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    DOSSICuerpo, Lenguaje y Enseanza

    rea Temtica: Diferenas e Subjet ividades em Educao

    ETD Educao Temti ca D igi tal, Campinas, v.8, n. esp., p.119-139, jun. 2007 ISSN: 1676-2592. 119

    A RELAO PROFESSOR-ALUNO NO EXISTE: CORPO EIMAGEM, PRESENA E DISTNCIA

    Rinaldo Vol tol in i

    RESUMOO recente e crescente uso de recursos udio-visuais e de informtica no ensino recolocou paramuitos a questo da necessidade da presena do professor. Longe de ser apenas um recurso que vemprolongar o que j est no universo escolar, sua entrada modifica a dinmica da relao professor-aluno. As condies que permitiram esta entrada parecem corresponder aquilo que Lacan elucidaem sua teoria dos Discursos quando se pergunta: os gadgets vencero? A mudana das relaesentre o sujeito e o objeto, caractersticas deste novo discurso contemporneo, o do Capitalista, noqual o objeto parece predominar sobre o sujeito, podem ser lidas em vrios mbitos. O objetivo

    deste estudo analisar as vicissitudes desta mudana no interior das prticas educativas,particularmente em torno do que esta questo sobre a necessidade da presena do professor ilustrasobre ela.

    PALAVRAS-CHAVERelao professor-aluno; Discurso; Objeto

    THE RELATIONSHIP TEACHER-STUDENT DOES NOT EXIST:BODY, IMAGE, PRESENCE AND DISTANCE

    ABSTRACT

    The recent and growing use of audiovisual sources and computing in teaching re-set for many

    people the issue of the need of the teachers presence. Far from being only a source that extends

    what already is in the school universe, its entrance changes the dynamic of the relationship teacher-

    student. The circumstances which permitted this entrance seem to correspond to what Lacan

    elucidates in his theory of the Discourses when it is questioned: will the gadgets win? The change

    of relationship between subject and object, typical of this new contemporary discourse, the

    Capitalist, in which the object seems to predominate the subject may be understood in various

    ways. The goal of this study is to analyze the vicissitudes of this change inside the educational

    practice, particularly considering what this question of the necessity of the teachers presence

    illustrates about it.

    KEYWORDS

    Relationship teacher-student; Discourse; Object

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    Em seu texto sobre o Mal-estar na Civilizao (1930), Freud constata a inquietao

    dos homens diante da descoberta de que haviam criado pelo prprio uso da Razo, atributoque lhes conferira uma supremacia indiscutvel sobre os limites que a natureza lhe

    impusera, instrumentos com os quais poderiam pr fim a sua prpria existncia na Terra.

    Seu decorrente mal-estar viria da convico ntima de que j no podiam mais

    confiar cegamente na justeza de sua Razo nem mais controlar integralmente o destino dos

    objetos por eles criados a ponto de impedi-los de ganhar autonomia em relao prpria

    vontade do criador.

    a mesma questo que retoma Kubrick no filme 2001: uma Odissia do espao,

    clssico no gnero da fico, ao representar o momento em que a mquina vira sujeito e

    desaloja o homem de sua posio de comando. Mas a mesma questo tambm que retorna

    na perspectiva do remdio criado para resolver o problema da impotncia masculina, que

    garante uma ereo sem sujeito. Ainda que ele possa fazer algo para obt-la nada pode

    fazer para termin-la, a no ser aguardar que os efeitos do remdio, que agora est no

    comando, sigam seu ciclo normal.

    Ocasio para percebermos um paradoxo interessante: o quanto um sem-limites

    que o exerccio da Razo nos levou, se foi capaz de nos emancipar dos limites impostospela Natureza, no pde, entretanto, nos livrar de desembocar num outro limite agora

    imposto pela prpria lgica do objeto criado por ns.

    O sonho acalentado por sculos, que a construo de objetos pudesse nos dispensar

    da labuta, realiza na contemporaneidade sua faceta inusitada: a do risco de que eles nos

    dispensem de tudo.

    Os professores, por sua vez, se inquietam porque sentem a ameaa de sua extino

    que lhes espreita. Defendem-se advogando sua imprescindibilidade, a mesma que j havia

    comeado a ser questionada quando uma certa psicologizao da educao veio, em nome

    de um suposto bom desenvolvimento da criana, prescrever ao professor um papel

    acessrio, de intermediador, facilitador, enfim, de algum cuja presena deveria primar

    pelo apagamento.

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    Mas seria com o hiperdesenvolvimento tecnolgico, associado a questes

    econmicas como a da extenso do ensino a todos, que viria o golpe mais decisivo. Aquele

    na qual a ameaa muda da psicologizao ganharia a voz necessria para que no restassedvidas de que o risco estava de fato a.

    O avano dos recursos udio-visuais e de informtica e sua aplicao ao ensino

    viriam recolocar mais decisivamente a questo do papel do professor, ou pelo menos de

    sua presena frente aos alunos que com muito mais economia poderiam agrupar-se

    distncia e receber o conhecimento atravs de meios tecnolgicos criados para garantir o

    acesso informao.

    claro que sempre se pode dizer que ainda ser necessrio o professor face a face

    com o aluno, e que mesmo os sistemas de ensino distncia, por exemplo, no o dispensam

    de sua funo de acompanhamento da aprendizagem. Na verdade defendida sua presena,

    no certamente com a mesma freqncia e extenso, posto que se assim fosse tal ensino

    para nada mereceria o nome de distncia, mas para destrinchar com os alunos os

    contedos que atravs da mquina recebem. Talvez como um ltimo suspiro que no deixa

    de se assemelhar com aquele dos amantes que se conheceram pela Internet e que marcam

    um encontro para que, enfim, um mnimo de realidade nesta relao no se perca.

