eleutéria), mas a escrava era uma só. (APHRP, Manutenção de posse, caixa 17-A, 1880). A conclusão final do Juiz é a seguinte: a escrava se chama Dorothea, como foi declarado pelo próprio ex-senhor “debaixo de juramentos”. Foi liberta pela força da lei, sem direito à indenização, visto não ter sido matriculada, portanto, pede-se para

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ser sustado o pagamento de seu valor, antes que seja liquidada a questão4. Assim, fica claro que Azevedo tinha muito a perder com as ações tomadas por Dorothea. A intenção de Azevedo de manter a escrava ficou muito clara na ação movida por ele, mas talvez ele não contasse com a sentença final, pois, além de perder definitivamente a cativa, perdeu, inclusive, o direito de receber a indenização, em razão da falta da matrícula de Dorothea. Ainda em 1880 teríamos mais um embate jurídico envolvendo Antonio Beraldo de Azevedo e sua ex-escrava Dorothea. Mais uma vez ficaria patente a indignação de Azevedo diante das sucessivas perdas judiciais. Desta vez, a ação movida por Dorothea foi uma queixa por mau procedimento de Antonio Beraldo de Azevedo, apresentada pelo promotor público da Comarca. O que levou Dorothea mais uma vez à Justiça contra seu ex-proprietário foi o impedimento que este lhe impôs de ver seus filhos e seu marido. (APHRP, Queixa, caixa 17-A, 1880) Parece que Azevedo estava disposto a tudo para prejudicá-la. Depois desse impedimento, Azevedo foi vender o escravo João, marido de Dorothea, “em lugar não sabido”, termo este utilizado no processo, ficando ainda com a posse dos bens do dito escravo, pecúlio deste. Mais uma vez, o ex-proprietário de Dorothea demonstra-se revoltado com o fato de sua ex-escrava ter conseguido na Justiça algumas vitórias, que eram absolutamente sustentadas por leis. Azevedo, além de não aceitar as decisões judiciais, inicia uma série de ações para tentar demonstrar o seu papel de senhor, ainda que sem qualquer respaldo legal. Em resposta às ações de Azevedo, o promotor pede ao Juiz para nomear um curador para cuidar dos interesses de João e dos quatro filhos ingênuos. Analisando atentamente o pedido do promotor, é possível notar que os quatro filhos do casal ainda estavam sob a responsabilidade de Azevedo, ou seja, ele, que havia prometido liberar os três mais novos, ainda não o teria feito. Essa sequência de fatos demonstra que Dorothea tinha mais conhecimento das leis abolicionistas do que o seu antigo senhor, o qual tentou negar o que já era da escrava por direito. Ao que tudo indica, ele foi tomado de surpresa quando Dorothea quis levar consigo seus filhos e o marido, sem deixar ao antigo senhor qualquer benesse. É bem provável que Dorothea tenha contado com a influência e ajuda de

4 Sobre a questão da matrícula o art. 8º da Lei n. 2.040 especifica que esta se torna obrigatória a todos os escravos existentes no Império. No § 2º do artigo 8º, revela que todo o escravo que não for matriculado até o prazo final de um ano após o encerramento desta, será considerado liberto.

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alguém que conhecia as leis ou, ao menos, as palavras. Também é possível que a dita tenha acertado com o ex-senhor alguns pontos que este posteriormente não manteve. Seja o que for, Dorothea demonstrou-se conhecedora dos meandros que compunham o processo pela liberdade em Ribeirão Preto. Com os novos acontecimentos, sai de cena, pelo menos de maneira direta, a liberta Dorothea, para entrar seu marido, João. Contudo, o outro protagonista do enredo ainda permanece: Antonio Beraldo de Azevedo. Tal mudança de foco demonstra uma clara estratégia da família escrava que, além de agir de forma conjunta, sempre buscava libertar primeiro a mulher, depois os outros membros. A ação agora é uma justificação, onde João pede, por meio de seu curador, que o réu, Antonio Beraldo de Azevedo, devolva aquilo que era exclusividade de João - 4 bois carreiros, 1 égua e um poldro. Esses bens perfaziam, segundo levantamentos, a quantia referente a 420$000, parte do pecúlio de João. (APHRP, Justificação, caixa 10- A, 1880). Este caso é talvez o mais rico em detalhes que conseguimos. Nele encontramos a participação de diversas testemunhas e, ao longo dos seis meses em que o processo tramitou na Justiça, ocorreram vários pedidos de vista. O réu também recorreu da sentença judicial, o que nos possibilitou uma análise mais rica diante da quantidade de dados. Foram arroladas várias testemunhas para o caso, todas elas residentes no termo de Ribeirão Preto. Lavradores casados, com idade entre 32 e 49 anos de idade, o que demonstra a grande rede de relações que o cativo João mantinha. Em época, as relações escravistas já não eram mais relações privadas entre senhores e escravos. O ato de compartilhar a vida no cativeiro era uma forma muito útil de preservar e garantir que desmandos não fossem constantemente promovidos pelos senhores. A maioria das testemunhas confirma a aquisição dos animais pelo escravo João, algumas delas pelo fato de terem vendido a ele alguns dos animais. Chegaram a declarar os valores de certos animais e ainda que tinha o conhecimento do uso dos mesmos no trabalho na fazenda de Antonio Beraldo de Azevedo. Uma das testemunhas, Eusébio S. de Carvalho, não apenas relatou saber da existência dos animais, mas também que eles haviam sido adquiridos através do suor do rosto de João, em trabalhos realizados aos domingos e dias santos. (APHRP, Justificação, caixa 10- A, 1880). Ao final do depoimento das testemunhas, o Juiz condena o réu a restituir todos os animais de que trata a petição ou efetuar o pagamento da quantia estipulada nos autos em 420$000. Azevedo recorre do veredicto do Juiz, impetrando um termo de protesto. A riqueza de detalhes do termo, em um primeiro momento chega a espantar. Um

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documento muito bem redigido, embasado em leis e artigos, com citações em latim. Chamou-nos a atenção o capricho da letra do documento. Por meio dele, Azevedo tenta demonstrar algumas irregularidades existentes no fato de um escravo ser ouvido contra seu senhor. Sempre que necessário, Azevedo clamava pela sua condição de senhor que, conforme seu entendimento, não deveria ser mediada por leis. Um dos argumentos sustentados no termo baseia-se na lei que regulamenta o pecúlio, Lei nº 2.0405, especificamente em seu artigo 4º que, ao ser transcrito na petição, trazia grifada a expressão “por consentimento do senhor”, procurando, desta maneira, enfatizar que o pecúlio era um direito, mas este dado pelo consentimento do senhor. Outro argumento utilizado foi a tentativa de anular a sentença proferida, alegando que a ação de pecúlio não deveria tramitar perante um Juiz Municipal, mas perante o Juiz de Órphãos. Ainda, coloca sob suspeita o fato de o escravo ter conseguido acumular um pecúlio tão grande em tão pouco tempo, deixando subentendido que a aquisição do pecúlio teria se dado através de meios reprováveis e prejudiciais. O recorrente alega, ainda, que a existência ou não de bens não poderia ser comprovada através de testemunhas, pugnando por possíveis irregularidades no processo. Finalmente, o réu tenta demonstrar que parte dos bens não pertencia a João e sim aos seus filhos João Baptista e Joanna, sendo adquiridos como presentes de seus padrinhos. Apesar da documentação apresentada e a defesa ser bem fundamentada, a decisão do Juiz mais uma vez foi favorável ao escravo João. O Juiz concluiu o pecúlio de João é lícito, uma vez que, de acordo com a Lei nº 2.040, de setembro de 1871 e com o artigo 48, do Decreto nº 5.135, ao escravo é assegurado o direito à formação do pecúlio, podendo este ser comprovado por testemunhas. Estabelece o artigo 48, do Decreto nº 5.135:

Parágrafo único: As doações para a liberdade são independentes de escripturas publica e não são sujeitas a insinuação. (BRASIL. Decreto n. 5.135 de 13 de novembro de 1872).

Em relação à dúvida acerca da permissão dada ao escravo para ter o pecúlio, todas as testemunhas foram uníssonas ao declarar que os animais estavam

5 Lei N. 2.040 de 28 de setembro de 1871, art. 4º.

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na propriedade do senhor. Portanto, Azevedo tinha conhecimento da existência dos bens. Acerca da alegação de que os bens não pertenciam ao escravo, mas sim a seus filhos, a resposta do Juiz foi no sentido de que esta tentativa não passava de um “jogo” da apelação. Ainda, sobre a alegação de que o Juiz Municipal não seria competente para julgar o caso, a resposta foi que ele podia julgar definitivamente todas as causas cíveis, ordinárias e sumárias. Diante desses fatos, Antonio Beraldo de Azevedo é novamente intimado. Mais uma vez ele não comparece e, com isso, o escrivão intima-o para comparecer em 48 horas, a contar do momento da intimação, para depositar a quantia de 420$000, que seria recolhida à Estação Fiscal. O caso demonstra as ações e resistências dos cativos ao processo escravista, tendo sido o senhor de escravo Antonio Beraldo de Azevedo derrotado nos tribunais. Passados quase quatros meses da sentença da justificação, João, escravo de Azevedo, por meio de seu curador, através de uma ação de execução cível, requer que seu senhor lhe pague a quantia de 420$000 e mais 109$000 de custas vencidas, para a formação de seu pecúlio. João tinha obtido na justiça o direito de receber tais valores. A Justiça fixa o prazo de 24 horas para que seja realizado o pagamento, mas este não ocorre, nomeando-se bens do réu à penhora. (APHRP, Execução cível, caixa 15-A, 1881). Ao analisar os processos envolvendo Dorothea (recém-liberta), João (escravo) e Antonio Beraldo de Azevedo (proprietário de ambos), chegamos a duas conclusões. A primeira é que, de fato, na segunda metade do século XIX, muitos escravos e ex-escravos tiveram acesso à Justiça por meio de seus curadores, conseguindo importantes vitórias contra seus senhores ou ex-senhores. Fica evidente que Dorothea e João dispunham de relações extracativeiro, com pessoas instruídas, que conseguiram abrir caminhos para que ambos tivessem sucesso nas ações judiciais propostas contra seu proprietário. A segunda conclusão a que chegamos é que muitas vezes os cativos pagavam um preço alto ao levar seus proprietários ao banco dos réus, uma vez que a mentalidade escravista ainda estava presente e atuante. É nítida também a revolta de Azevedo nas seguidas derrotas nos tribunais. É importante salientar o papel desempenhado pela Justiça nos casos analisados, que de maneira imparcial deu ganho às causas de uma ex-escrava e de seu marido, ainda escravo, fazendo cumprir as novas leis. Em alguns casos reportados pelos documentos, fica evidente a permanência

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do modelo escravista, mesmo em uma região de recente ocupação que, em muitas vezes, é apontada pela historiografia como detentora de uma mentalidade moderna promovida pela riqueza advinda do café e pela chegada dos imigrantes. Para além dos tribunais, que certamente não era espaço de acesso a todos os cativos, a violência se fazia presente nas relações escravistas, como no caso de extrema violência, analisado no processo de auto de corpo de delito realizado no preto José, em setembro de 1887. O pedido para o exame foi feito pelo delegado, a partir da comprovação de um ferimento na cabeça do preto José. O escravo pertencia a Antonio Pereira de Castro, residente em Casa Branca, em uma fazenda distante 4 léguas da cidade, fazenda Capoeira Bom Sucesso. José tinha aproximadamente 35 anos, natural de Casa Branca, trabalhador de roça, filho de José e Maria, ambos livres e moradores do termo de Casa Branca, como ele mesmo atestou ao delegado. (APHRP, Corpo de Delito, caixa 23-A, 1887). José foi encontrado caído num campo de uma fazenda por um morador da villa de Ribeirão Preto. Ao ser encontrado, o escravo relatou que, além do ferimento, ele estava sem se alimentar. Como ocorria em todos os exames de corpo de delito, foram chamados dois peritos para a realização do laudo e duas testemunhas para acompanhar os trabalhos. Os peritos constataram um ferimento de lâmina no lado direito da cabeça de José, constataram também um avançado processo bacteriano, denominado por eles de “bicheira”. A conclusão dos peritos foi que de fato havia um ferimento, mas que não era mortal, salvo complicações. A lesão teria sido causada por um instrumento contundente, não resultando em perda ou destruição de membros ou órgãos, não inabilitando ao trabalho, mas provocando um grande incômodo de saúde, resultando o dano em 500$000. Ao final do exame de corpo de delito, os peritos ainda avaliavam quanto poderia custar o dano constatado. O escravo José relata que os ferimentos foram provocados pelo filho de seu senhor, de nome Manoel Pereira de Castro. Afirma que foi ferido num sábado, ao meio dia, quando trabalhava no serviço de bater palha. O ferimento tinha sido provocado por um relho na cabeça e em alguns lugares do corpo. Foi nesta ocasião que ele e alguns de seus companheiros de trabalho fugiram, estando desde então “fugido” em uma clara reação aos atos de violência promovidos pelo senhorzinho. Este processo nos permitiu um contato com as declarações do próprio agredido, que além de denunciar a agressão, demonstra como às vezes era violenta a relação entre senhores e escravos. Comenta que tanto ele quanto seus parceiros eram “muito judiados”, por meio de espancamento, e também passavam fome”. Reitera que

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os castigos são sempre empregados pelo senhor moço, Manoel. Quando perguntado se alguém havia presenciado a agressão, revela que seus companheiros estavam presentes na ocasião. Em localidades em que a posse média de escravo era pequena, as punições eram desempenhadas pelos próprios senhores, e isto fazia incorrer tanto em risco para os cativos quanto para os senhores, já que na área rural as leis se faziam menos presentes agravando as relações. (FERREIRA, 2003, p.40.) Fugir de uma situação de violência e fome era uma forma de resistência que possibilitava aos cativos a construção de uma nova vida, ainda que o fugitivo permanecesse correndo o risco de ser reconhecido e preso a qualquer momento. Vários escravos tiveram êxito na fuga, utilizando-se da estratégia da mudança de nome, falsificação de documentos, entre outras artimanhas. Ao se evadir da propriedade de seus senhores, lutando pela liberdade os fugitivos, segundo Reis (1996, p.190),

[...] esmeravam-se na construção cotidiana de mecanismos de resistência, num jogo de sobrevivência, no qual tudo valia: mudar de nome, fingir-se humilde e deficiente, ser civilizado, valente, usar a força das armas, arriscar novas fugidas, falsificar documentos e, sobretudo, passar-se por alforriado. Tudo era válido para garantir a sonhada liberdade.

Porém, a fuga, apesar de representar uma ameaça constante ao sistema, quase sempre não se concretizava, justamente porque os escravos não eram vigiados apenas dentro dos limites senhoriais, mas por toda sociedade. Retomando o caso de agressão sofrida pelo escravo José, temos o triste desfecho do caso: dois dias após a realização do exame de corpo de delito, ocorre a morte do escravo. Segundo os mesmos peritos que o examinaram, a causa da morte teria sido os ferimentos, agravados por bactérias. (APHRP, Autópsia, caixa 23-A, 1887) Como o ocorrido foi numa fazenda em Casa Branca, as autoridades de Ribeirão Preto encaminharam o caso para lá. Não temos conhecimento do que ocorreu depois que o processo foi encaminhado para aquela localidade. Violência, fugas, mandos e desmandos dos senhores, disputas judiciais, estes foram alguns acontecimentos que cercaram o mundo daqueles que viveram estes últimos anos da escravidão em Ribeirão Preto.

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Considerações Finais

Este artigo focou o estudo das formas de ações e resistências dos cativos de Ribeirão Preto entre 1850 e 1888, procurando demonstrar que os escravos, mesmo diante de inúmeras adversidades, conseguiram criar espaços autônomos de sobrevivência, evidenciando que não eram seres passivos, incapazes de modificar seu destino, mero reflexo de seus senhores, principalmente no decorrer da segunda metade do século XIX, onde observamos um aumento no número de revoltas e de ações judiciais de escravos contra seus proprietários. Com uma instituição criada sob a égide da violência e fortemente marcada pelo processo da exclusão social, os cativos se viram obrigados a procurar alternativas, de acordo com suas práticas e costumes, para sobreviver na sociedade. A busca pela liberdade sempre foi um caminho trilhado por esses homens e mulheres, que arrancados de sua terra natal, transportados e vendidos como meras mercadorias, conseguiram a partir de atos de violência ou por meio da negociação, buscar a liberdade. As modificações nas estruturas econômicas e sociais do país, juntamente com as ações e resistência dos escravos iam cada vez mais interferindo nas decisões políticas e na configuração de uma nova cultura. Para estes escravos, a fronteira da escravidão e da liberdade já não estava mais tão distante. Em Ribeirão Preto, onde os cativos se encontravam presentes nas mais variadas atividades econômicas e em plantéis de todos os tamanhos, também observamos como eles conseguiram ampliar sua autonomia perante seus senhores. O negro sempre esteve comprometido na luta por sua liberdade, conduzindo, mesmo que de maneira indireta, o sistema escravista ao seu declínio, atuantes e conscientes de seus direitos, mesmo que a sociedade não fosse nem um pouco generosa com eles, dificultando ao máximo seu acesso à liberdade. Isso só engrandece as ações de Dorothea, João e tantos outros que lutaram para conseguir fazer valer seus direitos.

MONTI, Carlo Guimarães; FARIA, Antonio Carlos Soares. Action and resistance of the captives in Ribeirão Preto (1850 a 1888). DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.6, n.1, 2010, p.27-48

ABSTRACT: This article has for intention to analyze the forms of action and resistance of the captives in Ribeirão Preto between 1850 and 1888. The analyses and the

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reflections that are here presented try to understand the changes which took place in Ribeirão Preto, as well as to understand the existing conflicts between masters and slaves in the end of century XIX. In an attempt to bring back the role of the captives as historical agents in the period of elimination of the captivity in Brazil. KEYWORDS: slavery; Ribeirão Preto; resistance.

FONTES:

ARQUIVO PÚBLICO e HISTÓRICO de RIBEIRÃO PRETO (APHRP) 1º Ofício Cível de Ribeirão Preto – Grupo de Processos Antigos.PÁGINA da CÂMARA dos DEPUTADOS na Internet: Coleção de Leis do Império do Brasil de 1835, 1871, 1872 e 1886, Site: http://www2.camara.gov.br/ , acesso entre julho de 2008 e janeiro de 2009.

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A PARTICIPAÇÃO DA LIGA ELEITORAL CATÓLICA NA COMPOSIÇÃO DA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DE 1933

Filipe de Faria Dias LEITE*

RESUMO: O ano de 1930 na política nacional foi marcado pela ascensão de Getúlio Vargas ao poder federal, inaugurando um período inconstitucional. Resultado direto das pressões oposicionistas, o presidente convocou eleições para a Assembléia Constituinte em 1933. A Igreja Católica teve participação direta na composição dessa Assembléia, com a organização do grupo político conhecido como Liga Eleitoral Católica. Essa pesquisa busca entender como houve a intersecção dos interesses da Igreja Católica Brasileira com os do Estado Varguista.

PALAVRAS-CHAVE: Revolução de 1930; Assembléia Constituinte de 1933; Constituição de 1934; Igreja Católica; Liga Eleitoral Católica.

A atuação da Igreja Católica no Brasil nos primeiros quatro anos da década de 1930 merece destaque, haja vista a relação de proximidade entre o Clero e Getúlio Vargas, criada desde a tomada do poder na Revolução de 1930 (LUSTOSA, 1991). Esse alicerce foi solidificado pelo Cardeal Dom Leme, desde que esse convenceu o presidente deposto, Washington Luís, a sair do Palácio do Catete e a entregar o governo, o que significou a criação de uma forte relação entre as partes, as quais, segundo Boris Fausto 1986, não se romperam durante todo o período que Vargas governou o Brasil, seja como ditador, interventor ou eleito pelo povo. Nesse sentido, a análise da revista “A Ordem”, periódico elaborado pelo Centro Dom Vital, fundado por Jackson de Figueiredo e dirigido por Tristão de Athayde, com sede no Rio de Janeiro, chamou a atenção para o presente estudo, pois essa foi fundamental para a atuação da intelectualidade católica na época. Os exemplares desta revista analisados nesta pesquisa foram publicados em 1933 e compõem um conjunto discursivo composto por uma série formada pelos números 35 a 42, citados em Fontes. O conteúdo católico e conservador presente nessa revista procurou moldar a atuação do Clero em todo o Brasil, já que a circulação desse periódico foi de pouco

* Graduado e mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, FHDSS. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel.

