DICA DE UM DINOSSAURO: “NÃO ESCOLHA A EXTINÇÃO!”

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1 ISSN 2359-053x ANO 7 - NÚMERO 85 - NOV 2021 SOCIOAMBIENTAL R$ 15 p. 08 p. 44 p. 28 p. 24 CERRADO Tudo era gerais E os gerais eram de todos HISTÓRIA SOCIAL A dama que atravessou três séculos SAÚDE Hora de aprimorar o SUS DICA DE UM DINOSSAURO: “NÃO ESCOLHA A EXTINÇÃO!”

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ISSN 2359-053x

ANO 7 - NÚMERO 85 - NOV 2021

SOCIOAMBIENTAL

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15

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CERRADO Tudo era gerais E os gerais eram de todos

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COLABORADORES/AS - NOVEMBRO

EXPEDIENTE

CONSELHO EDITORIAL

Xapuri Socioambiental: Telefone: (61) 99967 7943. E-mail: [email protected]. Razão Social: Xapuri Socioambiental Comunicação e Projetos Ltda. CNPJ: 10.417.786\0001-09. Endereço: BR 020 KM 09 – Setor Village – Caixa Postal 59 – CEP: 73.801-970 – Formosa, Goiás. Edição: Zezé Weiss, Jaime Sautchuk (61) 9 8135 6822. Revisão: Lúcia Resende. Produção: Zezé Weiss. Jornalista Responsável: Thais Maria Pires - 386/ GO. Marketing e Responsabilidade Social: Janaina Faustino (61) 9 9611 6826. Mídias Sociais: Eduardo Pereira. Tiragem: 5.000 exemplares. Circulação: Revista Impressa - Todos os estados da Federação. Revista Web: www.xapuri. info. Distribuição – Revista Impressa: Todos os estados da Federação. ISSN 2359-053x.

Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo,

para assim versejar o âmago das coisas.

Conceição Evaristo

Altair Sales Barbosa – Arqueólogo. Ana Luiza Trajano – Chef de Cozinha. Celina Dias Azevedo – Socióloga. Eduardo Galeano – Escritor (in memoriam). Emir Sader – Jornalista. Geni Mariano Guimarães – Escritora. Gilney Viana – Professor. Glória Moura - Pesquisadora. Helho (Hélio Bueno) – Ilustrador. Heloneida Studart – Escritora (in memoriam). Iêda Leal de Souza – Professora. Iêda Vilas-Bôas – Escritora. Jaider Esbell – Artista Plástico (in memoriam). José Ribamar Bessa Freire – Professor. Leonardo Boff – Ecoteólogo. Lúcia Resende – Professora. Maria Maia – Escritora. Nani (Ernani Diniz Lucas) – Humorista (in memoriam). Pedro Tierra – Poeta. Reinaldo Filho Bueno – Escritor. Rogério Carvalho – Médico Sanitarista. Zezé Weiss – Jornalista.

Jaime Sautchuk – Jornalista. Zezé Weiss – Jornalista. Agamenon Torres Viana – Sindicalista. Ailton Krenak – Escritor. Altair Sales Barbosa – Arqueólogo. Ana Paula Sabino – Jornalista.Andrea Matos – Sindicalista. Ângela Mendes – Ambientalista. Antenor Pinheiro – Jornalista. Cleiton Silva – Sindicalista. Elson Martins – Jornalista. Emir Sader – Sociólogo. Gomercindo Rodrigues – Advogado. Graça Fleury – Socióloga. Iêda Leal – Educadora. Iolanda Rocha - Professora. Jacy Afonso – Sindicalista. Jair Pedro Ferreira – Sindicalista. Júlia Feitoza Dias – Historiadora. Kleitton Morais – Sindicalista. Kretã Kaingang - Líder Indígena. Lucélia Santos –Atriz. Maria Maria - Cineasta. Rosilene Corrêa Lima – Jornalista. Samuel Pinheiro Guimarães Neto - Diplomata. Trajano Jardim – Jornalista.

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sta Xapuri 85 nasceu bem no meio da COP26, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, realizada em Glasgow, na Escócia, entre 31 de outubro e 12 de novembro. Estava eu em pleno processo de “gestação” quando, do nada, aparece um dinossauro em plena

ONU com esse discurso de causar um frio na espinha: “Ser extinto é coisa péssima, não escolham a extinção”.

Optei, então, por botar reparo na prosa do dino. A partir daí, montei a estrutura da nossa matéria de capa, escrita, em grande parte, em parceria com Gilney Viana. Embora certamente tenhamos que seguir com esse tema da COP26 nas próximas edições, aqui fazemos um balanço dos resultados da Conferência e do papel lamentável do governo brasileiro em mais um fórum internacional.

Novembro é o Mês da Consciência Negra. Além de um texto didático sobre o porquê de celebrarmos o 20 de Novembro como Dia da Consciência Negra, incluímos poemas e textos de Eduardo Galeano, Maria Maia e Pedro Tierra, homenageando grandes e imprescindíveis lideranças negras. E, em tempos de memória, não podíamos deixar de homenagear o grande artista indígena Jaider Esbell Macuxi e Marília Mendonça, essa gigante força da natureza goiana, ambos encantados neste novembro.

Isso e muito mais você encontra nas páginas da X85, feita com muita saudade do Jaime.

EDITORIAL

Zezé Weiss – Editora

Jaime Sautchuk – Editor (in memoriam)

“NÃO ESCOLHAM A EXTINÇÃO”

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Mensagens pra [email protected]

Marque suas melhores fotos do Instagram com a hashtag

#revistaxapuri Sua foto pode aparecer AQUI!

Muito boa a cobertura ambiental daRevista Xapuri, especialmente sobre a COP26.

Gilney Viana – Brasília – DF

Saudações Democráticas!!!Fiquei feliz e lisonjeada com a publicação do

meu artigo na Revista Xapuri. Até breve!Denize Souza Leite – Porto Nacional - TO

Parabéns pelo Correio Xapuri! Leio toda semana!Maria Luiza Ribeiro Nunes – Goiânia – GO

Revista Xapuri

Imagem do mês@revistaxapuri@isabellarudge

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SOCIOAMBIENTAL85 N

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O poder desarmado

Integridade

CONSCIÊNCIA NEGRA

LITERATURA

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Terra: o grande playerexcluído na COP26

Hipátia – a primeira famosaa ser queimada. Era uma bruxa?

Pro dia da minha partida

O morro encantado

Estrelinha

Marielle

Hora de aprimorar o SUS

Crianças Yanomami detrás do céu:“Genocíndio”?

CERRADO

GASTRONOMIA

HISTÓRIA SOCIAL

SUSTENTABILIDADE

UNIVERSO FEMININOHOMENAGEM

MITOS E LENDAS

MEMÓRIA

CONSCIÊNCIA NEGRA

SAÚDE

RESISTÊNCIA

BIODIVERSIDADE

COJUNTURA

SAGRADO INDÍGENA

20

1815

FEMINISMO

CONSCIÊNCIA NEGRA

20 de novembro:Dia da Consciência Negra

Duas mulheres velhas e a Academia Brasileira de Letras!

Xapuri – Palavra herdada do extinto povo indígena Chapurys, que habitou as terras banhadas pelo Rio Acre, na região onde hoje se encontra o município acreano de Xapuri. Significa: “Rio antes”, ou o que vem antes, o princípio das coisas.

Boas-Vindas!

Dica de um dinossauro:“não escolha a extinção!”08 CAPA

Teu nome

Chile: laboratório de experiências políticas na América Latina

Baleia jubarte 2122

Tudo era gerais e os gerais eram de todos

Farnel do Vale do Ribeira

A dama que atravessoutrês séculos

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Gilney Viana e Zezé Weiss

DICA DE UM DINOSSAURO: “NÃO ESCOLHA A EXTINÇÃO!”

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CAPA

ra quarta-feira, 27 de outubro. O mundo se preparava para a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a COP26, realizada em Glasgow, na Escócia, entre os dias 31 de

outubro e 12 de novembro de 2021. Tudo parecia correr conforme os protocolos.

Governos, como de costume, preparavam extensos documentos para as negociações da semana seguinte. Movimentos e organizações da sociedade civil se organizavam para marcar presença na COP26 com veementes protestos contra a lentidão da política para conter o aquecimento global.

De repente, uma presença inusitada quebra a rotina na sede das Nações Unidas, em Nova York. Ante uma plateia atônita, um visitante inesperado caminha, a passos largos, rumo ao podium e, do alto da sua experiência de 70 milhões de anos, ocupa o microfone para um conselho à espécie humana:

– Cuidado, vocês estão no caminho de um desastre climático que pode extinguir vocês do planeta. Extinção é uma coisa péssima. Não escolham a extinção!

O alerta, feito pelo orador surpresa, um imenso dinossauro, faz parte da campanha do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), “Don´t Choose Extinction”, para alertar os povos da Terra sobre o risco de extinção da espécie humana.

“NÃO ESCOLHA A EXTINÇÃO!” (DON´T CHOOSE EXTINCTION)

Gerado por um programa de computador e dublado pelo famoso ator Jack Black, o dino usou seus dois minutos na ONU para alertar a nós, seres humanos, sobre os riscos de extinção da nossa própria espécie, sobretudo pelo uso dos combustíveis fósseis, um dos principais temas discutidos na COP26.

– Preste atenção, pessoal: Eu posso contar pra vocês uma ou duas coisas sobre extinção. E, deixe-me dizer o que devia ser óbvio: Extinção é uma coisa péssima! E [ver vocês] trabalharem a sua própria extinção em 70 milhões de anos é a coisa mais ridícula que já vi nesse mundo. Nós, pelo menos, tivemos um asteróide. Qual a desculpa de vocês [para a extinção humana, que pode acontecer com o aquecimento global?]. Vocês estão caminhando para um desastre climático e, ainda assim, seus governos gastam centenas de bilhões de fundos públicos para subsidiar os combustíveis fósseis. É como se nós tivéssemos gastado bilhões por ano para subsidiar meteoritos gigantes. Isso é o que vocês estão fazendo nesse momento. Pensem sobre todas as outras coisas que vocês podem fazer com o seu dinheiro. Tem muita

gente passando fome em volta do mundo. Vocês não pensam que ajudar a quem tem fome faz muito mais sentido do que pagar pela extinção de toda a espécie humana? Vamos falar sério por um segundo. Vocês têm uma grande oportunidade para sair dessa enrascada nesse momento. Vocês podem reconstruir suas economias e sair mais fortes depois dessa pandemia. Essa é uma grande chance para a humanidade. Então prestem atenção no que eu digo: Salvem a sua própria espécie humana antes que seja tarde. Parem de dar desculpas e comecem a fazer as mudanças [que podem salvar vocês!].

O FIM DOS DINOSSAUROS

Segundo a paleontologia, os grandes répteis que conhecemos como dinossauros surgiram há cerca de 220 milhões de anos e dominaram a vida no planeta por toda Era Mesozoica (250 a 65 milhões de anos atrás).

A razão da extinção dos dinossauros teria sido a queda de um meteoro, de 6 a 14 km, que colidiu com a Terra a uma velocidade de 72.000 km/h, dando origem a uma cratera de cerca de 200 quilômetros de diâmetro, na Península de Yucatán, no Golfo do México. Em decorrência do choque, o planeta teria sido coberto por uma imensa nuvem de poeira, que impedia a luz solar de entrar na superfície terrestre.

Sem luz, a temperatura caiu bruscamente e as plantas morreram, porque não tinham como realizar a fotossíntese. Os animais herbívoros morreram de fome e os carnívoros por falta do que comer. Os dinossauros teriam sido extintos em decorrência desse colapso ambiental. Essa é a tese mais aceita pela Ciência.

Alguns cientistas, entretanto, acreditam que a extinção dos dinossauros não ocorreu pela queda do grande meteoro, ou de vários deles, mas sim por mudanças gradativas que já estavam ocorrendo no meio ambiente da Terra naquele momento.