    Poderamos nos perguntar se no h algo nesta mudana que modifica a forma de

    considerarmos a presena real, ou seja, aquela que depende do suporte corporal?

    Um objeto no o sem suas circunstncias, sem as coordenadas que o definem, quer

    dizer, ele no entra num sistema sem cobrar o preo de carregar consigo a lgica de sua

    constituio, sem que sua oferta crie demanda.

    O mais comum se pensar que as caractersticas de um meio qualquer no se

    alteram por conta da entrada de um novo objeto, mas ilude-se quem pensa que um objeto

    como o computador, apenas para evocar um exemplo entre tantos outros, entra no universoescolar como um recurso a mais que se soma a outros e que apenas prolongaria uma

    lgica de trabalho que j se encontra ali.

    A entrada do computador na escola implica que os processos de ensino se

    flexibilizem em sua direo como parece atestar, por exemplo, o desassossego dos

    professores que em geral tm que se esforar muito mais para coibir o uso dispersivo por

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    parte dos alunos do que para beneficiar-se da mquina naquilo que nela haveria de

    instrumental para seu trabalho. Diante da multiplicidade de espaos que se abrem

    navegao, o professor se d conta que grande parte de seu esforo, talvez a maior,consiste em evitar que o fascnio exercido pelas possibilidades da mquina predominem

    sobre as finalidades de seu uso. Interessante verso da vitria do objeto sobre o sujeito

    assim que a lgica capitalista, cujo trao principal, segundo a rubrica lacaniana,

    seria o da primazia do objeto sobre o sujeito e a promessa de uma relao direta e

    satisfatria entre ambos, busca se perenizar. Fazendo com que o indeterminado do desejo se

    transmute em determinado da necessidade para a qual o sistema de ofertas teria o objeto na

    medida certa, j que feito para criar sua prpria demanda, pronto para levar.

    O risco contido em uma tal proposio est no que nela existe de afirmao de que o

    acesso direto ao objeto seria mais compensatrio do que o tortuoso e incerto caminho do

    lao com o outro, induzindo ao desinvestimento no lao.

    Da outro interessante paradoxo, cuja forma assumida na educao parafraseamos

    no ttulo deste texto: que a relao sexual no exista, segundo aforisma de Lacan, presente

    ao longo de toda sua obra, a condio para que os laos sociais existam, ou seja, que no

    haja equao exata entre o sujeito e o objeto de sua satisfao o que impulsiona o sujeito

    na direo do outro com quem espera suplementar a falta que ele herda desta inadequao

    ao objeto. Se o objeto lhe for apresentado como portando os contornos de seu desejo ele

    induzido a iludir-se com o fato de que este lhe completa resultando em um desinteresse

    pelo outro (que, de todo modo, aquele que sempre o inferno segundo a conhecida

    frmula sartreana).

    Que a relao professor-aluno no exista, numa parfrase do aforisma de Lacan

    (1972-73), indicando o engodo de uma relao assim abstrata, ideal, tal como prescrita nas

    teorias pedaggicas atuais, a condio de possibilidade para que existam relaes entreprofessores e alunos reais, relaes estas sempre marcadas pela incompletude e pelo

    impossvel.

    O atual estgio das coisas em educao no mostraria a presena de uma nova

    verso para este aforisma: a da desapario das relaes entre professores e alunos?

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    A Naturalizao do humano e a razo instrumental

    Para alm de todo exagero catastrofista, cuja razo no outra seno proteger-se

    numa sensao nostlgica do mundo, defensvel uma apreciao do futuro segundo o

    exame das tendncias do presente. O gnero da fico cientfica no faz outra coisa a no

    ser perceber o enraizamento presente de algo que tende a se desenrolar no futuro.

    A emergncia de uma teoria como a behaviorista, comprometida com a adeso ao

    ideal e aos mtodos das Cincias Naturais no estudo do homem, j foi inmeras vezes

    apontada como a operao que garantiria a cientificidade da Psicologia, no por sua

    consistncia epistemolgica, que permanece lhe sendo uma questo constrangedora, mas,

    como afirmou Canguilhem (1968) citado por Japiassu (1982), por seus servios prestados Tecnocracia.

    O mrito de tal observao est principalmente em seu poder de deslocar a

    discusso de um nvel meramente epistemolgico, no qual o behaviorismo pareceria poder

    sustentar suas razes, para o nvel ideolgico no qual podemos apreend-lo em suas

    conexes com a legitimao cientfica de uma nova discursividade social (a Capitalista)

    para a qual ele viria prestar seus servios.

    A lamentvel verdade, no que concerne ao behaviorismo e a validade de suasleis, que quanto mais pessoas h, mais eles tm a tendncia de bem seconduzir e de no suportar o no-conformismo. Na estatstica, o fato posto emevidncia pelo nivelamento das flutuaes. (...) A uniformidade estatstica no de modo algum um ideal cientfico inofensivo(ARENDT,1958 citado por GORI;DEL VOLGO, 2005, p. 211) (traduo livre).