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volume e os leitores privilegiados eram os mesmos que comandavam as celebrações da Igreja nos municípios. Dessa forma, recebiam uma carga intensa de informações políticas e religiosas. O objetivo do Clero em criar uma leitura uniforme dos fatos políticos foi cumprido, já que os clérigos seguiriam a proposta eclesiástica da sede do arcebispado carioca. A atuação da Igreja nas mais variadas formas foi nomeada pela revista “A Ordem” como Ação Católica, que era um modo de organização da Igreja, que se preocupava com a atuação na ciência, moral e bem-estar material. Assim, os trabalhos clericais eram dirigidos com o mesmo foco, sobretudo na moldagem da população diante dos acontecimentos nacionais. Pode-se entender a atuação cirúrgica da Ação Católica na política nacional por meio de sua construção no imaginário dos fiéis, ou seja, da população arregimentada à Igreja Católica. Para acabar com a laicidade, ou seja, separação política entre Igreja e Estado, a Ação Católica pretendia retirar a ignorância de seus fiéis. Para o Centro Dom Vital a Ação Católica era uma estrutura cristã que se originou com a religião Católica. Com o passar do tempo, o intuito de encaminhar à salvação os fiéis, que foram incumbidos de mostrar o caminho dos céus a todos, ganhou força. Esse trabalho da Ação Católica pelos seguidores ficou conhecido como Apostolado Leigo. A colaboração desses indivíduos com a Igreja foi fundamental para a manutenção da estrutura clerical, além do crescimento do número de católicos por todo o mundo. A atuação dos católicos, contudo, é uma conseqüência direta da Ação Católica, e não deve ser confundida com a Ação Católica em si. Enquanto a Ação Católica teve a função de moldar sua atividade de acordo com o contexto local, seja político ou social, o apostolado leigo devia ser submetido à Ação Católica enquanto seu agente, e não como definidor de seus rumos. Em 1933, a revista “A Ordem” mostrou-se determinada quanto aos rumos políticos que o Brasil tomava. Para garantir sua permanência nesse novo período, a Igreja solidificava seu alicerce político, que já estava bem amarrado com as relações próximas de Vargas e Dom Leme. A necessidade de legalizar a religião católica como suprema no Estado, e de definir sua participação nesse, contudo, nortearam os trabalhos do Centro Dom Vital. Como se sabe, o trabalho do apostolado leigo era imprescindível para o sucesso dessa proposta, desde que respeitassem as hierarquias da Igreja, sobretudo a ordem suprema do Papa Pio IX. O supremo Pontífice Católico Ambrogio Damiano Achille Ratti, Pio XI, criou a Encíclica Ubi Arcano, que definiu as bases da Ação Católica (PIERRARD, 1983). Seus trabalhos estavam vinculados a participação do laicado, ou seja, população católica não relacionada à hierarquia eclesiástica, no apostolado da Igreja, em que os fiéis

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eram os responsáveis pelos trabalhos políticos e sociais católicos. A exaltação que o Papa fez aos trabalhadores, conhecidos como apostolado leigo, sob a orientação clerical significava a necessidade da união entre o Clero e os membros da Igreja, meio de atuação religiosa na comunidade cristã. Esse grupo foi conhecido como apostolado leigo, pois foi composto pela população comum católica. O segundo propósito da Ação Católica, definido ainda por Pio XI, confirmou o modelo de atuação clerical no Brasil frente à política. Seus trabalhos deveriam focalizar o combate aos anticristãos, o retorno de Cristo no ambiente familiar, escolar e social, o reconhecimento de Deus como autoridade humana, a redução dos problemas que o povo vivia, a criação de leis justas e o sustento dos direitos divinos. Assim, a postura da Ação Católica de atuação direta na elaboração da Constituição de 1934 foi definida não pelo Clero brasileiro, mas pelo Papa. De forma secundária, mas não menos importante, a defesa do ensino religioso nas escolas públicas participou desse projeto. Tais determinações do pontífice foram cumpridas pelo apostolado leigo. Segundo o Centro Dom Vital, independentemente da forma de governo, República ou Ditadura, a postura da Igreja era semelhante, o que interessava a ela não era ferir os direitos clericais. Para o apostolado leigo, o momento que enfrentava a política brasileira era ideal para desenvolver a Ação Católica, pois a Constituição Laica de 1891 não tinha mais validade e as pressões sobre Vargas para elaborar uma nova Carta Magna aumentavam. Assim, os leigos poderiam formar um grupo de pressão sobre a Constituinte para que as defesas da religião católica fossem institucionalizadas novamente, pois haviam sido perdidas desde a Proclamação da República em 1889. A atuação política da Ação Católica foi necessária para a formação da Assembléia Constituinte de 1933, contudo, a instituição religiosa não poderia se embrenhar no meio político, visto que o Estado era laico e que o projeto católico não tinha a intenção de participar das bases administrativas do Estado. Assim, as realizações políticas diretas foram rechaçadas pelo Clero brasileiro, obrigando o apostolado leigo a ter a tarefa de atuar de forma indireta na política, por conseguinte, a formar um campo de pressão sobre as estruturas existentes ou em criação. A defesa da moral católica, a presença de Deus na sociedade, a aceitação divina como o líder dessa sociedade e a influência dele na política permearam os trabalhos do Centro Dom Vital. Na década de 30, a atuação da Igreja persistiu a própria sobrevivência, haja vista a entrada do protestantismo, do espiritismo, do ateísmo e de religiões afro-descendentes no Brasil. Ao preservar a moral católica, mantinham-se os fiéis, já que, nos anos seguintes, ela seria determinante para os rumos da sociedade brasileira. Para participar da liderança política, o Clero não poderia atuar na administração

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pública, mas no que tange à teoria de moralidade e ao controle social, isto é, a tudo o que um bom político espera de seu povo. A colocação de regras sociais e a vinculação da moral com o divino e com o civismo significaram a solidificação das bases católicas na política brasileira, no alvorecer da década de 30. Com o novo governo, as posturas ainda não estavam muito claras, posto que fosse mais do que necessário defini-las. Em virtude da Igreja desenvolver bem os seus intuitos, as conseqüências vieram em pouco tempo, por exemplo, a revogação da laicidade do Estado definida na Constituição de 1891.

Igreja Católica e Educação no Brasil na década de 1930

Para Ivan Manoel (1992) a educação brasileira foi entregue à Igreja Católica desde o período colonial. Tal evento pode ser verificado com a entrada dos jesuítas no Período Colonial, com o primeiro governador Geral Mem de Sá. Nos primórdios da colonização, a educação foi tratada pela Igreja como forma de arregimentar novos fiéis, sobretudo os indígenas. Assim, a influência da religião na sociedade brasileira permaneceu até a Proclamação da República. O controle educacional católico ruiu com a elaboração da Constituição laica e positivista de 1891. Com a queda da República Velha, em 1930, e com o advento do governo provisório de Vargas, uma das primeiras medidas do ditador foi retirar a validade da Constituição de 1891 e governar por decretos durante pelo menos três anos. Não resistindo às inúmeras pressões, da sociedade aos meios políticos, o governante convocou uma Assembléia Nacional Constituinte em 1933. Seu foco foi criar uma lei nova para o Brasil, afastando o medo do retorno das velhas estruturas coronelistas ao seio da administração pública. Nesse meio, a Igreja, com a Ação Católica, percebeu que deveria intervir, sobretudo, para retomar o seu controle sobre a educação nacional. Vista, porém, a impossibilidade de reaver o controle dos colégios, procurou-se inserir nas disciplinas formais o ensino religioso. Esse foi o plano para continuar semeando o ideal católico na sociedade brasileira. Na revista “A Ordem” outro temor da Igreja Católica apresentado foi o ateísmo socialista. Em desenvolvimento desde a Revolução de 1917 na URSS, o pensamento socialista estava contagiando a intelectualidade brasileira na década de 30. Isso significava que o ateísmo estava muito próximo da sociedade e precisava ser combatido. Nada melhor do que a contestar na origem, bombardeando as crianças e os jovens com pensamentos cristãos anti-socialistas. Para cumprir essa proposta, era necessário retomar o controle da educação. Pela Igreja, foram convocados as famílias e os professores católicos, grupos

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que poderiam participar do apostolado leigo a fim de evitar que a pedagogia socialista ganhasse força na educação nacional. O propósito dos religiosos era evitar que um espaço fosse aberto na educação prática, pois isso poderia ser desastroso para o catolicismo e para o Estado brasileiro. A proposta inicial da Ação Católica consistia na formação de uma liga, conhecida como Liga dos Professores Católicos, capazes de criar um grupo de pressão dentro das escolas para evitar a entrada desse pensamento socialista ateu. A incansável luta da Igreja Católica em busca da educação leiga não foi fruto de invenção de bispos ou padres brasileiros. Essa postura foi proposta na encíclica Divini llius Magistri, criada por Pio XI em 1929. Segundo essa determinação papal, as escolas laicas eram proibidas, senão aquelas que ofereciam ensino religioso facultativo. Recomendavam-se aos cristãos, portanto, somente as escolas que ofereciam a religião no currículo escolar. Era dever do bom católico dar aos seus filhos a escola preocupada com a religião. Assim, fica plausível a postura da Ação Católica na órbita da educação, visto que, embora o Brasil não seguisse tal recomendação, a postura papal deveria ser seguida. A fenda necessária para a retomada dessa situação era a falta de uma constituição que Vargas proporcionou, pois não iria tardar até que uma nova carta magna fosse elaborada. Dessa forma, os trabalhos da Igreja Católica formaram pressões sobre a educação leiga. A ameaça que a escola leiga enfrentava com a presença do grupo social-democrata, que fazia pressão sobre a Assembléia Constituinte e buscava a laicidade da educação, tornou-se uma das causas da aproximação do Apostolado Leigo com os deputados católicos, capazes de frear qualquer tipo de lei não católica, pois eram maioria na Assembléia. Em 1934, estava pronto o anteprojeto da Constituição Brasileira. A força exercida pela Ação Católica e por seu fiel apostolado leigo resultou em elementos educacionais concretos que exaltaram o catolicismo. A educação obrigatória foi limitada ao grau primário, pois a estrutura educacional presente no Estado não era suficiente para receber toda a população em idade escolar. A gratuidade da escola pública, contudo, proporcionou o acesso à escola aos pobres interessados nas fileiras escolares. A cada Estado da Federação caberia a administração financeira e pedagógica da educação. Estas eram as primeiras conquistas educacionais que agradavam a Igreja. Muito mais estava por vir. A educação pública, contudo, não deveria intervir na educação particular, dominada principalmente por instituições religiosas católicas. Para o Clero, era fundamental manter a educação particular controlada pelas ordens católicas, sem regulamentação de projeto pedagógico ou de conteúdos, pois, nessas instituições,

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a instrução católica por vezes sobrepunha-se ao conhecimento formal. Assim, valia mais para o Clero manter sua estrutura particular em pleno funcionamento a arriscar-se na educação pública brasileira. Não significava, porém, que a Igreja abandonaria o projeto, na verdade, pretendia-se desenvolver paralelamente os dois. A educação formal católica defendida bravamente a revista “A Ordem” e buscava moldar a atuação pessoal, sobretudo com a ponderação do tema principal da época: a liberdade. Para a Igreja, a liberdade deve existir, as leituras, os ambientes, o conhecimento criterioso e a responsabilidade devem ser adquiridos pela juventude, mas a orientação de como receber tudo isso deve partir de educadores responsáveis, sobretudo de bons católicos. A postura católica sobre a formação individual é muito ponderada para a época, pois se defendia que a construção deveria ser completa, visto que a Igreja não era opositora da cultura, mas queria participar dela. A vida pela ciência pode muito bem ser cristã, basta seguir a verdade que a fé pode mostrar ao homem. A educação integra o indivíduo para que, com o uso do cristianismo em sua base, incline-se para Deus. Esse era o fundamento católico para defender a educação leiga. Para Vilarça (1975) a integração que a educação proporciona ao indivíduo, segundo o pensamento católico da época, deveria levar a inclinação do indivíduo, alcançada somente com o auxílio da família, perante Deus. A base educacional de qualquer indivíduo, segundo o Clero, era a família, considerada pelos católicos a melhor educadora e a única instituição capaz de colocar indivíduos no convívio social, isto é, na base da sociedade. Cabe ressaltar aqui que a postura atual da Igreja em muito se aproxima desses pensamentos, sobretudo quando se defende a necessidade da família unida como única fonte de sobreviver aos problemas cotidianos. A postura educadora defendida pela Igreja Católica na década de 30 não se restringia à educação formal, alicerçada no conhecimento técnico. O seu propósito, em toda essa defesa da participação da Igreja nas escolas públicas, versava sobre a formação total do indivíduo, como profissional ou pessoa, preparando-o para a vida toda. A educação católica não deveria ser limitada a conhecimento religioso, mas os exemplos práticos deveriam ser tomados como ponto de partida de todos os estudos, sem esquecer a fé como base teórica. O estudo religioso não deveria ser ministrado de forma superficial, mas a discussão teria a obrigação de abranger a teoria da religião, sobretudo as encíclicas papais, tendo em vista as questões econômicas, políticas e sociais. A revista “A Ordem” salientou a ameaça do laicismo educacional, que rondava as discussões nas portas das escolas, nas salas dos professores, na assembleia legislativa e até no Centro Dom Vital. A postura de defesa dos católicos pelo ensino

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religioso nas escolas públicas divergia com a oposição do pensamento laico. O resultado dos calorosos debates entre pensamento laico e religioso dependia dos trabalhos da assembleia legislativa, a qual, de fato, poderia respondê-lo. O ataque final e mais violento do Centro Dom Vital consistia na intervenção do sistema educacional. Os trabalhos da Constituinte estavam no fim; já os debates acalorados e o argumento da escola neutra continuavam sendo ponto de discussão entre os deputados, católicos, ateus ou de outra religião. Pode-se perceber que a relação entre crença e educação significava para os católicos uma escola eficaz, visto que ter uma crença na escola era sinônimo de verdade, enquanto o laicismo deveria ser combatido, acusado de fugitivo e de incapaz.

A Liga Eleitoral Católica na Constituinte

Para consolidar a estrutura eleitoral, com a finalidade de compor a Assembléia Constituinte em maio de 1933, era necessária a criação de Partidos Políticos, pois os que existiam foram fechados em 1930 pela Revolução de Outubro, embora continuassem a funcionar na ilegalidade. Assim, a Igreja Católica, por meio de um de seus maiores veículos de informação no Brasil da época, a Revista “A Ordem”, com a competência da redação de Sobral Pinto, começou a cobrar a construção de partidos políticos oficiais. Essa era a primeira medida para a edificação de uma eficiente estrutura eleitoral na época. Vale ressaltar que a formação desses partidos políticos seguiu a lógica do Governo Varguista, por isso os opositores declarados do governo revolucionário não conseguiram espaço para o desenvolvimento de partidos oficiais. Definida pela Constituição de 1891, a primeira Constituição Republicana da história do Brasil, a eleição era tratada como universal masculina. Contudo, segundo Boris Fausto (1986) ela excluía clérigos, mulheres, militares e analfabetos, ou seja, a maioria da população brasileira. O sistema educacional não era tratado como obrigatório para as crianças, o que contribuía muito com os altos índices de analfabetismo durante boa parte da República brasileira. Entre os alfabetizados estavam os integrantes de classes médias e altas, logo, proporcionou-se uma elitização entre os eleitores. A Igreja Católica, temendo esse grupo “politizado”, sobretudo os integrantes do protestantismo e da maçonaria, buscou acabar com a eleição exclusiva de alfabetizados, pois, com a abertura eleitoral, os fiéis católicos, majoritariamente analfabetos, poderiam contribuir com a eleição dos candidatos católicos. Na expectativa do pleito ainda para o ano de 1933, a Igreja organizou seu aparato eleitoral, vinculado principalmente aos grupos defensores do catolicismo.

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Apostando nos revolucionários de 1930, entre eles o próprio Getúlio Vargas, amigo do Cardeal Dom Leme, o Centro Dom Vital entendeu como era importante a mudança de postura política do Brasil em 1930. Assim, a união entre os líderes da Revolução de Outubro e a Igreja Católica seria suficiente para conquistar a vitória nas urnas. Essa situação de união era bem vista por ambos os lados. A Igreja considerava oportuno o restabelecimento de sua postura religiosa perante o Estado, enquanto os políticos interventores, naquele momento, viam favoravelmente o apoio político eleitoral. Na verdade, tratava-se de uma postura em que os dois lados sairiam vitoriosos, por conseguinte, o retorno das velhas oligarquias paulistas ao poder poderia ser freado. O bloco de arregimentação dos eleitores católicos, inclusive incentivado pelo Centro Dom Vital na revista “A Ordem”, delineou que a Liga Eleitoral Católica (LEC) teria duas tarefas para cumprir com sucesso sua meta de integrar a Constituição ao projeto católico. A primeira deveria incentivar os católicos indiferentes a participar da política, pois esses poderiam criar um grupo de eleitores capazes de escolher os candidatos indicados pela LEC. A outra face dessa tarefa encontrava-se no meio político, assim, interessava conseguir dos partidos e dos candidatos que concorriam nas eleições de 1933 garantias de atuação na Constituinte em prol dos ideais Católicos. Com a efetivação dessas duas partes, o trabalho da LEC seria completo, pois os interesses católicos estariam garantidos nas urnas, com os eleitores, e na elaboração da constituição, com a presença dos candidatos previamente doutrinados com o pensamento religioso cristão. A postura uniforme da LEC em relação às eleições, independentemente da região do Brasil, significou muito para os acontecimentos políticos. Sem pensar em questões locais, buscou-se atingir todo o Brasil, com um trabalho coordenado pelo Centro Dom Vital. Destarte, as reivindicações consideradas mínimas pelos católicos estariam em fase de germinação. É importante ressaltar que segundo o periódico “A Ordem”, atuação política da LEC foi apartidária, ou seja, não se pode confundir esse bloco de pressão política, criado com os católicos, com os partidos. Não houve participação da LEC, alheia a qualquer posicionamento de esquerda, em lutas partidárias, na verdade, o seu trabalho envolveu diretamente os candidatos. A rebote de todo o trabalho político com os candidatos, percebe-se uma mudança de postura dos eleitores, que estavam acostumados com a apatia política, herança dos tempos de voto de cabresto. O civismo com que os católicos enxergaram essa eleição foi perceptível, ainda mais por sua finalidade ser a elaboração de uma nova Constituição para o Brasil. O Centro Dom Vital foi coerente ao definir seus trabalhos em etapas. Nos

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primeiros meses, as atividades pautaram-se com o convencimento do eleitorado católico em prol da eleição dos candidatos católicos. Vencida esta fase, o segundo objetivo foi unir os candidatos católicos e os partidos políticos para que se pudesse formar um grupo comprometido com a necessidade da Igreja Romana, uma mudança de postura na constituição. Quase no final das eleições, os católicos perceberam o resultado positivo, já que a maioria dos deputados estava, de uma forma ou de outra, vinculada aos preceitos católicos. A terceira etapa desse projeto seria natural: a tradução de todos esses esforços em uma constituição baseada nos interesses da população e da Igreja Católica no Brasil. A relação entre Getúlio Vargas e a Igreja Católica mantinha-se em alta, pois mesmo com essa postura de pressão católica nas eleições, em momento algum houve questionamento pelo Centro Dom Vital da postura do Ditador. Assim, os laços estabelecidos por Dom Leme estavam bem fixados, e não seria Vargas que faria objeção aos pontos defendidos pelos clérigos. Essa relação de dupla troca funcionou bem nos primeiros anos do governo varguista, pois, se de um lado o ditador aceitava a presença dos católicos na composição da Constituinte, de outro a Igreja não era contrária aos desmandos dele, desde a tomada violenta do poder até a administração do governo sem uma constituição promulgada. A postura do Governo Varguista não via problemas na elaboração da Constituinte. Questionado sobre a composição dela, o General Góes Monteiro defendeu uma postura de confiança na criação de uma maioria governista. Tal estrutura conservadora do poder instituído poderia participar da Igreja, pois se a LEC organizou seu eleitorado enfatizando a necessidade da uma constituição leiga, esses deputados seriam de base conservadora, ou seja, aliados ao governo revolucionário, que tomou o poder em 1930.

