'Direito Constitucional Didático

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KILDARE GONÇALVES CARVALHO Juiz do Tribunal de Alçada de Minas Gerais Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO 6a EDIÇÃO REVISTA E ATUALIZADA DELREY Belo Horizonte - 1999 Prefácio à 6a edição Kildare Gonçalves Carvalho, formado em Direito pela UFMG e detentor do valioso Prêmio Rio Branco, por ter sido o melhor aluno de sua turma, é um jurista. Um publicista por excelência. Auto-exigente, aplicado, trabalhador e muito sério no estudo e no exercício do Direito, ele preferiu esperar alguns anos para, em 1990, lançar-se no mundo das letras jurídicas "editadas e encadernadas". Lera muito desde sua formatura; passara a lecionar Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos e, depois, também na Faculdade Mineira de Direito da PUC-MG; escrevera muitos artigos em grandes jornais e revistas especializadas. Fora advogado de grandes empresas, consultor-chefe da Assessoria Técnico-Consultiva do Governador do Estado e Secretário de Estado. Ingressara no Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e no Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Mantinha seu escritório de advocacia especializada e continuava exercendo o cargo de consultor da Procuradoria Técnico-Legislativa do Governo do Estado. Com toda essa bagagem de peso, embora jovem, o professor Kildare entendeu acertadamente ser aquele o momento para publicar o seu Direito Constitucional Didático. E deu-me a honra e o prazer - duas sensações agradáveis de se sentir, uma emocionando e a outra alegrando - de apresentar a sua obra. Naturalmente que a escolha deveu-se à convivência amiga que já vinha acontecendo há anos na Milton Campos, para onde ambos fôramos levados pelas mãos do ilustre Desembargador Paulo Tinôco, mestre de Direito Constitucional. Em três dias, li os originais e gostei. Gostei muito! Dominando a língua portuguesa, com estilo simples e claro (como deve ser), Kildare Gonçalves Carvalho, didaticamente, ofereceu aos leitores um curso de Direito Constitucional em 16 capítulos. O livro, como não poderia deixar de ser, fez sucesso imediato em todo o Brasil, passando a ser "breviário" nas Faculdades de Direito e "manual" em concursos públicos para Juiz de Direito, Promotor de Justiça, Procurador do Estado e da Fazenda, Defensor Público, Técnico Judiciário e outros cargos próprios do bacharel em Direito. Seguiram-se a segunda, a terceira e a quarta edições, sempre revistas e ampliadas. E agora, somando ao seu já valioso curriculum os elevados títulos de Procurador-Geral do Estado, cargo que exerceu com brilho e eficiência, e de Juiz do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, Kildare Gonçalves Carvalho nos traz a 6a edição de seu didático curso e, mais uma vez, honra-me e alegra-me com o pedido de um novo prefácio. Esta presente edição tem 26 capítulos, assim denominados: Direito Constitucional, Estrutura do Estado, Fins e Funções do Estado, Organização do Poder Político, Estado e Direito, Regimes Políticos e Sistemas de Governo, Constituição, Constituições Brasileiras, Princípios Fundamentais, Direitos e Garantias Fundamentais, Nacionalidade, Direitos Políticos, Partidos Políticos e Grupos de Pressão, Estado Federal, Administração Pública, Poder Legislativo, Processo Legislativo, Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária, Poder Executivo, Poder Judiciário, Funções Essenciais à Justiça, Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, Tributação e Orçamento, Ordem Econômica e Financeira, Ordem Social e Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias, fechando-se a obra com uma valiosa bibliografia. (*) O texto todo mostra cultura e erudição (cada vez mais apuradas), sem pedantismo e exibicionismo. Suas definições são claras, precisas, didáticas. Tomemos, por exemplo, o que ele diz sobre soberania. Para Kildare, "soberania indica o poder de mando de

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KILDARE GONÇALVES CARVALHOJuiz do Tribunal de Alçada de Minas GeraisProfessor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

6a EDIÇÃOREVISTA E ATUALIZADA

DELREYBelo Horizonte - 1999

Prefácio à 6a ediçãoKildare Gonçalves Carvalho, formado em Direito pela UFMG e detentor do valioso Prêmio Rio Branco, por ter sido o melhor aluno de sua turma, é um jurista. Umpublicista por excelência. Auto-exigente, aplicado, trabalhador e muito sério no estudo e no exercício do Direito, ele preferiu esperar alguns anos para, em 1990, lançar-se no mundo das letras jurídicas "editadas e encadernadas". Lera muito desde sua formatura; passara a lecionar Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos e, depois, também na Faculdade Mineira de Direito da PUC-MG; escrevera muitos artigos em grandes jornais e revistas especializadas. Fora advogado de grandes empresas, consultor-chefe da Assessoria Técnico-Consultiva do Governador do Estado e Secretário de Estado. Ingressara no Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e no Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Mantinha seu escritório de advocacia especializada e continuava exercendo o cargo de consultor da Procuradoria Técnico-Legislativa do Governo do Estado.Com toda essa bagagem de peso, embora jovem, o professor Kildare entendeuacertadamente ser aquele o momento para publicar o seu Direito Constitucional Didático. E deu-me a honra e o prazer - duas sensações agradáveis de se sentir, uma emocionando e a outra alegrando - de apresentar a sua obra. Naturalmente que a escolha deveu-se à convivência amiga que já vinha acontecendo há anos na Milton Campos, para onde ambos fôramos levados pelas mãos do ilustre Desembargador Paulo Tinôco, mestre de Direito Constitucional.Em três dias, li os originais e gostei. Gostei muito! Dominando a língua portuguesa, com estilo simples e claro (como deve ser), Kildare Gonçalves Carvalho, didaticamente, ofereceu aos leitores um curso de Direito Constitucional em 16 capítulos.O livro, como não poderia deixar de ser, fez sucesso imediato em todo o Brasil,passando a ser "breviário" nas Faculdades de Direito e "manual" em concursos públicos para Juiz de Direito, Promotor de Justiça, Procurador do Estado e da Fazenda, Defensor Público, Técnico Judiciário e outros cargos próprios do bacharel em Direito.Seguiram-se a segunda, a terceira e a quarta edições, sempre revistas e ampliadas.E agora, somando ao seu já valioso curriculum os elevados títulos de Procurador-Geral do Estado, cargo que exerceu com brilho e eficiência, e de Juiz do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, Kildare Gonçalves Carvalho nos traz a 6a edição de seu didático curso e, mais uma vez, honra-me e alegra-me com o pedido de um novo prefácio.Esta presente edição tem 26 capítulos, assim denominados: Direito Constitucional, Estrutura do Estado, Fins e Funções do Estado, Organização do Poder Político, Estado e Direito, Regimes Políticos e Sistemas de Governo, Constituição, Constituições Brasileiras, Princípios Fundamentais, Direitos e Garantias Fundamentais, Nacionalidade, Direitos Políticos, Partidos Políticos e Grupos de Pressão, Estado Federal, Administração Pública, Poder Legislativo, Processo Legislativo, Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária, Poder Executivo, Poder Judiciário, Funções Essenciais à Justiça, Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, Tributação e Orçamento, Ordem Econômica e Financeira, Ordem Social e Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias, fechando-se a obra com uma valiosa bibliografia. (*)O texto todo mostra cultura e erudição (cada vez mais apuradas), sem pedantismo e exibicionismo. Suas definições são claras, precisas, didáticas. Tomemos, porexemplo, o que ele diz sobre soberania. Para Kildare, "soberania indica o poder de mando de

última instância numa sociedade politicamente organizada. No planointerno, consiste na supremacia ou superioridade do Estado sobre as demais organizações, e no plano externo quer dizer independência do Estado em relação aos demais Estados".Alunos de bacharelado, de mestrado e de doutorado, candidatos a concursospúblicos, advogados, magistrados, membros do Ministério Público, professores, assessores jurídicos e judiciários, servidores da Justiça, enfim, todos os que militam na fascinante e dinâmica área do Direito Público terão, no livro, um guia seguro para o estudo teórico e a aplicação prática.

Belo Horizonte, julho de 1999Ricardo Arnaldo Malheiros FiuzaProfessor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito Milton Campos,Chefe de Gabinete do Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e Diretor-Adjunto da Escola Nacional da Magistratura

(*) Tudo devidamente revisto à luz das 6 emendas de revisão e das 22 emendas constitucionais aprovadas nos termos das regras do artigo 60 da Constituição.

Nota à 6a ediçãoAo longo de mais de dez anos de vigência, a Constituição de 1988 vem sofrendo inúmeras alterações, que, nada obstante as pressões sociais e econômicas contrárias à complementação de várias de suas normas, não lograram abalar as vigas-mestras e os fundamentos nela inseridos, reveladores da sua capacidade de favorecer mudanças na estrutura social. Se não há mais falar em Constituições imutáveis, como no passado, o que levaaté mesmo à idéia de que a estabilidade de uma Constituição reside justamente na capacidade de sua adaptação às mudanças ocorridas na realidade, qualquer alteração no texto constitucional deve estar associada e não dissociada da idéia de Democracia e de Estado Democrático de Direito. Decorre daí que a concepção democrática de Constituição faz com que o seu texto seja inteiramente passível de revisão, é dizer, de uma releitura à luz das mutações extraídas da realidade política, social, econômica e cultural, dentre outras, já que democracia não existe sem discussão e sem liberdade de expressão.Nessa ordem de idéias é que se concebe o Direito como um processo aberto,em constante evolução, sem desconhecer, todavia, o fato de que falar em Constituição Democrática não significa dizer niilismo valorativo ou procedimental, desde que a democracia não pode deixar de se relacionar com as idéias de governo representativo, regra da maioria, com respeito aos direitos das minorias, separação de poderes e direitos fundamentais.A Constituição, portanto, como obra aberta, não há de se afastar das concepções de liberdade e de igualdade, e do propósito de assegurar a legitimidade e avalidade de suas normas, impedindo que nela se operem transformações mutiladorase ilegítimas.Considerando tais diretrizes, é que procuramos rever, aprimorar e atualizaresta 6a edição do nosso Direito Constitucional Didático, de modo a acompanhar asmodificações introduzidas no texto constitucional de 1988 pelas mais recentesEmendas, em especial a de n. 19/98 (reforma administrativa) e a de n. 20/98, quemodificou o regime de previdência social, incluindo a Emenda de n.22 j 99.Reiteramos o propósito que nos levou à elaboração deste trabalho, a partir desua 1a edição, qual seja, o de servir de roteiro e subsídio para os que se dedicam ao estudo do Direito Constitucional como disciplina que dá suporte aos demais ramos do Direito, e dispõe sobre a organização, controle e exercício do poder político.O autor.

Sumário

Capítulo 1 - DIREITO CONSTITUCIONAL ... 211 Direito Constitucional - Conceito, objeto e conteúdo científico ... 23

2 Direito Constitucional - Teoria Geral do Estado e Ciência Política ... 26

Capítulo 2 - ESTRUTURA DO ESTADO ... 311 Sociedade e Estado ...332 Sociedades pré-estatais, infra-estatais e supra-estatais ... 363 Conceito de Estado ... 364 Natureza do Estado ... 384.1 Teorias sociológicas ...384.2 Teorias deontológicas ... 414.3 Teorias jurídicas ... 414.4 Teorias políticas ... 425 Evolução histórica do Estado ... 436 Origem e justificação do Estado ... 487 Processos de formação e extinção do Estado ... 548 Elementos do Estado - Considerações iniciais ... 568.1 Povo ... 578.2 Território ... 608.2.1 Princípio da territorialidade das leis ... 618.2.2 Direito do Estado sobre o seu território ... 618.2.3 Composição e limites do território ... 628.3 Poder político ... 678.4 Poder político e soberania ... 699 Personalidade do Estado ... 7210 Formas de Estado - Conceito ... 7510.1 Estados simples e compostos ... 7610.2 Estado unitário centralizado e descentralizado - O Estado Regional ... 7610.3 Estado composto - União Real - União Pessoal - Confederação de Estados - Estado Federal ... 78

Capítulo 3 - FINS E FUNÇÕES DO ESTADO ... 831 Fins do Estado - Considerações iniciais ... 852 Classificação dos fins do Estado ... 853 Síntese conclusiva ... 864 Funções do Estado - Noção e classificação ... 87

Capítulo 4 - ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO ... 911 Noção de órgão do Estado ... 932 Separação de Poderes - Considerações iniciais ... 943 A separação de Poderes no pensamento político ... 944 Origem histórica da separação de Poderes ... 955 A separação de órgãos e funções ... 96

Capítulo 5 - ESTADO E DIREITO ... 991 Relações entre o Estado e o Direito ... 1012 Teoria monística ... 1013 Teoria dualística ... 1024 Teoria do paralelismo ... 1025 Teoria tridimensional do Estado e do Direito ... 1026 Teoria da autolimitação do Estado ... 103

Capítulo 6 - REGIMES POLÍTICOS E SISTEMAS DE GOVERNO ... 1051 A dificuldade terminológica ... 1072 Tipologia dos regimes políticos ... 1093 Democracia - Fundamentos - Condições da democracia ... 1123.1 Tipos de democracia ... 1153.1.1 Democracia representativa ... 116

3.1.2 Democracia participativa ... 1183.2 A opinião pública ... 1194 Sistemas de governo - Considerações gerais ... 1204.1 Parlamentarismo ... 1204.2 Presidencialismo ... 1234.3 Apreciação crítica dos sistemas de governo ... 125

Capítulo 7 - CONSTITUIÇÃO ... 1271 Constituição - Conceito ... 1292 Classificação das Constituições ... 1303 O constitucionalismo ... 1324 Poder constituinte ... l345 Controle de constitucionalidade ... 1366 Classificação e eficácia das normas constitucionais ... 1447 Interpretação das normas constitucionais ... 1478 Lacunas da Constituição ... 1499 Aplicação das normas constitucionais no tempo ... 149

Capítulo 8 - CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS .... 1511 Constituição de 1824 ... 1532 Constituição de 1891 ... 1543 Constituição de 1934 ... 1564 Constituição de 1937 ... 1575 Constituição de 1946 ... 1576 Constituição de 1967 e sua Emenda n. 1, de 1969 ... 1587 Constituição de 1988 ... 159

Capítulo 9 - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS ... 1631 Introdução ... 1652 Acepções do termo "princípio" ... 1663 Princípios e normas constitucionais ... 1674 Classificação dos princípios constitucionais ... 1685 Princípios fundamentais e preâmbulo constitucional ... 1696 Princípios fundamentais do Estado brasileiro ... 1737 República ... 1748 Estado Federal ... 1759 Estado Democrático de Direito ... 17710 Separação de Poderes ... 17911 Soberania ... 18012 Cidadania ... 18113 Dignidade da pessoa humana ... 18214 Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa ... 18315 Pluralismo político - Interesses coletivos e difusos ... 18316 Objetivos fundamentais do Estado brasileiro ... 18417 Princípios da ordem internacional ... 18418 Considerações finais ... 189

Capítulo 10 - DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ... 1871 Histórico ... 1892 Valor jurídico das declarações de direitos ... 1943 Classificação ... 1944 Limites dos direitos fundamentais ... 1985 Direitos e garantias fundamentais na Constituição de 1988 ... 1985.1 Abrangência ... 1995.2 Direito à vida ... 2015.3 Direito à privacidade ... 203

5.4 Liberdades constitucionais ... 2055.5 Direito de igualdade ... 2125.6 Direito de propriedade - Fundamentos ... 2155.6.1 Função social da propriedade ... 2155.6.2 Desapropriação ... 2175.7 Garantias constitucionais - Explicação inicial ... 2175.7.1 Garantias das relações jurídicas ... 2185.7.2 Garantias criminais ... 2195.7.3 Garantias jurisdicionais ... 2205.7.4 Garantias processuais ... 2215.7.5 Garantias tributárias ... 2225.7.6 Garantias civis ... 2225.7.7 Garantias políticas ... 2255.8 Mandado de injunção ... 2265.9 Direitos sociais ... 2285.9.1 Direitos sociais dos trabalhadores ... 2295.9.2 Liberdade sindical ... 2325.9.3 Greve ... 2325.9.4 Garantias dos direitos sociais ... 233

Capítulo 11 - NACIONALIDADE ... 2351 Nacionais e estrangeiros ... 2372 Aquisição da nacionalidade - Jus soli e jus sanguinis ... 2373 Brasileiro nato e naturalizado ... 2384 Perda da nacionalidade ... 2415 Situação jurídica do estrangeiro no Brasil ... 241

Capítulo 12 - DIREITOS POLÍTICOS ... 2431 Considerações gerais ... 2452 Sufrágio ... 2453 Elegibilidade ... 2464 Inelegibilidade ... 2475 Suspensão e perda dos direitos políticos ... 2506 Sistemas eleitorais ... 250

Capítulo 13 - PARTIDOS POLÍTICOS E GRUPOS DE PRESSÃO ... 2551 Considerações gerais ... 2572 Classificação dos partidos políticos ... 2583 Funções dos partidos políticos ... 2594 Os partidos políticos na Constituição de 1988 ... 2595 Grupos de pressão ... 260

Capítulo 14 - ESTADO FEDERAL ... 2631 Introdução ... 2652 A federação no Brasil - Evolução ... 2673 Estrutura da federação ... 2684 Repartição de competências ... 2685 União - Natureza jurídica ... 2725.1 Competências da União ... 2725.2 Bens da União ... 2786 Estados federados - Autonomia ... 2806.1 Conteúdo das Constituições Estaduais ... 2806.2 Competências dos Estados federados ... 2827 Municípios - Posição na federação ... 2837.1 Lei orgânica dos Municípios ... 2837.2 Competências dos Municípios ... 285

7.3 Fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios ... 2878 Distrito Federal - Natureza ... 2878.1 Autonomia ... 2878.2 Competências ... 2889 Territórios ... 28810 Intervenção federal ... 28911 Intervenção nos Municípios ... 29211.1 Falta de pagamento da dívida fundada ... 29311.2 Não-prestação de contas ... 29411.3 Inaplicação do percentual constitucional da receita de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino ... 29411.4 Inobservância dos princípios indicados na ConstituiçãoEstadual, descumprimento de lei, ordem ou decisão judicial ... 295

Capítulo 15 - ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ... 2991 Princípios e normas gerais ... 3012 Agentes e cargos públicos ... 3063 Servidores públicos ... 3093.1 Estabilidade ... 3103.2 Aposentadoria ... 3114 Militares ... 313

Capítulo 16 - PODER LEGISLATIVO ... 3151 Introdução ... 3172 Funções do Poder Legislativo ... 3183 Organização do Poder Legislativo ... 3193.1 Câmara dos Deputados ... 3203.2 Senado Federal ... 3214 Sessões conjuntas do Congresso Nacional ... 3235 Auto-organização e regimento interno ... 3235.1 Direção e funcionamento dos trabalhos legislativos ... 3245.2 Abertura e término das sessões legislativas ... 3255.3 Comissões parlamentares ... 3255.4 Poder de polícia ... 3296 Atribuições do Congresso Nacional ... 3297 Garantias legislativas ... 3328 Incompatibilidades parlamentares e perda do mandato ... 3359 Considerações finais ... 337

Capítulo 17 - PROCESSO LEGISLATIVO ... 3391 Introdução ... 3412 Noção de processo legislativo ... 3413 Atos do processo legislativo ...3423.1 Iniciativa ... 3423.2 Emenda ... 3443.3 Votação ... 3443.4 Sanção ... 3453.5 Veto ... 3453.6 Promulgação ... 3463.7 Publicação ... 3484 Espécies normativas ... 3484.1 Emendas à Constituição ... 3484.2 Leis complementares ... 3504.3 Leis ordinárias ... 3514.4 Leis delegadas ... 3524.5 Medidas provisórias ... 352

4.6 Decretos legislativos ... 3544.7 Resoluções ... 3555 Leis orçamentárias ... 3556 Plebiscito e referendo ... 3567 Processo legislativo nos Estados e Municípios ... 3568 Processo legislativo e controle da constitucionalidade ... 3579 Procedimento legislativo ... 35810 Considerações finais ... 363

Capítulo 18 - FISCALIZAÇÃO CONTÁBIL, FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA ... 3651 Sistemas de controle - Externo e interno ... 3672 O Tribunal de Contas da União ... 3673 Composição do Tribunal de Contas da União ... 3704 Tribunal de Contas nos Estados e Municípios ... 3705 Sistema de controle interno ... 371

Capítulo 19 - PODER EXECUTIVO ... 3731 Poder de conteúdo incerto ... 3752 Chefia de Estado e chefia de governo ... 3753 Poder regulamentar ... 3764 Presidente da República - Elegibilidade, eleição, mandato, posse e exercício ... 3775 Vice-Presidente da República ... 3796 Vacância da Presidência ... 3797 Atribuições do Presidente da República ... 3808 Responsabilidade do Presidente da República ... 3809 Ministros de Estado ... 38310 Conselho da República ... 38411 Conselho de Defesa Nacional ... 384

Capítulo 20 - PODER JUDICIÁRIO ... 3871 Função jurisdicional ... 3892 Monopólio da jurisdição ... 3893 O devido processo legal ... 3904 Garantias da magistratura ... 3905 Competência dos Tribunais ... 3916 Os magistrados e seu estatuto ... 3927 Organização do Poder Judiciário ... 3958 Supremo Tribunal Federal ... 3959 Superior Tribunal de Justiça ... 39810 Justiça Federal Comum ... 40011 Justiça do Trabalho ... 40212 Justiça Eleitoral ... 40413 Justiça Militar ... 40514 Juizados Especiais e Justiça de Paz ... 40615 Justiça dos Estados ... 407

Capítulo 21 - FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA ... 4091 Ministério Público - Posição constitucional ... 4111.1 Princípios, autonomia e garantias ... 4111.2 Funções do Ministério Público ... 4121.3 Os diversos Ministérios Públicos ... 4132 Advocacia Geral da União ... 4143 Defensoria Pública ... 4154 Advocacia ... 416

Capítulo 22 - DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS ... 417

1 Estado Democrático de Direito e crise ... 4192 Sistema constitucional das crises - Flexível e rígido ... 4203 Estado de defesa ... 4234 Estado de sítio ... 4255 Forças Armadas ... 4276 Segurança pública ... 429

Capítulo 23 -TRIBUTAÇÃO E ORÇAMENTO ... 4311 Sistema Tributário Nacional - Considerações gerais ... 4332 Tributos ... 4332.1 Impostos ... 4342.2 Taxas ... 4342.3 Contribuição de melhoria ... 4352.4 Empréstimos compulsórios ... 4362.5 Contribuições sociais ... 4363 Limitações constitucionais do poder de tributar ... 4374 Discriminação constitucional de rendas ... 4404.1 Impostos da União ... 4414.2 Impostos dos Estados ... 4424.3 Impostos dos Municípios ... 4455 Repartição das receitas tributárias ... 4466 Finanças públicas ... 4467 Orçamento - Noção, natureza e elementos ... 4478 Características do orçamento ... 4489 Modalidades de orçamento ... 44910 Lei complementar e orçamento ... 45011 Vedações constitucionais orçamentárias ... 45112 Processo legislativo das leis orçamentárias ... 452

Capítulo 24 - ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA ... 4531 Fundamentos da ordem econômica - Liberalismo, intervencionismo e dirigismo econômico - O neoliberalismo ... 4552 Princípios da ordem econômica ... 4563 Atuação do Estado no domínio econômico ... 4584 Planejamento ... 4595 Serviços públicos. ... 4606 Regime das jazidas, minas, riquezas minerais e potenciais deenergia hidráulica ... 4607 Política urbana ... 4608 Política agrícola, fundiária e reforma agrária ... 4619 Sistema Financeiro nacional ... 463

Capítulo 25 - ORDEM SOCIAL ... 4651 Considerações gerais ... 4672 A seguridade social ... 4672.1 Saúde ... 4682.2 Previdência social ... 4682.3 Assistência social ... 4703 Educação e cultura ... 4704 Desporto ... 4715 Ciência e tecnologia ... 4716 Comunicação social ... 4727 Meio ambiente ... 4728 Família ... 4739 Criança, adolescente e idoso ... 47410 Índios ... 474

Capítulo 20 - DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS GERAIS E TRANSITÓRIAS ... 4771 Disposições gerais - Natureza ... 4792 Serviços notariais e de registro ... 4793 Disposições transitórias - Natureza e forma ... 479

Sumário'! Direito Constitucional - Conceito, objeto e conteüdo cientifico2 Direito Constitucional - Teoria Geral do Estado e CiénciaPolítica1 DIREITO CONSTITUCIONAL - CONCEITO, OBJETO E CONTEÚDOCIENTIFICOO , Direito Constitucional estuda a Constituição. Para os que admitem adicotomia do Direito em Público e Privado, o Direito Constitucional é o ramo orpexcelência do Direita Público.A divisão do Direito em Público e Privado prende-se à utilidade e à necessida-de, sobretudo didáticas, pois, do ponto de vista da ciência jurídica, têm sido falhos,insuficientes e obscuros os critérios distintivos. Não são poucos esses critérios. Anali-sando-os, destaca-se inicialmente o critério do interesse ou da utilidade contido noDireito Romano: o Direito Público versa sobre o modo de ser do Estado; o Privado,sobre o interesse dos particulares. Com efeito, alguma.s coisas são úteis publicamen-te, outras privadamente. É falho esse critério, porque não há como separar o interesseindimdual do público, já que ambos se interpenetram. Assim, a norma jurídica nãovisa apenas ao nteresse do Estado ou do particular. Tome-se como exemplo o Direi-�to de Familia, cujas normas, notadamente as que se referem ao casamento, interes-sam tanto ao individuo quanto ao Estado, quando se trata da estabilidade familiar.Também o ensino privado, que, não obstante situar-se no âmbito do Direito Privado,interessa igualmente ao Direito Público.Buscou-se então o fundamento da distinção no interesse predominante. Se anorma objetiva garantir diretamente o interesse privado e indiretamente o da sociedade, trata-se de Direito Privado; na hipótese contrária, estaríamos diante de normade Direito Público. A mesma dificuldade antes apontada, qual seja, a de assinalar ointeresse predominante numa determinada norma jurídica, pela interpenetração dointeresse público e individual, impede a aceitação desse critério.Outros fatores fundamentam a divisão na qualidade dos sujeitus (critério subjetivo) mostrando que, no Direito Público, o titular de direitos é o Estado, dotado deimpério ou poder de supremacia, e, no Privado, titulares são as pessoas físicas oujurídicas (particulares). Não satisfaz também essa distinção, pois o Estada comparece, e até com freqüência, em contratos de locação, compra e venda, situando-se nomesmo nível do particular, sem aquela posição de supremacia.Finalmente, mencione-se o critério formal, baseado na forma externa dasrelações jurídicas, vale dizer, será privada a norma que tratar de relação jurídica decoordenação (contratos de compra e venda), com igualdade das partes na relação23KILDARE GONÇALVES CARVALHOjurídica, e será pública a que versar relação urídica de subordinação, protegendo�interesses preponderantemente públicos. TaI critério é questionável, pois deixaria àmargem o Direito Internacional Püblico, que regula relações de coordenação comigualdade jurídica dos Estados que têm interesses de igual valor no âmbito dasrelações internacionais.Não sendo satisfatórias as soluções para a distinção do Direito Público e Privado, nern por isso há

de se desprezar a dicotomia, por ser ela útil e necessária do pontode vista didático, e por contribuir para a formação de uma mentalidade pública ouprivada que tem sido responsável pela elaboração e aperfeiçoamento do Direito aolongo dos séculos.O Direitó Çonstituci nal .çonstitui, ó princi ál r_amo do Direita Pública,--p.O-is� �ttata da.Qrganização e atividade do Estado considerádó em si mesmo=Intimamente relacionado com o conceito de Constituição, o Direito Constitucional terá reduzida ou ampliada sua matéria, segundo se entenda a Constituição emsentido jurídico ou político.Os conceitos, pois, de Direito Constitucional, formulados pelos mais autorizados constitucionalistas, relletem a visão de cada um deles sobre o significado deConstituição. Afonso Arinos de Melo Franco sustenta que "o Direito Constitucional é o estudo metódico da Constitufção do Estado, da sua estrutura institucionalpolítico-jurídica".1 Para Paulino Jacques, "Direito Constitucional é o ramo do Direito Público que estuda os princípios e normas estruturadoras do Estado e garantidoras dos direitos e liberdades individuais".2 Manoel Gonçalves Ferreira Filho dizque o Direito Constitucional como ciência "é o conhecimento sistematizado dasregras jurídicas relativas à forma do Estado, à forma do governo, ao modo deaquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos e aos limites desua ação".3 Pinto Ferreira o conceitua como "a ciência positiva das Constituições".4Já o consagrado constitucionalista José Afonso da Silva afirma que o Direito Cons-titucional é "o ramo do Direito Público que expõe, interpreta e sistematiza osprincípios e normas fundamentais do Estado".5 Rosah Russomano considera o#Direito Constitucional "como o sistema de princípios e de normas positivas queestruturam o Estado de Direito".6 IdentiFicando o Direito Constitucional com oDireito Político, Marcelo Caetano o conceitua como "o conjunto de normas jurídi-cas que regula a estrutura do Estado, designa as suas funções e define as atribui-ções e os limites dos supremos órgãos do poder político".�1 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Direito constitucional, p.4.2 JACQUES, Paulino. Curso de direito constitucional, p. 2.3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 4.4 PINTO FERREIRA, Luiz. Manual de direito constitucional, p. l.S SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 34.RUSSOMANO, Rosah. Curso de direito constitucional, p. 17.7 CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v. I, p. 62.24DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOVerifica-se, dentre todos esses conceitos, que o Direito Constitucional cuida de_matéria referente à estrutura, fins e funções do Estado, à titularidade e_ organizaçãodo poder político e aos limites de sua atuação (direitQs fundamentais. Q controÏe d�constitucionalidade).O Direito Constitucional abrange as seguintes disciplinas:Direito Constitucional Positivo, Particular ou Especial, cujo objeto é a interpretação, crítica e sistematização das normas constitucionais vigentes em determinado Estado (Espanha, Portugal, Brasil, por exemplo);Direito Constitucional Comparado, que "analisa não uma, mas diversasConstituições, ou tipos de Constituição, para obter da comparação dessas normas positivas dados sobre semelhanças ou diferenças que são igualmente úteisao estudo jurídico",8 podendo a comparação abranger Constituições consideradas em sua dimensão espacial ou temporal, destacando-se, na atualidade, a comparação entre Constituições próximas no tempo, mas geograficamente distantes.O Direito Constitucional Comparado revela a existência de duas principais vertentes: o Direito Constitucional democrático clássico e o Direito Constitucionaldo socialismo totalitário. O primeiro compreende diversas formas políticas,

como parlamentar, presidencial, liberal e autoritária, capitalista, neocapitalista(Estado social) e socialista na modalidade social-democrata. O segundo abrangeos regimes comunistas (marxistas, maoístas e outros) e formas de transição denominadas democracias populares. Com a extinção, no entanto, da União das Repüblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a criação, em seu lugar, da Comunidadede Estados Independentes (CEI) e a transformação dos Estados do Leste Europeu, novas regras constitucionais deverão surgir para a ordenação de uma formapolítica emergente e, por isso mesmo, ainda não def nida, o que certamente iráenriquecer o Direito Constitucional Comparado;Direito Constitucional Geral, que "utiliza as determinações positivas, peculiares ao Direito Constitucional de diversos Estados, estabelecendo conceitos, formu-lando princípios e apontando tendências gerais".9 Constituem objeto do DireitoConstitucional Geral, segundo José Afonso da Silva, "o próprio conceito de DireitoConstitucional, seu objeto genérico, seu conteúdo, suas relações com outras discipli-nas, suas fontes, a evolução do constitucionalismo, as categorias gerais do DireitoConstitucional, a teoria da Constituição (conceito, classificação, tipos, formação,mudanças, extinção, defesa, natureza de suas normas, estrutura normativa, etc.),hermenêutica, interpretação e aplicação das normas constitucionais, a teoria do po-der constituinte, etc.)".lo8 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Op. cit., p. 6.9 RUSSOMANO, Rosah. Op. cit., p. 20.10 SILVA,josé Afonso da. Op. cit., p. 36.KILDARE GONÇALVES CARVALHO2 DIREITO CONSTITUCIONAL - TEORIA GERAL DO ESTADO E CIÊNCIAPOLÍTICASão fronteiriças as zonas entre estas disciplinas que têm por fim último 0estudo do fenômeno político e o próprio fenômeno político. As relações entre oDireito Constitucional e as outras ciências políticas se intensificaram a partir domomento em que o Estado deixou de ser considerado como instituição à parte dasociedade. É de Bidart Campos a observação de que "qualiEïca-se como políticatoda ciência que tenha por objeto o Estado, sua natureza, sua estrutura, seufuncionamento, suas relações com outros grupos sociais coletivos, tanto no inte-rior como no exterior, suas relações com os indivíduos, assim corno também osfatores humanos, econômicos e sociais que condicionam ou determinam suaexistência"."Podemos, no entanto, demarcar as fronteiras de cada uma dessas disciplinas,sem perder de vista a observação de que todas elas se qualificam de políticas, e seusobjetos se superpõem.A Teoria Geral do Estado é ciência teórica, especulativa, que se propõe a estudar o Estado em si mesmo, no que tem de essencial e permanente no tempo. CarlosS. Fayt, contudo, defende a tese de que a Teoria Geral do Estado estuda o fenômenoestatal tanto em sua generalidade como em sua realidade concreta atual, assinalandoque essas duas perspectivas de investigação científica do Estado não são excludentes- ou seja, o exame do que é comum a todos os Estados ao longo de seu desenvolvimento histórico-social, do que é válido para qualquer tempo e para todo tipo deEstado, não se opõe à investigação da realidade concreta da entidade estatal - mas seintegram reciprocamente.'zA Teoria Geral do Estado é ciéncia enciclopédica, pois se utiliza de conhecimentos da Sociologia, da História, da Economia, da Matemática (teoria dos jogos),dentre outras ciências. Constitui ainda a Teoria Geral do Estado uma ciência desíntese, pois, como pensa Groppali, que prefere chamá-la de Doutrina do Estado(segundo ele, não há teoria que não seja senão geral), "enquanto resume e integra,em uma síntese superior, os princípios fundamentais de várias ciéncias sociais,jurídicas e políticas, as quais têm por objeto o Estado considerado em relação adeterminados momentos históricos, estuda o Estado de um ponto de vista unitáriona sua evolução, na sua organização, nas suas funções e nas suas formas mais

típicas, com a intenção de determinar suas leis formativas, seus fundamentos eseus fins".'3 Compreende, assim, a Teoria Geral do Estado, na visão do citadoautor, três partes distintas: a) a teoria sociológica do Estado, que estuda a gênese eevolução do Estado; b) a teoria jurídica do Estado, que trata da organização eI1 CAMPOS, German Jose Bidart. Derecho polítzco, p. 50.12 FAY'T, Carlos S. Derecho polítlco, p. 117.13 GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado, p. 8-9.26DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOpersonificação do Estado; e c) a teoria justificativa do Estado, que cuida dos funda-,mentos e fins do Estado.Também Miguel Reale entende que "a Teoria Geral do Estado recebe osdados das diferentes ciências particulares, e depois os reelabora, para chegar auma síntese de elementos constantes e essenciais, com exclusão do acessório esecundário. O Estado aparece, então, como uma pirâmide de três faces, a cadauma delas correspondendo uma parte da ciência geral: uma é a social, objeto da`Teoria Social do Estado', na qual se analisam a formação e o desenvolvimento dainstituição estatal em razão de fatores socioeconômicos; a segunda é a jurídica,objeto da `Teoria Jurídica do Estado', estudo normativo da instituição estatal, ouseja, 'de seu ordenamento jurídico; a terceira é a política, de que trata a `TeoriaPolítica do Estado', para explicar a finalidade do governo em razão dos diversossistemas de cultura. '4A Ciência Política, em sentido amplo, é concebida como o conglomerado deconhecimentos, da mais diversa natureza, destinados a explicar e a descrever, sistemati-zando, os fenômenos políticos. A Ciência Política "estuda os fenômenos relacionadoscom o fundamento, organização, exercício, objetivos e dinâmica do poder nasociedade"(Pablo Lucas Verdú). Engloba todos os conhecimentos, seja qual for o méto-do empregado na sua obtenção, relativos à compreensão, explicação e fundamentoracional dos fatos políticos, ordenados e sistematizados em função de seu objeto.Em sentido estrito, na Ciência Política avulta a construção de sistemas e modelos teóricos relativos aos fenômenos políticos, como fenômenos ligados à estrutura,ao exercício e ao controle do poder político nas suas diversas formas. É a disciplinaque "estuda as manifestações, as formas e as regularidades dos fatos políticos, em simesmos ou através do comportamento dos indivíduos, mediante métodos de observação"( Marcelo Caetano).O político não se identifica com o estatal, para as teorias sistêmicas, que recorrem à noção de sistema político e não à de Estado como centro das análises políticas.O político pode existir independentemente do Estado, como, a propósito, considerao sociologismo.A Ciência Política tem por fim o estudo do poder político e por conseqüênciaas instituições políticas como instrumentos deste poder sob todos os seus aspectos.Ela estuda a origem, os fundamentos e a natureza do poder político, depoissua organização e seu funcionamento.Examina os fenômenos de competição inevitáveis entre as forças e os homensque desejam tomar o poder e depois conservá-lo, os meios e o comportamento daqueles que o detêm, a fim de conservar e de atender a certos fins, e as oposições que ocombatem e de que alguns serão algum dia vitoriosos.14 REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado, p. 123 -124.27KILDARE GONÇALVES CARVALHOExamina os fenômenos de toda a natureza e notadamente os fenômenos sociaisque tratam do poder e de sua natureza, sua extensão, sua orientação e sua organização ( Jacques Cadart).A etapa verdadeiramente positiva da Ciência Política alcança-se quando setransferem para a análise dos fenômenos políticos os requisitos do conhecimento

científico (verificabilidade, sistema, generalidade).Há o estabelecimento de um sistema, concebido como um conjunto de variáveis ou de elementos interdependentes que permite estabelecer as relações ou conexões entre os fatos, e adotar um modelo ou paradigma teórico, é dizer, um conjuntocoerente de conceitos claramente definidos e relacionáveis entre eles, na linguagemde Gomes Canotilho.O político designa um campo social de interesses contraditórios ( reais, imaginários ou simbólicos) mas também de convergências e agregações parciais, reguladopor um Poder que dispõe do monopólio da coerção legítima.Se na sociedade global não houvesse conflito de racionalidades entre patrões eoperários, entre produtores e consumidores, entre jovens à procura de trabalho, eadultos empregados, entre a cidade e o campo, entre militares e civis, e tantos outros,se apenas houvesse complementaridade e convergência, não haveria qualquer necessidade de um poder de coerção para obrigar quem quer que fosse.A relação governantes-governados (mando e obediência) alcança globalmentes sociedade, d modo que nenhum indivíduo escapa ao seu domínio. Esta relação é�imprescindível para a existência da realidade política. Se todos mandassem e ninguém obedecesse, ou vice-versa, não haveria política.A seu turno, um poder se torna político, desde que disponha efetivamente domonopólio da coerção, da sua capacidade de ditar o Direito, seja exercendo-o direta-mente, seja por delegação (Philippe Braud).Em síntese; pode-se afirmar que, em sentido estrito, a Ciência Política é ciênciado século XX (Political Science dos anglo-saxões), embora com raízes em Aristóteles,descritiva, neutral, e não-normativa (estuda o ordenamento jurídico como um fato).Na Ciência Política dá-se ênfase ao poder, estruturas sociais e econômicas e ao pro-cesso político (grupos de pressão, partidos políticos), com vistas à construção desistemas políticos.Como esclarece Sanches Agesta, na lembrança de Ivo Dantas, há tendência, naCiência Política, de se afastarem as considerações jurídicas do Estado, "uma realidade que está em crise ou transformação, para dar ênfase à ação política, ao poder, ouàs tarefas concretas, ou objetivos que o Poder realiza, e se presta atenção,preferentemente, à realidade social que envolve, apóia ou condiciona essa ação política, ou esse poder, relegando a segundo plano o estudo jurídico do Estado e de suaConstituição".'s15 DANTAS, Francisco Ivo Cavalcanti. Teoria do Estado, p. 417.28DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA compreensão da Ciência Política e de seu universo pressupõe a necessidadede se conhecer e identificar alguns conceitos:a) fato político - todo o acontecimento ligado à instituição, existência e exercício do Poder Político;b) relação política - " aquela posição em que se encontram vários elementosrelacionados com a organização, exercício e objetivos do Poder Político de que sededuzem determinados resultados"( Verdú). Exemplos de relações políticas: os parti-dos políticos, que se encontram na posição de governantes referentemente aos queestão na oposição, de maneira que suscitam a relação política governo-oposição. Osgrupos sindicais, a igreja, as sociedades e associações de intelectuais influenciam,mediante o voto, a imprensa, as discussões, críticas e advertências, pressões a favorou contra determinadas políticas do governo, configuram a relação de participaçãopolítica em grau diferente de intensidade, e com maior ou menor êxito, nas decisõesgovernamentais;c) estrutura política - conjunto de elementos interdependentes que configuram,organizam e direcionam, com relativa permanência, os diferentes processos políticos.O Estado é a máxima estrutura da convivência política enquanto a comunidade internacional não adquirir características morfológicas mais consolidadas e eficazes.Para Carlos S. Fayt, "toda organização política tem uma estrutura constituídapor elementos essenciais e não essenciais ou secundários e uma forma, como confi-

guração das relações que se dão no interior da estrutura. A forma política é a confi-guração lógica que resulta das relações entre os elementos de uma estrutura política.Como exteriorização ou contorno de uma realidade política, a compreende em suaunidade substancial, proporcionando-lhe sentido e singularidade";d) processo político - é "a concreção periódica e formal do dinamismo políti-co, dentro, entre e em torno das estruturas políticas"( Verdú).São processos políticos a institucionalização, personalização do poder, orien-tação, participação, oposição política, integração das forças políticas, politização edespolitização;e) instituição - noção vaga que designa realidades sociológicas muito variadas#e vivas, mas cujes contornos permanecem fluidos. Etimologicamente, a palavra insti-tuição significa aquilo que é estabelecido e por conseqüência o que é estabelecido poruma vontade humana. Uma instituição é uma criação da vontade do homem que seopõe a um dado natural, a uma criação natural. O governo de um país é uma instituição fruto da vontade humana, a vontade de um chefe com poder ou a vontade doscidadãos. Entretanto, tudo o que o homem estabelece por sua vontade não é instituição. O homem estabelece quantidades de coisas efêmeras: uma palavra no ar, umaconversação, uma reurüão de amigos, que não podem ser consideradas instituições.Uma institui ão é estabelecida de maneira durável, permanente, em virtude da união de�vontades individuais visando uma em resa comum: esta união de vontades cria uma organização�29KILDARE GONÇALVES CARVALHOsocial, órgãos sociais e notadamente uma autoridade dirigente dessa organização social, que são duráveis. Essa convergência de diversas vontades cria ademaisos mecanismos de funcionamento desta organização social.Há duas categorias de instituições:a) instituições-órgãos: são os organismos sociais criados pela vontade humanade maneira durável e unindo homens. São inumeráveis: a família, a governo, ospartidos políticos,etc.;b) instituições-mecanismos: trata-se de mecanismos institucionais que regemesses mesmos órgãos. São as regras às quais os órgãos obedecem, suas regras defuncionamento, como por exemplo, a responsabilidade política do governo diantedo parlamento. Na família, instituição-órgão, o pátrio poder é instituição-mecanismo. Há uma estreita relação entre as duas categorias de instituição (Jacques Cadart).A respeito da teoria que considera o Estado como instituição, cf. o Capítulo 2, n. 4.1.Note-se ainda que a Ciência Política e a política se distingem. A primeira estu-da objetivamente os dados de sua matéria, a fim de estender seu conhecimento epermitir aos atores da vida política melhor conduzir e melhorar as instituições e asorte dos homens que devem ser dela beneficiários. A política é uma atividade e umaluta, e não uma ciência.O Direito Constitucional, a seu turno, tem por objeto uma realidade normativa,formada por normas jurídicas, e não uma realidade fatual, como ocorre com a CiênciaPolítica.Não se perca de vista, no entanto, que contemporaneamente o Direito Constitucional tem-se ocupado do exame dos aspectos políticos, socioeconõmicos e históri-cos subjacentes ao ordenamento jurídico do Estado, sob uma perspectiva não-normativa. Tende, portanto, o Direito Constitucional a ser cada vez menos o Direitoda Constituição, para converter-se cada vez mais no Direito das instituições e dosregimes políticos (Segundo Linares Quintana), falando-se então em politização doDireito Constitucional.30