    O que h de desagradvel nas modernas teorias do comportamento, no que elassejam falsas, mas que elas podem se tornar verdadeiras, que elas so, de fato, amelhor demonstrao possvel em conceitos de certas tendncias evidentes dasociedade moderna (ARENDT, 1958 citado por GORI; DEL VOLGO, 2005,

    p.214).

    A imagem j clebre do rato preso numa caixa que o limita, privado em suasnecessidades vitais, a obedecer ao comando do experimentador que deseja que ele

    aprenda certos truques que lhe garantiro a vida, guarda um valor paradigmtico cujo

    significado seria importante analisar, no naquilo que nisso mostraria dA aprendizagem

    (o maisculo servindo aqui para marcar a ambio de encontrar uma lei geral do

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    funcionamento humano), mas naquilo que isto guarda de relao com as vicissitudes da

    Educao atual

    O primeiro ponto a observar o da pretenso de equivalncia entre ocomportamento animal e o humano que tal orientao de pesquisa est inclinada a admitir.

    De fato, a perspectiva de tratar o homem a partir das coordenadas das Cincias Naturais no

    podia se dar sem perseguir as leis da Natureza Humana.

    Toda a afirmao sobre o homem como um ser desnaturado, concepo clssica

    que continua a sustentar outra orientao de pesquisa do homem, no pode seno ser tratada

    dentro de tal perspectiva como uma posio preconceituosa, que acarretaria atrasos ao

    estudo do comportamento humano.

    No que a prpria teoria behaviorista no faa, ela mesma, uma certa experincia

    desta desnaturao do homem, fato que ela est inclinada a negar (no sentido freudiano do

    termo, ou seja, para esconder um conflito, para se defender, se proteger de uma ameaa a si

    mesma), pois tudo nela a prepara para no poder acolher em seu domnio conceitual tal

    considerao.

    Refiro-me ao que esconde uma certa ambigidade presente no conceito de

    condicionamento, to fundamental para a teoria behaviorista. Neste conceito fica

    reconhecido que o comportamento depende de certas condies, sem as quais no

    poderia manter-se, sem que, contudo, se chegue a reconhecer o quanto a suposta Natureza

    humana frgil dada sua imensa possibilidade de alterao, fato que a prpria teoria

    behaviorista se empenha em defender. Ou ainda, sem chegar a constatar que a noo de

    Natureza humana ela mesma uma construo conceitual que dependeu tambm de certas

    condies histricas para aparecer. Na verdade sem poder reconhecer que a Natureza

    humana mesmo, como diria Arendt (1958), junto com tantos outros, a Condio

    Humana.Resulta interessante observar como todo este empreendimento naturalista em

    Psicologia parece ter se iniciado (pelo menos todos o narram como um mito original),

    paradoxalmente, com a impressionante formulao pavloviana ao conseguir demonstrar

    que era possvel alterar em seu cachorro-cobaia uma resposta instintiva em prol de outra

    aprendida. Enfim, seu cachorro j podia salivar diante do simples som de uma campainha

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    ao invs de s emitir esta resposta face viso de seu alimento, tal como a Natureza lhe

    havia dotado. Ou seja, que era possvel desnaturar seu cachorro.

    No interior da Psicanlise foi onde provavelmente esta noo de condio humanarecebeu seu maior impulso e desenvolvimento.

    O empalidecimento da noo de instinto em prol da noo de pulso, a valorizao

    de temas como os sonhos, os chistes, a cultura, os esquecimentos, to exclusivos do

    humano, so marcas disso.Todo o empreendimento terico freudiano pode ser

    compreendido como uma insistncia em demonstrar e extrair as conseqncias do fato de

    nossa diferena em relao aos animais, sem precisar, contudo, aderir a nenhuma tese do

    privilgio na Criao.

    Desde a obra freudiana que a expresso virar gente, consagrada pelo senso-

    comum, ganhou seu mais expressivo sentido: o de que ser homem no um atributo

    natural, inato, ainda que o seja sua potencialidade, mas, antes, uma construo que

    sempre tributria de certas condies. E mais ainda, acrescentaramos seguindo a

    perspectiva freudiana, que esta construo caminha na direo de uma desnaturao do

    homem, de um afastamento do pouco que a Natureza nos dotou para a sobrevida.

    Para a Psicanlise seria justamente a precariedade instintiva inicial, a vacncia

    deixada pelo instintivo na determinao do comportamento humano que, abrindo espao

    instalao do pulsional, permite a constituio do humano segundo regras nas quais a

    Natureza conta pouco.

    Lacan (1966 (a)) explicitaria ainda melhor esta diferena fundamental entre o

    homem e os animais em seu estudo sobre o estdio do espelho, atravs da comparao entre

    o que se passa com o manejo da imagem em uns e em outros.

    Para o homem, seu corpo, a partir de um momento inaugural e da para sempre,

    restaria comprometido com a imagem unificada dele, capturada no espelhamento que ooutro que se ocupa do infans lhe possibilita quando simplesmente olha para ele como um

    sujeito. Fascinado com a prpria imagem retornada deste espelho o humano no poder

    jamais, ao longo de toda sua vida, deixar de apaixonar-se por ela, a ponto de que em todas

    as suas futuras relaes estar, feito Narciso,condenado a v-la aparecer como uma

    sombra que media a relao com o outro.

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    por isso que a criana, ainda bem imatura, responde com um sorriso jubiloso ao

    reflexo de sua prpria imagem no espelho, experincia sem equivalentes no mundo animal.

