Diferença e Alteridade

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254 I. Introdução O presente texto se inscreve em uma linha de trabalhos já antiga. Parte dele representa a atualização de uma seção do nosso artigo “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações de uma história multicente- nária”, apresentado originalmente no Colóquio sobre o Pensamento Judaico Con- temporâneo, USP/Universidade Hebraica de Jerusalém, São Paulo, agosto de 1999, e publicado originalmente em Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas 1 , sendo posteriormente revisto, desenvolvido e reapresentado sob diversos formatos em eventos igualmente muito diversos. Tal obstinação reiterativa se justifica pelo fato de que o argumento principal deste artigo se constitui, a rigor, na medula do que pretendemos seja a nossa produção propriamente dita na área da filosofia. Para a crítica a Heidegger, por sua vez, desenvolvemos argumentos apresen- tados em alguns textos esparsos, cujo melhor exemplar impresso é nosso “Husserl e Heidegger; motivações e arqueo-logias”, publicado em sua versão definitiva em nosso O tempo e a Máquina do Tempo - Estudos de Filosofia e Pós-modernidade. Todo este material foi, todavia, reescrito em função do objetivo a que aqui nos propomos: uma breve releitura crítica da célebre categoria “pensiero debole” de G. Vattimo, tal como apresentado especialmente na “Advertência preliminar” e no ensaio “Dialética, dife- rença e ‘pensiero debole’”, textos constantes em seu clássico Il pensiero debole 2 . Em termos de um roteiro geral, o que se pretende aqui é: em primeiro lugar, situar nosso ponto de partida, na inspiração das famosas frases conclusivas do citado ensaio de Vattimo “Dialética, diferença e ‘pensiero debole”; em segundo lugar, apresentar nossa versão “Pensiero debole”, diferença e alteridade: uma releitura Ricardo Timm de Souza ALCEU - v.7 - n.13 - p. 254 a 273 - jul./dez. 2006

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diálogo entre conceitos fundamentais da filosofica francesa contemporanea

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    I. Introduo

    O presente texto se inscreve em uma linha de trabalhos j antiga. Parte dele representa a atualizao de uma seo do nosso artigo Da neutralizao da diferena dignidade da Alteridade: estaes de uma histria multicente-nria, apresentado originalmente no Colquio sobre o Pensamento Judaico Con-temporneo, USP/Universidade Hebraica de Jerusalm, So Paulo, agosto de 1999, e publicado originalmente em Sentido e Alteridade Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lvinas1, sendo posteriormente revisto, desenvolvido e reapresentado sob diversos formatos em eventos igualmente muito diversos. Tal obstinao reiterativa se justifica pelo fato de que o argumento principal deste artigo se constitui, a rigor, na medula do que pretendemos seja a nossa produo propriamente dita na rea da filosofia. Para a crtica a Heidegger, por sua vez, desenvolvemos argumentos apresen-tados em alguns textos esparsos, cujo melhor exemplar impresso nosso Husserl e Heidegger; motivaes e arqueo-logias, publicado em sua verso definitiva em nosso O tempo e a Mquina do Tempo - Estudos de Filosofia e Ps-modernidade. Todo este material foi, todavia, reescrito em funo do objetivo a que aqui nos propomos: uma breve releitura crtica da clebre categoria pensiero debole de G. Vattimo, tal como apresentado especialmente na Advertncia preliminar e no ensaio Dialtica, dife-rena e pensiero debole, textos constantes em seu clssico Il pensiero debole2. Em termos de um roteiro geral, o que se pretende aqui : em primeiro lugar, situar nosso ponto de partida, na inspirao das famosas frases conclusivas do citado ensaio de Vattimo Dialtica, diferena e pensiero debole; em segundo lugar, apresentar nossa verso

    Pensiero debole, diferena e alteridade:uma releitura

    Ricardo Timm de Souza

    ALCEU - v.7 - n.13 - p. 254 a 273 - jul./dez. 2006

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    da reescrita do colapso racional-civilizatrio que oportunizou historicamente a idia de um pensiero debole em oposio ao que operacionalmente, e apenas no contexto do presente escrito, chamamos de pensamento forte da Totalidade, tema geral ao qual temos dedicado vrios outros trabalhos3, e que ser aqui apenas sugerido a partir do acompanhamento do processo racional-inflacionrio do Ocidente hegemnico e de sua crise de referncias a partir de meados do sculo XIX, crise esta que, dando lugar ao Outro da razo totalizante, aqui exemplificado na categoria de alteridade tica em Lvinas; e, em terceiro lugar, gostaramos de demarcar nossa posio crtica e dialogal com Vattimo a partir da inspirao geral da teoria crtica, de Rosenzweig e de Lvinas, ainda que sem detalhar as formas como tal se poderia dar, detalhamento este que transcenderia em muito o escopo do presente escrito.

    II. A questo

    Identificar o novo com o outro, concebido como outra cultura seja como cultura de civilizaes diversas, ou de diferentes jogos de linguagem, ou do mundo virtualmente contido nos rastros de nossa tradio que no chegaram nunca a ser dos dominantes , no significa experimentar a diferena do ser como o dar-se deste em um lugar diverso, em um fundo originrio, pois isto equivaleria a consider-lo ainda como um ente. Significa antes viv-la como interferncia, como meia-voz, como Gering. Equi-vale a acompanhar o ser em seu ocaso e a preparar assim uma humanidade ultrametafsica.G. Vattimo4

    Como possvel a concepo de uma humanidade ultrametafsica, se por ultrametafsico entendemos tanto uma concepo que escape s armadilhas con-ceituais da tradio filosfica ontoteolgica criticada por Heidegger como uma proposta consistente e adequada a ansiedades contemporneas por tica e racio-nalidade argumentativamente justificveis? Estaria, como parece pensar Vattimo por vezes, em um ultra-refinamento do legado do prprio Heidegger? Ou estaria, antes, em uma alternativa no interior da prpria racionalidade, para a qual mesmo este ultra-refinamento estaria prejudicado por uma incompleta radicalidade no trato da questo da diferena? Qualquer resposta nos parece prematura antes de procedermos a uma anlise desta categoria-chave: diferena. por a que, como tantos que procuram pensar em um diapaso contemporneo, nos vemos instados a iniciar nossa aventura interpretativa.