Capítulo 2ESTRUTURA DO ESTADO

Sumário 1 Sociedade e Estado 2 Sociedades pré-estatais, infra-estatais e supra-estatais 3 Conceito de Estado 4 Natureza do Estado 5 Evolução histórica do Estado 6 Origem e justificação do Estado 7 Processos de formação e extinção do Estado 8 Elementos do Estado - Considerações iniciais 9 Personalidade do Estado 10 Formas de Estado - Conceito de forma de Estado

& 1 SOCIEDADE E ESTADOO Estado compõe a substância e a essência da Constituição. A realidade da Constituição é inseparável da realidade do Estado. Daí a necessidade de se considerar o Estado como matéria objeto da Constituição.Neste Capítulo são abrangidos temas referentes à Teoria Geral do Estado e aoDireito Constitucional, mas também próprios de uma Teoria da Constituição, porrevelar a Constituição a realidade do Estado, dando-lhe estrutura e conformaçãojurídicas.O estudo do Estado pressupõe o conhecimento das formas de relações humanas.O homem, como ser insuficiente, percebe a existência do outro que lhe proporciona abertura para a convivência e a coexistência, surgindo a sociedade.Não há, todavia, unanimidade de pensamento quanto ao conceito de sociedade. Em seu sentido mais amplo, a sociedade refere-se à totalidade das relações sociaisentre os homens. Mas a fim de evitar a ambigüidade deste conceito lato, que parece equiparar a sociedade a qualquer grupo social, tem-se entendido por sociedadeo maior dos grupos a que um indivíduo pertence, ou o grupo dentro do qual os membros compartilham dos elementos e condições básicas de uma vida comum.Os fundamentos da sociedade podem ser reduzidos a duas teorias: a teoria orgânica e a teoria mecânica.Para os organicistas, o homem, como ser eminentemente social, não pode viverfora da sociedade. A sociedade é, assim, um organismo composto de várias partes,com funções distintas, mas que concorrem para a vida do todo. São organicistas,dentre outros, Aristóteles, Platão, Comte, Bluntschli, Savigny.Os mecanicistas afirmam que a base da sociedade é o consentimento e não oprincípio da autoridade. A vontade livre e autônoma do indivíduo constitui um valor que a sociedade deve legitimar. Os mecanicistas partem da existência de um estadode natureza (apenas lógico e não histórico) anterior ao estado de sociedade, para explicar o seu fundamento com base na vontade livre dos indivíduos (Locke e Rousseau).Ao se relacionar com o outro, o homem trava relações sociais que podem revestir-se de várias modalidades.Num primeiro grupo estão as relações sociais espontâneas e organizadas, quedão origem à comunidade e à sociedade.,33

KILDARE GONÇALVES CARVALHOComunidade e sociedade são categorias sociológicas puras relacionadas com aconvivência social. Foram formuladas pelo sociólogo alemão F. Tónnies (l855-1936).A base de distinção entre comunidade e sociedade é psicológica, e parte de uma oposição entre dois tipos de vontade - a vontade natural e a vontade reflexiva.A distinção entre as duas vontades leva às duas maneiras pelas quais os homens formam grupos sociais: comunidade (gemeinschaft), baseada na vontade orgânica, e sociedade (gesellschaft), baseada na vontade reflexiva. A comunidade atende às necessidades da vida orgânica, e tem suas raízes no

estado primitivo e natural do indivíduo, no agrupamento da sua vida elementar: as relações entre mãe e filho, homem e mulher, irmãos e irmãs.Essas relações originárias se traduzem na vida comum, na convivência, nareciprocidade ou solidariedade pelo mútuo auxílio de vontades. No seio destasrelações orgânico-corporais há uma ternura instintiva e espontânea do forte paracom o mais fraco, um prazer de ajudar e proteger intimamente relacionado com oprazer de possuir ou com a satisfação que causa o poder próprio. A comunidade desangue, como unidade de essência, se desenvolve e especializa na comunidade delugar, que tem sua imediata expressão na convivência local, que, a seu turno, passa para a do espírito.A comunidade de lugar tem por vínculo a vida sedentária, enquanto que a deespírito é aquela propriamente humana, o tipo mais elevado de comunidade. Há,portanto, três tipos de comunidade: a) de sangue; b) de lugar ou local de vizinhança; c) de espírito ou de amizade. Esta última surge de ações e concepções coincidentes. As relações de amizade e companheirismo se estendem em sua forma espiritual pelofato de se pertencer a uma mesma localidade, cidade ou assembléia, e se fundam em relações de caráter orgânico e necessário.A sociedade, ao contrário, é, por natureza, artificial. Nela, as relações sociais fundamentam-se no cálculo e na representação. É dominada pela razão abstrata. O reflexivo prevalece sobre o espontâneo, o artificial sobre o orgânico e natural. Baseia-se quase sempre em convenções contratuais.As formas de relações sociais não se esgotam na distinção entre comunidade esociedade. Dão origem a outras classificações de sociedades:a) sociedades necessárias, em que ocorrem vinculações que se impõem aosindivíduos, como fundamentais e imprescindíveis - sociedade familial, sociedadereligiosa e sociedade política;b) sociedades contingentes, em que ocorrem relações meramente acidentais ecircunstanciais que aprimoram e facilitam o convívio humano - sociedades esportivas, sociedades econômicas, sociedades filantrópicas, etc.;c) sociedades de fins particulares, cuja finalidade é definida e voluntariamenteescolhida por seus membros;34

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOd) sociedades de fins gerais, cujo objetivo, indefinido e genérico, é o de criar as condições necessárias para que os indivíduos e os demais grupos sociais que nela se acham integrados, consigam atingir seus fins particulares. A participação nelas quase sempre independe de um ato de vontade.Das várias formas de sociedade, a sociedade política é aquela que permite arealização da totalidade do ser humano, e concilia os objetivos dos demais grupos sociais, ainda que conflitantes, em função de um fim comum a atingir.Nesta ordem de idéias é que examinaremos o Estado como sociedade política.O Estado é manifestação do político. Mas o que é o político? Todo o estatal épolítico e todo o político é estatal? Há organizações políticas não estatais?A resposta a todas essas indagações leva necessariamente à redução do homemcomo ser constitutivamente social e político, porque individualmente incompleto.Mas o social não lhe basta, pois é parcial, setorial e conflitivo. Já o político lhe é imanente e essencial. A convivência e a coexistência não podem realizar-se sem forma política. Assim, o social não se mantém sem o político, modo de ser do homem, necessário para a convivência com seus semelhantes.O político é o global. É equilíbrio, organização, plenitude. Equilíbrio porque opoder social que se torna político permite a harmonia total, dentro dos grupos sociais; organização porque preside a todos os grupos, encabeça-os, ordena-os e os planifica; plenitude porque esses poderes equilibrados e organizados permanecem enquadrados num âmbito total e geral, que exige lealdade de todos eles (1).O Estado aparece então como a organização política, a estrutura, a forma política que acompanha

a convivência: o Estado é, assim, produto da essência política do homem.A convivência e a coexistência reclamam direção, ordenação e governo, sob pena de se transformarem no caos, na anarquia e na desordem. Desta forma, a convivência social não pode dispensar chefia e direção, encarnadas num governo que deverá naturalmente buscar o que é comum à totalidade da convivência social.Tal organização política é hoje o Estado. Mas ele sempre existiu? Para muitos aresposta é positiva: Estado e sociedade política identificam-se e aquele é tomado como fenômeno humano permanente e universal (2); para outros, no entanto, a variedade com que se apresentam as sociedades políticas acarreta diferenciações e classificações que levarão a considerar o Estado como uma forma específica de organização política (3).Revela-se, assim, o Estado como fenômeno historicamente situado.. O Estadoque estuda tem suas origens no Estado moderno de origem européia, que surgiu noRenascimento (Hermann Heller sustenta que o Estado moderno é que corresponde aos

(1) CAMPOS, German Jose Bidart. Derecho político, p. 37.(2) CAMPOS, German Jose Bidart. Op. cit., p. 191-216(3) MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 1, P. 46.35

KILDARE GONÇALVES CARVALHO- estudos da Teoria do Estado)(4), havendo até mesmo quem determine a data de seu aparecimento: o ano de 1648, com a assinatura da paz de Westfália, pondo fim à guerra dos Trinta Anos (Balladore Palliere, e, entre nós, Ataliba Nogueira)._Mencione-se, no entanto, que, já no século XIII, Frederico II organizou naSicília um Estado com as características do Estado moderno: Corte centralizada,burocracia complexa, com superação da dispersão feudal.Caracteriza-se ó Estado moderno pela ocorrência de duas notas que o distinguem de outras organizações políticas: o poder político soberano e a territorialidade, os quais examinaremos adiante, ao cuidarmos dos elementos do Estado.

& 2 SOCIEDADES PRÉ-ESTATAIS, INFRA-ESTATAIS E SUPRA-ESTATAISAntes do aparecimento histórico do Estado, houve sociedades pré-estatais,como a família patriarcal; o clã ("divisão exógama de uma tribo, cujos membros são aparentados uns com os outros por meio de um laço qualquer comum, ou a possecomum de totem, ou a moradia em território comum"); a tribo, que, composta declãs, é o grupo social de espécies simples, cujos membros têm um governo único eagem em conjunto para certos propósitos, como a guerra (5); a gens romana; o senhorio feudal.Há, ainda, as sociedades que contêm os elementos mais próximos do Estado, como os esquimós, os bosquimanos e os pigmeus.Finalmente, mencione-se as sociedades infra-estatais, como as regiões ou asprovíncias autônomas, e as sociedades supra-estatais, como a comunidade internacional e as associações de Estado.

& 3 CONCEITO DE ESTADONa Antigüidade romana, a palavra Estado denotava situação ou condição deuma coisa ou pessoa.Assim, eram utilizados: a) status civitatis, para classificar os indivíduos em romanos e estrangeiros, segundo sua posição na sociedade política; b) status libertatis, para classificá-los em livres, libertos e escravos, atendendo o grau de autonomia pessoal; c) status familiae, para classificá-los em sui juris e alieni juris, capazes ou incapazes de exercer seus direitos (6).

(4) HELLER, Hermann. Teoria do Estado, 1968.(5) CARVALHO, Orlando Magalhães. Resumos de teoria geral do Estado.

(6) SALVETTI NETTO, Pedro. Curso de teoria do Estado, p. 37.36

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICONa Idade Média, "Estado" eram os estamentos, corpos sociais segundo rígidahierarquia, que seriam posteriormente o clero, a nobreza e o povo.O terceiro Estado (burguesia) foi mencionado na Revolução Francesa.Bodin, em sua obra Os seis livros da república, ( 1576) utilizou a expressão República dos Latinos para designar o Estado como unidade total.Mas foi Maquiavel quem empregou o termo Estado (stato) com o sentido de- unidade política total, em sua obra II príncipe, escrita em 1513: "Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens são Estados e são ou república ou principados".Para se chegar a um conceito de Estado (provisório, insistimos), deve-se considerar a existência de três elementos que o integram: povo, território e poder político, que serão adiante examinados.Alexandre Groppali entende por Estado "a pessoa jurídica soberana, constituí-da de um povo organizado sobre um território sob o comando de um poder supre-mo, para fins de defesa, ordem, bem-estar e progresso social (7)".Darcy Azambuja o conceitua como "a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público, com governo próprio e território determinado" (8).Já Dalmo de Abreu Dallari o vê como "a ordem jurídica soberana que tem porfim o bem comum de um povo situado em determinado território" (9).Pablo Lucas Verdú entende por Estado "a sociedade territorial juridicamenteorganizada, com poder soberano que busca o bem-estar geral" (10).Note-se que são vários os conceitos de Estado, segundo se procure dar ênfaseao elemento poder ou se atenda à sua natureza jurídica, sem ainda se desconhecer o substrato social para a sua formulação.A soberania, que adiante examinaremos, constitui, a nosso juízo, apenas umdos traços do moderno Estado europeu: assim, a soberania não é conceito inerente à idéia de Estado, mas apenas uma qualidade do poder político (ver subitem 8.3).Destaca-se, ainda, na compreensão teórica do Estado, que o fenômeno estatalrevela-se no elemento pessoal (Estado-comunidade) como no elemento poder (Estado-aparelho ou Estado-poder).Mesmo assim o Estado não se reduz a nenhum deles, que, antes, se interpenetram e são interdependentes.Esclareça-se, por final, que tanto o poder como a comunidade se submetem aojurídico, fonte de segurança e justiça, condição necessária para a convivência social harmônica e sem violência, embora o direito se refira sempre ao político, que o institucionaliza e legitima.

(7) GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado, p. 303.(8) AZAA4BUJA, Darcy. Teoria geral do Estado, p. 6.(9) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 100-101.(10) VERDU. Pablo Lucas. Curso de derecho político, p. 49.37

& 4 NATUREZA DO ESTADOO que primeiro percebemos e pensamos relativamente ao Estado é no seu poder político aparelhado, no grupo minoritário que manda e no majoritário que obedece, no conjunto de indivíduos que o compõem, no território em que vivem e na coação do direito por ele formulado.Esta realidade é, no entanto, insuficiente para revelar a natureza do Estado,que é explicada por várias teorias, algumas ressaltando apenas o seu aspecto sociológico, outras acrescentando o aspecto jurídico e mais outras reduzindo o Estado à sua ordem jurídica.

Portanto, o Estado, quanto à sua natureza, pode ser explicado segundo enfoques sociológico, deontológico, jurídico e político (11).

& 4.1 Teorias sociológicasEstas teorias consideram o Estado como construção social, que se qualificapelas propriedades de seu poder.Jellinek menciona que o Estado deve ser investigado como construção social ecomo instituição jurídica, formulando conceitos sociológico e jurídico do Estado.No primeiro sentido, considera o Estado como a unidade de associação dotada originariamente de poder de dominação e formada por homens fixados num território.Na ordem jurídica, concebe o Estado, que já se mostra como sujeito de direitos, ao qual atribui personalidade jurídica, como a corporação formada por um povo, dotada de poder de mando originário e fixada num determinado território, isto é, a corporação territorial dotada de um poder de mando originário.Do ponto de vista sociológico, busca-se investigar a realidade social ou grupaldo Estado, o fenômeno desta convivência organizada, que consiste no Estado, sob o domínio de um ou de alguns. Desse modo, as teorias sociológicas giram em torno do mando, poder ou dominação no agrupamento humano, que é o Estado, e que serevela como fenômeno de poder, um fato que se dá no âmbito objetivo do social.As teorias sociológicas são objetivas, pois estudam o Estado como um fato reale objetivo, exterior aos homens, que se situa no mundo exterior independentemente dos indivíduos. São chamadas ainda de teorias realistas, porque dão pouca ou nenhuma importância aos aspectos da soberania e da personalidade jurídica, noções tidas até mesmo como metafísicas no confronto com elas.O Estado como fato de convivência - O Estado, enquanto fenômeno social, é um fato ou uma relação de fatos consistentes em que os homens estão sujeitos a

(11) No exame desse tema, observar-se-á o desenvolvimento teórico formulado por Bidart Campos (Derecho político, p. 163-190).38

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOum mesmo poder jurídico. É uma forma particular de submissão, a uma só vontade,de todas as vontades formadas por uma variedade de elementos sociais estabelecidos num território determinado (Bischop). É a mais alta gradação de relações naturais de serviço e de relações sociais.O Estado como fato de dominação - Para Duguit, o Estado é um grupo humano fixado num território, onde os mais fortes impõem sua vontade aos mais fracos. O Estado é a força material, a dualidade de governantes e governados. Dá-se ênfase no simples fato da dominação. O Estado se revela na detenção do poder por um grupo mais forte, cujo limite é apenas a solidariedade social ou dependência recíproca entre os homens, que é a regra de direito ou o direito objetivo. O Estadodesaparece nas noções de poder de fato de determinados homens, os governantes, ena regra de direito que obriga aqueles a organizar e a fazer funcionar os serviços públicos. O Estado se reduz, desse modo, a uma cooperação de serviços públicos, cuja responsabilidade incumbe aos governantes.O Estado detém o poder de dominação, de mando, e dominar significa ter acapacidade de poder executar incondicionalmente sua vontade relativamente a outras vontades.Mencione-se também, a título de ilustração histórica, como integrante da teoria, o comunismo, que concebe o Estado como um fato de dominação, fundado no antagonismo de classes: é o órgão de dominação de uma classe, o órgão de opressão de uma classe sobre outra, o domínio do capitalismo sobre o proletariado.O Estado como dualidade de governantes e governados - Em qualquer grupo social, seja menor, seja maior, primitivo ou mais evoluído, efêmero ou duradouro, surge a distinção entre governantes e governados. A teoria sociológica, segundo acentua Duverger, se ocupa de acentuar esse aspecto da realidade do Estado como

grupo social. Mesmo a teoria da dominação, antes referida, pressupõe a dicotomiaentre governantes e governados, entre o que manda e o que obedece. O Estado é,assim, fundamentalmente, uma dualidade. O grupo social se divide em dois grandescampos de ação: o dos que governam e o dos que são governados. O termo Estadoperde, portanto, todo o significado, sem essa dualidade.Já na Idade Média esse aspecto era ressaltado pela imagem da dualidade de rei(rex) e reino (regnum), de príncipe e povo, que não chegavam a fundir-se numa unidade superior.O Estado como instituição - A instituição que concebe o Estado como umsubstrato social não constitui uma categoria elaborada pelo direito, mas é um fenômeno social que se verifica à margem da ordem jurídica, apesar de posteriormente reconhecê-la.Para que ocorra a institucionalização da realidade social, é necessário queocorram manifestações de comunhão entre os membros do grupo, mediante umtríplice movimento de interiorização, incorporação e personificação, em torno daidéia de determinada obra. Para Hauriou, a instituição se define como a idéia de obra

39KILDARE GONCALVES CARVALHOque se realiza e alcança duração jurídica num meio social, e que possui uma existência objetiva. Considerada como realidade social, a instituição, que consiste, segundo Georges Renard, numa ordenação de um estado de coisas com vistas a assegurar, de maneira durável, o cumprimento de certo fim com o auxílio de certos meios, é um fenômeno social em estado bruto e espontâneo, com uma personalidade moral, e não jurídica, que surge quando a instituição adquire uma existência objetiva e independente dos indivíduos que se sucedem no grupo. O Estado é uma instituição que se distingue das demais apenas por uma diferença de grau. Com efeito, enquanto as outras instituições se limitam a enquadrar e disciplinar um setor das relações humanas, o Estado ultrapassa o estreito limite dós interesses materiais e se direciona para o desenvolvimento da idéia social com vistas à realização do bem comum, mediante o exercício de uma vontade também comum.O Estado confundido com alguns de seus elementos - Há teorias sociológicas que reduzem a realidade do Estado a algum de seus elementos, conferindo-lhe supremacia sobre os demais. As principais são as que consideram o Estado comopovo, governo, território e poder.O Estado como povo - Para esta teoria, o Estado se confunde com o povo, vindo então a ser a totalidade dos homens que o compõem. Na antigüidade romana, o Estado se identificava com o a comunidade de cidadãos, vale dizer, era considerado como civitas ou res publica, sem contudo deixar de ser entendido como associação. Expressiva nesse sentido é a afirmação de ser o Estado a forma vivente do povo, o povo mesmo. Para as doutrinas nazifascistas, o povo é o Estado e o Estado é o povo (Mussolini).O Estado como governo - O poder político faz com que se observe inicialmente a figura da autoridade, traduzida na expressão física do poder, ou seja, na pessoa de quem manda, no governante. O Estado é considerado, nesta perspectiva, como o governo, o monarca: "O Estado sou eu", afirmava Luís XIV.O Estado como território - Esta teoria considera o território como o fundamental do Estado, relegando os indivíduos a plano secundário. O Estado passa a ser concebido como um modo territorial de organização ou de convivência. Note-se que, para a teoria patrimonial da Idade Média, o poder político derivava da propriedade do solo.O Estado como poder - Sustenta-se que o poder constitui o epicentro do Estado, o ponto de gravidade da política, sendo que as relações de poder se achamincorporadas em instituições políticas. Juvenel desenvolve toda uma obra em torno do poder e de seu crescimento, justificando-o na obediência, de que constitui sua essência. A obediência pode ser racional ou voluntára, e irracional ou reflexiva. Obedece-se por indolência, temor ou hábito. O homem encontra-se inserido numa sociedade doméstica, religiosa e política, que modela sua conduta e define sua situação na vida. Submete-se a um conjunto de regras que condicionam seu comportamento social,

que o colocam em situação de subordinação em correspondência com o tipo 40

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOde estrutura do grupo a que pertence, a divisão do trabalho, os hábitos de vida e os meios econômicos da qual dispõe. A obediência, em qualquer de suas formas, surge como a fonte da qual emana o poder.Burdeau afirma que o Estado é a institucionalização do poder, ou seja, umpoder que, fundado no direito e organizado segundo normas jurídicas, alcança umaespécie de objetividade e se despersonifica, o que o coloca acima de outros poderes.

& 4.2 Teorias deontológicasEstas teorias propõem uma idéia da natureza do Estado segundo um fim, queconstitui parte integrante da sua essência. Se a Escola do Direito Natural reclama um fim concreto para o Estado, a corrente aristotélico-tomista considera que a finalidade do Estado é o bem comum, assinalando-se a posição de Hauriou, para quem o Estado constitui o regime que adota uma nação, mediante a centralização jurídica e política, que se realiza pela ação de um poder político e de uma idéia da coisa pública como conjunto de meios que se propõem à realização do bem comum.

& 4.3 Teorias jurídicasTais teorias se caracterizam por conceber o Estado como um sistema de direito. A este grupo de teorias corresponde a segunda definição de Estado formulada por Jellinek, ou seja, a corporação territorial dotada originariamente de poderde dominação.Como expressão dessas teorias, tem-se a teoria de Kelsen, que depura o Estado de todo o elemento sociológico, político e axiológico, concebendo-o como a personificação da ordem jurídica total, privado de existência real, e que se dissolve num sistema de normas jurídicas. O Estado equivale-se ao direito, e constitui a unidade personificada da ordem jurídica. O direito, por sua vez, tem um âmbito espacial e pessoal de validade: a esfera espacial corresponde ao território, e a pessoal, ao elemento humano ou povo. O Estado, como pessoa jurídica, é a totalidade da ordem jurídica.Compreende-se ainda o Estado como relação jurídica, tendo por base a teoriasociológica que o trata como dualidade de governantes e governados. Tal dualismose acha presente no direito inglês, que concebe o Estado como relação entre os órgãos supremos (Coroa, Gabinete e Parlamento), sem chegar a unificá-los numa síntese superior.Integrante da teoria jurídica do Estado é ainda aquela que o concebe comosujeito de direito ou pessoa jurídica, que, desprezando a sua realidade sociológica, acolhe a idéia de que a ela se superpõe a dimensão especial da personalidade de direito, independentemente da existência de um substrato que lhe dá suporte. Assim, a personalidade do Estado não é uma formação natural, que preexiste a toda organização constitucional, mas conseqüência da ordem jurídica.41

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 4.4 Teorias políticasEstas teorias consideram o Estado como uma forma da vida política, caracterizada por seu poder de dominação, destacando-se as teorias do Estado como soberania, regime, decisão e personificação da nação.O Estado como soberania - Para esta teoria, o específico do Estado é o seupoder político supremo e soberano. O Estado constitui a comunidade, cujo podernão se acha limitado por nenhum outro poder, já que ela se situa acima de qualquer outro poder de natureza idêntica ao seu. O Estado é o poder por antonomásia.Chega-se ao conceito de soberania após uma oposição do poder político relativamente a outros

poderes sociais - religiosos e econômicos, dentre outros. O Estado é, assim, o poder de ordenar em última instância.O Estado como empresa política - O Estado é considerado como empresa política, traduzida na cooperação planificada, num fazer comum que os homens se propõem empreender para alcançar um fim. A empresa é constituída pelas condutasdos governantes, que formulam o programa que irão seguir, pela conduta dos governados que a cumprem, e pela luta pelo poder, dentre outras. O Estado é, desse modo, a empresa política em ação, a sucessão de atos políticos, a dinâmica de uma operação coletiva na qual intervêm governantes e governados. Há privação de todo o substrato social e humano, diluindo-se o Estado em um processo de comportamentos: o Estado não é um ser, mas um fazer. Para Rudolf Smend, em sua teoria da integração, o Estado se manifesta numa série de atos particulares da vida externa (leis, atos diplomáticos, processos judiciais, atividade administrativa) e só existe nesses atos. A essência do Estado se esgota em sua dinâmica, e inexiste uma real unidade política. O Estado só tem realidade porque se integra de modo duradouro nas vontades harmônicas de seus membros. Sua realidade nasce da união constantemente renovada de tais vontades. O Estado como decisão - Formulada por Carl Schmitt, a teoria dodecisionismo surgiu como reação ao racionalismo, que pretendia reduzir o Estado e seu dinamismo político em categorias fixas e antecipadas em um complexonormativo. Há uma vontade política preexistente, que decide acerca da forma e domodo da unidade política do Estado. Mediante a decisão política fundamental, queexpressa uma vontade soberana, o povo adota uma atitude política unitária, essência do Estado. A decisão, entretanto, não se reduz ao momento de se constituir o Estado, mas sobrevive em qualquer etapa política da vida estatal, em cada ocasião em que se deva adotar uma decisão de conjunto. O Estado não é, pois, algo estático, mas dinâmico, um poder político que, mediante decisões, impõe uma ordem.O Estado como personificação da nação - O que personifica o Estado é anação organizada. A nação não tem existência jurídica distinta. O Estado é a nação juridicamente organizada. A nação é considerada sujeito de direitos. Desse modo, o Estado não pode adquirir existência, como pessoa, fora da nação. Nesse sentido, a nação não constitui apenas um dos elementos do Estado, mas é o elemento constitutivo do Estado enquanto com ele se identifica.42

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 5 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADOComo fenômeno histórico, o Estado pode ser reduzido a tipos que se achamrelacionados com as fases da História e com o Estado atual.Jellinek dedica todo um Capítulo da sua Teoria geral do Estado à análise do queele chama de "tipos fundamentais de Estado", que são aqueles que mantêm umacontinuidade histórica e o conhecimento de um influi sobre o de outros, tomando-se ainda em consideração os três elementos caracterizadores do Estado: povo, território e poder político (12).São, nesta linha, mencionados o Estado oriental, o Estado grego, o Estadoromano, o Período medieval e o Estado moderno.Advirta-se, no entanto, com Aderson de Menezes que "os tipos estatais têm osseus cursos em certas ocasiões renovados, repercutindo e refletindo-se os seus característicos em diferentes épocas e em diferentes locais. Não há, ainda por esse motivo, uma regra de sucessão cronológica quanto aos tipos de Estado já aparecidos e existentes na superfície do nosso planeta. E que não se pode arrumar, cronologicamente, em ordem sucessiva, pela vez de aparecimento histórico, tais ou quais exemplares de Estado, capazes de simbolizar, em determinadas áreas e em certos momentos, tipos estatais que tenham realmente acontecido um após outro, assim como numa seqüência de vocação hereditária, em série consecutiva. Porque, na verdade e os acontecimentos o comprovam fartamente, um tipo estatal contemporâneo ou a ser estruturado e posto em

funcionamento pode ser semelhante a outro já conhecido na Antigüidade, da mesma forma que o tipo estatal do futuro poderá apresentar-se idêntico ou parecido com o então praticado na Idade Média, igualmente como o tipo estatal do passado pôde ressurgir na Era Moderna (monarquia teocrática designada de direito divino)" (13).O Estado oriental, que corresponde à Idade Antiga (civilização egípcia,mesopotâmica, hebraica, persa, judia e outras), tem como traços básicos a teocracia (o poder político é uma expressão do poder religioso), forma monárquica absoluta que acarretava a redução dos direitos e garantias individuais, e larga extensão territorial. Os monarcas eram adorados como deuses, considerados chefes do poder espiritual. Mencione-se ainda a ocorrência, no Estado oriental, de uma marcante estratificação social, com acentuada hierarquização da sociedade.O Estado grego era representado pela polis ou cidade, originária do culto dosantepassados, e fundada sobre uma religião (Fustel de Coulanges) (14).O território era diminuto, prevalecendo na cidade-estado o elemento pessoalsobre o territorial. A polis grega era assim constituída de cidadãos livres, uma comunidade

(12) JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado, p. 215-248.(13) MENEZES, Aderson de. Teoria gera! da Estado, p. 105-106.(14) COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, 1971.43

de cidadãos, não de homens. É que, além daqueles, habitavam a cidade os metecos (estrangeiros) e os escravos, aos quais não se reconhecia a condição de participantes do poder político.A democracia grega baseava-se numa concepção de liberdade distinta da liberdade do pensamento constitucional do século XVIII. A liberdade para os gregos era aprerrogativa conferida aos cidadãos de participar das decisões políticas. Não significava liberdade-autonomia, entendida como a independência individual em face do Estado. O absolutismo da polis absorvia a liberdade individual. A cidade-estado era uma parte essencial da vida humana. O cidadão deliberava em praça pública sobre as questões políticas, tratados ou aliança com estrangeiros; votava as leis, examinava contas, enfim, participava do processo político.As bases da democracia grega eram a isonomia, a isotimia e a isogaria.Paulo Bonavides, reportando-se ao pensador Nitti, assinala que a isonomia manifestava a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de grau, classe ou riqueza. A ordem jurídica dispensava o mesmo tratamento a todos os cidadãos, conferindo-lhes iguais direitos. A isotimia abolia da Grécia os títulos e funções hereditárias, possibilitando a todos os cidadãos o exercício das funções públicas, sem outros requisitos que não o merecimento, a honradez e a confiança depositada no administrador pelos cidadãos.Já a isogaria significava o direito de palavra, da igualdade reconhecida a todos de falar nas assembléias populares, de debater publicamente os negócios do governo (15).Mas; como acentua Benjamin Constant, lembrado por Jorge Miranda, o indivíduo, como cidadão, decide da paz e da guerra; como particular, aparece circunscrito,observado, reprimido em todos os seus movimentos (...); pode ser privado do Estado, despojado das suas dignidades, banido, condenado à morte pela vontade discricionária do conjunto de que faz parte (16).Enfim, livre era o cidadão que participava da polis, integrado no todo político.A democracia no período clássico da civilização grega não se aproxima daconcepção de democracia inserida no liberalismo dos modernos: falta-lhe o princípio da igualdade; inexiste o conceito de sufrágio universal, pois, do exercício das decisões políticas e das assembléias, eram excluídos os metecos e os escravos, já que a liberdade-participação ficava restrita aos cidadãos livres.O Estado romano assemelha-se ao grego. Sua base é o agrupamento da família e o culto dos antepassados (17).

Mesmo depois de ter ocupado larga extensão territorial, o Estado romano não sedesvinculou de sua base municipal e urbana, com a expansão, inclusive, da cidadania.Destaca-se ainda no Estado romano a consciência da separação entre o poderpúblico e o poder privado. Assim, quando surge o império, o poder político é visto

(15) BONAVIDES, Paulo. Ciência política, p. 326-327.(16) MIRANDA, Jorge. Op. cit., t. I, p. 54.(17) COULANGES, Fustel de. Op. cit.

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DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOcomo supremo e uno, compreendendo o imperium (poder de mandar), a potestas (poder modelador e organizador) e majestas (grandeza e dignidade do poder). A idéia de auctoritas está presente na concepção de poder para os romanos e significa autoridade, mando consentido pelo prestígio de quem exerce o poder, e não apenas pela imposição da força.À evolução social do Estado romano, que de Estado patrício chegou ao Estadoplebeu, corresponderam mudanças em sua forma política, compreendendo a realeza,a república e o império. O Período medieval (falamos em Período medieval porque realmente não teria havido Estado medieval pela desintegração da unidade do poder, que se fragmentou em várias instituições parciais e autônomas) vai desde a queda do Império Romano do Ocidente (395), ou a queda do Império Romano do Oriente (476), até a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453), ou o descobrimento da América (1492), embora se advirta serem questionáveis os limites cronológicos da História.Na Idade Média não havia coesão do poder estatal. Existiram, isto sim, comunidades parciais, como os grêmios, as corporações de ofício, enfim, as entidades intermediárias. O poder político residia nos suseranos feudais e, depois, nos Municípios, corporações e instituições eclesiásticas. A proliferação dessas entidades intra-estatais dotadas de poder próprio impediu que se afirmasse, no medievo, o poder supra-estatal do Papa e do Sacro Império Romano-Germânico, pois não havia um povo e um território determinados. Assim, o monarca não distribuía o exercício do poder, fixando esta ou aquela função aos indivíduos. Não mantinha ele uma relação direta com os seus súditos, porque entre eles aparecia um grande número de senhores feudais: igrejas individuais, conventos, monastérios, condes, barões, etc., que gozavam de privilégios (18).Prevalece, desta forma, na Idade Média uma concepção patrimonial e fragmentária do poder que se privatiza. Ao invés de polis, fala-se em regnum (domínio de umpríncipe), com referência marcadamente territorial e patrimonial.A cristandade afirma-se, no Período medieval, como o poder espiritual quegoverna as consciências com independência do poder temporal, pois com este não se confunde, embora seja aquele invocado como limitação do poder, no plano político, eis que o governo deve ser exercitado para o bem comum.Mas a recusa de submissão ao Papa, pelo Imperador, e a tentativa do Papa deimiscuir-se em assuntos do poder político iriam constituir Fonte de inúmeros conflitos (l9).O Estado moderno surge, então, e com ele a própria noção de Estado. Opoder político passa a ser uno, concentrado no rei que tem imediata ligação com o indivíduo, o qual se sujeita ao seu poder: nasce a idéia de soberania.

(18) VERDÚ, Pablo Lucas. Op. cit., p. 76.(19) DALLARI, Dalmo de Abreu. OP. cit., p. 56-57.45

KILDARE GONÇALVES CARVALHOO Estado passa a corresponder à nação; há referência territorial. No plano

religioso, a autoridade do Papa é contestada pela Reforma; no econômico, verifica-se a ascensão da burguesia, com o desenvolvimento do capitalismo.O Estado moderno pode, contudo, ser desdobrado em várias formas, devendo-se ainda considerar (dentro da cronologia histórica, sempre questionável) que a Idade moderna se iniciou em 1453 ou 1492 e terminou em 1789 (Revolução Francesa), ou em 1815, com o Congresso de Viena, que determinou o fim do ImpérioNapoleônico, de 1800 a 1815 ou ainda, foi até a 1a Grande Guerra Mundial - 1914 a 1918 -, quando se inicia o Estado contemporâneo.As formas do Estado moderno são: Estado estamental, Estado absoluto, avariante do Estado de polícia, e Estado constitucional, ou Estado de direito, com o seguimento do Estado social de direito.O Estado estamental é a fase de transição. Nele ocorre dualidade política entreo rei e os estamentos ou as ordens em que se acha distribuída a sociedade: nobreza, clero e povo (terceiro Estado). Acentue-se que, neste tipo de Estado, os direitos são dirigidos aos indivíduos não como tais, mas enquanto membros dos estamentos, representando, por isso mesmo, privilégios de grupos.O Estado absoluto (sem vínculo) surge com o predomínio do monarca, cujavontade passa a ser lei, e as regras limitadoras do poder são vagas e imprecisas, apenas encontrando o poder limite distante no Direito Natural. A razão de Estado é invocada como principal critério da ação política. Historicamente, o Estado absoluto conduziu à unidade do Estado e à coesão nacional inexistentes no Período medieval.O Estado de polícia é o modelo mais significativo do Estado absoluto, ao qualcorresponde o despotismo esclarecido do século XVIII. O Estado aqui é concebido como ente que visa ao interesse público, e o monarca age com plena liberdade para atingi-lo.Mas é neste período que a lei prevalece sobre o costume como fonte de direito; organizam-se os exércitos nacionais e estrutura-se a função jurisdicional. O Estado intervém em alguns setores, como o econômico, o cultural e o de assistência social.Com o advento do liberalismo econômico e político, nasce em fins do séculoXVIII o Estado Constitucional na França, designado Estado de Direito na Alemanha.O poder político passa a ser titularizado na nação ou no povo, surgindo a idéia de soberania nacional ou popular. Aparecem as Constituições escritas, como instrumentos de racionalização do poder e de renovação do pacto social dos contratualistas.A lei é o limite da ação do poder, expressão da vontade geral. São reconhecidosos direitos fundamentais para todos os indivíduos. O princípio da separação dePoderes é também inerente à concepção de Estado Constitucional, como limitadordo poder político que deixa de ser absoluto. No plano econômico, o Estado se caracteriza pelo absenteísmo; é capitalista e burguês: não há interferência do poder político no domínio econômico, pois o Estado é apenas árbitro do livre jogo econômico, onde se garante a propriedade privada e se valoriza a liberdade, que se torna absoluta (a propósito do Estado Democrático de Direito na Constituição brasileira de 1988, ver Capítulo 9, adiante).46

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICODo Estado liberal passa-se ao Estado social de direito, reflexo das mutaçõessocioeconômicas e políticas ocorridas no 1° pós-Guerra (1914-1918).A intervenção do Estado nos domínios social e econômico, em ambiente político onde tém significação especial a doutrina social da Igreja e a radicalização daideologia marxista como resposta às questões sociais do entre-guerras, acarretou a crise do Estado liberal, que se revelou insuficiente para o atendimento das reivindicações sociais dos trabalhadores. O Estado absenteísta torna-se, então, atuante. De árbitro transforma-se em agente criador de serviços, mediante a prestação de inúmeras atividades sociais.Disso são exemplos as Constituições do México de 1917 e da Alemanha de 1919,Polônia e Iugoslávia, de 1921. Os textos constitucionais deixam de ser breves para se alongarem:

são as Constituições analíticas, que se sucedem às Constituições breves.O Estado social de direito vem, portanto, "superar a contradição entre a igualdade política e a desigualdade social".Escreve Paulo Bonavides:"Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicaçõesque a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, daeducação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede o crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidade individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência do seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área da iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a denominação de Estado social" (20).O Estado social de direito não deixa, todavia, de ser uma fase do Estado Constitucional, ou do Estado de Direito, pois há nele o respeito aos direitos fundamentais do homem, a preservação do princípio da separação de Poderes e o reconhecimento de que o poder político pertence a todo o povo. Não se confunde, assim, com o Estado socialista, este, sim, baseado na coletividade dos meios de produção e, no domínio político, na chamada ditadura do proletariado e numa concepção transpersonalista dos direitos fundamentais, bem como no regime de partido único, apresentando-se, então, como Estado totalitário. Há ainda o chamado Estado fascista, que existiu na Itália de 1922 a 1943, o nazista, na Alemanha de Hitler, designadamente antiliberais.

(20) BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, p. 182.47

& 6 ORIGEM E )USTIFICAÇÃO DO ESTADONeste tópico abordamos, sem pretender esgotar a matéria, as mais significativas e conhecidas correntes doutrinárias e filosóficas que procuram justificar a existência do Estado como fenômeno necessário à convivência humana, bem como alegitimidade do poder estatal, ou do domínio do homem pelo homem.Não se tratará aqui da formação, modificação e extinção do Estado (as vicissitudes do Estado), que serão examinadas adiante, destacadamente, como tema referente à estrutura do Estado concreto e não ao Estado abstratamente considerado.A propósito, acentua Darcy Azambuja que o interesse sobre os estudos daorigem e justificação do Estado tem diminuído, da mesma forma que "vão rareandoos grandes sistemas doutrinários e os grandes filósofos" (21).Mas o elevado número, até hoje, de teorias explicativas da origem do Estadorecomenda que se estabeleça uma síntese delas.

Bidart Campos divide-as em:a) teorias religiosas;b) teorias da força;c) teorias jurídicas;d) teorias éticas;e) teorias psicológicas.Menciona ainda as teorias que negam a existência do Estado, postulando suaabolição ou destruição. (22)Orlando Magalhães Carvalho, em seus Resumos de teoria geral do Estado, sintetizaas teorias da origem do Estado, segundo se baseiam no agregado familiar, ou nareunião de indivíduos que não sejam parentes, em:1. teorias que se baseiam no agregado familiar: a) teoria da origem familiar do

Estado; b) a tradição de um legislador primitivo;2. teorias que se baseiam na reunião de indivíduos não aparentados: a) teoriasdo pacto social (Hobbes, Locke e Rousseau, as mais conhecidas); b) teorias da origem violenta do Estado. (23)Aderson de Menezes apresenta-nos a seguinte síntese teórica, fundamentadoem Adolfo Posada:

(21) AZAMBUJA, Darcy. Op. Cit., p. 97.(22) CAMPOS, German Jose Bidart. Op. cit., p. 221.(23) CARVALHO, Orlando Magalhães. Op. cit., p. 56-57.48

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO"a) o Estado é obra de Deus e, assim, de origem divina (doutrinas teológicas);b) o Estado é criação do homem e, portanto, de origem humana (doutrina docontrato e da violência); c) o Estado é produto social e, conseguintemente, deorigem histórica ou evolutiva (doutrina familiar e natural)". (24)Com base nessas classificações examinaremos, sucintamente, as teorias religiosas, contratuais, da violência, familiar e natural da origem do Estado, e consideraremos ainda as que o negam, objetivando sua destruição.Para as teorias religiosas, o Estado foi fundado por Deus. Referem-se essasteorias mais à origem e à legitimidade do governo do que propriamente à justificação do Estado.Costuma-se dividir as teorias teológicas em teoria do direito divino sobrenatural e teoria do direito divino providencial.A primeira sustenta que o governante recebeu o poder diretamente de Deus.Assim, o rei, divinizado, irá exercer a autoridade do Estado. Anote-se que Santo Tomás de Aquino mitigou a rigidez desta doutrina ao acrescentar que todo poder vem de Deus, mas por intermédio do povo (per populum).O expoente maior da teoria do direito divino sobrenatural foi Bossuet (1627-1704), ao afirmar que o rei não presta contas senão a Deus, pois sua autoridade é absoluta e sagrada a monarquia.A Igreja Católica resistiu a essa teoria que, além de recusar ao Papa qualquerautoridade sobre o rei, servia de argumento para que o monarca se opusesse à supremacia da Igreja.A monarquia de origem divina tem em Luiz XIV o seu principal personagem.Pela teoria do direito divino providencial, exposta por De Maistre (1753- 1821) e De Bonald (1754-1840), e que serviu para justificar a restauração da monarquia em França, do poder de Deus e do Papa contra o liberalismo da revolução de 1789, assevera-se que o Estado, obra de Deus existe pela graça da providência divina. Todo o poder e toda a autoridade emanam de Deus, não por uma manifestação sobrenatural de sua vontade, mas pela direção providencial dos acontecimentos e da vontade dos homens aos quais cabe a organização dos governos e o estabelecimento das leis.As teorias contratuais consideram que o Estado é uma organização nascidade um pacto inicial realizado, livre e espontaneamente, pelos indivíduos que abandonam o estado de natureza. O Estado é assim construído, e não dado, inexistindo tendência da natureza do homem para a vida em sociedade. O Estado converte-se em pura sociedade; não é comunidade.Diz o Prof. Orlando Magalhães Carvalho que "foram os sofistas os primeiroscontratualistas ou pactistas, pois, fazendo do homem a medida de todas as coisas,

(24) MENEZES, Aderson de. Op. cit., p. 77.49

KILDARE GONÇALVES CARVALHOcolocaram o indivíduo diante do Estado como um fator de vida coletiva, consciente e deliberado". (25)

Thomas Hobbes (1578-1679) escreveu o Leviatã, onde expôs suas idéias pactistas.Acentua, inicialmente, que os homens vivem em estado de natureza, antes de se organizar o Estado, chamando a este estado de natureza de estado de guerra, caracterizado pela ausência de poder capaz de aterrorizá-los; em que não há distinção entre o justo e injusto; a violência e o engano são virtudes essenciais; enfim, o homem é o lobo do homem (homo homini lupus). Surge, então, um momento lógico (não histórico) em que os homens passam a submeter-se ao Estado, geração do Leviatã, ou Deus mortal, mediante a celebração de um pacto, instrumento de segurança que nasce do medo.Pelo pacto social, os homens conferem toda a sua vontade, poder e força a umsó homem ou assembléia, nascendo a república com poder soberano. A fórmulapactista é a seguinte:"Autorizo e transfiro a este homem ou assembléia de homens todo o meudireito de governar-me a mim mesmo, com a condição de que vós transferireis a ele vosso direito e autorizareis todos seus atos da mesma maneira".Verifica-se, pois, que em Hobbes há alienação total dos direitos individuais, que se concentram no soberano, o qual, inclusive, não participa do pacto de formação do Estado, celebrado apenas entre os indivíduos, perante os quais não assume nenhuma obrigação. É o Estado absolutista e totalitário o que decorre das idéias de Hobbes.John Locke (1632-1704) expôs sua doutrina contratualista no livro Two treatiseson government, publicado em 1690, intitulando-se o último de 0 segundo tratado do governo civil. Para ele, o estado de natureza não é um estado de guerra, como queria Hobbes, mas um estado de paz, assistência mútua e conservação, em que os homens usufruem de ampla liberdade para agir. Neste passo, Locke considera o estado de natureza como necessário para preservar a propriedade, o trabalho, a vida, a saúde e a integridade. Nele, a execução das leis da natureza cabe ao que ele chama de poder executivo, que se acha difundido no grupo social.Para evitar conflitos, os homens celebram um pacto, criador da sociedade política, mediante o consentimento mútuo e livre, em que alienam parte de seus direitos.Tal acordo gera a figura de um juiz sobre a terra, para solucionar os conflitos que porventura venham a surgir, e castigar os ofensores. Enfim, o Estado não pode fundamentar-se em nada que não seja o consentimento do povo.Jean Jacques Rousseau ( 1712-1778), cidadão suíço, que se viu obrigado a trabalhar e viver na França, por ter sido expulso de sua terra natal em razão de suas idéias, é o mais alto pensador da teoria contratualista.