Mesmo com tantas explicações, hipóteses e teorias, a humanidade não tem como saber o que realmente provocou a extinção dos dinossauros. Qualquer que seja a razão, talvez seja bom ouvir o que o dino falou na ONU: “Extinção é uma coisa péssima!”.

PARA FUGIR DE UM “FUTURO SOMBRIO”

A mais importante Conferência do Clima desde a COP21, onde foi assinado o Acordo de Paris, em 2015, a COP26 tratou de uma agenda crítica para o futuro da humanidade. O encontro, considerado a “última

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e melhor esperança” para manter a temperatura do planeta no limite de até 1,5º C em 2030, contou com a participação de delegações de 191 países.

O ambiente geral da COP26 foi de urgência na tomada de decisões para fugir de um “futuro sombrio”, conforme as palavras iniciais da secretária-executiva da Convenção do Clima, Patricia Espinosa, na abertura da Conferência, no dia 31 de outubro.

Adiada por um ano por causa da pandemia, a abertura da COP26 também contou com o discurso da ministra do meio ambiente do Chile, Carolina Schmidt, presidente da COP25, e de Alok Sharma, presidente da COP26 e membro do Parlamento britânico. Por duas semanas, presidentes, ministros e outras autoridades discutiram alternativas para colocar em prática o conceito de “justiça climática”, para frear o aquecimento global.

Com relação aos compromissos dos Estados, há novidades positivas, que provavelmente não mudarão a tendência dominante. A China anunciou zerar emissões líquidas de CO2e até 2060; e a Índia, até 2070 – distantes da pretensão da COP de zerar as emissões líquidas globais até 2050. E uma terceira, da parte do Brasil, que anunciou a meta de zerar as emissões líquidas até 2050, sendo que, anteriormente, a data se referia em até 2060 – que abordaremos mais adiante.

Olhando pra trás, vê-se que os compromissos nacionais na COP21 eram, desde então, insuficientes para atingir metas globais. Olhando para a frente, vê-se que os novos compromissos nacionais (novas NDCs) assumidos na COP26 também não são suficientes para atingir as metas globais renovadas, nos tempos anunciados.

A COP26 ocorreu em um ambiente dominado pelo pessimismo e pela sensação de fracasso, fazendo com que a União Europeia, muito sensível ao tema, onde os partidos ambientalistas aumentaram sua infl uência política, e os Estados Unidos, sob a presidência de Biden, ameaçado pelo trumpismo, articularam e impuseram acordos parciais extraofi ciais, como o Compromisso Global sobre Metano (96 países), que se propõe reduzir em 30% as emissões deste gás até 2030; e a Declaração sobre Florestas (106 países), que assinala compromissos com a conservação das fl orestas e resiliência das comunidades indígenas e rurais.

Fora isso, a eterna pressão dos países em desenvolvimento para que os países industrializados cumpram a meta de apoiá-los fi nanceiramente na transição climática. E o interesse do capital em regulamentar o chamado mercado de carbono, ofi cial e não ofi cial, a partir do qual se dispõe a exercer sua hegemonia para além da execução dos programas de transição climática nacionais, como

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o Green New Deal dos Estados Unidos, o Pacto Ecológico Europeu e o plano de transição energética do 14º Plano Quinquenal da China.

O BRASIL NA COP26

Nem o presidente Bolsonaro nem o vice-presidente, General Hamilton Mourão, que preside o Conselho Nacional da Amazônia Legal e estava designado para chefiar a comitiva, participaram do mais importante encontro sobre meio ambiente do planeta. O ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, representou o Brasil na COP26.

A delegação, encabeçada por Joaquim Leite, o ruralista que substituiu Ricardo Salles, foi a Glasgow para passar o chapéu e fazer um esforço patético para reverter a péssima imagem do Brasil destruidor do meio ambiente no exterior.

Mas, infelizmente, o governo anti meio ambiente do Brasil não parece ter ouvido a mensagem do dino e, também, mesmo que tivesse ouvido, exceto por uma óbvia pedalada climática, não tinha o que apresentar. Mesmo a proposta de reduzir o desmatamento soou como um engodo.

Desde o início deste governo, não há nada de sustentável na política brasileira. Ao contrário, os que deveriam cuidar da natureza em nosso país só protagonizam escândalos: queimadas que alarmaram o mundo, onças de patas queimadas e, pior, crianças indígenas sugadas por dragas da mineração sob os olhos omissos do governo federal.

Sem metas cumpridas para a redução dos gases de efeito estufa, e com recorde de desmatamento na Amazônia, o governo Bolsonaro protagonizou, na COP26, mais um vexame internacional. O próprio General Mourão justificou a ausência do presidente brasileiro: “Ele vai chegar num lugar e todo mundo vai jogar pedra nele”.

PEDALADA CLIMÁTICA DO GOVERNO BOLSONARO

O Brasil apresentou sua primeira NDC em 2016 (governo Dilma), com as seguintes metas: reduzir em 43% as emissões de CO2e em 2030, tendo como referência o total de 2,1 Gt CO2e emitidos em 2005 (logo, suas emissões deveriam atingir no máximo 1,2 Gt CO2e, naquela data) e zerar as emissões líquidas em 2060.

Em dezembro de 2020, o governo Bolsonaro ratifi cou a mesma meta de redução de 43%, mas sob um novo dado de referência de 2,8 Gt CO2e em 2005 (após revisão do Inventário de Emissões), o que autorizaria o Brasil a emitir 1,6 Gt CCO2e, isto é, mais 400 milhões de toneladas de CO2e.

O movimento ambientalista do Brasil e do Mundo apontou a manobra contábil, apelidada de “pedalada climática” e, sob pressão, o ministro do Meio Ambiente do Brasil, em 1/11/2021, anunciou na COP26 a nova meta de 50% das emissões totais de 2005, aproximando-se do quantitativo assumido em 2016.

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CAPA

Enfim, o Brasil deu um passo à frente e dois atrás... e agora um passo à frente, para ficar atrás do que propunha em 2016.

À margem da COP26, o Brasil assinou a Declaração sobre Florestas e o Compromisso Global sobre Metano. Pela primeira, assumiu o compromisso de promover a conservação das florestas e respeitar os direitos dos povos indígenas, o que implica em zerar ou reduzir sensivelmente a conversão da floresta em pastagens e monocultura de soja; e, pelo segundo, reduzir as emissões de metano em 30% até 2030, isto é, reduzir as emissões de CH4 pela pecuária.

Esses compromissos terão consequências. O enfrentamento político com o agronegócio, responsável por 78,5% do total de emissões de CO2e acumulado de 1970 a 2019 será inevitável. Ou não haverá transição climática, no Brasil.

PÁRIA INTERNACIONAL

No ranking dos países que mais agravaram o aquecimento global em 2020, o Brasil aparece em quinto lugar, atrás apenas de China, Estados Unidos, Rússia e Índia.

Do Acordo de Paris, assinado por 196 países em 2015, para 2020, em vez de reduzir, o Brasil elevou as emissões de gases estufa em quase 5%. Dos cinco setores da economia que respondem pela totalidade das emissões do Brasil, três tiveram alta.

No Brasil, a maior fonte de emissão de CO2 está relacionada com o desmatamento, associado ao agronegócio. Em 2020, o setor registrou uma alta de 2,5%, a maior desde 2010. O desmatamento na Amazônia puxou a elevação das emissões de CO2 em 9,5%, o maior desde 2006.

As emissões de metano pelo arroto do boi (fermentação entérica) também cresceram. O consumo de carne diminuiu, com redução de quase 8% no abate de bovinos; isso também aumentou em 2,6 milhões de cabeças o rebanho nacional.

Na contramão do mundo, que registrou uma queda de 6,7% das emissões de CO2 durante a pandemia, o Brasil teve um aumento de 14% em relação ao ano de 2019. O desmatamento na Amazônia e no Cerrado gerou 998 milhões de toneladas de CO2 em 2020, um aumento de 24% em relação a 2019.

Mas essa devastação não está só na Amazônia. O Pantanal registra os maiores índices de incêndios da história e outros biomas estão sendo gravemente atingidos, em especial pela mineração em terras indígenas.

Sob o governo Bolsonaro, o Brasil, que é o G1 da biodiversidade, trabalha contra a proteção dos recursos naturais e estratégicos do país. O Brasil, que antes era li derança entre os países no debate

internacional sobre as mudanças climáticas, hoje está fora da agenda e das mesas de negociação.

Obviamente, a questão climática é global, mas o atual governo brasileiro, centrado no negacionismo sanitário, no desprezo ambiental e no terraplanismo diplomático, não faz o menor esforço para ajudar a salvar o planeta.

Depois de quase 610 mil mortos na pandemia da Covid-19, das imagens dos famintos disputando lixo e sob a indiferença de Jair Bolsonaro para com o sofrimento do povo brasileiro, o Brasil está desacreditado no mundo da justiça e do meio ambiente. Bolsonaro transformou o Brasil em pária internacional.

TXAI SURUÍ

Enquanto o alto comando da Nação brasileira se fazia ausente em Glasgow, organizações da sociedade civil e lideranças do movimento social brasileiro marcaram forte presença na COP26.

Já na cerimônia de abertura, o Brasil da resistência em defesa do meio ambiente falou pela voz contundente de Walala Txai Paiter-Suruí:

– Meu nome é Txai Suruí. Eu tenho apenas 24 anos de idade, mas meu povo vive na Amazônia há pelo menos 6 mil anos. Meu pai, o grande chefe Almir Suruí, me ensinou que nós devemos ouvir as estrelas, a lua, o vento, os animais e as árvores. Hoje, o clima está aquecendo. Os animais estão desaparecendo. E nossas plantas já não florescem como antes. A Terra está falando. Ela nos diz que já não temos tempo. Uma pessoa amiga me disse: “Até quando vamos continuar pensando que podemos curar as feridas do mundo com pomadas e analgésicos, quando sabemos que amanhã a ferida será maior e mais profunda”? Precisamos ter a coragem de buscar outro caminho, agora, com mudanças corajosas e globais. Não em 2030, não em 2050, mas agora! Enquanto vocês continuam fechando os seus olhos para a realidade, um defensor da fl oresta, Ari-Uru-Eu-Au-Au, meu amigo desde que eu era criança, foi assassinado por proteger a Amazônia. Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática. Por essa razão, devemos estar no centro das decisões tomadas aqui. Nós temos ideias para adiar o fi m do mundo. É hora de frear as emissões de promessas irresponsáveis e mentirosas. É hora de acabar com a poluição das palavras vazias. É hora de lutar por um futuro em um planeta habitável. É necessário sempre acreditar que o sonho é possível. Que a nossa utopia seja a chance de termos um futuro na Terra.

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CAPA

CONCLUSÃO

Em Glasgow estiveram reunidos dirigentes dos Estados nacionais e uma diversidade enorme de representações dos povos e segmentos das sociedades, discutindo as razões e as consequências da elevação da temperatura média da superfície da Terra em 1,1º C já em 2020.

Importante notar que esses mesmos Estados nacionais se comprometeram em 2015, pelo Acordo de Paris, a “manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2º C e envidar esforços pra limitar esse aumento de temperatura de 1,5º C em relação aos níveis pré-industriais”, até o final do século (Art. 2º, a).

O mundo ficou estarrecido porque o futuro foi antecipado como demonstrou o Relatório “Mudança Climática 2021: A base da ciência física”, elaborado pelo Painel Intergovernamental de Mudança do Clima (IPCC, sigla em inglês). Após analisar as novas metas apresentadas pelos países à COP26, o IPCC concluiu:

1. Se não se reduzirem drasticamente as emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa, e alcançar zero líquido das suas emissões por volta do ano 2050, o cenário

DELEGAÇÃO INDÍGENA

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) levou a Glasgow uma comitiva de mais de 40 indígenas de diversas etnias, uma das mais expressivas delegações da sociedade civil junto à COP26.

Sonia Guajajara, coordenadora-executiva da Apib, reforçou o tema da Campanha “Demarcação Já: Não existe solução para crise climática sem Terras e Povos Indígenas”, lançado na segunda-feira, (1/11). A pauta principal da Apib em Glasgow foi “alertar o mundo sobre a necessidade e a urgência em demarcar o território e proteger a vida dos povos indígenas do planeta”, declarou Sonia em vídeo.