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    II.1 No princpio era a Diferena5

    a) Uma palavra e sua maldio

    Haver, na filosofia mais recente, uma palavra to maltratada como diferen-a? Sua redescoberta como ponto de toro racional explcito levou, em muitos momentos, a uma verdadeira folclorizao deste conceito. Seu poder filosoficamente crtico, levado a patamares inusitados com Hegel6, viu-se em muitos momentos do sculo XX e no por culpa de seus detratores, mas primariamente de seus admi-radores reduzido a nveis de inofensividade inditos, dolorosamente contrastantes com o que acontecia em outros campos da cultura7. Todavia, a marca heideggeriana insuflou-se indelevelmente nos autores de estilo mais fenomenolgico de escrita. A percepo posterior de que a diffrance derridiana inaugura uma nova chave interpre-tativa para o tema que corre pari passu com os temas da exterioridade e da alteridade em Lvinas, esta percepo no absolutamente de domnio comum. O resultado conhecido: diferena, termo mal-compreendido e maltratado, estandarte pro-clamado de um ou de muitos estilos filosficos, no diz mais aos contemporneos aquilo que parecia sugerir originalmente, antes de sua proclamao. A maldio do banal o atingiu.

    b) E, no obstante

    O pensamento ocidental se estrutura, desde os seus primrdios, em torno questo da diferena. em torno a este ncleo referencial que os grandes problemas clssicos da filosofia de provenincia grega, ou seja, o que conhecemos propriamente como raiz do pensamento ocidental logocentrado (o termo no tem aqui, absoluta-mente, conotao depreciativa) se articulam e amadurecem enquanto, exatamente, problemas fundamentais: particular versus universal, necessrio versus contingente, finito versus infinito, sensvel versus racional, alma versus corpo as dualidades opostas so infindas e remetem, em ltima anlise, sempre ao mesmo problema anterior que as gera: questo da no-unidade da diferena da realidade com relao a si mesma. Houvesse tudo em tudo, e o resultado seria a oniscincia e a dispensabili-dade do pensar; mas porque h desvos, desencontros e desencaixes na estrutura do real (seja esta qual for, porque a concepo de realidade se articula justamente em torno a estes desencontros, desvos e desencaixes), que o pensamento se gera, e se gera como urgncia, urgncia de ndole cognoscente-classificatria. No incio, no o verbo Ser, mas os desencontros que o verbo Ser tenta de algum modo identificar: o verdadeiro Leitmotiv do logos. Se isso fosse desde sempre apenas isso {X = X} , no teramos provavelmente filosofia alguma, pois a tautologia perfeita desa-parece em si mesma e para si mesma inclusive enquanto problema, entendendo-se

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    como identidade original e originante; mas porque isso tambm aquilo, ou no somente isso, ou deve ser aquilo, ou pode ser compreendido de outra forma, ou se constitui em instncia de uma sntese maior {X no Y} que o pensamento cognoscente se pe em marcha em seu processo essencialmente identificante de forma que, ao fim e ao cabo, isso se encontra, ainda que na rbita fechada de uma racionalidade particular, consigo mesmo. Uma srie de funes do processo de identificao, do processo cognoscitivo, se unem nesta tarefa: a localizao, a comparao, a nominalizao, a determinao, enfim. Quando, ao final de minhas anlises, promulgo que o pinheiro um vegetal, isso significa a culminncia de um longo e rduo itinerrio. Tive de perceber a realidade; destacar dali algo especial a ser classificado; destacar deste algo o seu conceito (ou mesmo constru-lo); tive de comparar esse conceito com semelhantes e dessemelhantes; atribuir a esse conceito um nome; e, finalmente, propor a identificao entre esse nome e o alvo de minhas atenes. Mas, a rigor, o processo o desdobramento de uma frmula mais simples. Inicia com um o que isso? {X=?}; desdobra-se em isso pertence classe lgica dos vegetais {X=Y} e desemboca na nominalizao onde se pretende que a essncia ou o essencial do pinheiro seja dado, coincida com seu nome: isso um pinheiro, ou seja, isso, que identificado como sendo um pinheiro, um pinheiro {X=X}. O que esteve por trs e realmente sustenta o que aqui nos interessa realmente todo esse procedimento um processo identificante; e esse processo identificante consiste justamente na tentativa de retirar da diferena seu carter, exatamente, de diferente enquanto tal, transmutando-a em diferena lgica, ou seja, em uma espcie de combustvel da mquina identificante do pensamento. E interessante notar que tal dado comum a todas as grandes lgicas ocidentais, sejam de ndole formal, sejam de teor dialtico. No primeiro campo, temos a ar-ticulao da variedade do mundo em torno a uma referncia significante que lhe d sentido; o verbo Ser, a presena do real em torno s definies da possibilidade de o real ser, exatamente, real. No segundo caso, a diferena a negao assume uma posio mais consistente, levada pretensamente mais a srio; mas, pela sua prpria dinmica, a dialtica no cessa, porm segue adiante na direo de uma Aufhebung ou sn-tese que, contendo embora a diferena, no a trata como tal, mas como momento dialtico a ser ultrapassado no momento seguinte que , de uma ou outra forma, re-identificante. E a Dialtica Negativa uma tentativa extrema e refinadssima de deter esta compulso identidade, este delrio totalizante, que afeta o cerne do movimento que leva a diferena ontologicamente a srio8; sua grandeza consiste em permanecer ela mesma exatamente pela negao factual de sua estrutura lgica, se quisermos levar a srio o esforo adorniano9.

    Assim, podemos considerar sem grandes hesitaes que a diferena a questo propriamente dita do pensar; sua condio, como o impedimento de sua completao, pelo fato de ser, desde sempre, o seu Outro. A questo da diferena a provocao

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    a um processo de compreenso do todo, ao mesmo tempo em que bloqueia, por sua recorrncia incmoda e indeclinvel, qualquer invectiva de universalizao to-talizante. por isso que o pensamento e a filosofia, enquanto determinada forma de organizao do pensamento tem de se ver continuamente confrontado com o problema das origens, dos fundamentos, dos pressupostos, antes de se preocupar com as conseqncias e com os sistemas, mesmo sabendo que nunca chegar totalmente s origens, aos fundamentos e aos pressupostos. por isso, tambm, que o pensar uma tarefa infinita, e tem de necessariamente reiniciar a cada momento: tal explcito no filosofar ocidental, quando se percebe, por exemplo, que para alm de suas diferenas de encaminhamento da questo, Parmnides e Herclito, Plato e Aristteles e tantos outros infindos exemplos de aparentes opostos intelectuais pensavam, no fundo, o mesmo problema; o problema do mesmo, ou seja, o problema do Ser: a soluo da questo da diferena, como veremos adiante de forma mais detalhada. Para alm de qualquer fabulao ou imaginao, antes de toda sntese e organizao mental, d-se a diferena: este fato to real aqui e agora, nesse exato momento, como o foi para o primeiro pensador que percebeu sua no-coincidncia com o que no era ele, e entendeu, se-gundo sua cosmoviso, a necessidade de superar tal no-coincidncia como condio ou realizao do processo compreensivo do real enquanto tal. Superar a diferena o ato fundante que se concebe, muito prematuramente, como movente do grande projeto do pensamento cognoscente, como a base da possibilidade de se pensar a prpria condio de inteligibilidade do real.