(25) CARVALHO, Orlando Magalhães. Op. cit., p. 68-69.50

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO contrato, para Rousseau, não é um acordo histórico ou real, mas uma construção racional e lógica que justifica e dá legitimidade ao Estado.Afirma Rousseau, em seu Contrato social, que o homem nasce livre, mas em todas as partes está acorrentado.Tributário da filosofia de Locke, Rousseau foi inspirador dos revolucionáriosfranceses, no século XVIII.Suas reflexões acerca da formação do Estado estão contidas também no livrointitulado Discurso sobre as causas da desigualdade entre os homens, considerado como a parte crítica, e no Contrato social, como a parte dogmática. Supõe-se que este foi escrito antes daquele.Então, "achar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a suaforça comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça entretanto senão a si próprio, e que fique tão livre como antes" (Livro L, Capítulo VI), é o problema fundamental a que o contrato social dá a solução.Este pacto é celebrado entre os homens e não entre o povo e o governante:trata-se, pois, de um pacto de união e não de sujeição. Conseqüentemente, a soberania reside no

homem; ela é individual, indivisível e inalienável; é tão-somente a soma das vontades individuais. Desta forma, se o Estado for composto de dez mil cidadãos, cada um deles terá a décima milésima parte da autoridade soberana.Formula ainda Rousseau o conceito de vontade geral, que não se confundecom a simples soma das vontades individuais, mas é uma síntese delas:"há, às vezes, diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta atendesó ao interesse comum, enquanto que a outra olha o interesse privado e não ésenão uma soma das vontades particulares" (Livro II, Capítulo III).Rousseau, diferentemente de Locke e Hobbes, descreve o estado de naturezacomo sendo aquele em que o homem natural não é nem sociável nem dotado derazão, nem impelido por um egoísmo ativo. Na primeira parte de seu Discurso sobre a desigualdade, Rousseau acentua a distância que há entre o estado de natureza e o estado social, Para ele, o homem natural é desprovido de todas as características do homem social, nada indicando nesse estado de natureza que dele deva sair, pois se trata de um estado de felicidade e de equilíbrio que se basta a si mesmo, imutável e sem história. O homem é solitário, independente, ocioso. Seus sentidos são proporcionais às suas necessidades, não tem consciência de sua condição humana. Desse modo, a linguagem, a razão, a família, o trabalho, a propriedade, a moral não são naturais ao homem, mas criações a ele posteriores. O homem, no estado de natureza, é um ser perfectível. A desigualdade entre os homens está sujeita então a uma série de progressos da própria sociedade, como a descoberta da metalurgia e o desenvolvimento51

KILDARE GONÇALVES CARVALHOda agricultura, com a divisão do trabalho, origem da propriedade e da desigualdade, fase em que o homem já se acha desfigurado. Surge a união entre homem e mulher, depois a união entre pais e filhos; surge a propriedade, e com ela se inicia a desigualdade, através da riqueza. A propósito, escreve Rousseau:" O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: isso é meu,e encontrou pessoas bastantes simples para acreditar nele, foi o verdadeirofundador da sociedade civil."Nessas condições, os ricos passaram a dominar e submeter os pobres e a se sentirinseguros relativamente a seus bens. É o período intermediário entre o estado de natureza, que não mais existe, e a sociedade civil, em que os homens vivem de maneira imperfeita O resultado dessa situação será um estado de guerra, em que o homem já está desfigurado, o que torna necessária a instituição da sociedade e das leis por um pacto de associação. O instrumento que permite a efetivação do pacto é a vontade de todos, e o instrumento ou a faculdade que dele surge é a vontade geral, que deverá ser objetivada em um outro instrumento, a lei, que cria os meios necessários ao desiderato do pacto social - o Príncipe ou o Estado - e a todos vincula. Neste momento se dá a passagem do EU individual para o EU coletivo, de uma forma um tanto obscura:"No mesmo instante, em lugar da pessoa particular de cada contratante,este ato de associação produz um corpo moral e coletiva, composto detantos membros quantos votos tiver a assembléia, o qual recebe destemesmo ato sua unidade, seu EU recebe sua vida e sua vontade" (Contratosocial, Cap. IV, Livro I).As teorias da violência ou da força encontram em Gumplowicz (1838-1909)e Oppenheimer (1864-1943) seus principais expoentes, mencionando-se ainda LéonDuguit, quando sustenta ser o Estado um grupo humano situado sobre um território, onde os mais fortes dominam os mais fracos, ou seja, força material, dualismo de governantes e governados; o grupo mais forte encontra apenas como limite a solidariedade social, regra de direito ou direito objetivo.Gumplowicz fala que a horda foi a forma mais primitiva de associação. Considera-se horda o grupo humano em que predominam os instintos, e onde não há condições de

vida que resultem numa organização política. A promiscuidade da horda, a evidência da maternidade e o direito materno(pois o pai é desconhecido) acarretam a ginecocracia. O rapto da mulher tem comoconseqüência o aparecimento do casamento, e a mulher raptada se transforma empropriedade individual, passando a gozar de um privilégio em relação às outras mulheres da horda do raptor.Em virtude do desejo de roubar, de raptar, surgem na horda outras relações,como o domínio de um grupo sobre o outro, e a propriedade. O Estado aparece com52

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOa fixação da tribo sobre determinado território, nele dominando uma minoria sobre uma maioria. A maioria acaba renunciando a uma resistência inútil; surge a paz e a ordem social duradoura (teoria do fato consumado).Oppenheimer doutrina que o Estado é um Estado de classes, cuja origem seencontra na imposição de um grupo vencedor a um grupo vencido, a fim de semanter o domínio interno e proteger-se contra ataques externos.Segundo ainda o médico e professor de Ciência Política, há duas forças quedirigem as ações humanas, constituídas pelo instinto de conservação: individual - a fome; especial - o amor.Mas os dois meios pelos quais o homem satisfaz suas necessidades são o meioeconômico e o meio político.Chama-se meio econômico o trabalho pessoal ou a troca eqüitativa do própriotrabalho pelo de outrem, e meio político a apropriação, sem compensação, do trabalho alheio. O Estado é a organização do meio político, ou seja, o domínio da classe dominante sobre a classe oprimida. Escreve ele:"Um Estado não pode, pois, nascer senão quando o meio econômico ajuntou uma certa quantidade de objetos destinados à satisfação das necessidades, dos quais se possa apoderar o rapto a mão armada". (26)Poder-se-ia mencionar ainda, no elenco das teorias da origem violenta do Esta-do, a teoria marxista.O Estado seria, assim, o poder organizado de uma classe para oprimir aoutra classe.Ocorre que, ao invés de justificar a legitimidade do Estado, o marxismo veio para considerar apenas sua origem histórica, pois o que postula é a extinção do Estado.O Estado como produto da violência, dominação, coação, além de revelar a sua justificação filosófica, mostra também a sua origem concreta como fenômeno historicamente situado.A teoria familiar ensina que o Estado tem origem na família. É a famíliaampliada. A família é, portanto, o primeiro agrupamento que fez as vezes do Estado (Fustel de Coulanges). São poucos os autores que defendem a teoria da origem familiar ou patriarcal do Estado. Um dos seus maiores expoentes, o inglês Robert Filmer (1589-1653), procurou utilizar-se da teoria para justificar o direito divino dos reis e o absolutismo monárquico, tendo sido combatido por Locke.Relacionada com a teoria familiar, mencione-se a origem do Estado decorrenteda tradição de um legislador primitivo, cuja personalidade teria dado as leis e criado as instituições do país, e de quem o povo seria descendente. Seriam de tais legisladores

(26) CARVALHO, Orlando Magalhães. Op. cit., p. 113.53

KILDARE GONÇALVES CARVALHOos grandes nomes da História: Moisés, Minos, Sólon, Licurgo, considerados aindarepresentantes diretos de Deus na terra.A teoria natural justifica o Estado pela sua própria existência. Esta teoria

baseia-se na simples constatação empírica da existência do Estado. Sempre que haja uma associação de homens que não tenha nenhuma outra superior a ela, ou seja, associação que se basta a si mesma, que não derive de outra e que vise a fins gerais, aí existe o Estado que se legitima pela sua continuidade histórica e permanência do fenômeno em si mesmo.É, contudo, a teoria natural insuficiente para justificar a existência do Estado, que deve ser buscada pela razão humana ao indagar o porquê do Estado na vida do homem, sendo então necessárias as teorias antes apontadas: origem divina, contratual, e da violência.Teorias negatórias - Mencionamos aqui algumas teorias que ao invés de justificar a existência do Estado o negam e postulam sua extinção.O anar9uismo é uma delas. Fala-se em anarquismo como:a) doutrina que supõe a vida comunitária liberada de qualquer regulação jurídica;b) situação irregular e anormal dentro de uma comunidade desordenada: éque incomoda o homem moderno toda a forma de submissão; a rebeldia constituiuma posição inerente ao seu espírito. Daí o anarquismo contra a autoridade exterior.Bidart Campos enumera as distintas variações do anarquismo. A primeira delas acarretaria a destruição do Estado por evolução como resultado de um processonatural de reforma social e política. Outra variação é a revolucionária, que visa destruir o Estado pela força e violência.Há ainda o anarquismo individualista, que se dirige à liberdade individual dohomem e se reveste de caráter predominantemente filosófico e literário. São seusexpoentes, dentre outros: Godwin (1756-1836), Max Stirner (1806-1856) e Nietzsche (1844-1900), com sua doutrina do super-homem egoísta, dizendo que o homem começa somente onde termina o Estado.Já o anarquismo coletivista se acha relacionado com os movimentos sociais quevisam à extinção do Estado. São suas expressões: Proudhon (1809-1865), Bakunin(1814-1876), Kropotkin (1842-1919) e Tolstoi (1828-1910)(27).

& 7 PROCESSOS DE FORMAÇÃO E EXTINÇÃO DO ESTADORelacionado com a estrutura do Estado, o tema em exame se desvincula dasindagações de ordem filosófica, acima estudadas, acerca da origem e justificação do

(27) CAMPOS, German Jose Bidart. Op. cit., p. 244-245.54

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOEstado, para limitar-se apenas ao processo estrutural de formação, modificação eextinção do Estado em concreto.Pode-se mencionar alguns modos de formação do Estado, propostos por consagrados autores.

Bluntschli, em sua Teoria geral do Estado, distingue três modos de nascimentodos Estados:a) modos originários, em que a formação é inteiramente nova, partindo direta-mente da nação ou do país;b) modos secundários, em que a formação é produzida do interior, emanada domeio nacional, através da união de vários Estados, que passam a formar um todo, ou do desmembramento, da divisão ou desagregação das partes de um só Estado, que se fraciona para formar diversos Estados. Como união de Estados, mencione-se a Confederação, a Federação, a União Pessoal e a União Real;c) modos derivados, em que o Estado forma-se de fora, do exterior, como pelacolonização.Alexandre Groppali menciona dois grandes ramos de formação do Estado:

a) formas imediatas ou diretas;b) formas indiretas ou derivadas.

Entre nós, Queiroz Lima fala em três modos de formação do Estado:a) pela cisão de um Estado em duas ou mais seções, passando cada uma delas aconstituir um Estado distinto;b) pela secessão de uma parte da população e território de um Estado, para aformação de um novo;c) pela independência de colônias, que se desligam da metrópole. (28)

Já Dalmo de Abreu Dallari classifica os modos de formação do Estado em:a) formação originária, partindo de agrupamentos humanos ainda não integra-dos em qualquer Estado;b) formação derivada, partindo de Estados preexistentes, compreendendo 0fracionamento e a união de Estados;c) formas atípicas, não usuais, em que a criação de novos Estados é absoluta-mente imprevisível, como ocorreu, por exemplo, com a formação do Estado doVaticano e o Estado de Israel. (29)

(28) LIMA, Eusebio de Queiroz. Teoria do Estado, P. 138-139.(29) DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 43-50.55

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Os vários tipos de formação e extinção dos Estados serão tratados detalhadamente em tópicos específicos, quando da análise do território, povo e formas de Estado. Note-se também que o assunto interessa igualmente ao Direito Internacional Público, sobretudo pelas transformações que venham a ocorrer na soberania do poder estatal, em virtude da formação ou da extinção dos Estados.

& 8 ELEMENTOS DO ESTADO - CONSIDERAÇÕES INICIAISSão tradicionalmente três os elementos do Estado: povo, território e poderpolítico.Por elemento entende-se aquela substância que em composição com outraentra na constituição de alguma coisa.Deve-se a Jellinek a formulação do conceito de Estado como um povo fixadonum território para, mediante poder próprio, exercer o poder político, surgindo daí o acolhimento da tese dos três elementos do Estado.São materiais os elementos território e povo, e formal, o poder político.Tem-se questionado, todavia, a redução do Estado a seus elementos, considerados por alguns como condições de sua existência e não como definidores de suaessência, Assim pensa, por exemplo, Jorge Miranda, ao afirmar que "os elementosnão podem ser tomados enquanto partes integrantes do Estado, pois que isso: 1. suporia reduzir o Estado a eles, à sua soma ou à sua aglutinação quase mecânica; 2. suporia ainda assimilar a natureza de cada um dos elementos à dos outros dois ou, porventura, colocar todos em pé de igualdade; 3. esqueceria outros aspectos ou fatores tão significativos como o sentido de obra comum ou dos fins; 4. não explicaria o papel da organização como base unificante do Estado". (30)Georges Burdeau, ao mostrar que o Estado, como fenômeno jurídico é ainstitucionalização do Poder, que se despersonaliza, situa o território e a população como condição de formação de existência do Estado, e não como sua substância.Para o eminente publicista francês, o Estado se forma quando o Poder tem a sua sede não em um homem, mas em uma instituição, mediante uma operação jurídica a que ele chama de institucionalização do Poder. (31)Marcelo Rebelo de Sousa, embora admita que povo, território e poder políticocomponham o conceito de Estado, procede a uma distinção entre conceito e estrutura do Estado. A

estrutura é mais ampla, nela cabendo vários outros elementos que já não integram o conceito de Estado, como os direitos fundamentais, os partidos políticos, as Forças Armadas, os grupos de pressão política, as classes sociais, os sindicatos, as organizações patronais, e os meios de comunicação social. (32)

(30) MIRANDA, Jorge. Op. cit., 1983, r. 3, p. 26-27.(31) BURDEAU, Georges. Traité de science politique, r. 2.(32) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito constitucional, p. 155.56

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOHá quem sustente a ocorrência de um quarto elemento do Estado: assim pensa Groppali, que menciona a finalidade como este elemento a mais, em suaDoutrina do Estado.Machado Paupério aponta como elementos do Estado contemporâneo (povo, o território e o ordenamento jurídico, esclarecendo ainda ser a soberania seuquarto elemento. (33)Examinadas essas posições, deve-se aceitar a tese dos três elementos (povo,território e poder político), por ser a única que possibilita delimitar o Estado em relação a outras organizações sociais e políticas (Igreja, organizações internacionais, sindicatos, etc.), às quais falta pelo menos um daqueles elementos que compõem o conceito e a realidade do Estado como fenômeno histórico e institucional.

& 8.1 PovoO elemento humano constitutivo do Estado, que consiste numa comunidade depessoas, é o povo. O grupo humano ou a coletividade de pessoas obtém unidade,coesão e identidade com a formação do Estado, mediante vínculos étnicos, geográficos, religiosos, lingüísticos ou simplesmente políticos, que os unem. O povo é, assim, o sujeito e o destinatário do poder político que se institucionaliza. Ele só existe dentro da organização política. Uma vez eliminado o Estado, desaparece o povo como tal.O conceito de povo não se confunde com o de população. Como se viu, o povoconsiste numa unidade que corresponde a conceito jurídico-político. População envolve um conceito econômico-demográfico, apenas. E o conjunto de residentes (nacionais e estrangeiros) no território do Estado. Na esteira de autores alemães, Ivo Dantas entende que o termo população é queconstitui o elemento pessoal constitutivo do Estado. E justifica sua posição pela circunstância de que, enquanto população tem um sentido demográfico-matemático, as demais expressões (povo, nação e grupo social) traduzem um conceito psico-sócioantropológico, e jurídico-político-constitucional. Além do mais, para o referido autor, a própria Constituição brasileira, em seu art. 5°, ao falar em "brasileiros e estrangeiros residentes no País" como destinatários da ordem jurídica e do poder do Estado brasileiro dá guarida ao seu entendimento, por não distinguir entre nacionais e estrangeiros quanto à tutela das normas constitucionais declaratórias dos direitos individuais. (34)Não se perca de vista, todavia, que o termo povo identifica-se com o conjuntode indivíduos que estão sujeitos à ordem jurídica do Estado, tendo um vínculo permanente com o poder político, e não simplesmente transitório, o que ocorre com a população, motivo por que optamos por identificar no povo o elemento pessoal constitutivo do Estado.

(33) PAUPÉRIO, A. Machado. Anatomia do Estado, p. 37.(34) DANTAS. Francisco Ivo Cavalcanti. Teoria do Estado, p. 106-107.57

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Acentua-se ainda que, o termo povo, nas democracias atuais, tem-se afastadoda noção de cidadãos ativos, e até mesmo de um conceito naturalista e étnico, caracterizado pela origem, língua ou cultura comum; para ser concebido como uma"grandeza pluralística", na expressão de P. Häberle, é dizer uma pluralidade de forças culturais, sociais e políticas, tais como partidos, grupos, igrejas, associações, personalidades e instituições influenciadoras da formação de opiniões, correntes, vontades, idéias, crenças e valores, convengentes ou conflitantes.Outra distinção a ser feita, quanto ao termo povo, é entre nacionalidade ecidadania.Nacionais são os indivíduos que se vinculam juridicamente a determinadoEstado. Cidadãos são os nacionais que participam do poder político, votando, sendo votado e fiscalizando os atos dos detentores do Poder.Nacionais são todos os indivíduos que se sujeitam permanentemente às leis doEstado e ao seu poder político.São modos de aquisição da nacionalidade o jus soli e o jus sanguinis. O primeiro refere-se ao lugar do nascimento e o segundo, à descendência (nacionalidade dos pais).E de Jorge Miranda a observação de que "nacionalidade têm as pessoas coletivas e nacionalidade pode ser atribuída a coisas (navios, aeronaves), mas cidadania sópossuem as pessoas singulares" (35) (sobre nacionalidade e cidadania na Constituição de 1988, ver Capítulos 11 e 12).Os cidadãos constituem a parte do povo capaz de participar do processo democrá-tico. Os alistáveis como eleitores são os cidadãos ativos. Mas a noção de cidadania se expandiu, para alcançar não apenas os eleitores, como também todos aqueles que participam das decisões governamentais, seja como um dever, seja como uma faculdade, mediante técnicas e instrumentos colocados à sua disposição pelos textos constitucionais.Nesse sentido parece-nos ter sido utilizado o termo povo no art. 1°, parágrafo único, da Constituição Federal brasileira de 1988: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."Maior dificuldade apresenta a distinção entre povo e nação, pois freqüente-mente são identificados.A nação é uma realidade sócio-antropológico-cultural, distinta do Estado: refere-se mais à comunidade do que à sociedade. Ninguém se considera nacional porque quer, mas por pertencer a uma comunidade (nação), que comporta um estilo de vida, atitudes mentais de que resultam certos modos de pensar e de querer.A nação, segundo Mancini, é uma sociedade natural de homens em que aunidade de origem, raça, costumes, língua e comunidade de vida criaram uma cons-ciência social. São, portanto, elementos da nação: a) elemento natural: raça, língua e território; b) elemento cultural: costumes, tradições, religião e leis; c) elemento psicológico: sentimentos nacionais.

(35) MIRANDA, Jorge. Op. cit., r. 3, p. 83-84.58

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOMancini e Renan (este em trabalho intitulado O que é uma nação?) ressaltaramo aspecto voluntarístico no conceito de nação. Mancini concebia a nação como umasociedade natural de homens, com unidade de território, costumes e língua estruturados numa comunhão de vida e consciência social. Já Ernest Renan, em seuopúsculo antes mencionado, ressaltou:"O que constitui uma nação é haver feito grandes coisas no passado e querê-las fazer no porvir: a existência de uma nação é plebiscito de todos os dias, como a existência do indivíduo é uma afirmação perpétua de vida."E acentua:"Uma nação é uma alma, um princípio espiritual [...] Ter glórias comuns

no passado, uma vontade comum no presente; haver feito grandes coisas juntos; querer ainda fazê-las; eis aí as condições essenciais para ser um povo."Vários elementos entram no conceito de nação: raça, religião e língua. Qualdeles, contudo, predomina? Entendemos que não se deve considerar nenhum delescomo de maior importância. Veja-se, por exemplo, a Suíça que, tendo três línguas(fala-se ali o italiano, o francês e o alemão), três religiões e várias raças, é uma nação, enquanto que a Áustria é um Estado, mas não uma nação.O princípio, pois, de uma nação se encontra no espiritual, no domínio dacultura e nas relações intersubjetivas.Assunto de grande importância no mundo contemporâneo é saber se a umanação deve corresponder um Estado, ou, por outras palavras, se é possível dar-seestrutura jurídica e personificação à nação. O Estado moderno do tipo europeusurgiu na História como Estado nacional, pois foi a nação (Revolução Francesa) que lhe conferiu unidade e coesão.Mancini chegou até mesmo a formular a teoria do princípio das nacionalidades,segundo o qual a cada nação deve corresponder um Estado.Há, no entanto, consistentes objeções a esta teoria, e à sua aplicação prática.Com efeito, a nação, por lhe faltar poder, organização formal e específica (éacéfala), não pode revestir-se de forma política e organizada, sendo equivocado dizer-se que o Estado é a nação organizada, pois a nação não pode ser suporte de estrutura jurídica ou política.Do ponto de vista prático, a teoria que estatiza a nação é o caminho direto dototalitarismo nacionalista, como ocorreu com a Revolução Francesa de 1789 e omessianismo de Hitler e Mussolini. De fato, a idéia de nação se incorpora a qualquer programa, seja político, seja econômico ou cultural, degenerando-se, às vezes, em verdadeira fobia, como o antisemitismo hitleriano.59

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA propósito, escreve Bidart Campos, ao sustentar a tese contrária à personificação da nação:"Não estamos contra o nacional, a nacionalidade ou a nação, nem negamossua realidade social, ou a incorporação do homem a ela. O que não aceitamos é sua desvinculação para inseri-la na ordem política, ou para imaginarsob forma de mitos a encarnação da nação no Estado, ou a unidade danação no chamado Estado nacional." (36)Em cada povo que compõe uma nação ë natural ainda que surja, em determinados períodos históricos, conflito entre o nacional e o universal, já que a naçãoconsiste também numa participação nos valores humanos universais que se cruzamcom os particulares do grupo nacional exclusivo.

& 8.2 TerritórioO território é considerado como 0 outro elemento material do Estado.Quando se examina o surgimento histórico do Estado e suas características,observa-se que a sedentariedade constitui nota marcante da sociedade política estatal, e o território, o espaço geográfico indispensável para sediar o poder político.Não há, assim, estado nômade, figurando o território como referencial indispensável à fixação dos contornos geográficos do Estado e como limite espacial de validade de sua ordem jurídica (Kelsen).Para os que sustentam que o Estado surgiu com o Renascimento, aterritorialidade constitui, ao lado da soberania, seu traço peculiar, quando então o esfacelamento e a desintegração, verificadas no período medieval, ganharam unidade política e delimitação territorial, onde o poder soberano passou a agir.Questão complexa é a de fixar as relações jurídicas do Estado com o seu território, o que suscita um primeiro problema, qual seja, o de saber se o território constitui elemento do Estado, ou apenas condição necessária de sua existência.Groppali é partidário da primeira tese, enquanto que Donati, em seu Estado e

território, sustenta a outra tese, também defendida por Burdeau, Kelsen e Smend,dentre outros autores.Afirma Groppali que o território é elemento constitutivo do Estado, "da mes-ma forma que o corpo o é para a vida do homem". (37)Para Donati, o território não deve ser entendido como elemento constitutivodo Estado. É que assim como não se concebe considerar parte integrante de umindivíduo uma porção do solo porque esta lhe é necessária para seu apoio, também é

(36) CAMPOS, German Jose Bidart. Op. cit., p. 159.(37) GROPPALI, Alexandre. Op. cit., p. 118.60

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOabsurdo dizer que o território representa para o Estado elemento constitutivo, ao invés de condição exterior.Insiste ainda Donati na tese, quando mostra que historicamente está provadaa existência de Estados que mudam de território, como a existência de Estados sem território verdadeiro e autêntico.Apesar de tais ponderações, a tese mais aceita é a que considera o territóriocomo elemento constitutivo do Estado. Rebatendo o argumento histórico de Donati,pode-se afirmar com Groppali que só uma ocupação, temporária e de fato, explica a continuação da existência de um Estado sem território; não se trata, assim, de perda jurídica e definitiva.

& 8.2.1 Princípio da territorialidade das leisUm dos princípios que evidenciam a relevância jurídico-político dó território éo da territorialidade das leis, ou seja, as normas da ordem jurídica de um Estado só podem ser aplicadas no território deste mesmo Estado. Pode ocorrer, todavia, que o direito de certo Estado seja aplicável aos seus nacionais, mesmo fora do território do Estado, e, de outro lado, não seja aplicável aos estrangeiros ou apátridas, ainda que se encontrem no território do Estado onde vigora sua ordem jurídica; nestes casos fala-se em princípio da pessoalidade.Exceção ao princípio da territorialidade das leis consiste no privilégio deextraterritorialidade, mediante o qual aos chefes de Estado e agentes diplomáticos de um Estado, em território estrangeiro, é concedida a faculdade de se aplicar a lei do país que representam; fala-se então em imunidade perante o ordenamento jurídico local.O privilégio de extraterritorialidade se estende ainda aos bens (navios, aviões,embaixadas, etc.), do domínio do Estado diverso daquele em que estão situados.Esclareça-se que o privilégio de extraterritorialidade não induz a idéia de prolongamento do território do Estado, mas é apenas ficção de Direito Internacional Público, geradora da imunidade perante a ordem jurídica local.

& 8.2.2 Direito do Estado sobre o seu territórioAs relações jurídicas entre o Estado e seu território têm merecido dos autoresvastas explicações, que resultaram na formulação de numerosas teorias.Mencionamos aqui algumas dessas teorias, ainda que brevemente:a) teoria do território-sujeito, também conhecida como teoria da qualida-de, segundo a qual o território é elemento essencial do Estado, ou seja, seu elemento subjetivo. Faz parte do Estado na qualidade de sujeito. Partidário desta teoria, Carré de Malberg mostra que o território é elemento do ser do Estado e não do seu haver. (38)

(38) MALBERG, Carré de. Teoría general del Estado, p. 23-24.61

Nesta concepção inclui-se a tese de Jellinek, para quem o direito do Estadosobre o seu território é um direito reflexo do Estado sobre as pessoas, expressão do denominado

poder de império, sem relação de domínio, ou seja, é através das pessoas que o Estado exerce o poder sobre o território. Nesta linha, as invasões do território são consideradas como violações da própria personalidade do Estado (39), b) teoria do território-objeto, para a qual o território é um objeto sobre oqual recai o poder do Estado. Sustentada sobretudo por Donati e Laband, a teoria do território-objeto sugere o exame da natureza do direito de domínio do Estado sobre o território.Na Idade Média confundia-se o poder político com o direito de propriedade daterra. Assim, num primeiro momento, para a teoria patrimonial, o Estado exercesobre o seu território um direito real de propriedade.Não se deve, naturalmente, chegar a este extremo, pois o domínio do Estadosobre o território é um domínio eminente, ou direito real institucional, que coloca o território a serviço do Estado;c) teoria do território-limite. Para esta teoria, o território é o espaço de validade da ordem jurídica estatal (Kelsen). Assim, direito e Estado se confundem.

& 8.2.3 Composição e limites do territórioO território pode ser real ou ficto. São elementos do território real: l. solo;2. subsolo; 3. águas (internas - rios, lagos); litorâneas (mar territorial); limítrofes, em que se considera que o território do Estado vai até a metade da superfície líquida; 4. espaço aéreo; 5. plataforma continental. Considera-se como elementos do território ficto: 1. embaixadas e legações diplomáticas; 2. navios e aviões (mercantes e militares). Observa-se, a propósito, que os navios e aviões militares em qualquer parte em que se encontrem são considerados parte integrante do Estado sob cuja bandeira transitem, o mesmo ocorrendo em relação aos navios e aviões de uso comercial. Entretanto, importante notar que, para fins de aplicação das leis brasileiras em matéria penal, enquanto aeronaves militares ou belonaves são consideradas sempre parte integrante do território do Estado, os navios e aviões de uso comercial e civil, em navegação ou sobrevôo, somente se submeterão à jurisdição brasileira caso os crimes não sejam julgados pelas normas do outro Estado em cujo território venham a ocorrer. É o que se extrai do disposto no art. 7° do Código Penal, ao dispor que "ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados".

(39) JELLINEK, Georg. Op. cit, p. 295-304.62

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO território terrestre pode ser contínuo ou descontínuo, metropolitano oucolonial.Contínuo é o território constituído de uma só faixa geográfica, e descontínuoo que possui porções separadas umas das outras, como ilhas ou regiões em outroscontinentes.Já o território metropolitano é aquele onde se situa a sede do governo e oEstado possui o seu núcleo político e demográfico caracterizado e consolidado. Colonial é o território que possui uma situação política inferior e os seus habitantes não gozam dos mesmos direitos e garantias dos metropolitanos (Silveira Neto).A delimitação do território terrestre é estabelecida pelas fronteiras naturais do Estado. Fronteira tem o significado do que está em frente. É a fronteira que delimita e demarca a área de jurisdição do Estado. As fronteiras podem ser naturais, artificiais e esboçadas, falando-se ainda em fronteiras vivas ou mortas.Naturais são as fronteiras constituídas por acidentes geográficos significativos, como rios, mares, montanhas ou lagos. Tal se verifica geralmente na Europa, em que a linha franco-italiana é traçada pelos mais altos cumes alpinos; a germano-francesa, que

corre, em parte, ao longo do Reno; a franco-espanhola que acompanha as cumiadas dos Pirineus.Artificiais são as fronteiras que não correspondem a qualquer relevo ou acidente geográfico. São mais freqüentes na América, como, por exemplo, a linha divisória entre o Canadá e os Estados Unidos, que segue um paralelo no longo trecho que vai da Baía de Vancouver à margem ocidental do Lake of the Woods.Esboçadas são as fronteiras ainda imprecisas, em lugares de pequena população, e em que não há ainda manifestação dos interesses dos Estados.Fala-se ainda em fronteiras vivas, cuja doutrina foi criada pelo geógrafo alemão Haushoffer, nos idos de 192 . Para ele, a fronteira não é um traço nos mapas, nem �uma linha de separação entre os povos, mas uma área em que as culturas seentrosam, os dialetos se fundem e o folclore dos países se amalgama. As fronteiras vivias existem, portanto, em países e lugares de movimento, em zonas civilizadas, e são bem caracterizadas.Finalmente há as fronteiras mortas, entendidas como os limites antigos sobreos quais não há interesse nem controvérsia por parte dos Estados. Advirta-se, todavia, que com o avanço de recursos técnicos (aerofotogrametria), perdeu sentido a classificação das fronteiras em naturais, artificiais e esboçadas, pois sua determinação obedece a critérios técnicos precisosO território terrestre não se limita ao solo. Abrange ainda, o subsolo, numáfaixa delimitada por dois raios, que, partindo do centro da Terra, venham atingir, na superfície, os pontos extremos de fronteira. A propriedade e o aproveitamento das riquezas do subsolo (minérios, hulha, lençóis petrolíferos), sua utilização para explosões atômicas constituem matéria de direito interno, como o Constitucional, o Civil,

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KILDARE GONÇALVES CARVALHOo Administrativo do Estado a quem se atribui o território. A propósito do tema na Constituição brasileira de 1988, cf. o n. 6 do Capítulo 24 deste trabalho.

O território aéreo (espaço aéreo) é aquele compreendido entre as verticaistraçadas a partir das linhas naturais ou artificiais de separação, envolvendo ainda o mar territorial, se existente. As questões relativas ao espaço aéreo têm sido reguladas por convenções internacionais. A Convenção de Chicago de 1944 instituiu a OACI (Organização da Aeronáutica Civil Internacional), que esboçou as chamadas "cinco liberdades" referentes à utilização do espaço aéreo estrangeiro:a) liberdade de sobrevoar território estrangeiro, sem aí aterrar;b) liberdade de aterragem em território estrangeiro com fins não comerciais(abastecimento ou emergência):c) liberdade de desembarcar passageiros, carga e correio provenientes do paísde origem da aeronave;d) liberdade de embarque com destino ao país de origem da aeronave;e) liberdade de embarque de passageiros e mercadorias no território de umEstado para desembarque no território de outro Estado.Já o espaço sideral foi objeto do Tratado do Espaço Exterior (1966), onde seestabeleceu que a jurisdição estatal não pode exceder a mais baixa altitude arbitral, permanecendo o espaço exterior ou sideral na situação de res extra commercium, inapropriável por qualquer Estado. Dispôs-se ainda que nenhum Estado pode apossar-se, no todo ou em parte, do espaço supra-aéreo, da Lua, qualquer satélite ou planeta.O mar territorial, como próprio da jurisdição do Estado, tinha sua extensãocorrespondente ao alcance do tiro de canhão disparado da costa, isto é,.cerca detrês milhas.64

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICONo século XX várias têm sido as convenções e conferências acerca do Direitodo Mar e a extensão do mar territorial. De fato, a questão deve ser amplamentedebatida depois que os motivos econômicos decorrentes da exploração da riqueza do mar passaram a absorver e importar mais do que os motivos de segurança paradelimitação da extensão do mar territorial (é verdade que os modernos armamentospodem ir de um continente a outro, o que torna insustentável a fixação dos limites do mar territorial com base em razões de segurança).O Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho, em estudo intitulado Direito do mar,sintetizou as posições das conferências sobre a matéria:"1. As grandes potências, em nome da tradicional liberdade de navegação,propõem a adoção de um mar territorial de apenas 12 milhas; 2. os paísesem desenvolvimento insistem nas 200 milhas e dentro desse limite o Esta-do costeiro teria ampla jurisdição sobre o mar, seu leito e subsolo; 3. conciliando as duas posições, surge a alternativa do mar patrimonial: o marterritorial seria fixado em 12 milhas, onde seria total a soberania do Estadocosteiro, e após esse limite haveria um mar patrimonial de 188 milhas,onde o Estado teria jurisdição sobre o leito e o subsolo, mas sem poderimpedir a navegação; 4. alheios a esse debate, os Estados sem mar ou deplataforma continental reduzida pedem um estabelecimento de um mar internacional, além das reivindicações nacionais, que seria administradopor um supercondomínio a quem caberia a exploração e a distribuição dosrecursos marítimos por todos os países do mundo." (40)O Brasil fixou, unilateralmente, em 200 milhas a extensão de seu marterritorial, através do Decreto-Lei n. 1.098, de 25 de março de 1970, a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro.Entretanto, o referido Decreto-Lei foi revogado pela Lei n. 8.617, de 4 de janeiro de 1993, que estabeleceu em 12 milhas marítimas de largura o mar territorial brasileiro, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil.Mas, além de fixar a extensão do mar territorial brasileiro em 12 milhas, a Lei nº 8.617/93 previu a existência de uma zona econômica exclusiva, compreendendo uma faixa que se estende das 12 às 200 milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial. Esclarece ainda a mencionada lei que, nessa zona econômica exclusiva, o Brasil tem direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais vivos ou não vivos, das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, e no que

(40) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito do mar, P. 67.65

KILDARE GONÇALVES CARVALHOse refere a outras atividades com vistas à exploração e ao aproveitamento da zona para fins econômicos. Também, nessa zona econômica exclusiva, o Brasil tem o direito de regulamentar a investigação científica marinha, a proteção e preservação do meio marinho, bem como a construção, operação e uso de todos os tipos de ilhas artificiais, instalações e estruturas. Ressalva, todavia, a lei em destaque o direito de todos os Estados de gozo, na zona econômica exclusiva, das liberdades de navegação e sobrevôo, bem como de outros usos do mar internacionalmente lícitos, relacionados com as referidas liberdades, tais como os ligados à operação de navios e aeronaves.Finalmente mencione-se a existência de um outro conceito relativo ao território marítimo: o de plataforma continental.A plataforma continental do Brasil, segundo o disposto no art. 11 da Lei n.8.617/93, "compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem até o bordo exterior da margem continental, ou até uma distância de duzentas milhas marítimas das linhas de base, a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casos em

que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância.Já o limite exterior da plataforma continental "será fixado de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 76 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. celebrada em Montego Bay, em 10 de dezembro de 1982" (art. 11, parágrafo único, da Lei n. 8.617/93).Tem-se entendido que a plataforma continental pertence ao território do Estado ribeirinho. No Brasil, a plataforma continental integra os bens da União (art. 20, V, da Constituição Federal), que sobre ela exerce soberania, para efeitos de exploração e aproveitamento de seus recursos naturais.Finalmente, uma palavra acerca da denominada globalização e sua repercussãosobre o território dos Estados nacionais. Realmente, se a mercadoria hoje é sedenta de espaço, de uma perspectiva econômica o espaço também se globaliza, o que poderia até mesmo levar a uma crise dos Estados nacionais. Com efeito, em virtude da globalização não apenas a regulamentação da vida econômica, como da vida social, política e cultural escapa de modo crescente ao controle exclusivo das políticas nacionais. A mercadoria, sedenta de espaço, passa pelas fronteiras nacionais a servirem de demarcação provisória do processo global. Há uma redefinição da territorialidade econômica, por força do fluxo transnacional do mercado, em torno de produtos, finanças, e serviços, o que traz dificuldades para a identificação da concepção clássica de nação e sua referência ao território. Advirta-se, contudo, com Octavio Ianni, o fato de a sociedade global não se constituir de modo autônomo, independente e alheio à sociedade nacional: ela se planta na província, na nação, na região, ilhas, arquipélagos e continentes, compondo-se com eles em várias modalidades, em diferentes combinações. Desse modo, a globalização se enraíza na multiplicidade de lugaresdesterritorializados, e atravessa regiões, o que nos leva à crença de que não são fenômenos excludentes, mas que se reforçam, pois do lugar é que fluem as diferenças e dele reflui simultaneamente a mundialização, tendo cada lugar forma e ritmo próprio de vida econômica, política e social.66

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 8.3 Poder políticoBertrand Russel afirma que o conceito fundamental da ciência social é o poder, como o da física é a energia. (41) O poder, como substância, exprime a idéia deforça, energia, capacidade. Mas não há poder sem relação: daí denotar o fenômenoconceito de relação. O poder é inerente à própria estrutura social, em cuja formação se acha implícita a disciplina. (42)"A possibilidade de, eficazmente, impor aos outros o respeito da própria conduta ou de traçar a conduta alheia" (43) é o conceito de poder formulado por MarceloCaetano.O poder consiste, assim, na capacidade de que é dotado um indivíduo ou umgrupo social de limitar as alternativas de comportamento de outro indivíduo ougrupo social, visando a objetivos próprios.o grupo social só se mantém e se conserva mediante o poder.O poder de que estamos cogitando é o denominado poder social, existente emtodo grupo social e que lhe permite, agindo em nome de toda a coletividade, estabelecer regras de conduta, aplicar sanções pelo seu descumprimento, determinar as relações com outros grupos ou entre os próprios membros, mas tendo em vista apenas interesses particulares ou exclusivos, restritos ao grupo.Já o poder político é o que preside, integra e harmoniza todos os grupossociais, possibilitando a convivência entre os membros dos grupos sociais, mediante um conjunto de regras que compõe o direito comum a todos eles.Examinando o conceito de poder político formulado por Francis J. Sorauf,para quem suas características são a universalidade, qualidade final de sua força e legitimidade, Silveira Neto explica que, "pela universalidade, esse poder se

estende a todos os grupos menores que se acham no âmbito de determinada sociedade política; a qualidade final da força é o monopólio, em grau supremo, da coação organizada. A essas características acrescente-se a legitimidade, pela qual o poder conta com a aceitação por parte dos membros da sociedade. (44)Distingue-se deste modo o poder político de qualquer outro poder: a)quantitativamente, pelo seu âmbito espacial e pessoal; b) qualitativamente, por ser irresistível e dominante; c) por sua finalidade, já que objetiva a realização da ordem social.

(42) O poder político, como elemento formal do Estado, não se identifica com o governo, que é, no entanto, apontado por alguns autores para designá-lo. Governo (do latim gubernatio, onis = direção, administração) traduz o poder já organizado e disciplinado. É palavra que tem vários significados, como o conjunto de pessoas ou órgãos encarregados de governar, de dirigir o Estado; a atividade de governar; uma situação de direção ordenada; a maneira, método ou sistema pelo qual a sociedade é governada. Confunde-se, ainda, em sentido estrito, com o Poder Executivo.(43) CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v. 1, p. 17.(44) SILVEIRA NETO. Teoria do Estado, p. 52-53.67

KILDARE GONÇALVES CARVALHOConsidere-se ainda a distinção entre poder e influência.Apesar de ambos denotarem idéia de relação entre pessoas e grupos, o poder éuma relação "na qual o indivíduo A afeta o comportamento do indivíduo B, porque este último deseja evitar as sanções que A aplicaria se B não cumprisse seus desejos, ao passo que na influência o comportamento de B é afetado sem necessidade de sanções." (45)O poder político, como vimos, envolve as noções de capacidade e energia (força).É preciso esclarecer, todavia, que a força que constitui o núcleo do poder deveser acatada e consentida: daí o conceito de autoridade, que é a força acrescida do consentimento, o qual ampliará naturalmente a legitimidade do poder (examinaremos adiante) e concorrerá para a estabilidade das instituições estatais.O poder político é uno e indivisível quanto à sua titularidade: a divisão só sefaz quanto ao exercício do poder, quanto às formas básicas de atividade estatal. (46)De fato, a titularidade do poder, como atributo do Estado Democrático, vemencarnada sempre num único titular, que é o conjunto de cidadãos dotados dopoder de participação na vida pública. Assim, a titularidade do poder se refere à comunidade, organização e pessoa coletiva.Já o exercício do poder político incumbe a órgãos estatais que atuarão como osmeios de que é dotado o povo para influir nas funções do Estado (legislativa, administrativa e jurisdicional) e que exercitarão as suas competências básicas.A história do poder revela as três fases por que tem passado a sua evolução:poder difuso, poder personalizado e poder institucionalizado, e que refletem a questão relativa à sua legitimidade, ou seja, a justificação do direito de mandar e do dever de obediência. De verdadeiro é que o poder, como capacidade e energia, se dirige a um fim que lhe empresta legitimidade. Daí a expressão de Burdeau: "poder é uma força a serviço de uma idéia."Inicialmente, surge o poder como pertinente ao grupo; impossível identificar-lheo titular pessoal. O poder se dilui na massa social.Em seguida, de difuso passa a se personalizar, isto é, o poder se concentra e sedetermina na pessoa do chefe, individualizando-se. Historicamente, tal poder se manifesta pela posse do totem.No terceiro e último estágio, o poder é transferido da pessoa dos governantespara o Estado. Desvincula-se, assim, dos indivíduos e passa a ser exercido como uma função, sempre vinculado ao direito que lhe estabelece as condições e os limites de seu exercício: é o fenômeno da institucionalização do poder.Pela conotação sociológico-histórica e ainda em razão da densidade de seu

pensamento, mencione-se Max Weber na tipificação do poder legítimo. Para o sociólogo alemão, há três formas básicas de poder legítimo: a carismática, a tradicional e a legal ou racional.

