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REINSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NO PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 18/1997 | p. 87 - 94 | Jan - Mar / 1997 DTR\1997\42 Diogo de Figueiredo Moreira Neto Área do Direito: Constitucional Sumário: Uma apreciação sobre a reinstitucionalização da ordem econômica pressupõe uma posição doutrinária referencial a respeito de certos tópicos impulsores das mudanças, como sejam, entre outros, a privatização, a vocação do Estado contemporâneo e, destacadamente, a globalização. * Sustento que globalização descreve hoje um fenômeno econômico, social e político, com causas estruturais que desconhecem fronteiras e que vai muito mais além da mera reversão da saturação dos espaços de atuação da sociedade por parte do Estado, ou seja, de uma simples devolução de escolhas do setor público ao privado. E porque esse fenômeno provoca uma inelutável transformação estrutural qualitativa nas sociedades e em suas expressões políticas contemporâneas, é que sua natureza necessita ser cuidadosa e competentemente analisada para que possa ser compreendida, como condição de êxito das reformas político-institucionais que estejam ou venham a ser empreendidas em nosso, como em qualquer outro país. Esse processo de transformação foi decerto provocado por uma constelação de causas, mas dentre elas, é sobressalente a revolução tecnológica, plenamente deflagrada com a Segunda Guerra Mundial, que vem mudando o homem, a sociedade e o próprio planeta. Na economia, as inovações introduzidas nos sistemas de produção tornaram obsoleto o modelo fordista, que havia produzido a Segunda Revolução Industrial e, por isso, servido de base à estruturação tanto de Welfare State, de um lado, como do Estado Socialista, do outro. O modelo fordista voltava-se à organização da produção em massa, obtida com mecanização crescente, incremento do poder aquisitivo dos assalariados em função da produtividade e assentada na estabilidade do lucro e na plena utilização dos equipamentos e da mão-de-obra, compatibilizando, nesse quadro, a produção em massa com o consumo de massa. 1 Para atuar coerentemente com a Segunda Revolução Industrial o Estado passou a desempenhar, como se sabe, um progressivo papel corretivo de disfunções e falhas do sistema, ao mesmo tempo que assumia o encargo de ser o principal agente de desenvolvimento, levando-o, por isso, freqüentemente, a assumir, ele próprio, certas atividades econômicas que considerasse mais vulneráveis ou estratégicas, sob a presunção, paradigmalmente aceita, de ter melhores condições de tomar decisões técnica e eticamente superiores para manter fluente a economia. Nos exemplos extremos do modelo socialista, o Estado foi ainda mais além, pretendendo racionalizar todo o processo econômico com a avocação da plena gestão dos meios de produção. No social, essa expansão da esfera pública refletia demandas insopitáveis despontadas com a multiplicação e a diversificação dos interesses dos grupos sociais emergentes que, para a composição de seus crescentes conflitos, passaram a se socorrer cada vez mais do Estado, obrigando-o a se hipertrofiar para atuar eficientemente. O estatismo, desse modo deflagrado como panacéia política, surgiu como um movimento não deliberado, como resultado de demandas explosivas por grandes e custosas infra-estruturas e por serviços públicos generalizados e de baixo custo, que não se compatibilizavam com uma lucratividade atraente para o setor privado, isso além, naturalmente, das motivações estratégicas e geopolíticas de cada país, variando desde a mera afirmação de independência do exterior até a estruturação de um complexo industrial-militar. 2 A partir da Segunda Guerra Mundial o modelo fordista de produção deu sinais de exaustão, principalmente pela incapacidade de absorver as aceleradas mudanças tecnológicas surgidas no REINSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NO PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO Página 1

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Artigo da Revista de Direito Administrativo - FGV/Rio de Janeiro.