    III. O pensamento forte: uma breve histria do processoracional-identificante

    Inicia-se, portanto, historicamente, o processo de compreenso apropriativa da diferena, ou seja, de sua integrao a uma ordem maior de sentidos que compe as diversas formas de avanar do pensamento que pretende conhecer. Tal no se d por uma escolha consciente de algum gnio isolado, mas por um arranjo pr-original do que se considera implicitamente condio de todo conhecimento: identificar o conhecido consigo mesmo, chegar ao real desde dentro dele mesmo.

    Constituir-se- originalmente a filosofia ocidental por este vis? Provavel-mente. As questes originais que a tradio nos lega, ainda que fragmentariamente, bem o sugerem; as partculas de poemas cosmolgicos, as obscuridades e clarezas dos antigos, assumem essa tonalidade inquieta. Logo se propem um antes e um alm do visvel; sua procura se dedicam as mentes mais agudas. Caminha-se por sobre a inquietude do dado da diferena; mas esta inquietude a base que, segundo a convergncia das energias unificantes, preciso superar; necessrio chegar sa-bedoria, superar as aparncias, abordar solidamente o existente, afrontar e vencer a insegurana das no-coincidncias, do universo da multiplicidade.

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    Alguns passos so, porm, previamente necessrios. Para os fins desta reflexo, basta-nos destacar trs: a dualidade original ser/no-ser, a espacializao da tem-poralidade e a objetificao intelectual-neutralizante do dado que alvo das energias filosficas, ou seja, do que se apresenta como real ao intelecto cognoscente.

    a) O primeiro passo do processo de superao da diferena:sobre Ser e No-ser

    A conseqncia da percepo de uma situao original, na qual se ancora a possibilidade de o ser humano perceber a realidade com sentido, que nada se pode perceber de humano que no esteja afetado por este estar situado. Tal vlido tambm para as comunidades humanas grandes e pequenas, articuladas em coleti-vidade de sentido, e que so, em realidade, pluralidade de mundos em ntima inter-penetrao. Compartilhamos assim a tese de que, antes que um povo ou conjunto de povos pense em expressar suas vivncias originais em termos poticos, literrios ou filosficos, estas no somente j existem desde h muito, como assentam sobre bases de difcil ou, praticamente, impossvel inteleco por parte deles mesmos e para os psteros. Ningum e aqui se inclui a totalidade das culturas atinge a plenitude de seus pressupostos, ningum capta o estertor original que d origem vida ou a inspirao prvia a toda expirao. Estes pressupostos so mais antigos que sua expresso, mais fundamentais que qualquer materializao ulterior, realidade prvia a toda realidade posterior, base possvel de todo pensamento.

    Qual seria, ento, a cosmoviso geral ou posio originria que se expressa e se desdobra pela rdua via do logos ocidental? Trata-se de uma determinada instalao original no mundo, de uma determinada concepo de realidade prvia a todas as outras, e que as outras, suas herdeiras, ho de tentar compreender e criticar. Esta realidade toma forma, por vez primeira, na articulao de uma determinada linguagem como expresso de racionalidade.

    Esta posio originria se traduz pela inteno de penetrao unvoca, racional, na realidade. A linguagem grega, bela traduo desta origem no passado e inspiradora de inmeras linguagens futuras, tem no verbo Ser sua essncia mais profunda, o essencial de sua auto-compreenso. No verbo Ser cruzam-se todos os sentidos e suas possibilidades, estabelece-se de forma definitiva a forma equacional j sugerida {X = Y}, isto aquilo, o cavalo um animal, o homem um animal racional e poltico. Antes de ser racional ou poltico, o homem alguma coisa, e antes de ser alguma coisa especfica, tem de j ser alguma coisa prvia prpria especificao, por habitar desde sempre o verbo ser. na igualdade, na equalizao do diferente, no processo dinmico desta equalizao de uma vez para sempre, que repousa a segurana do logos. ali que o logos encontra sua origem, como Ulisses, metfora logocntrica por excelncia, reencontrou sua ptria. Este o parentesco original de

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    todo realismo com todo o idealismo: um no pode conceber-se, em ltima anlise, sem o outro. A intimidade mais profunda da lgica grega, determinativa, tem seu peso, seu sentido mais prprio, na conexo dos particulares: tudo importante na equao, mas ainda mais importante a marca, o sinal de equalizao traduzidos pelo verbo Ser, pois ali repousa, em ltima anlise, o peso da realidade para o logos. A lgica grega enunciativa, vive de seus enunciados, pais de toda concepo de cincia at algumas reviravoltas contemporneas ainda no bem compreendidas nem assi-miladas pela ortodoxia bem-pensante. Sua preocupao pela preciso a preocupao por sua vocao maior.

    A linguagem grega pressupe assim, a bem at mesmo de sua auto-compre-enso, uma solido original, a pretenso intelectual a uma univocidade perfeita de sentido, atualizada ou em potncia. A razo, como expressar a mentalidade mo-derna, tem de ser uma s; pois o contrrio seria compatvel com a multiplicidade de sentidos, e o sentido est dado, de uma vez para sempre, na expresso da igualdade equacional, no verbo Ser. Algo , ou no : tertium non datur eis a regra original, da qual dependem todas as outras da lgica de origem grega, inclusive, como j su-gerimos, a lgica dialtica. O enunciado da razo como razo a equao do verbo ser: a igualdade redentora afasta da razo o perigo do diferente dela.

    Eis, portanto, um primeiro passo fundamental e grandioso no processo de domesticao da diferena: sua subordinao a uma determinada lgica e linguagem que, ao se propor como nica possibilidade (ou como verdadeira possibilidade, o que, na rbita de sentido de uma verdade solitria, vm a ser categorias mutuamente conversveis) de abordagem do real, transborda ontologicamente de si mesma e deter-mina tambm o no-ser, ou seja, o irreal. nisto que, como j sugerimos, Parmnides e Herclito, quase sempre apresentados como adversrios, concordam profunda-mente, e concordam ainda antes que esta inspirao original possa se conformar em qualquer tipo de organizao lgica. E nisto tambm que concordaro a imensa maioria dos mltiplos pares digladiantes da histria da filosofia greco-ocidental.

    b) O segundo passo na superao da diferena: a espacializao da temporalidade

    Porm, de nada adiantariam tais esforos lgicos se a temporalidade simples-mente continuasse a ocorrer pelas bordas dos sistemas lgicos, por mais sofisticados que estes sejam. E a temporalidade, expresso da diferena, d-se originalmente como fundamento de toda inquietao filosfica, ainda que sob nomes os mais diversos: finitude, contingncia, acidente, mundo emprico, etc. e, at mesmo, exatamente, diferena.