Organização da Constituinte

Definido o rumo da eleição da Constituinte, principalmente a partir dos trabalhos da LEC, faltava somente o ditador apresentar como seria composta a mesa dos deputados da Assembléia Constituinte. Para Lustosa (1976) a demora dessa definição significava que Vargas procurava conhecer os grupos do pleito antes de arriscar-se frente à população, já que, depois de eleita a assembleia, seria muito difícil destituí-la. Seguro dos acontecimentos, visto que os inimigos estavam rechaçados do processo, as bases estavam prontas e os católicos preparados para qualquer tipo de batalha eleitoral. Segundo o Centro Dom Vital foram abertas duzentas e cinquenta e quatro

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cadeiras para a Assembléia, sendo duzentas e quatorze definidas pelos Estados e quarenta, por representantes profissionais. O bloco católico estava vinculado aos Estados, o suficiente para contemplar uma bancada autônoma. Quanto aos deputados vinculados aos trabalhadores, era hora do ditador marcar o seu governo, pois tal postura apresentava o início da política trabalhista de Vargas, haja vista o ápice dessa relação com a aprovação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em 1943. Mesmo pronto para as eleições e muito confiante no que estava por vir, Sobral Pinto, um dos maiores críticos que publicava na revista “A Ordem”, não diminuiu o tom de suas críticas contra o posicionamento de Vargas, taxando-o confuso e sombrio, em relação à atividade do governo, assim, além de ter demonstrado que da ditadura não é possível emanar um regime renovador, não se demonstraram ao certo os rumos que o Brasil tomaria, após o importante passo da Constituinte. Tal crítica pautada nos três últimos anos de Governo de Vargas, entre 1930 e 1933, apresentou a informação de que nem mesmo aqueles que apoiaram a ascensão de Getúlio ao poder, como foi o caso do Cardeal Dom Leme, em 1930, conseguiram manter a isenção frente aos acontecimentos recentes, pois a ditadura centralizadora que Vargas implantou no Brasil não agradava mais e o Centro Dom Vital externou tal posição presente também no Clero brasileiro. O trabalho de arregimentação de eleitores e de candidatos, elaborado bravamente durante meses pela LEC, foi um sucesso para o Centro Dom Vital, contudo, a manutenção da postura rígida dos católicos em prol da Constituinte e a fiscalização dos deputados eleitos deveriam manter-se em alta, pois, embora fosse fácil acusar os congressistas das imperfeições da constituição, estar pronto a atuar pela contemplação do maior número de pormenores para a nação exigia cuidado, entretanto, a LEC não encontrava tal postura entre os fiéis eleitores. Entre as duzentas e cinqüenta e quatro cadeiras disponíveis para todo o Brasil, na Assembléia Nacional Constituinte, cento e quarenta e seis eram ocupadas por deputados eleitos com auxílio da LEC, ou que, pelo menos, assinaram um documento de intenção de defesa aos interesses católicos. Assim, pode-se mensurar o tamanho do sucesso da LEC, que provocou uma constituição bem amarrada com os ideais católicos. A tarefa dos deputados eleitos com auxílio da LEC era muito vasta. As preocupações desse grupo deveriam estar vinculadas à formação da nova identidade do brasileiro, desde a organização da família até a formação crítica do individuo, haja vista a entrada da religião nas escolas públicas como disciplina obrigatória. Os primeiros resultados da Constituinte foram significativos para a Igreja Católica. Logo no preâmbulo, ficava evidente o caráter leigo do Estado brasileiro, a

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partir de 1934, quando evocou a “confiança em Deus”. Também ficaram marcados, no artigo 16 da constituição, os fortes laços entre o Estado e a Igreja, pois se permitia a “colaboração recíproca em vista do interesse coletivo” entre as partes. Essa postura inicial para a Igreja era vista como uma reivindicação social, não um privilégio alcançado. Para Tristão de Athayde, grande defensor da Igreja Católica na época, se fosse um privilégio a causa católica, não se teriam mais de cem votos, o que demonstra sua feição social para a Constituinte. A grande vitória católica no pleito da Constituinte, segundo o próprio Centro Dom Vital, foi o sentimento religioso presente no eleitor brasileiro, somado a questões psicológicas e sociológicas, que, além do receio da manutenção da inconstitucionalidade no Estado brasileiro, constituíam na época o medo do socialismo pelos cristãos. Essa conquista da LEC significou na prática a aprovação de artigos que incluíam a colaboração recíproca entre Estado e Igreja, além do próprio anteprojeto da constituição, mesmo com a presença de forte oposição de pequenos grupos liderados por Sampaio Corrêa, Pereira Lyra e Cincinato Braga. Os trabalhos da LEC, as vitórias nas urnas e, por fim, a elaboração de uma constituição vinculada ao catolicismo demonstraram a força da instituição religiosa romana no Brasil. Evidentemente essa postura católica visava a perpetuar a sua própria existência, dessa forma, evitava-se a ascensão de estruturas concorrentes como o protestantismo ou mesmo como o socialismo.

LEITE, Filipe de Faria Dias. The participation of the Catholic Electoral League in the composition of the Constituent Council of 1933. DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.6, n.1, 2010, p. 49-61.

ABSTRACT: The year of 1930 in the national politics was marked by the ascension of Getúlio Vargas to the federal power inaugurating an unconstitutional period. As a result of opposing pressures, the president convoked elections to the Constituent Assembly in 1933. The Catholic Church had direct participation in the composition of this Assembly with the organization of the political group known as Electoral Catholic League. This study aims to understand how the intersection between the Brazilian Catholic Church and Vargas’ Government.

KEYWORDS: 1930 Revolution; Constituent Council in 1933; 1934 Constitution; Catholic Church; Catholic Electoral League.

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FONTES

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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___. O Pêndulo da História: a filosofia da História do Catolicismo Conservador (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.PIERRARD, P. História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1983.POULAT, E. Compreensão Histórica da Igreja e compreensão eclesiástica da História. In: Concilium, n.57, 1971/7.VILARÇA, A. C. O Pensamento Católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. 1975.WEILER, A. História Eclesiástica e autocompreensão da Igreja. In: Concilium, n. 57, 1971/7.WERNET, A. A Igreja Paulista no século XIX. São Paulo: Ática, 1987.

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1Pedagoga, Doutora em Educação pela UNESP, campus de Marília. Professora Adjunta do Departamento de Ensino e Organização Escolar, Instituto de Educação – Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá. Pesquisadora do ALFALE (Grupo de Pesquisa Alfabetização e Letramento Escolar)

A CONSTRUÇÃO DE SABERES DA CULTURA ESCRITA EM MATO GROSSO RETRATADA NOS CADERNOS ESCOLARES

Ana Lúcia Nunes da Cunha VILELA1

RESUMO: O presente trabalho busca contribuir para a construção de uma história de alfabetização no Estado de Mato Grosso. Utilizando os procedimentos da pesquisa de fundo histórico, optamos por fazer um recorte através da análise de cadernos escolares da primeira série do ensino primário na década de 1960. Este material constitui-se em documentos escolares de registro das atividades realizadas durante as aulas, testemunhos insubstituíveis das práticas pedagógicas, refletindo a relação da escola com a cultura escrita, a hierarquia dos saberes trabalhados e as práticas de linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: Cadernos escolares; alfabetização; cultura escolar.

A presente pesquisa está inserida no Projeto “Memória da Cultura Escolar Matogrossense: ensino primário, práticas de leitura e de escrita em grupos escolares, escolas reunidas e isoladas (1910-1970)” que vem sendo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Alfabetização e Letramento Escolar – ALFALE. O Grupo de Pesquisa ALFALE foi criado em 2001 e tem como objetivo desenvolver atividades de pesquisa e de formação de acervo histórico na área de alfabetização, leitura e escrita. É ligado ao Núcleo de Pesquisa em Educação (NUPED), órgão complementar do Departamento de Educação do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, campus de Rondonópolis e ao Programa de Pós-Graduação em Educação dessa Universidade. Atualmente, o ALFALE desenvolve a pesquisa interinstitucional “Cartilhas escolares: ideários, práticas pedagógicas e editoriais (1870-1997)” junto a pesquisadores do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – CEALE, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Centro de Estudos e Investigações em História da Educação – CEIHE, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Essa pesquisa

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tem originado subprojetos, no nível de Iniciação Científica e projetos integrados, no nível da Pós-Graduação em Educação, voltados para a compreensão do fenômeno da alfabetização e letramento no contexto brasileiro e, em especial, no contexto matogrossense. Além do trabalho investigativo, o Grupo ALFALE tem desenvolvido um trabalho de reunião, seleção e catalogação de fontes históricas (dissertações e teses, cartilhas, livros didáticos, manuais do professor, compêndios e outros materiais) que compõem o recém criado Centro de Documentação do NUPED, com vistas à preservação da memória da escola em MT. O projeto “Memória da Cultura Escolar Matogrossense: ensino primário, práticas de leitura e de escrita em grupos escolares, escolas reunidas e isoladas (1910-1970)”, também desenvolvido pelo ALFALE, tem por objetivo conhecer, compreender e sistematizar dados relacionados à cultura escolar da escola primária em Mato Grosso, nos sessenta anos que se seguem à reforma da instituição pública realizada em 1910. O período escolhido (1910-1970) foi determinado em função de dois marcos importantes para a educação matogrossense. Em 1910, ocorreu uma reorganização do ensino, promovida por professores paulistas contratados pelo presidente Pedro Celestino que almejava por uma reforma nos moldes republicanos, como a da reestruturação escolar no Estado de São Paulo. A novidade daquele momento era a criação dos grupos escolares, já instituídos em São Paulo em 1892 (SOUZA, 1998). Na década de 1970, especificamente em 1971, a reforma de ensino instituída pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº. 5692/71, extingue essa modalidade de instituição escolar (grupo escolar) e passa a denominá-la de Escola de 1º grau ou Escola de 1º e 2º graus. O trabalho fundamenta-se na pesquisa qualitativa de fundo histórico, especificamente no Referencial da História Cultural. Utilizaram-se como fontes de dados os cadernos escolares, a legislação (decretos, leis, resoluções), os livros de matrícula, os livros de atas, entrevistas com professores e visitas à escola. Nesta pesquisa, a partir da abordagem histórica e tendo por referencial teórico Dominique Julia, entende-se por cultura escolar um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses conhecimentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais

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professores. (JULIA, 2001, p.10). Para recompor a memória da cultura escolar matogrossense, optou-se por fazer um recorte através da análise de cadernos escolares da primeira série do ensino primário, de uma escola de cunho confessional que atendia apenas meninas, na década de 1960, em Campo Grande, na época município de Mato Grosso. Os cadernos escolares constituem-se fontes históricas, emblemáticas, interessantes e reveladoras da cultura escrita visada pela escola no período estudado. Estas fontes de dados podem nos ajudar a entender o funcionamento da escola de uma maneira diferente da veiculada pelos textos oficiais ou pelos discursos pedagógicos. (CHARTIER, 2006)

Descrição das atividades encontradas nos cadernos

Nas salas de aula do primeiro ano do curso primário na década de 1960 as alunas utilizavam quatro cadernos. Dois cadernos de uso diário de Linguagem e dois cadernos diários de Aritmética. Um caderno, denominado de caderno do dia, que servia de rascunho onde eram realizadas as atividades diárias de sala de aula e outro para “passar a limpo” as atividades corrigidas pela professora. O caderno “a limpo”, vitrine do trabalho escolar, era aquele caderno sem erro, feito com boa caligrafia, reproduzindo os textos copiados e os ditados passados a limpo (feitos no rascunho e, depois da correção, recopiados nesse caderno). As anotações da professora se reduziam a algumas marcas muito breves, (“Visto”, ”Bom”, “Muito bom”), no início ou no final das atividades. Esse caderno era recolhido diariamente pela professora verificando o desempenho da aluna no que era capaz de (re)fazer sozinha depois da ajuda recebida da professora e tornando visível o fato de que ela corrigia os cadernos todos os dias. Analisando o espaço gráfico do caderno em que se manifesta a cultura escrita primária, por meio da organização da página destaca-se: o nome da escola, a data, os diversos títulos sublinhados, alternância dos exercícios e textos dos conteúdos que eram estudados e as ilustrações realizadas pela professora ou pela própria aluna. Assim, o espaço do caderno é uma perpétua reinscrição de um escrito que já está lá e que se deve transformar seguindo as instruções: colocar no plural, conjugar verbos, preencher as palavras que faltam no texto, resolver o problema, desenhar o losango ou o triângulo retângulo. Nesse pequeno teatro do saber escolar, como escrevem Jean Hébrard e Christiane Hubert, as listas e os quadros que a criança constrói cotidianamente na escola recortam e, ao mesmo tempo, organizam o campo de seu saber, saber talvez limitado, mas que por essa disposição gráfica se constitui, como

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sempre, exaustivo e totalizante”(CHARTIER, 2007, p.54). No que se refere aos conteúdos trabalhados, um primeiro olhar sobre esse documento mostra que o caderno de Linguagem comporta atividades de ortografia, caligrafia, cópia, ditado, redação, que serão descritas a seguir. Essas atividades envolviam as disciplinas de Português, História, Geografia, Ciências, Educação Moral e Cívica e Ensino Religioso, conforme demonstra o quadro síntese (Anexo1). O caderno de Aritmética, apenas a título de ilustração pois não se constituí em objeto de análise deste trabalho, comporta atividades de exercícios de cálculo (operações, sistema de numeração) e resolução de problemas (cópia do quadro do texto, indicação das operações a serem realizadas, execução das contas e resposta). O que nos revelam os cadernos escolares? É possível afirmar que esses instrumentos analisados revelam/desvelam a concepção de cultura escrita e dos saberes consagrados pela escola no período em que se inscrevem, definidos tanto pelos exercícios propostos quanto pelos conteúdos abordados. Os objetivos pedagógicos das aulas de Linguagem mostram que a ortografia é o eixo da língua materna e por ela toda a cultura primária era julgada. As atividades realizadas restringiam-se aos exercícios de elaboração de frases, cópias, ditados de palavras e classificação gramatical das palavras através da análise morfológica. Dessa forma, durante um bimestre, foi realizada apenas uma atividade de escrita espontânea de redação baseada no conteúdo da área de Ciências (Diga o que você sabe sobre o boi).

Textos copiados

Diariamente ou a cada dois dias, a aluna copiava, no caderno, um texto da cartilha ou de Gramática. O texto da Gramática (ANEXO 2) era escrito no quadro negro pela professora, explicado e depois copiado pelas alunas. Os assuntos encontrados no caderno eram sinônimos, antônimos, aumentativo, diminutivo, cedilha, ponto final, ponto de interrogação, ponto de exclamação. Os textos eram curtos, de cinco a dez linhas. Eram copiados, também, outros textos em momentos diversos da aula, correspondentes às demais matérias ensinadas: Ciências, História, Geografia, Ensino Religioso, Educação Moral e Cívica, Matemática. Assim, encontramos cópia de textos com os seguintes títulos: “O boi”; “O cavalo”; “As frutas”; “A bandeira”; “Pontos cardeais”; “Datas cívicas”; “O papa”; “Lei Áurea”; “Dias da semana”. Outros exemplos de cópia são os exercícios de caligrafia (ANEXO 3) que eram repetidos dez vezes e continham ensinamentos morais, cívicos e religiosos, deveres para com a família, deveres para com a pátria e deveres na escola, como: “O

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Brasil é minha pátria.”; “Quero conhecer e amar Deus.” (sic); “As meninas piedosas são a consolação dos pais.”; “Os mandamentos são dez.”; “Como é bom ser estudiosa.” Há que se ressalvar que algumas vezes a professora passava no quadro negro, também, alguns versos (quadrinhas) e advinhas como exercício de cópia, como por exemplo:

Copie estes versinhos:

Eu sou um pobre sapoQue vivo a vida inteiraDebaixo de uma pedraDo rio aqui na beira (caderno escolar da 1º série B, de 27/05/1960)

Que é? Que é?Tem cabo, varetas, é coberto de pano e serve para nos abrigar da chuva?Resposta: guarda chuva. (caderno escolar da 1º série B, de 27/09/1960)

Embora as atividades de cópia tivessem como objetivo o treino e a memorização das regras ortográficas, para escrever sem erros ortográficos as alunas deveriam estudar esses conteúdos para atividades posteriores: ditados, argüição oral pela professora e objeto de estudo para a sabatina mensal.

Textos ditados

Assim como a cópia, diariamente ou a cada dois dias a professora ditava um texto, de extensão variada (texto de 15 linhas a uma página) e cujo conteúdo se relacionava com a Geografia, Ciências, Matemática, História, Educação Moral e Cívica, Ensino Religioso. Dessa forma, encontramos ditados cujos títulos são: “Bons hábitos”; “Asseio e vestuário”; “O relógio de Luisinho”; “Dias da semana”; “Festas populares”; “A galinha”; “O ar e a água”; “Animais nocivos”; “Hino à Bandeira”; “Foi Deus, meu amor”; “Natal e Ano Bom”. O ditado tinha como objetivo o treino, a memorização das regras gramaticais, além de verificar quais as dificuldades que ainda persistiam nos conteúdos ortográficos já trabalhados. Concomitantemente aos ditados de textos realizados em classe, a professora realizava uma atividade denominada “palavração” (ANEXO 4) que consistia no ditado de palavras consideradas difíceis (pela professora) ou que as crianças apresentavam mais dificuldades em outras atividades.

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Exemplos de atividades de palavração:

Portugal – Espanha – Mato Grosso – Campo Grande – Cuiabá – vaca – galinha – boi – abelha – ovelha. (caderno escolar da 1º série B, de 06/09/1960)

terra – livro – semana – sal – pão – roupa – leite – calor – frio – dente – banho. (caderno escolar da 1º série B, de 31/08/1960)

Esse tipo de ditado tinha como objetivo, ainda, reforçar os conteúdos gramaticais estudados, como por exemplo nomes próprios que devem ser escritos com letras maiúsculas e fixação das famílias silábicas LH, NH, RR, observados na atividade acima. Ressalta-se a presença de dois ditados referentes à literatura infantil, quais sejam, “O patinho feio” e “A gata Borralheira”, transcritos abaixo. Durante o semestre analisado, são os únicos momentos em que a literatura infantil se faz presente e, ainda, de forma resumida.

O patinho feio (ANEXO 5)O patinho feio vivia muito triste. Porque não era igual aos outros patos. Todos zombavam dele.Resolveu, para isso, abandonar a granja onde morava. Mas logo que chegava a um lugar, todos riam da sua figura. (caderno escolar da 1º série B, de 24/08/1960)

A gata borralheiraGata borralheira era o apelido de uma linda moça obrigada por sua madrasta a viver na cozinha.Um dia, ela desejou ir ao baile do palácio do rei. Uma boa fada resolveu ajudá-la.Para isso, transformou roupa velha e suja da moça num belo vestido e fez surgir de uma noz e de alguns ratinhos uma carruagem puxada por seis cavalos. (caderno escolar da 1º série B, de 29/09/1960)

Textos redigidos

A produção de textos ou escrita espontânea é praticamente inexistente na primeira série do ensino primário, conforme análise dos cadernos escolares da década de 1960. Durante o segundo semestre, encontramos apenas quatro atividades de redação de textos, iniciados a partir do mês de setembro. Essas atividades eram de duas maneiras: a partir de um tema fornecido pela professora a ser desenvolvido

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pela aprendiz (como por exemplo “O gato”, descrito abaixo) ou escrita de um tema determinado pela professora e já estudado em outra disciplina, como por exemplo, “escreva o que você sabe sobre ...”. Um exemplo de atividade de composição é o que se segue.

O gato (ANEXO 6)Este gato chama-se Mimi.Mimi é muito manso.Tem o pelo branco e sedosoDorme no quintalMimi gosta de caçar rato. (caderno escolar da 1º série B, de 31/08/1960)

A “composição” escrita pela aluna permite identificar as condições de produção de texto em situação escolar: em geral, ela deve repetir o “texto” que leu (da cartilha), usando as palavras que já aprendeu a escrever, isto é, já treinadas em sala de aula, para um único interlocutor (a professora que já conhece o texto) e cujo interesse é, pois, verificar se sabe escrever com correção ortográfica. Constata-se, ainda, que a escrita da redação é dependente da gravura, tal qual na cartilha “Este gato chama-se Mimi”. O texto da aluna não passa de uma lista de orações superpostas, sem unidade temática, sem coerência e coesão. A composição reflete os “modelos” de texto que as alunas conviviam. A outra modalidade de redação apoiava-se nas informações de demais áreas de conhecimento – Ciências, Geografia, História – como a transcrita a seguir.