Na sexta-feira (5/11), a jovem militante Greta Thunberg puxou os protestos pelo movimento Fridays for Future (Sexta-feira para o Futuro). Daqui, 12 jovens de todas as regiões do país participaram das atividades do movimento, conhecido no Brasil como Greve pelo Clima.

Durante todo o período da COP26, as ruas da capital da Escócia, Edimburgo, cidade medieval próxima a Glasgow, foram ocupadas por ativistas que carregavam cartazes cobrando respostas rápidas dos líderes mundiais. As representações da sociedade civil brasileira marcaram presença em todos eles.

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CAPA

mais provável é de elevação da ordem de mais de 2,7º C ao fi nal do século XXI; e,

2. A mudança do clima já é realidade com a elevação de mais 1,1º C na temperatura média global: eventos climáticos extremos se tornaram mais frequentes e se tornarão mais graves, a continuar o padrão atual de emissões.

3. Conclusão: até agora, o Acordo de Paris

fracassou. E a COP26 se mostrou incapaz de reverter essa tendência. É importante entender que a COP26 aconteceu sob uma conjuntura desfavorável.

De um lado, porque as lutas da cidadania ambiental que se expressam em estudos, notas e posicionamentos em variados fóruns, foi constrangida pela pandemia de Covid-19 a não usar da sua principal tática, as manifestações de rua.

De outro lado, os Estados Unidos – principal emissor histórico – se transformaram em primeiro produtor mundial de petróleo e, sob o governo Trump, o país se retirou do Acordo de Paris, pretendendo esvaziar a agenda ambiental.

Ali se redesenhou a sua política externa dentro de uma estratégia de confrontar a China,

principal adversário comercial, e a Rússia, principal adversário militar.

Biden, presidente atual, supostamente crítico da política trumpista, ampliou essa estratégia de confrontação comercial e militar para todas as áreas das relações internacionais, inclusive na temática ambiental, transformada em instrumento de disputa da hegemonia global.

Isso explica as ausências presenciais de Xi Jiping, presidente da China – principal emissor da atualidade – e de Vladimir Putin, da Rússia, na COP26, assim como na reunião do chamado G-20, em Roma, que antecedeu a Conferência.

Gilney Viana – Ambientalista. Professor Universitário. Escritor.

Zezé Weiss - Jornalista Socioambiental.

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BIODIVERSIDADE

Helho e Nani

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SOBRE A BALEIA JUBARTE

Seu nome científico é Megaptera novaeangliae. As baleias Jubarte eram comuns em todos os oceanos, mas com a caça comercial foram dizimadas, existindo hoje apenas cerca de 10 mil exemplares, distribuídos em pequenos grupos isolados. Elas são conhecidas pela capacidade de emitir um conjunto de sons, que se assemelham a um canto. Uma Jubarte chega a 15 metros de comprimento, pesando 40 toneladas. Apesar deste tamanho todo, possui a garganta estreita como a de outras baleias, só podendo se alimentar de coisas pequenas.

Será que não veremos mais O submarino de Jonas O submarino da Paz?

Baleia Jubarte que canta e brinca na tona Submarino que não detona.

Baleia Jubarte

Helho (Hélio Bueno), ilustrador e escritor, em Desextinção, Fundação Rio-Zoo – Thex Editora, 1997.

Nani (Ernani Diniz Lucas), humorista e escritor, em Desextinção, Fundação Rio-Zoo – Thex Editora, 1997. Faleceu em 08/10/2021, vítima da Covid-19.

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Defender a política de cotas raciais em uma nação tão marcada pela herança

escravocrata, em um País que figura entre os 10 mais desiguais do mundo,

é reconhecer que as pessoas não partem do mesmo lugar nem ocupam os

mesmos espaços e ajudar a construir uma sociedade mais justa.

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Kleytton Morais

NOVEMBRO, MÊS DA CONSCIÊNCIA NEGRA: TEMPO DE LUTAR E DE REFLETIR SOBRE PRIVILÉGIOS

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Kleytton Morais - Líder Sindical. Presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília.

Neste novembro da Consciência Negra, compartilho com vocês este texto da CUT-DF, fundamental para a nossa reflexão na luta.

Bruno (nome fictício), 29 anos, é um profissional bem-sucedido. Apesar da pouca idade, conquistou um lugar de destaque em sua área, o que foi resultado de muito empenho, uma vez que o rapaz não veio de família abastada. Mas nem tudo foi um mar de rosas. Ele relembra que, em uma de suas entrevistas de emprego, sentiu o peso do racismo de uma forma muito emblemática.

“Assim que eu cheguei ao local, percebi o olhar da entrevistadora sobre mim. Ela me via de cima, cheia de desdém. Enquanto esperava para ser atendido, chegou uma moça loira, bem dentro do padrão de beleza midiático e no mesmo momento, e a mulher que faria a entrevista falou para ela: ‘você tem o perfil da empresa, é exatamente o que estávamos procurando’. Naquele instante eu senti que fiz o processo seletivo por fazer, eu não seria contratado”, relatou. Bruno ainda afirmou que sente cotidianamente, a perseguição em lojas e supermercados. “Sempre tem um guardinha à espreita”, revelou.

A história do jovem infelizmente não é um caso isolado. Bruno faz parte de um grupo de pessoas que é constantemente subjugado pela cor de sua pele.

Para a pesquisadora e cientista social Ludmila Jardim, o racismo tem suas origens na escravidão, que foi um dos primeiros motores para o genocídio da população negra do Brasil.

“O processo abolicionista também teve seu papel nisso. A abolição feita de uma forma gradativa visava à exclusão total da população negra na busca de uma sociedade de padrão eurocêntrico e levou a um patamar mais denso desse genocídio. Esse processo começou a ser fatal, não só em relação aos nossos corpos, mas em relação ao nosso cabelo, ao conhecimento produzido pela nossa população, em relação à negação da nossa identidade, em relação a nossa própria identidade, e isso a gente chama efetivamente

de epistemicídio, que é a morte de tudo o que é ligado a um determinado povo”, explica.

A pesquisadora também destaca que o processo de construção das favelas contribui para a segregação dos povos negros. “Transformaram esse espaço (favela) em um lugar restrito que facilita a identificação dos povos marcados pela colonização, e o Estado consegue aplicar as suas técnicas de controle social de forma mais efetiva e direcionada”.

Segundo o Atlas da Violência de 2021, em 2019, 66% das mulheres assassinadas eram negras. Os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2.

Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Em outras palavras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior que entre não negras.

Para celebrar o mês da Consciência Negra, o Bancários-DF publica este texto produzido pela CUT-DF. Estamos juntos na luta por mudanças e na reflexão sobre os privilégios que, infelizmente, prosperam em nosso país.

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CHILE:LABORATÓRIO DE EXPERIÊNCIAS POLÍTICAS NA AMÉRICA LATINA

Emir Sader

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parte protagonizadas pelos estudantes. Com grandes mobilizações por todo o país, a partir de reivindicações contra o aumento dos preços dos transportes, elas se transformaram rapidamente em mobilizações que passaram a reivindicar uma Assembleia Constituinte, que liquidasse com as heranças do período pinochetista, assim como a superação do modelo neoliberal.

A eclosão da pandemia interrompeu aquelas manifestações, não impedindo o contínuo desgaste do apoio do governo de Sebastián Piñera. Até que as manifestações foram retomadas e desembocaram na convocação de uma Assembleia Constituinte e nas eleições presidenciais de 2021.

Foi uma nova geração de líderes, que conformam a nova esquerda chilena, organizada em torno da Frente Ampla, que agrupa uma grande quantidade de novas organizações. A nova esquerda convocou uma disputa para definir o seu candidato à presidência do Chile e, com o candidato a Frente Ampla, Gabriel Boric – que tinha sido líder estudantil –, triunfou sobre o candidato do Partido Comunista.

Enquanto isso, a Assembleia Constituinte foi convocada, eleitos os deputados constituintes, a grande maioria dos quais provenientes de novas gerações de dirigentes. Iniciou a construção da nova institucionalidade chilena, paralelamente à eleição do novo presidente do país.

As pesquisas indicam o favoritismo de Gabriel Boric, candidato da Frente Ampla, seguido pelo candidato da extrema direita, José Antonio Kast. São seguidos pelos candidatos da Democracia Cristã, que é apoiado pelo presidente Sebastian Piñera.

Desde que o Chile terminou com o voto obrigatório, a participação eleitoral se reduziu muito, a menos da metade, com especial ausência dos votos dos jovens. Esta vez se espera uma participação maior, mas da sua porcentagem dependerá, em boa medida, o resultado eleitoral de 21 de novembro no primeiro turno e 19 de dezembro o segundo.

O Chile retoma assim seu caráter de laboratório de experiências políticas na América Latina, com uma eleição exemplar, não apenas porque protagonizada por uma nova esquerda, mas também porque tem paralelamente o desenvolvimento da Assembleia Constituinte.

Engels chamava a França de laboratório de experiências políticas, onde os acontecimentos se dariam da forma mais radical, da Revolução de 1789, passando pela Revolução de 1848, até chegar à Comuna de Paris. O Chile é o país que acumulou experiências políticas mais expressivas na América Latina, merecendo esse título para o nosso continente.

Já no final do século XIX o Chile foi cenário do surgimento das primeiras formas de organização dos trabalhadores, pela existência das minas e das primeiras formas da classe operária. No início do século XX, na Escola Santa Maria de Iquique, no norte do Chile, se deu o primeiro grande massacre do século.

No fi nal da segunda década do século, foram fundados os Partidos Socialista e Comunista. No começo da década de 1920, Luis Emilio Recabarren – fundador do PC no Chile e na Argentina – foi candidato a presidente do país.

Na década de 1930, o Chile foi o único país da América Latina a ter um governo de Frente Popular, com ministros das duas centrais sindicais da época. Já na década de 1950, Salvador Allende foi candidato lançado pelos partidos socialista e comunista à presidência do Chile. Candidatura que voltou a concorrer por três vezes mais, antes de ser eleito o primeiro presidente socialista no Ocidente, em 1970.

O Chile protagonizou assim a única tentativa de construção do socialista pela via eleitoral, de 1970 a 1973. Como reação violenta a essa tentativa, o Chile teve a ditadura militar mais simbólica do período em todo o continente, com o general Augusto Pinochet.

Derrotado em um plebiscito convocado por ele mesmo, Pinochet não pôde voltar a se candidatar à presidência do Chile, conforme a Constituição imposta por ele mesmo, em pleno estado de sítio. Se iniciou assim, em 1990, a transição democrática, que teve no Chile características particulares.

Uma coalizão dos partidos democrata cristão e socialista protagonizou os governos pós-ditadura militar no Chile, mas mantendo a política econômica neoliberal herdada, assim como a Constituição do regime pinochetista, com algumas modifi cações. Foi assim uma transição que misturava a democracia liberal como sistema político, com a economia neoliberal.

O acúmulo de contradições não resolvidas só foi explodir em 2019, depois de um ciclo de várias mobilizações de massa, em grande

Emir Sader - Sociólogo. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.

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CONSCIÊNCIA NEGRA

Pedro Tierra

Ao comandante Carlos Marighella, assassinado em

4 de novembro de 1969.

TEU NOME NOS OLHOS FAMINTOS DOS FILHOS DO POVO.

TEU NOME COMO A BANDEIRA FERIDA DOS SAQUEADOS.

TEU NOME MURMURADO À MESA DOS OPRIMIDOS.

TEU NOME EXILADO DOS DICIONÁRIOS DA SOMBRA.

TEU NOME SANGRANDO A NEUTRA SUPERFÍCIE DO MURO.

TEU NOME GRAVADO NA MÃO ESQUERDA DE TEUS FILHOS.

TEU NOME RECOMPOSTO NO FOGO MARTELADO DOS FUZIS.

TEU NOME

Pedro Tierra – 1974.

