Diogo Ives de Quadros

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3º Seminário de Relações Internacionais da ABRI 29 e 30 de Setembro de 2016 Florianópolis, SC Área de Teoria das Relações Internacionais CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA HISTÓRICA PARA A TEORIA DE AMADO CERVO Diogo Ives Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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3º Seminário de Relações Internacionais da ABRI

29 e 30 de Setembro de 2016 – Florianópolis, SC

Área de Teoria das Relações Internacionais

CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA HISTÓRICA PARA A TEORIA DE AMADO CERVO

Diogo Ives

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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Resumo

O trabalho faz uma discussão teórica entre os paradigmas de Estado criados por

Amado Cervo e pensamentos da Sociologia Histórica formulados por Fred Halliday, Theda

Skocpol, Charles Tilly, Michael Mann, Immanuel Wallerstein, Benno Teschke e Ellen Wood.

Cervo almeja criar uma teoria original das relações internacionais da América Latina, cujo

pressuposto básico é que os Estados da região guiam suas ações externas pelos requisitos

que o desenvolvimento do capitalismo dentro de suas fronteiras exige. Examinando a

história latino-americana, Cervo identifica três paradigmas de Estado, diferenciados pela

forma como ocorre a interação entre o Estado e a economia: Estado liberal, Estado

desenvolvimentista e Estado neoliberal. Em cada modelo, há um comportamento padrão de

política externa. Com o objetivo de fazer avançar a teoria de Cervo para além da explicação

de políticas externas individuais, argumenta-se que a Sociologia Histórica oferece teses

complementares aos seus paradigmas, na medida em que explica como países com

modelos estatais iguais ou diferentes interagem entre si. Segundo essa teoria, Estados são

os atores centrais das Relações Internacionais, diferem entre si e estão em contínua

mudança. O Estado é visto de uma perspectiva institucional, isto é, como um conjunto de

instituições que pretendem exercer coerção sobre a sociedade, regulando o funcionamento

de estruturas que afetam o comportamento dos indivíduos. O conteúdo e a forma dessas

instituições estão sob contínua disputa política em cada sociedade, marcada especialmente

pela luta entre classes e influenciada por pressões tanto domésticas quanto estrangeiras. A

tendência básica de um Estado no sistema internacional é defender e exportar seu modelo

institucional. É explorado o caso de expansão do modelo de Estado moderno, criado no

Reino Unido no século XVII e disseminado pelo mundo continuamente até ser predominante

no século XX.

Palavras-chave: Teoria das Relações Internacionais; Sociologia Histórica; Amado Cervo.

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Contribuições da Sociologia Histórica

para a teoria de Amado Cervo

Diogo Ives1

Introdução

Através da formulação de conceitos que expliquem a política externa dos países

latino-americanos, Amado Cervo criou uma teoria original das relações internacionais da

América Latina. Para Cervo, é errôneo incorporar teorias formuladas fora da região para

explicar seus fenômenos, pois “o alcance explicativo universal das teorias é forjado, visto

que se vinculam a interesses, valores e padrões de conduta de países ou conjuntos de

países onde são elaboradas” (CERVO, 2008: 8). Ao invés de teorias importadas, defende o

uso de um conjunto original de conceitos, que digam respeito estritamente a contextos

nacionais, como instrumentos primários de análise.2

O pressuposto básico da teoria iniciada por Cervo é que os Estados latino-

americanos, desde a sua origem, guiaram suas ações internas e externas pelos requisitos

que o desenvolvimento do capitalismo dentro de suas fronteiras exigiu. Por conseguinte,

afirma que a política externa desses países esteve preponderantemente ligada a

imperativos socioeconômicos:

Se existe um paradigma latino-americano de análise das relações internacionais, pode-se dizer que apresenta em sua gênese e evolução dois fundamentos: por um lado, deprimiu o papel da guerra e da segurança, já que este foi, desde a independência e a consolidação dos Estados nacionais, um subcontinente pacífico e não uma zona de pressão; por outro lado, introduziu o primado da luta pelo desenvolvimento nos estudos internacionais, já que o desenvolvimento se tornou o vetor das políticas exteriores nos diversos países, desde os anos trinta ou quarenta do século XX (CERVO, 2007, p. 228).