    Ainda que em certas experincias alguns animais tenham sido levados a identificar suaprpria imagem no espelho e no mais reagir a ela como se tratasse de um outro, nunca se

    verificou a presena do jbilo nesta resposta.

    O corpo do homem estar marcado para sempre, a partir da por um certo em

    relao , assim me vejo e te vejo segundo a forma pela qual fui visto.

    Temos, ento, uma diferena crucial entre a Psicanlise e o Behaviorismo na

    medida que para a primeira, a comparao com o animal ser sempre para encontrar a

    diferena, enquanto para o segundo a mesma comparao buscar as semelhanas.

    Mas seguindo a toro sutil, proposta por Hannah Arendt nos trechos acima citados,

    podemos desenvolver o que se passa em termos da explorao poltica atual desta diferena

    epistemolgica fundamental.

    Poderamos flagrar no ensino lacaniano, particularmente em sua frmula do

    Discurso do Capitalista, a escrita de uma operao discursiva caracterstica de uma

    poltica que precisaria, em funo de seus fins instrumentais, fazer equivaler o homem e

    o animal. Trata-se de uma operao discursiva que consiste em reduzir o desejo

    necessidade.

    A escrita da frmula do discurso do Capitalista, variao do Discurso do Mestre,

    permite observar pela primeira vez a possibilidade de uma relao direta, sem mediaes e

    plenamente satisfatria entre o sujeito e o objeto, o que significativo dado que a pesquisa

    freudiana j havia insistido no carter impossvel de tal relao.

    De fato, o Capitalista aquele que se esmera em produzir um objeto que algum

    precise. No que ele produza algo que reconhea o que as pessoas j precisavam, seno

    que o pice de sua operao valer-se o melhor possvel desta caracterstica propriamentehumana da desnaturao, do desapego necessidade, para criar uma necessidade que

    aparea como vital para o sujeito e para a qual seu objeto produzido se apresente. Dito de

    outro modo, o capitalista cria a necessidade para a qual o objeto produzido aparece sob-

    medida. o que demonstra sem equvocos o famoso slogan que no exageraramos em

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    tom-lo como a traduo mais exata da visada capitalista: o No deixar a desejar. Esta

    frase resume o que opera o Discurso do Capitalista: a tentativa da eliminao do desejo.

    E ele o faz induzindo as pessoas, tal como o rato na caixa do experimentador ailudir-se com o fato de eu tenho o que voc precisa!, o que s possvel atravs de uma

    privao que cria uma carncia, construda estrategicamente, para garantia do mnimo de

    sucesso para esta operao.

    Como vemos h um sucesso atual do Behaviorismo que no deveria deixar enganar

    os que acreditam que ele j no seria mais uma presena dominante no interior da

    Psicologia. Como sinais evidentes disto poderamos evocar a reiterao de suas teses no

    mbito da Psicologia clnica, por exemplo, a partir de uma discusso absolutamente recente

    entre os cognitivo-comportamentalistas e os psicanalistas e a freqncia com que os

    primeiros aparecem mais simpaticamente que os segundos frente s polticas pblicas ou

    privadas de sade, dado o carter pragmtico que caracteriza suas propostas. Mas tambm

    da manuteno de sua fora nos meios escolares, apesar da condenao mais ou menos

    geral de seus postulados tericos. Pois bem, seu sucesso atual parece repousar sobre o fato

    criado pela direo capitalista que transformou a sociedade num equivalente da caixa do

    experimentador.

    O crescimento galopante das populaes cria a necessidade de procedimentos mais

    genricos que atinjam muitos ao mesmo tempo. por isso que o registro do econmico

    vai se sobrepondo em importncia, em todas as discusses sociais, ao registro do poltico.

    Dizer de uma greve que ela poltica desqualific-la uma vez que a nica greve

    considerada legtima seria aquela causada por motivos econmicos, tais como reajustes de

    salrio ou benefcios pecunirios.

    As populaes deveriam entregar a poltica aos polticos, profissionais no assunto e,

    portanto, capazes de gerir a coisa pblica com mais tcnica, ainda que elas tenham emgeral, pelo menos nos pases em desenvolvimento, uma impresso ruim do trabalho destes

    que elas escolheram para lhes representar. Elas pretendem se manifestar apenas quando

    algo atinge seu prprio bolso.

    Assim dito, bastaria indicar o que isto guarda de proximidade com o rato privado

    em suas necessidades vitais, manipulado pelo experimentador que, para tornar possvel

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    seu poder de influncia sobre ele, precisa restringi-lo em seu movimento e controlar suas

    necessidades vitais.

    Mas apagar o desejo uma tarefa impossvel. Uma vez atravessados pelalinguagem, nossa satisfao se tornou errante, precria e, sobretudo, parcial.

    O Mercado, ento, se desequilibrar porque, entre outras coisas, a previso de

    consumo de um tal produto no se cumpriu, outro produto se lanou e deslocou uma

    demanda de seu destino anteriormente previsto, etc.

    O Capitalista sabe, pragmaticamente, que precisa variar, criar com seus objetos

    porque o desejo humano lbil. Por conta de sua insaciabilidade ele dispara o tdio que nos

    impulsiona a procurar o diferente, ainda que seja para tentar encontrar nele a mesma pecha

    de satisfao que tinha nos movido em direo ao objeto anterior.

    Mesmo assim, a estratgia do Capitalista tentar esmerar-se cada vez mais em

    busca do objeto perfeito, aquele que criaria a necessidade absoluta de seu consumo, em

    uma palavra: sua dependncia. A indstria do narcotrfico, das mais milionrias em todo

    o mundo, soube fazer bem o uso desta caracterstica do Capitalismo valendo-se de sua

    proibio, inclusive, para incrementar o valor de seu objeto oferecido.