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CONSCIÊNCIA NEGRA

20 DE NOVEMBRO: Dia Nacional da Consciência Negra

Iêda Leal

No dia 28 de outubro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou por votação quase unânime (8 votos a 1) que o crime de injúria racial pode ser comparado ao de racismo e considerado imprescritível.

Injúria racial é qualquer ofensa direcionada às pessoas que seja baseada em sua raça, cor, etnia, religião, idade ou defi ciência, com pena que pode chegar a 3 anos de reclusão. O Brasil é um país estruturalmente racista, atualmente comandado por um presidente genocida que apenas reforça estereótipos e preconceitos.

No Brasil, diariamente negras e negros sofrem nas mãos de racistas. Atualmente existe uma lei que assegura de forma mais efetiva os nossos direitos, existe a possibilidade de buscar por justiça, mas ainda há um caminho grande para ser percorrido.

1¯ caso: Frentista de posto no DF denunciou idosa de 80 anos por crime de injúria racial

Temos batalhado diariamente e conseguido avanços, mas a luta não para. Recentemente, na capital federal, uma idosa de 80 anos foi condenada pelo crime de injúria com um ano de reclusão e dez dias-multa pela 1ª Vara Criminal de Brasília, por proferir palavras de cunho racista para uma frentista de um posto. A defesa pediu a diminuição da prescrição pela metade do tempo, o que foi negado pelo STF.

2¯ caso: Dono de bar é indiciado em Goiânia Ano passado, mais precisamente em 31 de outubro

de 2020, aconteceu em Goiânia um caso de racismo que repercutiu bastante.

Durante um momento de lazer, Sarah Silva Ferreira estava com sua irmã e uma amiga em um bar, identifi cado como “Buteko do Chaguinha”, localizado no Setor Jardim América, quando o próprio dono do estabelecimento se aproximou de sua mesa e proferiu a seguinte frase: “vim conferir para ver se era gente mesmo, ou uma raposa na sua cabeça” (referindo-se ao seu cabelo black power). Posteriormente, fi cou rindo em tom de deboche, assim como as outras pessoas ali presentes.

Sarah afi rmou que só queria ter tido uma noite tranquila com sua irmã e sua amiga: “eu não vou prender o meu cabelo ou tentar me embranquecer”, desabafou a estudante em suas redes sociais.

A jovem registrou uma ocorrência online na 7ª Delegacia de Polícia Civil de Goiânia. Segundo o documento, as ofensas foram acompanhadas de muitas risadas e tons de deboche proferidos pelo dono do bar e por um cliente que ali estava. Diante de tamanho constrangimento, Sarah pediu a conta e foi embora. Importante dizer que não é a primeira vez que isso acontece no local.

Ambos os casos demonstram o quanto faz falta um projeto nacional de políticas públicas para a eliminação do racismo, assim como ter ações pontuais nas cidades para que a comunidade possa se envolver na busca por respeito aos direitos de cada um e de cada uma. É preciso fazer com que as câmaras municipais e as assembleias legislativas possam ajudar concretamente na elaboração e na fi scalização das leis que protejam os direitos de cada cidadão, de cada cidadã.

O Brasil hoje é um país carente de políticas afi rmativas. O estudo “Síntese de Indicadores Sociais” mostra a situação no mercado de trabalho, onde a renda e as condições de moradia são desiguais conforme a cor e a raça dos brasileiros e das brasileiras. Esse dado só confi rma as inúmeras denúncias que o movimento negro vem fazendo e a importância das ações que são organizadas para denunciar e exigir punições aos racistas

Não há justificativas para o racismo e a injúria racial. Não podemos aceitar que esses episódios sejam diminuídos a pequenas equivalências. Tudo aquilo que for proferido de forma desrespeitosa, seja o que for, deve ser pago na justiça.

20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra.

Zumbi e Dandara inspiram nossas lutas, seguiremos em marcha para

FAZERMOS PALMARES DE NOVO!

Iêda Leal – Tesoureira do SINTEGO / Secretária de Combate ao Racismo da CNTE / Coordenadora Nacional do MNU / Coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia Gonzalez / Secretária de Comunicação da CUT-Goiás

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Celina Dias Azevedo

LITERATURA

DUAS MULHERES VELHASE A ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS!

Na gerontologia costumamos nos referir a velhices, no plural, ao invés de velhice, no singular, para denotar o quanto o envelhecimento é um processo individual e sujeito a questões diversas para além do biológico.

Assim, reforça-se, também, a ideia de que não existe um “modelo” que deva ser seguido para envelhecer, a tal “boa velhice”, seja lá o que signifi que, não será a mesma para todes. Por outro lado, diversas pesquisas comprovam que na contemporaneidade a cor da pele de quem envelhece, essa sim, promove diferenças em como os seres humanos vivem sua velhice.

Investigações já escancaram para toda sociedade, como a raça/cor estão relacionadas a desigualdades na saúde, por exemplo, e como o racismo e a iniquidade as explicam.

O Mapa da Desigualdade de São Paulo, da Rede Nossa São Paulo, mostra como os dois distritos com maior proporção de população negra entre seus habitantes, Jardim Ângela (60%) e Grajaú (57%), apresentaram alto número de óbitos por Covid (507) em contraposição aos dois distritos com menor proporção de população negra entre seus habitantes, que são Alto de Pinheiros (8%)

É preciso questionar: por que uma das candidatas, Conceição Evaristo, teria que fazer campanha enquanto a outra, Fernanda Montenegro, já está eleita na Academia Brasileira

de Letras? Por que se rejeita uma escritora consagrada pela crítica e pelo público?

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Celina Dias Azevedo – Socióloga. Matéria publicada originalmente no Portal do Envelhecimento https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/

LITERATURA

para disputar a cadeira 17 da ABL com a atriz”, em um gesto que pode ser entendido como uma homenagem, ninguém se inscreveu para disputar a vaga com ela e o prazo para novas candidaturas já teria expirado.

Não colocamos em discussão aqui o talento para dramaturgia de Fernanda, tampouco o reconhecimento de Conceição como importante premiada escritora contemporânea. Estamos diante de duas mulheres velhas, potentes, criativas, que transformam suas vidas em obra de arte. Não, não é essa discussão.

O que queremos colocar em evidência e refletir é como duas mulheres velhas – uma negra e outra branca – ocupam, devido ao racismo estrutural, lugares diferentes nesta sociedade racista, machista e gerontofóbica. Não fica evidente que esses sistemas de opressão se articulam e atuam conjuntamente, nesse episódio?

Refiro-me aqui, rapidamente, à interseccionalidade que nos aponta como múltiplas formas de opressão impõem-se às mulheres negras devido a condições de vida e relações de poder, por isso a importância de olharmos e analisarmos essas questões de maneira interseccional e não isoladamente.

Certamente, há outros elementos que não são divulgados e/ou expostos – sobre a eleição da ABL –, mas o que podemos perceber no que está visível suscita perguntas: por que uma das candidatas teria que fazer campanha enquanto a outra já está eleita? Por que se rejeita uma escritora, autora de diversas obras consagradas pela crítica e pelo público?

Sendo ambas artistas, atriz e escritora, o que faz com que uma delas receba todas as mesuras, cumprimentos repletos de delicadeza e de cortesia, salamaleques, enquanto para a outra prega-se que não “acompanhou os rituais”? O que as diferencia para que uma tenha que esforçar-se para conquistar algo e a outra receba como homenagem e cortesia a ausência de adversários, oponentes, para que fi que tranquila e conquiste seu objetivo?

Precisamos, devemos parar e refletir acerca dos valores que cercam tais episódios em nossa cultura. É preciso ter olhos para ver. É preciso questionar a todo momento. São esses exemplos no cotidiano que nos apresentam e deixam entrever como os mecanismos de exploração são reinventados, são revestidos de outras roupagens, mas continuam a ferir e a oprimir.

Fica aqui um Salve! para Conceição e Fernanda: duas mulheres velhas!

e Moema (6%), e acabaram por registrar baixo número de falecimentos por Covid (110).

Poderíamos trazer aqui outras tantas investigações que apontam para essas “diferenças” no processo de envelhecimento. Mas, não é o tema principal que nos estimula e, por isso, depois deste introito convido minhes leitores a me acompanharem nesta reflexão que, a princípio, não tem ligação com o que está posto acima, mas, peço, por favor, um pouco de paciência, ainda!

A mídia nos deixa saber que está em andamento a eleição em que preencherão vagas para a ABL – Academia Brasileira de Letras – instituição literária fundada no século XIX, que teve como primeiro presidente Machado de Assis, um dos maiores escritores da literatura universal, escritor negro nascido no Brasil.

Como candidata a uma das cadeiras encontra-se a atriz de teatro, cinema e televisão Fernanda Montenegro. Figura valorosa de nossa cultura, de nosso país e, sem dúvida, admirada e amada. Além de Fernanda há outros candidatos às cadeiras vagas, mas o que chama a atenção e aqui, cares leitores, chego ao ponto que gostaria de expor e refletir com todes.

Em 2018 a escritora Conceição Evaristo, mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, também se candidatou a uma cadeira na ABL. Na ocasião, saudou-se a possível entrada da primeira mulher negra na academia.

CONCEIÇÃO NÃO FOI ELEITA, EM 2018!

A não eleição de Conceição e as vagas disponíveis para este ano de 2021 voltaram aos principais noticiários no Brasil. Em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Conceição, instada, falou sobre a ABL, sua candidatura, sua não eleição.

Em matéria publicada em importante veículo da imprensa sobre as eleições de 2018, me chamaram a atenção as respostas de alguns membros da ABL sobre o episódio.

Conceição não teria seguido alguns “rituais” como, por exemplo, procurar apoio entre os “imortais” para obter votos para si, promover seu marketing pessoal ou, ainda, que teria “forçado” sua candidatura. “Nunca recebi um telegrama dela” informa outra “imortal” e, agora sim, cares leitores, chego ao ponto de minha reflexão.

A mesma matéria apresenta a fala de outro “imortal” sobre como Fernanda, candidata para a eleição de 2021, não precisaria nem ao menos fazer “campanha”, porque já estaria eleita.

Para comprovar tal afi rmação, outro veículo nos anuncia que “Em sinal de respeito, não houve inscritos

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Eduardo Galeano

A DAMA QUE ATRAVESSOU TRÊS SÉCULOS

Alice nasceu escrava, em 1686, e escrava viveu cento e dezesseis anos. Quando morreu, em 1802, morreu com

ela uma parte da memória dos africanos na América. Alice não sabia ler nem escrever, mas

estava toda cheia de vozes que contavam e cantavam lendas vindas de longe e, também, histórias vividas de perto. Algumas dessas histórias vinham dos

escravos que ela ajudava a fugir. Aos noventa anos, ficou cega. Aos cento e dois, recuperou a visão: –Foi Deus, disse. Ele não poderia me

falhar.

HISTÓRIA SOCIAL

Era chamada de Alice do Ferry Dunks. Ao serviço de seu dono, trabalhava no ferry que levava e trazia passageiros no rio Delaware. Quando os passageiros, sempre brancos,

debochavam daquela velha velhíssima, ela os deixava abandonados na outra margem do rio. Eles a chamavam aos gritos, mas não havia

jeito. Era surda a que havia sido cega.

Eduardo Galeano – Escritor Revolucionário, em Os Filhos dos Dias, Editora L&PM, 2ª edição, 2012.

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Gloria Moura – Pesquisadora, em Estórias Quilombolas, MEC, 2010. Narração: coletiva Comunidade: Kalunga, GO. Ano: Junho/2000.

Gloria Moura

O MORRO ENCANTADO

A comunidade Kalunga conta que atrás do Morro do Moleque existe um morro encantado que ninguém nunca conseguiu subir.

Muitas pessoas já tentaram, mas quando estão no meio do caminho, começam a escutar barulho de gado mugindo, gente falando, cachorro latindo. Ficam tontas e não conseguem continuar.

Voltam correndo, com medo, porque no morro não tem ninguém e nãow sabem de onde vem essa barulhada. Dizem que isso é por causa do ouro que existe dentro da terra.