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REINSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NO PROCESSO DEGLOBALIZAÇÃO

Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 18/1997 | p. 87 - 94 | Jan - Mar / 1997DTR\1997\42

Diogo de Figueiredo Moreira Neto

Área do Direito: ConstitucionalSumário:

Uma apreciação sobre a reinstitucionalização da ordem econômica pressupõe uma posiçãodoutrinária referencial a respeito de certos tópicos impulsores das mudanças, como sejam, entreoutros, a privatização, a vocação do Estado contemporâneo e, destacadamente, a globalização. *

Sustento que globalização descreve hoje um fenômeno econômico, social e político, com causasestruturais que desconhecem fronteiras e que vai muito mais além da mera reversão da saturaçãodos espaços de atuação da sociedade por parte do Estado, ou seja, de uma simples devolução deescolhas do setor público ao privado.

E porque esse fenômeno provoca uma inelutável transformação estrutural qualitativa nas sociedadese em suas expressões políticas contemporâneas, é que sua natureza necessita ser cuidadosa ecompetentemente analisada para que possa ser compreendida, como condição de êxito dasreformas político-institucionais que estejam ou venham a ser empreendidas em nosso, como emqualquer outro país.

Esse processo de transformação foi decerto provocado por uma constelação de causas, mas dentreelas, é sobressalente a revolução tecnológica, plenamente deflagrada com a Segunda GuerraMundial, que vem mudando o homem, a sociedade e o próprio planeta.

Na economia, as inovações introduzidas nos sistemas de produção tornaram obsoleto o modelofordista, que havia produzido a Segunda Revolução Industrial e, por isso, servido de base àestruturação tanto de Welfare State, de um lado, como do Estado Socialista, do outro.

O modelo fordista voltava-se à organização da produção em massa, obtida com mecanizaçãocrescente, incremento do poder aquisitivo dos assalariados em função da produtividade e assentadana estabilidade do lucro e na plena utilização dos equipamentos e da mão-de-obra, compatibilizando,nesse quadro, a produção em massa com o consumo de massa. 1Para atuar coerentemente com aSegunda Revolução Industrial o Estado passou a desempenhar, como se sabe, um progressivopapel corretivo de disfunções e falhas do sistema, ao mesmo tempo que assumia o encargo de ser oprincipal agente de desenvolvimento, levando-o, por isso, freqüentemente, a assumir, ele próprio,certas atividades econômicas que considerasse mais vulneráveis ou estratégicas, sob a presunção,paradigmalmente aceita, de ter melhores condições de tomar decisões técnica e eticamentesuperiores para manter fluente a economia. Nos exemplos extremos do modelo socialista, o Estadofoi ainda mais além, pretendendo racionalizar todo o processo econômico com a avocação da plenagestão dos meios de produção.

No social, essa expansão da esfera pública refletia demandas insopitáveis despontadas com amultiplicação e a diversificação dos interesses dos grupos sociais emergentes que, para acomposição de seus crescentes conflitos, passaram a se socorrer cada vez mais do Estado,obrigando-o a se hipertrofiar para atuar eficientemente. O estatismo, desse modo deflagrado comopanacéia política, surgiu como um movimento não deliberado, como resultado de demandasexplosivas por grandes e custosas infra-estruturas e por serviços públicos generalizados e de baixocusto, que não se compatibilizavam com uma lucratividade atraente para o setor privado, isso além,naturalmente, das motivações estratégicas e geopolíticas de cada país, variando desde a meraafirmação de independência do exterior até a estruturação de um complexo industrial-militar. 2

A partir da Segunda Guerra Mundial o modelo fordista de produção deu sinais de exaustão,principalmente pela incapacidade de absorver as aceleradas mudanças tecnológicas surgidas no

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período sem rompimento do equilíbrio, ou seja, sem falências e desemprego. Os fatores de produçãoforam perdendo seu valor relativo à medida em que iam sendo introduzidas novas tecnologias noproduto e na produção. Assim, tal como na ciência, de que derivavam, e no capital, que assuportavam, as tecnologias deixavam de ser referíveis a qualquer país em particular, tornandoirrelevante o local da produção e, por isso, a própria importância do Estado no processo, aindaporque, com o tempo, os déficits estruturais acumulados tanto pelo Welfare State, como, maisexpressivamente, pelo Estado Socialista, já não mais permitiam que eles continuassem adesempenhar o velho papel impulsionador e financiador de outrora.