    H, portanto, com relao temporalidade, de neutraliz-la; caso contrrio, cada categoria lgica teria de ser reinventada a cada passo, para repor na ordem

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    plenamente inteligvel da realidade do ser aquilo que o tempo acaba de corroer. A univocidade do conceito estaria perdida, e cada generalizao, induo ou deduo estaria condenada a priori ao fracasso.

    Esta neutralizao, porm, no pode padecer de ingenuidade, pois o poder desagregador da temporalidade real imenso. Para tratar desta questo so, portanto, mobilizadas imensas potncias racionais; e uma das primeiras solues, e das mais clssicas, procura equiparar a no-visibilidade do tempo visibilidade do espao, logicizando espacialmente a primeira: quando se pensa em termos de se constituir o tempo na medida do movimento, pensa-se exatamente em subordinar o que no se d no espao enquanto categoria quilo que se d neste espao; e, portanto, avana-se decididamente no controle do impondervel desagregante, manietando-o controla-bilidade de uma rede de conceitos. E pode-se perceber que, ao longo de mais de dois milnios de pensamento filosfico, esta uma das questes mais recorrentes, pelo menos at a segunda metade do sculo XIX: como transformar o tempo em intempo-ralidade, para neutraliz-lo em seus efeitos corrosivos das certezas conceptuais? Esta a demarcao do incio do estilo contemporneo de filosofar: quando a percepo de que a temporalidade existe inelutvel na raiz do prprio pensar, e a questo acima se dilui no impondervel e na inquietude da contemporaneidade.

    Assim, em termos prticos, o tempo que penetra at mesmo a equao do verbo Ser congelado no verbo Ser. A rigor, no existem propriamente o passado e o futuro, exceto como anteviso e celebrao da conquista do Ser. No presente do , o passado e o futuro deixam de assustar: encontraram-se a si mesmos, neutra-lizando-se mutuamente. No necessitam colocar-se como alternativas prospectivas ou retrospectivas de realidade, pois a realidade est j resolvida na fixao de alguma espcie de presente eterno ao qual o logos, a iluminao, tem acesso completo. Na construo pr-socrtica, na platnica com suas idealidades realistas ou na aristo-tlica com seu empirismo, e em todas as suas derivaes, inclusive nos processos modernos de subjetivao propedutica ou radical (inclusive em sua inverso em objetivao radical do idealismo absoluto) em cada instncia, a preocupao determinativa a mesma.

    Mas o que determina praticamente esta linguagem ao mundo que a utiliza? Desde a perspectiva da fixao do correr do tempo no espao prprio do presente, so perceptveis ao menos duas grandes caractersticas, que se apresentam tambm como dimenses de interpretao:

    1. Em primeiro lugar, uma dualidade definitiva explcita estabelecida na antropo-logia, que no se ope, mas antes remete, no fundo, a um monismo radical implcito: o monismo do Ser. A realidade est cindida em dois nveis de difcil aproximao: o emprico, a doxa, o corruptvel, o impuro, o plural, o temporal, e a dimenso da feli-cidade ideal, a episteme, racional, meta-emprica, incorruptvel, transcendental, para

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    alm das aparncias, pura, singular, atemporal. Mas esta ciso tambm pertence ao mundo das aparncias, j que, em verdade, somente a realidade atemporal , conforme vimos, legitimamente real para esta concepo de realidade. A vita activa, com seus percalos e inconstncias, no participa da realidade plena da contemplao atemporal das essncias. O Bem residiria na atemporalidade da Totalidade de sentido do verbo Ser, presente eterno, totalidade esta que se encontrou consigo mesma: eis o mote de fundo, inconsciente, a anterioridade da determinao de realidade do mundo.

    2. Em segundo lugar, e como conseqncia da concepo de atemporalidade atribuda realidade plena, percebe-se a radical anti-historicidade que habita esta con-cepo de verdadeira realidade. A histria do desdobramento do logos, apesar das aparncias em contrrio, uma anti-histria, uma espcie de histria endgena porque afinal de contas um encontro consigo mesmo. Mais uma vez, Ulisses nos esclarece isso. Sua aventura tem como ultima ratio a finalidade do retorno sua ptria, a si mesmo. A mutabilidade que caracteriza a histria o tempo como condio de efetivao da realidade , na verdade, um desembocadouro do incontrolvel, e, portanto, um escndalo para qualquer constelao bem-arranjada de conceitos. A temporalidade a expresso ltima e mais aguda da negatividade enquanto tal.

    ( importante perceber que a noo de eterno retorno , em boa parte, credora desta viso. Se existe o tempo, que o seja para a reconduo da realidade sua base eterna. Este tempo s geralmente concebido fisicamente, no como temporalidade em fluxo, como existencialidade feita tempo. Neste tempo das medidas, no existe espao para o imprevisvel, o novo, o histrico, o diferente. O eterno retorno a guarda da tautologia, onde o Outro no tem vez. No eterno retorno no existe movimento, apenas eternidade fora do tempo eterno presente, verbo ser em realizao plena apesar das aparncias em contrrio. Eternos retornos do diferente parecem atenuar, mas no resolver este problema).

    A Anti-historicidade se expressa especialmente na reduo do imprevisvel inofensibilidade. A cosmoviso original anti-histrica tender mais tarde, em seus desdobramentos modernos, a subsumir o particular, o propriamente concreto da histria, no universal e abstrato do Esprito e da Totalidade tarefa empreendida por Hegel com tanto brilhantismo, e que dar a Benjamin, na intuio do movimento contrrio, oportunidade para tanto trabalho10.

    c) O terceiro passo na superao da diferena: a objetificaointelectual-neutralizante do real

    Ainda um terceiro elemento fundamental no processo de inofensibilizao da diferena: trata-se da neutralizao do real atravs do crivo neutralizante do ob-jetivismo intelectual, ao qual chamamos, neste contexto, de objetificao. E no

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    falamos, aqui, de um objetivismo que meramente se oponha a um subjetivismo, ou de algum tipo de positivismo ingnuo, mas de algo mais profundo, que remete s origens do fluxo identificante que tem como resultado a articulao lgica intemporal da realidade qual j fizemos referncia.