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A Mãe do Ouro protege o morro, afastando os garimpeiros ambiciosos com esses barulhos.

Os Kalunga ainda não descobriram como quebrar esse encanto. Quem conseguir, vai poder explorar o ouro do morro e vai ficar muito rico.

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Maria Maia – Escritora. Cineasta. Poeta.

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TUDO ERA GERAIS E OS GERAIS ERAM DE TODOS

Altair Sales Barbosa

Há cerca de duas ou três gerações, o Cerrado que ocupava os chapadões centrais da América do Sul ainda se nos apresentava, quase em sua totalidade, intacto. A confi guração era separada aqui e ali por alguns núcleos urbanos, poucos já com porte de cidade grande, mas a maioria se tratava de núcleos pequenos. Não existiam estradas asfaltadas cortando o ambiente de norte a sul, de leste a oeste, também as estradas de terra eram poucas. Os lugares eram longínquos, e a felicidade ditava as normas do comportamento da gente do lugar. Extensas campinas, veredas, sertões e tabuleiros e ermos formavam o que a população denominava Gerais.

Em meio a esse vazio humano, variadas comunidades vegetais e animais davam as graças, ladeadas pelos córregos, lagoas e rios de águas cristalinas. Lá pelos fundões e ermos, existiam pequenos povoados, onde as gentes eram amparadas. Esses povoados se situavam de forma quase que equidistante e poderiam ser alcançados após um dia a cavalo.

A economia ali era um misto de subsistência e extrativismo, sendo que a atividade extrativista era principalmente baseada na coleta e no processamento de frutos variados, entre os quais pequi, buriti, mangaba, cajuí, puçá, e também na fabricação de rosários de cocos da palmeira licuri e da castanha do pequi.

A subsistência era representada por paisagens com pequenos roçados nos fundos dos quintais, irrigados por um rego d’água oriundo das partes mais altas de um riacho, ou rio, e pela criação de poucas cabeças de gado e outros animais domésticos.

A vida dos homens se resumia na lida com pouco gado, no cuidar das plantações, dos negócios e dos pequenos comércios ali existentes.

Vez ou outra, andarilhos e algumas andarilhas zanzavam por entre os povoados. Alguns eram adotados pela população e se tornavam patrimônios do lugar. Um desses era conhecido por onde passava pelo apelido de Zuza Doido.

Zuza Doido era um andarilho do Cerrado, ninguém sabia sua origem. Não tinha moradia, vivia perambulando

pelos gerais e, às vezes, segundo o próprio, partia da foz de um rio e ia até as suas cabeceiras, como falava. Quando estava muito cansado, fazia pouso em algum lugar desabitado e se transformava numa espécie de inquilino provisório daquele local. O apelido lhe foi dado pela gente de algum povoado, onde vez ou outra aparecia e onde fi cava alguns poucos dias.

Ele parecia ser grande observador, sabia distinguir em detalhes as plantas do Cerrado, atribuindo a cada uma nome apropriado. Da mesma forma explicava as diferenças entre os animais, falava sobre os dentes destes, sobre a pele, a cor, os sons e os hábitos. Era na realidade um professor nato de história natural, mas, em virtude dos trajes maltrapilhos, poucos prestavam atenção aos seus causos recheados de sabedoria.

Zuza Doido era pacífico, não fazia mal a ninguém, e gostava de ensinar novidades que advinham da observação. Ficava feliz quando alguém lhe dava uma muda de roupa, ou um cobertor de algodão. Certa vez, dançou de alegria quando ganhou uma rede de presente e um velho alforje.

Assim era Zuza. Chegava, depois sumia, e ficava tempos sem aparecer.

Um belo dia, em época mais recente, chega a alguns daqueles povoados a energia elétrica. O dono de um comércio próspero logo adquire um aparelho de rádio. À noite, muitos moradores vão ao seu comércio ouvir notícias de outras terras que eles jamais imaginavam existir. E, num misto de alegria, confusão e sabedoria, saem comentando aquelas notícias.

Aquele aparelho, além de outras informações, trouxe a notícia de que o governador da região, com a presença de altos políticos, grandes empresários e autoridades eclesiásticas, iria inaugurar lá para as bandas das campinas e das nascentes dos riachos um grande empreendimento, com imensas áreas a serem plantadas.

Logo o mito do emprego e do enriquecimento fácil chegou ao ar, trazido pelas ondas curtas dos aparelhos de rádio que, àquela altura, já se haviam espalhado pelo povoado. As novas músicas trazidas

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CERRADO

pelo rádio já eram uma diversão maior que todos os festejos e tradições do lugar, que aos poucos foram minguando.

A atração do lugar inaugurado pelo governador foi maior, e a população ativa foi migrando. Dizem que os rapazes trabalham de empreita nas grandes empresas e contraem dívidas que os deixam atrelados ao patrão, sem poderem retornar ou buscar outro rumo. Dizem que ninguém conhece os patrões, mas que estes têm jagunços e capatazes ferozes que são capazes de qualquer atitude.

As mocinhas se prostituíram nos postos de gasolina, nas borracharias, nos bares e em outras edificações que se multiplicavam a cada dia que passava ao longo das rodovias que paulatinamente foram sendo implantadas. As mais velhas se tornaram empregadas domésticas, em casas de piso brilhante, nas novas cidades emergentes.

Cada colheita das novas plantações superava a anterior.

O grande governo do Brasil com seus ministros, sem visão da totalidade, se vangloria com as exportações cada vez mais crescentes. As plantações eram bonitas de se ver, todas arrumadinhas e grandiosas. Para serem feitas eram necessárias grandes máquinas, acorrentadas, para arrancarem as plantas que ali existiam. Era tanta planta derrubada em uma área tão grande que era difícil de acreditar que o mundo tivesse aquele tamanho.

Junto àquelas plantações começaram a surgir carvoarias. No início, para produzir carvão das plantas derrubadas, depois continuaram derrubando noutras áreas. E assim a pujança de um capital predatório foi colocando os chapadões centrais da América do Sul no mapa da economia internacional. Com o tempo, modifi cações aceleradas foram acontecendo.

Tudo se acelerou e eis que numa tarde nublada, lá pras bandas de um dos povoados, já era tardinha quando alguém avistou, numa pinguela do rio Formoso, Zuza Doido chegando, com seu andar já meio trôpego, carcomido pelo tempo.

Sentou-se à porta da pensão do povoado, bebeu água, alimentou-se de um cuscuz com leite e, após alguns momentos, começou a falar:

– Sempre contei a vocês histórias de plantas, bichos, água e terra, mas o que eu vi agora, lá para as bandas das cabeceiras do Lagoão, descendo a serra no rumo do Riachão, são coisas de arrepiar. Algo estarrecedor me chamou atenção. Fiquei impressionado, porque nas minhas andanças pelo Cerrado achava que já tinha visto de tudo.

Todavia, meus amigos, eu sei que vocês acham que sou doido varrido, porque não tenho

moradia, ando pelos quatro cantos dos Gerais. Fiz desse meu viver uma opção de vida, depois que sofri uma grande desilusão, que prefi ro não contar para vocês, para poupá-los do sofrimento alheio. Mas eu vim de uma família rica, que morava lá para as bandas do mar, estudei nas melhores escolas e, quando terminei meu curso na faculdade, a vida me passou uma rasteira. Mas aprendi que quando algo muito ruim acontece, temos duas escolhas: nos destruir ou nos fortalecer. Eu resolvi me fortalecer. Ser forte não é labuta fácil, mas cada um consegue encontrar uma força maior, que nos torna capaz de suportar e largar aquilo que nos fere.

Há certo tempo que só precisamos de mais um tempo, para assimilar, recontar, reviver...

Tem horas que as horas no balanço do relógio fazem o tempo voar, num vai e vem, a brisa da noite chega na janela da varanda, apenas um balanço, uma rede e um relógio na parede; outrora já se passou mais meia hora, e o tic tac a zoar, um vasto vazio, a falta de alguém, os sonhos vividos, os amigos esquecidos... e a vida vai andando nas setas do relógio, se a gente não se apressar, pode chegar atrasado e nem mais vestígios da felicidade nós vamos encontrar.

Este sou eu, não sou doido e aprendi a me juntar aos bons para crescer. Mas o que vou contar agora é a coisa mais impressionante que um vivente já viu. Vi com estes olhos que me “alumeiam”.

Quando passei a orla de taquari, que mascarava o paredão de calcário, vi o inferno se descortinar à minha frente. Dezenas de máquinas possantes acorrentadas atirando ao chão todas as espécies de plantas que estavam em pé. Não acreditei no que vi. Naquele momento, várias imagens passaram pela minha memória, ilustrada por animais, plantas dos remédios, frutas, resinas, ninhos de passarinhos, rios e muitos outros mundões.

Olha, eu vi o fi m do mundo! Diante daquele panorama, foi me dando uma tonteira! Não sei se tenho forças para enfrentar o exército

de jagunços que está tirando do povo do Gerais suas plantas, seus frutos aromáticos, suas ervas medicinais, suas águas, com a ajuda de pessoas do local, que vendem suas almas e seus ideais.

A coisa mais triste, mais humilhante que pode acontecer ao ser humano é vender seus ideais, seus sonhos, seus amigos, e isso jamais acontecerá comigo.

Portanto, meus irmãos, vim aqui para me unir aos que têm boa vontade, porque no dia que os pássaros esconderem suas asas, o pequizeiro chorar sua sombra, a borboleta começar a vigiar a rosa e o caminho não levar à fonte, seremos prisioneiros em nossos territórios, prisioneiros de inimigos que sequer conhecemos.

Altair Sales Barbosa - Doutor em Antropologia / Arqueologia. Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfi co do Estado de Goiás. Pesquisador Convidado da UniEvangélica de Anápolis.

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GASTRONOMIA

FARNEL DO VALEDO RIBEIRA

Ana Luiza Trajano

No Vale do Ribeira, núcleo de vários quilombos, como o de Ivaporunduva, farnel é um prato com banana frita e farinha.

O nome remete à bolsa usada pelos tropeiros para carregar alimentos.

Esta receita foi publicada por Ana Luiza Trajano na Revista Claudia: https://claudia.abril.com.br/cozinha/ana-luiza-trajano-ensina-receitas-tradicionais-da-cultura-quilombola/ Confi ra:

INGREDIENTES

1 colher (sopa) de manteiga de garrafa; 1 colher (chá) de açúcar; 3 bananas bem maduras cortadas em rodelas; 3 colheres (sopa) de farinha de mandioca; Canela em pó a gosto.

PREPARO

Em uma panela, aqueça a manteiga, junte o açúcar e deixe caramelizar. Adicione as rodelas de banana e, quando começarem a dourar, acrescente a farinha de mandioca, mexendo. Cozinhe até que fi que com consistência fi rme. Polvilhe com canela e sirva. novamente e asse. Daí, é só saborear!

Fotos: Rog

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Ana Luiza Trajano – Chef de Cozinha. Pesquisadora dos sabores tradicionais da Culinária Brasileira.

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Pro dia da minha partidaHOMENAGEM

Jaider Esbell

Jaider Esbell (1979-2021) – Artista Plástico, Professor, Escritor.

Nesta tarde todos devem tomar pajuaru, a bebida da minha vida, e assim, elevar suas almas para que estejamos uníssonos.

Quando este corpo estiver lá, solenemente repousado; quando minha cabeça enfim estiver quieta, quero que ele seja coberto com um fino tecido degradável. Por cima desse pano, quero muitas folhas secas, colhidas de grandes árvores nativas.

No dia da minha partida, não quero que empenhem toda a dor do mundo no desejo de meu retorno. É chegada a minha hora, que já era esperada desde sempre. Quero que seus corações, agora frios, sintam o ardor das chamas da vida, que aqueçam tanto até despertar seus olhos para toda a beleza que ainda existe.

Quero que esta dor de morte se transforme, amiúde, em fonte de vida, que seja como numa nascente, ou como as águas das primeiras chuvas no chão esturricado, que vem lentamente encharcando, movimentando os grãos de areia e, quando ensopam, despertam as sementes do sono pretérito para deixarem de assim ser para serem vidas e sair à procura do sol.