(45) DANTAS, Francisco Ivo Cavalcanti. Op. cit., p. 111.(46) BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Op. cit., P. 111.68

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA autoridade carismática, do dom da graça, extraordinária e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal e a confiança pessoal na revelação, heroísmo ou outras qualidades de liderança individual, baseia-se no domínio carismático exercido pelo profeta ou - no campo da política - pelo senhor de guerra eleito, pelo governante plebiscitário ou o líder do partido político.O domínio tradicional é aquele exercido pelo patriarca ou pelo príncipepatrimonial de outrora, compreendendo a autoridade dos mores santificados peloreconhecimento antigo, e da orientação habitual para o conformismo.O domínio legal ou racional decorre da virtude da fé na validade do estatutolegal e da competência funcional baseada em regras racionalmente criadas. Trata-se do domínio exercido pelo moderno servidor do Estado, o tipo mais puro da autoridade burocrática. (47)Mencione-se ainda, no campo da legitimidade, as noções de legitimidade deorigem e legitimidade de exercício.Diz-se da primeira quando o poder é adquirido segundo as normas própriasde escolha e investidura, indagando-se: quem governa?A legitimidade de exercício refere-se à finalidade do poder, ou seja, quando 0mesmo é exercido de forma justa e em atendimento ao bem comum.Ivo Dantas discorda da posição dos publicistas que admitem as mencionadasformas de legitimidade, por entender que a legitimidade de origem refere-se apenas ao conceito de legalidade, "enquanto que o seu exercício, casado com os ideais do grupo, nos oferece o correto sentido da legitimidade." (48)Não se deve realmente esquecer de que o conceito de legitimidade do poder seacha atraído por um fim coincidente com o ideal de justiça e de bem comum.O poder não pode viver à margem do Direito. Sua organização é jurídica, e opoder está restrito ao próprio Direito Positivo criado pelo Estado, para que possa subsistir e preservar a segurança necessária à convivência social. Tal circunstância não impede, naturalmente, que o poder político revogue leis depois de obedecê-las.Observe-se, no entanto, que não é aceitável a eliminação, por exemplo, de direitos e garantias fundamentais que já se incorporaram à consciência humana e até mesmo se internacionalizaram.

& 8.4 Poder político e soberania Examinando o poder, resta uma observação final: a noção de soberania, que não se confunde com a de Estado, nem é essencial ao seu conceito, apesar de MachadoPaupério situá-lo como o quarto elemento do Estado.

(47) WEBER, Max. Ensaios de sociologia. p. 99.48 DANTAS, Francisco Ivo Cavalvanti. Op. cit., p. 115.69

KILDARE GONÇALVES CARVALHOConsideram a soberania como qualidade essencial do Estado, Heller e MiguelReale, sendo que Jellinek a qualifica como nota essencial do poder político.Soberania, expressão que surgiu com Jean Bodin, em 1576, na sua obra Os seislivros da república, é apenas um dos traços do moderno Estado europeu, já que era desconhecida dá realidade do Estado greco-romano, que se limitava ao conceito de

autarquia, ou seja, a comunidade de cidadãos que se bastava a si mesma, pela ausência de qualquer outro poder coexistente ou acima da polis ou da civitas.Na Idade Média, em razão sobretudo da existência de uma pluralidade deordenações independentes, verificou-se inicialmente a ocorrência de duas soberanias simultâneas: a da suserania e a real. No século XIII, com a ampliação da esfera de competência dos monarcas, o conceito de soberania, de relativo passa a absoluto, com a afirmação do poder dos monarcas em relação aos senhores feudais e a outros poderes menores. Também a idéia de soberania se revelaria com maior densidade para que se afirmasse a independência dos reis em relação ao Imperador e ao Papa.Com o Estado moderno dos séculos XV-XVIII, incrementou-se a vida internacional, surgindo a soberania reveladora da supremacia interna do Estado, que não está limitado por nenhum outro poder, e independência externa em relação aos outros Estados, pela presença de vários poderes em oposição ao poder estatal.Quanto ao problema de saber se a soberania é ou não uma nota essencial do Estado, observa Marcelo Caetano:"A soberania (majestas, summum imperium) significa, portanto, um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum outro na ordem interna e por poder supremo independente aquele que, na sociedade internacional, não tem de acatar regras que não sejam voluntariamente aceites e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos.Do que ficou exposto resulta que poder político e soberania não são a mesmacoisa. A soberania é uma forma do poder político, correspondendo à sua plenitude: é um poder político supremo e independente. Se uma coletividadetem liberdade plena de escolher a sua Constituição e poder orientar-se nosentido que bem lhe parecer, elaborando as leis que julgue convenientes,essa coletividade forma um Estado soberano. Mas nem sempre os Estados são soberanos. Há casos em que a coletividade tem autoridade própria para exercer o poder político, constituindo um Estado, e, todavia, esse exercício do poder político está condicionado por um poder diferente e superior: é o que se passa com os Estados federados e com os Estados protegidos." (49)

(49) CAETANO, Marcelo. Op. cit., p. 169-170.70

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOÉ a soberania, pois, uma qualidade, a mais elevada, do poder estatal, e não 0próprio poder do Estado, significando, no plano interno, supremacia ou superioridade do Estado sobre as demais organizações e, no plano externo, independência do Estado em relação aos demais Estados.Relativamente às fontes e à titularidade da soberania, enumera-se as seguintesteorias: a) teorias teocráticas, as quais predominaram na Idade Média, e que consideram que o poder soberano vem de Deus e se concentra na pessoa sagrada do monarca (teorias do direito divino sobrenatural e providencial), sendo o monarca o titular da soberania; b) teorias democráticas, que consideram o povo como origem de toda soberania (soberania popular), ou a nação (soberania nacional), por influência da Revolução Francesa, como seu titular. Mencione-se ainda, no elenco das teorias democráticas, aquela que atribui a titularidade da soberania ao Estado, formulada na segunda metade do século XIX, na Alemanha, em razão do reconhecimento da personalidade jurídica ao Estado, e à consideração de que, sendo a soberania um direito, seu titular só pode ser uma pessoa jurídica, atributo que falta ao povo. Note-se, contudo, que essa teoria acarretou uma exacerbação do nacionalismo, com o surgimento dos Estados totalitários do pós-guerra, e por ela não se concede limitação alguma ao poder do Estado, que se revela ilimitado e absoluto. Entretanto, não se perca de vista que a soberania constitui poder jurídico utilizado para fins jurídicos, circunstância que viabiliza o seu enquadramento jurídico. A limitação da soberania encontra ainda fundamento nos preceitos do direito natural, bem como nas regras de convivência

social e do direito internacional. Quanto às características da soberania, fala-se em ser ela una, indivisível,inalienável e imprescritível.A soberania é una pela circunstância de que não há, no mesmo Estado, mais deuma autoridade soberana.A soberania é indivisível porque, além das razões que justificam a sua unidade,o poder soberano não se divide. Tal não impede, entretanto, que haja uma repartição de competências, segundo a clássica divisão do poder em Legislativo, Executivo e Judiciário. O poder soberano é uno e indivisível: o que se divide são suas tarefas.A soberania é inalienável pelo fato de que não se transfere a outrem. O corposocial que a detém desapareceria no caso de sua alienação.Finalmente, tem-se a soberania por imprescritível porque inexiste prazo certopara sua duração, já que o poder soberano é vocacionado para existir permanente-mente (ainda sobre o tema, ver o Capítulo 9, item 11).Nas relações internacionais, tem-se verificado que, se do ponto de vista jurídico, deve-se buscar a igualdade dos Estados, nem sempre isto ocorre, por fatores vários.Do ponto de vista de sua capacidade internacional, os Estados classificam-se em:1. Estados soberanos, os que têm plena capacidade de exercício de direitos departicipação na vida internacional: o jus tractuum, o direito de celebrar tratados; o jus71

KILDARE GON ALVES CARVALHO�legationis, o direito de receber e enviar representantes diplomáticos; e o jus belli, o direito de fazer a guerra, notando-se que este último direito tem sido aceito como de legítima defesa, em virtude da proibição da guerra pela Carta das Nações Unidas (art. 2°, n. 4);2. Estados semi-soberanos, os que têm limitações quanto ao exercício dos quatro direitos mencionados.São Estados semi-soberanos:a) Estados protegidos, em que a titularidade de direitos internacionais éexercida através de outros Estados (protetores), a cuja supremacia territorial se encontram sujeitos;b) Estados vassalos, aqueles que, embora dotados da plenitude dos direitosinternacionais, só podem exercer alguns deles sob autorização prévia do Estadosuserano do qual recebe tributo de vassalagem. Exemplo deles é o Estado egípcio do século XIX, em relação à Turquia;c) Estados exíguos, aqueles que, pela exigüidade de seu território e de seu povo, não possuem capacidade plena internacional e se encontram numa situação especial em relação aos Estados limítrofes. Não preenchem ainda os requisitos mínimos para participarem de organizações internacionais, como a ONU. São exemplos: a República de San Marino, com 50 mil habitantes e 64 Km2, em relação à Itália; o Principado de Mônaco, com 20 mil habitantes e 22 Km2, em relação à França; e o Principado de Liechtenstein, com 15 mil habitantes e 259 km2, em relação à Suíça; d) Estados confederados, os que, por participarem de uma confederação, ficam com sua soberania limitada, embora esta limitação não signifique a perda de suapersonalidade jurídica internacional. Mas sob a ótica constitucionalista, são soberanos os Estados confederados;e) Estados neutralizados, os que, para alguns internacionalistas, são Estadossemi-soberanos, pois que decidem participar em qualquer conflito armado, salvo odireito de legítima defesa individual, bem como em alianças militares. É o caso da Suíça e da Áustria. Este fato parece-nos, contudo, não ser decisivo para classificá-los como semi-soberanos;3. Estados não soberanos, os que não possuem personalidade jurídica internacional. São os Estados-Membros das União Reais e os Estados federados de um Estado Federal.

& 9 PERSONALIDADE DO ESTADO

O Estado, além de ordenamento jurídico, adquire direitos e contrai obrigações;age como pessoa.72

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICORelativamente à personalidade jurídica do Estado, há posições teóricas, quepodem ser assim resumidas: a) teoria que somente reconhece como pessoa o homem,e nega ao Estado a personalidade jurídica; b) teoria que só admite para o Estado a personalidade jurídica, mas lhe nega o substrato de pessoa moral; c) teoria que reconhece o Estado como pessoa moral e jurídica; d) teoria que personifica também a nação (variante francesa) e define o Estado como a nação juridicamente organizada. (50)Quanto à teoria negatória da personalidade jurídica do Estado, sustenta-seque a única pessoa existente para o mundo jurídico é o homem. Os grupos sociais, as coletividades e as instituições não se consideram uma pessoa diferente da soma dos membros que os compõem.Partidários dessa teoria são Berthélemy, Duguit e Jèze, dentre outros.Para Berthélemey, que trata da matéria sob o prisma econômico, o Estado consiste numa co-propriedade de bens: assim, quando se afirma que o Estado é uma pessoa, quer-se dizer que seus membros são coletivamente proprietários de bens e titulares de direitos. Tal propriedade indivisa ou patrimônio coletivo constitui uma unidade jurídica impropriamente qualificada como pessoa jurídica.Duguit, por sua vez, entende o Estado como um fato de força ou dominação,uma imposição dos mais fortes sobre os mais fracos, que dá origem à dualidade degovernantes e governados. O Estado é, pois, isso. Inexiste então personalidade jurídica: o Estado não é sujeito de direitos por natureza, não é uma pessoa. A Teoria do Estado deve, portanto, construir-se com base nos seguintes elementos: a) existência de uma determinada coletividade; b) diferenciação entre governantes e governados; c) obrigação dos governantes em assegurar o cumprimento do direito; d) obediência à regra geral formulada pelos governantes para a comprovação ou a realização da regra de direito; e) emprego legítimo da força para manter qualquer ato conforme ao direito; f) o serviço público é que dá o caráter próprio às instituições tendentes a assegurar a realização da missão obrigatória dos governantes. A finalidade, portanto, consubstanciada no serviço público, é que constitui o elemento preponderante da teoria de Duguit.Depois vêm as teorias que aceitam o Estado como personalidade jurídica, masnegam que preexista à jurídica um substrato social dotado de realidade.Assim não há, segundo essa teoria, uma personalidade anterior à jurídica relativamente ao Estado, que constitui apenas uma abstração. A pluralidade de indivíduos adquire unidade em decorrência da personalidade dada pelo Direito. O Estado é um ser exclusivamente do mundo do direito, e não se confunde com os membros que o compõem.Há duas vertentes dessa teoria: a) a teoria da ficção, formulada por Savigny,para quem o conceito de personalidade jurídica do Estado se aplica apenas por ficção legal, criação do legislador, e um produto do direito positivo, que atribui ao Estado

(50) CAMPOS, German José Bidart. Op. cit., p. 261-268.73

direitos que não podem ser titularizados pelas pessoas físicas; b) a teoria do interesse, que, adotando a definição de Ihering, no sentido de que o direito subjetivo é um interesse juridicamente protegido, sustenta que a pessoa jurídica passa a existir quando se tutela o interesse de um grupo de indivíduos. Desse modo, o Estado é pessoa jurídica porque há um interesse coletivo, um centro de interesses comum a todos; c) a teoria normativa, formulada por Kelsen, para quem o Estado é pessoa porque é o centro de imputação de determinados atos. O Estado é a personificação da ordem

jurídica total. Toda pessoa jurídica é a expressão unitária de um conjunto de normas. Quando esse complexo de normas passa a ser a totalidade de uma ordem jurídica, a pessoa jurídica à qual se imputa essa ordem é o Estado. O terceiro grupo de teorias é aquele que sustenta a ocorrência de uma personalidade do Estado anterior e preexistente à jurídica. Esta personalidade não é produto do direito, mas da realidade social. O Estado detém personalidade, não apenas jurídica, mas ainda decorrente de seu substrato social, em torno do qual se agrupam os indivíduos, formando uma superior unidade.São vertentes dessa teoria: a) as teorias organicistas, que identificam nos entes coletivos uma pessoa comparável ao homem, um organismo real que deve ser reconhecido pelo Direito; b) a teoria da instituição, desenvolvida por Hauriou, segundo a qual há uma personalidade anterior à jurídica, mas que não é uma realidade substancial e sim fenômeno sociológico, que se verifica apenas nos grupos organizados de forma duradoura, para a realização de uma idéia de obra. Ocorre, nesse caso, o fenômeno de comunhão entre os homens, que dá sustentação à instituição. A personalidade jurídica, criação do Direito, reveste aquela realidade social prévia e infrajurídica da pessoa, de modo a permitir-lhe uma atuação no mundo jurídico, como sujeito de direito, e a facilitar-lhe a atividade externa no tráfico jurídico. A aceitação da personalidade jurídica do Estado conduz a seu desdobramentoem personalidade de direito público e personalidade de direito privado. Refere-se a primeira a atos do poder político, em que o Estado exerce império sobre os particulares, caso em que pratica os chamados atos de império. Já a personalidade de direito privado tem como referencial os chamados atos de gestão, em que o Estado se posiciona no mesmo nível dos particulares, sujeitando-se às regras do direito privado.Advirta-se, contudo, que a dupla personalidade do Estado tem sido questionada.É que o Estado detém uma personalidade única, ainda quando sua atividade possa ser diversa. O Estado, como pessoa, é unívoco, seja ao atuar no exercício do poder de império, seja ao praticar atos de gestão privada. Assim, do exame da natureza das atividades estatais não se pode concluir pela dualidade de seres e pessoas, ainda quando sujeitos a regimes jurídicos também diferentes. Não existe, pois, no Estado, dualidade de pessoas, embora possa haver desdobramento de suas atividades.Carlos Ari Sundfeld acentua:"Reconhecer ao Estado a condição de pessoa jurídica significa duas coisas.Inicialmente, que ele é pessoa, um centro de direitos e deveres (isto é, que74

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

ele tem direitos e deveres). Em segundo lugar, que, quando o Estado se envolver em relações jurídicas, titularizando direitos ou contraindo deveres, só saberemos quem é o ser humano cujo comportamento está sendo vinculado se consultarmos outras normas: as de organização deste centro unificador de direitos e deveres a que chamamos de Estado.Nos países, como o Brasil, onde existe uma Constituição como norma jurídicasuprema, a personalidade jurídica do Estado é conferida pela Constituição [...].Ficaram superadas, com a implantação do Estado de Direito, as lições dejuristas antigos no sentido de que o Estado jamais poderia ser pessoa jurídica, pois, sendo o criador do Direito (quer dizer, sendo incumbido de fazer as leis), não poderia ele próprio ser criatura do Direito, ou, em outras palavras, uma criatura de si próprio. No novo regime, o Estado não cria todo o Direito, mas apenas as leis e atos sublegais (sentenças, atos administrativos). A primeira norma jurídica, a Constituição, não é criada pelo Estado, mas sim pelo Poder Constituinte. É o Poder Constituinte quem cria o Estado e lhe dá a incumbência de produzir normas jurídicas..." (51)Ao encerrarmos este tópico, é necessário que se mencione as teorias sobre apersonalidade da nação e do Estado.

Para a teoria do Estado-Nação, a personalidade reside essencialmente na nação, ou seja, o Estado é a personificação jurídica da nação (ver subitem 8.1 destecapítulo, em que se formula crítica a esta teoria). Já para a teoria do Estado-Órgão, o Estado se revela como uma pessoa em si mesma, que manifesta sua vontade pelos órgãos compreendidos em seu ser real, integrantes do todo de que fazem parte.

& 10 FORMAS DE ESTADO - CONCEITOPor forma de Estado entendemos a maneira pela qual o Estado organiza opovo e o território e estrutura o seu poder relativamente a outros poderes de igual natureza, que a ele ficarão coordenados ou subordinados.A posição recíproca em que se encontram os elementos do Estado (povo, território e poder) caracteriza a forma de Estado. (52)Não se confunde, assim, a forma de Estado com a forma de governo. Esta última indica a posição recíproca em que se encontram os diversos órgãos constitucionais do Estado, ou "a forma de uma comunidade política organizar seu governo ou estabelecer a diferenciação entre governantes e governados", (53) a partir da resposta a alguns problemas básicos - o da legitimidade, o da participação dos cidadãos, o da liberdade política e o da unidade ou divisão do poder.

(51) SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, P. 65-66.(52) RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Derecho constitucional, p. 223.(53) RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Op. cit., p. 223.75

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA forma de Estado leva em consideração a composição geral do Estado, a estrutura do poder, sua unidade, distribuição e competências no território do Estado. Há autores que consideram, no entanto, como formas de Estado, entre outras:a) os Estados democráticos, autoritários e totalitários, segundo o fundamentodo poder e as forças políticas sociais em que se baseia a autoridade dos governantes, ou até mesmo as relações entre o poder e o elemento humano constitutivo do Estado (54);b) os Estados patrimonial, de polícia e de Direito social, segundo o processohistórico de formação do Estado. (55)

& 10.1 Estados simples e compostosConsoante se atenda à ocorrência de um único poder político ou a umapluralidade de poderes políticos, unidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos originários (Constituições), no âmbito territorial do Estado, os Estados classificam-se em Estados simples ou unitários, e Estados compostos ou complexos.Advirta-se, contudo, que, ao mencionarmos a existência, nos Estados compostos,de uma pluralidade de poderes políticos, não pretendemos com isso negar aindivisibilidade do poder quanto ao seu titular; ao contrário, deve-se entender que, nos Estados compostos, o que existe é uma divisão de competências e não da poder político, que permanece uno em relação ao seu titular. Assim, o que existe é "tão-somente uma divisão de objeto, das tarefas, dos trabalhos e assuntos pertinentes à ação do Estado" (56).

& 10.2 Estado unitário centralizado e descentralizado - O Estado RegionalO Estado unitário compreende o Estado unitário centralizado e o Estado unitário descentralizado.O Estado unitário centralizado caracteriza-se pela simplicidade de sua estrutura: nele há uma só ordem jurídica, política e administrativa.Esta forma de Estado é impossível de ocorrer no mundo contemporâneo, que,em virtude da complexidade da própria sociedade política, reclama um mínimo dedescentralização, ainda que apenas administrativa, nas modalidades institucional ou funcional.

O Estado unitário descentralizado manifesta-se no Estado Regional.Para estabelecermos o perfil do Estado Regional, que se aproxima do EstadoFederal, é preciso distinguir desconcentração, descentralização administrativa edescentralização política.

(54) CAMPOS, Gennan Jose Bidart. Op. cit., p. 373.(55) HERAS, Jorge Xifra. Formas y fuerzas políticas, p. 133.(56) BONAVIDES, Paulo. Ciência política. Op. cit., p. 112.76

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOHá desconcentração quando se transferem para diversos órgãos, dentro deuma mesma pessoa jurídica, competências decisórias e de serviços, mantendo taisórgãos relações hierárquicas e de subordinação.A descentralização administrativa verifica-se "quando há transferência de atividade administrativa ou, simplesmente, do exercício dela para outra pessoa, isto é, desloca-se do Estado que a desempenharia através de sua Administração Central, para outra pessoa, normalmente pessoa jurídica." (57) Assim, a descentralização administrativa implica a criação, por lei, de novas pessoas jurídicas, para além do Estado, às quais são conferidas competências administrativas. A descentralização política ocorre quando se confere a uma pluralidade depessoas jurídicas de base territorial competências não só administrativas, mas também políticas (Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, no Direito Constitucional brasileiro).O Estado Regional, como Estado unitário descentralizado, foi estruturado,pela primeira vez, na Constituição espanhola de 1931.No Estado Regional ocorre uma descentralização, que pode ser administrativacomo ainda política. Têm-se, assim, regiões que se aproximam dos Estados-Membrosde uma federação, quando, por exemplo, dispõem da faculdade de auto-organização.Neste caso, contudo, como veremos, as regiões não se confundem com os Estados-Membros, pois não dispõem do poder constituinte decorrente, já que o estatutoregional tem de ser aprovado pelo órgão central."Estado Regional, na conceituação de Marcelo Rebelo de Sousa, é um Estadounitário, que dispõe de uma só Constituição, elaborada por uma instância em quenão participam as regiões enquanto tais, e em que se verifica uma descentralização política em regiões autônomas, nos termos da Constituição e de Estatutos orgânicos regionais, outorgados ou aprovados pelos órgãos legislativos centrais" (58).A natureza jurídica do Estado Regional não é, todavia, pacífica.Em Capítulo de sua Teoria geral do federalismo, destinado ao exame do EstadoRegional, José Alfredo de Oliveira Baracho escreve:"Tendo em vista a posição da doutrina, no que se refere à natureza jurídica doEstado Regional, Ferrando Badia aponta quatro tendências:I - teoria que considera o Estado Federal e o Regional como formas maisou menos avançadas de descentralização;II - teoria que considera o Estado Regional como Estado unitário;III - teoria que considera o Estado Regional como Estado Federal;IV - teoria que considera o Estado Regional como realidade jurídica independente, posição de Ferrando Badia, para quem a cristalização de um

(57) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Prestação de serviços públicos e administração indireta, p. 6.(58) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Op. cit., p. 146-147.

KILDARE GONÇALVES CARVALHOregionalismo é incompatível com o Estado unitário, porém não o é a superestrutura jurídico-estatal que se define como Estado Regional, tipo

de Estado intermediário entre o unitário e o Estado Federal". (59)São tipos conhecidos de Estado Regional:a) Estado Regional integral, em que todo o território divide-se em regiõesautônomas;b) Estado Regional parcial, quando existem regiões politicamente autônomase regiões com descentralização administrativa;c) Estado Regional homogêneo, em que a organização de todas as regiões éuniforme, estabelecida por um estatuto comum;d) Estado Regional heterogêneo, em que a referida organização é diferenciada,havendo regiões de estatuto comum e regiões de estatuto especial.As diferenças entre o Estado Federal e o Estado Regional, relacionadas com afaculdade de autoconstituição e de participação na formação da vontade do Estado, são:"a) No Estado Federal, cada Estado federado elabora livremente a suaConstituição; no Estado Regional, as regiões autônomas elaboram o seuestatuto político-administrativo, mas este tem de ser aprovado pelos órgãoscentrais do poder político;b) no Estado Federal, os Estados federados participam, através de representantes seus, na elaboração e revisão da Constituição Federal; no Estado Regional, não está prevista nenhuma participação específica das regiões autônomas, através de representantes seus, na elaboração ou revisão da Constituição do Estado;c) no Estado Federal, existe uma segunda Câmara Parlamentar, cuja composição é definida em função dos Estados federados; no Estado Regional, não existe qualquer segunda Câmara Parlamentar de representação das regiões autônomas ou cuja composição seja definida em função delas." (60)

& 10.3 Estado composto - União Real - União Pessoal - Confederação deEstados - Estado FederalComo modalidades de Estado composto, examinaremos a União Real e o Esta-do Federal. Já a União Pessoal e a Confederação de Estados serão aqui caracterizadas como associação de Estados (nada obstante a União Real e o Estado Federal serem

(59) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo, p. 279.(60) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Op. cit., p. 145.78

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOtambém conhecidos como associação de Estados (item 7, supra), porquanto empregamos neste estudo a expressão "associação de Estados" tão-só para designar fenômenos que, por serem menos intensos, não levam ao aparecimento de um novo Estado, abrangendo, nesta ótica, as organizações internacionais e outros tipos de relações bilaterais entre os Estados.A União Real surge quando dois ou mais Estados, sem perderem a sua autonomia, adotam uma Constituição comum, permanecendo um ou mais órgãos também comuns, ao lado de outros órgãos particulares de cada um.Há formação de uma única pessoa jurídica de direito internacional. O Chefede Estado é, normalmente, o órgão comum.São exemples de Uniões Reais a Inglaterra e a Escócia, a partir do início do século XVIII; a Áustria e a Hungria, de 1867 a 1918; a Suécia e a Noruega, d.e 1819 a 1905.O nome de União Real justifica-se por ser uma estrutura tipicamente monárquica.A União Pessoal, que consideramos como associação de Estados, ocorre quando, acidentalmente, em virtude de leis de sucessão, a mesma pessoa vem a ser Chefede Estado de dois ou mais Estados. Cada Estado mantém sua autonomia interna einternacional.Uniões Pessoais ocorreram entre Espanha e Portugal, sob Felipe da Áustria;Inglaterra e Hanover, sob Jorge I; Inglaterra e Escócia, sob Jaime I; Alemanha e Espanha, sob

Carlos V,Fala-se ainda em União Incorporada como sendo a que resulta da fusão dedois ou mais Estados independentes para formar um novo Estado, conservandoaqueles apenas virtualmente a designação de Estados ou reinos. Os Estados incorporados desaparecem na constituição do novo Estado, guardando a antiga designação apenas na linguagem protocolar. Mencione-se a Grã-Bretanha como uma monarquia formada pela incorporação dos antigos reinos da Inglaterra, Escócia e Irlanda.A Confederação de Estados constitui uma associação de Estados soberanos que se unem para determinados fins (defesa e paz externas).Embora tenha a Confederação personalidade jurídica internacional, os Estados confederados não perdem o seu poder soberano interno e externo, pelo menosem tudo que não seja abrangido pelo tratado constitutivo da Confederação.A Confederação é instituída por tratado; admite, em regra, o direito de secessão; os órgãos confederativos deliberam por maioria, podendo ela, à unanimidade, ser exigida para assuntos mais importantes, bem corno o direito de nulificação, pelo qual cada Estado pode opor-se às decisões do órgão central.São exemplos de Confederação a dos Estados Unidos, de 1781 a 1787, ahelvética, e a germânica de 1817.O Estado Federal, como Estado composto, envolve técnica de descentralização do poder que se organiza com base territorial em competências que se repartem entre órgãos centrais e locais, criando-se, assim, vários centros de decisão política79

KILDARE GONÇALVES CARVALHOe uma pluralidade de ordenamentos jurídicos originários. O poder central soberano é exercido pela União, enquanto os poderes locais autônomos cabem aos Estados federados. No Brasil, a presença dos Municípios, como entes autônomos, na estrutura federal, é estudada no Capítulo 14.O federalismo concilia duas necessidades: a da autonomia e a da liberdade.Também o princípio federal, por implicar uma descentralização de poder, equilibra a diversidade com a unidade, pois, ao mesmo tempo em que possibilita que os poderes locais se organizem segundo suas peculiaridades, mantém a unidade do Estado, necessária para a preservação da coesão estatal.Autonomia e participação dos Estados federados na formação da vontade nacional são os princípios que informam a estrutura federal.Por autonomia entende-se a capacidade de que é dotado cada Estado federadopara estabelecer regras básicas de organização política, dentro, naturalmente, de princípios emanados da Constituição Federal.A participação dos Estados federados na formação da vontade nacional semanifesta usualmente através de representantes próprios (senadores) na elaboração e revisão da Constituição Federal e das lei nacionais.A federação se organiza com base numa Constituição. Assim, não há tratadonem pacto que sirva de suporte jurídico para o Estado Federal, mas uma Constituição que dá validade e serve de fundamento para os ordenamentos jurídicos locais.O Estado Federal baseia-se numa estrutura de sobreposição. Assim, cada cidadão fica sujeito simultaneamente a duas Constituições - a federal e a do Estado federado a que pertence o destinatário dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, nos planos federal e estadual.A Constituição Federal estabelece ainda uma repartição de competências, ouseja, prevê as relações entre a federação e os Estados federados. As competências podem ser exclusivas de cada ente federativo, ou concorrentes.Os entes que compõem a estrutura federal são dotados de rendas próprias, afim de que possam cumprir os encargos decorrentes de suas competências, sem oque ficaria irremediavelmente comprometida sua autonomia.Não há direito de secessão na federação. Desde que os Estados federadospassam a integrar a federação, sujeitam-se à observância de um conjunto de princípios e vedações

previstos na Constituição Federal, não podendo desligar-se da estrutura federativa.No Estado Federal há cláusulas constitucionais que estabelecem instrumentose mecanismos de garantia ou de defesa da federação. Assim, por exemplo, a intervenção federal nos Estados.Fala-se ainda, na estrutura federal, de um sistema judiciarista, pela existênciade um Tribunal superior (no Brasil, o Supremo Tribunal Federal), no papel deguardião da Constituição Federal, cuja primazia é fator da garantia federal.80

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO Estado Federal surgiu nos Estados Unidos, com a Constituição norte-americana de 1787: portanto, condicionado por um regime político, democrático e econômico capitalista, e um sistema de governo presidencial.Nos regimes democráticos a tendência é o fortalecimento da autonomia dos Estados federados.Poderia o federalismo coexistir com o sistema parlamentar de governo?Manoel de Oliveira Franco Sobrinho pensa que há razão histórica que permite sustentar que a federação é compatível com o presidencialismo, e a confederação é sinônimo de parlamentarismo.Como acentua, "a sustentação das instituições é dada pelo Executivo no presidencialismo e pertence ao Legislativo no parlamentarismo. Se existir um parlamento só, tudo bem. Se existirem parlamentos federados, o que fazer?"Então, "a federação, no Brasil, embora bem formada, historicamente perfeita,não ficaria imune aos riscos do parlamentarismo. Estados federados podem tomarrumos inesperados. Conflitos internos podem produzir efeitos divisionistas. Fronteiras nacionais podem transformar-se em fronteiras transnacionais." (61)Isto porque a tendência do sistema parlamentar de governo é romper a UniãoFederal, organizando-se os Estados federados à semelhança da nação, com a ruptura da coesão federal.Mencione-se ainda, a respeito do assunto, no plano doutrinário, que a in-compatibilidade entre sistema parlamentar e federação resultaria da posição secundária do Senado em relação à Câmara dos Deputados que, só ela, governaria o País, "só ela poderia instituir, destituir e reconstituir os Gabinetes," (62) na expressão de Sampaio Dória.Também Rui Barbosa via incompatibilidades essenciais entre parlamentarismo e forma federal de Estado, pela predominância da Câmara dos Deputados, circunstância que contrariava a equiponderância do bicameralismo federal. (63)Em conferência pronunciada no Instituto dos Advogados de Minas Gerais, oProf. Raul Machado Horta mostrou, todavia, que estão superadas as incompatibilidades entre regime parlamentar e federação. É que "a convivência entre regime parlamentar e forma federal de Estado, através de soluções adotadas nas Constituições Federais do Canadá, da Austrália, da Índia, da Áustria e da Alemanha, desfizeram a argumentação fundada na incompatibilidade teórica entre as duas formas políticas. As regras constitucionais concretas operaram a compatibilidade entre regime parlamentar e forma federal, preservando as peculiaridades nacionais na organização do Poder." (64)

(61) FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Parlamentarismo presidencialismo, p. 126 e 131.(62) DORIA, Sampaio: Parlamentarismo v. federação. O Estado de S. Paulo, de 13-10-61.(63) BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos, p. 352.(64) HORTA, Raul Machado. Estado federal e regime parlamentar - A introdução do regime parlamentar nos Estados federados. In: Conferência proferida no CICLO DE ESTUDOS DO CENTENÁRIO DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG, sobre revisão constitucional e parlamentarismo, promovido pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais, em 10 de setembro de 1992.81

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A evolução do federalismo tem revelado algumas questões internas e externasque indicam a crise do Estado Federal clássico.No plano interno verifica-se crescente dependência econômico-financeira dosEstados federados relativamente à União. É que o incremento das atividades econômicas do Estado reclama abrangente atuação do poder central. Em virtude de seu caráter unitário, esse fenômeno, que não é exclusivo dos Estados federados, mas se verifica na totalidade do Estado Federal, exige a formulação de diretrizes uniformizadoras, acarretando, com isso, maior dependência econômico-financeira e até mesmo administrativa dos Estados federados.Outro fator de ordem interna que concorre para a crise do Estado Federalclássico é a intensificação da presença, no quadro das instituições estatais, de organismos e entidades sem base federal, como os grupos de pressão, as associações profissionais, sindicatos e tantos outros, além dos partidos políticos, cuja atuação, em nível nacional, reforça a posição dos órgãos centrais, com a conseqüente redução da importância dos órgãos estaduais.No plano externo, a convivência internacional tem reduzido o papel dos Esta-dos federados, os quais não dispõem de capacidade jurídica internacional, para assumir compromissos com potências estrangeiras em nome da federação, verificando-se, assim, o reconhecimento de um jus contrahendi dos Estados federados (o Estado Federal brasileiro será por nós examinado no Capítulo 14).

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Capítulo 3FINS E FUNÇÕES DO ESTADO

Sumário1 Fins do Estado - Considerações iniciais2 Classificação dos fins do Estado3 Síntese conclusiva4 Funções do Estado - Noção e classificação

& 1 FINS DO ESTADO - CONSIDERAÇÕES INICIAISA despeito de alguns publicistas afastarem das considerações do Direito Constitucional e da Teoria Geral do Estado o estudo dos fins do Estado (Kelsen e Mortati, por exemplo) e outros considerarem próprio a sua inclusão no exame do Estado (Groppali chega até mesmo a incluir a finalidade como elemento do Estado), não se pode negar que a investigação dos fins do Estado deve ser tratada não só no domínio dos valores e da realidade, como também no campo da normatividade jurídica. É que a finalidade constitui o princípio que orienta e especifica qualquer instituição, notadamente a estatal.Não se pode, então, ao estudar o Estado, deixar de considerar os seus fins.

& 2 CLASSIFICAÇÃO DOS FINS DO ESTADOJellinek foi o grande sistematizador das teorias dos fins do Estado, que assimos classificou:Fins objetivos - Nesta teoria, o fim do Estado surge da própria natureza dascoisas; não é a vontade política que determina o fim do Estado. A natureza daordem política é que dá objetivamente o fim do Estado, o qual surge de umaordem natural sendo, portanto, transcendente e independente da vontade humana.Investiga-se aqui o fim que cabe ao Estado em geral, abstrato e universal, e não a cada um em particular.A concepção aristotélico-tomista do bem comum é exemplificadora de um fimobjetivo e universal do Estado.Pode-se falar também na existência de fins particulares objetivos. Para os autores que defendem esta teoria, "cada Estado tem seus fins particulares, que resultam das circunstâncias em que eles surgiram e se desenvolveram e que são condicionantes de sua história (1)." Confundem-se nesta

teoria os fins do Estado com os interesses dos Estados e até de seus governos.

(1) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 88.85

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Fins subjetivos - O fim do Estado não é dado natural da ordem política, masindependente de toda objetividade. Não há, assim, nenhum dado, mas um artifício.Os indivíduos que vivem em comunidade política se propõem a um fim próprio,independente de toda objetividade.Os fins do Estado resultam da influência da vontade humana que os criam eos transformam.Fins particulares - São os que cabem a um Estado em um momento determinado, para os homens que o constituem. Com os fins particulares, os Estados se atribuem vocações históricas a cumprir no mundo. Assim, o fim de Roma era a sua grandeza; para o Estado judeu, a religião; para a Espanha, a unidade da fé; e para a Inglaterra, a liberdade (2).Fins absolutos - Consideram-se absolutos os fins do Estado que são determinados por uma valoração axiológica. O Estado não pode, de nenhum modo, desviar-se de seu fim, que é ideal e válido para todos os tempos e lugares.Fins relativos - Esta teoria considera que o fim do Estado é limitado pelaprópria natureza. O peculiar e próprio do Estado são as manifestações sistemáticas da vida solidária do homem.As três grandes categorias a que se reduz a vida do Estado são: conservação,ordenação e ajuda.Fins universais - São os que correspondem ao Estado em abstrato, a qualquerEstado em todos os tempos. Neste sentido posicionam-se Platão (a justiça constitui o bem supremo do Estado), Aristóteles (o Estado objetiva alcançar o bem ético) e vários doutrinadores.Fins exclusivos e concorrentes - Os fins exclusivos são aqueles privativos doEstado (segurança externa e interna), e os concorrentes admitem participação oucolaboração de outras sociedades, com as quais se identificam.

& 3 SÍNTESE CONCLUSIVAPode-se dizer que o Estado, como sociedade política, existe para realizar asegurança, a justiça e o bem-estar econômico e social, os quais constituem osseus fins.A segurança, como fim do Estado, pode ser individual e coletiva.A justiça possibilita que, nas relações entre os homens, seja substituído 0arbítrio da violência individual por um complexo de regras capazes de satisfazer o instinto natural da própria justiça.

(2) CAMPOS, German Jose Bidart. Derecho político, p. 276.86

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO conceito de justiça compreende:a) justiça comutativa, cuja regra é a igualdade, nas relações entre os indivíduos, da equivalência dos valores permutados (cada um deve receber, nas relações recíprocas, de acordo com a prestação que efetuou aos outros indivíduos);b) justiça distributiva, cuja regra é a desigualdade para remunerar cada qual segundo os seus méritos, de acordo com o tipo de atividade produtiva que permanentemente presta à coletividade, ou a situação social de carência em que se encontra. Projeta-se, assim, a justiça distributiva nas políticas econômicas e sociais do Estado.O bem-estar econômico e social é outra finalidade do Estado. O que se objetiva é a promoção de condições de vida dos indivíduos, garantindo-lhes o acesso aosbens econômicos que permitam a elevação de camadas sociais mais pobres, contemplando-as

com educação, saúde, habitação, entre outros serviços.É preciso, contudo, não exagerar o papel desses serviços, para que não seagigante o Estado, e não haja o comprometimento das liberdades públicas. Ointervencionismo estatal exacerbado está contemporaneamente dando lugar para oapoio à iniciativa privada, no aceleramento do desenvolvimento econômico e social.Não se deve ainda esquecer de que o Estado é meio e não um fim em si mesmo.Existe para a realização individual e social do homem (3).O Estado, igualmente, não é uma instituição para governar idéias, muito me-nos para impô-las: existe para regular condutas.Podemos então sintetizar dizendo que o bem comum constitui a finalidade que legítima o Estado.Pio XII, em sua mensagem de Natal de 1942, dizia que o bem comum consistenaquelas condições externas que são necessárias ao conjunto dos cidadãos para odesenvolvimento de suas qualidades e de suas atividades profissionais, em sua vida material, intelectual e religiosa. É o bem comum que torna possível os bens individuais. Assim, o Estado, ao promovê-lo, coloca à disposição da pessoa os meios necessários para seu próprio fim pessoal.

& 4 FUNÇÕES DO ESTADO - NOÇÃO E CLASSIFICAÇÃOOs fins do Estado são alcançados mediante atividades que lhe são constitucionalmente atribuídas. Tais funções são desenvolvidas por órgãos estatais, segundo a competência de que dispõem.

(3) A propósito, consulte-se a excelente monografia de Ataliba Nogueira: O Estado é meio e não fim, 1945.87

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Marcelo Rebelo de Sousa define a função do Estado "como a atividade desenvolvida, no todo ou em parte, por um ou vários órgãos do poder político, de modo duradouro, independente de outras atividades, em particular na sua forma, e que visa à prossecução dos fins do Estado (4)."Para o Prof. Marcelo Caetano, a determinação das funções do Estado resultade três critérios: material, formal e orgânico.O critério material parte da análise do conteúdo dos diversos tipos de atosou dos resultados em que se traduz a atividade do Estado, para chegar ao conceito de função.O critério formal atende às circunstâncias exteriores das atividades do Estado, distinguindo as funções segundo a forma externa revestida pelo exercício de cadauma delas.O critério orgânico relaciona intimamente as funções com os órgãos que as exercitam, e das diversas características desses órgãos ou da sua posição na estrutura do poder político infere a especialidade das suas atividades.O citado autor distingue ainda funções jurídicas de funções não jurídicas doEstado, dentro da concepção do que chama de teoria integral das funções do Estado.As funções jurídicas são as de criação e execução do Direito e compreendem afunção legislativa, cujo objeto direto e imediato é o de estatuir normas de caráter geral e impessoal inovadoras da ordem jurídica, e a executiva, exercitável através do processo jurisdicional, caracterizado pela imparcialidade e passividade, e pelo processo administrativo, com as características de parcialidade e iniciativa.Já as funções não jurídicas compreendem:a) a função política, cuja característica é a liberdade de opção entre váriassoluções possíveis, com vistas à conservação da sociedade política e a definição e prossecução do interesse geral, através da livre escolha de rumos e soluções consideradas preferíveis;b) a função técnica, "cujo objeto direto e imediato consiste na produção debens ou na prestação de serviços destinados à satisfação de necessidades coletivas de caráter material ou cultural, de harmonia com preceitos práticos tendentes a obter a máxima eficiência dos meios empregados (5)".Jellinek, considerado também um dos primeiros teorizadores das funções doEstado, definiu-as partindo dos dois objetivos prosseguidos pelo Estado: um de natureza jurídica,

outro de natureza cultural.

O fim jurídico do Estado refere-se à criação e execução do direito.O fim cultural do Estado corresponde ao desenvolvimento das condições materiais de vida dos cidadãos, consoante a ideologia do Estado considerado.