Diga o que você sabe sobre o boiO boi é um animal útil e doméstico, puxa arado, carros e auxilia o homem.Ele nos dá carne, couro, chifres e ossos. (caderno escolar da 1º série B, de 12/09/1960)

Ao propor uma atividade como a descrita acima, ou seja, a partir de um assunto estudado, a professora tinha a possibilidade de verificar se todas as alunas haviam estudado a lição de Ciências (o que seria impossível fazer oral e individualmente), bem como avaliar a escrita ortográfica das palavras já ensinadas. Enfim, essa atividade era mera reprodução de assuntos já estudados. Em síntese, a atividade de redação tinha como objetivo diagnosticar os pontos fortes e fracos das alunas em ortografia, caligrafia, uso de letras maiúsculas, pontuação e correção gramatical.

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Exercícios gramaticais

Diariamente eram propostos exercícios gramaticais para fixação dos assuntos estudados: letra maiúscula; substantivo próprio e comum; gênero, número e grau do substantivo; sinais de pontuação e escrita de sentenças. As atividades mais freqüentes eram:

Análise morfológica das palavras:José – nome próprio, masculino, singular.Abel – nome próprio, masculino, singular.Sapatos – nome comum, masculino, plural.Meias – nome comum, feminino, plural.

Escreva cinco nomes de pessoas. (ANEXO 7)Escreva cinco nomes de lugares.Escreva cinco nomes de animais.Escreva cinco nomes de cousas.Escreva cinco frases com ponto de interrogação.

Observa-se que esses exercícios cobram a teoria gramatical estudada, e copiada do quadro negro (vide atividades de cópia), com definição de conceitos e aplicação das regras estudadas em sala de aula. Reforçam a concepção da Gramática como um conjunto de regras que devem ser seguidas por aqueles que querem falar e escrever corretamente. Esses exercícios cumprem a função de aperfeiçoar a língua padrão não admitindo as variantes linguísticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final da análise do caderno escolar da década de 1960, algumas considerações podem ser apresentadas. As práticas pedagógicas empreendidas pela professora com freqüência mais expressiva são as atividades coletivas, caracterizadas por ditados, cópia do quadro e exercícios gramaticais, bem como as atividades individuais, por meio de exercícios de caligrafia e composição. Os textos utilizados nas atividades de cópia e caligrafia visavam a inculcação de certezas morais, patrióticas e religiosas, enquanto a gramática era ensinada através da repetição de exercícios estereotipados, que reforçava a concepção de língua como “expressão do pensamento”.

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A língua é um instrumento que se encontra à disposição dos indivíduos que a utilizam como se não tivesse história. Uma característica importante nessa concepção é o predomínio, senão exclusividade, da consciência individual no uso da linguagem. [...] Interpretar é descobrir a intenção do falante/autor. (KOCH, 2002)

Vale ressaltar a quase ausência e empobrecimento da Literatura Infantil no decorrer do ano letivo. Em contrapartida, a professora estimulava as alunas a lerem e copiarem poesias para divulgação no mural da sala de aula e do pátio da escola, conforme relato de ex alunas. O trabalho desenvolvido pela professora vai ao encontro do Programa dos Grupos Escolares de Mato Grosso (1911) que preconizava como conteúdos para o Primeiro Ano a leitura e a linguagem oral e escrita, como apresentado na citação abaixo.

Leitura. Palavras – o que ellas representam e significam. Sentenças formadas com palavras estudadas.Formar, com cartões de letras, as palavras e sentenças lidas.Linguagem Oral – descripção de objectos communs, presentes e ausentes. Narração de factos instructivos e Moraes, com reproducção socrática e completa da mesma. Recitação de máximas e poesias apropriadas à classe.Linguagem Escripta – copiar palavras e pequenas sentenças do quadro negro ou do livro. Dictado muito simples. Escrever sentenças com palavras dadas. Uso de letras maiúsculas. (AMÂNCIO, 2008, p.152-3)

Observa-se a predominância de atividades de escrita em detrimento a atividades que enfocassem a leitura. Ressalta-se o empenho da professora em ensinar as alunas um procedimento de organização e cuidado com esse material escolar. Especificamente nos cadernos analisados, a professora solicitou às alunas a elaboração de uma dedicatória aos pais em agradecimento aos seus esforços pela educação das filhas e a promessa de retribuição por parte das meninas, o que se evidencia pelo que se segue.

Aos queridos paisEste caderninho terminado com gosto mostra meu carinho aos seus esforços pela minha educação.Como prova de carinho e de amor, prometo, nestes últimos dias do meu primeiro ano escolar, ser-vos obediente, grata e respeitosa por toda a vida.

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Com afeto, beijo-vos a mão.A vossa filhinha.

Para além do relatado, o caderno escolar constitui-se um instrumento de comunicação entre a escola e a família, bem como de controle dos pais sobre o que está sendo trabalhado e veiculado na sala de aula. Na mesma esteira, os cadernos retratam os conteúdos da cultura escolar e da cultura escrita de cada época. Pelo volume de dados coletados e pelas dificuldades inerentes à investigação de caráter histórico, a presente pesquisa não se encontra finalizada, sendo que seus resultados totais serão abordados em trabalhos futuros.

VILELA, Ana Lúcia Nunes da Cunha. The construction of knowledge of literacy culture in Mato Grosso (Brazil) the portrayed in school notebooks. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.6, n.1, 2010, p.65-83.

ABSTRACT: This paper aims to contribute to the construction of a history of alphabetization in the state of Mato Grosso (Brazil). By using the procedures of historical based research, we have chosen to work from the analysis of first grade school notebooks of elementary school in the 1960s. This material represents school registration documents of the activities carried out during the classes, irreplaceable testimonies of the pedagogic practice, reflecting the relation the school establishes with literacy culture, the hierarchy of worked knowledge and language practices.

KEYWORDS: school notebooks; alphabetization; school culture.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMÂNCIO, L. N. B. Ensino de leitura e grupos escolares. Mato Grosso: EdUFMT, 2008.CHARTIER, A. M. Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v.16, n.32, p.13-33, set/dez. 2007.___. Práticas de leitura e escrita: história e atualidade. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2007.FRADE, I. C. A. S; MACIEL, F. I. P. (org.). História da Alfabetização: produção, difusão e circulação de livros (MG/ RS/ MT – séculos XIX e XX). Belo Horizonte: UFMG/ FAE, 2006.

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JULIA, D. A cultura como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n.1, p.9-44, 2001.KOCH, I. Desvendo os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002MORTATTI, M. R. L. Os sentidos da alfabetização: São Paulo/ 1876-1994. São Paulo: Editora UNESP, COMPED, 2000.

ANEXO 1

DATA ATIVIDADES CONTEÚDOS

17/08/1960Escrita

Masculino/FemininoSingular/PluralSinônimo/Antônimo

Análise gramaticalCaligrafia Nome próprio

18/08/1960

Texto: As frutas (cópia do quadro)CompleteEscrita de frases com as palavras dadasComplete

CiênciasGeografia (noite/ dia)Elaboração de frasesPlural

22/08/1960

Cópia do quadroGramática (cópia do quadro)ExercíciosDitado

Quadrinha (livro didático) Uso da letra maiúsculaNomes própriosCiências (bons hábitos/higiene/ vestuário)

24/08/1960

CompleteClassificação dos substantivos (próprio/ comum)AdvinhasDitado

Substantivo comumSubstantivo próprio/ comumCópia Narração: O patinho feio

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29/08/1960

Cópia do quadroClassificação das palavrasNomear plantas e frutasCópia do livroDitado

Ciências (O boi)Substantivo (próprio/ comum) Ciências: plantas frutíferasMinha professoraO relógio

31/08/1960

Cópia de frases Complete as frasesPalavração (ditado de palavras)Elaboração de frasesCaligrafiaDitado

Geografia/ MatemáticaGeografia/ MatemáticaProfissõesNomes próprios e comuns ReligiãoMedidas de tempo (semana/meses)

02/09/1960 Cópia do quadroDitado

Ciências: A vacaHistória: Descobrimento do Brasil

06/09/1960

Cópia do quadroCompletar com substantivos comunsResponderCaligrafia Ditado

VersosCiênciasReligião/Ciências/GeografiaReligiãoFestas familiares

09/09/1960

Complete com substantivos comunsComplete com nomes própriosPalavração (ditado de palavras)Produção de textos (diga o que sabe sobre a vaca)Ditado

CiênciasAdjetivos pátriosNomes próprios e comunsCiências: animais (vaca) Ciências: animais (galinha)

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12/09/1960

Produção de textos (diga o que sabe sobre o boi)QuestionárioFormar sentençasDitado

Ciências: animais (boi) História/Religião/PortuguêsA partir de palavrasCiências (o ar e a água)

14/09/1960

Feminino/ PluralQuestionárioFormar sentençasDitado

PortuguêsGeografiaPortuguêsCiências: O carneiro

16/09/1960Noções gramaticaisPlantasDitado

Diminutivo/ AumentativoCiênciasSeres vivos

Quadro 1. Síntese das atividades e conteúdos trabalhados

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ANEXO 2

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ANEXO 3

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ANEXO 4

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ANEXO 5

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ANEXO 6

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ANEXO 7

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CONDIÇÕES DE TRABALHO E PRECARIZAÇÃO DO ENSINO MÉDIO PÚBLICO

Rodrigo TAVARAYAMA*Maria Cristina Da Silveira Galan FERNANDES**

RESUMO: O objetivo deste trabalho consistiu em analisar o perfil dos professores de geografia e história do Ensino Médio público de duas escolas do interior do estado de São Paulo, tendo como referencial teórico-metodológico a perspectiva crítico-dialética, analisando as condições de trabalho dos professores e suas possíveis influências na prática de ensino.

PALAVRAS-CHAVE: condições de trabalho; qualidade de ensino; ensino médio; prática de ensino;

Introdução

Este artigo apresenta os resultados da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Educação do Centro Universitário Moura Lacerda (PPGE/CUML). A educação brasileira tem passado por inúmeros processos de transformações e mudanças nos últimos tempos e estas nem sempre tem sido positivas. Nesse sentido, considerando-se que um dos desafios colocados hoje para a educação consiste em discutir a qualidade da educação brasileira, qualidade esta que vem sendo há tempos questionada, o presente trabalho direciona seu foco para as condições de trabalho que circunscrevem a profissão docente, particularmente de professores de geografia e história do ensino médio público, influenciando diretamente a qualidade do ensino. No entanto, não é possível entender tal questão, sem antes considerar que ela está situada em um contexto maior e que sofre a influência do sistema capitalista de

* Formado em Ciências Sociais pela FFC/UNESP (Faculdade de Filosofia e Ciências – Universidade Estadual Paulista), Mestre em Educação pelo CUML (Centro Universitário Moura Lacerda) e professor da Faculdade Dr. Francisco Maeda - Fundação Educacional de Ituverava (FAFRAM/FEI).** Mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP, Doutora em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara e professora doutora do departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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produção. Para Antunes (2006),

A década de 1980 presenciou, nos países de capitalismo avançado, profundas transformações no mundo do trabalho, nas suas formas de inserção na estrutura produtiva, nas formas de representação sindical e política. Foram tão intensas as modificações, que se pode mesmo afirmar que a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser (p.23).

Essas transformações atingiram com maior intensidade os países menos desenvolvidos, o que provocou profundas mudanças políticas, econômicas, culturais e sociais no mundo tornando, assim, necessário o debate em torno do trabalho docente (OLIVEIRA, 2004). Em meio a esse cenário de mudanças os professores são vistos pela sociedade civil como uma classe detentora de privilégios, o que acaba desprestigiando sua profissão, pois não se leva em consideração as condições de trabalho a que estes profissionais estão sujeitos, salários baixos, salas de aula superlotadas, acúmulo de trabalho e funções (KUENZER, 2004). Segundo Miranda (2005):

Entender a natureza do trabalho docente não passa somente pela análise profunda de técnicas e procedimentos pedagógicos, do conhecimento como fonte do trabalho, da relação professor-aluno, mas é necessário, como ponto de partida, compreender que local de trabalho é a escola e sua relação com a sociedade capitalista contemporânea (p.4-5).

Nesse sentido é importante compreender que a educação brasileira passa por problemas estruturais no que concerne à capacitação profissional, comprometimento com o conhecimento por parte dos professores e os reflexos das condições de trabalho na prática pedagógica dos professores. Muito se exige dos profissionais da educação, mas em contrapartida não são dadas condições de trabalho necessárias para a execução de suas responsabilidades. Tal situação nos levou a refletir sobre as condições de trabalho a que os professores são submetidos e o que esses professores pensam em relação a tais condições de trabalho. O objetivo da pesquisa consistiu, portanto, em identificar e analisar o perfil dos professores da área de humanas do Ensino Médio público, nas disciplinas história e geografia de duas escolas públicas, uma de periferia e outra de um bairro de classe média. Visamos analisar a formação acadêmica dos docentes encontrados

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nesses dois distintos centros educacionais e suas respectivas condições de trabalho, buscando possíveis relações entre as condições de trabalho dos professores e suas práticas pedagógicas. Pontuar os desafios e possibilidades do trabalho docente é debater o significado da educação brasileira, um tema polêmico dado a importância do assunto. Nesse sentido, discuti-la significa debater parte significativa de nossa realidade educacional, nossas dificuldades e anseios, a fim de melhorar o ensino e promover uma efetiva educação de qualidade.

Referencial Teórico A opção pelo referencial teórico neste trabalho volta-se para a perspectiva crítico-dialética. De acordo com Frigotto (1994):

[...] falar da dialética como método de investigação é, ao mesmo tempo, abordar um tema candente e relevante política, ideológica e teoricamente, e, contraditoriamente, expor-se a um conjunto de riscos dos quais o fundamental é o da banalização ou simplificação. (p.71).

Nessa perspectiva levantamos a importância dos fatos históricos para compreender, analisar e refletir sobre a realidade dos professores quanto às suas condições de trabalho. Entendemos que a dialética é contestadora e questionadora da realidade (GADOTTI, 1998). Assim o método dialético de análise tem como princípio apresentar os fatos ao leitor de forma que ele compreenda o fenômeno em sua totalidade e analise as suas contradições (TRIVIÑOS, 1987). A dialética materialista histórica possibilita a compreensão da realidade (da origem ao fim do fenômeno), na busca de mudanças e transformações da mesma e não somente a crítica pela crítica (FRIGOTTO, 1994). A apreensão da realidade e o processo de conhecimento se dão na práxis, numa reflexão da realidade com objetivo de uma ação transformadora. Pois, não basta somente interpretar a realidade é preciso transformá-la, a teoria e a prática caminham juntas. Assim, a análise dos dados referentes aos professores de história e geografia busca interpretar a realidade com o intuito de poder trazer contribuições para o debate e a qualidade do ensino público no país, visando transformá-lo. Entendemos que na concepção dialética da realidade nada acontece fora de um contexto social e histórico. Assim, pensar a educação dentro de um contexto social pelo viés dialético significa poder visualizar possibilidades de mudança e

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transformações do campo educacional e da sociedade. No caso dos professores de história e geografia do ensino médio público possibilita compreender as contradições da prática, os limites das políticas públicas aplicadas à educação, as atuais condições do trabalho docente e o que pensam estes profissionais da educação sobre o seu trabalho. Nesse sentido, a categoria trabalho é fundamental nesta pesquisa. Ela é freqüentemente utilizada em discussões educacionais e sociológicas. E isso já demonstra a sua importância para a compreensão da sociedade capitalista. Marx (1985) conceitua o trabalho como sendo a ação que o homem pratica sobre a natureza e esta sobre o homem num movimento espiral dialético. Assim analisar as condições do trabalho docente nas instituições públicas constitui uma importante variável para compreendermos a formação dos professores, a qualidade do ensino e os reflexos desta na prática docente. Os avanços tecnológicos e científicos, as mudanças no modo de produção capitalista e a globalização trazem transformações e conseqüências na educação, o que implica uma nova formação de professores e novas condições de trabalho. Assim, as propostas de educação são vinculadas aos interesses do capitalismo e é indispensável a correção nos salários, nas condições de trabalho e de exercício profissional para se conseguir uma educação de qualidade e maior motivação por parte dos professores. Para se ter um ensino de qualidade é preciso ter também professores de qualidade, no entanto, para isso necessita-se de uma política de valorização docente. Como preparar o docente para o seu trabalho? Como demonstrar a dimensão da totalidade em que o problema educacional está mergulhado? Como despertar a práxis criadora, reflexiva e crítica? Qual a dimensão e o significado do trabalho docente? Libâneo (2007), fundamentado na perspectiva crítica da educação analisa os impactos das transformações econômicas, políticas, sociais, tecnológicas e culturais na educação. Segundo o autor, a escola continua sendo uma instituição necessária à democratização da sociedade. Assim:

É preciso resgatar a profissionalidade do professor, reconfigurar as características de sua profissão na busca da identidade profissional. É preciso fortalecer as lutas sindicais por salários dignos e condições de trabalho. É preciso, junto com isso, ampliar o leque de ação dos sindicatos envolvendo também a luta por uma formação de qualidade, de modo que a profissão ganhe mais credibilidade e dignidade profissional. Faz-se necessário, também, o intercâmbio entre formação inicial e formação continuada, de maneira que a formação dos futuros professores

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se nutra das demandas da prática e que os professores em exercício frequentem a universidade para discussão e análise de problemas concretos da prática. (p.10-11)

O mundo globalizado acirra a competição, promove modificações dos padrões de produção e consumo em diferentes campos: econômico, político, social, ético e cultural. Essas mudanças e transformações podem ser positivas, mas também negativas, pois os benefícios são para uma minoria, sobrando para a maioria uma grande lista de exclusão social. Assim também o trabalho do professor é afetado. Na perspectiva crítico-dialética é importante que os professores tenham em mente a dimensão e a importância social do seu trabalho para que possam aplicar uma práxis transformadora à sua ação e desvelar o político e o pedagógico num processo dialético. Não há mudança que não ocorra a partir do concreto, da realidade. A análise do trabalho docente está situada no cotidiano da ação-prática docente. “É nessa particularidade, no cotidiano da ação docente, que encontramos evidências do saber e do fazer pedagógico do professor que pode se manifestar como uma práxis em seus diversos níveis” (AZZI, 2002, p. 49). Para Tardif e Lessard (2005) estudar a docência como um trabalho se torna importante pelo contexto que os ofícios e as profissões humanas vêm adquirindo na organização socioeconômica do trabalho, a própria importância da docência hoje na sociedade, as imposições dos modelos educacionais pelo neoliberalismo e a questão da profissionalização do ensino com a análise do trabalho docente. Assim, “longe de ser uma ocupação secundária ou periférica em relação à hegemonia do trabalho material, o trabalho docente constitui uma das chaves para a compreensão das transformações atuais das sociedades do trabalho” (p.17). Na perspectiva crítico-dialética o professor é um ser pensante não um objeto estático que somente executa ordens. Segundo Azzi (2002), “este pensar reflete o professor enquanto ser histórico, ou seja, o pensar do professor é condicionado pelas possibilidades e limitações pessoais, profissionais e do contexto em que atua” (p.44). Assim, é importante que se tenha clareza quanto aos desafios da educação nacional, que são muitos, mas é preciso um esforço coletivo, pois dessa forma poderemos avançar no debate e conseqüentemente na melhoria do quadro educacional brasileiro. Em síntese podemos afirmar que o referencial crítico-dialético adotado na presente pesquisa apresenta contribuições significativas para a compreensão e discussão das condições de trabalho dos professores entrevistados, evidenciando suas implicações na prática pedagógica.