Essas mudanças repercutiram sobre os conceitos de eficiência produtiva, demandando um novomodelo, em que certa "otimização" dos fatores de produção viesse a possibilitar a satisfação máximade interesses com um mínimo de custos. Uma vez estruturado, as comunicações, encurtandodistâncias e agilizando as decisões, difundiram globalmente o modelo de resposta, com ascaracterísticas que aí estão, pressionando as reformas econômicas.

Ora, transformações de tal vulto refletem-se, inevitavelmente, nos sistemas de poder, conferindo àglobalização também um sentido político. Essa repercussão alcançou em cheio os modelos deConstituição vigentes, tal como nos relata Miguel Acosta Romero ao identificar, em 1993,movimentos de reforma constitucional na França, na Argentina, no Peru, na Venezuela, no Paraguai,no Canadá, na Rússia, na Rumania, no Viet-Nam, na Bósnia-Herzegovina, no México, nas repúblicassurgidas com a desarticulação da antiga Federação Iugoslava e, é claro, no Brasil. 3

Mas não apenas na ordem política interna dos países processam-se as acomodações institucionais;a globalização vem provocando, acima e além dessa ordem, uma profunda redefinição de unidadespolíticas de poder a nível internacional. Isso nitidamente se patenteou com a rápida articulação daUnião Européia, bem como com a criação de vários blocos econômicos regionais, e mais ainda seestá consolidando com a recente criação da Organização Mundial do Comércio - OMC, comoresultado da Rodada do Uruguai, em 1993, e do Pacto de Marrakesh, em 1994, que vem desubmeter a decisões de maioria (e não mais à unanimidade) uma importante produção normativa dereflexos econômicos, capaz de se impor a Estados e a blocos de Estado em matéria aduaneira. 4

Mas, ainda assim, em todos os quadrantes em que vêm sendo empreendidas, as reformasconstitucionais correm o risco de não serem satisfatórias em termos de rapidez e de profundidade,defasando, em conseqüência, vários países, nessa corrida de modernização. É facilmenteobservável que o ritmo das transformações em escala global não tem sido acompanhadoconvenientemente nem pelos atores políticos nem pelas elites jurídicas em vários Estados-Nação,muito embora sejam eles os primeiros convocados para responderem a esses vertiginosos desafios.Ambos, políticos e juristas, parecem apresentar alguma dificuldade em absorver as mudanças deconceitos e de métodos de ação, possivelmente por terem sido surpreendidos pelos acontecimentos,sem pleno acesso aos instrumentos analíticos necessários para compreendê-los, não raropersistindo, por mero conservadorismo, em interpretá-los à luz de seu arsenal analítico-dogmáticotradicional. Registre-se que essas mudanças tão profundas, no lapso de menos de uma geração,jamais tinham sido experimentados no passado, nem mesmo com o Renascimento, a RevoluçãoFrancesa, a Revolução Americana e as duas Revoluções Industriais.

Ora, no campo do Direito, tanto ou mais conservador que no Político, isso se revela na dificuldadeem identificar as novas fontes de produção do direito, que surgem e se substituem às tradicionais,como espontâneo resultado das novas articulações internas e externas de poderes. São fontesdiversificadas: heterônomas ou autônomas, impostas ou consensuais, locais, regionais, nacionais,comunitárias ou supracionais, em caleidoscópicas composições, desafiando os juristascontemporâneos. O direito se redesenha seguindo as linhas mestras do poder: se descentraliza, sereconstrói, se globaliza e se transconstitucionaliza, sem que disso ainda nos tenhamos dadoplenamente conta. Assim, do mesmo modo que o local da produção se tornou irrelevante naeconomia, o território, base física do poder do Estado, perde importância, enquanto emergem novasesferas de competência transversais e técnicas, e se definem novos princípios de organização dopoder político, como o da subsidiariedade, que se aplica tanto às relações das entidades políticasterritoriais de vários níveis quanto entre essas, as sociedades, os mercados e as associações detodo o tipo. 5

Com a política pressupõe escolhas submetidas a um marco normativo, e como esses quadros dereferência jurídica se multiplicam e sofrem mutações, é óbvio que no novo direito a importância de

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distinções outrora fundamentais, como a entre o público e o privado, vem perdendo consistência.