(4) SOUSA Marcelo Rebelo de. Direito constitucional, p. 236.(5) CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v. 1, p. 187-218.88

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPara atingir tais fins, o Estado atuaria através de dois tipos de meios: a criação de normas jurídicas gerais e abstratas e a realização de atos concretos. No primeiro caso, a função do Estado seria legislativa, e, no segundo, a função seria administrativa quando visasse a um fim cultural, ou jurisdicional, quando objetivasse um fim jurídico.Além dessas funções, Jellinek criou a categoria das atividades extraordináriasdo Estado: guerra ou atos de política externa, que se situam fora do elenco das duas funções anteriormente referidas (6).No domínio das funções do Estado, menciona-se ainda Duguit, que, ao invésde se utilizar dos fins do Estado, preferiu o conceito de ato jurídico para formular sua classificação das funções do Estado.Assim, o ato jurídico, considerado como a manifestação de vontade dirigidaà modificação da ordem jurídica, presente ou próxima futura, toma uma das seguintes formas:a) ato-regra, o que é realizado com a intenção de modificar as normas jurídicas abstratas constitutivas do direito objetivo;b) ato-condição, o que torna aplicáveis a um sujeito determinadas regras abstratas, que, antes de sua prática, lhe eram inaplicáveis (por exemplo, a nomeação de um servidor público torna-lhe aplicáveis todas as regras gerais que regulam os direitos e deveres dos servidores);c) ato-subjetivo, o que cria para alguém uma obrigação especial, concreta,individual e momentânea, que nenhuma regra abstrata lhe impunha (um contrato,por exemplo) (7).Definidos os atos jurídicos, passa Duguit à definição das funções do Estado:- a função legislativa consiste na prática de atos-regra;- a função administrativa consiste na prática de atos-condição, dos atossubjetivos e das denominadas operações materiais, sem caráter jurídico, realizadas pelos órgãos da Administração Pública, destinadas a assegurar o funcionamento dos seus serviços;- a função jurisdicional consiste na prática dos atos jurisdicionais, que rantopodem ser atos-condição como atos subjetivos. O que os define não é o seu conteúdo, mas a circunstância de provirem de um órgão dotado de imparcialidade e independência (tribunal ou juiz singular) (8).Verifica-se que a teoria de Duguit, relativa às funções do Estado, nãocorresponde à sua classificação de ato jurídico, pois para definir a função jurisdicional

(6) JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado, p. 171-214.(7) DUGUIT, Léon. Traité de droit canstitutionnel, v. I, p. 219.(8) DUGUIT, Léon. Op. cit., v. 2, p. 132.89

KILDARE GONÇALVES CARVALHOrecorre ao conceito orgânico e não material. Além disso, a função administrativa realiza-se mediante atos de natureza essencialmente material, e não apenas jurídicos.As funções do Estado foram ainda examinadas pelo neokantiano Hans Kelsen.Para Kelsen, o Estado se reduz à unidade personificada de uma ordem jurídicae se confunde com a própria ordem jurídica. As funções do Estado consistem, desta forma, na criação e na aplicação do Direito (9).Da análise de todas essas teorias, acreditamos resultar a observação de que não

existem apenas funções jurídicas do Estado: é que há o Estado cultural, o Estado do bem-estar, o Estado ético e ainda o Estado social. Assim, além da criação e execução do direito, outras funções não jurídicas se processam mediante atos políticos e atos materiais, a despeito de serem cercados pela malha de uma regulamentação jurídica e influírem na esfera do Direito.Sobre a função política, é bom lembrar que a idéia de que seja juridicamentelivre vem sendo questionada, em razão, sobretudo, de que o Estado contemporâneose configura como Estado programador ou dirigente. Define-se então a função política como uma conexão de funções legislativas, regulamentares, planificadoras e militares, de natureza econômica, social, financeira e cultural, dirigida à individualização e graduação de fins constitucionalmente estabelecidos. Além disso, fica comprometida a idéia de ser a função política consideradajuridicamente livre pelo fato de que todo o poder estatal, no Estado de Direito, se acha juridicamente vinculado à Constituição.Nada obstante, pondere-se que a função política pode movimentar-se com relativa autodeterminação naqueles espaços abertos pelo texto constitucional. Finalmente, assinale-se que, embora sejam as funções do Estado abstratamente distintas umas das outras, os atos que manifestam podem ter caráter misto. Destaforma, pode haver atos que, embora tidos como legislativos, simultaneamente sãomanifestações do Poder Executivo, e mesmo certos atos jurisdicionais que contêmelementos do Poder Legislativo (10).(9) KELSEN, Hans. Teoría general del Estado, 1979.(10) ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral, p. 226.90

Capítulo 4ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO

Sumário1 Noção de órgão do Estado2 Separação de Poderes - Considerações iniciais3 A separação de Poderes no pensamento político4 Origem histórica da separação de Poderes5 A separação de órgãos e funções

& 1 NOÇÃO DE ÓRGÃO DO ESTADOO Estado como pessoa jurídica não dispõe de vontade nem de ação no sentido psicológico e anímico. Nem por isso deixa de possuir vontade e ação, do ponto de vista jurídico, as quais se manifestam pelos seres físicos na qualidade de seus agentes.De fato, na pessoa jurídica não há coincidência entre a personalidade jurídica (portadora de direitos e deveres) com a realidade material subjacente a ela. Há, sim, um conjunto de indivíduos que se aglutinam em torno dela para a realização de determinados fins.Assim, a vontade da pessoa jurídica é expressa pelos órgãos que a compõem:trata-se então de uma vontade funcional vale dizer a vontade que por ficção jurídica, se considera imputável à pessoa coletiva e que, como tal, a vincula (1).Não há, por outro lado, que se confundir o órgão com o seu titular. O órgão "é distinto dos indivíduos que o servem: existe independentemente deles, deve durarpara além da presença e até da vida do seu titular incidental como uma chama quesucessivas energias hão de alimentar com o mesmo brilho e a mesma luz" (2).A vontade individual da pessoa física, quando age como titular do órgão, nãoexprime uma vontade individual, mas, como se mostrou, revela uma vontade funcional.Pode-se então conceituar os órgãos como "unidades abstratas que sintetizamos vários círculos de atribuições do Estado. Nada mais significam que círculos de atribuições, os feixes individuais de poderes funcionais repartidos no interior da personalidade estatal e expressados através dos agentes neles providos" (3).O mecanismo jurídico de atribuição da vontade do agente à dos órgãos do Estado, ou do próprio Estado, é chamado de imputação.

A relação entre o Estado e seus agentes é uma relação orgânica, que se manifestano interior de uma mesma pessoa jurídica, não sendo, pois, de se aceitar a teoria da representação para explicá-la. É que a representação pressupõe a existência de duas pessoas distintas, o representante e o representado, cujo vínculo é externo ao Estado, ou seja, a vontade do representante seria uma vontade distinta e estranha ao Estado.

(1) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito constitucional, p. 262.(2) CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v. 1, p. 222.(3) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos, p.69.93

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& 2 SEPARAÇÃO DE PODERES - CONSIDERAÇÕES INICIAISA separação de Poderes é tema referido em toda disciplina jurídica de DireitoPúblico, que o trata segundo sua evolução histórica e em nível de sistematização, com ênfase na distinção material das funções do Estado - cada uma delas cabe a um órgão ou grupo de órgãos específicos -, bem como na menção à separação orgânica fundada naquela distinção material.Pela sua relevância no Direito Público e especialmente no Direito Constitucional, o princípio da separação de Poderes tem acarretado significativa controvérsia doutrinária, que vai da apologia à rejeição.A apologia da separação de Poderes tem raízes históricas, e a sua rejeição baseia-se em argumentos de ordem jurídico-racionais relacionados, sobretudo, com o princípio da unidade do poder.

& 3 A SEPARAÇÃO DE PODERES NO PENSAMENTO POLÍTICOO princípio da separação de Poderes encontrou em Montesquieu seu expoentemáximo. Antes, porém, Aristóteles, na Antigüidade grega, havia tratado do tema, ao distinguir a assembléia geral, o corpo de magistrados e o corpo judiciário (deliberação, mando e julgamento).Aristóteles construiu sua teoria política a partir do exame de inúmeras Constituições concretas. Disso resultou a aceitação, por parte do filósofo grego, da idéia de Constituição mista, ou seja, aquela em que os vários grupos ou classes sociais participam do exercício do poder político, ou aquela em que o exercício do governo, em vez de estar nas mãos de uma única parte constitutiva da sociedade, é comum a todos.Assim, a melhor Constituição é a mista, porque só ela tem em conta, ao mesmotempo, os ricos e os pobres (4).Locke e Bolingbroke formularam a teoria da separação de Poderes, em funçãoda realidade constitucional inglesa. É de Locke a afirmação de que há três Poderes: Legislativo, Executivo e Federativo. O Poder Federativo se refere ao direito de fazer a paz e a guerra, de celebrar tratados e alianças e de conduzir os negócios com pessoas e comunidades estrangeiras, e corresponde a uma faculdade de cada homem no estado natural, antes, pois, de entrar em sociedade. Relativamente ao Poder Legislativo, a comunidade delega à maioria parlamentar o exercício do poder de fazer as leis. Há assim uma supremacia do Poder Legislativo dentro do Estado. Há necessidade, contudo, de uma exigência de separação de Poderes (orgânico-pessoal) entre o Poder Legislativo e Poder Executivo: para que a lei seja imparcialmente aplicada é necessário que não a apliquem os mesmos homens que a fazem, pois não há nenhum titular do Poder que dele não possa abusar. (4) ARISTÓTELES. A política, 1991.94

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOLocke menciona ainda um quarto Poder, a Prerrogativa, que compete ao monarca, para a promoção do bem comum, onde houver omissão ou lacuna da lei (the power of doing public good with out a rule).

Montesquieu trata do princípio da separação dos Poderes, no Capítulo VI doLivro XI, do Espírito das leis. Referido Capítulo tem por epígrafe: "Da Constituição de Inglaterra," parecendo então que o tema da separação de Poderes se reduzia ao Capítulo sobre a Constituição de Inglaterra.Até Montesquieu, falava-se em função legislativa e função executiva, às quais oautor do Espírito das leis acrescenta a função judicial, embora não mencione o termo Poder Judiciário, como se verá.Para Montesquieu, há três Poderes: o Poder Legislativo, que é o de fazer leis, por um certo tempo ou para sempre, de corrigir ou ab-rogar as existentes: o Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes, isto é, de fazer a paz ou a guerra, de enviar ou receber as embaixadas, de manter a segurança e de prevenir as invasões; o poder de julgar ou o Poder Executivo das coisas que dependem do direito civil, que se traduz no poder de punir os crimes ou de julgar os litígios entre os particulares.Acrescenta Montesquieu ser essencial garantir a edição das leis e sua execução,de modo que fiquem orgânica e pessoalmente separadas, pois só assim será preservada a supremacia da lei ou um regime de legalidade, como condição de liberdade e de segurança do cidadão. É que tudo estaria perdido se os três Poderes antes mencionados estivessem reunidos num só homem ou associação de homens.Montesquieu formulou ainda a técnica do equilíbrio dos três Poderes, distinguindo a faculdade de estatuir da faculdade de impedir, em razão da dinâmica dos Poderes, antecipando assim a noção da técnica dos freios e contrapesos (checks and balances): o veto utilizado pelo Executivo é um exemplo da faculdade de impedir ou frear proposta legislativa.

& 4 ORIGEM HISTÓRICA DA SEPARAÇÃO DE PODERESO princípio da separação de Poderes, como se depreende desde Aristóteles, nãoé prévio à Constituição, mas se constrói a partir dela.O princípio ganhou consistência no século XVIII, para enfraquecer o poderabsoluto dos monarcas que deram unidade política ao Estado soberano do séculoXVII. De fato, a dispersão medieval desaparece com o nascimento do Estado moderno, quando o poder se concentra no monarca, cuja autoridade se amplia.Entretanto, com o aparecimento da burguesia e da empresa capitalista, o absolutismo do monarca, que dizia com o intervencionismo estatal, deveria ceder lugar à liberdade na economia, na ordem social e na política.95

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Com o Estado liberal, a separação de Poderes passa a ser executada como um dogma. Mencione-se, na França, o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem edo Cidadão: "Toda sociedade em que a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição."

& 5 A SEPARAÇÃO DE ÓRGÃOS E FUNÇÕESO princípio da separação de Poderes, como se verificou, tem raízes históricas, pois foi elaborado e alcançou expansão numa época em que se buscava preservar osdireitos individuais, mediante a limitação do poder político, que, ao se abster, concorria para o exercício da liberdade: a um mínimo de Estado corresponderia ummáximo de liberdade.Se, contudo, aceitarmos a tese de que o poder do Estado é uno, não podemos falar em separação de Poderes. Devemos aceitar o fenômeno, isto sim, da separação ou distribuição de funções desse Poder uno.É que, na realidade, a cada órgão ou complexo de órgão corresponde uma função estatal materialmente definida. E tais funções são: função legislativa, funçãoexecutiva e função jurisdicional. A função legislativa cria e modifica o ordenamento jurídico, mediante a ediçãode normas gerais, abstratas, e que inovam esse ordenamento; a função executiva ou

administrativa é aquela pela qual o Estado realiza os seus objetivos, atuando concretamente mediante decisões e atos materiais em respeito às normas jurídicas; a função jurisdicional visa à conservação e à tutela do ordenamento jurídico mediante decisões individuais e concretas, extraídas das normas gerais, declarando a conformidade ou não dos fatos com as normas e determinando as eventuais conseqüências jurídicas.A classificação material das funções do Estado foi complementada com uma classificação formal, resultante da constatação de que havia certas atividades do Estado, de igual natureza, provenientes de mais de um órgão estatal. Assim, toda a atividade realizada pelo Legislativo, mesmo que não consistisse na criação de normas jurídicas, seria considerada formalmente legislativa, o mesmo ocorrendo relativamente ao Executivo e Judiciário em relação a atividades não consideradas substancialmente executivas e jurisdicionais.Essas considerações revelam que a especialização de funções estatais, relacionada com o princípio da separação de Poderes, é relativa, pois, na realidade, consiste numa predominância e não exclusividade desta ou daquela função desempenhada por um órgão ou complexo de órgãos do Estado. Deste modo, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário exercitam as funções legislativa, executiva ou administrativa, e jurisdicional, em caráter predominante e não exclusivo, já que, como se deduziu, cada um desses Poderes poderá desempenhar, excepcionalmente, uma função material de outro Poder.96

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Fala-se por isso mesmo em interpenetração ou interdependência de Poderes,ao invés de separação ou independência de Poderes, pois o princípio da separaçãonão nega a harmonia, coordenação e colaboração dos Poderes.Os Poderes do Estado não comportam hierarquia; é o que se depreende de Montesquieu, Para Locke e Rousseau haveria, contudo, supremacia do PoderLegislativo. Contemporaneamente, o Poder Executivo vem assumindo uma certa liderança entre os Poderes do Estado. Tal fenômeno decorre, sobretudo, de que, por ser um órgão minoritário, em relação ao corpo legislativo formado de numerosos membros, dispõe de liderança, comando e condução da orientação política geral.Observe-se finalmente que um controle dos Poderes do Estado, por um órgãodistinto e autônomo de cada um deles, é exigência para a preservação da democracia e manutenção da própria liberdade individual. Por isso mesmo é que Loewenstein formulou uma divisão tripartite das funções do Estado, que denomina de policy determination, policy execution (correspondentes às funções de governo e administrativa) e policy control, que, para ele, constitui o ponto principal do regime constitucional.

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Capítulo 5ESTADO E DIREITO Sumário

1 Relações entre o Estado e o Direito2 Teoria monística3 Teoria dualística4 Teoria do paralefismo5 Teoria tridimensional do Estado e do Direito6 Teoria da autolimitação do Estado

& 1 RELAÇÕES ENTRE O ESTADO E O DIREITOTema dos mais importantes nas cogitações políticas diz respeito às relações entre o Estado e o Direito.Para alguns autores, Estado e Direito se confundem; para outros, são realidade autônomas e para outros tantos, embora distintas, são realidades necessariamenteinterdependentes.

A questão principal referente às relações entre o Estado e o Direito reside emjustificar a submissão do Estado ao Direito, à justiça ou a um conjunto de normas, tendo em vista, sobretudo, a circunstância de que o Direito Positivo é elaborado pelo Estado, força e ordem de coação.Assim, a sujeição do Estado ao Direito se daria, ou em virtude da pré-existênciade normas de Direito Natural, ditadas pela reta razão, ou pela autolimitação do próprio Estado, que voluntariamente passaria a se submeter ao Direito.

& 2 TEORIA MONÍSTICAPara os monistas (Hobbes, Hegel, John Austin, Jellinek e Kelsen), Estado eDireito constituem uma só realidade. O Estado é a única fonte de direito, pois que somente ele detém a força da coação. E, segundo expressa Ihering, não havendo norma jurídica sem coação, o Direito emana exclusivamente do Estado, que com ele se confunde.A teoria monística alcançou sua maior expressão em Kelsen (1), que procurou depurar da noção de Direito todos os elementos a ele estranhos, como os filosóficos, sociológicos ou metajurídicos. Para o normativismo kelseniano,nem o Direito é anterior ao Estado nem o Estado é anterior ao Direito. O Estado é a totalidade da ordem jurídica, a personificação do Direito Positivo.Não há, desta maneira, Direito Natural nem justiça transcedente ao Estado. ODireito é apenas positivo.

(1) KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1962.101

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& 3 TEORIA DUALÍSTICAPara esta teoria, Estado e Direito são duas realidades distintas, independentese inconfundíveis.O Estado não constitui a única fonte do direito, que pode emanar também do Direito Natural, das normas de direito costumeiro, entre outras fontes.O direito criado pelo Estado é apenas o Direito Positivo, que dá juridicidade àsregras constantes da consciência social, transformando-as em normas escritas. ODireito manifesta-se, assim, como um fato social em contínua transformação.A teoria dualística iniciou-se com Gierke e Gurvitch, alcançando sua maior expressão em Léon Duguit, que defendeu a pluralidade das fontes de direito e mostrou a origem das normas jurídicas no corpo social. Também Santi Romano doutrinou sobre o tema.Em síntese, o dualismo admite a tese de que além do Direito Positivo criado pelo Estado existem outras fontes de produção jurídica não estatais, de onde decorreuma pluralidade de ordenamentos jurídicos. Os grupos têm, pois, aptidão para elaborar o seu direito independente do Estado.

& 4 TEORIA DO PARALELISMOA teoria do paralelismo aceita a idéia de que Estado e Direito são realidadesdistintas. Entretanto, embora distintas, são realidades interdependentes.O maior expoente desta teoria é Giorgio Del Vecchio, para quem há uma graduação da positividade jurídica, ou seja, embora ocorram vários centros de produção jurídica, sobre todos eles prepondera o Estado como centro de irradiação dapositividade, pois o ordenamento jurídico do Estado é que representa aquela quese afirma como verdadeiramente positiva, por se conformar com a vontade socialpredominante.

& 5 TEORIA TRIDIMENSIONAL DO ESTADO E DO DIREITOFormulada por Miguel Reale, a teoria tridimensional considera o Estado nãoapenas como sistema de normas ou como fenômeno exclusivamente sociológico,mas como "unidade integrante de seus três momentos ou valências", isto é, fato,

valor e norma, apresentado-se então como realidade cultural tridimensional. Emtodos Estados há sempre esses três elementos "conjugados ou co-implicados, nenhum deles podendo ser compreendido sem os outros dois:a) o fato de existir uma relação permanente de Poder, com uma discriminaçãoentre governantes e governados;102

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOb) um valor ou um complexo de valores, em virtude do qual o poder se exerce;c) um complexo de normas que expressa a mediação do Poder na atualizaçãodos valores de convivência." (2)

& 6 TEORIA DA AUTOLIMITAÇÃO DO ESTADOOs que não aceitam a concepção da limitação do Estado pelo Direito Naturalou pela Justiça procuram determinar uma forma de limitação jurídica estatal, queconsiste na autolimitação pelo Direito.O Estado, assim, por sua própria vontade, sem nenhuma transcendência no Direito Natural, elabora sua ordem jurídica que o limita. O Estado não pode estarobrigado a nada, senão em virtude de sua própria vontade (Jellinek). É da essência do poder soberano determinar, por si só, por sua única vontade, as regras jurídicas que irão limitar o poder do Estado. O direito que vincula ou limita o Estado não é transcendente, mas por ele mesmo criado. O Estado não encontra nenhuma limitação fora de si mesmo. Inexiste, assim, qualquer instância objetiva fora do Estado.

2 REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado, P. 368.103

Sumário1 A dificuidade terminológica2 Típologia dos regimes políticos3 Democracia - Fundamentos - Condições da democracia4 Sistemas de governo - Considerações gerais1 A DIFICULDADE TERMINOLÓGICAO estudo dos regimes políticos e dos sistemas de governo encontra préviadificuldade na terminologia. É que neste domínio grassa notável confusãoterminológica, de modo a impossibilitar uma unidade de conteúdo relativamente àsexpressões de que estamos cuidando.Além disso, ao se analisar os regimes políticos e os sistemas de governo, é funda-mental conhecer e distinguir formas de Estado e de governo, apesar de serem, paraalguns poucos autores, palavras que expressam a mesma realidade. Lembre-se ainda daIexistência de autores que identificam regimes políticos com formas de governo.Assim, a dificuldade terminológica da matéria em exame reflete-se na própriaformulação de uma tipologia dos regimes políticos.'O termo regime, na expressão de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, se refere `sempre à realidade. "Toma em consideração todas, e tão-somente as instituiçõesque pesam na estruturação e no exercício do poder. Opõe-se o termo regime,portanto, a sistema. Este inspira, ou o mais das vezes, traduz, abstratamente, umnregime. É, na verdade, o sistema político um conjunto de princípios como deve serestruturado o poder e, em conseqüência, exercido. Por essa razão, o sistema se jJ .�vincula à ideologia, na medida em que desta recebe a justificação dos princípios"zque enuncia.Pondera o Prof. Raul Machado Norta que "o regime político compreende

,abrangentemente, o estudo do mecanismo governamental e o da estrutura social epolítica do grupo humano. ',A classificação tradicional das formas de governo, não levando em considera- ição aquela correlação, trata o assunto dentro de perspectiva universal e intemporal,como se os dados da classificação fossem invariáveis e permanentes."3Nesta linha de raciocínio, Marcelo Caetano elucida que o modo como em cadasociedade política se estrutura e exerce o poder político (forma política) pode serconcebido por duas maneiras:1 A propósiro do rema, consulre-se: dARACf 10, José Alfredo de Oliveira. Regimes políticos, 1977.2 FERREIRA FILHO, Manoel GonÇalves. Enciclopédia Saraiva do direito. Verbere: regime polícico, p. 242 244.3 HOR'1'A, Raul Machado. Regime polírico e a doutrina das fonnas de governo. Revista Brasileira de EstudosPolíticos 3/49.107KILDARE GONÇALVES CARVALHOa) ou atendendo apenas à titularidade e estruturação do poder político, demolde a determinar quem é considerado titular dele e quais os órgãos estabelecidospara o seu exercício, o que caracteriza o sistema degoverno;b) ou considerando as concepções fundamentais das relações entre o indiví-duo e a sociedade política, cuja ideologia o político tem por missão verter na ordemjurídica, o que constitui o regime político.4Maurice Duverger considera, no entanto, sistema político o que se definiucomo regime político e denomina de regime político o sistema de governo acimareferido. Para ele, no sistema político se insere o regime de governo. Abrange, assim,o sistema de governo as instituições políticas, as estruturas econômico-sociais, aideologia e o sistema de valores, o contexto cultural e as tradições históricas.5Forma de Estado diz respeito à estrutura básica do Estado, sua organizaçàointerna, vale dizer, o modo como está repartido o poder político, São formas deEstado: a unitária e a composta.Forma de governo, segundo Biscaretti di Ruffia, refere-se à posição recíprocaem que se encontram os diversos órgãos constitucionais do Estado, distinguindo,assim, de forma de Estado que considera as relações recíprocas dos elementosconstitutivos do Estado.6Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, forma de governo "é a definição abstra-ta de um modo de atribuição do poder". Compreende a monarquia, a aristocracia, e arepública ou democracia. Há formas legítimas e ilegítimas de governo.'Aristóteles distingue formas legítimas e ilegítimas, segundo atendam ao inte-resse geral ou particular.Baseia-se Aristóteles (A política, Livro III) no número de pessoas, a quem seatribui o poder, para tipificar as formas legítimas de governo em monarquia (gover-no de um só em proveito de todos), aristocracia (governo da minoria - dos maiscapazes - em proveito geral) e a república ou democracia (governo da maioria em

benefício de todos).As formas degeneradas de governo são: a tirania (governo de um só, mas embenefício do próprio tirano); oligarquia (governo da minoria, dos mais ricos, embenefícios próprio) e demagogia (governo da maioria em benefício dos pobres).Maquiavel (O ríncipe) distingue monarquia ou principado de república, com�base em que:a) a monarquia supõe que o poder soberano seja exercido por um titular, en-quanto que a república supõe o exercício daquele poder por um colégio de indivíduos;4 CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v. 1, p. 409-410.5 DUVERGER Maurice. Instituciones políticasy derecho constitucional, p. 29-36.6 RUFFIA, Paolo Biscaretti di: Derecho constitucional, p. 223.7 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso dedireito constitucional, p. 65.108DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOb) a monarquia consiste no exercício do poder soberano por um indivíduo,por direito próprio, resultante de investidura derivada, de alienação inicial pela cole-tividade, ou de apropriação do poder pela violência; a república corresponde ao regi-me em que a soberania pertence ao povo ou à nação, e é exercida em nome e pordelegação da coletividade, mediante titulares eleitos;c) na monarquia, o Chefe de Estado é hereditário; na república não há Chefede Estado ou pelo menos a chefe de Estado não é hereditário - critério mais aceitopela doutrina contemporânea.O fato, no entanto, de o Chefe de Estado ser ou não hereditário constituiaspecto de menor importância no funcionamenro dos regimes políticos contemporâ-neos que refletem a inspiração filosófica do poder político de um Estado.Vale aqui lembrar a posição de Bidart Campos, que entende a democraciacomo forcna de Estado, e não como forma de governo. Argumenta que a democraciaé uma maneira de ser do Estado, um estilo político do Estado em seu contato com oshomens, e pode realizar-se em qualquer forma de governo, compatível que é com amonarquia, a república, o sistema parlamentar, etc.a Na mesma linha de raciocíniode Posada, Bidart Campos conceitua a forma de Estado como o modo de funciona-mento do Estado, que se concretiza numa organização e numa estrutura.Assim, segundo o poder estatal se exerça em relação à base física, o Estadopode ser unitário e composto. Mas, segundo o poder estatal se exerça em relação ao '.i;elemento humano, a forma de Estado pode ser democrática, autoritária e totalitária.A forma de Estado, portanto, toma em consideração a totalidade dos elementos do,aEstado - território, povo e poder político -, e a forma de governo determina apenas aestrutura deste último.9ia2 TIPOLOGIA DOS REGIMES POLÍTICOSOs regimes políticos podem classificar-se em regimes liberais e regimes totalitários.Esta classificação considera, como se viu, a ocorrência de três elementos: arelação do Estado com as concepções gerais da vida, os interesses que nas relaçõessociais são julgados predominantes e o grau de intervenção do Estado na conforma-ção da vida coletiva.l°Nos regimes liberais prevalece uma concepção personalista entre o indivíduoe o Estado. O poder político subordina-se ao respeito dos direitos fundamentais,segundo o princípio da liberdade.8 CAMpOS, German Jose l3idart. Doctrina del Estado democrático, p. 206-207.9 CAMPOS, German Jose I3idart. Derecho polltico, p. 373.10 CAETANO, Marcelo. Op. cit., p. 431.109KILDARE GONÇALVES CARVALHOO liberalismo é visto então como o regime que preconiza a cnnformação da

ordem política com o reconhecimento da liberdade política e a liberdade civil de umpovo. Esta liberdade constitui seus valores básicos, os eixos em torno dos quais semodela o programa liberal do Estado e da sociedade, ao qual qualqtzer outro valordeve articular-se ou subordinar-se.Nem sempre, no entanto, a idéia de democracia como sistema de governo(atribui a soberania ao povo e estabelece o governo como representativo do povo)conforma-se com o liberalismo, apesar de, conceitualmente, a democracia pressupora liberdade política.É que, logicamente, o liberalismo não está obrigado a ser democrático, já que,inclusive, pode o liberalismo ser assegurado pelos sistemas monárquicos e aristocrá-ticos. Algumas vezes tem-se visto também a democracia opor-se ao liberalismo, quese distancia das condições reais de existência do povo: neste caso as liberdades po-dem ser ilusórias, precárias, impraticáveis e inúteis.A propósito, acentua Norberto Bobbio:"Esquematicamente, a relação entre liberalismo e democracia pode ser re-

presentada segundo estas três combinações: a) liberalismo e democraciasão compatíveis e, portanto, componíveis, no sentido de qüe pode existirum Estado liberal e democrático sem, porém, que se possa excluir um Esta-do liberal não-democrárico e um Estado democrático não-liberal (o primei-ro é o dos liberais conservadores, o segundo o dos democratas radicais); b)liberalismo e democracia são antitéticos, no sentido de que a democracialevada às suas extremas consequências termina por destruir o Estado liberal(como sustentam os liberais conservadores) ou pode se realizar plenamenteapenas num Estado social que tenha abandonado o ideal do Estado míni-mo (como sustentam os democratas radicais); c) liberalisIno e democraciaestão ligados necessariamente um ao outro, no sentido de que apenas ademocracia está em condições de realizar plenamente os ideais liberais eapenas o Estado liberal pode ser a condição de realização da democracia.""No regime político totalitário prevalece uma concepção transpersonalistadas relações entre o indivíduo e o Estado. Os direitos fundamentais do indivíduosubordinam-se ao Estado, segundo o princípio da autoridade.Entre estes dois regimes, há o regime autoritário, que admite um limitadopluralismo político, em que o governante ou o grupo dominante exerce o poderdentro de "limites mal definidos, embora definidos, sem uma ideologia elaboradasem extensa ou intensa mobilidade política."'�11 BOBBIO, Norberto. Liberalismo edemocracia, p. S3-S4.12 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., loc. cit.11OI IRFITÍI í flNCTITI If Ill lel rmr mrn� � � ��Maurice Duverger, a propósito da classificação dos regimes políticos, depoisde distinguir regime político em sentido amplo e regime político em sentido estrito,diz que todo regime político constitui um conjunto de respostas dadas a cada umadas questões formuladas pela existência e organização dos órgãos de governo nointerior de um grupo social. Como são escolhidos? Qual é a estrutura de cada umdeles? Como se distribuem entre eles as funções governamentais? Existe um limitepara seus poderes em relação aos governados?A partir dessas indagações, Duverger oferece a seguinte classificação dos regi-mes políticos:- regimes democráticos: 1. democracia direta; 2. democracia representativa;- regimes autocráticos: l. conquista do poder: revolução, golpe de Estado,pronunciamento; 2. herança; 3. cooptação; 4. sorteio;- regimes mistos ou em transição: 1. por justaposição: a) de um executivoautocrático; b) no interior de um parlamento bicameral, uma câmara eleita e outradesignada por processo autocrático; c) de elementos democráticos e autocráticosdentro de uma mesma assembléia; 2. por combinação: sufrágio de ratificação; 3. porfusão: sufrágio de representação.'3Georges Burdeau entende que o regime político é "um conjunto de regras,processos e práticas, segundo o qual, em determinado aís os homens são governa-dos." Dizendo que os regimes políticos não podem ser studados apenas sob o pontode vista estático de exercício do poder, mas deve o estudo ser completado pelas forçascriadoras do poder, variáveis de país para país, nele compreendendo, pois, o estudodo mecanismo governamental e o da estrutura social e política do grupo humano,propõe a seguinte classificação dos regimes políticos:- regimes democráticos: 1. democracia governada; 2. democracia governante;a) tipo ocidental; b) tipo oriental;- regimes autoritários: 1. cesarismo empírico; 2. ditadura ideológica.A democracia governada, para Burdeau, é a nascida das concepções do séculoXVIII, dirigida para as liberdades individuais. Já a democracia governante resulta deum momento histórico e socioeconômico (século XX). Distingue-se em dois tipos

ideológicos: o ocidental, herdeiro da democracia governada, e que, ao lado da limita-ção do poder pelas liberdades e garantias individuais, compreende uma pluralidadede opiniões através dos partidos políticos, e o tipo oriental, representativo da Revolu-ção Russa, cuja base é a liberdade e igualdade econômicas.'413 DWERGER, Maurice. Ges regimes politiques, 1948.14 BURDEAU, Georges. Traité de science politique, r. 5.awJ111KILDARE GONÇALVES CARVALHOMencione-se ainda Jimenez de Parga, para quem o regime político é a soluçãoque se dá, de fato, aos problemas políticos de um povo, podendo o regime coincidircom o sistema de soluções estabelecido pela Constituição, ou valorizar-se, comosolução política, com as normas jurídicas ou com critérios morais. Esclarece ainda

Jimenez de Parga que qualquer classificação dos regimes políticos tem apenas umavalidade temporal, circunscrita a um momento histórico concreto. Depois de estudaros regímes políticos clássicos, examina as tipologias contemporâneas, propondo 0seguinte esquema na parte especial de seu livro:1. democracias: a) regimes democráticos com tradição democrática; b) regimesdemocráticos sem imediata tradição democrática;2. monocracias marxistas;3. mundo hispano-luso-americano;4. países recentemente descolonizados.''3 DEMOCRACIA - FUNDAMENTOS - CONDIÇÕES DA DEMOCRACIAComo se verificou acima, a democracia é concebida sobretudo como um regi-me político, pois, sendo o governo do povo, pelo povo e para o povo, que o exercedireta e indiretamente, expressa um estilo de vida política e se converte numa filoso-fia de vida que se institucionaliza politicamente no Estado, como forma de convivên-cia social. Como lembra Bidart Campos, na expressão de John Dewey, "democracia émais que uma forma de governo; é primariamente um modo de viver associados, deconjunta experiência comunicada", ou na palavra de William Kerby:"A democracia é primariamente social, moral e espiritual e secundariamen-te política. É uma filosofia de vida, tanto como uma teoria de governo. Éinspirada por um duplo conceito do indivíduo, da dignidade de sua pessoa,da santidade de seus direitos, da exigência de, suas potencialidades em dire-ção a um desenvolvimento normal."Para Zorrilla de San Martin, a democracia não é uma forma ou acidente, umfenômeno, mas algo assim como uma substância, uma forma substancial, melhordizendo, um espírito que, unido ao corpo social, o anima e o especifica. A democracianão é outra coisa que o respeito absoluto à pessoa humana, com todos os seusatributos essenciais: destino próprio inalienável, liberdade para realizá-lo, dignidade,igualdade perante a justiça e a lei.'615 PARGA Manuel Jimenez de. Los regímenes políticos contemporaneos 1974.16 CAMPOS, German Jose Bidart. Doctrina del Estado democrático, p. 203-204.112DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA democracia, segundo esclarece Robert A. Dahl, para que seja alcançada evivenciada, acha-se relacionada com a existência dos elementos seguintes:a) liberdade para constituir e integrar-se em organizações;b) liberdade de expressão;c) direito de voto;d) acesso a cargos públicos;e) possibilidade de os líderes políticos competirem através da votação; fontes alternativas de informação;�g) eleições livres e isentas;h) existência de instituições capazes de viabilizar a política do governo e legiti-madas pelo voto ou outras manifestações da vontade popular.A democracia expressa valores, que são: a maioria, a igualdade e a liberdade.A maioria democrática assenta-se no fato de que o povo é representado nopoder pelos eleitos. Questiona-se, todavia, o conceito de maioria na composiçãodas Casas Legislativas, pois os legisladores, eleitos, muitas vezes representam inte-resses setoriais, oligárquicos e de grupos, e não o interesse geral próprio da maioriapopular.Além do mais, observa-se que, no regime democrático, ocorre o fenômeno da ;concentração do poder nas elites ou grupos dirigentes, verdadeiras oligarquias: ' i..��"quem diz organização, diz oligarquia" (Robert Michels).'Também outros dois famosos escritores, os italianos Mosca e Pareto, elabora-ram teorias que partem do reconhecimento da ocorrência de uma elite dirigente

responsável por um sistema de idéias que serve de base às instituições políticas e que J '.,�exprime o ideal social correspondente."De outra parte, pondere-se que "a livre deliberação da maioria não é suficientepara determinar a natureza da democracia."18A essência da democracia deve resultar de um compromisso constante entremalorla e mmorla.A igualdade e a liberdade são os outros valores da democracia.A propósito, são palavras de Pinto Ferreira:"Evidentemente, se a igualdade é da essência da democracia, deve ser umaigualdade substancial, realizada, não só formalmente no campo jurídico,porém estendendo a sua amplitude às demais dimensões da vida sociocul-tural, inclusive na zona vital da economia."'917 MOSCA, Gaetano, BOUTHONE, Gaston. História das doutrinas políticas, 1980.18 PINTO FERREIRA, Luiz. Prinapiosgerais do direito canstitucional maderna, t. 1, p. 143.19 PINTO FERREIRA, Luiz. Op. cit., p. 133.

113Assim, os direitos econômicos e sociais são imprescindíveis para a realizaçãodos próprios direitos individuais, e garanti-los é a tarefa de um governo democrático,já que, com isso, preserva-se a igualdade e a justiça social.A liberdade, por sua vez, deve ser entendida como liberdade positiva e liberda-de negativa. A primeira refere-se à liberdade dos antigos (gregos), ou seja, a liberdadeque leva os cidadãos a participarem da atividade política e das decisões públicas. Éconcebida como liberdade para. A segunda é a liberdade-autonomia do homem, queimpede que o poder político avance sobre os direitos individuais. É concebida comoa liberdade de. Preserva assim os direitos individuais contra o poder político.Já Pontes de Miranda afirma:"Liberdade (fundo), igualdade (fundo) e democracia (forma) são três cami-nhos distintos, precisos, claros. São como três caminhos, três dimensõespelas quais se anda: sobe-se uma; por outra, vai-se para os lados; pela tercei-ra, marcha-se para a frente, ou para trás. Não se pode por uma só linhacaminhar pelas três; nem avançar de um ponto, por uma delas, significaavançar pelas três. Cada uma existe independentemente das outras.A evolução tem de se processar nas três. Em certos momei-Itos a Grã-Bretanha realizou mais liberdade. Os Estados Unidos, mais democracia. ARússia, mais igualdade.Quem diz democracia, liberdade e maior igualdade refere-se, necessaria-mente, às três estradas. Estrada larga, subindo, é fusão das três. Mas, aindaaí, não se confundiram as dimensões, isto é, os três conceitos."ZoComo se viu, se por um lado pode-se entender que democracia, liberdade eigualdade são conceitos distintos, por outro lado, é necessário que andem juntos,porquanto não se concebe um regime democrático sem liberdade e igualdade.O grau de realização da democracia se vê, na prática, limitado:a) pelas condições sociais, econômicas e culturais de existência;b) pelas características do Estado existente;c) pelos modos efetivos do regime de governo e de seu funcionamento;d) pelas ações e estilos dos governantes.zlÉ preciso não se esquecer, todavia, de que basta a existência da sociedade paraque a democracia exista.Os condicionamentos da democracia, antes apontados, devem ser considera-dos então como objetivos do regime democrático, a serem no dia-a-dia superadospela ação popular.20 PONTES DE MIRANDA. Democracia, liberdade, igualdade: os rrés caminhos, p. 183.21 STRASSER, Carlos. Teoría del Estado, p. 39.114

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPara se realizar como tal, a democracia reclama a idéia de participação.Sustenta, a propósito, Diogo de Figueiredo Moreira Neto que a participação

democrática "tem um duplo condicionamente, sem o qual ela ou não se dá ou sedesfigura perigosamente: um, subjetivo e outro, objetivo. O condicionamento subjetivo ,é a motiva ão para participar. É um condicionante da ordem psicológica e social.�

Se o homem não se interessa pela política (atitude apática), se quer dela partici-par (atitude abúlica) ou se não se sente com condi ões para j oder fazê-lo (atitude acrática),� �a democracia fica irremediavelmente sacrificada. De nada valem estarem admitidos eabertos os canais institucionais de participação, pois, nesses casos, como tão bemadvertiu Harold D. Lasswell, `a falta de interesse no poder abandona a sociedade aosexploradores egocêntricos da fragilidade humana'.

O condicionamento objetivo é a admissão à participação. Tem natureza políti-ca e jurídica.

Sem as instituições que admitam a participação, o interesse pela política não Ii

alcançará o Estado, terá pouca ou nenhuma influência. Se isso ocorrer, fechar-se-áum círculo vicioso a partir da constatação da inutilidade de qualquer esforço i,participativo, somente rompido por grandes movimentos reivindicatórios altamenteconcentrados de poder difuso."Zz ''

Outro aspecto a ser exaIninado quando se pensa e se fala em democracia dizrespeito às suas qualificações. São mencionadas a democracia liberal, a social, a cris-

, i�tã, a social democracia e o socialismo democrático.

Na realidade, tais qualificações não se justificam, por ser a democracia o regi-me voltado para a realização do homem, origem e fim de todo o poder. Assim, o queas qualificações da democracia objetivam é a afirmação mais aberta ou mais discretado poder do Estado.

3.1 Tipos de democraciaConforme se apresenta a forma com que o povo participa do poder político,são três os tipos de democracia: direta, indireta e semidireta.

A democracia direta supõe o exercício do poder político pelo povo, reunidoem assembléia plenária da coletividade.É impraticável esta modalidade de democracia, pela impossibilidade materialde sua realização. Ela existe apenas em alguns cantões da Suíça, com reduzida popu-lação: Glaris, Unterwalden e Appenzell.A democracia indireta ou representativa é aquela em que o povo se governapor meio de representantes eleitos por ele, que tomam em seu nome e no seu interes-22 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participaFãopolítica, p. 11.115KILDARE GONÇALVES CARVALHOse as decisões políticas. Envolve, portanto, a democracia indireta o instituto da repre-sentação, de que cuidaremos adiante.A democracia semidireta caracteriza-sé pela coexistência de mecanismos dademocracia representativa (indireta) com outros da democracia direta: referendo,plebiscito, iniciativa popular, recall, etc. (ver adiante).3.1.1 Democracia representativaA democracia indireta, como vimos, é representativa. O exame da representa-ção política, como instituto do Direito Constitucional, é imprescindível para o co-nhecimento da democracia.A representação política constitui tema dos mais difíceis em Direito Cons-titucional.Para a sociologia, representação significa uma forma de relação social quecomunica a vários indivíduos o resultado de alguns.No Direito Constitucional, a representação política consiste numa relação dedireito público pela qual cerros agentes recebem de uma parcela da sociedade (corpoeleitoral) poderes específicos com as correspondentes responsabilidades. Assim, ofundamento jurídico da representação política é o procedimento eleitoral que vemdef nido na Constituição e nas leis.A democracia representativa envolve, assim, um conjunto de mecanismos eprocedimentos constitucionais para se efetivar, tais como eleições, sistema eleitoral,partidos políticos.A transferência do poder representativo que os eleitores propiciam aos eleitosconfigura o chamado mandato representativo: quem representa o quê, como e paraque finalidade evidencia a delicada questão dos fundamentos e da natureza da repre-sentação política.O mandato político representativo surgiu da impossibilidade material de fazerfuncionar a democracia integral em países de elevada população. Mas há uma outrarazâo que pode ser invocada em seu favor: onde as questões políticas atingem umconsiderável grau de complexidade, o corpo eleitoral de cidadãos não disporia detempo suficiente nem da capacidade necessária para o exercício, por si próprio, dopoder político. Assim, são designadas pessoas que, pela sua formação, estudos, cultu-ra e experiência, se acham aptas a tomar decisões em nome da coletividade. Seriaentão um governo dos mais capazes que a massa popular.z3Neste aspecto, a democracia representativa faz parte de uma visão elitista dasociedade.Com relação à natureza jurídica, o mandato político-representativo não seconfunde com o direito privado nem com o chamado mandato imperativo.23 LAFERRIÈRE, Julien. anuel dedroit constitutionnel, p. 390.��116DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOCaracteriza-se o mandato de direito privado pela outorga, do outorgante ououtorgado, de poderes revogáveis a qualquer tempo, para representá-lo em negóciojurídico, praticando atos em nome do outorgante ou mandante, nos limites do ins-trumento do mandato. Kesponde ainda o outorgado ou mandatário pelo excesso demandato. O mandato cria, assim, entre as partes uma relação jurídica mediante a

qual se explica que os atos do mandatário produzem os mesmos efeitos como se elesemanassem diretamente do mandante.Inspirado no mandato de direito privado, nasceu o mandato imperativo, peloqual os seus titulares se vinculavam às instruções do mandante e ficavam obrigados aobter dele novas instruções para a prática de atos não constantes do mandato. Haviatambém a possibilidade de revogação da representação. O mandato imperativo ocor-reu nos Estados Gerais da monarquia francesa.Já o mandato representativo não se identifica com o mandato de Direito Priva-do. Nele, o mandatário não está adstrito às determinações do mandante, não podeser destituído; o mandato não comporta revogação, e o mandatário não está sujeito aprestação de contas, salvo as que sua consciência determinar. O mandatário não ageem nome dos mandantes, dos que nele votaram, mas em nome do povo ou da nação.Diz-se então que o mandato representativo é geral, livre e irrevogável, salvo nos casosprevistos na Constituição, como de perda do mandato (arts. 55 e 56 da Constituiçãobrasileira), bem como nas hipóteses em que excepcionalmente é admitida a revoga-

ção, como a do recall no direito norte-americano.O mandato representativo não tem, contudo, conseguido alcançar a identida-de entre o povo e o seu representante.É que a fragmentação da vontade geral do povo, em vontades parciais, resul-tante da divisão do eleitorado, do pluralismo político, dos grupos e forças de pressão,vem concorrendo para a transformação do sistema representativo, deixando então osParlamentos de atuarem como órgãos de representação de todo o povo ou de toda anação, para expressar interesses parciais, pela redução da autonomia de parlamenta-res que passam a se vincular aos setores que influíram em sua eleição.Outro fator que influencia na formulação da representação política é a presen-ça, no quadro das instituições democráticas, dos partidos políticos, eis que a designa-ção dos mandatários fica vinculada ao fenômeno partidário.Em virtude das funções básicas que cabe aos partidos políticos exercerem,quais sejam, o estabelecimento de um programa de governo e a seleção de pessoasque se disponham a executar esse programa com a necessária eficiência, escreveManoel Gonçalves Ferreira Filho:"Desempenhando os partidos adequadamente estas duas funções, as elei-ções perderiam o caráter de mera escolha de homens para governar, ga-nhando a dimensão de seleção entre programas de governo. Disso decorrea'â ,.'",117que, em última análise, o titular do mandato é o partido, que o exerce pornmeio de homens que não passam de seus órgãos de expressão. 243.1.2 Democracia participativaA democracia participativa implica o exercício direto e pessoal da cidadanianos atos de governo.No estudo da democracia participativa vamos tratar de alguns institutos quecompõem a democracia semidireta, por constituírem reminiscência da democraciadireta e que são: o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular e o recall.O plebiscito é uma forma de consulta popular em que o cidadão é chamado amanifestar-se sobre um fato político ou institucional, quase sempre na sentido de dar-lhe ou não valoração jurídica. O plebiscito verifica-se antes da decisão a ser tomada.A Constituição Federal de 1988 prevê o plebiscito em cinco artigos (art. 14, I;art. 18, § 3°; art. 18, § 4°; art. 49, XV; art. 2° do ADCT).O referendo consiste também numa consulta popular em que o cidadão tem odireito de manifestar-se sobre decisões de órgãos legislativos, objetivando mantê-las oudesconstituí-las. Surgiu na Suíça do século XVI, existindo na França desde a Constitui-ção de 1789, e, na América Latina, foi o Uruguai o país que mais a empregou.O referendo é, normalmente, realizado depois da decisão legislativa. Fala-se,todavia, em referendo consultivo, a ser tomado antes da edição do ato legislativo,caso em que tem o valor de plebiscito.A iniciativa popular é um direito de participação que se atribui aos cidadâosde, mediante qr orum definido, propor uma medida legislativa.�São modalidades de iniciativa popular, segundo Biscaretti di Ruffia: constitu-cional e legislativa; simples (sem conteúdo específico); formulada (com texto elabora-do pelos que o subscrevem).Na Constituição Federal de 1988 (art. 61, 2°), a iniciativa popular é�legislativa (porque não foi prevista para matéria constitucional) e formulada (deveser apresentada na forma de projeto de lei que deve ser subscrito por, no mínimo, 1%do eleitorado nacional, distribuído em, pelo menos, cinco Estados com não menosde 0,3% de eleitores em cada um deles).