Neste momento, minha alma deve estar vendo tudo de cima, assim como sempre sonhei, absolutamente livre sem precisar de proteção, base ou qualquer ligação material. Embaixo, apenas o vazio frio e confortante do infi nito. Decerto estarei feliz.

Acompanharei os pássaros, algumas vezes em suas cruzadas. Farei parte da seta que muitas vezes observei por baixo, onde, todos, uma hora, devem assumir a dianteira e ir em frente rompendo o ar.

Como uma criança por brinquedo, uma formiga por doce, uma mariposa por luz, estarei sempre seguindo o objeto de meu desejo, que imagino ser insaciável e nunca perca o sabor, ou uma luz que nunca se apagará. Quero estar assim, saudosamente vendo todos vocês. Peço, minha gente, um pouco mais de força. Peço mais este favor.

Quero que as mulheres da minha família, minhas eternas mulheres, saiam nos campos do lavrado a colher fl ores. Peço que acompanhem estas mulheres, todas as outras que acharem em mim ao menos uma ponta de dignidade, as que estiverem comigo e que consideram esta alma antes cativa. Quero que saiam bem cedo, peguem suas cestas e encham de fl ores variadas. Que sejam colhidas, ainda orvalhadas, fl ores virgens, as mais belas e perfumadas.

Quero que vejam as belezas do nosso lavrado, que pisem a terra, que deixem seus rastros registrados nestes campos varridos pelo vento. Estes que nunca se apagarão da memória dos que os conhecem. Injustiçados, erroneamente interpretados como terras ruins, que seu capim de nada serve, que ali nada sobrevive.

Preguiçoso, como dizem do nativo que nada mais almeja que a comida e a rede. Quero que os homens, meus irmãos, meu pai e os amigos, por quem por menos faria sem medidas, saiam em busca de tronco de mixiri. Quero que tragam a lenha para uma noite inteira de fogueira. O fogo deve estar brilhante. Nesse dia, deve estar ventando e subirão ao céu as faíscas da grande fogueira.

Peço que assistam comigo a mais este pôr-do-sol e, quando ele descer, vejam as primeiras estrelas brilharem excitadas, as nuvens dispersas amanteigadas. Quero deitar no laranja, na iminência eterna do recomeço de um novo dia ou de uma nova noite. Quero deitar, nesta hora, no rubor do lusco-fusco.

Quero que os pássaros ainda me vejam quando estiverem voltando para as suas moradas. Então, me deixem ir. Ponham-me a manta-mãe sobre meu corpo e me entreguem para que eu possa estar novamente entre vós de outras formas.

Daqui, partirei logo para estar em outros cantos deste mundo. Vou me dividir, desintegrar em partículas atômicas que um dia ainda se encontrarão e farão parte novamente como sempre será.

Parte de mim vai para o mar e, enfi m, vou mergulhar com os cardumes, acompanhá-los em suas rotas, percorrer seu território. Posso ir ao topo da Terra e congelar num sono hibernal, esperando novamente sentir o calor do Sol. Estarei, agora, iniciando mais uma cruzada por este velho mundo.

Minha alma já não terá paradeiro neste universo infi nito e poderá estar reciclada em outro corpo. Peço que joguem a terra devagar para não destruir as fl ores, que agora me acompanham nesta ida. Quero ver minha família num só corpo, num só desejo, sonhando o mesmo sonho.

Quero que lembrem de mim em meus melhores dias, de quando viram o meu raríssimo e sincero sorriso, de quando sentiram de perto o afago do meu coração, que sempre acreditei existir. Sou novamente uma criança, de fato, sempre fui uma delas e sempre serei.

Quero que meu corpo alimente os fi lhos desta grande árvore que já passo a fazer parte, por enquanto. A fogueira deve estar quente e seus corpos, cansados, serão iluminados.

Quero que olhem para as labaredas e acompanhem as faíscas até se confundirem com as estrelas do céu. De lá, vejo a fogueira, uma bola de luz no meio da escuridão, e no céu, acendo a minha estrela para nunca mais se apagar.

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Estrelinha Enxugue esse rosto E venha aqui fora como de costume Vamos conversar Pra te alegrar tem até vaga-lumes

Tem dia que vai piorar Saudade vai apertar Até que “cê” tá indo bem Faz falta aqui pra mim também

Lembra de quando Eu ficava acordado até tarde esperando Só pra ganhar Um beijo de boa noite antes de dormir Daqui não é diferente Te beijo, mas você não sente

MEMÓRIA

Quando bater a saudade Olhe aqui pra cima Sabe lá no céu aquela estrelinha Que eu muitas vezes mostrei pra você

Hoje é minha morada A minha casinha Mesmo que de longe tão pequenininha Ela brilha mais toda vez que te vê...

Compositores: Gabriel Rocha, Leandro Visacre, Lucas Carvalho e Luigi.

★ 22/07/1995 ✝05/11/2021MARÍLIA MENDONÇApartiu para os jardins do céu

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Heloneida Studart

O P O D E R D E S A R M A D O

Heloneida Studart (1932–2007) – Escritora. Texto publicado originalmente em 6 de fevereiro de 2001, no Jornal do Brasil. Foi considerada uma das 100 mulheres mais importantes do século XX.

Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor. Vinha da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo.

Bete fora acusada de não ser mais virgem e os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra. Como o lacre continuava lá, os pais respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem.

Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico. O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a pecadora no reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente esqueceu, morrendo tuberculosa.

Estes episódios marcaram para sempre a minha consciência e me fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens têm sobre o corpo das mulheres. Ontem, para mutilar, amordaçar, silenciar. Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos estereótipos. Todos vimos, na televisão, modelos torturados por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram seus seios em alegorias para entrar na moda da peitaria robusta das norte-americanas.

Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais, garantindo bom sucesso nas passarelas do samba. Substituíram os narizes, desviaram costas, mudaram o traçado do dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem irresistíveis diante dos homens.

E, com isso, Barbies de fancaria, provocaram em muitas outras mulheres, as baixinhas, as gordas, as de óculos, um sentimento de perda de autoestima. Isso exatamente no momento em que a maioria de estudantes universitários (56%) é composta de moças. Em que mulheres se afirmam na magistratura, na pesquisa científica, na política, no jornalismo. E, no momento em que

as pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é preciso feminilizar o mundo e torná-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo.

Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até porque elas são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem pênis, sem o poder fálico da penetração e do estupro, tão bem representado por pistolas, revólveres, flechas, espadas e punhais. Ninguém diz, de uma mulher, que ela é de espadas. Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de plástico, como fazem com os meninos, para fortalecer sua virilidade e violência.

As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que derramá-lo na menstruação ou no parto. Odeiam as guerras, os exércitos regulares ou as gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos de sua convivência e os colocam na marginalidade, na insegurança e na violência. É preciso voltar os olhos para a população feminina como a grande articuladora da paz.

E, para começar, queremos pregar o respeito ao corpo da mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam latas d’água e trouxas de roupa. Respeito aos seus seios que perderam a firmeza porque amamentaram seus filhos ao longo dos anos. Respeito ao seu dorso que engrossou, porque elas carregam o país nas costas.

São as mulheres que irão impor um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazer prevalecer a ternura de suas mentes e a doçura de seus corações.

Viva Rita Lee que canta:

“nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda e meu peito não é de silicone… sou mais macho que muito homem.”

FEMINISMO

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“Meu nome é Txai Suruí. Eu tenho apenas 24 anos de idade, mas meu povo vive na Amazônia há pelo menos 6 mil anos.

Meu pai, o grande chefe Almir Suruí, me ensinou que nós devemos ouvir as estrelas, a lua, o vento, os animais e as árvores.

Hoje, o clima está aquecendo. Os animais estão desaparecendo. E nossas plantas já não florescem como antes. A Terra está falando. Ela nos diz que já não temos tempo.

Uma pessoa amiga me disse: ‘Até quando vamos continuar pensando que podemos curar as feridas do mundo com pomadas e analgésicos, quando sabemos que amanhã a ferida será maior e mais profunda’?

Precisamos ter a coragem de buscar outro caminho, agora, com mudanças corajosas e globais. Não em 2030, não em 2050, mas agora!

Enquanto vocês continuam fechando os seus olhos para a realidade, um defensor da floresta, Ari-Uru-Eu-Au-Au, meu amigo desde que eu era criança, foi assassinado por proteger a Amazônia.

Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática. Por essa razão, devemos estar no centro das decisões tomadas aqui. Nós temos ideias para adiar o fim do mundo.

É hora de frear as emissões de promessas irresponsáveis e mentirosas. É hora de acabar com a poluição das palavras vazias. É hora de lutar por um futuro em um planeta habitável.

É necessário sempre acreditar que o sonho é possível. Que a nossa utopia seja a chance de termos um futuro na Terra.”

GRATIDÃO, TXAI SURUÍ, ÚNICA VOZ BRASILEIRA NA ABERTURA DA COP26.

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SAGRADO INDÍGENA

José Ribamar Bessa Freire

CRIANÇAS YANOMAMI DETRÁS DO CÉU: “GENOCÍNDIO”?

Era o Dia da Criança e da padroeira do Brasil. Um dia de festas. No meio da fl oresta, alheios a tudo, dois meninos brincam como de costume nadando alegremente como peixes no rio Uraricoera. Silêncio sobre suas identidades. Os Yanomami não gostam de ouvir o próprio nome, nem o apelido de criança. Apenas quando ausentes se pode nomeá-los. Então, pedimos licença a Davi Kopenawa para apelidar o menino de 5 anos de Mamoki Prei (Olhos Grandes) e o outro, de 7 anos, de Nakitao (Fala Alto). Os dois primos estão prestes a ser devorados por dragões que cospem fogo como nos desenhos animados.

Mas infelizmente não se trata de fi cção. Ali perto, máquinas infernais – as dragas e os dragões do garimpo ilegal – emporcalham o rio e “sugam terra, sugam água, comem tudo atrás do ouro”. Vomitam mercúrio. A enorme mangueira espiralada da draga, esticada como uma cobra grande, se prepara para dar o bote. Escancara sua boca voraz e engole as duas crianças, que são tragadas, cuspidas e arrastadas

“Sabemos que os mortos vão se juntar aos espíritosde nossos antepassados lá do outro lado do céu,

onde a caça é abundante e as festas não acabam”. Davi Kopenawa. A Queda do Céu. 2010.

já mortas pela correnteza. No dia seguinte, um corpo infantil fl utua. O outro, dias depois, informou à Rede TVT o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Dario Kopenawa.

Não foi mero acidente, mas um crime cometido pelos Napë, os forasteiros inimigos que pertencem ao “povo da mercadoria”. Cerca de 20 mil garimpeiros invadiram o território Yanomami e lá se instalaram protegidos e incentivados pelo governo Bolsonaro, cujo projeto genocida de extermínio étnico vem sendo alardeado desde a campanha eleitoral, com a promessa de abrir os territórios indígenas para a mineração. São seus cúmplices os que o elegeram.

“GENOCÍNDIO”

Tampouco foi um fato isolado. Os Yanomami tiveram seu território homologado em 1992, mas muitas das 300 comunidades, que abrigam 27 mil pessoas, continuam sofrendo invasões. Em maio

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SAGRADO INDÍGENA

deste ano, uma horda de garimpeiros atacou a aldeia na região Palimiú, em Roraima. Atiraram contra seus moradores. O protesto internacional veio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) que, em nota oficial, condenou a morte de duas crianças indígenas, uma de 1 ano e a outra de 5 anos, além de pessoas feridas. Até parece versão moderna de Herodes.

Um mês depois, oito garimpeiros armados e encapuzados ocuparam a Estação Ecológica de Maracá, que dá acesso ao território Yanomami, e fi zeram três reféns. Outros afundaram uma canoa com crianças e jovens indígenas. No mês seguinte, Edgar Yanomami, de 25 anos, morreu atropelado por um avião de garimpeiros na comunidade Homoxi.