    Em poucas palavras, o que aqui chamamos de objetificao se constitui, exa-tamente, no conjunto dos processos maiores, chanceladores da legitimao dos processos parciais aos quais denominamos auto-postulao da identidade e espacializao da temporalidade. Ou seja: a objetificao a forma de emprestar legitimidade s lgicas da postulao absoluta do ser enquanto realidade e da temporalidade enquanto no mais que pr-realidade, lgicas estas que, como vimos, tm como impulso inicial e objetivo final despojar a diferena de seus elementos desagregantes originais. As variadas formas de como tal processo se tem dado ao longo da histria do pensamento desembocam todas neste mesmo desaguadouro da pretensa naturalidade, que faz com que, em cada poca, se tenha categorias-chave para entender e legitimar cada passo deste grande processo de des-diferenciao, categorias estas tratadas geralmente como sagradas ou intocveis. apenas quando um grande quadro cultural entra em crise que esta sacralidade posta em dvida; e, imediatamente, a inteligncia guardi do grande impulso neutralizante localiza uma substituta altura, no campo das cincias ou dos grandes sistemas polticos e intelectuais. O grande horror da conscincia ocidental se ver s voltas com a realidade sem as chaves compreensivas que a prpria cultura recria constantemente. assim, por exemplo, com a categoria de infinito; enquanto tal pensamento trazia em seu bojo um poder de inquietao incontrolvel, se lhe tinha repugnncia os gregos, de modo geral, pensavam desde o ponto de vista da ordem, do cosmo, enquanto o ilimitado, o peiron, permane-cia como uma instncia de escndalo intelectual11. Foi apenas bem mais tarde, nos incios da modernidade, que se pde afirmar a infinitude do universo sem temor do descontrole catico (dos antigos) ou da alteridade divina (dos medievais); e exatamente este o momento em que inicia propriamente a modernidade.

    Assim, a objetificao-neutralizao o prprio exerccio da inteligncia, enquanto este exerccio visa preservao de sua segurana original: sua referen-cialidade em torno ao ncleo auto e hetero-identificante. por isso que se tem considerado tradicionalmente a inteligncia como avessa a condicionalidades que atenuam sua agudeza identificante, como, por exemplo, a prpria possibilidade de ela se deparar com o dela diferente.

    (Intermezzo) Heidegger, Ser e Diferena12

    Se conseguirmos perceber convenientemente o sentido profundo da finitude heideggeriana; se pudermos sentir em sua filosofia o ultrapassamento do arcabouo antropo-racionalista consagrado por uma grande tradio; se conseguirmos perceber

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    o ainda-no-racionalizado que palpita no fundamento mais arcaico do Ocidente o desconhecido presente, que ao mesmo tempo olvidada presena eminente, cmulo da dignidade ftica ento estaremos compreendendo a linha geral da motivao heideggeriana. O filsofo afunda at as razes do mundo ocidental, as razes mais re-motas, desconhecidas, porm efetivas, reais. Mas s pode fazer isto porque concedeu crdito possibilidade do Ser haver permanecido como que desconhecido. Se a filosofia moderna se acostumou a olhar desde si para trs julgando-se invariavelmente (de forma explcita ou inconsciente) a culminncia e o centro da Histria Heidegger entende o mundo atual como degenerado, como desviante reflexo da dignidade ori-ginal do Ser, foco nico de toda densidade ontolgica possvel. Heidegger sentiu a necessidade de se deixar afetar pelo que sustentava, em ltima anlise, toda a cultura moderna: a Razo de todas as racionalidades possveis, o repositrio de todas as ener-gias e vontades de poder, ainda antes que estas se tenham manifestado. Isto o levou muito longe, to longe que surge como cerne de seu pensamento justamente este que o mais indomesticvel dos conceitos: Ser. razo moderna, eternamente viciada de objetivos imediatos, tocada pelo subjetivismo e pelo utilitarismo e embriagada por suas prprias realizaes, estas idias teriam de aparecer como algo estranho e finalmente causador de repulsa, como tambm , em princpio, qualquer concesso que se possa fazer ao desconhecido que se postule como realidade em si mesmo.

    Mas, para alm das contingncias scio-culturais, Heidegger acaba, com sua doutrina do Ser, por erigir o maior baluarte contra a contempornea desagregao do sentido. Se a Diferena que ameaa, Diferena que a ateno dirigida; se a Diferena ameaa com um incontrolvel poder desagregador, aos incios deste sculo XX, este poder desagregador que tem de ser compreendido e neutraliza-do, incorporado neutralizadamente interioridade da economia da existncia em sua relao com o Ser. Eis a o sentido real e imprescindvel, para a tarefa heideggeria-na, da Diferena ontolgica. A Totalidade do Ser redescoberto incorpora em si as prprias manifestaes do diferente como suas, pois irredutivelmente diferente dos entes e tem nesta diferena a raiz de sua dignidade ontolgica. Heidegger percebe o diferente tanto quanto uma categoria filosfica o permita, em sentido radical! de uma maneira mais clara do que qualquer grande filsofo at ento; a diferena ontolgica uma ruptura fundamental entre o Ser e os entes. Com esta descoberta, torna-se desnecessria a dialtica: a diferena presena e se sustenta desde si. Cria-se, qui pela primeira vez na histria da filosofia, um estatuto prprio di-ferena enquanto irredutibilidade e refrao ao poder totalizador da dialtica. Esta apenas no tem, obviamente, precedncia em relao ao ser; e, com isso, permite que o Ser seja com toda intensidade, independentemente, em ltima anlise, do mero contingencialismo finito que circunscreve o mundo no qual os entes se do.

    Neste se parece constituir, ento, o verdadeiro sentido da arqueologia heideg-geriana: neutralizar a Diferena atravs da fixao de seu estatuto ontolgico prprio,

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    inscrita que estar exatamente no fulcro entre o Ser e o Ente. Se Nietzsche dispensa a dialtica enquanto artifcio da racionalidade tornado desnecessrio pela afirmativi-dade pura da realidade forte da Totalidade13, Heidegger absorve em seu pensamento a tenso perpetuamente irresolvida que, combustvel primeiro de toda dialtica, tambm a causa final de sua inevitvel irresoluo: a diferena, doravante inscrita e imvel na grande encruzilhada da ontologia.

    Heidegger enxergou muito longe. Porque, por detrs de todas as tratativas com relao diferena, o Ser a mais eminente Totalidade, aquela que diferentemente da Totalidade hegeliana que, apesar de tudo, sempre julga a si mesma como presente nos mais distantes recnditos de seu reino, via dialtica mantm uma tenso presente e irresolvida entre sua presena e sua ausncia, entre o ser e os entes, entre os frutos da cultura ocidental e seus fundamentos. Eis ali o espao para o real impondervel mas um espao perfeitamente controlado.