    Ainda como uma ltima palavra sobre esta naturalizao do humano, poderamos

    nos perguntar se aquilo que Foucault (1971) isolou com o nome de Bio poder, no flagra

    tambm, de uma outra forma, a mesma operao de tentar reduzir o homem ao animal.

    Afinal promover a Vida como principal valor da sociedade no deixa de contribuir com o

    obscurecimento daquilo que nos diferencia dos animais, uma vez que neste particular esta

    diferena no existe.

    A razo instrumental, o complemento da naturalizao do humano, o segundo

    ponto que nos importa desenvolver retomando a imagem do rato na caixa do

    experimentador como modelo.De fato, o experimentador acredita poder atingir seus resultados controlando

    variveis de um tal modo que o instrumentalize a instalar a resposta adequada.

    O mais importante para ele nesta tarefa no o que ele pode conseguir com aquele

    rato em questo, mas o que pode compreender desta experincia que possa ser

    generalizado, transformado em regra geral que valha para todos os outros ratos, mas

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    tambm, como indica o behaviorismo, para os humanos. Todos conhecemos a verso que o

    senso comum consagrou para o termo cobaia, sempre servindo para aludir a algum que

    se deixa usar para a obteno de benefcios que ele mesmo muito provavelmente nopoder usufruir.

    assim que o papel da estatstica se torna justificvel, imprescindvel e decisivo.

    preciso apresentar nmeros consistentes para justificar que uma regra vale, quer dizer,

    que ela tenha um valor geral, potencialmente para todos. Algo que tenha valido s para um

    rato no pode ser aproveitvel, j que no representa nada estatisticamente ainda que

    denuncie provavelmente uma particularidade daquele rato, ou mais ainda, da relao

    existente entre ele e o experimentador, esta para sempre forcluda por fora do discurso

    cientfico moderno.

    Como todos sabem, nada numa pesquisa pode ter a ver com as peculiaridades do

    pesquisador, sob pena de que o resultado seja questionvel por sua no replicabilidade (

    a rplica que a regra: criar semelhanas). O tratamento estatstico est comprometido

    intrinsecamente com o apagamento de qualquer questo singular.

    O sutil desta operao, se a tomamos de novo pelo vis poltico que ela representa,

    o que tem nela de indutor de um conformismo, ou seja, do que ela induz a todos, depois

    de configurada a estatstica, para que se comportem conforme o que esta estatstica

    determina. Depois dela, todos passam a ser considerados a partir de uma curva-padro.

    Quanto mais as pessoas se comportem da mesma maneira mais possvel tom-las

    em conjunto, o que parece ser crucial quando se trata de gerir uma grande populao.

    A capacidade de diluir-se no grupo aparece cada vez mais como uma virtude a ser

    instaurada como ironiza Chico Buarque de Holanda, na cano Construo, citado por

    Bolle (1980) ao dizer: morreu na contramo atrapalhando o trfego.

    por isso que a estatstica no de modo algum um ideal andino. Ela estcomprometida com um tipo particular de regime de controle das pessoas, que trabalha

    modelando comportamentos feitos especialmente para se estabelecer um padro, que ser

    em seguida a base de procedimentos tcnicos que se instrumentalizaro a partir destes

    dados para gerir a populao, agora j devidamente categorizada.

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    Imbudo da certeza com relao a seus objetivos o experimentador no se pergunta

    mais pela justeza deles, apenas se detm nas maneiras de atingi-lo. Nem pode mesmo

    consultar o rato, menos pelo fato de que ele no fala, mas mais pela confiana que tem nalegitimidade de suas intenes que tornaria obsoleta qualquer necessidade de consulta.

    Mas, talvez resida no fato de que o rato no fale, a principal questo a destacar.

    A comparao entre o homem e o animal revela seu mais agudo problema neste

    ponto.

    Paul Ricoeur escreve: A situao criada pelas cincias de uma grandeimportncia poltica. Desde que o papel da linguagem est em jogo, o problemase torna poltico por definio, pois que a linguagem que faz do homem umanimal poltico. (GORI; DEL VOLGO, 2005, p.213) (traduo livre).

    Uma desvalorizao da palavra, inevitvel dentro de uma tal perspectiva, precisou

    acontecer antes entre os homens para que a comparao com os animais pudesse ser

    sustentvel. Ela tributria, na verdade apenas o outro lado, da desvalorizao do poltico

    que acima nos referamos.

    O prprio surgimento tardio da Lingstica e da Psicanlise no campo das cincias,

    ambas essencialmente marcadas pela tentativa de destacar a primazia da linguagem no

    humano, testemunha a necessidade de uma recuperao do papel da linguagem que

    pareceria ter se esvaziado pela operao principalmente orquestrada pela Cincia. Afinal,

    lembremos que a linguagem na cincia vai caminhar para expressar uma verdade

    supostamente contida no objeto, ou seja como puro enunciado, desligado de qualquer

    enunciao.

    Mas no se trata de um desvalorizao qualquer da palavra. Nem mesmo esta

    desvalorizao de todo modo evidente, uma vez que habitual se dizer que jamais os

    seres humanos falaram tanto, possibilitados pelos modernos recursos tecnolgicos agora

    colocados a sua disposio. O ainda, que mesmo numa sala de aula nunca se deu tantoespao para que a palavra circule como nos dias de hoje..