Além disso, a presença de garimpeiros gerou aumento do número de casos de pessoas contaminadas pelo coronavírus. Em apenas três meses, no ano passado, as infecções avançaram 250%. Entre outros, dez bebês Yanomami morreram com sintomas de Covid-19, conforme o presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye´kwana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami. Se ele tivesse sido chamado a depor na CPI da Covid, confirmaria essa forma de genocídio. Mas os índios não foram ouvidos.

A coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara, criticou a decisão dos senadores de retirar do relatório final a acusação de genocídio indígena contra Bolsonaro, impedindo seu indiciamento por esse crime. Mas o editorial do Globo e o articulista da Folha de SP, Demétrio Magnoli, discordaram da APIB e promoveram discussão que, para muitos, é bizantina, pois “há uma dimensão que soa a desconversa”.

MAGNOLICÍDIO

Em Genocídio da linguagem (FSP 23/10), o geógrafo Demétrio Magnoli conclui do alto de suas tamancas que “Bolsonaro não cometeu genocídio”, porque “nos sistemas democráticos, governos são capazes de cometer crimes hediondos, mas nada que se aproxime de genocídio”.

– “O conceito de genocídio envolve o planejamento deliberado de extermínio completo (o grifo é nosso) de um grupo humano” – ensina Magnoli.

Ficamos assim combinados: Bolsonaro cometeu “crimes hediondos”, mas não genocídio, para isso temos que aguardar que o extermínio seja completo, inclusive porque – escreve Demétrio – “nossos indígenas foram vacinados em ritmo mais rápido do que a média da população”. O “nossos indígenas” é ótimo.

O “magnolicídio” fi ca claro com a leitura de outro articulista da FSP, Sérgio Rodrigues, autor de Viva

a língua brasileira, para quem “em geral, mesmo quem defende a impropriedade de aplicar a palavra genocida a Bolsonaro reconhece que sua conduta na pandemia produziu montanhas de cadáveres”.

– “Que perfil étnico-social precisa ter as vítimas de um assassinato em massa para que se caracterize genocídio? Matar aleatoriamente pode? O número de cadáveres – gigantesco, muito grande ou apenas grande – faz diferença? A partir de que número o alarme dispara? Qual é a jurisprudência internacional?”.

Sérgio Rodrigues deixa essas questões para os entendidos e se concentra na “linguagem comum que merece todo o respeito” porque é nela “que a vida pulsa, palavras prosperam ou defi nham, sentidos se reinventam. Nesse âmbito, já era – Bolsonaro é genocida, ponto”.

Embora reconhecendo o sentido “juridicamente controverso”, conclui que “Bolsonaro e genocida viraram palavras grudadas, pão e manteiga”.

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UM FILHO SEU

A deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), a única voz indígena no Parlamento, condenou o genocídio e os assassinatos de crianças Yanomami, que estão bebendo água suja contaminada pelo mercúrio e enfrentam desnutrição com a escassez de alimentos: “O garimpo é crime e, mesmo assim, não há uma resposta à altura por parte do governo brasileiro que, ao contrário, encoraja invasões e confl itos armados e ainda tenta mudar os direitos constitucionais que garantem proteção aos territórios indígenas”.

No livro A Queda do Céu escrito com Bruce Albert, Davi Kopenawa, lá do sopé da Montanha do Vento (Watoriki) onde reside, denunciou dezenas de vezes o garimpo, as queimadas, o desmatamento e a degradação da fl oresta:

– “Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cujas águas bebemos, foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos. Foi ele que criou os xapiri para nos proteger das doenças e da morte. A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destrui-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa”.

Davi e seu fi lho Dario – duas lideranças reconhecidas dentro e fora do Brasil – exigem a punição dos culpados por esses crimes.

Mamoki Prei (Olhos Grandes) e Nakitao (Fala Alto), fi lhos enjeitados do Brasil, tinham idades de duas netas minhas, o que me fez lembrar o assassinato de Edson Luís, em 1968. No cortejo fúnebre, o nosso grito de indignação com as sílabas cadenciadas:

– Ma-ta-ram um es-tu-dan-te e se fos-se um fi-lho seu?

Das janelas dos apartamentos e dos escritórios nos bairros da Glória, Flamengo e Botafogo, as pessoas respondiam com acenos solidários.

Agora gritamos: Mataram crianças Yanomami, e se fossem filhos seus? Até quando a sociedade brasileira vai tolerar a ação “genocíndia” das milícias da bateia?

José Ribamar Bessa Freire. – Professor Universitário. Escritor. Crônica publicada em seu blog www.taquiprati.com.br

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Geni Mariano Guimarães – Escritora. Poeta. Militante. Seu primeiro livro, Terceiro Filho, foi lançado em 1979.

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oCONSCIÊNCIA NEGRA

S�� �e�r�, N� �n�e��ida�� C��m� � m��n� do� �ia�. S�� �e�r�, D� c�r����ha�, D� d�rs� ����h�n��, D� �é� s�lto� no� c����ho�.

S�� �e�r�, D� �e�ra� mão�, D� �e�ra� m�ma�, D� �e�r� ��m�.

S�� �e�r�, No� �raço�, No� pa�so�, N� ��n�����ida�� �e�r�.

S�� �e�r�, D� ��rs� � ����rs�, D� �h�r� � �is�, D� ��rda�e� � ��n��ra�, C�m� todo� o� ���e� ��� h��it�� � ���r�.

Ne�r� P�r� a�r� s�n��� �e�r�, S��nd� ao� j��ro� P�� todo� o� p�ro�.

INTEGRIDADE Geni Mariano Guimarães

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Este é o preço que o governo Bolsonarovai pagar para cada deputado(a) que disser sim à PEC 32, da reforma administrativa, que acaba com os serviços públicos.

não se engane! a reforma administrativa

A bagatela mostra que o governo federal está disposto a tudo para colocar nas mãos da iniciativa privada serviços essenciais como educação. Com a PEC 32, o direito à educação pública está em xeque, já que ficará liberada a gestão das escolas pela iniciativa privada.

Sem falar no fim do plano de carreira.E não para por aí. Saúde, segurança, lazer, atendimento jurídico e tudo que é público corre sério risco de extinção com a PEC 32.

Por isso, a pressão para barrar a PEC 32 continua! O Aeroporto Internacional de Brasília, a frente do Anexo II da Câmara dos Deputados e vários espaços públicos vem sendo ocupados por servidores, trabalhadores de empresas estatais e até quem atua na iniciativa privada para dizer não à proposta que destrói o Brasil.

faz mal ao brasil!

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Este é o preço que o governo Bolsonarovai pagar para cada deputado(a) que disser sim à PEC 32, da reforma administrativa, que acaba com os serviços públicos.

não se engane! a reforma administrativa

A bagatela mostra que o governo federal está disposto a tudo para colocar nas mãos da iniciativa privada serviços essenciais como educação. Com a PEC 32, o direito à educação pública está em xeque, já que ficará liberada a gestão das escolas pela iniciativa privada.

Sem falar no fim do plano de carreira.E não para por aí. Saúde, segurança, lazer, atendimento jurídico e tudo que é público corre sério risco de extinção com a PEC 32.

Por isso, a pressão para barrar a PEC 32 continua! O Aeroporto Internacional de Brasília, a frente do Anexo II da Câmara dos Deputados e vários espaços públicos vem sendo ocupados por servidores, trabalhadores de empresas estatais e até quem atua na iniciativa privada para dizer não à proposta que destrói o Brasil.

faz mal ao brasil!

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HORA DE APRIMORAR O SUS Rogério Carvalho

Ao fi nal da CPI da Covid, o país precisa enfrentar os desdobramentos legislativos, aperfeiçoando as leis para assegurar que a má-gestão de autoridades governamentais não se repita.

A CPI da Covid já cumpriu o papel histórico de revelar ao país os principais responsáveis pela catástrofe sanitária que foi a condução da pandemia no Brasil.

Por uma opção deliberada e continuada do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, de apostar na imunização coletiva pelo contágio, mais de 600 mil vidas de brasileiros e brasileiras foram

SAÚDE

perdidas. No Brasil, morreram quatro vezes mais pessoas por Covid do que a média de outros países.

Estudos apresentados na CPI apontam que, se tivéssemos enfrentado a pandemia, considerando as recomendações da medicina baseada em evidências científi cas, cerca de 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Para colocar em prática essa aposta macabra, Bolsonaro, apoiado por um grupo de médicos, parlamentares, empresários e funcionários do governo, boicotou as medidas de distanciamento social e de uso de máscaras.

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SAÚDE

Rogério Carvalho – Médico sanitarista. Senador pelo PT de Sergipe. Em Boletim Focus Brasil#33, Fundação Perseu Abramo.

Também criou a falsa narrativa de que existia um tratamento preventivo e precoce para a doença, o chamado “Kit Covid”, para passar a falsa sensação de segurança para a população e estimular o contágio. Ele ainda negligenciou a compra de vacinas.

Apesar de todos os esforços da CPI, ainda somos a 60ª nação no ranking proporcional de imunização. A CPI também desnudou um esquema de corrupção na compra de vacinas no coração do Ministério da Saúde, que só não foi levado a cabo em razão da atuação das investigações conduzidas pelo Senado.

Além disso, revelou os horrores da operadora de saúde Prevent Senior, que, com a conivência do governo Bolsonaro e dos conselhos de classe, realizou testes de medicamentos em seres humanos, adulterou atestados de óbitos e enviou pessoas para a morte ao estabelecer um prazo máximo de internação em UTI para doentes de Covid. Sem falar nos horrores ocorridos em Manaus, que foi transformada em um laboratório a céu a aberto.

Esses e tantos outros crimes — contra a vida, sanitários e de responsabilidade —, bem como seus responsáveis, estão elencados e tipifi cados de forma técnica e consistente no relatório fi nal da Comissão, que indicou o indiciamento de 78 pessoas, dentre elas Bolsonaro, e de duas empresas, que poderão responder por 19 tipos penais.

Mas o nosso trabalho não se encerra com a votação e encaminhamento do relatório para as autoridades competentes. Uma série de desdobramentos e iniciativas legislativas também serão apresentadas como resultado do trabalho da CPI.

É fundamental, por exemplo, assegurar dignidade para os mais de 113 mil menores que perderam o pai, a mãe, ou ambos para a Covid. Por isso, nosso projeto (PL 887/2021) prevê a concessão de uma pensão, no valor equivalente a um salário-mínimo — R$ 1,1 mil —, para os fi lhos menores de 18 anos dos pais que faleceram em razão da doença.

Também a criação de uma pensão especial, igualmente no valor de um salário-mínimo, para pessoas que apresentem incapacidade laborativa permanente ou temporária resultante da infecção causada pela Covid.

Outro desdobramento legislativo que propomos é o Estatuto do Paciente, que estabelece os direitos dos doentes, como as diretivas antecipadas, a respeito de condutas diagnósticas e terapêuticas que aceita ou recusa receber na eventualidade de não poder expressar autonomamente a sua vontade, e sobre direitos dos pacientes em estado terminal de vida.

Ainda há o enfrentamento da problemática envolvendo a verticalização dos planos de saúde, com a criação de mecanismos para coibir a interferência das operadoras nos tratamentos

oferecidos aos pacientes, nos hospitais de sua rede própria, em razão dos custos elevados de alguns tratamentos.

Acredito, entretanto, que a iniciativa de maior relevância seja a proposta de “responsabilidade sanitária”, que estabelece de uma vez por todas a articulação entre todos os entes da federação, com a finalidade de garantir o acesso universal e a integralidade como garantias constitucionais de todos os brasileiros.

O projeto supre a lacuna sobre a responsabilidade sanitária, que ainda carece de positivação jurídica, uma vez que não existe legislação defi nindo responsabilidade sanitária no signifi cado de compromisso público que o gestor de saúde deve assumir no âmbito do SUS, muito menos a formalização juspolítica do contrato entre os entes federados, a assunção de metas e controle que privilegie a avaliação dos resultados obtidos, assim como as respectivas penalidades pela malversação dos recursos do setor da saúde.