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Metodologia

A presente pesquisa apresenta caráter qualitativo. De acordo com Triviños (1987), os enfoques qualitativos de pesquisa baseiam-se, fundamentalmente, na fenomenologia e no marxismo. Assim, temos duas abordagens na pesquisa qualitativa, que correspondem a concepções ontológicas e gnosiológicas específicas para se investigar e compreender a realidade:

a) as abordagens subjetivista-compreensivistas, fundamentadas nas idéias de Schleiermacher, Weber, Heidegger, Marcel, Husserl e Sartre entre outros, que privilegiam os aspectos conscienciais, subjetivos dos atores (percepções, processos de conscientização, de compreensão do contexto cultural, da realidade a-histórica, da relevância dos fenômenos de acordo com os significados que os mesmos apresentam para o sujeito); b) as abordagens crítico-participativas com visão histórico-estrutural-dialética da realidade social que partem da necessidade de conhecer (por meio de percepções, reflexão e intuição) a realidade para transformá-la em processos contextuais e dinâmicos complexos. Essa abordagem se fundamenta em Marx, Engels, Gramsci, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm, Habermas, sendo tal enfoque o que adotamos em nosso estudo. A abordagem qualitativa não privilegia, portanto, um modelo único de fazer ciência, pois cada realidade possui a sua própria especificidade. Descrever, compreender e explicar são relações importantes dentro da pesquisa qualitativa, a relação do micro com o macro, do específico com o geral, e as diferentes concepções de mundo na busca de resultados que possam significar mudanças e transformações da realidade. Segundo Bogdan e Biklen (1994) a abordagem qualitativa possui cinco características: as informações são obtidas através do contato direto do pesquisador com o fenômeno a ser observado, os dados coletados pelo investigador têm caráter descritivo, os investigadores qualitativos se interessam mais pelo processo do que pelos resultados propriamente ditos, a análise dos dados é realizada de forma indutiva e busca-se compreender o significado que os indivíduos pesquisados atribuem as suas experiências. Entendemos que ao se fazer pesquisa não existe neutralidade científica por parte do pesquisador, mas é importante que se procure manter fiel ao fazer científico, tentando evitar que os preconceitos e crenças possam distorcer a pesquisa. Devem-se considerar, ainda, os limites e os riscos da abordagem qualitativa em educação,

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a falta de compreensão e definição do referencial teórico pode levar o investigador a uma reflexão exaustiva na tentativa de dar conta de todo o universo que os dados da pesquisa proporcionaram, perdendo, assim, o foco inicial da mesma. A presente pesquisa foi ainda definida como sendo bibliográfica e de campo. A importância da pesquisa bibliográfica é entendida por Gil (1999), como sendo:

[...] desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho desta natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Parte dos estudos exploratórios podem ser definidos como pesquisas bibliográficas, assim como certo número de pesquisas desenvolvidas a partir da técnica de análise de conteúdo (p.65).

Antes de sair a campo o pesquisador pode optar por ter um contato prévio com a literatura já produzida sobre o tema de sua pesquisa, para que possa compreender melhor a realidade estudada, contudo essa é uma opção e não uma regra geral. Em nosso estudo, o acesso ao material já produzido em torno do tema de pesquisa permitiu elaborar melhor o roteiro de entrevistas, bem como, durante e após a pesquisa de campo, retornar para a pesquisa bibliográfica, buscando novos olhares para a interpretação dos dados coletados.A pesquisa de campo foi realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas. Para Triviños (1987):

[...] a entrevista semi-estruturada mantém a presença consciente e atuante do pesquisador e, ao mesmo tempo, permite a relevância na situação do ator. Este traço da entrevista semi-estruturada [...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade, tanto dentro de sua situação específica como situações de dimensões maiores (p.152).

A coleta de dados foi realizada em uma cidade do interior do Estado de São Paulo, que recebe muitos professores de outras cidades, os quais denominamos de professores itinerantes, professores que precisam se deslocar de uma cidade e/ou escola para outra para ministrar aulas. Nessa perspectiva, consideramos itinerantes tanto os professores que têm vínculo de cargo efetivo com a rede de ensino em mais de uma escola, cidade, como os profissionais que, independente do grau de vínculo que possuem com as escolas precisam se deslocar para trabalhar. A questão da itinerância é importante nesse estudo devido a suas implicações e relações com o trabalho do professor, com a qualidade do trabalho e do ensino,

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fazendo com que os professores tenham que sair de suas cidades para irem trabalhar em outros municípios próximos ou distantes, deixando para trás família e amigos. Outra importante questão ligada à itinerância é a diminuição do número de aulas de história e geografia no ensino médio público, o que obriga os professores a lecionarem em várias escolas para poderem completar a sua carga horária de trabalho. A coleta de dados foi realizada em duas escolas estaduais da rede de ensino público de Ensino Médio, uma no centro da cidade, considerada de classe média, e uma localizada na periferia, freqüentada pelas camadas populares, visando analisar as duas realidades.Como o foco de nossa pesquisa eram os professores das disciplinas de história e geografia do ensino médio, fizemos o levantamento de dados e verificamos que na Escola A havia três professores ministrando a disciplina de história e três professores na disciplina de geografia. Na Escola B constatamos a presença de três professores ministrando a disciplina de história e apenas um professor ministrando a disciplina de geografia. No total contávamos, portanto, com dez professores e todos concordaram em participar da pesquisa. Os dados coletados foram organizados e analisados em quatro categorias principais: Caracterização, Escolha Profissional, Condições de Trabalho e Prática de Ensino, tendo sido analisadas com base no referencial crítico-dialético, conforme se apresenta a seguir.

Perfil e condições de trabalho de professores de geografia e história do Ensino Médio

Os dados coletados foram organizados e analisados em 4 (quatro) categorias principais e subcategorias: Caracterização, Escolha Profissional, Condições de Trabalho e Prática de Ensino. Como se observa na tabela abaixo.

Quadro 1. Categorias e subcategorias de análise.

Categoria SubcategoriaCaracterização Idade, sexo, estado civil, disciplina

ministrada, formação em instituição pública ou privada, formação continuada.

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Escolha Profissional Influências na escolha pela carreira docente, família, fator econômico, exemplos de professores que marcaram sua história educacional.

Condições de trabalho Precarização, acúmulo e excesso de trabalho, classe, itinerância, salário, progressão continuada, ciclo profissional, qualidade, recursos pedagógicos.

Prática docente Motivação, autonomia, influência, ca-pacitações/reciclagem, desvalorização, socialização das responsabilidades e saberes docentes.

Considerando-se que a caracterização de um grupo social varia de acordo com o contexto social em que é inserido, bem como com as subjetividades de cada indivíduo, Pimenta (2000) e Arroyo (2001) apontam a necessidade de caracterizar e traçar o perfil dos professores como uma variável importante na análise da qualidade do ensino e construção identitária da profissão e do ofício de professor.Dentre os dez professores entrevistados sete são mulheres e três homens, evidenciando-se ainda o predomínio do sexo feminino na educação (GADOTTI, 2003). A análise dos dados evidenciou a baixa qualificação dos professores da rede de ensino pública, aliada a não participação em congressos, cursos de extensão, jornadas acadêmicas, etc. Dos dez professores entrevistados, cinco possuíam graduação específica para a disciplina ministrada, um professor concluiu três graduações, três professores apresentavam duas graduações e apenas um docente tinha feito mestrado (curso de pós-graduação Stricto Sensu). Considerando que a formação de um professor é um processo contínuo, que não se encerra na formação inicial, mas se estende por toda vida profissional é preocupante a realidade nacional em que se verifica o baixo investimento dos professores e governos na carreira docente (BARROS, MENDONÇA, e BLANCO, 2001; HUBERMAN, 1995). Do número total de entrevistados, três professores residiam na cidade em que a pesquisa foi realizada, enquanto sete professores residiam em outras cidades (itinerantes). Os dados relativos à faixa etária dos professores possibilitaram constatar que

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ela varia dos 24 anos aos 53 anos, e observamos que temos professores em início de carreira, final de carreira, início tardio na função docente e um em vias de abandono da profissão (HUBERMAN, 1995). Os dados coletados permitiram analisar que a maioria dos professores iniciou seus estudos em escolas de ensino fundamental e médio públicas, porém, destes, somente três professores (30%) fizeram a graduação em instituições de ensino superior públicas e sete professores (70%) se graduaram em instituições privadas. O grande número de professores na rede de ensino formados em instituições particulares se deve principalmente ao fator econômico (MASCARIN, 1999), pois cada vez mais, a população das camadas sociais mais baixas procura cursos de licenciatura por serem mais baratos, o que talvez, possa ser apontado como um dos indícios da baixa qualidade do ensino. Primeiro porque essas camadas sociais chegam às universidades com sérias lacunas de formação básica. E segundo, pela qualidade duvidosa dos cursos oferecidos por certas instituições de ensino privadas (BASSO, 1994). Conhecer quem são os professores de história e geografia do ensino médio público nos possibilita ter uma dimensão melhor da nossa realidade educacional, dessa forma analisar a escolha pela docência é uma questão que merece atenção e os motivos que levam a esta escolha são diversos (ARROYO, 2001). Nesse sentido, os dados evidenciaram a influência da família, o ideal de educação, o gosto pela profissão, a falta de dinheiro para poder escolher um curso mais elitizado e professores incentivadores possuidores de uma prática docente diferenciada, com quem os professores entrevistados se identificaram. A qualidade do ensino está diretamente vinculada às condições de trabalho. Nesse sentido, de nada adianta cobrar qualidade sem criar condições reais, concretas para alcançá-la. Pôde-se observar que o trabalho excessivo e exaustivo da atividade docente não atinge somente um grupo ou outro de professores. E algumas vezes os problemas relativos à escola são interiorizados pelos professores e levados para casa (FIALHO, 2005). Há tempos o trabalho do professor deixou de ser prazeroso e se tornou um trabalho penoso e estressante. Huberman (1995) ao analisar o ciclo de vida dos professores observou as etapas que o professorado vive quanto às suas expectativas e frustrações no decorrer da sua carreira, como entrada, estabilização, diversificação, desinvestimento, dês-motivação e intencionalidade. Essa questão do ciclo de vida professoral está presente também em outros trabalhos (FIALHO, 2005; BASSO, 1994). A intensificação do trabalho acaba resultando nos professores o chamado mal estar docente (ESTEVE ZARAGOZA, 1999). Sobre o acúmulo de trabalho em redes de ensino, constatamos que seis

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professores (60%) trabalham somente na rede estadual de ensino, sendo que dois (20%) trabalham na rede estadual e particular, um (10%) na rede estadual e municipal e um (10%) trabalha na rede estadual, municipal e particular de ensino, ou seja, 40% dos docentes acumulam trabalho em mais de uma rede de ensino. Os dados sobre a questão do acúmulo de trabalho em diferentes redes de ensino evidenciaram duas vertentes de resposta entre os professores. De um lado, alguns professores defendem que para complementar o salário é preciso trabalhar em mais de uma rede de ensino e de outro lado os que assumem que trabalhar em mais de uma rede de ensino acarreta uma queda na qualidade das aulas. Lança-se um novo desafio hoje: como despertar o interesse e motivar os professores a desenvolverem um trabalho na perspectiva crítica em tempos de crise educacional brasileira? Como motivar o professor, se a cada dia os problemas e os insucessos do campo educacional são atribuídos a eles? Como resgatar a identidade profissional do que é ser professor hoje? Como enfrentar as condições de trabalho precárias? Como inverter a idéia de que tudo fora da escola seja mais interessante do que a sala de aula? Como absorver as novas tecnologias em educação? (CUNHA, 1989). Observa-se a cada dia uma maior intensificação do trabalho do professor e que este se tornou tão alienante que ele já não é capaz de enxergar as influências na sua prática de ensino. Um conjunto de fatores é responsável por esse processo de alienação que acaba resultando em um processo de desvalorização do professor perante a sociedade, que causa um mal-estar generalizado (ESTEVE ZARAGOZA, 1999), o que foi possível observar nas falas dos professores de história e geografia entrevistados. Outro ponto importante da análise desta pesquisa diz respeito às influências das condições atuais do trabalho docente na prática pedagógica dos professores, resultando na identificação de fatores que têm contribuído para o fenômeno do mal-estar docente, tais como: o aumento das críticas, a atribuição dos problemas da educação ao professor, interferência de pais e mães no trabalho pedagógico, falta de reconhecimento da importância do trabalho do professor, a crise de identidade profissional, falta de recursos pedagógicos, uma remuneração salarial mais justa e descaso do Estado com a educação. Tais fatores têm colaborado para o aumento da insatisfação dos professores, e se refletido em sua prática docente, como podemos observar na fala da professora P3:

Reflete, falta motivação, a gente começa empolgado (pensando), está difícil dar aula, não está fácil dar aula, primeiro falta motivação nos professores. [...] Eu estou

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insatisfeita, tanto é que eu queria prestar outros concursos (ar de desânimo). Está muito sacrificante dar aula (P3).

Também o deslocamento que os professores realizam todos os dias para poderem trabalhar é uma questão com alto potencial de interferência na prática dos mesmos. Os professores concordam que a itinerância é prejudicial para o ensino, mas nem todos admitem que esse fator esteja interferindo em suas próprias aulas. Tal atitude pode ser interpretada como uma tentativa de autoproteção, desvinculando-se da questão do fracasso educacional, conforme se verifica na fala de P6 que afirma: “Na minha não, independente da questão salarial, da carga horária eu não reduzo a qualidade do momento da aula, eu continuo trabalhando normalmente [...]” (P6). Entretanto, como afirmam outros professores (P1, P9) e autores (BASSO,1994 e FIALHO, 2005), com o passar dos anos na atividade docente as condições de trabalho vão afetando os professores, e essas vão interferindo no seu cotidiano, sendo levadas para dentro da escola e sala de aula, o que, conseqüentemente, contribui para a queda da qualidade do ensino. Se em um determinado momento histórico o trabalho do professor e da escola eram quase inquestionáveis, hoje as ações e interferências, aliadas à falta de apoio da sociedade, do Estado e da própria família vêm causando sérios problemas e transtornos para a escola e seus professores. Quanto ao deslocamento que os professores necessitam fazer todos os dias para poderem trabalhar pode-se explicitar certo descontentamento por parte deles. De um lado alguns professores afirmam que a itinerância interfere na qualidade do ensino, e de outro lado há profissionais que declaram não deixar que tais condições de itinerância interferiram em suas aulas. Mas é fato que de uma forma ou outra, com o passar dos anos na atividade docente as condições de trabalho vão afetando os professores, e essas vão interferindo no seu cotidiano, sendo levadas para dentro da escola e sala de aula, o que, consequentemente, contribui para a queda da qualidade do ensino. Consideramos que ao assumirem o discurso de que as condições de trabalho não afetam a sua prática de ensino, os professores podem estar tentando desvincular o fracasso educacional da figura do professor.

Algumas considerações

Observamos que a profissão docente vem sofrendo mudanças ao longo do tempo e que essas mudanças, muitas vezes são negativas, criando dois horizontes

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acerca do que pensam os professores em relação ao seu próprio trabalho. De um lado o que deveria ser o ideal e do outro o que vivenciam na prática. Essa contraposição acaba gerando um desconforto ou descontentamento com a profissão. Os sentimentos de culpa provocam sentimentos diversos em relação à educação, que são muitas vezes interiorizados não só na prática profissional como na vida pessoal. Analisamos na revisão da literatura que as condições de trabalho precárias têm contribuído para a queda da qualidade do ensino e que tem causado um mal-estar docente generalizado, mas alguns professores entrevistados em nosso estudo negaram que isso ocorresse nas suas práticas e na sua vida. Percebemos que os professores sofrem com a exploração da força do seu trabalho pelo capital. No entanto, o que poderia ser o indício de uma possível transformação e mudança de atitude, numa direção crítica acaba se tornando lamentação e conformismo. Sobre a socialização das responsabilidades, os professores colocam a culpa dos problemas da educação na família dos alunos, na televisão, internet, celular, progressão continuada, diminuição do número de aulas de história e geografia do ensino médio público que faz com que eles tenham que viver a itinerância todos os dias, deslocando-se por estradas mal pavimentadas, deslocando-se de uma escola para outra. Culpabilizam ainda o Estado, a Escola enquanto instituição e aparelho ideológico do Estado e a sociedade, mas muitas vezes deixam de fazer uma reflexão autocrítica sobre o seu papel no fracasso educacional. As lacunas abertas pela questão das condições de trabalho, assim, carecem de um horizonte norteador que possa apontar possíveis alternativas de transformações e mudanças. A valorização do professor só irá se efetivar quando este se der conta do contexto em que está inserido e que faça do seu trabalho a sua forma de luta por melhores condições e reconhecimento. Assim, ao analisar o contexto educacional é preciso refletir também sobre a falta de investimentos no setor educacional e seu impacto no trabalho docente. Nesse sentido o desenvolvimento deste trabalho traz contribuições importantes para o debate em torno das condições de trabalho e da melhoria da qualidade do ensino, levantando diversas questões para o debate educacional.

TAVARAYAMA, Rodrigo; FERNANDES, Maria Cristina Da Silveira Galan. Work conditions and precarity of the public high schools. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.6, n.1, 2010, p.85-99.ABSTRACT: The objective of this work conssited in analyze the profile of the geography and history teachers from the Public High School from two schools of the state of São Paulo countryside, having as theorical-methodological referencial the critic-dialetic perspective, analyzing the working conditions from the teachers as its

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possible influences in the educational practices.

KEYWORDS: working conditions; education quality; high school; educational practices.

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PERSPECTIVA TERRITORIAL DA REDE DE INFORMAÇÃO SISMOGRÁFICA BRASILEIRA: A REDE SISMOGRÁFICA DO

SUL E SUDESTE DO BRASIL – RSIS.

Marcus Vinícius Albrecht ANVERSA1

RESUMO: Este trabalho visa a expor a territorialidade e o estágio em que se encontram as Redes de Informação Sismográfica Brasileira, em especial, a Rede Sismográfica do Sul e Sudeste do Brasil – RSIS. Ao traçarmos a territorialidade dessas redes, analisaremos a questão do próprio papel do conhecimento e da informação técnico-científica, o seu contexto no ciberespaço, dentro da perspectiva que a análise geográfica proporciona. O objeto de estudo apresenta uma complexa realidade, diversificada e prática, de grande interesse aos pesquisadores e gestores das redes técnico-científicas, dentre eles os geógrafos, que requer o seu desvendamento

PALAVRAS-CHAVE: geografia das redes; sismografia brasileira; território; ciberespaço, informação & conhecimento.

Introdução

Este estudo é apenas um estudo preliminar, buscando a perspectiva da futura Rede de Informação Sismográfica Brasileira, em implantação, tendo a Rede Sismográfica do Sul e Sudeste do Brasil – RSIS como base. O papel das redes técnicas na organização do território tem grande importância para a sociedade, principalmente para a Geografia. As análises da organização das novas infra-estruturas, especialmente ligadas à informática e a telecomunicações, estão evoluindo como nunca, fomentando diversos debates sobre a redução ou mesmo a contração do tempo (HARVEY, 1992). Neste trabalho procuraremos visualizar como está sendo implementada a territorialidade da rede de informação sismográfica no Brasil e a disseminação de seus dados. Como referencial analisaremos a Rede Sismográfica do Sul e Sudeste do Brasil – RSIS, em desenvolvimento, bancada pela PETROBRAS no custo de R$ 6,1 milhões,

1Geógrafo do MCT/Observatório Nacional e BAMPETRO Grupo de Pequisa de Novas Tecnologias Voltadas à Produção e Divulgação do Conhecimento em Geociências – UERJ - [email protected]

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numa parceria iniciada em 2007 com o Observatório Nacional - ON, do Ministério da Ciência e Tecnologia. Atualmente, a Universidade de Brasília, a Universidade de São Paulo, o Observatório Nacional, a Universidade Federal do Pará e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte possuem estações de monitoramento de atividades sísmicas. O objetivo geral da RSIS é definir o padrão sismológico da margem continental sudeste, como forma de melhor compreender a estruturação profunda e, por conseguinte, a evolução geotectônica desse importante segmento da margem brasileira. Embora apresentando atividade sísmica de intensidade baixa, o sul-sudeste brasileiro, uma parte territorial do país na qual se observa uma das maiores atividades sísmica, rivalizando com o nordeste brasileiro em número de sismos registrados, como podemos observar na Figura 1, página 3. No sudeste do Brasil onde se concentra a quase 50% da população brasileira e mais de 80% da produção de petróleo do país, na porção off shore da bacia de Campos. Já existem boas evidências de petróleo e gás nas outras bacias da margem sudeste (Santos e Espírito Santo) e é questão de pouco tempo o início de grande atividade exploratória e exploratória nas mesmas. Uma rede de sismógrafos funcionando 24 horas nos sete dias da semana, é desejável para que se possam acumular informações valiosas para o conhecimento da crosta e litosfera do sudeste brasileiro, com claros benefícios para o conhecimento das estruturas regionais de importância no processo de formação das bacias off shore da margem sudeste.