    O pensador da Floresta Negra fecha, com sua obra, o ciclo grandioso que une o mundo contemporneo s suas mais profundas razes, to profundas que ainda permanecem em boa parte na obscuridade do indeterminado para a simples razo. Para alm do magistral subjetivismo transcendental de Husserl, Heidegger mergulha paradoxalmente nas razes de possibilidade de qualquer subjetivismo, retroage ao passado mais remoto e mais vivo do esprito do Ocidente ainda antes que esse se diferenciasse em determinaes e retrai ao presente toda a possibilidade de verdadeiro reencontro com o passado. provocao do esfacelamento de sentido de uma Totalidade dialeticamente insustentvel, Heidegger prope a reconciliao com o esprito de origem dos primeiros poetas-pensadores aps um divrcio de 2.500 anos sem o arrebatamento nietzschiano, mas com a solidez e a maturidade da racionalidade feita servio ao Ser, enquanto o Ser o peso e o sentido absoluto da realidade, to estupendamente abrangente que at a diferena pode sobreviver em seu seio sem ser dialeticamente incorporada, como faria celeremente um processo de totalizao mais ingnuo ou, em outras palavras, insuficiente.

    O Ser heideggeriano a Totalidade perfeita.

    IV. Da neutralizao da diferena dignidade da alteridade

    a) P e cinzas

    Aps ela (a filosofia) haver recolhidotudo em si... o ser humano descobre

    subitamente que ele... ainda est aqui...Eu, p e cinzas, eu ainda estou aqui

    Franz Rosenzweig14

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    Trs passos, na verdade dimenses interpenetrantes de um mesmo grande movimento, foram acima sugeridos: a definio definitiva da impossibilidade do diferente do ser, ou melhor, do diferente que ser; a obsesso pela deteno da temporalidade incontrolvel e sua incorporao em uma espacialidade csmica ou lgica controlvel; e as formas pelas quais tais objetivos so atingidos, ou seja, os modos de chancela neutralizante que se apem a tais conquistas e que pretendem, com isso, a evitao da recorrncia da situao mais original de caos, quando a diferena era real e no apenas lgica e metodolgica. Com isso, toda realidade nada mais do que uma questo de conhecimento, e conhecimento organizado em torno procura daquilo que temos chamado de verdade solitria.

    Sintetizemos, portanto, o at aqui exposto:1. O modelo ocidental de pensamento, sua dinmica, j ex origine um grande

    arco de poderosa afirmatividade, provocado pelo fato originante de que, antes de tudo, d-se a diferena: todo pensamento, toda filosofia, toda cincia tm a sua origem mais remota. O logos tem a seu nico e real problema, o problema em relao ao qual todos os outros assumem uma dimenso secundria, e a inteligncia como que parte imediatamente para a conquista desta terra (ainda) incgnita.

    2. Tal se d, ao longo do tempo, pela paulatina domesticao daqueles elemen-tos que podem introduzir, no grande corpo do conhecimento, a sombra da dvida: o extrapolar de categorias no-ser; o extrapolar da controlabilidade o tempo que passa e desagrega o todo; e o extrapolar da inteligibilidade normal algo que, atraindo as energias do conhecimento, d-se por fora ou para alm das possibilidades puras do conhecimento15.

    As ltimas energias positivadas deste esprito identificante se do, na forma exposta, poca dos grandes sistemas totalizantes do pensamento at pelo menos meados do sculo XIX. a partir da que um grande processo de corroso interna tem origem. E se o logos se traduz em habilidade extrema na dimenso que identifica as diferenas externas, tal no se d no que se refere aos grandes problemas internos da cultura na qual se move; e o problema que ento se prope de tal ordem que a totalidade de mecanismos legitimadores da positividade da procura colocada em questo. A partir da segunda metade do sculo XIX, o grande problema j se conforma inequivocamente: d-se a percepo de que, a um Eu claro e distinto, contrapem-se os eus sombrios e indistintos, atuantes do psiquismo subterrneo; a uma compre-enso essencialista e formal da realidade, contrape-se uma viso evolutiva, onde o tempo, por tantos sculos recalcado, faz sua reentrada triunfal; a uma matemtica natural, a uma geometria intuitiva, contrapem-se geometrias artificiais, que nem por isso tm menos validade matemtica do que a euclidiana; a uma msica tonal, e, portanto, formalmente controlvel a priori, contrape-se o princpio de desagregao da tonalidade, que conduzir fatalmente a sendas desconhecidas; a uma arte figurativa realista, contrapem-se uma multiplicidade de estilos, que criam

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    realidades diferentes daquelas retratadas pela tradio; a uma literatura formalmente bem-comportada, prope-se uma construo literria infinitamente varivel; a uma cincia bem-organizada, contrape-se uma cincia essencialmente indeterminada. Tudo parece fugir ao controle: espao para o surgimento do grande Medo16. Pene-tra-se, de corpo e alma, na imensa crise civilizatria na qual estamos mergulhados. Filosofias surgiram, filosofias desapareceram e ns, p e cinzas, (ainda) estamos aqui. Aps sculos de otimismo e de obviedade do sentido, a questo do sentido dos sentidos pressupostos pela inteligncia do real se re-prope com inusitada violncia, uma violncia que uma contrapartida altura da violncia identificante que habita a raiz da racionalidade solitria, o corao do logos.

    b) Crises, arqueologias e novas descobertas: finitude e temporalidade

    As formas de resistir a tal embate so variadas; desde o conservadorismo filosoficamente incuo porm culturalmente impiedoso at arqueologias radicais em busca da melhor circunscrio da questo do sentido conforme acima sugerida, e desde uma vigorosa retroviso arcaizante at prospectivas inusitadas no encalo do Novo. O fato que nenhum pensador digno deste nome, no sculo XX, pode pensar ignorando esta situao de crise, de colapso de uma Totalidade de sentido. A temporalidade faz sua reentrada triunfal no campo do possvel, e no sculo XX j no possvel ignor-la: esta no-ignorncia o proprium dos discursos filosficos contemporneos.

    Com o Tempo, ressurge a Diferena: com o colapso do Conceito identificante, que retira da alteridade apenas e to somente aquilo que intelectualmente com-preensvel, reassume seu lugar a questo da Alteridade real enquanto dimenso que no pode ser, simplesmente, representada ou mesmo intelecualizada, mas remete s profundezas de uma indeterminao original, onde nada suficientemente claro, porque a clareza no a questo original, mas, exatamente, a diferena que a questo original.