Examinando a história latino-americana, Cervo (2007) identificou terem existido três

paradigmas de Estado, diferenciados pela forma como ocorreu a interação entre o Estado e

a economia. A cada forma de interação, estariam associadas diretrizes gerais à política

externa, decididas, em última instância, pela elite política. Os paradigmas de Cervo são os

seguintes:

1) Estado liberal-conservador. Vigorou do século XIX à década de 1920. Zelou pela

agroexportação, uma vez que concebia como um bem a perpetuação das trocas

1 Mestrando em Ciência Política na UFRGS com apoio financeiro da CAPES.

2 Cervo (2008: 13) afirma que “o conjunto [de conceitos] aproxima-se da teoria, na medida em que

exerce as duas funções que a disciplina [das Relações Internacional] se atribui historicamente, a explicativa e a valorativa. Diferencia-se da teoria, na medida em que restringe o alcance às relações internacionais de um determinado país”.

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de seus produtos primários por manufaturas oriundas do centro capitalista. A

política externa atendia aos interesses dos países industrializados.

2) Estado desenvolvimentista. Perseguiu a industrialização entre as décadas de

1930 e 1980. O objetivo era dar maior autossuficiência econômica ao país. A

política externa tinha três responsabilidades: obter mercados para exportações,

atrair capital externo e obter tecnologia estrangeira.

3) Estado neoliberal. Reduziu sua participação na economia para ampliar o espaço

da iniciativa privada, em obediência aos princípios do Consenso de Washington.

A política externa foi orientada para buscar acordos comerciais, participação em

blocos regionais e aproximação com os Estados Unidos.

Crítico ao advento do Estado neoliberal, o qual seria responsável por aumentar as

vulnerabilidades de uma sociedade no sistema internacional, Cervo idealizou o paradigma

de Estado logístico como tendo sido o passo mais adequado à prosperidade e à autonomia

dos países latino-americanos após o modelo desenvolvimentista ter se mostrado

insustentável nos anos 1980. Nesse quarto paradigma, o Estado atuaria na economia por

meio de associações, dando suporte à expansão de empreendimentos latino-americanos.

Nesse sentido, apoiaria uma integração produtiva regional, em uma primeira fase, e global,

em uma segunda fase, a fim de internacionalizar a economia da América Latina (CERVO,

2007).

O pensamento teórico de Cervo apresenta uma limitação – deliberada – ao explicar

uma relação de causalidade entre determinado modelo de Estado e determinado

comportamento em política externa sem falar muito a respeito da interação entre Estados,

isto é, como países com paradigmas de Estado iguais ou diferentes agem entre si. Fica

implícito que Estados liberais na América Latina são preferidos pelos países desenvolvidos,

porém não se teoriza sobre como um Estado da região se comporta perante seus vizinhos

também periféricos, por exemplo. Dado que as Relações Internacionais pretendem analisar

“relações”, é útil que uma teoria explique tanto a natureza das unidades que julga centrais

na política internacional, como também o modo como essas unidades se influenciam.

A Sociologia Histórica nas Relações Internacionais

Respostas a essa limitação que podem ser complementares às ideias de Cervo são

encontradas na Sociologia Histórica. Conforme afirmam Paoliello & Miklos (2013), os

paradigmas dominantes na área de Relações Internacionais têm um poder explicativo

crescentemente insatisfatório, na medida em que, ao pretenderem ser atemporais e “sem

lugar”, anulam processos e variedades importantes para a explicação da realidade. A

solução para esse descontentamento seria conciliar a tendência da História em construir