Não obstante, até mesmo para encetar as necessárias mudanças jurídicas, continuamos a submeteros fenômenos, embora novos e mal conhecidos, a equacionamentos ultrapassados, o quefreqüentemente nos conduz a falsos dilemas, como, no fundo, se encontra a própria opçãodicotômica e apriorística entre o público e o privado, como também, como o mesmo radicalismo,entre o Estado e a sociedade. Tudo, como se existisse sentido em submeter disfunções políticas,econômicas e sociais, que sequer foram suficientemente analisadas e compreendidas, quer amodelos novecentistas, quer a métodos de redução que manejavam premissas não mais existentes.

Em vez de insistirem na aplicação de velhos esquemas dogmáticos e ideológicos, preconcebidos emoutras diferentes circunstâncias, o político e o jurista necessitam agora de novos instrumentos deanálise política, econômica, social e jurídica para definir que tipos de organização têm as melhorescondições de chegar a decisões eficientes para satisfazer os interesses da sociedade. Algumasatividades, por certo, existirão, que devam ser exercidas monopolizadamente pelo Estado; outras,por entidades privadas e outras, ainda, por entidades intermédias; o importante é dar-se a escolhaadequada para que cada uma delas possa proporcionar o máximo de eficiência social, não importase através de métodos impositivos ou consensuais de decisão e de execução.

De qualquer sorte, decisões eficientes pressupõem sempre serem opções livres, tomadas com plenaconsideração de custos e benefícios, de modo a estabelecerem certa proporcionalidade que resulteno máximo de benesses sociais, o que vale dizer, na linguagem da Economia: "maximizar" osresultados.

É preciso sublinhar que essa nova abordagem tem o condão de eliminar a separação entre omercado e o Estado e, assim, entre as respectivas Ciências, a Econômica e a Política, como tãobrilhantemente propôs o nobelista James M. Buchanan, ao identificar na origem e no método decada uma delas um tipo de escolha: na Política parte-se da escolha imperativa e, na Economia, daescolha consensual, respectivamente referidas ao provimento de bens coletivos e de bens privados.6

É por essa razão que vai perdendo sentido científico e prático acreditar-se na maior ou menoreficiência de modelos abstratos de ação política na ordem econômica, sem levar-se emconsideração que em qualquer decisão imperativa que venha a ser adotada há que se considerarduplamente: o conhecimento empírico e a concordância ou divergência da opção com a vontade realdas pessoas envolvidas. 7

Trata-se, assim, de submeter não apenas ao teste da experiência como ao crivo da legitimidade todaa ação econômica do Estado, começando por sensibilizar o político e o jurista para a utilidade que sepode dar aos instrumentos teóricos de análise social destinados à identificação das escolhaspúblicas mais eficientes e mais justas, sem perder a consciência de que há um limite lógico e práticopara a imposição de decisões de Estado, pois dá-se uma inegável relação direta entre progresso econsensualidade, 8muito embora deva reconhecer-se a indispensabilidade da coação estatal paraque se torne possível o funcionamento das três instituições fundantes do direito privado: apropriedade, o contrato e a responsabilidade civil. 9Afinal, como sintetiza o insuspeito Karl Popper,"não existe mercado livre sem intervenção do Estado". 10