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Figura 1: Mapa de sismicidade do Brasil com os epicentros de sismos ocorridos entre 1720 e 2003.

Fonte: FONTES & NASCIMENTO JR, 2007.

As onze estações da RSIS previstas, Figura 2 e Tabela 1 das páginas 4 e 5, estão previstas a começarem operar no fim de 2009. Os registros vão compor um banco de dados sísmicos da plataforma continental e de duas áreas mais populosas do país, as Regiões Sul e Sudeste. “Além da questão da segurança da população e das plataformas, os dados sismológicos obtidos na rede poderão ser utilizados para obter, com em Medicina, uma tomografia de até centenas de quilômetros no interior da Terra. Isso permitirá um avanço no conhecimento geológico da crosta e da litosfera sob o território nacional, que ajudará a entender a evolução do planeta e das bacias sedimentares”, como informa o Diretor do Observatório Nacional, Sérgio Luiz Fontes. Outras redes custeadas pela PETROBRAS estão previstas para o Nordeste, Norte e Centro-Oeste, abrindo caminho a uma cobertura nacional. Os dados adquiridos pelas estações sismográficas do RSIS, que operarão de forma automática, serão armazenados localmente (discos rígidos de 80 Gbytes e memórias flash de 4 GBytes)

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e transmitidos por satélite, em tempo real, para o Centro de Controle e Armazenamento de Dados no Observatório Nacional - CCAD. O CCAD será equipado para armazenar, processar, analisar e distribuir as informações da RSIS e os dados adquiridos pelas estações que poderão ser acessados em tempo real. A RSIS funcionará em sintonia com o Pool de Equipamentos Geofísicos do Brasil – PEGBR, outro projeto em convênio entre o ON e a PETROBRAS, de forma que boa parte da equipe técnica dos dois projetos será compartilhada. Ainda terá o suporte técnico e de equipamentos do Banco de Dados para a Indústria do Petróleo – BAMPETRO, Figura 3, página 5, também sediado no ON. Prevê-se ainda a instalação de equipamentos GPS diferenciais de alto desempenho nas onze estações e gravímetros em três estações selecionadas para acompanhamento das variações verticais e laterais da crosta terrestre na região. Os dados GPS serão integrados à Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo – RBMC, mantida pelo IBGE. As estações do RSIS serão automáticas e os dados obtidos serão acessados via satélite.

Figura 2: Mapa sismotectônico da Região Sul - Sudeste com as locações das estações sismográficas propostas (triângulos vermelhos)

Fonte: FONTES & NASCIMENTO JR., 2007.

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Tabela 1: Provável localização das estações sismográficas da RSIS

Fonte: FONTES & NASCIMENTO JR, 2007.

Figura 3: Interior do BAMPETRO

Fonte: ANVERSA, 2007.

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Ao contrário de países vulneráveis a grandes abalos sísmicos, o Brasil não dispõe de uma cobertura sismológica feita de forma organizada, apesar de várias instituições estarem realizando pesquisas sismológicas. A Organização das Nações Unidas recomenda que cada nação tenha uma rede nacional operada por um centro de dados, para o monitoramento e o fornecimento de informações sismológicas. A falta de equipamentos visando conhecer melhor a sismografia brasileira disseminou a idéia de que o país estaria livre de terremotos. O abalo sísmico ocorrido a 9 de dezembro de 2007, com epicentro de 4,9 graus na escala Richter em Itacarambi, às margens do rio São Francisco, a 663 quilômetros de Belo Horizonte, lançou por terra um lugar-comum entre os brasileiros a respeito sobre terremotos. O resultado do sismo foi a destruição de seis casas que foram abaixo, Figura 3, página 6, e outras 70 ficaram inabitáveis. Numa das que ruíram, Jessiane de Oliveira Silva, de 5 anos, morreu sob os escombros, sendo a primeira vítima fatal de um tremor de terra no Brasil.

Figura 4: Povoado de Caraíbas (MG): casas derrubadas

Fonte: Osvaldo Afonso / SECOM-MG, apud SESC-SP, 2007.

Em 22 de abril de 2008, alcançando o tremor de 5,2 graus na escala Richter por cinco segundos, às 21 horas, milhares de pessoas em cidades de São Paulo, Rio

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de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina sentiram os efeitos do sismo, que teve seu epicentro a 218 quilômetros do litoral paulista, sob o Atlântico. O Corpo de Bombeiros recebeu mais de 3 mil telefonemas em menos de 24 horas, com relatos de rachaduras em paredes e outras avarias em residências. No Município de Mogi das Cruzes, o deslocamento de uma adutora deixou mais de 20 mil pessoas sem água. Dois abalos sísmicos superaram 6 graus na escala Richter em 1955. O primeiro, de 6,2 graus, com epicentro na serra do Tombador, em Mato Grosso, em 31 de janeiro e o segundo, de 6,1 graus, no mar do Espírito Santo, em 28 de fevereiro. Só não houve destruição porque os epicentros estavam em áreas despovoadas. Os movimentos e fraturas nos pontos de contato das placas geram os grandes sismos, que liberam poderosas ondas de energia mecânica capazes de fazer a terra tremer. Quando o evento ocorre sob o oceano, pode haver maremotos e tsunamis semelhantes ao que matou, em dezembro de 2004, 220 mil pessoas em 12 países do sul e do sudeste da Ásia, litoral do Oceano Índico, na qual não havia uma rede de alerta de tsumimis e terremotos, como ocorre em grande parte das nações com litoral no Oceano Pacífico. Outro sismo de grande envergadura ocorreu em 24 de outubro de 1972. Às 12h30minh daquele dia, um abalo de 5,3 graus na escala Richter, com epicentro no oceano, assustou milhares de pessoas da capital do Rio de Janeiro à do Espírito Santo. O sismo de Macaé, como ficou conhecido, que sacudiu com grande intensidade casas e edifícios nessa cidade e na vizinha Campos dos Goytacazes, foi sentido numa área de mais de 200 mil quilômetros quadrados. Este é o mais forte tremor registrado na área batizada em 1976 como Bacia de Campos. Devido a esses acontecimentos, a Petrobras resolveu aplicar R$ 6,1 milhões na criação da Rede Sismográfica do Sul e Sudeste-RSIS, com gerenciamento do Observatório Nacional. As razões são contundentes. Além de produzir mais de 80% do petróleo nacional na Bacia de Campos, no norte fluminense, a empresa investe no aumento da oferta de gás do litoral capixaba e aposta pesado na bacia de Santos. Nessas áreas, novas descobertas vêm se juntando à do megacampo de Tupi. A necessidade da rede sismográfica aumenta quando se leva em conta a existência várias plataformas de produção de gás e petróleo, barragens na costa, além da Usina Nuclear de Angra dos Reis, que requerem medidas de segurança, entre elas, alarme quanto a sismos.. Assim como realizam o Observatório Sismológico da UnB e o Laboratório de Sismologia da UFRN, que enviam suas informações à Secretaria Nacional de Defesa Civil, para que sejam transmitidas aos Estados, essa deverá ser uma das diretrizes da RSIS.

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O Papel da Informação e do Conhecimento na Territorialidade de uma Rede de Informação Técnico-Científica como a Sismográfica

Uma problematização a ser abordada é o papel da Informação e do Conhecimento na constituição da territorialidade de uma rede técnica como a sismográfica aqui abordada. É sabido que a informação e o conhecimento codificado podem ser facilmente transferidos. Entretanto, o conhecimento que não é codificado, aquele que permanece tácito, comum nas chamadas aglomerações produtivas, científicas, tecnológicas e/ou inovativas, como os distritos industriais, clusters, milieux inovadores, arranjos produtivos locais (CASSIOLATO E LEMOS, 1999, apud ALBAGLI & MACIEL, 2004), só se transfere caso haja interação social. Esta se dá de forma localizada, enraizada em organizações e locais específicos, compondo uma determinada organização do território, este fruto de uma ação e prática social. A falta de informações das organizações dos diversos tipos de redes, como por exemplo, a de informação ambiental (VIEIRA, 1980; CARIBÉ; 1988; SOUZA & CANHOS, 2006; ANVERSA, 2008, dentre outros) são fatos conhecidos de todos que nelas trabalham. Vários autores, estudiosos do assunto como Rita de Cássia Caribé (1988) e José Ximenes de Mesquita (2000) deixam claro que os sistemas de informação como a ambiental, cujos problemas neles contidos poderíamos estender a outros tipos de redes de informação, como a sismográfica, são desenvolvidos de maneira isolada, não havendo preocupação com a integração entre eles. As instituições governamentais têm sido em geral negligentes com seus sistemas de informação, em especial, com a disseminação. Valiosas informações são deixadas inacessíveis a quem delas porventura precise e extensivamente, à sociedade em geral que as banca através de impostos. O fato é inibidor de um dos principais papeis atribuídos à uma sociedade organizada e democrática, o de exercer a sua cidadania, nesse caso, em relação aos problemas que afetam o território por ele habitado. Este problema ocorreu com os pesquisadores brasileiros na obtenção de dados ambientais junto ao Ministério do Meio Ambiente na elaboração do relatório para a ONU sobre o propalado Aquecimento Global, fato esse que obtive de modo informal numa reunião com técnicos da área de informação ambiental desse ministério em 2007. Entendemos que para a compreensão de uma organização espacial de uma estrutura em rede, que utiliza tecnologias de comunicação e informação como suporte principal na mediação da aquisição e disseminação da informação técnico-científica, há de se analisar as relações existentes entre as redes técnico-científicas e o território, as redes técnico-científicas e o poder e a organização territorial que as redes técnico-

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científicas podem e devem produzir em distintas escalas, como reflexo das relações entre a sociedade e o território. Devemos atentar que as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) fornecem as bases técnicas para os novos modos de reprodução e valorização do capital. Elas podem ser como capital financeiro, transformado em pura informação, seja o capital produtivo –, ao permitirem a flexibilização do aparato técnico e do trabalho e ao viabilizarem a produção e a circulação de um conjunto de bens informacionais de ágil produção, comercialização e consumo. (PIRES, 2007). As informações geradas numa rede de informação técnico-científica como a sismográfica fornecem novos modos de reprodução e valorização do capital, pois funciona como instrumento facilitador e potencializador da intervenção e de produção eficaz num dado território. Assim como o capital financeiro, os dados biogeográficos, genéticos (base da biotecnologia), antrópicos e dados dos elementos naturais, entre eles os sismográficos, são transformados em recursos informacionais. As novas TIC, ainda que proporcione maior difusão de informações e conhecimentos codificados, não impedem a concentração espacial e social dos mesmos (ALBAGLI, 1997, apud ALBAGLI, 2004). O conhecimento não tem apenas uma dimensão temporal/histórica, mas também espacial/territorial, além de ser específico e diferenciando. Também não existe um espaço informacional cognitivo e inovativo autônomo de um espaço institucional, do mesmo modo que tais espaços adquirem e conferem contornos específicos em cenários territoriais concretos. A rede, objeto de nosso estudo, a de informação sismográfica, é gerada e gestada por instituições públicas como é o caso da RISIS pelo Observatório Nacional com participação de empresa públicas como é o caso da PETROBRAS.Então, há de se analisar as relações entre sociedade, território e informação, utilizando conceitos, ente eles, o de espaço geográfico, que implica numa análise na dimensão socioespacial. O território pode ser visto como sinônimo de território usado, onde fluem as informações, ou seja, território que expressa a ação da sociedade, constituído, portanto, de uma natureza social e política, envolvendo tanto os objetos materiais e imateriais como o trabalho vivo, que produz e dinamiza o espaço geográfico. Com isso, o espaço geográfico é um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações (SANTOS, 2006), de trabalho material e imaterial (LAZZARATO & NEGRI, 2000; COCCO, 2007) acumulado e das forças que lhe dão vida e caráter de constante transformação. O conhecimento tácito, nossa preocupação em particular quanto às redes sismográficas, geralmente se encontra associado a contextos territoriais e organizacionais específicos, transmitido e desenvolvido por meio de interações locais (POLANYI, 1966).

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Cabe ressaltar ainda que os agentes hegemônicos, ou seja, os agentes mais proeminentes da economia e da política detêm o poder de construção e uso dos sistemas técnicos modernos que dinamizam desta forma o território usado para a produção.

Antes, os sistemas técnicos eram apenas locais ou regionais. Na aurora da história, havia tantos sistemas técnicos quanto eram os lugares. Quando apresentavam traços semelhantes, não havia contemporaneidade entre eles e muito menos interdependência funcional. A história humana é igualmente a história da diminuição progressiva do número de sistemas técnicos autônomos (relativamente) sobre a face da terra. O movimento de unificação, acelerado pelo capitalismo, hoje alcança o seu ápice, com a predominância em toda parte de um único sistema técnico, base material da globalização (SANTOS, 1999, p.8).

Assim, é estruturado pelos agentes hegemônicos do período um conjunto de redes que articulam os territórios, conferindo a emergência de um verdadeiro “espaço de fluxos” (SANTOS, 1997; CASTELLS, 1999). Este denominado espaço de fluxos é constituído por um conjunto de “verticalidades”, ou seja, de ações e ordens “verticais” porque distribuídas e comandadas pontualmente nos territórios, e que têm sua gênese nos interesses particulares e externos aos lugares onde se instalam.

As verticalidades podem ser definidas, num território, como um conjunto de pontos formando um espaço de fluxos (no caso as informacionais*). (...) Esse espaço de fluxos seria, na realidade, um subsistema dentro da totalidade-espaço, já que para os efeitos dos respectivos atores o que conta é, sobretudo, esse conjunto de pontos adequados às tarefas produtivas hegemônicas, características das atividades econômicas que comandam este período histórico (SANTOS, 2000, p.106).

Outra análise a respeito da informação é a inserida num processo, que ocorre nas últimas décadas, na qual se transformaram substancialmente as formas de produzir e de distribuir bens materiais e imateriais. Tudo isso ocorre em parte ao desenvolvimento de um conjunto de tecnologias e inovações relacionadas às chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), já mencionadas anteriormente, que irão conferir novo estatuto à informação, dentre elas a sismográfica, e ao conhecimento como fatores de competitividade, hegemonia geopolítica e desenvolvimento socioeconômico. Bertha Becker (2006) assinala que em vista das transformações proporcionadas pelas TIC, responsáveis pela atual sociedade informacional, novos atores se tornam portadores e mobilizadores de novos circuitos cognitivos e informacionais no território.

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E procuram fazer uso desses circuitos para influir nos processos de tomada de decisão, como por exemplo, na Amazônia, em que a tônica da questão ambiental é destaque, com repercussão local e global, na qual o acesso à informação é um fator essencial. A autora assinala que a diferenciação dos territórios remete à diferenciação de suas práticas sociais, de suas bases e práticas de conhecimento e de informação. É a partir das bases específicas de informação e conhecimento de cada território, que as estratégias de ação e de desenvolvimento têm que ser pensadas e implementadas. Isto mostra a relevância das redes de informação técnico-científica, dentre elas a sismográfica, na obtenção de dados de um dado território e possibilitar as ditas estratégias de ação, já que dessas redes provem a informação. O seu desdobramento em conhecimento possibilitará a intervenção e produção por um agente econômico em dado território que acabará por afetar o cotidiano, o modo de vida da população local. Assim, se renova o papel do território como espaço de interação, de aprendizagem social e de inovação em sentido amplo, não só tecnológica, mas também social, da qual remete ao papel da acessibilidade a informação. O acesso à informação do território é importante na consolidação da democracia e na defesa deste mesmo território em prol da população que nele alicerça, além de incentivar o exercício da cidadania. O direito à informação em suas múltiplas variáveis é uma prerrogativa básica de qualquer cidadão no trato das questões de seu espaço de vivência, pois proporciona esclarecimento e instrução, permitindo que os indivíduos estejam aptos a interferir no processo decisório, manifestando-se sobre os riscos que uma intervenção possa causar ao ambiente em que vivem. O acesso à informação fornecida pelas redes técnicas de informação, como as ambientais, sismográficas, etc., contribui para dirimir ou evitar a corrupção, dar mais transparência aos atos governamentais, além de mensurar a qualidade do ambiente vivido, isto é, do território, em favor da coletividade. Nesse fluxo dinâmico da informação cada cidadão atua como um acionista do Estado. Dentro dessa lógica, Claude Raffestin (1993) entende o território como a manifestação espacial do poder fundamentada em relações sociais, relações estas determinadas, em diferentes graus, pela presença de energia – ações e estruturas concretas – e de informação – ações e estruturas simbólicas. Essa compreensão permite pensar o processo de territorialização - desterritorialização - reterritorialização (T-D-R), baseado, sobretudo, no grau de acessibilidade à informação. Claude Raffestin mostra com isso a existência de múltiplos poderes, além do Estado, que se realizam através de fluxos desiguais de energia/informação nas relações sociais. Entretanto, temos que levar em conta que vencer a inércia conservadora do poder é tarefa de grande vulto devido à prevalência do domínio das estruturas

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econômicas sobre os meios de comunicação. Manuel Castells (1999) considera que a luta dos Estados-Nação para controlar as informações que circulam nas redes de telecomunicações interconectadas de forma global é uma batalha perdida, e com a derrota ruirá um dos principais sustentáculos do poder do Estado. O autor afirma ainda que os governos nacionais na Era da Informação são “muito pequenos” para lidar com as forças globais, no entanto se mostram ainda muito grandes para administrar a vida das pessoas. Devido a esses fatores ainda persistentes quanto ao poder sobre os meios de comunicações e o nível atual de organização social, Bertha Becker ressalta que as organizações da sociedade civil ainda se mostram fragilizadas para fazer uso desses circuitos cognitivos e informacionais em sua ação e afirmação social. O economista Marc Porat, em sua obra “The Information Economy” (1976), realizou uma ampla análise sobre economia da informação nos Estados Unidos. Estudando basicamente a composição dos setores de produção Primário, Secundário e Terciário, extraiu de cada um deles as atividades de informação, as quais colocaram dentro de um novo setor, inaugurando assim o conceito de Setor Quaternário. Este novo setor engloba em sua estrutura: a produção, o processamento e a distribuição de mercadorias e serviços de informação, sejam eles mercantis ou não-mercantis. Com essa análise sobre a informação, esta passa a ser considerada como recurso estratégico, de agregação de valor e como elemento de competição política e econômica entre as nações.

Redes Técnicas de Informação e o Ciberespaço

Estamos atualmente em plena era da sociedade informacional, como alude Manuel Castells, uma sociedade em redes. O estudo das redes técnicas de informações está por merecer a atenção por parte da Geografia, que traz para o seu campo de atuação um novo espaço a ser desbravado, próprio dessa nova era, na qual transitam os fluxos informacionais das ditas redes. Neste tempo, também chamado de Era da Informação e do Conhecimento (ALBAGLI & LEMOS, 1999), traz um patamar de novas espacialidades a serem desbravadas pelos geógrafos: o ciberespaço. Segundo Hindenburgo Pires (2005), o ciberespaço é um paradigma tecnológico-informacional, constituindo-se em um caminho de percepção e concepção do espaço e das novas espacialidades que se estruturam nas formações sócio-espaciais contemporâneas, representando um esforço de sistematização e análise da conjuntura moderna. O ciberespaço é um espaço, território articulado e estruturado, ente tecnológico das relações sociais imateriais, resultante de uma rede técnica, de novas relações de produção e acumulação, da qual as redes técnico-científicas,

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no caso da RSIS, cujas estações sismográficas são operadas automaticamente e disseminando as informações por meio virtual, fazem parte. Para Pires, o ciberespaço seria tratado como um “tecnoespaço”, conceito de Ângelo Turco. Através desse conceito podemos perceber que o ciberespaço é um território articulado e estruturado pela primazia de suas Estruturas Espaciais de Acumulação (ESA). Nas ESA, as redes técnico-científicas têm a sua parcela de participação como fonte de fluxos informacionais. A informação age dentro das ESA como uma nova forma de incremento e potencializador da produtividade, também de acumulação, sendo uma nova forma de produção de nossos tempos, que tem como característica a virtualidade A Geografia como uma ciência, possibilita um viés epistemológico de interpretação do ciberespaço a partir do conceito de espaço geográfico enquanto expressão e condição das práticas sociais. Como afirma Michele Tancman Silva (2006), “é importante registrar a necessidade de compreendermos o ciberespaço como Espaço Geográfico, livre dos constrangimentos clássicos das categorias de estudo da Geografia”. Pode-se então dizer a respeito do ciberespaço que as transformações entre relações sociais e forças produtivas, no seu movimento dialético e historicamente determinado, implicam em constante mutação. Desta forma, o ciberespaço deve ser compreendido como parte do espaço geográfico, constituído de um sistema de objetos e ações que caracterizam a chamada sociedade informacional dos dias atuais. A autora complementa que o “núcleo é o espaço e não ciber”.