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análises do particular sem validez universal e a tendência da Sociologia em privilegiar o

exame de regularidades. A Sociologia Histórica proporcionaria uma abordagem que pode

ser empregada por teorias de diferentes vieses, as quais continuam sendo responsáveis por

induzir “qual tipo de estruturas e processos serão privilegiados ao se olhar para o passado”

(PAOLIELLO & MIKLOS, 2013, p. 8)

Na definição de Raymond Aron (2000), o que caracteriza trabalhos de Sociologia

Histórica é basear-se em sínteses teóricas globais, isto é, doutrinas que comportam

simultaneamente uma análise microscópica da ação humana, uma interpretação da época

moderna e uma visão do desenvolvimento histórico a longo prazo. Para Aron (2000), os

expoentes da área foram Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville, Durkheim, Pareto e

Weber. Por sua vez, Pierre Bordieu vê a Sociologia Histórica como a reunião entre duas

disciplinas que foram indevidamente separadas pela “divisão intelectual do trabalho”

contemporânea, pois, com a Sociologia, o intelectual ganha certa distância crítica em

relação ao objeto do passado que estuda, enquanto que, com a História, evidencia que um

campo de lutas de poder sempre está inscrito no tempo (CHARLE, 2013).

Fred Halliday (1999), adepto da Sociologia Histórica para as Relações Internacionais,

afirma que a disciplina de Relações Internacionais enfrenta dois perigos atualmente:

teorizações sem apoio na história e análises factuais sem reflexão teórica ou ética. Teorias

reducionistas e sistêmicas buscariam caminhar separadas, quando na verdade deveriam ser

combinadas. Realistas negligenciariam aspectos socioeconômicos, enquanto marxistas

reduziriam o papel da força, quando ambas seriam levadas em consideração na política

externa de um país. Na concepção de Halliday (1999), as Relações Internacionais estudam

fundamentalmente interações entre formações sociais, interessadas em ter segurança para

preservar dinâmicas socioeconômicas. O Estado é o locus institucional destacado para se

alcançar esses objetivos, ainda que grupos sociais possam atuar à margem dele na política

internacional.

Em “International Relations and Historical Sociology”, Stephen Hobden (1998)

discute a obra de outros quatro intelectuais que utilizaram os fundamentos teóricos da

Sociologia Histórica para interpretar a política internacional: Theda Skocpol, Charles Tilly,

Michael Mann e Immanuel Wallerstein. Não se pretende aqui avaliar em detalhe os

trabalhos desses quatro autores, exercício já feito por Hobden (1998), mas sim sintetizar os

entendimentos comuns que compartilham sobre esse empreendimento epistemológico e

que podem ser úteis para aperfeiçoar os paradigmas de Cervo. Apesar de seus pontos de

vista partirem de sociedades anglo-americanas, não é impossível que sejam válidos para o

contexto latino-americano, desde que devidamente adaptados.

Sckocpol, Tilly, Mann e Wallerstein veem o Estado a partir de uma perspectiva

institucional, isto é, como um conjunto de instituições que pretendem exercer coerção sobre

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a sociedade, regulando o funcionamento de estruturas que afetam o comportamento dos

indivíduos (mercado, família, religião, ciência etc.). O conteúdo e a forma dessas instituições

estão sob contínua disputa política no âmbito da sociedade, marcada sobretudo pela luta de

classes. É central para esses pensadores o entendimento de que um Estado está em

constante formatação. Afastam-se assim da realpolitik, que dissocia poder e ideologia,

porém não chegam a normatizar modelos ideais de organização social, como liberais e

marxistas fazem. Em outras palavras, colocam a aquisição do poder como meio para se

implementar uma ideologia, unindo política e ética, mas não estipulam uma fórmula para

essa combinação, que fica a cargo das disputas reais, fora da teoria.