Torna-se, assim, fácil de se entender por que as ideologias e as doutrinas políticas que exploravamposições maniqueístas, de fácil difusão e inegável sedução pela simplificação da realidade, tão emvoga durante grande parte deste século, perdem hoje espaço e vigência. Faltam-lhes tantofundamentos empíricos quanto legitimantes que possam sustentá-las num mundo pluralista ecompetitivo, que não se compadece com esquemas rígidos e inflexíveis. Morrem vítimas dos própriosapriorismos, dogmatismo, radicalização e inflexibilidade que fizeram sua popularidade na sociedademonoclasse. Curioso é que o próprio Norberto Bobbio, não obstante toda sua extraordináriaexperiência, ao tentar salvar a surrada dicotomia esquerda-direita, produto dessa era, não conseguiulivrar-se da velha herança metodológica ao apontar o igualitarismo como distinção entre as duasantigas correntes. 11Faltou-lhe perceber que nada há mais igualitário, afinal, que a disposição debens e de serviços baratos e abundantes em qualquer sociedade, que se possa alcançar comoresultado de um sistema de produção que se desenha, simultaneamente, pós-capitalista epós-socialista, possivelmente sociocapitalista, como a percebe Paulo Rabello de Castro. 12

Do mesmo modo que as doutrinas e ideologias do passado nada têm a ver com as novas realidades,

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é preciso reconhecer também que o direito tem envelhecido mais rapidamente que no passado. Asnovas figuras jurídicas, derivadas de um contexto de globalização progressiva já não mais seenquadram nas caleidoscópicas definições do público-privado positivadas nos distintos países domundo, de modo que, para lograr uma necessária e eficiente disciplina uniforme para institutosanálogos, que não obstante se apresentam tão diferentes e irreconciliáveis nos vários ordenamentosjurídicos, quer sejam os de origem continental européia, quer os de origem anglo-saxônica, vem setornando necessário definir um novo referencial, desvencilhado das categorias formais, que já seconvencionou chamar de "público substancial", uma noção transversal em plena evolução naComunidade Européia e utilíssima para a atuação conjunta de blocos de países e organismosinternacionais. 13

É preciso considerar que nesse movimento de diversificação em curso nas fontes jurídicasregistra-se, por certo, uma expansão do privado, mas, não, necessariamente, uma contração dopúblico. Isso é mais evidente nos serviços públicos, que deixam de ser gestionados pelo Estado paraserem efetivamente por ele regulados.

Com a absorção da gestão dos serviços públicos pelo Estado, típica da era do Welfare State, tinhaocorrido uma coincidência entre gestão e regulação que acabava por submeter decisões que deviamser tomadas em favor dos interesses primários dos usuários, aos interesses secundários dasempresas estatais, quando não de suas expressões corporativas. Assim, por paradoxal que pareça,muitas vezes, privatizar as entidades estatais é publicizar o trato dos interesses gerais envolvidos.

Apenas este exemplo dá-nos conta de quanto impreciso é referir-se à desestatização como"privatização".

É mais importante, ainda do exemplo dado dos serviços públicos, que a regulação seja pública doque sua propriedade ou, mesmo, sua gestão.

Já se vê, pelo exposto, que globalização também deve ser entendida nesses termos. E é ainda sobessas premissas, que propôs-se o exame crítico das instituições juspolíticas interferentes naeconomia, para que se possa avançar prospectiva e conclusivamente a respeito da adequabilidade esuficiência das reformas empreitadas para anteciparem-se às crises previsíveis. 14O próprio conceito,cunhado recentemente, de "Constituição Econômica", embora tenha logrado rápido e retumbantetrânsito acadêmico, parece estar também passando da moeda, remanescendo apenas na linguagemdos últimos baluartes juspositivistas, que ainda insistem em submeter a uma rígida geometriaconstitucional esses fenômenos extremamente dinâmicos, como o são os da economia emprogressiva globalização.