Trata-se de um avanço para a necessária reforma sanitária e gerencial, de modo a viabilizar a efetivação do papel do Estado brasileiro na prestação das ações e serviço de saúde e gestão do sistema, assentado sobre os princípios constitucionais da universalidade, descentralização e integralidade.

Por isso, propomos o funcionamento do SUS em dois eixos: a “responsabilidade sanitária”, com a atribuição de cada ente federado, e o “Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde”, instrumento concebido pela Dra. Lenir Santos, cujo objetivo é unificar e integrar as ações dos entes federativos, subsidiárias e complementares, levando em consideração as necessidades da região de saúde, dando ênfase à responsabilização dos gestores da saúde.

A pandemia reafirmou a importância do Sistema Único da Saúde como conquista e um direito fundamental do povo brasileiro, a despeito de um mandatário que não demonstrou qualquer compromisso com a saúde e com a vida de 212 milhões de pessoas.

Por isso, é preciso coragem para avançarmos nos necessários aprimoramentos que fortaleçam os princípios sobre os quais o SUS foi concebido e assentado: a universalidade, a equidade, a integralidade, a descentralização e a participação popular.

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SUSTENTABILIDADE

TERRA: O GRANDE PLAYER EXCLUÍDO NA COP26

Leonardo Boff

Do dia 31 de outubro a 12 de novembro ocorreu a vigésima sexta edição da COP (Conferência das Partes) da ONU na cidade de Glasgow na Escócia. O grande tema tratado pelos 191 países participantes foi como controlar o aquecimento global, efeito da emissão de gases de efeito estufa.

Segundo o recente relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) o cenário mundial se apresenta, mais do nunca, sombrio. Temos apenas uma década para reduzir ao menos pela metade as emissões de CO2. Caso contrário atingiremos um aquecimento de 1,5 graus Celsius.

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Leonardo Boff – Ecoteólogo. Escreveu Cuidar da Terra-proteger a vida: como escapar do fi m do mundo, Record, Rio de Janeiro 2010; com J. Moltmann, Há esperança para a criação ameaçada? Vozes, Petrópolis 2014.

SUSTENTABILIDADE

e freiam medidas mais drásticas face à evidente deterioração do equilíbrio climático da Terra.

Obviando um longo arrazoado, diria simplesmente o que a Carta da Terra (2003) e as duas encíclicas ecológicas do Papa Francisco, a Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a Fratelli tutti (2020) afirmam com toda a seriedade: temos que operar uma “profunda conversão ecológica”, pois “estamos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva” (Carta de Terra, preâmbulo e final: Fratelli n. 30–34).

Ocorre que o tema: como está nossa relação para com a natureza, de rapinagem ou de cuidado? De preservação de sua biocapacidade ou exaustão dos seus bens e serviços necessários à nossa vida e à sobrevivência? Como não é posto, não é também considerado e respondido.

A Terra e a natureza constituem, no entanto, o Grande Player. De sua preservação, dependem todos os demais projetos dos pleyers e o futuro de nossa civilização. A análise da situação degradada da Terra, inegável e desenfreada, nunca é considerada nas diversas COPs. A centralidade é ocupada pela economia política vigente, o player dominante, o verdadeiro causador dos desequilíbrios climáticos. Este nunca é colocado em questão.

O verdadeiro player salvador é a natureza, a Terra-Gaia, mas isso é totalmente ausente em todas as COPs e será, pressupomos, também em Glasgow. Na perspectiva da Fratelli tutti: ou passamos do paradigma do dominus, o ser humano desligado da natureza e se entendendo seu dono e dominador para o paradigma do frater, do ser humano sentindo-se parte da natureza e irmão e irmã com os humanos e com todos os demais seres da natureza, ou então vamos ao encontro do pior. Esta é a quaestio stantis et cadentis, vale dizer, a questão fundamental, sem a qual todas as demais questões se invalidam.

Dessa vez, o futuro está em nossas mãos. Como afi rma no seu fi nal a Carta da Terra: “como nunca na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo”. Em seu sentido mais profundo, esta é a lição que o Covid-19 nos quer passar.

Voltaremos ao antes, aterrador para a maioria da humanidade, ou teremos coragem para um “um novo começo”, contrário ao Great Rezet (a grande reinicialização) dos bilionários? Almejamos um verdadeiro “novo começo” benéfi co para toda a comunidade de vida, especialmente para a Casa Comum e para nós, seus habitantes, a natureza incluída. É a condição de nossa continuidade sobre este pequeno e esplendoroso planeta Terra.

Com essa temperatura ocorreria uma grave devastação da natureza, pois a maioria dos seres vivos não se adaptaria e poderia desaparecer; atingiria também dramaticamente a humanidade, com milhões de emigrados climáticos, pois suas regiões se tornariam demasiadamente quentes para viver e produzir; além do mais, poderia haver a intrusão de vasta gama de vírus que sacrificariam seguramente um número inimaginável de vidas humanas, muito maior que o atual Covid-19.

Em razão do que já foi acumulado na atmosfera, pois o CO2 permanece lá por 100 a 120 anos, as mudanças que fizermos agora não mudarão o curso crescente de eventos extremos causados por essa acumulação; ao contrário, tendem a se agravar, como vimos pela inundação de águas do mar da cidade de Nova York. Nem a geoengenharia, proposta pela ciência, deteria o nível das mudanças climáticas. Razão pela qual muitos estudiosos do clima sustentam que chegamos atrasados demais e não há como voltar atrás.

Essa constatação fez com que inúmeros cientistas se tornassem céticos e tecnofatalistas. No entanto, afirmam que, se não podemos mais mudar o curso do crescente aquecimento, podemos, pelos menos, utilizar a ciência e a tecnologia disponíveis para minimizar seus efeitos desastrosos. O clima atual, comparado com o que vier, nos parecerá ameno.

O relatório do IPCC é contundente ao afirmar que essa situação é consequência, absolutamente segura, das atividades humanas danosas para com a natureza (desmatamento, utilização excessiva de energia fóssil, erosão da biodiversidade, crescente desertificação, mau trato dos solos etc.).

É imperioso reconhecer que esses transtornos climáticos têm pouco a ver com a grande maioria da humanidade empobrecida e vítima do sistema imperante, que produz, infelizmente, uma dupla injustiça: uma ecológica, ao devastar inteiros ecossistemas, e outra social, fazendo aumentar a pobreza e a miséria a nível mundial.

Os verdadeiros causadores são as megacorporações industrialistas e extrativistas mundializadas que não respeitam os limites da natureza e que partem da falsa premissa de um crescimento/desenvolvimento ilimitado, porque os recursos naturais também seriam ilimitados. A encíclica Laudato Sí do Papa Francisco declara como mentira esta pressuposição (n.106).

Sabemos, a partir das COPs anteriores, que a agenda é controlada pelos agentes das megacorporações, particularmente, do petróleo e da alimentação, entre outras. Elas tendem a manter o status quo que as benefi cia e se opõem a transformações de fundo que as obrigaria a também mudar seu modo de produção e diminuir seus ganhos em função do bem geral planetário. Assim, criam obstáculos ao consenso

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ipátia não era bruxa, mas detinha o conhecimento da ciência, de fórmulas, e por possuir inteligência maior que a maioria dos homens de seu tempo, foi acusada de

feitiçaria e brutalmente morta. Hipátia sofreu intensa violência por parte de um

grupo de cristãos desvairados e repletos de ódio. Em ato repugnante e insano, levaram-na para o interior de uma igreja e extraíram sua pele com conchas, depois a cortaram em pedaços e atearam fogo aos seus restos mortais. Ela é considerada como a primeira mulher famosa a ser perseguida por bruxaria pelos cristãos.

O ano era 415 d.C. Hipátia foi vítima de um surto de intolerância contra mulheres, motivado pela vingança e pela inveja. Ela, entretanto, segue imortalizada para além do tempo e das crenças, como pesquisadora, cientista, professora e exemplo de mulher forte.

Era fi lósofa na antiga Alexandria. Tinha imenso conhecimento de astronomia, matemática e fi losofi a. Nasceu na mesma cidade que a matou: Alexandria. Seu ano de nascimento é datado de cerca de 355 d.C. Naquele tempo a cidade era um centro cultural da região que hoje corresponde ao Egito. Ela era fi lha de Theon, famoso fi lósofo, astrônomo e mestre de matemática no Museu daquela cidade.

Seu pai teve papel muito importante em sua formação. A jovem Hipátia se destacou bem cedo naquele cenário intelectual. Os estreitos vínculos com a fi gura paterna tornaram-na confi ante

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Iêda Vilas-Bôas e Reinaldo Filho Bueno

Os homens sempre tiveram medo das mulheres que voam, seja nas vassouras

ou nas ações e pensamentos.

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UNIVERSO FEMININO

que ajudava a estudar os astros –, de um hidrômetro e um higroscópico, para absorver a umidade.

O iluminista Voltaire ressaltou a respeito de Hipátia: “foi assassinada porque acreditava nos deuses helênicos, nas leis racionais da natureza e na capacidade da mente humana se ver livre de dogmas”.

Hipátia era uma mulher. E infl uente. E respeitada. Era considerada uma ameaça, mas, não mais. Então, a mando de Cirilo, um grupo de fervorosos até demais cristãos fez barreira à carruagem de Hipátia, arrancaram-na à força de seu veículo e caminho e a levaram, arrastando a mulher pelo chão, até uma igreja próxima; lá ela foi despida de suas vestes, do que sobrou delas.

Foi julgada e condenada, sem direito a defesa ou clemência. Com pouco mais de 60 anos, a mulher brilhante findou-se em uma fogueira de fogo-santo-inquisidor. A primeira “bruxa” a ser queimada. A primeira de tantas que já foram e que talvez ainda venham a ser.

Mas o que toca em sua história não é o fogo cristão, mas o fogo do conhecimento, da sabedoria, e do poder que detinha – por isso era uma ameaça. O conhecimento sempre é.

em busca de sua curiosidade, do saber e de sua incessante procura de soluções para os eventos e assuntos inexplicados.

Hipátia filiou-se à corrente neoplatônica e desbravou os árduos caminhos da Matemática. A filósofa possuía um cérebro privilegiado e se tornou a maior pesquisadora da Alexandria nos campos da matemática e da filosofia, legando ao futuro grandes descobertas nessas disciplinas, bem como na física e na astronomia. Ela se devotou igualmente à prática da poética e ao exercício das artes, sobressaindo-se na Retórica.

Como pesquisadora, incomodou personalidades importantes e credos. Era categorizada como pagã, pois se entendia com o Cosmos e sabia muito sobre ele.

Defendia o racionalismo científico, a matemática, a astrologia e, por todo o seu conhecimento. que amedrontava aos comuns e ameaçava aos grandes, foi acusada de blasfêmia e de sentimentos anticristãos.

Hipátia dava aulas para pessoas de diversas crenças religiosas, nunca declarou ser anticristã. Entretanto, tomou para si a ira e inveja de Cirilo, um cristão aficionado que destilou seu ódio contra aquela guerreira.

A Hipátia pesquisadora auxiliava cientistas perdidos na resolução de seus problemas e desafi ava a sociedade por não se casar: ela se considerava em núpcias com a busca da verdade.

Hipátia era reconhecida e admirada também por seus discursos sobre Platão e Aristóteles. A ela é atribuída a construção de um astrolábio – instrumento

Iêda Vilas-Bôas –Escritora.

Reinaldo Filho Vilas Boas Bueno – Escritor.

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Defender a política de cotas raciais em uma nação tão marcada pela herança

escravocrata, em um País que figura entre os 10 mais desiguais do mundo,

é reconhecer que as pessoas não partem do mesmo lugar nem ocupam os

mesmos espaços e ajudar a construir uma sociedade mais justa.

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Defender a política de cotas raciais em uma nação tão marcada pela herança

escravocrata, em um País que figura entre os 10 mais desiguais do mundo,

é reconhecer que as pessoas não partem do mesmo lugar nem ocupam os

mesmos espaços e ajudar a construir uma sociedade mais justa.

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