    A percepo da radicalidade deste problema no escapa a alguns contados pensadores extremamente agudos: todos sabem que precisam se ver seriamente com este problema. Investem na dilatao da estrutura original de compreenso do real. Filsofos os mais diversos concentram o melhor de suas energias em torno a este problema. Suas solues variadas contemplam paradoxalmente inquietaes de origem bastante semelhantes, que so propriamente as inquietaes filosficas da contemporaneidade17.

    A reproposio da questo original da temporalidade compreendida como finitude, assim como a emergncia da alteridade original compreendida como negatividade18; nada impede que se consubstancie um novo terreno propcio a novas caminhadas e novas descobertas.

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    Na particularidade da fenomenologia e de suas derivaes, Husserl resolve a questo da intencionalidade intelectual, reabrindo o campo da imponderabilidade do real; e, como vimos, Heidegger supera a tradicional proposio lgica da diferena invertendo-a e positivando-a enquanto diferena ontolgica19. Est refeito um terreno filosfico que se presta a uma re-aproximao filosfica da questo da diferena.

    c) A reafirmao da dignidade da Alteridade

    Superamos, porm, a etapa das ingenuidades bem-intencionadas: se h uma lio que 2.500 anos de histria e de filosofia bem nos ensinam, a de que, pela via do intelecto iluminante, podemos ir at o iluminado pelo intelecto, e no mais alm. Se isto o que concebemos como sendo a totalidade das possibilidades de pensar e do conceber, ento chegamos realmente aos limites da filosofia e ao fim da histria; se, porm, ao estilo da primeira frase da Negative Dialektik de Adorno, per-cebemos a uma unilateralidade que envia por sua vez a uma estranha e provocativa obscuridade, a uma m conscincia20, a uma outra histria, a um outro tempo que o tempo da sincronia, ento estamos talvez preparados para ousar enfrentar o receio do desencontro, do paradoxo, do desvo, do fulcro que incide na construo do corpo dos conceitos. Estaremos, em outros termos, finalmente preparados para retornar questo original: a questo do sentido do real. Mas no o faremos apenas com as armas da tradio, mas com tudo aquilo que a linha hegemnica da tradio nunca ouviu nem soube identificar.

    No reiniciamos, portanto, nosso itinerrio maneira de identificao de representaes, mas auscultando os vestgios do irrepresentvel; no decamos em irracionalidades desesperadas ou apocalpticas, mas tambm no identificamos a racionalidade com a Razo onipotente. No ignoramos que, do Outro, somente captamos o que se d nossa representao, e que sua alteridade se refugia para alm da prpria estrutura de cognoscibilidade e de manipulao do logos21 e tambm no desprezamos o fato de que, sem estes cuidados, nos tautologizamos em uma To-talidade autofgica, beco sem sada de qualquer lgica do absoluto.

    Mas, antes e acima de tudo, no hipotecamos nossa confiana a alguma estrutura onde o tempo se dissolve em algo maior do que ele, tal como o Ser, mas articulamos a possibilidade de compreenso do real justamente temporalidade real que se d apesar de ns, do Ser e de nossa imensa capacidade sintetizante. Assim, desarticulamos a equa-o congelada em torno ao presente do indicativo de ser, perguntando simplesmente pelo sentido de ser; sentido que outro que ser e que ser algum re-presenta ou pretenda esgot-lo sem o violentar, uma vez que no questo de ser ou no-ser, mas se sugere exatamente na diferena entre estes e quaisquer outros pares de conceitos. D-se a plura-lidade de origem22, e procurar o sentido do real significa, exatamente: construir a relao entre, no mnimo, dois diferentes no famoso dizer de Lvinas, a tica a tica

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    primignia, e a origem de todo o sentido, ou seja, a prpria possibilidade de pens-lo. O sentido do estabelecimento da tica como filosofia primeira no mais do que isso: construir a compreenso de que o mundo, a terra, o universo se do como um imenso palco, no qual se deve desenrolar um drama tico enquanto fundamento da realidade e teoria pr-original de todo conhecimento possvel23. Muito provavelmente esta a racionalidade original da existncia humana, e no a explorao obsessiva de quarks e de quasars e galxias distantes. Assim, se verdade que (...) A diferena entre o velho e o novo pensamento expressa-se... na necessidade do Outro e, o que d no mesmo, no levar a srio o tempo24, ento a crise civilizatria em que nos encontramos nada tem de misteriosa, nem em sua origem, nem em seu desenvolvimento; trata-se, em suma, das imensas conseqncias da pertinaz fidelidade a uma muito bem determinada lgica de princpios, que se props a pensar e resolver o mundo desde a dimenso da identidade e da identificao. Grandes conquistas da advieram; mas tambm da provm os imensos impasses em que nos encontramos. O seqestro do infinito no presente, transformando a terra em um pretenso almoxarifado inesgotvel e em um gigantesco depsito de lixo; a idia suicida de que, de tanto rodar em torno a si mesmo, o frenetismo tresloucado acabar por se encontrar com suas razes; os automatismos e neutralizaes bem pensantes, a violncia e explorao desmedidas que habitam todos os nveis de realidade tudo reenvia a um vcio de origem: a obsesso solitria por uma verdade solitria, a do tautolgico e idntico a si mesmo.

    V. Como brevssima concluso

    ( ...) Significa antes viv-la como interferncia, como meia-voz, como Gering. Equivale a acompanhar o ser em seu ocaso e a preparar assim uma humanidade ultrametafsica.G. Vattimo25

    Talvez devamos compreender a radicalidade do pensiero debole no a partir de algum resqucio, ainda que remotssimo, de uma ontologia primeira, mas sim atravs daquilo que, propriamente, debilita o pensamento totalizante: a temporalidade. Pois o grande poder do ser humano que tudo que ele necessita para ser humano ele j tem: ele tem o instante26, o instante que desarticula definitivamente a solido violenta e reintroduz o desencontro original entre o Mesmo e o Outro, condio primordial da inteligibilidade decisiva da absolutamente necessria diferena real entre Totalidade e In-finito, raiz do sentido e condio de todo futuro concebvel. Estaremos a realmente, no ocaso do Ser e de suas nostalgias, s portas de uma humanidade ultrametafsica.