A iniciativa popular estende-se aos Estados (art. 27, § 4°).No âmbito dos Municípios, a iniciativa popular é específica (art. 29, XIII) e semanifesta mediante a apresentação, à Câmara de Vereadores, de projeto de lei subs-crito por, no mínimo, 5% do eleitorado municipal.O recall é um direito político pelo qual o cidadão pode revogar o mandatooutorgado a representantes eleitos.24 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 79.118DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO recall exige quorum mínimo para ser exercido, de forma a provocar eleiçõesespeciais, nas quais se decidirá, pela revogação, ou não, do mandato político.Pode ainda o recall ser utilizado para a revogação de toda uma Casa Legislativa,como ocorre na Suíça. Mencione-se também o recall judicial, que tanto pode incidirsobre o magistrado como sobre certas sentenças, como é previsto no Estado doColorado.

O recall, originário dos Estados Unidos, existe na Suíça e na Argentina, nãotendo sido, contudo, adotado ainda no Brasil.3.2 A opinião públicaA detnocracia pressupõe que a vontade popular se manifeste nas suas diversasopiniões, de modo que possa predominar a vontade da maioria, preservando-se, con- IItudo, a manifestação das minorias.Não é fácil a conceituação de opinião pública, chegando-se até mesmo à consi-deração de que ela não é algo a ser definido, mas apenas descrito e estudado.Nada obstante, alguns publicistas a definiram, como Jellinek, para quem elaconsiste no "ponto de vista da sociedade sobre assuntos de natureza política e social ,ou Marcelo Caetano, que, após conceituá-la como "um juízo formado a respeito decerta idéia, de certa pessoa ou de certo fato", esclarece que ela se torna pública "quan- .rdo compartilhada por grande número de componentes de um grupo social de tal.i�modo que qualquer deles, ao exprimir um juízo, tenha grande probabilidade de" 25 p p '. c, !� �encontrar concordância entre os seus concidadãos . A o inião ública sintetiza, ",pois, a opinião dos grupos sociais sobre pontos de coincidência unitários e gerais.Identificam-se três modalidades de opinião: a pública, a estatal (considerada 'como a que se acha institucionalizada no Estado, sendo, portanto, opinião oficial,imposta, sem a espontaneidade da opinião pública) e a privada (considerada como aopinião interna abrigada no fundo da consciência).Quanto à formação da opinião pílblica, da mesma maneira que a educação ouo meio social e profissional, por exemplo, em que se vive, concorre para influenciar asatitudes básicas do homem, não se pode desconhecer que a opinião pública não sereveste de cáráter isolado e não se forma espontaneamente, mas se acha relacionadacom as suas fontes geradoras consubstanciadas nos meios de comunicação de massa,como a imprensa, o rádio e a televisão, além de estar condicionada, muitas vezes, porfatores emocionais a influenciar o estado de espírito das pessoas.Desempenha a opinião pública funções políticas, traduzidas em funçõesmotora, refreadora e sancionadora.2625 CAETANO, Marcelo. Op. cit., 1977, v. 1, p. 436.26 Ibidern.119KILDARE GONÇALVES CARVALHOA função motora ocorre quando reclama iniciativas ou exige reformas.A função refreadora se veri6ca quando fiscaliza a vida pública, mediante co-mentários dos atos políticos ou administrativos, fazendo com que os governantes eservidores passem a ponderar sobre os efeitos que seus atos possam ter na opiniãopública, esclarecendo-a acerca da legitimidade das providências adotadas.A função sancionadora caracteriza-se com a aprovação ou condenação, pelaopinião pública, de atitudes, decisões e autoridades, sendo, portanto, a mais gravedas suas funções políticas.Considere-se, afinal, que a opinião pública, para se expressar, já que sua mani-festação se faz mediante a publicidade e a propaganda, depende: a) da liberdade deinformação, vale dizer, do livre acesso das pessoas e dos órgãos divulgadores deopinião, como os jornais, o rádio e a televisão, às fontes de informação (a liberdadede informação e o sigilo da fonte, quando necessário ao exercW o profissional,acham-se previstos no art. 5°, XN, da Constituição brasileira); b) da liberdade deexpressão, em forma ampla, mesmo porque a liberdade de imprensa não esgota osmeios de expressão e de circulação de opiniões, que podem vir consubstanciadosainda nos partidos políticos, nas reuniões públicas e até no silêncio.4 SISTEMAS DE GOVERNO - CONSIDERAÇÕES GERAIS

Examinamos neste tópico o parlamentarismo e o presidencialismo como siste-mas de governo, embora sejam também tidos como formas de governo (Biscaretti diRuffia) e como regimes de governo (Duverger). �O sistema de governo revela "a forma como se estruturam os órgãos do poderpolítico soberano do Estado."z'Nesta concepção, o sistema de governo trata da organização dos Poderes Exe-cutivo e Legislativo e das relações entre um e outro Poder.O conceito de sistema de governo, embora mais formal do que substancial,não pode deixar, todavia, de refletir um conteúdo relacionado com o do regimepolítico correspondente, revelando-se, então, de feição democrática ou ditatorial.Pode-se ainda classificar os sistemas de governo tomando por base o princípioda separaç o de Poderes. Ter-se-á então o sistema de confusão de Poderes (ditadura),�o de colaboração de Poderes (parlamentarismo) e o de separação de Poderes (presi-dencialismo).4.1 Parlamentarismo

O parlamentarismo decorre de um processo histórico ligado à Inglaterra, de queresultaram as características e o perfil jurídico-constitucional deste sistema de governo.27 SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito constitucional, P. 323.120DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO sistema parlamentar é "o produto de afirmação do órgão da representaçãopopular, o Parlamento, na fase do declínio do poder monárquico. A curva ascendentedo poder parlamentar coincide com a curva declinante do poder monárquico."Z�A análise da evolução histórica do parlamentarismo, ainda que sucinta, éesclarecedora para a fixação de seus elementos.O parlamentarismo nasceu na Inglaterra. Com a Revolução de 1688, o monar-ca passou a exercer funções administrativas, de defesa e de política exterior, e oParlamento cuidava da legislação e da tributação. Tal divisão de Poderes reclamavacolaboração entre o monarca e o Parlamento. Surgiu então a necessidade de escolha,pelos monarcas ingleses, de Ministros, retirados das facções preponderantes nas Câ-maras, para auxiliá-los. Com isso houve, já no século XVIII, a primeira nota doparlamentarismo: a identidade política entre o ministério e a maioria parlamentar.Com a morre da rainha Ana, assumiram o trono britânico príncipes alemãesda Casa de Hanôver, já que da sucessão hereditária foi excluído o ramo católico dosStuarts.Jorge I e Jorge II, dois dos príncipes alemães, não tinham conhecimento dosinteresses nacionais britânicos, nem falavam a língua inglesa. Por tais motivos, entre-garam a um de seus Ministros a condução geral do governo e a Presidência do .g iConselho de Estado, a cujas sessões não compareciam. Surge então a figura do Pri-meiro-Ministro. Mas ainda assim o governo era controlado pelo monarca que podia,>destituí-lo a qualquer momento.O Parlamento deu, contudo, um passo adiante. A aplicação do impeachment(procedimento de direito penal, de que decorria decisão condenatória insuscetível degraça pelo rei e de apreciação judicial) permanecia nas mãos do Parlamento. Destaforma, se o Parlamento discordava de um Ministro, forçava sua demissão ou até a de;todo o ministério, pela ameaça do impeachment. iSurgiu assim mais um traço caracterizador do parlamentarismo: a responsabi- ',~lidade política, isto é, o dever que tem o ministério de demitir-se, deixando o poder,no caso de perda de apoio da maioria parlamentar.Assinale-se, ainda, no plano histórico, a resistência à submissão ao gabineteparlamentar, tentada por Jorge,III com a nomeação de Lord North para sua Presidên-cia. Lord North, após resistência do Parlamento, foi, no entanto, em 1782 demitido,e com ele todo o seu Gabinete, marcando tal fato o nascimento do sistema parlamen-tar de governo.São elementos do parlamentarismo:a) distinção entre Chefe de Estado e Chefe de governo. O Chefe de Estadoexerce funções de representação do Estado, não lhe cabendo participar das decisões28 BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques, p. 162.121políticas. É por isso mesmo politicamente irresponsável. Sua figura é fundamentalpara a estabilidade e a unidade do Estado, especialmente em períodos de crise, emque se torna necessária a indicação de um Primeiro-Ministro, submetendo-a à apro-vação do Parlamento. O Chefe de governo exerce o Poder Executivo. Cabe-lhe estabe-lecer a orientação política geral. Apontado pelo Chefe de Estado, somente assume achefia de governo depois de obter a aprovação do Parlamento;b) responsabilidade política do Chefe de governo. O Chefe de governo é politi-camente responsável. Não tendo mandato determinado, permanece no cargo en-

quanto detiver a conEiança do Parlamento. Os meios de que se utiliza o Parlamentopara a demissão do Chefe de governo, do Conselho de Ministros ou do Gabinete, sãoa moção de censura, o voto de desconfiança, ou a perda da maioria parlamentar;c) possibilidade de dissolução do Parlamento. O Chefe de Estado dispõe dodireito de dissolução do Parlamento, ou pelo menos da Câmara eletiva, tratando-sede sistema bicameral. Com isso, o Chefe de Estado refreia os excessos do controleparlamentar exercido sobre o governo, ao submeter a eleições gerais a decisão sobreeventual conflito entre os Poderes Executivo e Legislativo. O direito de dissolução doParlamento pelo Chefe de Estado é a chave de todo o sistema parlamentar, pois énele que a responsabilidade política do governo perante o Parlamento encontra cor-respondência;d) colaboração entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Essa característi-ca é evidenciada pela circunstância de que, se por um lado, o Chefe de governo, parase manter no cargo, depende da confiança do Parlamento, por outro lado, o Parla-mento, ou pelo menos a Câmara eletiva, pode ser dissolvida pelo Chefe de Estado,

que convoca eleição.Esses traços fundamentais do parlamentarismo clássico são reveladores da contra-dição dos sistemas parlamentares nos governos republicanos, ora tendendo para a ascen-dência do Poder Legislativo, ora se inclinando para a afirmação do Poder Executivo.São diversas as formas organizatórias dos sistemas parlamentares. Mencione-se:a) o parlamentarismo dualista ou orleanista, em que, se o Gabinete, para man-ter-se, necessita do apoio parlamentar, para constituir-se depende da vontade doChefe de Estado, e o Primeiro-Ministro é responsável simultaneamente perante oChefe de Estado e o Parlamento;b) o parlamentarismo monista, onde ocorre a predominância de um órgão depoder sobre outro. Na Terceira República da França houve predominância da Assem-bléia Nacional. Na Inglaterra atual a predominância é do Primeiro-Ministro;c) o parlamentarismo misto ou intermediário, que resulta do papel mais ativoatribuído ao Presidente da República. Veio o parlamentarismo místo fortalecer asatribuições executivas e polïticas do Chefe de Estado, numa posição, portanto, inver-sa ao do parlamentarismo clássico, que surgiu para reduzir as atribuições do monar-122DIfZEITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOca. Conhecido também como neoparlamentarismo, parlamentarismo híbrido, siste-ma semiparlamentar ou semipresidencial, no parlamentarismo misto convivem re-gras típicas dos sistemas presidencial e parlamentar. Foi inaugurado com a Consti-tuição de Weimar, de 11 de agosto de 1919, ingressando ainda nas Constituições daAustria, de 1929, da França, de 1958 (que constitui, apesar das Constituições antece-dentes, o marco do neoparlamentarismo, sob a inspiração das idéias políticas deCharles De Gaulle), e nas Constituições de Portugal, de 1976, e da Espanha, de 1978,que se aproximam do sistema parlamentarista semipresidencial.Enfim, os sistemas semipresidenciais ou semiparlamentares, como assinala;Raul Machado Horta, aos quais ele denomina de regime, "retiraram o Presidente daRepública da penumbra em que exercia a magistratura de influência e a presidênciadas cerimônias nacionais, como se dava no parlamentarismo da Terceira Repúblicafrancesa, para conferir-lhe atribuições efetivas no funcionamento do regime. O Presi- ¡dente passou a personificar a unidade da nação. Projetou-se como o depositário daconfiança popular pela eleição direta. Tornou-se o árbitro que assegura o funciona-mento regular dos Poderes do Estado, o responsável por decisões extraordinárias nosperíodos de crise institucional, o titular com poder de nomear e de exonerar o Pri-meiro-Ministro, o centro da responsabilidade política, o órgão das relações interna-cionais e das mensagens diretas à nação, o deflagrador de consulta ao povo via doreferendo e do plebiscito."z9 ','i'I�É importante ainda fixar o papel que desempenham os partidos políticos no "�parlamentarismo.it ,De fato, caso coexista com o bipartidarismo, há tendência de se acentuar a esta-bilidade do governo, em razão da disciplina partidária e da direção política da maioriaparlamentar, que concorrem para a formação de um governo homogêneo, porqueconstituído, eIn princípio, por componentes do partido com maioria parlamentar.Já nos sistemas multipartidários, a inexistência de um partido político commaioria parlamentar pode gerar crises freqüentes, com a inação do governo que ficana dependência da maioria parlamentar que não controla.4.2 PresidencialismoO sistema presidencial de governo nasceu nos Estados Unidos com a Consti-tuição de 1787, na Convenção de Filadélfia.Sua formação teórica foi precedida de fato histórico, não sendo, pois, obra denenhum arranjo ou invenção teórica.

Sustenta-se que o presidencialismo é o poder monárquico na versão republicana.29 HORTA, Raul Machado. O parlamenraristno no mundo de hoje.ln: O plebiscito, p. 86.123KILDARE GONÇALVES CARVALHOÉ que, antes da independência, ou seja, durante o período colonial, o represen-tante da Casa Inglesa na América do Norte tinha poderes quase absolutos. O rei eraabsoluto. Com a independência e proclamada a República dos Estados Unidos, o quese fez foi a substituição do representante do rei por um mandatário do povo, com osmesmos poderes.O presidencialismo, ao contrário do parlamentarismo, é dernarcado por umarígida separação de Poderes, assentada na independência orgânica e na especializaçãofuncional. Por isso mesmo é que não pode o Presidente destituir o Parlamento, nemser por este destituído, se perder a sua confiança.Apontam-se como elementos do sistema presidencial de governo:a) o Chefe de Estado é simultaneamente Chefe de governo. Não existe

dualidade orgânica no Poder Executivo, pois o Presidente da República acumula asfunções de Chefe de Estado e de governo. Cabe-lhe não só a representação do Estado,como o estabelecimento da orientação política geral;b) a chef a do Poder Executivo é unipessoal. O Presidente escolhe e exonera osseus auxiliares como bem entender, pois é o responsável pela fixação das diretrizes degoverno;c) o Presidente da República é eleito por sufrágio universal. Assume, destaforma, posição de predominância no equilíbrio dos Poderes do Estado.Nos Estados Unidos, o Presidente é eleito pelo voto indirero. Mas, segundoo costume, os chamados "grandes eleitores", que formam o colégio eleitoral, es-tão vinculados a votar em determinado candidato. Assim, conhecendo-se a com-posição do colégio eleitoral, já se conhece o nome do Presidente eleito dos Esta-dos Unidos;d) o Presidente da República é eleito por um período determinado. Dispõe,assim, o Presidente de um mandato por prazo certo, findo o qual se escolhe novogovernante. No sistema constitucional norte-americano, admite-se, em razão deemenda à Constituição de 1787, um máximo de dois períodos consecutivos.A Constituição brasileira vedava expressamente a reeleição para um períodoimediaro ao do término do mandato. A reeleição do Presidente da República, enrre-tanto, foi introduzida em nosso país pela Emenda Constitucional n. 16/97;e) o Presidente da República dispõe do poder de veto suspensivo em relaçãoa projetos de lei aprovados pelo Poder Legislativo. O veto pode ser porinconstitucionalidade do projeto de lei ou por ser o mesmo contrário ao interessepúblico. Neste caso, razões políticas podem levar o Presidente a recusar sanção aprojeto de lei.Menciona-se como um dos graves defeitos do presidencialismo a exacerbaçãopersonalista da figura do Presidente.124DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICODe fato, do Presidente da República são esperadas missões acima das forçashumanas, classificadas, segundo João Camilo de Oliveira Torres, em número de dez:"chief of State, chief Executive, leader of foreign police, comander-in-chief of the armedforces, chief legislator, chief of party, voice of the people, protector of the peace,manager of prosperity e leader of the world's free nations. "3°A nação tudo espera do Presidente. Há comentário de vienense, dirigido aoPresidente de seu país, em período de exacerbação presidencial na Constituição daÁustria de 1934, que bem evidencia os poderes presidenciais: "o Presidente da Repú-blica nomeia o povo.";'Não resta dílvida então de que o fortalecimento dos mecanismos de controle,pelo Poder Legislativo, dos atos do Poder Executivo, é necessário para evitar os exces-sos da atuação presidencial.4.3 Apreciação crítica dos sistemas de governoParlamentarismo e presidencialismo tém vantagens e desvantagens.Apontam-se como vantagens do parlamentarismo a flexibilidade do sistema e . i�a alternância política, o que concorre para maior estabilidade e liberdade políticas.':; éJá o presidencialismo traz como vantagens a coerência e a rapidez na adoção ,r,., rde decisões políticas. tA principal desvantagem do parlamentarismo, em razão da dispersão do PoderExecutivo entre o Primeiro-Ministro e o Presidente, talvez seja a inoperância, pelapossibilidade de trocas freqüentes de Gabinetes, frustrando-se a realização de progra-mas políticos duradouros. Í aO presidencialismo, por sua vez, pode resultar em autoritarismo, dada a exces-siva concentração de poder nas mãos do Presidente da República.

Advirta-se, contudo, que um terço dos países parlamentaristas tiveram expe-riências de golpes militares.A adoção, por outro lado, do modelo parlamentar de governo, em países detradição presidencialista, depende de algumas condições de ordem sociológica e polí-tica, além de outras, como a ocorrência de vocação ou aptidão da classe política e dospartidos políticos para assumirem os novos papéis que lhes impõe o parlamentaris-mo. Daí a diEculdade para um Congresso presidencialista transformar-se em Parla-mento sem que surjam instabilidade políticas.Finalmente, o funcionamento do sistema parlamentar e presidencial de gover-no subordina-se a mecanismos complementares adequados a cada um deles, como 0sistema partidário, o regime eleitoral e o modo de se dividir o Poder Legislativo.30 TORRES, Joào Camilo de Oleveira. Hormonia poktica, p. 113.31 HORTA, Raul Machado. Tend ncias atuais dos regimes de governo. Revista delnforma âo� � Legislativa 9S/139.125

Capítulo 7CONSTITUIÇÃO

Sumário1 Constituição - Conceito2 Classificação das Constituições3 O constitucionalismo4 Poder constituinte5 Controle de constitucionalidade6 Classificação e eficácia das normas constitucionais7 Interpretação das normas constitucionais8 Lacunas da Constituição9 Aplicação das normas constitucionais no tempo

& 1 CONSTITUIÇÃO - CONCEITOA palavra Constituição vem do verbo latino constituere, significando: estabelecer definitivamente. Embora não apresente na sua origem a idéia de lei fundamental, o publicista Pablo Lucas Verdú adverte que a expressão latina rem publicam constituere denota idéia semelhante à divulgada nos Estados Unidos e na Europa do século XVIII, qual seja, ato de instituir um Estado, que se apóia num estatuto jurídico fundamental. (1)Interessa-nos, pois, analisar o termo Constituição não no seu sentido geral,qual seja, estrutura essencial de um ente ou de um organismo (constituição do corpo humano), mas no seu sentido político e jurídico, relacionado com a organização fundamental do Estado. José Afonso da Silva formula o seguinte conceito de Constituição:"A Constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seugoverno, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento deseus órgão e os limites de sua ação." (2)Não são, contudo, unânimes os autores ao conceituarem Constituição. Eis quealguns dão ênfase ao elemento político, outros ao jurídico, não faltando nem mesmo o componente filosófico ou valorativo na formulação da idéia.Jose Korzeniak reduz os diversos sentidos de Constituição aos seguintes conceitos: a) valorativo; b) sociológico; c) jurídico. (3)O conceito valorativo tem base ideológica ou política. Assim, para os autoresque utilizam esse critério, só há Constituição nos Estados que consagram determinados valores políticos, ideológicos ou institucionais, sendo expressivo, neste aspecto, o

(1) VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de derecho político, v. 2, p. 417.(2) SILVA José Afonso da. Curso de direito constitucional Positivo, p. 37.

(3) KORZENIAK, Jose. Derecho constitucional, p. 20.129

KILDARE GONÇALVES CARVALHOart. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada da Françaem 1789, no sentido de que "toda sociedade em que a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição".Já o conceito sociológico ou realista situa a Constituição não como conjunto de normas ou estatuto jurídico, mas como a maneira real de se combinarem os distintos fatores que compõem o Estado, sendo expressiva a concepção de Ferdinand Lassalle, para quem a Constituição é a soma dos fatores reais do poder, que podem variar segundo as épocas. Esse conceito se contrapõe ao conceito jurídico de Constituição escrita, que corresponde a uma simples "folha de papel", expressão da verdadeira Constituição, que consiste na soma dos fatores reais do poder.Do ponto de vista jurídico, a Constituição é concebida como um conjunto denormas, um estatuto onde se acham reunidas as normas de organização do Estado.Há ainda as chamadas Constituições materiais, que tratam das normas estruturadoras do Estado (forma de Estado, forma de governo, órgão do poder, limites de sua ação, dentre outras), estejam ou não tais normas no texto orgânico constitucional, sendo assim possível aparecerem em leis, decretos, usos e costumes; e as Constituições formais, que se caracterizam por encerrarem quaisquer preceitos, sejam eles materialmente constitucionais ou não, justificando-se sua inserção no texto constitucional apenas pela circunstância de requererem um processo mais difícil ou solene para sua modificação. Fala-se então que o conceito de Constituição formal se acha relacionado com o de Constituição rígida. A tendência das atuais Constituições é no sentido do alargamento do campoconstitucional, vale dizer, da expansão da sua força normativa para abranger domínios em que anteriormente o texto constitucional não penetrava (organização econômica e relações sociais).Assim, o campo constitucional não se restringe à organização do poder político e ao estabelecimento de direitos e garantias fundamentais, na concepção clássicada Constituição política, mas se expande para além dessas matérias. Tal fenômenoacarreta, inevitavelmente, a extensão normativa dos textos constitucionais, como é o caso da Constituição brasileira de 1988.

& 2 CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕESSão inúmeras as classificações das Constituições. Procuramos estabelecer algumas que se caracterizam pela sua maior abrangência, destacando-se:1. quanto à origem: Constituições democráticas e Constituições outorgadas.Aquelas resultam da vontade popular, expressa por uma Assembléia Constituinte,eleita para a elaboração da Constituição, no exercício do poder constituinte. 130

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOOutorgada é a Constituição em que não há colaboração do povo na sua elaboração: o governo a concede graciosamente. É exemplo desse tipo de Constituição a Carta de 1824, outorgada por D. Pedro I ao povo brasileiro;2. quanto à forma: Constituições costumeiras ou históricas e Constituiçõesescritas. Costumeiras ou históricas são as Constituições formadas por usos e costumes válidos como fontes de direito, como, por exemplo, as que se referem à reunião anual do Parlamento, à demissão do Gabinete, à dissolução da Câmara dos Comuns, na Inglaterra. Acentue-se, contudo, que há na Constituição inglesa normas escritas que compõem a Constituição histórica. Escritas são as Constituições cujas normas se acham expressas em um ou vários documentos escritos;3. quanto à unidade documental: Constituições orgânicas e Constituiçõesinorgânicas. As primeiras contêm escrita, num texto único, toda a matéria constitucional sistematizada, e as inorgânicas apresentam suas normas dispersas em vários documentos (Israel e Nova Zelândia);4. quanto ao processo de reforma: Constituições rígidas e Constituições flexíveis. Rígidas são as que demandam um processo especial, mais solene e difícil para sua alteração do que o da

formação das leis ordinárias. Flexíveis são as que podem ser alteradas pelo mesmo processo pelo qual se elaboram as leis ordinárias, dando-se como exemplo a Constituição inglesa. Não obstante se dizer que na Inglaterra "o Parlamento pode fazer tudo, menos de um homem uma mulher", Afonso Arinos de Melo Franco ressalta que "a Constituição costumeira (no caso a inglesa) tem indiscutíveis setores de rigidez. Teoricamente, seus documentos escritos básicos, como a lei de garantias individuais ou o tratado de união com a Escócia, ou seus costumes, como a escolha do Primeiro-Ministro, ou a dissolução da Câmara dos Comuns poderiam ser alterados por uma lei do Parlamento. Mas seria rematada insensatez sustentar que essa hipótese ;poderia concretizar-se com a facilidade com que se aprova uma lei qualquer. A rigidez existe, e muito maior do que na maioria dos países de Constituição escrita; apenas não é uma rigidez formal, mas um obstáculo político-constitucional intransponível. Nos pontos em que a Constituição inglesa é rígida (e são os mais importantes), ela é mais rígida do que na maioria dos países de Constituição rígida". (4)No Brasil, a Constituição do Império de 1824 caracterizava-se pela semi-rigidez. É que o seu 178 dispunha que se consideravam como constitucionais apenas as matérias que se referissem aos limites e atribuições do poder político e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o mais, embora figurasse na Constituição por não ser constitucional, podia ser alterado por lei ordinária. A Constituição brasileira de 1988 é rígida, pois sua alteração depende de um processo especial previsto no art. 60, I a III, e §§ 2° e 3°;5. quanto à dogmática: Constituições ortodoxas e Constituições ecléticas.Essa classificação foi proposta por Paulino Jacques, conforme adotem uma só ideologia

(4) FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Direito constitucional, p. 94.131

KILDARE GON ALVES CARVALHO�política informadora ou procurem conciliar ideologias opostas. José Afonso daSilva opõe a Constituição dogmática à histórica, segundo critério voltado para omodo de elaboração, parecendo a este autor que a Constituição dogmática é conexacom a escrita, e a histórica o é com a não escrita, sendo que a primeira reflete os dogmas ou idéias fundamentais da teoria política, e a outra (histórica) resulta do lento evolver dos fatos sociopolíticos, ponto de vista também acolhido por Manoel Gonçalves Ferreira Filho.Além das classificações tradicionais, há uma outra proposta por Karl Loewenstein, (5) a que ele chama de classificação ontológica, pois, em lugar de analisar a essência e o conteúdo das Constituições, o critério ontológico se baseia na concordância das normas constitucionais com a realidade do processo do poder, ou seja, uma Constituição escrita não vale por si mesma, mas é o que os detentores do poder fazem dela na prática. Dentro dessa classificação, denomina-se Constituição normativa aquela cujas normas dominam o processo político ou, inversamente, o processo do poder se adapta às normas da Constituição e se submete a elas. Qualifica-se de nominal a Constituição que carece de realidade existencial, pois, apesar de juridicamente válida, a dinâmica do processo político não se adapta às suas normas. Finalmente, ainda na classificação de Loewesntein, aparece a Constituição semântica, que, em lugar de servirde limitação do poder, figura como o instrumento para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores fáticos do poder político, sendo exemplo desse tipo de Constituição a Carta de 1937 (Constituição do Estado Novo).Fala-se ainda em Constituição dirigente, terminologia usada pelo autor português Gomes Canotilho, referindo-se à Constituição de Portugal de 197G, que, marcada pela existência de inúmeros preceitos de caráter programático, dirige ou orienta a ação dos Poderes do Estado para a realização do programa nela contido, voltado para a implantação de um Estado socialista. Observe-se, contudo, que a segunda revisão da Constituição de Portugal, promulgada em 7 de julho de 1989, eliminou do seu texto inúmeros preceitos de caráter socialista e promoveu uma flexibilização da "Constituição econômica".

& 3 O CONSTITUCIONALISMOA Constituição política, tal como a entendemos hoje, resulta de um movimentoocorrido na transição da monarquia absoluta para o Estado Liberal de Direito (final do século XVIII),

conhecido por constitucionalismo, pelo qual os Estados passaram a adotar leis fundamentais ou cartas constitucionais, reunindo, num documento escrito,

(5) LOEWENSTEIN, Karl. Teoría dela Constitución, p. 216-222.132

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOsua organização política, bem como a declaração dos direitos dos indivíduos. Assim, a concepção de constitucionalismo se refere a um tipo de Constituição, a escrita, embora se possa falar também em constitucionalismo não escrito da Inglaterra, como antecedente das Constituições escritas da segunda metade do século XVIII.Destacam-se como elementos que influíram na formação do constitucionalismo os seguintes: a doutrina do pactum subjectionis, pela qual, no medievo, o povoconfiava no governante, na crença de que o governo seria exercido com eqüidade,legitimando-se o direito de rebelião popular, caso o soberano violasse essas regras; a invocação das leis fundamentais do reino, especialmente as referentes à sucessão e indisponibilidade do domínio real; celebração de pactos e escritos, subscritos pelo monarca e pelos súditos (Carta Magna de 1215, Petition of Rights, de 1628, Instrument of Government, de 1654, e Bill of Rights de 1689). Nos Estados Unidos da América do Norte, surgem os primeiros indícios do constitucionalismo com os chamados contratos de colonização (Compact, celebrado a bordo do navio Mayflower, em 1620, e as Fundamental Orders of Connecticut, de 1639). Situa-se no Declaration of Rights do Estado de Virgínia, de 177G, o marco do constitucionalismo, seguido pelas Constituições das ex-colônias britânicas da América do Norte, Constituição da Confederação dos Estados Americanos, de 1781, e, finalmente, pela Constituição da Federação de 1787.Na França, cita-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de1789, seguida pela Constituição de 3 de setembro de 1791. (6)Caracteriza-se, assim, o constitucionalismo de fins do século XVIII pela ocorrência da idéia de separação de Poderes, garantia dos direitos dos cidadãos, crença na democracia representativa, demarcação entre a sociedade civil e o Estado, e ausência do Estado no domínio econômico (Estado absenteísta).O advento do 1° pós-Guerra marca uma profunda alteração na concepção doconstitucionalismo liberal: as Constituições de sintéticas passam a analíticas, consagrando nos seus textos os chamados direitos econômicos e sociais; a democracia liberal-econômica dá lugar à democracia social, mediante a intervenção do Estado na ordem econômica e social, sendo exemplos desse fenômeno as Constituições do México, de 1917, a de Weimar de 1919 e, no Brasil, a Constituição de 1934.As Constituições do 2° pós-Guerra (1939-1945) prosseguiram na linha das anteriores, notando-se como significativo o surgimento de uma chamada terceira geração de direitos, no âmbito dos direitos fundamentais do homem, caracterizada pela previsão, nas declarações internacionais e até mesmo nos textos constitucionais, do direito à paz, ao meio ambiente, à co-propriedade do patrimônio comum do gênero humano.Lembra Francisco Rezek que "o problema inerente a esse direitos de terceira geração é, como pondera Pierre Dupuy,, o de identificar seus credores e devedores. Com efeito, quase todos os direitos individuais de ordem civil, política, econômica, social e cultural

(6) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito constitucional, p. 18.133

KILDARE GONÇALVES CARVALHOsão operacionalmente reclamáveis, por parte do indivíduo, à administração e aos demais poderes constituídos em seu Estado patrial, ou em seu Estado de residência ou trânsito. As coisas se tornam menos simples quando se cuida de saber de quem exigiremos que garanta nosso direito ao desenvolvimento, à paz ou ao meio ambiente". (7)A Constituição brasileira de 1988 prevê, no art. 225, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras

gerações.

& 4 PODER CONSTITUINTEO poder constituinte é o instituidor do Estado, criador de uma estrutura jurídica que possibilita a convivência do homem em sociedade.É, assim, poder político que antecede ao poder do Estado, e que não encontrajustificativa em si mesmo, senão que depende de considerações extras e pré-jurídicas para se legitimar.Sua titularidade tem sido atribuída por alguns à nação (Sieyès), e por outrosao povo. Mas, num caso ou noutro, a titularidade do poder constituinte não seconfunde com o seu exercício, que se manifesta através de um grupo revolucionário ou de uma assembléia constituinte.Poder constituinte sempre existiu em toda sociedade política, por ser o queestabelece as regras jurídicas relativas à organização do Estado e de sua Constituição.Trata-se de um poder superior e distinto dos demais poderes.Existente, embora, o poder constituinte em toda sociedade política, suateorização somente se iniciou no século XVIII, sendo expressivo o opúsculo do Abade Sieyès, intitulado Qu'est-ce que le tiers État, onde ele expôs suas idéias racionalizadoras.A distinção entre poder constituinte e poderes constituídos tem maior relevância nas Constituições rígidas, onde resulta clara a ocorrência de um poder inicial ecriador da Constituição, destacado de um outro poder encarregado de alterá-la, circunstância que não se verifica nas Constituições flexíveis pela confusão existente entre poder constituinte e poderes constituídos (o mesmo poder ordinário que estabelece as regras jurídicas originárias promove as alterações na Constituição).Há os que vêem no poder constituinte mero poder de fato, e outros que oconcebem como um poder de direito.Como poder de fato, o poder constituinte se funda em si mesmo, não se baseia em regra de direito anterior, pois se entende por Direito apenas o Positivo,isto é, aquele posto pelo Estado. Expoente máximo do positivismo, Kelsen foi, noentanto, buscar numa norma fundamental hipotética (grundnorm) a base para todo

(7) REZEK, José Francisco. Direito internacional público (curso elementar), p. 224.

134

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO ordenamento jurídico. Embora a ele não pertença, é o pressuposto lógico daConstituição, que se alicerça, desse modo, num fundamento lógico-transcendental.Essa norma fundamental hipotética seria então de natureza política e exterior aoDireito Positivo.Os teóricos do poder constituinte, como poder de direito, admitem a existência de um poder natural, de que resultam regras de Direito Natural, anteriores aoDireito Positivo, decorrentes da natureza humana e da própria idéia de justiça.O poder constituinte é essencialmente soberano, pela capacidade de estabelecer originária e livremente a .configuração jurídico-política do Estado e de sua Constituição, adotando determinadas opções políticas fundamentais.Soberano que seja, o poder constituinte não é, todavia, absoluto; acha-se vinculado à idéia de legitimidade revelada pelas estruturas políticas, econômicas e sociais, dentre outras, dominantes na sociedade, bem como pelos valores e princípios historicamente localizados, os quais deverão infletir na sua obra originária, a Constituição, e que portanto constituem os seus limites materiais.Daí falar-se em poder constituinte material e poder constituinte formal.O poder constituinte material, antecedente do formal, determina o conteúdoda Constituição. Traduz-se na força política ou social, na idéia de Direitoinauguradora da nova era constitucional.O poder constituinte formal revela-se na entidade (grupo constituinte) queformaliza em normas jurídicas a idéia de Direito consentida num determinado momento histórico,

conferindo estabilidade e permanência à nova situação.Distingue-se o poder constituinte em originário e instituído,O poder constituinte originário se reveste dás seguintes características:inicial, pois não se funda em nenhum poder; é autônomo, porque igualmente não sesubordina a nenhum outro; e é incondicionado, porquanto não se sujeita a condições nem a fórmulas jurídicas para sua manifestação. O poder constituinte, no entanto, como vimos, não é absoluto. Mencione-se, a propósito,. Luis Carlos Sáchica, para quem todo poder é limitado. Não há poderes absolutos. Têm todos as próprias limitações de seus meios e das circunstâncias em que atuam. Daí, embora o constituinte tenha poder supremo, por ser superior, excludente, originário, fático, ordenador e dominante de todos os demais poderes, é poder limitado, condicionado. O fático, o critério do justo, o tempo em que se vive, a interdependência dos povos, o sentido comum e o pragmático, os costumes, os ideais e as crenças, as forças resistentes que cumprem função de contrapoderes, moderam e neutralizam o mais entusiasmado ímpeto revolucionário. (8)O poder constituinte instituído, ou de reforma da Constituição, é derivado,pois provém de outro poder, que é o originário; é subordinado, por se vincular ao

(8) SÁCHICA, Luis Carlos. Esquema para una teoría del poder constituyente, p. 49.135

KILDARE GONÇALVES CARVALHOpoder constituinte originário, e é condicionado, já que o seu exercício se verifica dentro de limites e condições estabelecidos na própria Constituição.Note-se, todavia, que, para alguns autores, não há tais limitações ao poderconstituinte derivado por ser ele a manifestação do próprio poder constituinte. Trata-se, porém, de posição minoritária.A Constituição brasileira de 1988 fixa as limitações (cláusulas pétreas) aopoder de reforma no seu art. 60, § 4° onde declara que não pode ser objeto dedeliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de Poderes e os direitos e garantias individuais.Não são pacíficas as posições doutrinárias quanto ao seu enquadramento noâmbito do poder constituinte. Se Pinto Ferreira e José Alfredo de Oliveira Baracho, dentre outros juristas, admitem o chamado poder constituinte derivado ou instituído, outros já não aceitam essa terminologia, pois reduzem o conceito de poder constituinte apenas ao originário: assim pensam, por exemplo, Georges Burdeau, Aderson de Menezes, Nelson de Sousa Sampaio e Ivo Dantas.São inerentes ao poder de reforma limitações jurídicas materiais e formais,circunstância que, a nosso ver, o desqualifica como poder constituinte. Por sua vez, o poder constituinte que elabora a Constituição não sofre limitações jurídicas desde a origem. As limitações que porventura condicionam sua atuação no espaço e no tempo são limitações filosófico-sociológicas, e não jurídicas, estas ocorrentes apenas em relação ao poder de reforma da Constituição.Um argumento final serviria para descaracterizar o poder de reforma comoconstituinte: como admitir sua natureza constituinte se o poder de reforma é controlado por um poder constituído, o Judiciário, a quem cabe, segundo determinados sistemas constitucionais, controlar a constitucionalidade de reforma da Constituição?Nesta linha de raciocínio, não se pretende negar a existência de um poder dereforma da Constituição; o que não nos parece aceitável é o seu enquadramento noconceito de poder constituinte.Fala-se ainda em poder constituinte dos Estados-Membros, denominado poder constituinte decorrente, ou seja, o poder de organizar o Estado Federado dotado de autonomia. É poder derivado, subordinado e condicionado, sendo que o seucondicionamento aos princípios ou diretrizes a que está sujeito a observar, traduzido nas normas constitucionais federais de preordenação, revela a predominância de forças centrípetas ou centrífugas no âmbito do Estado Federal.

& 5 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADEA idéia de rigidez revela a chamada supremacia ou superlegalidade constitucional, devendo todo 0

ordenamento jurídico conformar-se com os preceitos da 136

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOConstituição, quer sob o ponto de vista formal (competência para a edição de atonormativo e observância do processo legislativo previsto para a elaboração da norma jurídica), quer do ponto de vista material (adequação do conteúdo da norma aos princípios ou preceitos constitucionais).O controle de constitucionalidade das leis, como garantia da Constituição, está,pois, intimamente relacionado com a concepção de Constituição rígida (a que demanda processo especial para sua emenda, diverso do processo legislativo de elaboração das leis ordinárias), embora a idéia de supremacia da Constituição seja inerente também à de Constituição flexível, mas nesse caso trata-se de superioridade material, já que a superioridade formal é revelada pelo caráter rígido das Constituições.Originário da doutrina de Marshall, nos Estados Unidos da América do Norte,o controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário foi adotado em nossoconstitucionalismo republicano, embora o Direito brasileiro admita também o controle político exercido pelo Congresso Nacional, através das Comissões Parlamentares, e pelo Presidente da República, mediante o veto.O controle jurisdicional de constitucionalidade é exercido, em nosso Direito,por via de exceção, em que a argüição de inconstitucionalidade pressupõe um casoconcreto, com o interessado buscando a invalidação do preceito normativo violador do texto constitucional, prevista na Constituição de 1891, e por via de ação (introduzida pela primeira vez na Constituição de 1934, art. 12, § 2°, embora limitada aos princípios constitucionais que acarretavam intervenção federal nos Estados, e aprimorada pela Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 196S, que a desvinculou dos fins da intervenção federal). A via de exceção tem origem no controle difuso de constitucionalidade, criaçãodo Direito norte-americano, e a via de ação, no controle concentrado deconstitucionalidade, praticado pelas Cortes Constitucionais européias.Classificam-se os sistemas de controle de constitucionalidade em político .(exercido através de órgãos políticos), jurisdicional (exercido pelo Poder Judiciário) e misto (algumas leis são submetidas ao controle do Poder Judiciário, outras ao controle político, como na Suíça, em que as leis federais ficam sob o controle político, e as leis locais sofrem o controle jurisdicional). Para Ronaldo Poletti, "pode-se também falar em sistema misto para explicar o do Brasil, em que, a par do sistema difuso, há a jurisdição concentrada exercida pela provocação direta de inconstitucionalidade". (9)Designando conceito de relação, entende-se por inconstitucionalidade a desconformidade de um ato normativo do poder político referentemente à Constituição. A inconstitucionalidade "é um corolário do princípio da hierarquia das normas jurídicas e também da necessidade de garantia da própria Constituição", afirma Marcelo Rebelo de Sousa.