Torna-se hoje cada vez mais evidente que, na economia, do mesmo modo que nos campos científicoe tecnológico, há risco em passar dos princípios no texto das Constituições, só cabendo especificarpreceitos no indispensável para fixar alguns poucos institutos autorizativos da intervenção do Estadoem defesa do mercado agredido. As Constituições que descem a detalhes e multiplicam preceitosinterventivos tornam-se rapidamente obsoletas, quando não inconvenientes e obstrutivas doprogresso. O preceitos mostram-se vantajosos apenas quando se torna necessário reduzir o campode discricionariedade do legislador ordinário quando este se apresentar demasiadamente dilatado apartir do enunciado dos princípios.

A pouco e pouco essa discricionariedade desloca-se do campo puramente político para o técnico, àmedida em que o fracasso das opções apriorísticas, como no caso das ideológicas, demonstram suavisceral irrazoabilidade.

Afinal, decisões que durante tanto tempo foram consideradas aparentemente "boas" podem resultarnocivas para a sociedade, do mesmo modo que decisões aparentemente "más" estariam aptas paraconcorrer efetivamente para o benefício geral. De qualquer modo, "boas" ou "más", o que se tornacada vez mais inadmissível é que as congele nas Constituições, anquilosando opções quenecessitam de constante verificação de sua utilidade e de sua legitimidade, o que só é possível pelavia legislativa ordinária.

Com efeito, tem-se como fato histórico, reconhecido e sublinhado em particular pelo insigne MauriceDuverger, que, com a exceção dos Estados Unidos da América, cuja Constituição ultrapassou doisséculos, na maior parte dos países do mundo a regra tem sido a substituição de uma Constituição

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obsoleta por uma nova, à medida em que a antiga perde sua vigência real, como, apontando o autorcomo exemplos entre alguns países importantes, foi o caso da França (14 Constituições), do Brasil(8 Constituições), da Argentina (3 Constituições), da Colômbia (12 Constituições), da antiga UniãoSoviética (6 Constituições) e do México (5 Constituições). 15

Ora, o que recente teoria da escolha pública pôs à disposição das Ciências Políticas e do Direito vema ser um novo instrumento de análise mais apto para avaliar o impacto das decisões públicas sobreo seu destinatário final, o povo, do mesmo modo que esse instrumental tão bem já tem servido paraavaliar a qualidade das decisões privadas consideradas em seu impacto sobre os atoreseconômicos. Tudo se baseia na idéia central de que sempre existem possibilidades de aprimorarquaisquer escolhas políticas para melhorar as prestações públicas do Estado, o que inclui, é claro,as escolhas interventivas que excepcionalmente se deva fazer na ordem econômica; essas, enfim,como quaisquer outras, submissíveis a critérios de "maximização de resultados".

Além disso, o próprio conceito de eficiência das escolhas interventivas passa a exigir sériareconsideração, ao se reconhecer afinal que, ao cabo de qualquer exaustivo processo deintervenção econômica que venha a ser deflagrado pelo Estado, as condutas humanas seacomodam às próprias regras interventivas, ajustando-se perversamente, de modo que algunsacabam por tirar vantagens da mudança coacta introduzida. Em outros termos: muitas vezes, paraimpor uma correção aprioristicamente considerada boa, o Estado acaba por transferir aos maisespertos, riquezas que normalmente não auferiram no mercado em regime de competição. A médioprazo, portanto, ninguém regula nada e só piora tudo. A única saída é a flexibilidade para promoveros ajustes e as correções com oportunidade.

Finalmente, hoje, mais que ontem, graças a fenômenos como a ampliação da consciência cidadã, adefinição dos direitos coletivos e difusos, a abertura da participação política e, sobretudo aintrodução do consensualismo como opção de administração pública, a insistência valorativa seconcentra na proporcionalidade entre aquilo que o Estado demanda da sociedade e o que a eladevolve em forma de serviços, o que torna insuportáveis e inadmissíveis as deseconomias estatais,não só pelos seus efeitos danosos diretos sobre os contribuintes, como pelos efeitos perniciososcontaminatórios indiretos sobre todo o mercado.