As Instituições Gestoras das Redes de Informação Sismográfica como Centros de Cálculo

Uma visão a respeito das instituições gestoras de uma rede de informação sismográfica como é o caso do Observatório Nacional, responsável pela RISIS, é a idéia de “Centros de Cálculo”. É um conceito proposto por Bruno Latour que trata dos lugares na qual ocorre a convergência das informações sobre o mundo e produz efeitos intelectuais. Estes lugares seriam os arquivos, bibliotecas, centros de documentação, zoológicos, jardins botânicos e centros de banco de dados de redes de informação técnico - cientifica. Devido às características desse conceito, logo foi apreendido por pesquisadores de diversas áreas como a Ciência da Informação, Biblioteconomia, Museologia e Arquivologia. Prover os Centros de Cálculos era uma das principais atribuições dos geógrafos naturalistas como Alexandre von Humboldt, Eberhard von Zimmermann e Orville Derby em suas expedições. Centros de Cálculo são nós, em redes de atores, imprescindíveis para a

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tessitura de estratégias de alianças entre eles, mobilizando o mundo em seu favor, tornando global o local. A noção de Centros de Cálculo oferece elementos para a análise das relações entre local e global, fortemente atingidas pelas redes. O conceito de Bruno Latour nos leva a considerar as instituições gestoras de redes de informação técnico-científica como um importante elemento dos Centros de Cálculo em que os pesquisadores, entre eles os geógrafos, os gerenciam e os provêem. Segundo Bruno Latour, a informação – as “inscrições” – não são apenas objetos, signos, sujeito a mera apreciação alheia, mas sim uma relação estabelecida entre dois lugares. Como afirma Bruno Latour (2000, p. 22-24)

[...] o primeiro, que se torna um centro, sob a condição de que entre os dois circule um veículo que denominamos muitas vezes forma, mas que, para insistir em seu aspecto material, eu chamo de inscrição. [...] O que é então a informação? O que os membros de uma expedição devem levar na volta para que um centro possa fazer uma idéia de outro lugar. Por que passar pela mediação de um veículo, de um desenhista, por que reduzir à escrita, por que simplificar a ponto de levar apenas alguns frascos? Ora, a informação permite justamente limitar-se à forma, sem ter o embaraço da matéria [...] A biblioteca, o gabinete, a coleção, o jardim botânico e o viveiro se enriquecerão com isso sem, no entanto, se entulhar com todos os traços que não teriam pertinência. Verifica-se que a informação não é uma “forma” no sentido platônico do termo, e sim uma relação muito prática e muito material entre dois lugares, o primeiro dos quais negocia o que deve retirar do segundo, a fim de mantê-lo sob sua vista e agir à distância sobre ele.

Bruno Latour mostra que através dos Centros de Cálculo a produção de informações permite resolver de modo prático, por operações de seleção, extração, redução, a contradição entre a presença num lugar e a ausência desse lugar. Um efeito decorrente do movimento de redução é o de amplificação, que consiste em unificar, universalizar o que vivia “disperso em estados singulares do mundo” (LATOUR, 2000). O autor explica os efeitos dos dois movimentos mencionados, comparando duas situações – a de pássaros habitando seu ecossistema e os mesmos reunidos, transformados em informação registrada, catalogada e indexada nos Centros de Cálculos. Com isso verificamos o resultado das expedições geográficas, tão comuns no alvorecer da Geografia quando reconhecida como ciência e dos atuais trabalhos de campo, cujas “inscrições” trazidas são estudadas por hábeis profissionais nos Centros de Cálculo. Como observa Bruno Latour (2000, p. 22-24)

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A partir do momento em que uma inscrição aproveita as vantagens do inscrito, do calculado, do plano, do desdobrável, do acumulável, do que se pode examinar com o olhar, ela se torna comensurável com todas as outras, vindas de domínios da realidade até então completamente estranhos. A perda considerável de cada inscrição isolada, em relação ao que ela representa, se paga ao cêntuplo com a mais-valia de informações que lhe proporciona essa compatibilidade com todas as outras inscrições. O mesmo mapa pode cobrir-se de cálculos; é possível sobrepor a ele mapas geológicos, meteorológicos, pode-se comentá-lo num texto, integrá-lo num relato.

Hoje temos todas essas “inscrições” obtidas de um lugar, na quais os seus dados estão sendo digitalizados nos diversos Centros de Cálculos. Estes centros de recepção e disseminação da informação, existentes desde a antiguidade, são suporte para o poder, intervenção, domínio e gerenciamento territorial. Como bem diz Bruno Latour (2000, p. 22-24)

Parece que a Biblioteca de Alexandria teria servido de centro de cálculo para uma vasta rede da qual era a fonte abastecedora. Não é à toa que os Ptolomeus eram gregos. O império de Alexandre sabia muito bem as forças que podem ser derrubadas com o império dos signos.

Questões a Observar no Estudo da Territorialidade da Rede de Informação Sismográfica Brasileira.

a. Segundo Leila Christina Dias (1995), a rede técnica aparece muitas vezes como o sujeito capaz de criar condições sociais inéditas e de estruturar territórios. No caso das Redes de Informação Sismográfica Brasileira, em que medida favorece a criação de uma nova ordem de condições sociais e como tais condições contribuem na produção de novas territorialidades através das informações obtidas, do seu uso e disseminação?

b. Como as redes de informação sismográfica, da qual entre elas a RISIS gerenciada pelo Observatório Nacional, estabelecerão os fluxos informacionais necessários para o funcionamento de uma rede de informação que deve atuar territorialmente e na produção econômica do país?

c. Como constatado, o conhecimento nem sempre é codificado, permanecendo tácito, fato muito comum nas organizações industriais, só se transferindo se houver interação

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social. No caso das organizações que participam e usufruem dos dados sismológicos, este tipo de informação estará moldando estruturas organizacionais em forma de arranjos produtivos no território brasileiro? Quais serão os seus pólos, localização, os centros de cálculo?

d. Existem estudos e projetos para a implementação de uma rede nacional integrada de banco de dados e bibliotecas virtuais de informações sismológicas e demais informações geofísicas, nos moldes que está se espera a ser implantado no âmbito da Rede Nacional de Informações sobre o Meio Ambiente (RENIMA), rede de informação ambiental esta existente em Lei desde 1993 pela Portaria IBAMA nº. 48. Quais seriam a contribuição e repercussão dessa rede no âmbito da sociedade brasileira?

f. Como as grandes empresas, entre elas, a PETROBRAS, que patrocina a RSIS, constituem estratégias de uso do território através de redes como a de informação sismográfica, possibilitando o surgimento de formas verticais no comando da produção, permitindo assim um uso diferenciado e privilegiado do território através da coleta e uso da informação?

Considerações Finais

No atual período Era da Informação e do Conhecimento o espaço geográfico ganha nova importância. A competitividade que antes era restrita apenas à estrutura interna de cada corporação, passa agora a ser também um atributo dos lugares (SANTOS, 1999b). Portanto, a fim que os lugares se tornem competitivos, as grandes empresas impõem a instalação de redes e aparatos técnico-científica e informacional do meio geográfico constituindo em territórios nacionais um circuito de redes instrumentais mediadas por modernos sistemas de comunicação e informação, ao seu serviço. Essas redes permitem às empresas uma gestão técnica e solidariamente organizada do território, normatizando A chamada Era da informação e do Conhecimento reflete dois aspectos apontados por Sarita Albagli (1999): (a) a diferenciação entre distintas realidades culturais e projetos de sociedade, por parte de comunidades territoriais e segmentos sociais diversos; e (b) a desigualdade entre sociedades em diferentes estágios de desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico, ou entre economias avançadas e periféricas, bem como entre segmentos de diferentes níveis sócio-econômicos no interior de uma mesma sociedade nacional. Tal desigualdade expressa hoje fundamentalmente a desigual distribuição sócio-espacial de conhecimentos e

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informações estratégicas. A constituição de uma Rede Sismográfica que a médio prazo abrangerá todo o território brasileiro deverá ao mesmo tempo formar através da aquisição, uso e disseminação da informação, um território de arranjos produtivos, clusters de indústrias petrolíferas e afins, mesmo centros acadêmicos, com obtenção e utilização de informações geofísicas, entre ela, as sismográficas. Dentro desse panorama, observando o histórico da disseminação das informações técnico - cientifica no Brasil, podemos perceber que sociedade civil e órgãos públicos são vistos de forma geral como fornecedores de informações, para que os centros de decisão que ficam mais acima possam levar os seus interesses em consideração, ou assegurar melhor os seus próprios interesses. Este tipo de filosofia da informação é coerente com uma ideologia política que vê a sociedade como usuária, ou até como “cliente”, mas não como sujeito do processo decisório. Portanto, há de se verificar a existência de algum projeto na área da Política de Informações em Ciência e Tecnologia (ICT) em que a sociedade civil no seu conjunto, que deve ser adequadamente informada, possa participar ativamente das decisões sobre os seus destinos, entres eles, habitantes dos territórios a serem intervindos, escolhidos através das informações colhidas nas redes. Há de se levar também em conta o papel do capital social e da territorialidade, presentes na rede estudada, como fatores de cooperação, de compartilhamento de conhecimentos e experiências e de aprofundamentos de vínculos entre os atores locais abarcados pela territorialidade dessa rede de informação, que propiciem o acesso e participação da sociedade como um todo. Capital social aqui é compreendido como o conjunto de instituições formais e informais, normas sociais, hábitos e costumes que afetam os níveis de confiança, solidariedade e cooperação em um grupo ou sistema social (ALBAGLI & MACIEL, 2004). A territorialidade refere-se às relações entre o indivíduo ou grupo social e seu meio de referência, manifestando-se nas várias escalas geográficas – uma localidade, uma região ou um país – e expressando um sentimento de pertencimento e um modo de agir em um dado território. Analisando o histórico de políticas correlatas, que lidam com a disseminação da informação como, por exemplo, a Política Ambiental Brasileira, é constatada, ao menos empiricamente, que os Sistemas de Informação Técnico-Científica existentes, entre eles, as Redes de Informação Sismográfica, não estão sendo organizados para a participação cidadã. Entretanto, a idéia sobre a disseminação da informação técnico-científica proveniente das redes gerenciadas pelo ON já está sendo debatida tendo como o modelo o que ocorre na comunidade astronômica. Os dados astronômicos de descobertas recentes estão sendo disponibilizados a diversos pesquisadores e ao

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público em geral depois do período de dois anos, como bem lembrou o Diretor do ON, Sérgio Luiz Fontes, em uma reunião técnica do Pool de Equipamentos Geofísicos do Brasil – PEGBR. Essa situação a respeito da disseminação da informação técnico-científica, muitas delas geradas por instituições públicas, apresenta um forma paradoxal, pois nunca se dispôs de tanta tecnologia de informação como hoje. Bancos de dados, redes, portais, sites, conferências on-line, educação à distância, grupos de discussão, conexões de banda larga, geoprocessamento, sensoriamento remoto, generalização do acesso à telefonia, – tudo indica uma autêntica explosão de capacidades técnicas de levantamento, organização e distribuição da informação que facilitam em muito tal propósito. Como vimos neste breve trabalho, o estudo da territorialidade das redes de informação sismográfica, além das demais redes de informação técnico-científica, por sua relevância, pelos seus valores intrínsecos e agregados, é de merecer a atenção por parte dos geógrafos. Ela afeta o profundamente dos conceitos de seu objeto de estudo, o espaço geográfico, além de subsídios aos estudiosos e gestores da informação técnico-científica. Há a exigência de pesquisas para a sua maior explicitação, de adicionais reflexões e práticas, observando atentamente o novo paradigma propiciado pelas novas TIC, que envolvem articulações entre escalas local e global da vida coletiva. São estas as complexidades da atual sociedade informacional nos apresentando, nos desafiando para a análise.

ANVERSA, Marcus Vinícius Albrecht. Territorial perspective of the Brazilian seismographic information network: The seismographic network of the south and south-east of Brazil – RSIS. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.6, n.1, 2010, p.101-121.

ABSTRACT: This work aims to expose the territoriality and as meet the Nets of Brazilian Seismographic Information, in special, the Seismographic Net of the South and Southeast of Brazil - RSIS. To trace the territoriality of those nets, we will analyze the subject of the own paper of the knowledge and of the technician-scientific information, its context in the cyberspace, inside of the perspective that the geographical analysis provides. The study object presents a complex reality, diversified and practice, of great interest to the researchers and managers of technician-scientific nets, among them the geographers, that requests its to unveil.

KEYWORS: geography of the nets; brazilian seismography; territory; cyberspace; information & knowledge.

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MODERNIZAÇÃO NO CAMPO E URBANIZAÇÃO NA REGIÃO DE RIBEIRÃO PRETO – SP (1950-2007)

Danton Leonel de Camargo BINI*Sarah Toniello TAHAN**

RESUMO: Este trabalho apresenta a modernização agrícola na região de Ribeirão Preto (SP) na segunda metade do século XX e, através de dados estatísticos coletados junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a conseqüente urbanização acarretada por esse processo entre 1950 e 2007. A legislação trabalhista e a acentuada mecanização da principal cultura agrícola da região – a cana-de-açúcar – são fatores apresentados como primordiais para o entendimento do êxodo rural na hinterlândia de Ribeirão Preto (SP).

PALAVRAS-CHAVE: modernização agropecuária; êxodo rural; urbanização; região; Ribeirão Preto.

Introdução

No período colonial vigorou de forma predominante o trabalho compulsório na atividade econômica brasileira. As cidades surgidas num primeiro momento de nossa história apresentavam funcionalidades direcionadas à defesa e administração da riqueza gerada para ser escoada à metrópole portuguesa (FARIAS JUNIOR, 2010). Em um momento posterior, mesmo surgindo cidades comerciais com um maior adensamento populacional, são nas áreas rurais que se mantiveram as localizações da maioria da vida e do trabalho do povo brasileiro. Durante o século XIX, após o movimento de Independência (1822) introduziram-se reformas que sedimentaram a constituição de uma economia eminentemente capitalista no Brasil (Lei de Prestação de Serviços de Estrangeiros [1831], Lei de Terras [1850], Lei do Ventre Livre [1871], Lei do Sexagenário [1885],

*Geógrafo, Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. (E-mail: [email protected]).**Graduanda em Economia Empresarial e Controladoria - FEA-USP, Estagiária do Observatório do Setor Sucroalcooleiro e Bolsista CNPq na categoria Iniciação Tecnológica Industrial A. (E-mail: [email protected]).

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Lei Áurea [1888]). Sem uma legislação específica garantidora de direitos aos trabalhadores da economia agrária nacional, o colonato foi o formato constituído principalmente pela elite cafeeira paulista para a fixação estável do trabalhador agora livre em suas propriedades (MARTINS, 1996).

MATERIAIS E MÉTODOS

Este trabalho foi confeccionado a partir de referenciais teóricos (pesquisa bibliográfica), empírico (trabalhos de campo) e estatístico (consulta à banco de dados e formatação de tabelas analíticas). Primeiramente foi realizado um levantamento bibliográfico sobre a formação sócio-espacial da região de Ribeirão Preto; sua funcionalidade e importância econômica; o processo histórico de composição da atividade agropecuária e de sua mão-de-obra. Com esta leitura se estabeleceu uma fundamentação teórica para a relação campo-cidade e para a urbanização regional. Uma segunda etapa da pesquisa em intersecção com a primeira foi a realização de trabalhos de campo nos anos 2000, quando se teve um contato direto com os atores do processo em estudo. Os referenciais estatísticos foram obtidos junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)3.

ÊXODO RURAL E URBANIZAÇÃO NA REGIÃO DE RIBEIRÃO PRETO

Fundada em 1870, a freguesia de São Sebastião do Ribeirão Preto foi ascendida à categoria de vila com sua independência em relação à vila de São Simão em 1871. Em 1874, com a formação de sua primeira câmara de vereadores, foi elevada à município (COSTA, 1955). No início do século XX, Ribeirão Preto apresentava uma densidade populacional

[...] composta por 60.000 pessoas, devido às correntes migratórias, principalmente de italianos, que se iniciaram em 1880. [...]. O comércio, a indústria e as atividades liberais se desenvolveram a partir da expansão da economia cafeeira, que continuou a impulsionar o crescimento da população. [...]. Já em 1922 a população apresentava um crescimento, chegando a 75.000 pessoas [...]. Em 1940, a população de Ribeirão Preto não passava de 79.783 habitantes. Porém, em 1950 ela era composta por 92.160 pessoas. (SANTOS, 2003, p. 04-05).

3Para os Censos Agropecuários de 1950 e 1960, os dados foram adquiridos no trabalho de Elias (1996).

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Durante todo esse intervalo, a distribuição deste contingente humano se deu predominantemente nas áreas rurais. Sendo assim, para se encontrar resoluções do processo de transformação histórica na distribuição espacial da população e do trabalho na região de Ribeirão Preto é preciso retornar ao entendimento de que a partir da década de 1930 - devido à crise profunda que se instalou no setor cafeeiro - muitos produtores trocaram de cultura (sendo uma delas a cana-de-açúcar) utilizando os mesmos processos de produção e de trabalho do café, isto é, em grandes propriedades e baseado no colonato (CAMARGO, 1988). O colonato era uma imposição, uma necessidade do nível de desenvolvimento agrícola na época, sendo que a mecanização agrícola era pouco desenvolvida e havia a necessidade de manter trabalhadores permanentes na propriedade durante a safra e a entresafra (SILVA, 1978). Considerando-se que a sazonalidade das atividades agrícolas se apresentava como um agravante - os fazendeiros necessitavam das famílias dos colonos boa parte do ano, porém não o ano todo -, a escolha recaiu sobre o mantenimento de parte do pagamento dos trabalhadores rurais de formas não-monetárias de salário. Isto é, o pagamento da remuneração do trabalho estipulado parte em dinheiro e parte em concessão de moradia e cessão da terra para a produção de subsistência (MARTINS, 1996). Formas alternativas, combinando também remuneração em dinheiro e em espécie, como a parceria e o arrendamento também se apresentavam como funcionais. Além de garantir a mão-de-obra necessária ao processo produtivo, estes regimes de trabalho permitiam, ao mesmo tempo, salários abaixo do custo de produção da força-de-trabalho (CAMARGO, 1988). No entanto, com a crescente acumulação de capital na agricultura paulista, paralelamente a um processo de concentração fundiária, desarticulam-se progressivamente as antigas relações de trabalho onde sobressaía o colonato, passando a existir um excedente de mão-de-obra residente nas propriedades (Elias, 1996). A mecanização com tratores, a ocupação plena das terras da região e a redução das pequenas propriedades foi um processo inicial de modernização que reordenou a produtividade da cultura da cana-de-açúcar, desbancando o sistema de colonato e desencadeando um êxodo rural no setor (CAMARGO, 1988). Sendo assim, a partir dos anos de 1950, vários fatores combinados atuaram no sentido de acelerar esse processo de expulsão da mão-de-obra residente e o crescimento do trabalho temporário no estado de São Paulo, sobretudo de volantes. José Graziano da Silva (1978) enumera entre outros fatores a legislação trabalhista estendida ao meio rural, a erradicação dos cafezais e sua substituição por outros produtos agrícolas, como a cana-de-açúcar e a pecuária, menos exigentes em mão-de-obra com a crescente mecanização da agricultura.