Nada é atemporal nem teleológico no que se refere ao Estado. Ao estudar o

nascimento de Estados modernos na França, na Rússia e na China, Skocpol (1979) aponta

as tensões em torno das estruturas sociopolíticas agrárias em que camponeses viviam

como fundamentais para o desenrolar de movimentos revolucionários. Ao analisar a

evolução do Estado moderno europeu, Tilly (1992) constata que a atividade militar foi

perdendo espaço prioritário para preocupações com produção, distribuição e adjudicação.

Mann (1993) descreveu o Estado moderno como sendo integrado por atores que

representam diferentes grupos e interesses que coexistem em uma sociedade capitalista.

Wallerstein (1974) entende que a posição de um Estado moderno no sistema internacional

muda conforme a organização da sua produção interna. Em comum nas quatro visões, há

uma postura de sempre se situar um tipo de Estado no tempo e no espaço para ser

analisado.

Os autores também concordam em que as dimensões interna e externa a um Estado

estão em interação constante. No seu estudo sobre revoluções, Skocpol (1979) observa que

pressões militares e ideologias provenientes de outros países tiveram um papel fundamental

nos acontecimentos de França, Rússia e China. Ao estudarem a proliferação do Estado

centralizado na Europa durante a transição das idades Média e Moderna, Tilly (1975) e

Mann (1986) sustentam que esse modelo era a organização política relativamente mais

eficiente em arrecadar impostos e construir uma força coercitiva, capaz de controlar

oposições internas e vencer conflitos externos em uma época conflituosa. Para Wallerstein

(1974), a disseminação do capitalismo gradualmente foi articulando todos os Estados em

uma divisão internacional do trabalho, responsável por gerar desigualdades de riqueza e

conflitos sociais.

Ao considerar que as fronteiras entre o doméstico e o estrangeiro são pouco rígidas,

esses autores desafiam a noção ocidental tradicional de soberania. O conteúdo e a forma

das instituições que estão em disputa dentro de uma sociedade recebem pressões e

influências provenientes de outras sociedades. Rejeita-se também a visão da Sociologia

clássica de que uma sociedade tem uma dinâmica predominantemente interna e autônoma.

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Uma sociedade está cercada por outras sociedades, de modo que o desenvolvimento de

uma tem repercussões sobre a outra. São contrariadas igualmente visões realistas de

Relações Internacionais que veem os Estados como sendo indistintos entre si e

determinados por uma estrutura externa. Estados diferem entre si e são capazes de mudar

formas de interação conforme suas instituições se transformem.

Apesar de não existir uma definição consensual entre os quatro autores, pode-se

inferir que entendem o sistema internacional como um espaço de competição entre Estados

com graus variados de semelhança e distinção entre si. De forma metafórica, como em um

sistema partidário democrático, os Estados competem porque sustentam diferentes

propostas para a forma e o conteúdo das instituições que regulam a vida social. As relações

internacionais, desse modo, contribuem para promover e moldar estruturas nas várias

sociedades que compõem o mundo. No entanto, ao contrário de um sistema partidário

democrático, não há autoridade para definir as regras da competição. Um Estado é então

levado a acumular poder material para ter capacidade de coerção e resistência em relação a

outros. O modo de solucionar a tensão e os conflitos decorrentes muda conforme o tempo e

o espaço, oscilando entre métodos de guerra e formas de diplomacia.

Assim como um Estado, um sistema de Estados não é atemporal para a Sociologia

Histórica. Segundo Tilly (1992) e Mann (1986), o sistema europeu de Estados gradualmente

passou de uma situação de guerras frequentes para um maior uso de negociações e

normas à medida que a forma moderna de Estado se tornou dominante. Essa “socialização”

de um modelo ocorreu, conforme o estudo de Skocpol (1979), porque Estados não-

modernos foram forçados a imitar as estratégias dos rivais modernos, racionalizando

exércitos e burocracias, para não serem destruídos. Wallerstein (1974), por sua vez, oferece

uma teorização sofisticada sobre diferentes sistemas-mundo que teriam existido no passado

e sustenta que a expansão do sistema moderno gerou crescentes movimentos

antissistêmicos, como nacionalismos e socialismos, que perturbam a divisão internacional

do trabalho.