    A desvalorizao da palavra a que nos referimos precisa ser melhor deslindada.

    aquela que aparece como um dos ingredientes decisivos de um certo fracasso na atual

    educao, mas tambm aquela que pe em xeque a validade de se fazer uma psicanlise

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    hoje em dia face a tantas outras ofertas, supostamente mais rentveis e que se apresentam

    como alternativas mais pragmticas.

    Trata-se de uma desvalorizao fomentada, como salientvamos acima, por umaoperao tpica do discurso cientfico que separa o enunciado de qualquer enunciao e que

    se disseminou em todo tecido social. Alis esta disseminao que nos autoriza a tomar a

    cincia como o Discurso da cincia e no consider-la apenas uma atividade humana

    entre outras.

    E ser mesmo a noo de discurso, tal como foi elaborada por Lacan (1969-70c),

    que talvez nos permita chegar mais prximo de nosso problema original, uma vez que ela

    foi cunhada para dar conta exatamente desta passagem que leva o homem em direo ao

    lao com outro em funo de sua relao impossvel com o objeto.

    A palavra, a transferncia: aprende-se por amor!

    Uma charge bem humorada sobre a experincia pavloviana de condicionamento do

    cachorro parece ressaltar o ponto fundamental da questo. Nela o cachorro, agora falante,

    aparece respondendo a um colega que lhe indagava, eufrico, sobre sua boa sade:

    - Tenho comido bem... Acontece que encontrei algum que me d tudo que quero

    comer bastando para isso que eu fique com gua na boca quando soa uma certa

    campainha.

    A humanizao do cachorro feita pelo autor da charge denuncia a diferena entre

    o homem e o animal que pretendemos destacar: que a relao sexual no existe!

    Esta frmula lacaniana, presente em boa parte de sua formulao terica, merece,

    antes que faamos dela algum uso, no mnimo um pequeno esclarecimento.

    O uso do recurso aforismtico, abundante na obra lacaniana, exige um trabalho de

    recomposio das linhas argumentativas presentes em sua constituio. O aforisma sempre a condensao, numa frase rpida e de efeito, de um longo percurso terico que

    culmina numa frase. Assim sendo, ele prenhe de polissemia e tende a nunca ser esgotado

    em suas possibilidades de leitura.

    No nossa inteno tentar esgot-lo, mas, antes, explorar um ponto bem especfico

    por ele proposto que nos permite aclarar questes da Educao atual, particularmente as

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    que esto em torno da presena deste termo: a relao professor-aluno, que goza de uma

    grande disseminao no campo pedaggico contemporneo.Ele organizador de debates,

    campo de pesquisa, categoria conceitual, temas de livros e artigos, etc.Que a relao sexual no exista quer dizer, entre outras coisas, que o termo relao

    est sendo paradoxalmente relativizado e valorizado.

    Relativizado na medida em que se quer marcar o carter precrio, insuficiente e

    impossvelde qualquer relao com o objeto de nossa satisfao, objeto que a Psicanlise

    destacou como sempre substituvel dada sua inexistncia enquanto objeto fixo do instinto.

    Mas tambm precria nossa tentativa de compensao desta insuficincia quando busco

    os outros para tentar suprir o que esta impossibilidade me acarreta.

    Valorizado quando indica que as relaes com o outro (escrito assim no plural

    propositalmente para marcar que se tratam de relaes concretas, singulares e no relaes

    abstratas) so a sada possvel, ainda que precria para esta impossibilidade fundamental.

    Que o colega cachorro pergunte a seu amigo afortunado qual o segredo de to boa

    sade, apenas explicita o trao humano da dvida permanente sobre qual o objeto que nos

    satisfaria. Podemos observar nos animais que eles aprendem por observao a um outro,

    mas o trao humano aparece aqui, bem entendido, na formulao de uma pergunta.

    O outro suposto conter uma resposta, no o objeto mesmo.

    De outro lado podemos comentar a disjuno que surge entre o que o

    experimentador acredita obter do cachorro e o que o cachorro pensa ter obtido do

    experimentador. Esta uma outra verso do aforisma lacaniano sobre a relao sexual: a de

    que o gozo que cada um obtm com o outro no complementar. Na verdade, seria

    importante esclarecer que nem mesmo se poderia falar em gozo obtido com o outro, uma

    vez que o outro para a Psicanlise apenas aquele que sustentar um gozo cujo circuito

    passa por ele, mas no se realiza nele. No vamos aqui enveredar por toda a distinoelaborada por Lacan entre o Outro e o outro. Nos serviremos especificamente deste ponto

    que aclara o que h de semblante nas relaes humanas.

    Certamente um dado semblante sustentado pelo co que permite o experimentador

    pensar que o condiciona e que ele obedece suas regras, quando na verdade o que se passa

    do lado do co algo completamente diferente.

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    Quem poderia garantir que o animal, ao contrrio do que pensa o experimentador,

    no toma aquele dado apresentado apenas como uma informao da realidade, ou seja,

    como algo dado e no que ele responda a vontade do experimentador.Mas o bom humor da charge parece explicar melhor o engodo, sempre presente

    em qualquer relao: o fato de que ambos parecem se satisfazer de algum modo sem que

    nada da satisfao de um tenha de complementar a do outro.

    Mas na charge vemos tambm que o co leva em conta as manobras do

    experimentador em seus clculos. Ele precisa levar em conta a questo: o que o outro quer

    de mim?