(9) POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis, P. 71137

KILDARE GONÇALVES CARVALHOSão tipos de inconstitucionalidade identificados na doutrina:1. inconstitucionalidade formal ou orgânica, em que o vício que afeta o atoinconstitucional traduz defeito de sua formação, ou desrespeito da competênciaconstitucional prevista para a sua prática;2. inconstitucionalidade material, em que o conteúdo do ato se acha emdesacordo com o conteúdo da Constituição.Espécie de inconstitucionalidade material, consiste na inconstitucionalidadepor excesso de Poder Legislativo, traduzida na incompatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos, ou na inobservância do princípio da proporcionalidade. Deve ser pronunciada a inconstitucionalidade das leis que contenham limitações inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (não-razoáveis), é o que lembra Gilmar Ferreira Mendes, (10)

para quem tal procedimento empresta maior intensidade e rigor ao controle da constitucionalidade e preserva o próprio Estado Democrático de Direito.Assinale-se, no entanto, que a imprecisão e a vagueza dos parâmetros constitucionais, que não primam pelo rigor de conteúdo, são circunstâncias que têm dificultado a efetivação do controle, não obstante venha o Supremo Tribunal Federal identificando esse vício no juízo de constitucionalidade; (11)De outra parte, o controle material de constitucionalidade pode transformar oJudiciário num superpoder, eis que a interpretação constitucional, neste caso, levaria a vontade do Juiz a substituir a vontade do legislador ou do governo, com violação do princípio da separação de Poderes;3. inconstitucionalidade por ação, que "pressupõe uma conduta positivado legislador, que se não compatibiliza com os princípios constitucionalmenteconsagrados";4. inconstitucionalidade por omissão, que decorre da inércia ou do silênciodo legislador, descumprindo obrigação constitucional de legislar;5. inconstitucionalidade originária, que decorre da emissão de um ato violador da Constituição, na vigência da norma constitucional;6. inconstitucionalidade superveniente, que se verifica quando nova normaconstitucional surge e dispõe em contrário de uma lei ou de outro ato precedente.Para a maioria dos autores, não se trata de inconstitucionalidade, mas de derrogação do direito anterior, incompatível com a norma constitucional posterior, devendo, pois, a questão ser resolvida no âmbito do direito intertemporal;7. inconstitucionalidade total, na hipótese de abrangência de todo o atonormativo;8. inconstitucionalidade parcial, que alcança apenas parte do ato normativo.

(10) MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade - Aspectos jurídicos e políticos, p. 48.(11) RT 145/146, RTJ 110/967.138

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOQuanto ao momento em que é exercitado, pode o controle ser preventivo ourepressivo.O controle preventivo se efetiva antes da lei promulgada e é praticado especialmente na França, onde cabe ao Conselho Constitucional pronunciar-se sobre a constitucionalidade de texto legislativo, que, se for inconstitucional, a lei não será promulgada sem que haja revisão constitucional. No Brasil, o controle prévio cabe às Comissões Parlamentares, que examinam e emitem parecer sobre a constitucionalidade ou não do projeto, e ao Presidente da República, pelo veto.No controle preventivo não cabe a ação direta de inconstitucionalidade, compatível apenas com o controle repressivo.O controle repressivo é jurisdicional e incide sobre a lei promulgada.A ação direta de inconstitucionalidade, cujo titular sempre foi o Procurador-Geral da República, desde a sua criação em nosso Direito, sofreu significativas alterações com a nova Constituição. Assim, dispõe o seu art. 103 que, além do Procurador-Geral da Republica, podem propor a ação de inconstitucionalidade: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembléia Legislativa, o Governador de Estado, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. A ação direta de inconstitucionalidade efetua-se pelo método concentrado, eis que cabe ao Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, processar e julgar a argüição (art. 102, I, a e p) com a concessão ou não de medida cautelar. O controle direto da constitucionalidade é sempre em tese, pois o objeto da ação se limita à declaração da inconstitucionalidade. Os efeitos da declaração judicial de inconstitucionalidade pelo método concentrado (a competência para conhecer da matéria se concentra num único órgão do Poder Judiciário, como se viu acima) são

erga omnes, ou seja, há vinculação detodos os aplicadores da lei, em caráter obrigatório.A Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, instituiu a açãodeclaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, competindo ao Supremo Tribunal Federal processá-la e julgá-la, e cuja decisão definitiva de mérito produzirá eficácia contra todos, e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo (art. 102, I, a, § 2°, da Constituição Federal).São titulares da ação declaratória de constitucionalidade o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República (art. 103, § 4°, da Constituição Federal).A ação declaratória de constitucionalidade tem sido criticada, aos argumentosprincipais de que com ela ficam comprometidos o devido processo legal, os princípios da ampla defesa, do contraditório e da dupla jurisdição, e ainda converteria o Judiciário em legislador; seria uma ação sem réu.139

KILDARE GONÇALVES CARVALHOOs seus defensores ponderam, no entanto, que ela configura um típico processo objetivo contra a insegurança jurídica ou a incerteza sobre a legitimidade de lei ou ato normativo federal.Nada mais é do que uma ação direta de constitucionalidade às avessas.Há também a ação direta interventiva, mantida, pela Constituição de 1988 (art.34, VII, e art. 36, III), como fase prévia para a decretação da intervenção federal no Estado-Membro em que ocorreu violação de princípio constitucional enumerado ou sensível (art. 34, VII). A titularidade desta ação, no plano federal, é privativa do Procurador-Geral da República. Cabe ao Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, processar e julgar, originariamente, a ação direta interventiva (art. 36, III, e art. 102, I, a) e, no caso de recusa a execução de lei federal (art. 34, VI), ao Superior Tribunal de Justiça (art. 36, IV).A argüição de inconstitucionalidade por via de exceção, que caracteriza o controle difuso, cabe a qualquer interessado em sua declaração (não necessariamente réu na ação), pressupondo, por isso mesmo, um processo em que se discute relação jurídica diversa da inconstitucionalidade (daí qualificar-se de "inconstitucionalidade no caso concreto"). O processo e o julgamento da argüição cabem ao órgão jurisdicional competente para apreciar a lide principal (qualquer juiz, ainda que não tenha obtida a garantia da vitaliciedade, pode apreciar a argüição, que, assim, se baseia no método difuso de controle). Finalmente, os efeitos da declaração no caso concreto alcançam somente as partes litigantes (são inter partes), pelo que o resultado da ação não vincula terceiros.Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade têm merecido permanenteatenção dos juristas, pois, na realidade, o tema se acha relacionado com a própria natureza do vício da norma inconstitucional. Assim, os atos alcançados pela declaração de inconstitucionalidade apresentam-se inválidos, havendo, contudo, controvérsia doutrinária sobre se são inexistentes, nulos, anuláveis ou irregulares. Jorge Miranda distingue conceitualmente os quatro tipos de atos, dizendo:"1. inexistência: o ato não produz nenhum dos efeitos jurídicos desde a origem, independentemente da declaração por qualquer órgão, e os cidadãos podem opor-se à sua execução por desobediência ou mesmo resistência defensiva;2. nulidade: o ato não produz efeitos desde a origem, mas é necessária declaração de inconstitucionalidade ou decisão de não aplicação;3. anulabilidade: o ato só deixa de produzir efeitos depois de ser declaradoinconstitucional;4. irregularidade: a inconstitucionalidade não prejudica a produção de efeitosjurídicos". (12)

(12) MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, p. 315-316.140

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPara os que sustentam a nulidade da norma inconstitucional (controle difuso ou incidental do

sistema norte-americano), os efeitos da decisão judicialoperam ex tunc, são retroativos, alcançando a lei inconstitucional desde a sua origem: lei inconstitucional não é lei, não chega a viver, não confere direitos nem impõe obrigações.Já para os que defendem a anulabilidade da norma inconstitucional (controle concentrado do sistema austríaco e das Cortes Constitucionais européias), os efeitos da decisão judicial não retroagem, mas valem apenas para o futuro, são ex nunc, eis que uma lei, até o momento da pronúncia de sua inconstitucionalidade, é válida e eficaz, admitindo-se mesmo (art. 140 da Constituição da Áustria) que o Tribunal Constitucional estabeleça data posterior à pronúncia de inconstitucionalidade para a cessação da vigência da norma inconstitucional. Uma outra categoria de efeitos prevista foi na Constituição Federal alemã.Trata-se da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, hipótese em que o Tribunal apenas reconhece a inconstitucionalidade sem pronunciar a nulidade (Unvereinbarkeitserklärung), e o "apelo ao legislador" (Appellentscheidung), em que o Tribunal, rejeitando a argüição de inconstitucionalidade, reconhece que a situação é ainda constitucional ou não é ainda inconstitucional, e vincula essa declaração ao "apelo ao legislador" para que, num determinado prazo, proceda à correção dessa situação, segundo diretrizes fixadas pelo próprio Tribunal. É preciso também não se esquecer de que, no tocante aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, devem ser levadas em consideração as relações jurídicasconsolidadas na vigência da norma inconstitucional, cujo desfazimento, pelos efeitos ex tunc da decisão judicial, poderia repercutir negativamente sobre a certeza dessas relações jurídicas e a paz social.Analisando o tema, adverte Regina Maria Macedo Ney Ferrari que "os efeitosda declaração de inconstitucionalidade na via de defesa e estes limitados ao caso concreto - já que a validade normativa foi incidentalmente analisada em um processo comum - devem os mesmos operar em relação ao caso concreto, e só em relação a ele retroativamente, destruindo, desta forma, os efeitos produzidos pela lei inconstitucional, nos limites da litis principal". Depois de sustentar a tese referente à anulabilidade da norma inconstitucional, a referida autora pondera que "a retroatividade da declaração de inconstitucionalidade na via de ação direta deve ser feita com reservas, considerando que a norma inconstitucional pode ter tido conseqüência que não seria prudente ignorar, e que isto, principalmente em nosso sistema jurídico, não determina prazo para sua argüição, podendo a mesma ocorrer 10, 20, 30 anos após sua entrada em vigor". (13)Em síntese: efeitos ex tunc para a declaração de inconstitucionalidade na via deexceção, e efeitos ex nunc nos casos de ação direta. Ressalte-se, finalmente, que o

(13) FERRARI, Regina Maria Macedo Ney. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, P. 144-145.141

KILDARE GONÇALVES CARVALHOSupremo Tribunal Federal tem considerado nulos os atos inconstitucionais, atribuindo efeitos ex tunc às declarações de inconstitucionalidade nas vias de exceção e de ação. (14) É que a decisão judicial de inconstitucionalidade, em nosso Direito, ao contrário das Cortes Constitucionais européias, não gera a revogação ou a derrogação da norma inconstitucional, nem fixa o termo inicial de sua eficácia, ressalva feita apenas para a medida cautelar (art. 102, I, p) nas ações diretas de inconstitucionalidade, cuja concessão terá efeitos ex nunc, a partir da decisão. Mas a decisão de mérito acarretará, sempre, efeitos ex tunc.Presentes, no entanto, razões de eqüidade, a certeza do Direito, a segurançajurídica ou o interesse público relevante, dever-se-ia atribuir efeitos ex nunc aos pronunciamentos de inconstitucionalidade na via de ação.No sistema constitucional brasileiro, cabe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (art. 52, X). A comunicação ao Senado Federal somente se dará tratando-se de argüição de inconstitucionalidade por via de exceção (art. 178 do Regimento Interno do Supremo). Divergem os autores quanto aos limites da competência do Senado Federal, parecendo-nos que a ele cabe tão-só examinar os aspectos formais da decisão judicial, não lhe sendo devida a análise do mérito da

ação de inconstitucionalidade, mesmo porque, com o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, ocorreu coisa julgada.Tal circunstância não impede, no entanto, que o Senado Federal indague daconveniência dessa suspensão, que, se efetivada, produzirá efeitos ex nunc.A Constituição exige, em seu art. 97, quorum qualificado da maioria absolutados membros dos Tribunais ou de seu órgão especial, para a declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (arts. 143, parágrafo único, e 173) dispõe que o quorum para a votação de matéria constitucional é de oitoMinistros, e a inconstitucionalidade só poderá ser declarada pelo voto favorável de seis Ministros.Modalidade nova de controle instituído pela Constituição de 1988, a inconstitucionalidade por omissão, inspirada no art. 283 da Constituição de Portugal, decorre da omissão do legislador que não executa norma ou programa estabelecido na Constituição. Assim, a ausência de lei ou de ato normativo acarreta a inconstitucionalidade por omissão. Diz a Constituição Federal, no art. 103, § 2°, que, declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias, e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. A falta de sanção para a não-observância da decisão do Supremo Tribunal Federal, decorrente do princípio da separação de Poderes, por certo não estimulará utilização freqüente do instituto, que nada poderá prover diante da inércia do legislador.

(14) RTJ87/758; 95/993; 97/1.639; 101/503.142

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA inconstitucionalidade de lei municipal mereceu tratamento normativo no art. 125, § 2°, do texto constitucional de 1988, ao prever que aos Estados cabe a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativosestaduais ou municipais, em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição a um único órgão da legitimação para agir. Esclareça-se que o controle daconstitucionalidade de leis municipais pode verificar-se no caso concreto (via de exceção), ou em tese (via de ação). No primeiro caso, a lei municipal poderá ser contrastada com as Constituições Federal e Estadual; no controle por via de ação, a inconstitucionalidade da lei municipal está limitada ao texto da Constituição Estadual; pelo menos é o que se depreende do exame dos parâmetros constitucionais de controle. Note-se que, anteriormente à Constituição atual, o Supremo Tribunal Federal vinha-se posicionando contrariamente à instituição, no âmbito dos Estados federados, do controle da constitucionalidade de leis municipais por via de ação, chegando até mesmo a declarar a inconstitucionalidade, no art. 54, I, e, da precedente Constituição paulista, da expressão "inconstitucionalidade", considerando incompetente o Tribunal de Justiça para conhecer e julgar representações sobre inconstitucionalidade de lei municipal, exceto na hipótese das ações interventivas (RE n. 93.088-SP). O mesmo ocorreu em relação ao texto constitucional do Rio Grande do Sul, (15) em que o Supremo Tribunal Federal julgou o Chefe do Ministério Público local carecedor da representação de inconstitucionalidade em tese, por contrariedade à Constituição Federal, de lei ou ato normativo municipal. O entendimento doutrinário, manifestado em pareceres de não menos do que seis notáveis juristas (Ada Pellegrini Grinover, José Afonso da Silva, Dalmo de AbreuDallari, Celso Ribeiro Bastos, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Galeno Lacerda), era pela possibilidade da instituição, no âmbito estadual, do controle da constitucionalidade em tese de lei municipal, seja em face da Constituição Federal, seja em relação à Constituição Estadual. Com o óbice criado pelo Supremo Tribunal Federal, que não acolheu o entendimento doutrinário, a matéria veio a ser considerada de forma expressa pela Constituição de 1988, que, como se viu, admite a representação de inconstitucionalidade em tese de lei municipal, limitada, contudo, ao texto da Constituição Estadual (art. 125, § 2°). Já o controle no caso concreto estende-se à Constituição Federal, pois, nessa hipótese, o Poder Judiciário, não podendo recusar-se a julgar o caso, é levado a julgar a lei.A limitação ao texto da Constituição Estadual, do controle em tese da constitucionalidade de lei

municipal, tem sua razão de ser. De fato, sendo hoje pacífico o entendimento de que o trânsito em julgado de decisão que declarainconstitucional lei em tese, mediante ação direta de inconstitucionalidade, tem efeitos erga omnes, ficaria o próprio Supremo Tribunal Federal vinculado a acatar o julgamento do Tribunal de Justiça, que pronunciou a inconstitucionalidade de lei

(15) RTJ93/455.143

KILDARE GONÇALVES CARVALHOmunicipal por violação da Constituição Federal, mesmo nos casos concretos que lhe chegassem mediante recurso extraordinário, pelo que deixaria de exercer o papel de guardião da Constituição Federal.

& 6 CLASSIFICAÇÃO E EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAISTodas as normas constitucionais são dotadas de juridicidade. A Constituiçãonão contém conselhos, exortações, regras morais, ou seja, normas de caráter não-jurídico. Deveras, por serem jurídicas, todas as normas da Constituição surtem efeitos jurídicos; o que varia é o seu grau de eficácia.Ainda por serem jurídicas, é que as normas constitucionais se inserem na classificação geral das normas jurídicas (como, v.g., normas primárias e normas secundárias; normas imperativas e normas facultativas; normas gerais e normas especiais).Não obstante, interessa-nos examinar a classificação das normas constitucionais segundo critérios próprios do Direito Constitucional, levando-se em conta,principalmente, a sua eficácia.Marcelo Rebelo de Sousa distingue as normas constitucionais, quanto ao objeto, em normas substantivas e normas adjetivas de garantia.As normas substantivas configuram o esqueleto jurídico político do modelo desociedade ínsito na Constituição, enquanto que as normas adjetivas ou de garantia surgem como acessórios daquelas e visam promover o seu cumprimento, através de meios preventivos ou repressivos.As normas substantivas compreendem as normas materiais de fundo (regulam matéria constitucional relativa aos fins do Estado e à sua estrutura, com particularrelevo para a estrutura econômica e os direitos fundamentais dos cidadãos), as normas orgânicas ou de competência (tratam da organização do poder político e estabelecem a competência dos órgãos que o compõem), e as normas processuais ou de forma, que dispõem sobre o processo de formação e expressão da vontade política (normas referentes ao processo de revisão constitucional e normas relativas aos processos de atuação dos órgãos constituídos). (16)Quanto à eficácia, o mencionado autor as distingue em normas constitucionaispreceptivas (as que têm aplicação imediata, vinculando todos os sujeitos de direito, quer públicos, quer privados, inclusive o legislador ordinário), e as normas constitucionais programáticas (as que são de aplicação diferida e mediata, e se dirigem ao legislador ordinário, de cuja intervenção depende sua exeqüibilidade). (17)

(16) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Op. cit., p. 94-96.(17) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Op. cit., p. 96.144

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICONo Direito norte-americano formulou-se distinção entre disposições ou mandamentos auto-executáveis (self enforcing, self executing, self acting), e disposições ou mandamentos não auto-executáveis (not self enforcing provisions).Em nosso Direito, o tema da efcácia e aplicabilidade das normas constitucionais foi objeto de monumental e conhecida monografia de José Afonso da Silva, (l8)que estabelece a seguinte classificação:I - normas constitucionais de eficácia plena: "aquelas que, desde a entrada

em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos osefeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamento e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular" (ex.: art. 2°);II - normas constitucionais de eficácia contida: "aquelas em que o legisla-dor constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do poder público, nos termos em que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados" - sendo exemplo o art. 5°, LVIII, segundo o qual "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei", ou seja, a disposição é de aplicabilidade imediata, produzindo todos os efeitos imediatamente, mas podendo sua eficácia ser restringida por lei ordinária. Enquanto não sobreviver legislação posterior que a restrinja, sua eficácia é plena;III - normas constitucionais de eficácia limitada, compreendendo: as normas constitucionais de princípio institutivo, como "aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei", sendo exemplo o art. 18, § 3°, da Constituição: "Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, na forma da lei", e as normas constitucionais de princípio programático, como "aquelas normas constitucionais, através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e indiretamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelosseus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado", dando-se como exemplo o art. 196, ao estabelecer que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

(18) SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 89, 105, 116, 129.145

KILDARE GONÇALVES CARVALHOVerifica-se da sobredita classificação que, se as normas programáticas não sãoauto-aplicáveis, pois que dependem de legislação integradora, nem todas as normas não-operativas são programáticas.Interessante classificação das normas constitucionais foi proposta porMaria Helena Diniz, com base na intangibilidade e produção de efeitos concretos, em: (l9)1. normas com eficácia absoluta, as que são insuscetíveis de emenda, comforça paralisante de toda a legislação que vier a contrariá-las, sendo exemplos o art. 1°, que trata da federação, o art. 14, que estabelece o voto direto, secreto, universal e periódico, e o art. 2°, que menciona a separação de Poderes como um dos princípios fundamentais do Estado brasileiro;2. normas com eficácia plena, as que, apesar de suscetíveis de emenda, "nãorequerem normação subconstitucional subseqüente. Podem ser imediatamente aplicadas. O constituinte emitiu essas normas suficientemente, pois incidem diretamente sobre os interesses, objeto de sua regulamentação jurídica, criando direitos subjetivos, desde logo exigíveis." Exemplos dessas normas são os arts. 21; 22; 37, III; 44, parágrafo único;3. normas com eficácia relativa restringível, que correspondem às normasde eficácia contida de José Afonso da Silva, acima referidas;4. normas com eficácia relativa complementável ou dependentes de complementação, abrangendo as normas de princípio institutivo e as programáticas de José Afonso da Silva. Tais normas dependem, como se viu, de legislação subconstitucional que lhes dê operatividade, ampliando ou acrescendo a matéria de que cuidam, citando-se como exemplos os arts. 127, § 2°; 165, § 9°; 205; 211; 215 e 218.Do que se acabou de expor, conclui-se que, embora jurídicas, nem todas asnormas da Constituição têm o mesmo nível de eficácia, algumas produzindo, des-de a sua vigência, efeitos jurídicos imediatos, incidindo sobre os comportamentos ou interesses, objeto de sua regulamentação (as absolutas não podendo ser emendadas e paralisando toda a

legislação com elas conflitante, e as plenas admitindo emenda), e outras reclamando intervenção legislativa para que sejam plenamente eficazes ou operativas.A Constituição Federal prevê mecanismos para que as normas constitucionais,dependentes de regulamentação, tornem-se operativas: o mandada de injunção (art.5°, LXXI) e a inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2°).

(19) DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos, p. 97 a 104.146

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 7 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAISA interpretação das normas jurídicas é necessária para a sua aplicação.Maria Helena Diniz fala que "interpretar é descobrir o sentido e alcance danorma, procurando a significação dos conceitos jurídicos". (20)José Alfredo de Oliveira Baracho acentua que "a determinação do sentido ealcance das expressões do Direito, processo que visa extrair da norma todo o seuconteúdo, realiza-se por meio da interpretação, que possui técnica e meios peculiares para ser atingidos os objetivos da Hermenêutica". (21)A interpretação constitucional pressupõe a ocorrência, no texto da Constituição, de preceito (disposição, formulação, forma lingüística) e de norma (regra jurídica contida no preceito).Desse modo, a interpretação é um processo ou discurso jurídico que incidesobre um enunciado lingüístico (preceito) e tem como objeto uma disposição queresulta em norma.A disposição, preceito ou enunciado constitui o objeto da interpretação, e anorma é o seu produto.Embora as regras gerais de interpretação das leis em geral sejam aplicáveis aoDireito Constitucional, esse ramo do Direito possui princípios específicos de interpretação, em virtude da singularidade das normas constitucionais, traduzida, principalmente, pelo poder constituinte, criador da Constituição, e pelo processo de sua revisão (as Constituições rígidas demandam um processo especial e mais difícil para sua alteração do que o previsto para a elaboração das leis ordinárias), destacando Baracho que os problemas da interpretação constitucional são mais amplos do que aqueles da lei comum, pois repercutem em todo o ordenamento jurídico". (22)Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito, em obra dedicada ao tema (23)<fixam os traços típicos ou notas caracterizadoras de uma técnica de interpretação das normas constitucionais:a) inicialidade pertinentemente à formação originária do ordenamento jurídico,em grau de superioridade hierárquica. A Constituição é emanação do Poder Constituinte originário, matriz de todo 0 ordenamento jurídico do Estado, com superioridade hierárquica sobre todas as normas que a compõem e que dela retiram seu fundamento de validade. Assim, o intérprete da Constituição não deve buscar diretrizes ou parâmetros na legislação infraconstitucional, mas no próprio texto constitucional;b) conteúdo marcantemente político, visto ser a Constituição o "estatuto jurídico do fenômeno político", na feliz síntese conceitual de Canotilho. A interpretação

(20) DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 380.(21) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria da Constituição, p. 49.(22) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit., p. 54.(23) BASTOS, Celso Ribeiro, BRITO, Carlos Ayres de. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, p. 12147

KILDARE GONÇALVES CARVALHOdo texto constitucional deve valer-se de elementos colhidos na dinâmica da realidade político-social, embora não se descuide o intérprete dos conceitos jurídicos;

c) estrutura de linguagem, caracterizada pela síntese e coloquialidade. A Constituição contém inúmeras expressões comuns, destituídas de significado técnico, e assim deve ser, pois que sua linguagem coloquial, clara, precisa, acessível ao cidadão comum, é o passaporte para a liberdade. Como acentua Bryce, "vinda a Constituição do povo, voltando-se ela para o povo como propósito de vida, sua linguagem não é técnica, necessariamente";d) predominância das chamadas "normas de estrutura", tendo por destinatário habitual o próprio legislador ordinário. Ao contrário das normas infraconstitucionais, que, como o Código Civil, impõem determinadas condutas, as normas constitucionais cuidam, sobretudo, de estruturar o poder ou fixar as competências dos seus órgãos, não se devendo esquecer, contudo, de que as Constituições contemporâneas estão impregnadas de normas programáticas, dirigidas ao legislador ordinário, ao juiz e ao administrador público.Outras regras de interpretação constitucional, a seguir enunciadas, e que foram extraídas de eminentes autores, segundo sistematização feita por José Alfredo deOliveira Baracho, (24) revelam técnica própria de interpretação da Constituição:I - na interpretação constitucional deve sempre prevalecer o conteúdo teleológico da Constituição, que é instrumento de governo, além de ser instrumento de restrição de poderes de amparo à liberdade individual;II - a finalidade suprema e última da norma constitucional é a proteção e agarantia da liberdade e dignidade do homem;III - a interpretação da lei fundamental deve orientar-se, sempre, para estameta suprema;IV - em caso de aparente conflito entre a liberdade e o interesse do governo,aquela deve prevalecer sempre sobre este último, pois a ação estatal, manifestada através de normas constitucionais, não pode ser incompatível com a liberdade (in dubio pro libertate);V - o fim último do Estado é exercer o mandato dentro de seus limites;VI - deve-se dar ênfase ao método histórico, que acentua a importância em recorrer às atas e outros documentos contemporâneos para a formulação da Constituição, a fim de descobrir qual deve ser o significado dos termos técnicos usados pelo texto;VII - quando a Constituição confere um poder em termos gerais, prescreveum dever, outorga, implicitamente, todos os poderes particulares (implied powers) necessários ao exercício desse poder e ao cumprimento dessa obrigação;VIII - os tribunais só podem declarar inconstitucionais os atos de outrospoderes, quando o vício é manifesto e não dá lugar a dúvidas.

(24) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit. P. GO-G1.148

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 8 LACUNAS DA CONSTITUIÇÃOCom relação às lacunas no Direito, mencione-se a existência de: a) correntes queas negam em razão, sobretudo, da idéia de completude do ordenamento jurídico quepor formar um todo orgânico, seria suficiente para disciplinar todos os comportamentos humanos; b) correntes que admitem a sua existência no sistema jurídico, que não pode, dado o seu caráter dinâmico, prever rodas as situações de fato que visa regular.No campo do Direito Constitucional, há autores que sustentam: a) inexistência de lacunas na Constituição formal, eis que o constituinte teria pretendido atribuir natureza excepcional às normas formalmente constitucionais, imunes, portanto, a lacunas; b) existência, no texto constitucional, de lacunas, já que a Constituição não prevê tudo o que dela possa ser objeto, e não é um sistema acabado e sem deficiências, podendo então apresentar lacunas.Tem-se entendido ainda que as lacunas constitucionais não se confundem com as omissões legislativas (a Constituição deixa o preenchimento de normas constitucionais não auto-executáveis para o legislador infraconstitucional), nem com a chamada matéria não regulada, que caracteriza uma omissão desejada pelo constituinte, dentro de sua liberdade de conformação do texto constitucional.As lacunas consritucionais ocorrem, portanto, quando certas matérias que deveriam ter solução na

própria Constituição não vêm nela explicitadas, valendo-se então o intérprete de regras de integração, tais como a analogia e os princípios gerais de direito.

& 9 APLICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS NO TEMPOA vigência de uma nova Constituição acarreta a cessação da vigência das normasconstitucionais anteriores. De fato, não pode haver senão uma Constituição, que, num determinado momento histórico, expressa a idéia de direito consentida pela comunidade política. A Constituição superveniente, portanto, substitui a anterior, pouco importando se há ou não compatibilidade do texto caduco com a nova Constituição.Pode ocorrer, no entanto, que a nova Constituição declare que determinadasregras da Constituição anterior continuem a vigorar transitoriamente, ou passem da categoria de normas constitucionais para normas de direito ordinário: neste último caso ocorre o fenômeno da desconstitucionalização.Outra questão que surge da sucessão de normas constitucionais no tempo é asituação da legislação ordinária anterior em face da nova Constituição. A regra geral é que as leis ordinárias anteriores continuem em vigor, desde que compatíveis com a Constituição superveniente, havendo, no caso, recepção do direito ordinário pelas normas constitucionais. Recebidas pela Constituição, as leis ordinárias anteriores submetem-se aos princípios e valores da Constituição superveniente, que também lhes serve de fundamento de validade, devendo ainda ser interpretadas segundo os

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KILDARE GONÇALVES CARVALHOnovos princípios constitucionais. Ocorrendo incompatibilidade entre o direito ordinário e as normas constitucionais novas, ainda que programáticas, não poderá o mesmo sobreviver, deixando assim de vigorar.O princípio da recepção não ocorre na hipótese de revisão ou emenda à Constituição, que pressupõe, sempre, a existência da Constituição, que, inclusive, estabelece os limites para o exercício do Poder de Reforma. Sendo assim, o direito ordinário anterior à revisão ou emenda ao texto constitucional continuará válido se compatível com a Constituição, ou inválido se com ela desconforme.Não se admite ainda convalidação ou repristinação da legislação ordinária,que, incompatível com a Constituição anterior, tenha adquirido conformidade como texto constitucional atual. É que a norma revogada não renasce com a revogaçãoda que a havia revogado, a não ser que haja expressa previsão normativa.Tem sido aceita a validade dos atos jurídicos praticados na vigência da Constituição anterior, salvo os inexistentes e os que não foram publicados. Também são considerados válidos os atos normativos que, ao serem recebidos pela Constituição superveniente, têm o seu figurino alterado, passando a matéria de que cuidam a ser objeto de nova espécie normativa. Assim, matéria que anteriormente era tratada por lei ordinária pode passar à categoria de lei complementar; decreto que rinha força de lei pode vir a ser objeto de lei, não se invalidando, por esse fato, as normas anteriores que são recebidas pela nova Constituição.150

Capítulo 8 CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Sumário1 Constituição de 18242 Constituição de 18913 Constituição de 19344 Constituição de 19375 Constituição de 19466 Constituição de 1967 e sua Emenda nº 1, de 19697 Constituição de 1988

& 1 CONSTITUIÇÃO DE 1824Quando estourou no Porto a Revolução de 1820, reunindo-se a 26 de janeirode 1821, em Lisboa, as Cortes Constituintes para a elaboração da Constituição liberal de Portugal de 1822, das quais participaram, além de portugueses, Deputados brasileiros eleitos pelas províncias, irradiou-se no Brasil o movimento liberal que levaria o Príncipe Regente, D. Pedro, a convocar, em 3 de junho de 1822, a Constituinte brasileira para a elaboração da Constituição.Instalada no dia 3 de maio de 1823, a primeira Constituinte, segundo informaBarão Homem de Melo, composta de 26 bacharéis em Direito e cânones, 22 desembargadores, 19 clérigos, dentre os quais um bispo, e 7 militares, dentre os quais 3 marechais de campo e 2 brigadeiros, deu início aos trabalhos, destacando-se como seu relator Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que aproveitou o texto por ele mesmo elaborado para o Governo Provisório da Revolução de Pernambuco de 1817.Em razão de desentendimento com o já Imperador do Brasil, D. Pedro I, aConstituinte foi dissolvida na noite de 11 de novembro de 1823 ("a noite da agonia"), por tropa militar, dizendo a propósito Paulo Bonavides e Paes de Andrade que a dissolução da Constituinte "é dos episódios políticos mais controvertidos de toda a história do País. A nosso ver, sua raiz assenta na contradição com que se fez a Independência: sem a ruptura revolucionária que em outras colônias da América assinalou tal processo, separando nitididamente o elemento colonizador das correntes nativistas". (1)Com a dissolução da Constituinte, D. Pedro I instituiu o Conselho de Estado,em Decreto de 12 de novembro de 1823, que elaborou o texto que se converteria naCarta outorgada de 1824. Compunham o Conselho de Estado: João Severiano Macielda Costa, Luiz José de Carvalho e Melo, Clemente Ferreira França, Mariano JoséPereira da Fonseca, Francisco Villela Barbosa, Barão de Santo Amaro, Antônio Luiz Pereira da Cunha, Manuel Jacinto Nogueira da Gama e José Joaquim Carneiro de Campos, principal redator do projeto da futura Constituição.Assinale-se, todavia, que a Constituição de 1824 foi elaborada a partir do projeto de Antônio Carlos, de tendência nitidamente liberal, que não previa o Poder Moderador, afinal nela introduzido.

(1) BONAVIDES, Paulo, ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 46.153

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA 25 de março de 1824 era outorgada por D. Pedro I a Constituição, que foiposteriormente submetida a plebiscito das Câmaras Municipais, destacando-se a doRio de Janeiro no seu elogio e aprovação. Como principais pontos da Constituição Imperial, que se caracterizou peloabsolutismo na organização dos Poderes e acentuado liberalismo no tocante aosdireitos individuais, destacam-se:a) o Poder Moderador, que ela mesma conceituava como "chave de toda aorganização política", "delegado privativamente ao Imperador como Chefe Supremoda Nação e seu primeiro representante" (art. 98), inspirado nos estudos de Benjamim Constant, publicados em 1815, em seus Principes de politique constitutionnelle;b) a semi-rigidez, pois, de acordo com o art. 178, "é só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos." Assim, tudo o que não fosse constitucional poderia ser alterado pelas legislaturas ordinárias, sem as formalidades que caracterizam a rigidez constitucional;c) liberal declaração de direitos individuais, constante dos 35 incisos do art.179, incluindo direitos sociais, como a garantia dos socorros públicos, instrução primária gratuita a todos os cidadãos, e colégios e universidades, onde serão ensinados os elementos das ciências, belas-artes e artes (incisos 31 a 33), alguns não incluídos na Constituição de 1891.A Constituição do Império sofreu duas principais reformas: a primeira, atravésdo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, que suprimiu o Conselho de Estado, depois restaurado pela Lei n. 234, de 23 de novembro de 1841, substituiu a Regência Trina permanente por uma Regência Una provisória e, sobretudo, transformou os Conselhos Gerais em Assembléias

Legislativas, dando relativa autonomia às Províncias; e a segunda, decorrente da Lei n. 105, de 12 de maio de 1840, de Interpretação do Ato Adicional, em que se reduziram os poderes das Assembléias Legislativas das Províncias.

& 2 CONSTITUIÇÃO DE 1891Os fatores condicionantes da queda da Monarquia são assim enumerados porWilson Accioli:1. transformação da economia agrária, com a abolição, importação do colono estrangeiro; 2. surgimento do Exército como força política; 3. aspiraçãofederalista. Em 1870 surge o livro de Tavares Bastos, A província, que constitui a essência do ideal federalista do Império; 4. influência do positivismo;5. adequação ao sistema americano - República presidencialista." (2)

(2) ACCIOLI, Wilson. Instituições de direito constitucional, p. 78.154

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOCom a proclamação da República, a 15 de novembro de 1889, através do Decreto n. 1, que também estabeleceu a federação, o Governo Provisório baixou posteriormente o Decreto n. 29, de 3 de dezembro de 1889, nomeando umaComissão para elaborar o anteprojeto de Constituição, que seria enviado à futuraconstituinte que se instalaria dois meses após a eleição geral de 1S de setembrode 1890. A referida Comissão, denominada de Comissão dos Cinco, era compostados seguintes membros: Joaquim Saldanha Marinho, Presidente; Américo Brasiliense de Almeida Mello, Vice-Presidente; Antônio Luiz dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José Antônio Pereira de Magalhães Castro. Elaborado o anteprojeto, foi ele, depois de revisto por Rui Barbosa, publicado pelo GovernoProvisório, que, através do Decreto n. 510, de 22 de junho de 1890, convocou oCongresso Nacional, a ser eleito em 15 de setembro, para deliberar sobre o textoconstitucional.A primeira Constituinte republicana, presidida por Prudente de Morais, era composta de 20S Deputados e 63 Senadores, instalando-se a 15 de novembro de1890, concluindo seus trabalhos depois de S8 dias de sessões. (3) Segundo AfonsoArinos, "assim como reinara, na Constituinte imperial, o pensamento francês, prevaleceu, na Constituinte republicana, o pensamento norte-americano. O federalismo era velha reivindicação nacional. O presidencialismo não o era. Mas, dentro da Assembléia, o sistema parlamentar teve poucos e fracos defensores. O presidencialismo e o federalismo prevaleceram no texto da Constituição, que foi o do projeto do Governo Provisório, modificado em apenas 14 artigos." (4)A Constituição de 1891 continha 91 artigos na parte permanente e 8 artigosnas disposições transitórias, sendo o texto mais breve de todas as nossas Constituições. Adotou a forma federal de Estado, com a distribuição dos Poderes entre União e Estados, consagrando-se a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse (art. 68). A intervenção federal foi prevista, inspirando-se a Constituição no modelo argentino de 1853. Cada Estado-Membro dispunha de autonomia, mediante Constituição própria. Pela divisão horizontal dos Poderes, o Poder Executivo era exercido pelo Presidente da República, eleito para mandato de quatro anos, sem reeleição. Os Ministros de Estado não respondiam perante o Congresso, mas subscreviam os atos presidenciais. O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, impedia violações à Constituição. O Poder Legislativo era exercido pelo Congresso Nacional, que se compunha da Câmara dos Deputados, órgão de representação popular, e do Senado Federal, câmara representativa dosEstados (bicameralismo), sendo os Deputados eleitos para mandato de três anos e os Senadores para mandato de nove anos, renovável por um terço trienalmente. Na

(3) BONAVIDES, Paulo, ANDRADE, Paes de. Op. cit., p. 225.(4) FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Direito constitucional, p. 123.155

KILDARE GONÇALVES CARVALHOparte da Declaração de Direitos, merece destaque a instituição do habeas corpus contra violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder.A Constituição de 1891 sofreu revisão em 1926 (final do governo de ArturBernardes).

& 3 CONSTITUIÇÃO DE 1934Com a Revolução de 1.930, o Governo Provisório nomeou uma comissão para elaborar a nova Constituição, destacando-se o papel da Revolução Paulista de 1932, que exigia a restauração plena do regime democrático. Pelo Decreto n. 21.402, de 14 de maio de 1932, foi fixado o dia 3 de maio de 1933 para a realização das eleições à Assembléia Constituinte, e criada uma Comissão para elaborar oanteprojeto da nova Constituição. Depois de seis meses, um novo Decreto, expedido a 1 de novembro de 1932, regulamentou o funcionamento da Comissão, denominada de Comissão do Itamaraty, presidida por Afrânio de Melo Franco, e integrada por Antunes Maciel, Ministro da Justiça, Assis Brasil, Antônio Carlos, Prudente de Morais Filho, João Mangabeira, Carlos Maximiliano, Artur Ribeiro,Agenor de Roure, José Américo, Osvaldo Aranha, Oliveira Viana, Góis Monteiro eThemístocles Cavalcanti.A Assembléia Constituinte reuniu-se afinal no dia 15 de novembro de 1993,esclarecendo Afonso Arinos que, "além dos 214 representantes eleitos pelo povo,integravam-na 40 Deputados eleitos pelas classes profissionais, de acordo com oDecreto n. 22.653, de 20 de abril daquele ano. Estes chamados representantesclassistas formavam a bancada com que Vargas esperava anular o peso das representações dos grandes Estados. Aproveitara o modelo do fascismo italiano." (5)Tomando por base a Constituição de Weimar, de 1919, a Constituição de 1934manteve a divisão de Poderes do federalismo, mas promoveu uma centralizaçãolegislativa em favor da União, mediante o deslocamento de matérias antes reservadas aos Estados. Inaugurou-se o federalismo cooperativo, afastando-se, assim, a Constituição do federalismo dual ou isolacionista anterior. O Senado Federal foi reduzido a órgão de colaboração de Poderes, com o abrandamento do sistema bicameral. Mas foi no campo social onde se verificaram as maiores inovações do texto constitucional de 1934: surgiu o Título da "Ordem Econômica e Social", prevendo direitos econômicos e sociais e ampliação do intervencionismo estatal. Foi eliminada, no Poder Executivo, a figura do Vice-Presidente da República. No Poder Judiciário, foram introduzidas a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar. Deve-se destacar, ainda, a criação do mandado de segurança, ampliando-se a proteção dos direitos individuais.

(5) FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Op. cit., p. 125.156

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 4 CONSTITUIÇÃO DE 1937A 10 de novembro de 1937, o Presidente Getúlio Vargas outorgou a nova Constituição brasileira. Pinto Ferreira resume os principais pontos dessa Constituição:"1. suprimiu o nome de Deus, o que também ocorre na Constituição do Estado do Vaticano; 2. outorgou poderes amplos ao presidente como a suprema autoridade do Estado, alterando a sistemática do equilíbrio dos poderes; 3. restringiu as prerrogativas do Congresso e autonomia do Poder Judiciário, eis que em determinadas hipóteses o Presidente podia ir de encontro ao Judiciário fazendo valer as leis que este reputasse inconstitucionais; 4. ampliou o prazo do mandato do Presidente da República; 5. mudou o nome de Senado para Conselho Federal; 6. instituiu o Conselho de Economia Nacional como órgão consultivo; 7. limitou a autonomia dos Estados-Membros; 8. criou a técnica do estado de emergência, que foi declarado pelo seu art. 186; 9. dissolveu a Câmara e o Senado bem como as Assembléias Estaduais; 10. restaurou a pena de morte". (6)

Na realidade, a Constituição de 1937 permaneceu na sua maior parteinaplicada, pois foram dissolvidos os órgãos do Poder Legislativo de todos os níveis de governo, e não se realizou o plebiscito determinado pelo texto constitucional.

& 5 CONSTITUIÇÃO DE 1946Com a reconstitucionalização do país, precedida da queda de Vargas, ocorridaem ambiente internacional a ela favorável com o fim da Segunda Guerra Mundial,instalou-se, a 2 de fevereiro de 194G, a Assembléia Constituinte sob o governo do General Eurico Gaspar Dutra, eleito no final do ano de 1945.A quarta Constituinte brasileira não trabalhou sobre nenhum anteprojeto preparado pelo Governo, mas certamente se inspirou no texto de 1934. Destacam-se os seguintes pontos: o bicameralismo foi restabelecido; a figura do Vice-Presidente da República foi restaurada, cabendo-lhe ainda a função de presidir o Senado Federal; houve expansão dos Poderes da União, em detrimento dos Poderes dos Estados; na ordem econômica e social, a propriedade foi condicionada ao bem-estar social; introduziu-se título novo referente à família, educação e cultura; no âmbito do Poder Judiciário, foram previstas a Justiça do Trabalho e o Tribunal Federal de Recursos. Com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, o País mergulhou em profundacrise institucional, eis que setores conservadores e o Exército não aceitavam a posse

(6) PINTO FERREIRA, Luiz. Curso de direito constitucional, P. 55.157

KILDARE GONÇALVES CARVALHOdo Vice-Presidente João Goulart. Prevaleceu, no entanto, o bom senso quando seaprovou a Emenda Constitucional n. 4, de 2 de setembro de 1961 (Ato Adicional),instituindo o parlamentarismo. O art. 25 do Ato Adicional estabelecia que a lei complementar de organização do sistema parlamentar de governo poderia dispor sobre a realização de plebiscito que decidisse da manutenção do parlamentarismo ou da volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo do atual período presidencial. Em flagrante desrespeito a esse dispositivo, fixou-se para o dia 6 de janeiro de 1963 a data para a realização do que a Lei Complementar n. 2, de 12 de setembro de 1962, chamou de "referendum popular", restaurando-se, após acirrada campanha, o presidencialismo por antecipação inconstitucional do plebiscito, que, nos termos do Ato Adicional, deveria realizar-se em 1965.Consumou-se, pois, o presidencialismo, pela Emenda Constitucional n. 6, de23 de janeiro de 1963, caminhando o País, a partir daí, para a crise de 1964.