A teoria de Wallerstein para explicar o atual sistema de Estados tem o mérito de

englobar todos os países e ultrapassar o espaço europeu de interações, privilegiado por

Skocpol, Tilly e Mann em suas análises. No entanto, ao dar mais importância para o nível

sistêmico, carece do tratamento que esses três autores deram ao desenvolvimento estatal.

Wallerstein discorda que o Estado seja o elemento central nas relações internacionais

modernas. Esse espaço seria ocupado pelo comércio capitalista, surgido a partir do século

XVI e dominante no mundo todo a partir do século XIX. Na sua visão, são as trocas

econômicas que hierarquizam os Estados no centro, na semi-periferia e na periferia desse

sistema, servindo como determinantes principais de suas estruturas sociais. A posição de

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cada Estado nos estratos é definida conforme a atividade que desempenham na cadeia de

comércio internacional.

Os outros três pensadores também reconhecem a importância que as dinâmicas do

capitalismo têm na interação entre Estados modernos, porém as veem sendo produzidas,

em igual importância, tanto por ações intraestatais como interestatais. Tilly (1992) rejeita

tanto teorias que interpretam a emergência do capitalismo privilegiando o sistema, como em

Wallerstein, por não explicarem variações entre modelos de Estado de um mesmo estrato

de riqueza, quanto privilegiando mudanças internas, como em Perry Anderson, por não

explicarem variações de modelos de Estado em sociedades com o mesmo modo de

produção. Skocpol (1977) e Mann (1993) seguem a mesma linha de Tilly, afirmando que o

capitalismo surgiu dentro de Estados e entre eles, obedecendo tanto a ações sociopolíticas

domésticas como geopolíticas externas.

Para Hobden (1998), o principal erro da teoria elaborada por Wallerstein é localizar

as propriedades definidoras do capitalismo no comércio e não na produção. Novas classes

sociais são geradas quando ocorrem mudanças no sistema produtivo, de modo que apenas

se pode falar em capitalismo quando há a presença de empresários e trabalhadores

assalariados de forma predominante em uma sociedade. Não era o que se via nos países

europeus do século XVI. Hobden (1998) também julga que Wallerstein exagerou ao ver o

comércio internacional daquela época como algo semelhante ao comércio atual, quando a

escala das trocas era menor, as empresas do centro dependiam menos de matérias-primas

provenientes do exterior e não havia tanta pressão pela especialização da periferia como

hoje.

Benno Teschke (2003) partiu dessas análises precursoras das relações

internacionais sob o viés da Sociologia Histórica e desenvolveu uma teoria mais elaborada

acerca da emergência e expansão do capitalismo a partir de movimentos tanto domésticos

como internacionais, situando-o como o motor das dinâmicas da política internacional.

Assim como Hobden, rejeita o que classifica como visão neomarxista de Wallerstein sobre a

causalidade do capitalismo. Para ele, este modo de produção nasceu na Inglaterra como

uma consequência de conflitos de classe no século XVII, que culminaram na Revolução

Gloriosa de 1688. Até aquele século, o que existiam na Europa eram Estados ou

absolutistas ou repúblicas mercantis oligárquicas, sendo impossível situar o século XVI

como início do comércio mundial capitalista.

Para Teschke (2003), um Estado exprime “relações sociais de propriedade”, isto é,

suas instituições fixam regimes de propriedade ao proverem regras e sanções, de modo a

mediar as relações entre classes. Um Estado europeu absolutista, por exemplo, era a

expressão da sociedade feudal que o mantinha. Nobres cobravam aluguéis de camponeses

e desenvolviam métodos de coerção com os objetivos de extrair o excedente produzido e

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conquistar novas terras. Nada tinha a ver com um modo de produção capitalista, no qual os

donos dos meios de produção extraem o excedente durante o trabalho e o investem em

técnicas que aumentem a produtividade. Os Estados absolutistas muitas vezes constituíram

impérios mercantilistas para garantir territórios e lucros no comércio, lógica muito diferente

da estrutura capitalista do mercado de preços.