Nessas circunstâncias, considerando em particular o caso brasileiro, deve-se reconhecer que tantoas reformas constitucionais já empreendidas como aquelas pretendidas, ainda se apresentamextremamente tímidas e conservadoras. Aquelas empreendidas até o momento, no máximo servirãopara afastar durante algum tempo o proceloso cenário que nos aguardaria a curto prazo se semantivesse a economia totalmente tolhida e enrijecida pelos antiquados instrumentos de intervençãoeconômica que remanesceram e até se multiplicaram no texto original da Constituição de 1988.Todas essas reformas, necessário é que se advirta, poderão ser insuficientes para evitar umindesejável colapso do plano real, com suas nefastas conseqüências, se não se solucionarproblemas cruciais como, desde logo, o do déficit público.

Por outro lado, a inserção do País na economia global, que será a solução segura e duradoura paraa recapitalização e a atualização tecnológica, necessita, na verdade, muito mais do que algumascorreções superficiais sobre os monopólios da União. Abundam amarras econômicas nas quarenta euma formas de intervenção previstas na Constituição de 1988, sendo que, na modalidaderegulatória, ascendem a vinte e oito tipos. 16

Assim, paradoxalmente, enquanto nos faltam quadros regulatórios modernos para as concessões deserviços públicos, sobejam regulações estatais antiquadas, inúteis e redundantes, quando nãonefastas, sobre a produção, os transportes, o comércio exterior e, sobretudo o setor laboral,contribuindo para exacerbar o "custo Brasil" além dos riscos empresariais razoáveis.

Com efeito, julgado em termos de atratividade de capitais e de tecnologia, o modelo econômicoconstitucional de 1988 é totalmente obsoleto. Isso é extensivo ao sistema de encargos fiscais querecaem sobre a produção, com sua pletora de tributos e contribuições, não raro pleonásticos, aossistemas de seguridade social, falidos a curto prazo, e também à administração pública, esse vasto epoluído estuário de erros, no qual se acumularam vícios paternalistas e clientelistas de um século,para torná-la paquidérmica e tanto cara quanto ineficiente.

Tome-se, afinal, para exemplificar, essa perigosa instituição que é o controle estatal de preços; esse

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instrumento a que tanto se tem inutilmente recorrido e que não apresenta a seu favor qualquerregistro de êxito em nenhum país do mundo. Na verdade, não se pode vislumbrar como se pretendeatrair investidores de capital e de tecnologia a um Estado que se arrogue tal prerrogativa, qual essa,de ditar preços de mercado, ainda que pretenda fazê-lo a pretexto de "corrigir" excessos. Ora,quaisquer justificativas, por mais "justas" que possam ser apresentadas, continuarão a obedecer aosantigos critérios velada ou escancaradamente emocionais e arbitrários, despidas de validaçõesempíricas satisfatórias para convencer agentes econômicos acostumados a atuar num universoaltamente competitivo.

E mesmo sob o aspecto jurídico, considerado sob a ambígua Constituição de 1988, não obstantecertas construções cerebrinas, por vezes, reconheça-se, bem intencionadas, arquitetadas paradefender o controle de preços e suas inefáveis "tabelas", não se pode vislumbrar um fundamentoconstitucional consistente para esse tipo extremo de intervenção no mercado.

Ao contrário, o que se exige é que quaisquer intervenções admitidas, e só poderão sê-loexclusivamente a nível constitucional, por excepcionais aos princípios econômicos adotados,devendo ser expressas de modo claro, direto e inequívoco, tal como se faz, de resto, com as demaishipóteses de intervenção constitucionalmente previstas, sendo que o controle de preços, que sepretenderia implícito, não se enquadra, nem forçada nem obliquamente, entre os 28 tipos deintervenções regulatórias existentes. 17

O que há, e aí se tem um nítido modelo de dispositivo expresso e inequívoco, é o permissivoconstitucional de intervir em caráter sancionatório - e não regulatório - na hipótese de abuso dopoder econômico, no caso, caracterizado pelo aumento arbitrário de lucros. Essa intervenção,porém, distintamente da regulatória, é concreta e não abstrata e geral, devendo ser aplicadaindividualmente sobre o infrator do preceito e, por isso, sempre dependente da observância dodevido processo legal em cada caso. Sua finalidade, acrescente-se, não é disciplinar preços, mascoibir o aumento arbitrário dos lucros, o que, por certo, repercute sobre preços, mas distintamente,só pode ser considerado casuisticamente.