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Em relação à legislação trabalhista, a partir do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR)4, de 1963, os proprietários passam a manter no imóvel apenas os trabalhadores mais qualificados, liberando os trabalhadores sem qualificação. Parte dessa mão-de-obra é reocupada nos momentos de maior demanda como na colheita, mas concentrados sob a forma de trabalhadores temporários. Dessa forma, o empregador obtinha uma dupla vantagem, ao não pagar os direitos trabalhistas e utilizando mão-de-obra adicional apenas nos momentos de maior necessidade (SILVA, 1978). Desses fatores de transformação da relação capital x trabalho, trabalho permanente (residente) x trabalho temporário, surgiram novas relações entre a cidade e o campo. Daí acelera-se consideravelmente o fluxo migratório rural/urbano. Com essas mudanças, no ano de 1975, já se demonstrava uma quase completa penetração do capitalismo no campo paulista, separando o trabalhador colono de seus instrumentos de trabalho. Passa a existir no estado de São Paulo, e nas regiões canavieiras especificamente – neste trabalho se apresenta a região de Ribeirão Preto como estudo de caso5 - uma nova espacialidade do trabalhador rural, deixando ele de ser colono nas propriedades rurais e passando a morar nas periferias e cortiços das áreas urbanas (Quadro 1).

Quadro 1: Distribuição Percentual da População Urbana e Rural da Região de Ribeirão Preto – (1950 – 2007)

Ano População Urbana População Rural1950 38. 99 61. 011960 52. 93 47. 071970 71. 68 28. 321980 87. 33 12. 772000 94. 14 5. 962007 95.23 4.77

Fonte: Dados de 1950 e 1960 (ELIAS, 1996); Censos Demográficos do IBGE 1970, 1980, 2000 e Contagem da População de 2007 (IBGE).

4Que surgiu, segundo José Graziano da Silva (1978), com o intuito de legitimar a existência do colono de um lado e do trabalhador volante do outro, algo que não era nítido antes do ETR. Porém isso era o que os proprietários “não queriam” e a expulsão dos colonos das propriedades aumentou muito a partir daí.

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Na década de 1970 está sedimentada uma ocupação majoritária da população da região residindo em áreas urbanas. Nessa época, muitos trabalhadores migraram de várias regiões do país - principalmente do Nordeste e norte de Minas Gerais - para trabalharem nas colheitas da cana-de-açúcar. Muitos ficavam na entresafra, logo trazendo toda a família e se mudando defitivamente (SILVA, 1999)6. Assim, a migração e o êxodo rural resultam na expansão acelerada da urbanização em toda a região de Ribeirão Preto, com um aumento entre 1950 e 2007 de 2.474.550 pessoas morando nas áreas urbanas (Quadro 2).

Quadro 2: População da Região de Ribeirão Preto, (1950-2007)

Ano População Rural População Urbana População Rural1950 985.617 384.373 601.2441960 1.204.411 637.518 557.1591970 1.428.029 1.023.668 404.3611980 1.796.925 1.515.414 281.5112000 2.726.098 2.566.597 159.5012007 3.002.009 2.858.923 143.086

Fonte: Dados de 1950 e 1960 (ELIAS, 1996); Censos Demográficos do IBGE 1970, 1980, 2000 e Contagem da População de 2007 (IBGE).

O surgimento de novos municípios foi uma das características do processo de urbanização na região. Em 1940, eram 48; em 2007, conta-se 86. Para o entendimento desse processo se compreende que os chamados bairros rurais expandiram seus perímetros com a anexação das famílias de colonos expulsas das terras nas áreas agrícolas. Com a necessidade de um comando mais rígido desse novo urbano surgido, emancipou-se essas vilas rurais. Daí, a criação de vários municípios na

5Define-se aqui Região de Ribeirão Preto a delimitação da Região Administrativa (RA) existente antes das fragmentações do final dos anos 1980 que criaram as Regiões Administrativas de Franca, Barretos e Central (SEADE, 2003). Na incorporação dessa totalidade parcial do espaço geográfico paulista, ao invés dos 25 municípios que compreendem a atual configuração da RA de Ribeirão Preto, analisa-se aqui para o momento atual a dinâmica de 86 municípios.

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segunda metade do século passado (Quadro 3).

Quadro 3: Região de Ribeirão Preto - Número de Municípios(1940-2007)

Anos N° de municípios1940 481950 591960 721970 801980 802000 862007 86

Fonte: Dados de 1950 e 1960 (ELIAS, 1996); Censos Demográficos do IBGE 1970, 1980, 2000 e Contagem da População de 2007 (IBGE).

Dessa forma, elabora-se um desencadear onde o território da região de Ribeirão Preto se direciona cada vez mais ao atendimento da modernização agropecuária, principalmente à produção do complexo agroindustrial sucroalcooleiro. Intensifica-se um controle mais rígido do espaçamento regional, constituindo-se uma ‘urbanização corporativa’ à serviço do interesse das grandes firmas agroindustriais (SANTOS, 1993; ELIAS, 1996).

6Também há relatos que retratam o caso de muitos trabalhadores que no interior paulista conheceram outras mulheres, constituíram novas famílias e nunca mais voltaram para residir em suas terras de origem.

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Quadro 4: Região de Ribeirão Preto - Número de MunicípiosCom Mais de 20 Mil Habitantes, (1940–2007)Anos N° de municípios1940 41950 51960 61970 91980 161991 252000 332007 33

Fonte: Dados de 1950 e 1960 (ELIAS, 1996); Censos Demográficos do IBGE 1970, 1980, 2000 e Contagem da População de 2007 (IBGE).

Sendo assim, pode-se visualizar esse reordenamento sócio-espacial na região de Ribeirão Preto com o aumento do número dos municípios maiores de 20 mil habitantes durante o intervalo 1940-2007 (Quadros 4 e 5). Exercendo suas funcionalidades hegemônicas aos serviços do agronegócio (sistema bancário, extensão rural, comércio de insumos e maquinários), o tecido urbano da rede de cidades regional se amplificou cada vez mais enquanto o espaço da vida e do consumo dos serviços mais vitais: educação, saúde e lazer. Rosa Ester Rossini (1988), em seu magnífico trabalho de Livre-Docência no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) retratou a pujança da urbanização expandida pela modernização agrícola no estado de São Paulo e especificamente na região de Ribeirão Preto. Segundo ela, nas áreas urbanas em ascensão, as agroindústrias instaladas eram acompanhadas

[...] pelo movimento de capitais mercantis locais propiciando investimentos de origem privada de companhias de energia, de telefone, de meios-de-transporte, bancos, instituições de ensino, etc. Acrescente-se ainda o surgimento de postos de gasolina, armazéns para venda de implementos agrícolas e sementes, que reforçavam o setor urbano, acelerando a prestação de serviço. (ROSSINI, 1988. p. 74).

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Quadro 5: Número de Municípios, Segundo Classes de População

1940 1950 1960 1970 1980 2000 2007Até 20 mil 44 54 66 71 64 53 53De 20 a 50 mil 4 4 2 4 11 23 23De 50 a 100 mil - 1 3 4 1 5 4De 100 a 200 mil - - 1 1 3 3 3De 200 a 500 mil - - - - 1 1 2Mais de 500 mil - - - - - 1 1

Fonte: Dados de 1950 e 1960 (ELIAS, 1996); Censos Demográficos do IBGE 1970, 1980, 2000 e Contagem da População de 2007 (IBGE).

Nesse novo momento marcado pela revolução técnico-científica do campo brasileiro, o urbano se tornou o lugar da regulação da produção agropecuária moderna. Através dele a cidade se torna una, num processo fluido de cooperação entre o campo e o meio urbano, sem dicotomias. Seguindo essa lógica, pequenas cidades surgiram exclusivamente em função das atividades agroindustriais instaladas em seu entorno. Sendo a região de Ribeirão Preto um dos melhores exemplos desse processo de transformações acontecidas na agropecuária brasileira, vê-se que em 2007 a maioria dos municípios da região (mesmo contabilizando uma minoria da população total) contabilizava menos de 20 mil habitantes (Quadro 5).

Considerações Finais

Com o aparecimento das plantadeiras e a possível disseminação de seu uso na maioria das novas áreas em que a cana vem se expandido no estado de São Paulo e no Brasil, visualiza-se um aumento gradual do desemprego estrutural (ANTUNES, 1995), onde se tem a predominância “natural” do desemprego sazonal. Com a reestruturação da produção na atividade canavieira - expansão da mecanização nas principais atividades da lavoura canavieira (colheita e plantio) - já existem trabalhadores (como os maiores de 45 anos e aqueles sem qualificação profissional para o manuseio das novas tecnologias) que não conseguem mais trabalho no trato e no corte manuais da cana-de-açúcar. Dessa forma ficam sem emprego na lavoura o ano inteiro, diferente do período anterior à mecanização da colheita, quando ficavam somente parte do ano sem emprego na cultura canavieira, no período da entresafra: esse, denominado desemprego sazonal.

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Migrantes e não-migrantes, esses trabalhadores rurais moram com suas famílias na periferia das cidades dormitórios da região. Restam a eles, em sua grande maioria, o mercado de trabalho informal, trabalhando uns como pedreiros, outros como pintores; montando bancas de camelô em pontos de alta circulação de pessoas na cidade; vendendo produtos de porta em porta ou o retorno às suas regiões de origem. Para uma minoria mais escolarizada, fica o espaço da requalificação oferecida pelas associações das indústrias, pelos governos e por empresas prestadoras de serviços surgidas com a mecanização na lavoura canavieira (FREDO et al., 2009).

BINI, Danton Leonel de Camargo; TAHAN, Sarah Toniello. The field modernization and urbanization in the Ribeirão Preto-SP region (1950 – 2007). DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.6, n.1, 2010, p.123-132.

ABSTRACT: This paper presents the agricultural modernization in the region of Ribeirão Preto (SP) in the second half of the twentieth century and, through statistical data collected from the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), the consequent urbanization brought about by this process from 1950 and 2007. Labor law and the dramatic mechanization of main agricultural crop of the region - cane sugar - are presented as factors essential to the understanding of the rural exodus in the hinterland of Ribeirão Preto (SP).

KEYWORDS: agricultural modernization, rural exodus, urbanization, region Ribeirão Preto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo, Campinas. Ed. Cortez, Unicamp, 1995. 158 p.CAMARGO, J. M. Tecnificação da cana-de-açúcar em São Paulo e sazonalidade da mão-de-obra. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Economia e Administração e Contabilidade. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1988. 202 p.COSTA, O.E. História da Fundação de Ribeirão Preto. Coleção da Revista de História. São Paulo, 1955.ELIAS, D. Meio Técnico-Científico-Informacional e Urbanização na Região de Ribeirão Preto – SP. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

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Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996. 274 p.FARIAS JUNIOR, N. B. O trabalho rural e as relações cidade campo. VII Seminário do Trabalho: trabalho, educação e sociabilidade. Anais. UNESP. Marília, 2010. 108 p.FREDO, C. E. et al. Recursos Humanos na Área de Biocombustível. Texto para Discussão. TD-IEA n.2 Instituto de Economia Agrícola (IEA). São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=10120> Acesso em: 28 set. 2009. 24 p.FUNDAÇÃO SEADE. Anuário Estatístico do Estado de São Paulo. Fundação Seade. São Paulo, 2003. Disponível em: http://www.seade.gov.br/produtos/anuario/index.php?anos=2003&tip=ment&opt=temas&cap=3&tema=agr> Acesso em: 28 set. 2009.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 1970: Documentação do Arquivo. Rio de Janeiro: IBGE.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico: 1980. Documentação do Arquivo. Rio de Janeiro: IBGE.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE) - Censo Demográfico 2000: resultados preliminares. IBGE. Rio de Janeiro, 2000.MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. 6ª ed. Hucitec. São Paulo, 1996. 157 p. ROSSINI, R. E. Geografia e Gênero: A mulher na lavoura canavieira paulista. Tese de livre-docência. FFLCH. USP. São Paulo, 1988.SANTOS, J. R. As transformações das riquezas dos cafeicultores em Ribeirão Preto entre 1920 e 1951. V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas. Anais. Caxambu. 2003. 23 p.SANTOS, M. A Urbanização Brasileira. Editora Hucitec. São Paulo, 1993.SILVA, J. G. A mão-de-obra volante em São Paulo Editora Hucitec, São Paulo, 1978.SILVA, M. A. M. Errantes do fim do século. Fundação Editora da UNESP. São Paulo, 1999.

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ÍNDICE DE ASSUNTOS

alfabetização; 65 Assembléia Constituinte de 1933; 49cadernos escolares; 65 ciberespaço; 101 ciganos; 17 colonização; 17condições de trabalho; 85contemporaneidade; 11Constituição de 1934; 49cultura escolar; 65desterro; 17educação; 11ensino médio; 85escravidão; 27êxodo rural; 123formação docente; 14geografia das redes; 11Igreja Católica; 49informação & conhecimento; 101Liga Eleitoral Católica; 49modernização agropecuária; 123prática de ensino; 85qualidade de ensino; 85região de Ribeirão Preto; 123resistência; 27Revolução de 1930; 49Ribeirão Preto; 27sismografia brasileira; 101território; 101urbanização; 123

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SUBJECT ÍNDEX

1930 Revolution; 491934 constitution; 49agricultural modernization; 123alphabetization; 65brazilian seismography; 101Catholic church; 49Catholic Electoral League; 49Constituent council in 1933; 49contemporaniety; 11cyberspace; 101deportation; 17education, 11education quality; 85educational practices; 85geography of the nets; 101gypsies; 17high school; 85information & knowledge; 101region Ribeirão Preto; 123resistance; 27Ribeirão Preto; 27rural exodus; 123school notebooks; 65 settling; 17slavery; 65teacher training; 11territory; 101urbanization; 123 working conditions; 85

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ÍNDICE DE AUTORES

ANVERSA, Marcus Vinícius Albrecht; 101BINI, Danton Leonel de Camargo; 123BOMFIM, Cláudia; 17FARIA, Antonio Carlos Soares; 27FERNANDES, Maria Cristina Da Silveira Galan; 85LEITE, Filipe de Faria Dias; 49MONTI, Carlo Guimarães; 27PERINELLI NETO, Humberto; 11 TAHAN, Sarah Toniello; 123TAVARAYAMA, Rodrigo; 85VILELA, Ana Lúcia Nunes da Cunha; 65

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Normas para publicação na revista DIALOGUS

Normas para apresentação de original

Apresentação: Os trabalhos devem ser redigidos em português e encaminhados via e-mail, em dois arquivos separados:

- um completo (Conforme estrutura do trabalho, abaixo proposta);

- outro sem qualquer identificação do autor e com indicação da área e da sub-área do trabalho, segundo tabela Capes.

Os textos devem ser digitados em Word (versão 6.0 ou superior), fonte 11, tipo Arial Narrown, tendo, no máximo, vinte e cinco páginas (salvo exceção). A configuração da página deve ser a seguinte: tamanho do papel: A4 (21,0 x 29,7 cm); margens: superior e inferior: 7,3 cm; direita e esquerda, 5,3 cm. Espaçamento: espaço simples entre linhas e parágrafos; espaço duplo en-tre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc. Adentramento: parágrafos, exemplos, citações: tabulação 1,27 cm.

No que tange ao conteúdo dos artigos, os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.

Não serão aceitos trabalhos fora das normas aqui estabelecidas.

Estrutura do trabalhoOs trabalhos devem obedecer à seguinte seqüência: Título; Autor(es - por extenso e apenas o sobrenome em maiúsculo); Filiação científica do(s) autor(es) - indicar em nota de rodapé: Uni-versidade, Instituto ou Faculdade, Departamento, Cidade, Estado, País, orientação, agência fi-nanciadora (bolsa e/ou auxílio à pesquisa); Resumo (com máximo de sete linhas); PALAVRAS-CHAVE (até cinco); Texto (subtítulos, notas de rodapé e outras quebras devem ser evitadas); Abstract e Keywords (versão para o inglês do resumo e dos PALAVRAS-CHAVE precedida pela referência bibliográfica do próprio artigo); Referências Bibliográficas (trabalhos citados no texto), com indicação de tradução (no caso de obras estrangeiras) e número da edição.• Título: centralizado, em maiúsculas, negrito e fonte 14.• Subtítulos: sem adentramento, apenas a primeira letras do subtítulo deve ser maiúscula e fonte 12.• Nome(s) do(s) autor(es): nome completo na ordem direta, na segunda linha abaixo do título, alinhado à direita. Letras maiúsculas apenas para as iniciais e para o sobrenome principal. Fonte 12. • Resumo: a palavra RESUMO em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na terceira linha abaixo do nome do autor, sem adentramento. Na mesma linha iniciar o texto de resumo.

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• PALAVRAS-CHAVE: a expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo do resumo e uma linha cima do início do texto. Sepa-rar os PALAVRAS-CHAVE por ponto e vírgula. -Referência bibliográfica completa do próprio trabalho em inglês, conforme o exemplo:

PÁDUA, Adriana Suzart de. Change and continuity. Comparative notes about Venezuela´s Bo-livarian Constitution. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.X, n.X, 200X, p. X. • Abstract: a palavra ABSTRACT em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na se-gunda linha abaixo da referência bibliográfica completa do próprio trabalho em inglês, sem adentramento. Na mesma linha, iniciar o texto do abstract.• Keywords: a palavra KEYWORDS em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo do abstract. Utilizar no máximo cinco keywords separados por ponto e vírgula.- Referências Bibliográficas: a palavra REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo do keywords. Devem ser dispostas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor e seguir a NBR 6023 da ABNT.

Abreviaturas - os títulos de periódicos devem ser abreviados conforme o Current Contents. Exemplos:

Livros e outras monografias

LAKATOS, E. M., MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1986. 198p.

Capítulos de livros

JOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG, C. S. Meios de comunicação de massa. São Paulo: Cultrix, 1972, p.47 - 66.

Dissertações e teses

BITENCOURT, C. M. F. Pátria, Civilização e Trabalho. O ensino nas escolas paulista (1917-1939). São Paulo, 1988. Dissertação (mestrado em História) - FFLCH, USP.

Artigos e periódicos

ARAUJO, V.G. de. A crítica musical paulista no século XIX: Ulrico Zwingli. ARTEunesp (São Paulo), v.7, p.59-63, 1991.

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Trabalho de congresso ou similar (publicado)

MARIN, A. J. Educação continuada: sair do informalismo? In: CONGRESSO ESTADUAL PAU-LISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1, 1990. Anais... São Paulo: UNESP, 1990, p.114-118.

Citação no texto: O autor deve ser citado entre parênteses pelo sobrenome, separado por vír-gula da data de publicação: (BECHARA, 2001), por exemplo. Se o nome do autor estiver citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses: “Bechara (2001) assinala ...”. Quando for necessário especificar página(s), esta(s) deve(m) seguir a data, separada(s) por vírgula e precedida(s) de p. (MUNFORD, 1949, p.513). As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento (PESIDE, 1927a) (PESIDE, 1927b). Quando a obra tiver dois autores, ambos são indicados, ligados por & (OLIVEIRA & LEONARDO, 1943) e quando tiver três ou mais, indica-se o primeiro seguido de et. al. (GILLE et. al., 1960).

Notas - Devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé da página. As remissões para o rodapé devem ser feitas por números, na entrelinha superior.

Anexos e/ou Apêndices - Serão incluídos somente quando imprescindíveis à compreensão do texto.

Tabelas - Devem ser numeradas consecutivamente com algarismos arábicos e encabeçadas pelo título.

Figuras - Desenhos, gráficos, mapas, esquemas, fórmulas, modelos (em papel vegetal e tinta nanquim, ou computador); fotografias (em papel brilhante); radiografias e cromos (em forma de fotografia). As figuras e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no texto impresso de 10,4 x 15,1 cm. Devem-se indicar, a lápis, no verso: autor, título abreviado e sentido da figura. Legenda das ilustrações nos locais em que aparecerão as figuras, numera-das consecutivamente em algarismos arábicos e iniciadas pelo termo FIGURA.

Anexo(s): introduzir com a palavra ANEXO(S), na segunda linha abaixo da Referencia bibli-ográficas, sem adentramento. Continuar em nova linha, sem espaço.

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SOBRE O VOLUME

Formato: 16,0 X 21,0Mancha: 9,6 X 17,7

Tipologia: Arial NarrownPapel: Sulfite 75g

Matriz: FotolitoTiragem: 450 exemplares

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

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