Esse modelo de Estado europeu começou a ser modificado por pressões

econômicas e militares advindas do Reino Unido na avaliação de Teschke (2003). Passada

a Revolução Gloriosa, o Estado absolutista britânico se transformou lentamente em Estado

moderno, mantendo a centralização de poder, porém tornando-a impessoal, não mais detida

por uma dinastia que se sustentava por clientelismo e patronagem, mas sim operada por

uma burocracia despersonalizada e racionalizada. Esse modelo de Estado era a expressão

da nova estrutura de classes, dominada por burgueses e proletários. Gradualmente, esse

modelo de Estado e o seu complexo social foram internacionalizados. Processos de

modernização do Estado em outras sociedades, portanto, teriam sido regional e

cronologicamente diferentes.

Teschke (2003) caracteriza um sistema internacional como expressão da natureza

de suas unidades constitutivas. Sustenta que é necessário tratar as relações internacionais

entre atores políticos distintos a partir de “sistemas de atores mistos”. Na época europeia

pré-moderna, como a maioria dos Estados do sistema era absolutista, outros participantes

eram obrigados a agir de modo igual ou similar caso não quisessem ser extintos. A

aquisição de territórios, prática essencial dos absolutistas, não era apenas guiada por

“maximização de poder”, “defesa” ou “anarquia”, estando também intrinsicamente associada

ao âmbito doméstico, às relações sociais feudais. A política externa era um “negócio de

família”.

O equilíbrio dinástico era profundamente diferente do balanceamento moderno. Este

passa a se basear na ideia de igualdade legal dos Estados e respeito formal à soberania,

enquanto aquele era uma técnica conduzida entre casas reais para expansão territorial

através de crescimentos proporcionais que eliminavam os Estados mais fracos. O objetivo

das dinastias era ter um império universal, de modo que um equilíbrio de poder era uma

quimera: agressões resultavam em respostas que não voltavam ao status quo ante e

intervenções eram consideradas um direito dos monarcas. Os tratados de Westfália

assinados em 1648 não alteraram essas práticas e estavam longe de representar Estados

modernos, pois foram negociados em nome de reis e não de países.

O processo de modernização e expansão do sistema se deu entre 1688 e a Primeira

Guerra Mundial, conforme proliferavam o modelo de Estado moderno e as relações sociais

capitalistas, tanto na Europa como em outras partes do planeta. Quando enfim se tornam

predominantes, no século XX, Teschke (2003) vê um esforço por parte dos agentes políticos

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centrais em dar coerência ao mercado mundial e eficiência à acumulação econômica

transnacional, resultando na proliferação de organismos interestatais, normas de Direito

Internacional e descolonizações. A ideia-chave das relações internacionais modernas deixa

de ser definitivamente a acumulação de territórios para se tornar a administração política

multilateral da economia-mundo pelos seus países-líderes.

A teoria de Teschke aperfeiçoa ideias lançadas por Wallerstein, Scokpol, Tilly e

Mann. Um Estado centralizado não é condição suficiente para se falar em Estado moderno.

Antes do século XVII, o que existia na Europa eram basicamente Estados absolutistas,

sustentados por sociedades feudais e reprodutores da lógica dos nobres de conquistar

novas terras por meio da guerra. O Estado moderno surge quando aparecem relações

capitalistas de produção, que requerem uma administração pública burocratizada e

prescindem de expansionismo territorial. Impôs-se gradualmente no mundo todo, criando

consigo uma divisão internacional do trabalho e um intenso comércio mundial, na medida

em que as sociedades se especializaram na produção de bens diferentes e

complementares. A existência de soberanias formalmente independentes garante

remunerações diferenciadas ao capital e ao trabalho.