    Sua boa sade depende do que ele puder extrair de conseqncia do desejo do

    experimentador sobre ele. Caso ele no atue em alguma medida o papel que lhe esperado

    representar na cena do outro, sua boa sade estar ameaada.

    Lacan (1966(b)) em seu texto sobre O tempo lgico e a assero da certeza

    antecipadase valer do aplogo dos prisioneiros para indicar a mesma dependncia

    intrnseca que obriga os vrios personagens a levar em considerao a estratgia que uns

    tem em relao aos outros.

    Encarceirados, trs prisioneiros ouvem a promessa de liberdade condicionada a um

    desafio da qual s um sairia vencedor. Desafio que consistia em adivinhar qual era a cor

    dos crculos que haviam sido estrategicamente desenhados em suas prprias costas. Como

    havia uma lgica na distribuio dos crculos cada observador s poderia chegar

    concluso examinando a estratgia de investigao do outro que, por sua vez estaria

    simultaneamente fazendo o mesmo. Como prmio: a liberdade.

    Mas no seria de fato isso o que, tanto o co como o experimentador, estariam

    mutuamente buscando? A liberdade?

    Neste caso a liberdade no sentido que podemos depreender da lgica hegaeliana talcomo recuperada por Lacan (1969-1970c) na dialtica do Senhor e do escravo, to cara

    construo da teoria dos discursos, em particular o Discurso do mestre.

    Trata-se de pensar numa relao dialtica em que um para estar no comando

    (mestre) precisa que o outro se alinhe numa posio de dominado (escravo) e que

    reconhea a posio do primeiro.

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    Em termos psicanalticos a transferncia, o termo criado para dar conta do campo

    de engodo que se estabelece entre dois que se acham numa relao na qual qualquer clculo

    que um faa sobre o outro ao mesmo tempo vital e enganoso.Vital porque a o sujeito aparece totalmente engajado, mas enganoso, porque ele

    est condenado a fazer este clculo apenas com os elementos que deduz do outro, a partir

    de suas prprias impresses, que no vm de outro lugar seno de suas experincias

    anteriores.

    Freud descobre a transferncia um pouco por acaso, como ocorre sempre quando h

    verdadeiramente descoberta, ou seja, no sentido pleno da palavra que implica achar o

    que no se estava procurando. Foi como perturbao tcnica que ela lhe aparece,

    exatamente fazendo obstculo aplicao da tcnica interpretativa tal como Freud

    trabalhava naquela poca.

    Foi se dando conta de que sua presena na cena do outro havia lhe passado

    inadvertida e que esta desconsiderao lhe custava caro para a direo da cura, que Freud

    formula a importncia de se levar em considerao a transferncia.

    Mas tambm como amor que ele a descobre, o amor de transferncia, que viria

    mais tarde contribuir para todo um alargamento produzido pela Psicanlise da noo de

    amor.

    A relao professor-aluno, assim como a relao sexual, no existe porque sua

    ambio, pelo menos no discurso pedaggico hegemnico, a complementaridade que ela

    pretende inscrever entre os dois plos.

    Para perceber isto basta que examinemos os inmeros textos que tratam do assunto,

    em geral presente em todas as perspectivas tericas que dominam o discurso pedaggico.

    De um lado apresentam uma verso de como funciona o aluno e de outro a verso

    correspondente de como deveria se portar o professor.Tributrios da lgica tecnicista tais textos desembocam sempre numa prescrio de

    papel para o professor. Mas chegando na sala de aula, o professor no tarda a constatar que

    o aluno que ele encontra no aquele sobre o qual ele lera, que este se presta mal a fazer o

    semblante necessrio operao planejada.

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    Como ocorrido com Freud o professor descobre tambm a transferncia como

    perturbao da tcnica. investido pelo aluno e o investe de um tal modo que escapa a seu

    controle.O termo contra transferncia (no alemo, gegen), no quer dizer apenas em

    contraponto com a transferncia que parte do paciente ou do aluno em direo ao analista,

    mas quer dizer tambm perto. Ou seja, preciso estar por perto para experimentar,

    assim como para servir ao outro como plo de enganchamento.

    Por isso propomos o termo encontro professores e alunos no lugar do termo

    relao para sublinhar o carter vivo, concreto, imprevisvel e improvisado caracterstico

    do que se passa entre humanos.

    Aqui poderamos lanar a pergunta: Como fica este ponto em particular (o estar

    perto de) na educao dita distncia?

    A perspectiva tecnicista tenta anular este carter transferencial das relaes para

    introduzir a uma lgica semelhante a da caixa do experimentador que garantiria o controle

    de variveis dentro do qual se acredita poder conduzir-se em direo ao resultado esperado.

    O tipo particular de desvalorizao da palavra a que nos referamos acima este

    encampado pela estratgia tecnicista, ou, se a quisermos escrever nos discursos de Lacan, a

    estratgia capitalista.

    A transferncia o que testemunha que h um lao, no entre dois, intersubjetivo,

    posto que a noo de lao em Lacan no pertence a uma lgica intersubjetiva.A

    transferncia testemunha o lao porque ela captura dois num mesmo discurso, feito os

    enxadristas que se relacionam durante o jogo de um tal modo que cada um est implicado

    naquilo que o outro, apenas pelo jogo em comum, mesmo que eles nunca tenham se

    relacionado antes.