    Ricardo Timm de SouzaProfessor da PUCRS

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    Notas1. Para referncias completas, cf. Referncias bibliogrficas, ao fim do texto.2. Utilizamos a traduo espanhola El pensamiento dbil. Madrid: Ctedra, 1995.3. Veja-se, como exemplo sinptico, nosso ensaio O sculo XX e a desagregao da totalidade. In: Totalidade & desagregao. Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, pp. 15-29.4. Dialtica, diferena e pensiero debole. In: VATTIMO, Gianni e ROVATTI, Pier Aldo (Orgs.). El pensamiento dbil. Madrid: Ctedra, 1995, pp. 41-42.5. A fim de no sobrecarregar excessivamente o texto com notas explicativas ou observaes, indiquemos desde j os textos principais que servem de subsdio geral ou especfico ao argumento principal que aqui desenvolvemos; nossos livros constantes nas Referncias bibliogrficas do presente artigo.6. Cf. nosso Sentidos do infinito a categoria infinito nas origens da racionalidade ocidental, dos pr-socrticos a Hegel, p. 87-114.7. Para um estudo mais detalhado deste tema, cf. nosso j citado O sculo XX e a desagregao da totalidade, bem como nossa Introduo a SOUZA, R. T. As fontes do humanismo latino - A condio humana no pensamento filosfico contemporneo.8. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Esttica e restos da histria. In: SOUZA, R. T. Totalidade & desagregao - Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, op. cit., pp. 40-46. 9. Cf. SOUZA, R. T. Razes plurais itinerrios da racionalidade tica no sculo XX Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. 10. Cf. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de histria. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas. So Paulo: Brasiliense, 1984.11. Cf. nosso Sentidos do infinito a categoria infinito nas origens da racionalidade ocidental, dos pr-socrticos a Hegel.12. Desenvolvemos amplamente este tema em nosso ensaio Husserl e Heidegger motivaes e arqueo-logias. In: SOUZA, R. T. O tempo e a Mquina do Tempo - Estudos de Filosofia e Ps-modernidade, pp. 49-80; o presente Intermezzo se constitui em excerto modificado deste escrito.13. Cf. SOUZA, R. T. de. Nietzsche e a festa da Totalidade. In: Totalidade & desagregao..., op. cit., p. 65ss.14. Kleinere Schriften..., p. 359.15. importante que se perceba que nos perfeitamente claro que esta linha simplificada de argumentao no subsume as infinitas variantes que, a cada passo, se estabelecem em contraponto a esta grande dinmica; mas o que se quer destacar que a grande linha determinante da civilizao ocidental a acima exposta, para a qual, justamente, as variaes nada mais so do que desvios necessitados de correo.16. Cf. nosso Metamorfose e extino - Sobre Kafka e a patologia do tempo.17. Defendemos esta posio compreensiva especialmente em nossos livros Totalidade & desagregao... e Sujeito, tica e Histria... .

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    18. Cf. nosso ensaio Sartre e a ambigidade da percepo. In: SOUZA, R. T., Totalidade & desagregao..., op. cit., pp. 81-100.19. Cf. acima, Intermezzo.20. Cf. LVINAS, Emmanuel. A conscincia no-intencional. In: LVINAS, E. Entre ns - Ensaios sobre a alteridade. Petrpolis: Vozes, 1998.21. Cf. nosso ensaio O delrio da solido - o assassinato e o fracasso original. In: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lvinas. 22. Cf. nosso Existncia em deciso - uma introduo ao pensamento de Franz Rosenzweig.23. Ao contrrio do que supem certos hermeneutas de primeira hora, postular a tica como filosofia primeira no significa abandonar a ontologia, tarefa provavelmente impossvel e absolutamente desnecessria; mas, antes, questionar construtivamente o sentido da espessura ontolgica do real e o monismo auto-referente e neutralizante nos quais a maior parte das grandes filosofias tm depositado o melhor de suas esperanas.24. ROSENZWEIG, Franz. Zweistromland, op. cit., p. 387.25. Dialtica, diferena e pensiero debole. In: VATTIMO, Gianni e ROVATTI, Pier Aldo (Orgs.). El pensamiento dbil. Madrid: Ctedra, 1995, p. 42.26. ROSENZWEIG, Franz. Das Bchlein des gesunden und kranken Menschenverstandes, p. 98.

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    __________. O tempo e a Mquina do Tempo - Estudos de Filosofia e Ps-modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. __________. Existncia em deciso - uma introduo ao pensamento de Franz Rosenzweig. So Paulo: Perspectiva, 1999. __________. Sujeito, tica e Histria - Lvinas, o traumatismo infinito e a crtica da filosofia ocidental. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. _________. Sentido e alteridade Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lvinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. _________. Metamorfose e extino - Sobre Kafka e a patologia do tempo. Caxias do Sul: EDUCS, 2000._________. Ainda alm do medo filosofia e antropologia do preconceito. Porto Alegre: DaCasa-Palmarinca, 2002._________. Sobre a construo do sentido o pensar e o agir entre a vida e a filosofia, So Paulo: Editora Perspectiva, 2003._________. tica como fundamento uma introduo tica contempornea. So Leopoldo: Editora Nova Harmonia, 2004._________. As fontes do humanismo latino - A condio humana no pensamento filosfico contempo-rneo. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2004._________. Razes plurais itinerrios da racionalidade tica no sculo XX Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004._________. Sentidos do infinito a categoria infinito nas origens da racionalidade ocidental, dos pr-socrticos a Hegel. Caxias do Sul: EDUCS, 2005._________. Ns e os outros. Sobre a questo do humanismo, hoje. In: PAVIANI, Jayme e DAL RI Jr, Arno (Orgs.). Globalizao e humanismo latino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, pp. 203-212._________. Justia, liberdade e alteridade tica. Sobre a questo da radicalidade da justia desde o pensamento de E. Lvinas. In: VERITAS Revista de Filosofia, Vol. 46 n.2, 2001, p. 265-274.SOUZA, Ricardo. Timm de. e OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. (Orgs.) Fenomenologia hoje existncia, ser e sentido no alvorecer do sculo XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001._________. Fenomenologia hoje II significado e linguagem. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.VATTIMO, Gianni e ROVATTI, Pier Aldo (Orgs.), El pensamiento dbil. Madrid: Ctedra, 1995.

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    ResumoO texto tem como objetivo articular filosoficamente alguns elementos do pensiero debole de G. Vattimo com a viso geral do tema da diferena especialmente no pensamento de Emmanuel Lvinas, mas tambm no de Franz Rosenzweig, em uma reconstruo histrico-filosfica desta questo; as categorias temporalidade e alteridade so propostas como as referncias principais para uma possvel aproximao entre os autores no cenrio especial da filosofia contempornea.

    Palavras-chavePensiero debole; Diferena; Alteridade; Temporalidade.

    AbstractThe text seeks to articulate philosophically some elements of G. Vattimos pensiero debole with the general view of the theme difference specially in the thinking of Emmanuel Levinas, but also in the Franz Rosenzweigs thought, in a historical-philosophical reconstruction of this question; the categories temporality and alterity are proposed as the principal references for the possible approximation between the authors in the special scenario of the contemporary philosophy.

    Key-wordsPensiero debole; Difference; Alterity; Temporality.