Por sua vez, Teschke é complementado por outros autores no que se refere ao

século XX. O predomínio do modelo de Estado moderno que se verifica nesse período foi

contestado tão logo começou a se afirmar. Conforme expresso por Wallerstein (1974),

movimentos antissistêmicos passaram a questionar cada vez mais a desigualdade gerada

pela divisão internacional do trabalho. Halliday (1999) acrescenta que todo o funcionamento

do sistema moderno de Estados na segunda metade do século XX foi uma resposta ao

Estado socialista soviético, que tentava substituí-lo por um novo tipo de sistema interestatal.

A Guerra Fria teria sido, na sua visão, um conflito inter-sistêmico, causado por uma

divergência de normas sociais e políticas de como sociedades e Estados deveriam ser.

Tanto o lado ocidental quanto o lado socialista queriam exportar suas revoluções e

homogeneizar as demais formações sociais do mundo.

Na mesma perspectiva, Ellen Wood (2012) afirma que o aparecimento de instituições

interestatais no século XX não deslocou o papel do Estado na política internacional, como

querem liberais entusiasmados com o fenômeno da globalização financeira. Ao contrário,

deu-lhe novos poderes. Organismos desse tipo dependem de potências que as sustentem.

Mesmo instituições que se orientam por um trabalho de integração regional ainda se

baseiam em lógicas de competição entre países. Atores e classes sociais continuam se

organizando primordialmente em uma base nacional, pois são os Estados que dão

condições para o capital se acumular e circular. Para operar, o capitalismo continua

necessitando da esfera econômica de apropriação e da esfera política de coerção, ambas

asseguradas pelo Estado.

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Considerações finais

A exposição feita, mesmo contendo fatos exteriores à história propriamente

circunscrita à América Latina, procurou indicar como a Teoria dos Paradigmas de Estado

pode ser enriquecida se atentar para os estudos mencionados. A visão de Cervo dialoga

bem com os postulados da Sociologia Histórica das Relações Internacionais desenvolvidos

no Reino Unido e nos Estados Unidos, marcada por uma mistura entre o materialismo

histórico de Marx, a teoria estatal de Weber e uma epistemologia construtivista. Cervo

compartilha ideias básicas como o privilégio do Estado como ator principal na política

mundial; as dinâmicas do capitalismo como explicação para a formação de um Estado atual

bem como para a sua atuação no âmbito internacional, de modo que a fronteira entre as

áreas interna e externa é bastante fluída; a participação da sociedade que sustenta esse

Estado em uma divisão internacional do trabalho; a possibilidade de modificação desse

Estado pela ação de grupos com projetos ideológicos diferentes, sem haver uma teleologia

que será obrigatoriamente seguida ou uma homogeneidade entre países de nível de renda

semelhante; e a necessidade de localização desse Estado no tempo e no espaço para ser

estudado adequadamente.

A abordagem sociológica sustenta ainda dois pontos que cabem à realidade da

América Latina e que cobrem limitações da teoria de Cervo. Em primeiro lugar, a finalidade

de um Estado ao se relacionar com outro é fomentar, difundir e defender um modelo, isto é,

um paradigma. Em séculos passados de colonização, a disputa se dava primordialmente

entre Estados modernos e não-modernos. Hoje, o conflito mais destacado ocorre entre tipos

de Estado moderno: se mais liberal, regulador ou intervencionista em relação à sociedade.

Em segundo lugar, um Estado executa tão melhor sua finalidade quanto melhor combinar

capacidades econômicas e militares. Os autores abordados mostram que ambas são

requeridas para Estados manterem ou alterarem o status quo de um sistema internacional

(ou regional) em favor do seu modelo. Os paradigmas de Cervo partem do diagnóstico de

que, na história latino-americana, a temática do desenvolvimento foi privilegiada em relação

à problemática de segurança. Entretanto, para um futuro desejável de superação do

subdesenvolvimento, ambas precisam ser colocadas no mesmo pé de igualdade e

importância nas agendas externas estatais.

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