Isso não afasta, por certo, o monitoramento de preços por parte do setor público, atividade distinta eindispensável para detectar-se quando a elevação de preços no mercado possa indicar um aumentoarbitrário de lucros.

Esse exemplo, colhido no arsenal constitucional de intervenções regulatórias é bem indicativo daconfusão ora reinante a respeito do sentido de alguns institutos do Direito Econômico e danecessidade de redefini-los à luz dos instrumentos analíticos modernos e de proposições empíricasdeles derivadas, rechaçando-se, definitivamente, as decisões ditadas por preconceitos doutrinários eideológicos, quando não e quantas vezes por interesses subalternos, o que também, afinal,mostra-se bem revelador das dificuldades a serem vencidas para a reinstitucionalização necessáriano processo de globalização.

Com efeito, a reinstitucionalização da ordem econômica na linha do processo de globalização é umaetapa muito difícil para os países que não têm tradição de livre empresa e de livre concorrênciaequilibradas e que hoje tentam remover de cima de seus respectivos mercados uma montanha deregras interventivas, invariavelmente arrostando poderosos interesses conservadores, não raroauto-denominados, paradoxal e curiosamente, de "progressistas".

(*) Comunicação do autor em painel sobre Regulamentação da Ordem Econômica, no XVIICongresso Brasileiro de Direito Constitucional, em 22.05.1996.

(1) LIPIETZ. A. Audácia. Uma Alternativa para o Século XXI, São Paulo : Nobel, 1991, p. 31-32.

(2) V. ROSSI, Giampaolo. Pubblico e Privato nell' Economia di Fine Secolo, in Le Transformazioni delDiritto Amministrativo, Milão : Giuffrè, 1995, p. 229.

(3) ROMERO, Miguel Acosta. Las Muta-ciones de los Estados en La Última Década del Siglo XX,México : Porrua, DF, 1993, p. 1-2.

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(4) Observe-se que as tarifas aduaneiras médias em todo o mundo, que nos anos 50 oscilavam emtorno de 40%, reduziram-se a 5% após a Rodada do Uruguai, em 1993.

(5) GALGANO, in Il diritto nella società pos-industriale, U. de Bolonha, 1991/1992, alocução deabertura do ano acadêmico, apud GIANPAOLO ROSSI, op. cit., p. 235.

(6) BUCHANAN, J. M. Liberty, Markets and State, Grã-Bretanha : Wheatsheft Books, 1982.

(7) BUSTAMANTE, Jorge Eduardo. Desregulación - Entre el Derecho y la Economia, Buenos Aires :Abeledo Perrot, 1993, p. 66.

(8) A respeito, nosso Direito da Participação Política, Rio de Janeiro : Renovar, 1992.

(9) BUSTAMANTE, J. E., op. cit., p. 10.

(10) POPPER, K., La lezione di questo secolo, Veneza, 1992, p. 32.

(11) BOBBIO, N. Direita e Esquerda, São Paulo : Unesp, 1995.

(12) CASTRO, P. R., in A Reegenharia do Estado Brasileiro, São Paulo : RT, p. 49.

(13) ROSSI, G. op. cit., p. 241.

(14) A alusão é ao tema geral do XVII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional.

(15) DUVERGER, M. Les Constitutions de la France, 9.ª ed., Paris : Presses Universitaires deFrance, 1971, p. 5.

(16) Ref. à nossa Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição de 1988, Rio de Janeiro :APEC, 1988, p. 63.

(17) Ref. à nossa Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição de 1988, Rio de Janeiro :APEC, 1989, p. 63.

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