    Quando se pretende que o sujeito encontre seu bom termo no objeto feito para ele,tal como tenta estabelecer o discurso do Capitalista, preciso lanar mo de um dispositivo

    especfico em relao linguagem, uma vez que foi ela que nos separou profundamente do

    objeto.

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    A ordem simblica faz de ns animais desnaturados pela linguagem, pelaintroduo de um gozo pulsional que substituiu a instintualidade animal;

    passando de um mundo de instintos para um mundo de pulses, o ser humanoperde e ganha, o que ganha a faculdade de falar, o mundo das palavras; o que

    perde sua adequao s coisas, tambm sua adequao a si mesmo (LEBRUN,2001, p. 117).

    Levado a adequar-se novamente ao objeto precisaria perder o que antes havia

    ganho, ou seja, a faculdade de falar. Evidentemente que se trata aqui de uma operao cuja

    extenso no nos devolve ao reino instintivo, fato impossvel, mas que talvez nos aproxime,

    o que pretendemos sugerir, do funcionamento da mquina.

    semelhana dos animais na mquina a linguagem tambm sgnica. Todos j

    fizeram a prova disto ao tentar procurar qualquer coisa num dos sistemas de busca

    disposio na Internet, em que ao colocar uma palavra qualquer somos confrontados com

    uma pesquisa cuja quase infinidade de encontrados, obtidos ao varrer a palavra em seu

    valor objetivo e no em sua articulao significante, testemunha o quanto esta linguagem se

    afasta da humana.

    Podemos tomar como exemplo a existncia, em So Francisco, de comunidadesmultimdias em que as pessoas s se comunicam entre si pelo computador e,quando se encontram em noitadas combinadas com este objetivo em lugaresreservados especialmente para elas, nomeiam-se pelos seus cdigos e no queremse conhecer a no ser assim.Seus verdadeiros nomes permanecem desconhecidos

    e suas conversas abundam em vocbulos-signos e terminologia-cdigo(LEBRUN, 2001, p. 102).

    A transferncia a dimenso em que a palavra se atualiza, em que ela tem sua

    implicao, tambm o lugar onde qualquer influncia sobre o outro possvel.

    Quando Freud abandona a hipnose e parte para a Psicanlise, privilegia a palavra

    exatamente nesta dimenso.

    Na hipnose, a palavra, embora tenha mostrado a Freud seu valor significante, sua

    potncia na determinao do comportamento, evidenciada em sua dimenso sgnica,

    afinal, lembremos que na hipnose o paciente realiza o que o hipnotizador lhe diz. Na

    transferncia, por sua vez, o paciente convidado a enveredar pelo labirinto de seu discurso

    e testemunhar a (por isso deve estar acordado) o deslizar de seu prprio desejo.

    Talvez no seja por acaso que os pais comparem o que acontece com as crianas na

    frente do computador a um processo hipntico; precisam acord-los de sua suspenso no

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    tempo. A virtualidade proposta apaga o contato com a dimenso temporal que aquela que

    se evidencia na dimenso transferencial.

    A palavra virtual foi tomada de emprstimo ao latim escolstico virtualis, elemesmo sado de virtus, potncia, fora e que quer dizer que s existe em

    potncia e no em ato. Pierre Levy afirma: O virtual tende a se atualizar, semter passado, entretanto, concretizao efetiva ou formal.A rvore estvirtualmente presente na semente. Com todo rigor filosfico, o virtual no seope ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade so apenas duas maneiras deser diferentes (LEBRUN, 2001, p. 120).

    Se o professor for de fato insubstituvel em sua presena face ao aluno ser pelo

    poder que tem sua presena de evocar a palavra em seu potencial transferencial. Acreditar

    que ele possa ser substitudo por um computador s pode ser pensado dentro de um sistema

    que j o reduzira antes a portador de informaes, ou seja, a um arauto da verdade

    contida supostamente no objeto.

    Que um professor deva eclipsar-se frente ao aluno permitindo que ele acesse o

    objeto de conhecimento, premissa tantas vezes alardeada pelo discurso pedaggico

    hegemnico, algo que no deveria ser alado condio de uma premissa metodolgica.

    Sua posio, a maneira como ele investe o objeto com um dom, o fascnio ou a

    repulsa que ele provoca quando ensina, no so eliminveis mesmo que o desejssemos.

    Mas porque deveramos desejar tal coisa? Por acaso o sentido de qualquer objeto no conta

    com a forma pela qual ele nos foi apresentado? Haveria algo de pernicioso neste tipo de

    contaminao da informao? Restringir o objeto ao discurso que adere supostamente a

    sua objetividade no amputa este objeto de sua dimenso propriamente humana?

    O que talvez o experimentador no contasse que no final o rato-humano pudesse

    aprender sem que qualquer operao em suas necessidades vitais fosse realizada. No

    necessrio priv-lo em nada para que ele aprenda.

    A cria humana aprende fundamentalmente para participar de um mundo no qual ele desejado e deseja participar, e pela mesma razo ela s vezes no aprende o que se

    pretende que ela aprenda. De qualquer modo no para a sobrevivncia que se aprende,

    mas por amor.

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    RINALDO VOLTOLINI

    Psicanalista, Professor Doutor em Psicologia, leciona Psicologia ePsicanlise na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    (Brasil), Departamento de Filosofia e Cincias da Educao e Laboratrio

    de estudos e pesquisas psicanalticas e educacionais sobre a infncia(LEPSI);

    Email: [email protected]

    Aceito em: 21/06/2007Publicado em: 23/07/2007