& 6 CONSTITUIÇÃO DE 1967 E SUA EMENDA N. 1, DE 1969 Vitorioso o movimento militar de 1964, o Congresso Nacional elegeu Presidente da República o Marechal Castelo Branco. Várias alterações são apresentadas à Constituição de 1946, através de emendas, atos institucionais e atos complementares. Desfigurado o texto de 1946, cuidou-se então de consolidar, em nova Constituição, a obra do movimento militar, já que inclusive a Constituição de 1946 se achava em vigor por força do Ato Institucional n. 1, de 1964, que a manteve. O projeto de Constituição foi elaborado por uma Comissão, nomeada pelo Decreto n. 58.198, constituída pelo Ministro Mem de Sá e pelos juristas Themístocles Cavalcanti, Seabra Fagundes, Orosimbo Nonato e Levi Carneiro. Seabra Fagundes se afastou da Comissão após divergências. Concluídos os trabalhos, a Comissão entregou o texto ao Ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva, que procedeu à sua revisão, entregando-o ao Presidente Castelo Branco.Assim, o Presidente da República, em 7 de dezembro de 1966, editou o AtoInstitucional n. 4, convocando o Congresso Nacional para "reunir-se extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967", a fim de elaborar a lei constitucional do movimento de 31 de março de 1964. A Constituição tinha de estar promulgada no dia 24 de janeiro. Caso a votação não tivesse sido encerrada até o dia 21 de janeiro, prevaleceria o projeto originário, com a redação final da comissão mista. Pela Constituição de 1967, a federação foi mantida, mas com dilatação dos Poderes da União, configurando-se um federalismo mais nominal do que real, pelo esmagamento das autonomias locais; houve exacerbação do presidencialismo, com a utilização

dos decretos-leis e previsão das leis delegadas e da legislação de urgência; foi adotada a eleição indireta do Presidente da República por um colégio eleitoral158

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOformado por membros do Congresso Nacional e delegados indicados pelas Assembléias Legislativas dos Estados; suspenderam-se as garantias da magistratura, mediante os Atos Institucionais; a Justiça Militar passou a deter competência para processar e julgar civis pela prática de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares, com recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal. Descaracterizado por sucessivos Atos Institucionais, o texto constitucionalde 1967 foi unificado pela Emenda n. 1, de 17 de outubro de 1969, outorgada poruma Junta Militar, que assumiu o poder durante o período de doença do Presidente Costa e Silva. Destacam-se como modificações introduzidas na Constituição de 1967: aumento para cinco anos do período presidencial; eleições indiretas paragovernadores de Estado; eliminação, praticamente, das imunidades parlamentaresmateriais e processuais.Há pontos de vista no sentido de que a Emenda n. 1/69 equivale a nova Constituição. Nesse sentido pensa José Cretella Jr., ao dizer que "preferimos denominar de Constituição a Carta Constitucional de 1969, tantas foram as alterações feitas no texto emendado de 24 de janeiro de 19G9, pela Junta Militar integrada por Augusto Hamann Rademaker Grünewald, Aurélio de Lyra Tavares e Márcio de Souza Mello".(7)A maioria dos constitucionalistas não equipara a Emenda n. 1/69 a novaConstituição, que apenas consolidou o texto de 1967 (Pontes de Miranda, PintoFerreira, Raul Machado Horta, dentre outros).

& 7 CONSTITUIÇÃO DE 1988A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 foi elaborada por AssembléiaNacional Constituinte, convocada pela Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985, tendo sido instalada solenemente no dia 1° de fevereiro de 1987 em memorável sessão presidida pelo Ministro Moreira Alves, Presidente do Supremo Tribunal Federal, que pronunciou erudito discurso que se prolongou por meia hora.A 2 de fevereiro de 1987, é eleito Presidente da Constituinte o DeputadoUlysses Guimarães.A Constituinte de 1987 não se baseou em anteprojeto do Governo, circunstância que tem sido apontada como um dos fatores que acarretaram demora e lentidãodos seus trabalhos. Embora convocada pelo Decreto n. 91.450, de 18 de julho de1985, do Presidente José Sarney, sucessor do Presidente Tancredo Neves, falecidoantes da posse, a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (Comissão deNotáveis) elaborou um texto que não foi encaminhado à Assembléia Constituintepelo Presidente da República, o qual preferiu remetê-lo ao Ministério da Justiça. Tal

(7) CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988, p. 45.p. 45.159

KILDARE GONÇALVES CARVALHOfato tem sido explicado por haver o texto da Comissão adotado o sistema parlamentar de governo, contrariando, assim, o Presidente da República, que teria seus poderes reduzidos.A legitimidade da Constituinte foi ainda discutida, alguns pretendendo-a livrea soberana, outros querendo-a limitada. A propósito, escrevem Paulo Bonavides ePaes de Andrade:"a Constituinte congressual não era indubitavelmente a forma mais legítimade assembléia para conduzir o processo ou exprimir sem pressupostos restritivos o exercício da soberania nacional em toda sua plenitude. A sub-representação política dos grandes Estados na composição do colégio constituinte se tornava assim patente, sendo por conseguinte óbvio que

essa carência de plenitude e igualdade na representação conjunta do eleitorado fazia baixar o teor de representatividade e democracia do poder soberano no exercício da função constituinte, caindo consideravelmente o grau de sua legitimidade".E advertem:"Como a história tem suas desforras, a Carta de 1824 não pôde evitar a crise do Primeiro Reinado, a Confederação do Equador, a perda da Província Cisplatina e, finalmente, a abdicação. Será que a de 1987 não nos reservará igual feixe de surpresas, em face da crise econômica, financeira, política e social que a Nação atravessa? Terá ela legitimidade bastante para criar e fazer estável uma nova ordem institucional?" (8)Seria então a Constituinte de 1987 mera ilusão? Não o cremos. Na realidade,embora convocada através de emenda à Constituição de 19G7, o ato convocatório, no seu art. 1°, declarava livre e soberana a Assembléia que, uma vez instalada, passou a exercitar amplos poderes, inclusive para mudar as formas de Estado ou de governo, pois não estava vinculada à manutenção da federação ou da república. Além disso, foi ampla a participação popular nos trabalhos constituintes, ressaltando o Deputado Ulysses Guimarães, Presidente da Constituinte, que, durante os trabalhos, cerca de 5,4 milhões de pessoas transitaram pelo Edifício do Congresso Nacional, sendo ainda apresentadas 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, fato que revela o nível daquela participação, que hoje caracteriza as democracias.A Constituição de 1988 contém na parte permanente nove títulos, assim denominados: Título I (Dos Princípios Fundamentais); Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais); Título III (Da Organização do Estado); Título IV (Da Organização dos Poderes); Títulos V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas);

(8) BONAVIDES, Paulo, ANDRADE, Paes de. Op. cit., p. 102-489.160

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOTítulo VI (Da Tributação e do Orçamento); Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira); Título VIII (Da Ordem Social); Título IX, que compreende as Disposições Constitucionais Gerais e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.Verifica-se que novas matérias foram introduzidas na Constituição, como osprincípios fundamentais constantes do Título I; preceitos sobre seguridade social, compreendendo saúde, previdência social, assistência social, ciência e tecnologia, comunicação, meio ambiente, criança, adolescente, idoso, índio, alargando-se assim o campo constitucional.Os direitos fundamentais foram deslocados para o início da Constituição, deixando de figurar no seu final, como ocorria nos textos anteriores.A "ordem econômica" mereceu Título próprio, destacando-se da "ordemsocial", de forma a atender as funções do Estado contemporâneo.Prevista no art. 3° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, parase realizar após cinco anos contados da promulgação da Constituição de 1988, arevisão constitucional, de que foi relator-geral o Deputado Nelson Jobim, iniciou-se no dia 13 de outubro de 1993, em sessão unicameral do Congresso Nacional, instalada sob a presidência do Senador Humberto Lucena.Antes mesmo de se iniciarem os trabalhos da revisão, três correntes disputavam a prevalência de suas idéias.Para a primeira corrente, a revisão estava limitada ao resultado do plebiscito de 7 de setembro de 1993, antecipado para 21 de abril, pela relação existente entre os arts. 2° e 3° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Mantidos o presidencialismo e a república, não haveria que falar em revisão do texto constitucional, possível apenas no caso de vitória plebiscitária do parlamentarismo ou da monarquia constitucional, o que não ocorreu, já que 5, 45% dos votantes� optou pelo presidencialismo contra 24, 65% dos votos para o parlamentarismo. A república recebeu 66,06% dos votos, enquanto a monarquia constitucional obteve apenas 10,21% deles.A segunda corrente aceitava a revisão independentemente do resultado doplebiscito, mas limitada pelo cerne imutável da Constituição, as chamadas cláusulas pétreas do art. 60, § 4°, quais sejam: forma federativa de Estado, voto direto, secreto, universal e periódico, separação de Poderes, direitos e garantias individuais.

A terceira corrente entendia ser possível que a revisão alterasse toda a Constituição, ultrapassando o seu cerne imutável, eis que, prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e não na parte permanente da Constituição, dela se achava desvinculada.O Regimento Interno da Assembléia Revisora vedou emendas revisionais queincidissem na proibição do § 4° do art. 60 da Constituição, adotando então o entendimento da segunda corrente acima referida.É de se destacar ainda que o Regimento Interno admitiu a possibilidade depromulgação imediata de emenda revisional, o que ensejou a promulgação, em 1° demarço de 1994, da Emenda Constitucional de Revisão n. 1, que incluiu os arts. 71 a

161

73 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo o Fundo Social de Emergência.No dia 31 de maio de 1994, foram encerrados os trabalhos da AssembléiaRevisora e, em 7 de junho de 1994, promulgadas as Emendas Constitucionais deRevisão n. 2 a 6.Dentre as alterações do texto constitucional promovidas pela revisão, destaca-se apenas a redução do mandato do Presidente da República de cinco para quatroanos. As demais modificações, incidindo sobre as regras de nacionalidade,inelegibilidade, perda do mandato de congressista e extensão da relação das autoridades que deverão prestar informações à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, ou a qualquer de suas comissões, não foram substanciais, o que revela a ineficácia da revisão constitucional.Com a posse do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, retomou-seo processo de alterações do texto constitucional, para adaptá-lo ao chamadoneoliberalismo que, como sistema político, filosófico e econômico, propõe-se a inserir o Brasil no quadro da economia mundial de mercado, a chamada globalização, e esvaziar o Estado dos pesados ônus que, segundo os defensores daquele sistema, vem suportando por força de alguns institutos da Constituição de 1988. Nessa perspectiva, o Congresso Nacional aprovou várias emendas constitucionais, dentre as quais se destacam as que tratam da ruptura do monopólio estatal relativo aos serviços de telecomunicações, à pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros carbonetos fluidos, a refinação de petróleo nacional ou estrangeiro, importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes dessas atividades, bem como a eliminação da figura da empresa brasileira. Promulgou-se ainda a Emenda Constitucional n. 16, de 4 de junho de 1997, pela qual se introduziu em nosso país a reeleição do Presidente da República, Governadores de Estado e do Distrito Federal, e de Prefeitos Municipais, para um único período subsequente ao do término de seus mandatos.A ela se seguiram as Emendas Constitucionais n. 17 a 22, com ênfase para aEmenda n. 18/98, que dispõe sobre o regime constitucional dos militares; a n. 19/98 (emenda da reforma administrativa), que modificou o regime e dispôs sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal; a n. 20/98, que modificou o regime de previdência social, e a n. 22/99, que possibilitou a criação dos juizados especiais no âmbito da Justiça Federal e alterou competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, no tocante à sua competência originária para o processo e julgamento de habeas corpus.Ao longo deste trabalho, procuraremos analisar o texto de 1988 em alguns deseus aspectos fundamentais. 162

Capítulo 9PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Sumário1 Introdução2 Acepções do termo princípio

3 Princípios e normas constitucionais4 Classificação dos princípios constitucionais5 Princípios fundamentais e preâmbulo constitucional6 Princípios fundamentais do Estado brasileiro7 República8 Estado Federal9 Estado Democrático de Direito10 Separação de Poderes11 Soberania12 Cidadania13 Dignidade da pessoa humana14 Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa15 Pluralismo político - Interesses coletivos e difusos16 Objetivos fundamentais do Estado brasileiro17 Princípios da ordem internacional18 Considerações finais

& 1 INTRODUÇÃOA Constituição Federal de 1988 foi promulgada com 315 artigos, sendo 245 na parte permanente e 70 no ato das disposições transitórias, superando em extensãonormativa as Constituições brasileiras anteriores. Essa circunstância poderia contribuir para o agravamento de conflitos ou tensões normativas, não fosse a existência, no texto constitucional, de princípios fundamentais (Título I), harmonizando e dando coerência e consistência ao complexo normativo da Constituição, além de fixar as bases e os fundamentos da nova ordem constitucional.Verifica-se, então, a indispensabilidade dos princípios constitucionais na suafunção ordenadora, não só porque harmonizam e unificam o sistema constitucional,como também porque revelam a nova idéia de Direito (noção do justo no plano devida e no plano político), por expressarem o conjunto de valores que inspirou oconstituinte na elaboração da Constituição, orientando ainda as suas decisões políticas fundamentais. (1)As Constituições brasileiras anteriores não dedicaram Título próprio aos princípios constitucionais, que eram extraídos, notadamente, daquelas normas que definiam a forma de Estado e de seu governo, das declarações de direitos (nacionalidade, direitos políticos e individuais e, a partir da Constituição de 1934, do Título dedicado à ordem econômica e social). Foi a Constituição de 1988 a primeira a tratar em Título especial (arts. 1° a 4°) dos princípios constitucionais, o que não significa, no entanto, que não possa haver outros princípios esparsos no texto. Bem ao contrário, a leitura da Constituição revela a existência de inúmeros princípios extraídos de Títulos ou Capítulos específicos, como, por exemplo, os princípios constantes do Título II (Direitos e Garantias Fundamentais, incluídos o direito à nacionalidade, os direitos sociais, os direitos políticos e os partidos políticos), os princípios referentes à Administração Pública (Capítulo VII do Título III, compreendendo o arts. 37a 42), os princípios relativos ao Ministério Público (arts. 127 a 130), à tributação e orçamento (Título VI), e à atividade econômica (Título VII), para citarmos alguns deles.Os princípios fundamentais da Constituição de 1988 desempenham relevantefunção no texto Constitucional, por orientar a ação dos Poderes do Estado

(1) MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, t. 2, p. 197-206.165

KILDARE GONÇALVES CARVALHO(Legislativo, Executivo e Judiciário), demarcando seus limites e sua atuação. Fala-se, neste ponto, em Constituição dirigente (Gomes Canotilho), (2) uma vez que, da criação da lei até a sua aplicação e integração, deve-se observar o conteúdo dos princípios fundamentais emanados da Constituição que condicionam e determinam o processo legislativo e a aplicação da lei. Daí, inclusive, colocar-se a questão da inconstitucionalidade por violação dos princípios fundamentais, circunstância que acentua ainda mais a sua força jurídica, e não apenas ética ou valorativa.

& 2 ACEPÇÕES DO TERMO "PRINCÍPIO"A palavra princípio vem do latim principium e significa início, começo, ponto departida. Na linguagem filosófica, o termo foi introduzido por Anaximandro com osignificado de fundamento, causa. (3) Não indica a coisa, mas a razão de ser da coisa, ensina José Cretella Júnior, pois, "no âmbito da filosofia, princípio é o fundamento ou a razão para justificar por que é que as coisas são o que são". (4)Mas como origem, ponto de partida, "princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas, que condicionam todas as estruturas subseqüentes", sendo os alicerces, os fundamentos da ciência. (5) Classificam-se em:a) onivalentes ou universais, os que se encontram em qualquer ciência (p. ex.,princípio da identidade e da não-contradição);b) plurivalentes ou regionais, os que "são comuns a um determinado grupo deciência que guarda certa semelhança entre si" (p. ex., princípios éticos, que interessam à moral, mas não são desprezados pela ciênciajurídica);c) monovalentes, os que fundamentam um só campo de conhecimento (p. ex.,princípio da legalidade, que informa a ciência do direito);d) setoriais, os que informam um setor de determinada ciência. (6)Enfim, embora a palavra. princípio apareça com sentidos diversos,' é ela indispensável à Ciência e à Filosofia e, no Direito, seu significado não difere dos acima mencionados, nomeadamente em Direito Constitucional, que, por envolver a idéia da Constituição como norma suprema e condicionante de todo 0 ordenamento jurídico, dela retira seu fundamento de validade.

(2) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, 1983.(3) MACEDO, Silvio de. Enciclopédia Saraiva do direito. Verbete: princípio, p. 504-505.(4) CRETELLA JUNIOR, José. Comentários d Constituição brasileira de 1988, v. 1; p. 129.(5) CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 129.(6) CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo, p. 14-15.(7) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 81.166

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 3 PRINCÍPIOS E NORMAS CONSTITUCIONAISDissertando sobre princípios e regras, Tércio Sampaio Ferraz Jr. (8) propõe alguns critérios distintivos (conforme Genário Carrió, citando Dworkin):"1. os princípios não exigem um comportamento específico, isto é, estabelecem ou pontos de partida ou metas genéricas; as regras, ao contrário, são específicas ou em pautas; 2. os princípios não são aplicáveis à maneira de um `tudo ou nada', pois enunciam uma ou algumas razões para decidir em determinado sentido, sem obrigar a uma decisão particular; já as regras enunciam pautas dicotômicas, isto é, estabelecem condições que tornam necessária sua aplicação e conseqüências que se seguem necessariamente; 3. os princípios têm um peso ou importância relativa, ao passo que as regras têm uma imponibilidade mais estrita; assim, os princípios comportam avaliação, sem que a substituição de um por outro de maior peso signifique a exclusão do primeiro; já as regras, embora admitam exceções, quando contraditadas provocam a exclusão do dispositivo colidente; 4. o conceito de validade cabe bem para as regras (que ou são válidas ou não o são), mas não para os princípios, que, por serem submetidos à avaliação de importância, mais bem se encaixam no conceito de legitimidade."Uma vez incorporados à Constituição, os princípios fundamentais passam asuscitar interesse no tocante à sua tipificação ou enquadramento normativo. Seria então o caso de indagar da força jurídica dos princípios, isto é, se os mesmos têm alguma ou acentuada expressão normativa. Jorge Miranda esclarece detalhadamente que "os princípios não se colocam além ou acima do Direito (ou do próprio Direito Positivo); também eles - numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais - fazem parte do complexo ordenamental. Não se contrapõem às normas, contrapõem-se tão-somente aos preceitos; as normasjurídicas é que se dividem em normas-princípios e normas-disposições". (9) Constituem normas

básicas de ordenação constitucional, no dizer de José Afonso da Silva. (10)A distinção, pois, entre princípios e normas jurídicas não resulta na negaçãodos princípios como espécies normativas: uma vez positivados no texto constitucional, ascendem os princípios à categoria normativa, pelo que devem ser tidos como normas jurídicas, alguns auto-executáveis "enquanto diretamente aplicáveis ou diretamente capazes de conformarem as relações político-constitucionais" (11) (8) FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Interpretação e estudos da Constituição de 1988, p. 88.(9) MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 198.(10) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 82.(11) MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 199.167

KILDARE GON~ALVES CARVALHO(como, p. ex., a afirmação do art. 1° da Constituição de que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito), e outros dependendo de legislação integrativa. Depois de explicitar os critérios de distinção entre princípios e normas(grau de abstração, aplicabilidade e separação radical), Celso Ribeiro Bastos conclui que, "no fundo, tanto são normas as que encerram princípios quanto as que encerram preceitos". (12)

& 4 CLASSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAISSão inúmeras as classificações dos princípios constitucionais propostas combase na sua natureza e função. Os autores portugueses têm-se dedicado ao tema, e, entre nós, José Afonso da Silva.Entre os autores portugueses destacam-se Gomes Canotilho e Jorge Miranda.O primeiro classifica os princípios constitucionais em princípios jurídicos fundamentais, referindo-se "a princípios fundamentais historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica geral e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional", dando como exemplo, dentre outros, o princípio da defesa de direitos, incluindo o direito de resistência e de legítima defesa, o princípio da publicidade dos atos jurídicos com eficácia externa, e o princípio da imparcialidade da administração pública, constituindo tais princípios, que pertencem à ordem jurídica positiva, "um importante fundamento para a interpretação, conhecimento e aplicação do direito positivo". Há ainda, segundo a classificação de Canotilho, os princípios políticos constitucionalmente conformadores, que são "as normas ou princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte", expressando as opções políticas fundamentais e a ideologia inspiradora da Constituição. Cita como exemplo as normas caracterizadoras da organização econômico-social, as normas definidoras do regime político (monarquia ou república), da estrutura do Estado (Estado unitário ou federal), da forma de governo presidencialista, parlamentar racionalizado).(13)Jorge Miranda prefere classificar os princípios constitucionais em:1. princípios constitucionais substantivos, que são válidos em si mesmos eexpressam os valores básicos a que adere a Constituição material, subdividindo-se em princípios axiológicos fundamentais, "correspondentes aos limites transcendentes do poder constituinte, ponte de passagem do Direito Natural para o Direito Positivo", e princípios político-constitucionais, "correspondentes aos limites imanentes do poder constituinte", que refletem as opções e princípios de cada regime, como o princípio

(12) BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 138.(13) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 2a ed., p. 228-232.168

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOdemocrático, o princípio representativo, o da separação de Poderes, o da constitucionalidade, etc.;2. princípios constitucionais instrumentais, que correspondem à estruturação do sistema constitucional, em termos de racionalidade e operacionalidade, dando como exemplos, o princípio da publicidade das normas jurídicas, o da competência, etc. (14)Em seu clássico Curso de direito constitucional positivo, José Afonso da Silva propõe uma

classificação dos princípios constitucionais em princípios políticos constitucionais e princípios jurídicos constitucionais. Os primeiros se referem às decisões políticas fundamentais conformadoras do sistema constitucional positivo, constituindo todo o Título I da Constituição (arts. 1° a 4°), e os outros são informadores da ordem jurídica nacional, como, p. ex., o princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade, o princípio da isonomia, o princípio da autonomia individual, o princípio do devido processo legal, dentre outros tantos que cita. (15)

& 5 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E PREÂMBULO CONSTITUCIONALO preâmbulo da Constituição Federal de 1988 revela tão estreita conexão entreos valores e objetivos nele enunciados (direitos sociais, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça, sociedade pluralista e harmonia social) com os princípios do Título I da Constituição, que justifica uma abordagem do seu significado e valor jurídico, mesmo porque, segundo nosso entendimento, o preâmbulo não constitui cláusula irrelevante em face do articulado normativo da Constituição, mas, da mesma forma que os princípios, concorre para a harmonização e unificação do sistema constitucional, dando-lhe ainda coerência e consistência.Preâmbulo, do latim praeambulu, consiste numa declaração de propósitos queantecede o texto normativo da Constituição, revelando os fundamentos filosóficos, políticos, ideológicos, sociais e econômicos, dentre outros, informadores da nova ordem constitucional.O preâmbulo, na expressão de João Barbalho, "enuncia por quem, em virtudede que autoridade e para que fim foi estabelecida a Constituição. Não é uma peçainútil ou de mero ornato na construção dela". (16)Todas as Constituições brasileiras contiveram preâmbulo, sendo o mais longo o da Constituição de 1937, e o mais breve o da Constituição de 1967.À exceção das Constituições de 1891 e 1937, inspiradas, respectivamente, no ideal positivista e na doutrina totalitária (ver adiante), os preâmbulos das demais

(14) MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 200-2D3.(15) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 82-83.(16) BARBALHO, João. Constituição Federal brasileira - Comentários, p. 3.169

Cartas Políticas brasileiras sempre se reportaram a Deus, não obstante a absoluta separação da Igreja e do Estado, declarada na Constituição Federal de 1891 (art. 11 § 2°) e mantida nas Constituições posteriores.A referência que as Constituições brasileiras fazem a Deus, no preâmbulo, nãocontraria a regra normativa da separação da Igreja e do Estado, mas é o reconhecimento de que a sociedade política brasileira aceita a irradiação, em seus segmentos, do humanismo cristão.A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, traziaeste preâmbulo:"Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus e unânime aclamação dos povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os nossos súditos que, tendo-nos requerido os povos deste Império, juntos em câmaras, que nós quanto antes jurássemos e fizéssemos jurar o projeto da Constituição, que havíamos oferecido às suas observações para serem depois presentes à nova Assembléia Constituinte, mostrando o grande desejo que tinham de que ele se observasse já como Constituição do Império, por lhes merecer a mais plena aprovação, e dele esperarem a sua individual e geral felicidade política; nós juramos o sobredito projeto para observarmos, e fazermos observar como Constituição, que dora em diante fica sendo, deste Império; a qual é do teor seguinte."Em 24 de fevereiro de 1891, é promulgada a primeira Constituição republicana,com o seguinte preâmbulo, redigido e aprovado pela mesa do Congresso Constituinte:"Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil."A Constituição de 16 de julho de 1934 tinha o preâmbulo abaixo:"Nós, os representantes do Povo Brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a

unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil."A outorga da Constituição de 10 de novembro de 1937, que, na classificação de Karl Loewenstein, se enquadra na categoria de semântica, porque, "em lugar deservir à limitação do poder, a Constituição é aqui o instrumento para estabilizar e170

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOeternizar a intervençâo dos dominadores fáticos da localização do poder político", (17) foi precedida de preâmbulo assim redigido:"O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro, à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; atendendo ao estado de apreensãocriado no país pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente; atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança do bem-estar do povo; com o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civispolíticas: resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o país."

É breve o preâmbulo da Constituição de 18 de setembro de 1946:"Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus,em Assembléia Constituinte, para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil."Passando a se denominar "Constituição do Brasil", a Carta de 24 de janeiro de1967, com vigência para 15 de março desse mesmo ano, continha o seguinte preâmbulo, que equivalia mais a uma cláusula promulgatória: "O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição do Brasil".A Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, manteve o preâmbulo da Constituição de 1967.

(17) LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, p. 219.171

KILDARE GONÇALVES CARVALHOO preâmbulo da nova Constituição brasileira, promulgada a 5 de outubro de1988, é do seguinte teor:"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia NacionalConstituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a asseguraro exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, obem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil."Verifica-se que, no preâmbulo da nova Carta, se acham enunciados os princípios que lançarão luzes para a interpretação do texto constitucional, representando,por isso mesmo, o ideário resultante do momento histórico que serviu de pano defundo para os trabalhos constituintes.Em pronunciamento sobre o Projeto de Constituição, o Instituto dos Advogados de Minas Gerais

divulgou relatório elaborado pelo Prof. Raul Machado Horta, acentuando a propósito do preâmbulo em destaque:"A redação inicial do Preâmbulo deveria conferir primazia ao Povo, alterando, neste aspecto, a fórmula consagrada nas Constituições Republicanas, que têm conferido ênfase aos representantes do Povo, como preferiu o Projeto. Considerando que o Povo é o fundamento primário do Poder Constituinte Democrático, bastaria que se alterasse a redação, adotando a seguinte: `O Povo Brasileiro, reunido em Assembléia Nacional Constituinte, através de seus representantes, invocando a proteção de Deus...(18)Problema que se tem colocado para o Direito Constitucional diz respeito aovalor jurídico do preâmbulo, que se reduz às seguintes teses: 1. tese da irrelevância jurídica; 2. tese da eficácia do preâmbulo idêntica à de qualquer norma constitucional; 3. tese da relevância jurídica específica ou indireta. (19)Para os que sustentam a tese da irrelevância jurídica, o preâmbulo não ingressano mundo jurídico, tendo valor meramente político. A Constituição da França, de1946, excluía o preâmbulo do controle da constitucionalidade, que não poderia ser revelada em razão do contraste de preceito normativo com o preâmbulo.

(18) INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE MINAS GERAIS. Pronunciamento, p. 13.(19) MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 209.172

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA tese da eficácia jurídica do preâmbulo o equipara a norma constante daConstituição, com todas as suas conseqüências, inclusive no que se refere àinconstitucionalidade por violação dos princípios do preâmbulo.Pela tese da relevância jurídica indireta, o preâmbulo, embora não se confundacom norma jurídica constitucional, contribui para a integração da Constituição, ou seja, os princípios declarados no preâmbulo poderão ser invocados para aexplicitação de preceito normativo constitucional não suficientemente claro.Os princípios consubstanciados no preâmbulo terão relevância jurídica se otexto normativo da Constituição exigir clarificação ou integração. Haverá caso, no entanto, em que a preâmbulo não terá relevância porque "as normas da Constituição consomem todas as afirmações nele contidas (com a vantagem de revelarem uma maior riqueza ideológica do que as fórmulas assépticas empregadas no texto preambular)". (20)O preâmbulo é criação do poder constituinte, da mesma forma que o é oarticulado normativo da Constituição: o preâmbulo e as normas jurídicas constitucionais são aprovados segundo o mesmo processo, passando a integrar materialmente a Constituição.Distingue-se, pois, o preâmbulo dos preceitos normativos constitucionais nãopela origem ou pelo instrumento em que se insere, mas, apenas, como observa Jorge Miranda, pela eficácia ou pela função que desempenha na Constituição. (21)

& 6 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO ESTADO BRASILEIROAo examinarmos os princípios fundamentais positivados na Constituição Federal de 1988 (Título I, arts., 1° a 4°), há uma afirmação de José Cretella Jr. quemerece meditação, quando observa que "a expressão princípios fundamentais é redundante, porque princípios são "proposições que se colocam nas bases dos sistemas, informado-os, sustentando-os, dando-lhes base, fundamento. Bastaria, assim, o vocábulo princípios." (22)De outra parte, a Constituição enuncia no art. 1° os fundamentos do Estadobrasileiro e no art. 3° trata dos seus objetivos. Distinguem-se, pois, os fundamentos dos objetivos. É que aqueles são inerentes à estrutura do Estado e do Poder, enquanto estes se acham fora da estrutura do Estado; algo externo a ele, e que devem ser buscados através de ações do Estado e da própria sociedade (construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação).

(20) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 209.

(21) MIRANDA, Jorge. Op. cit., v. 2, p. 210.(22) CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários, Op. cit., v. 2, p. 128.173

KILDARE GONCALVES CARVALHO

& 7 REPÚBLICAA república se contrapõe à monarquia. A Constituição de 1988 mantém a república como forma de governo no art. 1°, situando-a como princípio constitucional a ser observado pelos Estados federados, sob pena de intervenção federal, noart. 34, VII, a.O conceito de res publica, para os romanos, indicava a ordem política em suaunidade. Como forma de governo, o conceito se acentuou a partir da obra deMaquiavel, no Renascimento, contrapondo-se à monarquia.Aristóteles concebia as formas de governo, tendo em vista o número dos titulares do poder, em monarquia (governo de um só), aristocracia (governo de mais um) edemocracia (governo de toda a coletividade), com suas formas degeneradas em tirania (o governo é exercido, despoticamente, no interesse do monarca), oligarquia (o governo é exercido no interesse dos ricos), e demagogia (o governo é exercido no interesse dos pobres).A classificação das formas de governo em dois termos (monarquia ou principado, e república) surgiu com Maquiavel, no século XVI, que adotou como critério distintivo a vitaliciedade para a monarquia e a temporariedade para a república.Para Duguit, a monarquia é a forma de governo em que há um Chefe de Estado hereditário; a república é a forma de governo em que não há Chefe de Estado,ou em que o Chefe de Estado não é hereditário. O desenvolvimento da idéia de república buscava atribuir-lhe base popular,não obstante a existência de repúblicas aristocráticas, como assinalado porMontesquieu.Examinando a configuração jurídica das formas políticas, Pablo Lucas Verdúmostra que, "historicamente, a democratização progressiva das monarquias, em fins do século passado, a extensão do sufrágio até fazê-lo universal, a conversão do monarca em órgão com funções delimitadas têm `republicanizado' as formas monárquicas." (23)É certo, todavia, que, no século XX, algumas "ditaduras emergentes vêm sendoregimes republicanos, assim as de esquerda como as de direita. Vêm sendo formas de poder absoluto implantadas em Estados massificados". (24)Verifica-se, então, que a concepção de república se tornou formal, pois nãoavança na direção da realidade do Estado, da sua ideologia e das suas finalidades.Não obstante, a Constituição de 1988, ao instituir a República Federativa dobrasil como Estado Democrático de Direito (art. 1°), vincula essa forma de governo à idéia de democracia e, portanto, de um governo limitado e responsável, surgindo daí a idéia de responsabilidade da Administração Pública, presente no art. 37, art. 93, IX,

(23) VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de derecho político, p. 232.(24) SALDANHA, Nelson. Pequeno dicionário da teoria do direito e filosofia política, p. 207.174

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOe no princípio do art. 70, parágrafo único, segundo o qual "prestará contas qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária."A temporariedade dos mandatos eletivos vem ressaltada nos arts. 28, 29, I e II,e 77, sendo que o art. 60, § 4°, II, impede que seja objeto de deliberação a proposta de emenda à Constituição tendente a abolir "o voto direto, secreto, universal e periódico", não havendo, no entanto, referência à república, como constava do texto constitucional anterior.

& 8 ESTADO FEDERALAo declarar, no art. 1°, que "A República Federativa do Brasil, formada pelaunião indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito", a Constituição de 1988 mantém a forma federal do Estado brasileiro, nela incluindo, pela primeira vez, os Municípios como entidades federativas e, coerentemente, excluindo os Territórios.Em livro dedicado à teoria jurídica do Estado Federal, M. Mouskhley o conceitua como o "Estado que se caracteriza por uma descentralização de forma especial e de grau elevado; que se compõe de coletividades membros por ele dominadasmas que possuem autonomia constitucional e participam na formação da vontade federal, distinguindo-se desta maneira de todas as coletividades públicas inferiores". (25)Por envolver técnica de descentralização do poder político, o Estado Federalrevela dois princípios que o distinguem de outras formas de Estado: o princípio da autonomia e o princípio da participação. Pelo primeiro, as coletividades territoriais distintas do poder central (Estados federados na Constituição brasileira) têm sua própria estrutura governamental e competências peculiares; pelo segundo, os Estados federados participam da formação da vontade ou das leis nacionais (Constituição, art. 46, que atribui ao Senado a função de órgão legislativo de representação dos Estados).A idéia de federação não se exaure apenas no plano jurídico. Ela envolve também o federalismo como princípio que harmoniza a diversidade com a unidade, o plural com o singular, o geral com a particular. O federalismo é aí entendido como uma concepção de vida, acarretando um comportamento da sociedade civil direcionado para a liberdade, em razão da noção mesma da descentralização que se acha presente na federação. Como estrutura do Estado, o federalismo revela umaspecto unitário e outro federativo, possibilitando que as entidades locais se organizem mediante regras próprias, capazes de reproduzir a diversidade de cada uma delas sem, no entanto, eliminar o sentimento nacional que mantém a unidade do Estado.

(25) MOUSKHELY, M. La théorie juridique de l'État fédéral, p. 261.175

KILDARE GONÇALVES CARVALHOFala-se, então, que o povo, no âmbito do Estado Federal, deve lealdade ao governo e às autoridades federais, e aos governos e às autoridades estaduais.Breve análise da evolução do Estado Federal brasileiro mostra que até a Constituição de 1988 houve progressiva centralização do poder político, desfigurando-se a federação. Lembra Oswaldo Trigueiro que, na história de nossas instituições federativas, "talvez a melhor fase do federalismo brasileiro terá sido, provavelmente, a da Constituição de 1946, durante cuja vigência de quase duas décadas os Estados usufruíam efetiva autonomia, mesmo aqueles governados por adversários do partido que ocupava a Presidência da República.Tivemos assim, excepcionalmente, quase vinte anos de normalidade institucional sem uma só intervenção que derrubasse qualquer governo estadual, e a única decretada no período, em Alagoas, executada sob a égide do Poder Judiciário,não afastou de seus cargos as autoridades estaduais, legitimamente eleitas." (26)Depois do longo apogeu da centralização antifederativa, consagrada pelaConstituição de 1967, e sua Emenda n. 1, de 1969, que institucionalizaram o federalismo hegemônico da União nos setores político, legislativo, econômico e social, com a hipetrofia do Poder Central, a Constituição de 1988 se propõe a restaurar a federação brasileira. Anotem-se, como exemplos, algumas medidas nesse sentido: necessidade de consulta plebiscitária para a criação de novos Estados (art. 18, § 3°); redefinição da repartição de competências, com ampliação das áreas de competência comum e concorrente (arts. 23 e 24); inovação dos tipos de competência, com a introdução da "competência delegada" dos Estados (art. 22, parágrafo único), pela qual lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre matérias de competência privativa da União; eliminação de algumas hipóteses de intervenção federal e revisão do sistema tributário nacional, com o alargamento da competência tributária dos Estados e Municípios e aprofundamento dos mecanismos do federalismo cooperativo (participação dos Estados e

Municípios no produto da arrecadação de impostos federais e destes últimos nos impostos estaduais). A Constituição de 1988 mantém o federalismo homogêneo ou simétrico, pelo qual cada Estado federado é dotado da mesma parcela de poder, não obstante revelara ocorrência de fatores e peculiaridades próprias. A Constituição fez, no entanto, pequenas concessões ao federalismo assimétrico ou heterogêneo (determinados Estados têm competências, instituições e rendas tributárias segundo as suas peculiaridades, que podem ser de natureza geográfica, demográfica, econômica, financeira, dentre outras), ao prever, no art. 165, § 4°, a formulação de planos e programas regionais, bem como ao determinar, no art. 159, I, c, a entrega, pela União, dentre 47% do produto da arrecadação dos impostos sobre a renda e sobre produtos industrializados, do percentual de 3% "para aplicação em programas de financiamento ao setor

(26) TRIGUEIRO, Oswaldo. A federação da nova Constituição do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos. 60/61, p. 159.176

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOprodutivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer".Insiste a Constituição, todavia, na restauração do federalismo brasileiro, com amanutenção do binômio União-Estados federados, desconhecendo, salvo em tímidasconcessões, como a acima enunciada, o federalismo assimétrico. Defensor ardorosodo regionalismo, o Prof. Paulo Bonavides chega a afirmar que a federação no Brasil, hoje, é muito mais um problema de regiões do que um problema de Estados. (27) E o eminente constitucionalista Raul Machado Horta chegou até mesmo a propor o regionalismo "como nível de poder e de administração, de forma a incorporar aos quadros do regionalismo constitucional as regiões de desenvolvimento econômico, de natureza pluriestadual; as regiões metropolitanas, de âmbito plurimunicipal, nas áreas das grandes concentrações urbanas, dotadas de administração e de governo, e, finalmente, as regiões autônomas, de estrutura intermunicipal, para congregar Municípios da mesma região dentro do Estado, com estatuto e governo próprios. (28) Mas o texto de 1988 não acolheu essas idéias, prevendo as regiões (art. 43) numplano meramente administrativo-financeiro, e não em nível de autonomia política.

& 9 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOAo declarar que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito (art. 1°), a Constituição institucionaliza um tipo de Estado que tem fundamentos e objetivos concretos (arts. 1° e 3°).O Estado Democrático, segundo observa Dalmo de Abreu Dallari, constrói-se em torno de três pontos fundamentais: a) supremacia da vontade popular; b) preservação da liberdade, c) igualdade de direitos. (29)Vinculado à idéia de democracia, tem na sua base o princípio da maioria, oprincípio da igualdade e o princípio da liberdade. Entretanto, democracia é palavra que designa não apenas uma forma de governo, mas deve ser entendida também como regime político, forma de vida e processo.Como processo de natureza dialética, a democracia "vai rompendo os contrários, as antíteses, para, a cada etapa da evolução, incorporar conteúdo novo, enriquecido de novos valores", afirma com convicção José Afonso da Silva, ao criticar a tese dos que sustentam o elitismo democrático, procurando identificar pressupostos para a democracia, como certo amadurecimento cultural, determinado nível de desenvolvimento

(27) BONAVIDES, Paulo. Constituinte e Constituição, p. 261.(28) HORTA, Raul Machado. Anais do Simpósio Minas Gerais e a Constituinte, p. 504-505.(29) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 128.

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econômico, educação do povo e tantos outros requisitos que acabam por transformar a democracia em algo somente acessível às elites. (30)Pablo Lucas Verdú entende por democracia "o regime político que institucionaliza a participação de todo o povo na organização e exercício do poder político, mediante a intercomunicação e o diálogo permanente entre governantes e governados, e o respeito dos direitos e liberdades fundamentais dentro de uma justa estrutura sócio-econômica". (31)O Estado de Direito, expressão usada pela primeira vez por Robert von Mohl(Rechtsstaat), acha-se vinculado historicamente ao liberalismo político e econômico, destacando Verdú os seguintes elementos:a) primazia da lei, que regula toda a atividade do Estado;b) sistema `hierárquico de normas, que realiza a segurança jurídica que se concretiza numa categoria distinta de normas com diferentes graus de validade;c) legalidade da Administração, com um sistema de recursos em favor dosinteressados;d) separação de Poderes como garantia da liberdade e freio de possíveis abusos;e) reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais, incorporados à ordem constitucional;f) sistema de controle da constitucionalidade das leis, como garantia contraeventuais abusos do Poder Legislativo. (32)A concepção de Estado de Direito corresponde, ainda, no plano histórico, à lutacontra o monarca, seu poder absoluto e os privilégios medievais do clero, da nobreza e das corporações. O Estado de Direito, inspirado na ideologia liberal-burguesa, ampliou a liberdade-autonomia, com o reconhecimento do homem como valor absoluto e centro de todas as coisas, numa concepção no entanto formalista, pois o homem era visto na sua dimensão abstrata, distante de sua concretitude histórica. Compõe-se a idéia de Estado de Direito, da limitação do arbítrio do poder político, da estabilidade jurídica dos direitos e garantias individuais, da submissão de todos (governantes e governados) à lei, concretizada no princípio da legalidade (art. 5°, II, da Constituição), que se traduz no adágio "suporta a lei que fizeste". Os valores fundamentais da pessoa humana são reconhecidos. A lei é o instrumento da justiça e da segurança. Um sistema de defesa dos cidadãos contra os atos administrativos ilegais propicia a responsabilidade da Administração, e um controle da constitucionalidade preserva a Constituição como norma originária, repositório dos valores liberais.

(30) SILVA, José Afonso da. Op. cir., p. 1 12-114.(31) VERDÚ, Pablo Lucas. Op. cit., p. 242.(32) VERDÚ, Pablo Lucas. Op. cit., p. 238-239.178

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO Estado de Direito, conceito político que serviu historicamente ao liberalismo, vem-se transformando hoje em dia em Estado legalista, onde nem sempre o cumprimento da lei reflete a Justiça, desde que a multiplicidade e a instabilidade das leis vêm comprometendo a justiça. Como acentua Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "desde o instante em que é aprovada, antes mesmo da promulgação, já lhe reclamam a revogação. Alteram-se, então, com as variações do sistema de forças políticas, leis sobre a mesma matéria, dispondo uma o oposto da outra (de cuja edição pouco tempo decorreu). O que era proibido torna-se permitido, para, logo mais, voltar a ser proibido, para, um instante depois, voltar a ser permitido. O lícito e o ilícito assim flutuam, desorientando e confundindo a todos que querem curvar-se à lei". (33)Deteriora-se ainda o Estado de Direito pelo formalismo. Silvio Drobowolski,citando Burdeau, afirma que, depois da conquista da liberdade, iniciou-se a fase da exploração da liberdade. O Estado de Direito, por se vincular historicamente ao liberalismo econômico, permitiu quase que um absolutismo da vontade privada,refletida na propriedade privada, no contrato e na livre empresa.Assim, o Estado Democrático, em decorrência da noção mesma de democracia como processo dinâmico, é que propiciará a realização dos objetivos presentes no art. 3° da Constituição.

& 10 SEPARAÇÃO DE PODERESO princípio da separação de Poderes, embora concebido na Antigüidade porAristóteles, teve sua formulação teórica com Locke e Montesquieu. Locke mencionava o Poder Federativo, que tratava do que dissesse respeito às relações exteriores do Estado, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, aludindo ainda a um quarto Poder, a Prerrogativa, de competência do príncipe, para a promoção do bem comum no caso de omissão ou lacuna da lei. O princípio serviu historicamente para limitar o poder absoluto dos monarcas (século XVII) e de fundamento para o liberalismo emergente. Por isso mesmo é que distingue Montesquieu três Poderes do Estado: o Poder Legislativo, o Poder Executivo (poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes) e o Poder Judiciário (poder executivo das coisas que dependem do direito civil), correspondendo a cada um desse Poderes uma função do Estado. O autor de o espírito das leis esclarece, então, que a liberdade do homem estaria em perigo caso se concentrassem numa só pessoa os três Poderes antes referidos, pois a experiência mostra que todo homem que detém o poder tende a abusar do mesmo. Mas como os Poderes são dinâmicos e não estáticos quanto ao seu exercício, é preciso concebê-los como harmônicos e interdependentes. Daí a formulação da técnica dos freios e contrapesos (checks and balances), começada por Montesquieu e desenvolvida por Bolingbroke, na Inglaterra, durante o século XVIII.

(33) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e Constituição, p. 48.179

KILDARE GONÇALVES CARVALHOJosé Afonso da Silva fundamenta o princípio da divisão dos Poderes em doiselementos:a) especialização funcional, atribuindo a cada órgão o exercício de uma função(ao Congresso cabe a função legislativa, ao Presidente da República a função executiva e ao Judiciário a função jurisdicional);b) independência orgânica, indicando a não-subordinação de um órgão a qual-quer outro. (34)A Constituição de 1988, ao consagrar no art. 2° o princípio da separação dePoderes, os declara independentes e harmônicos. Embora não tenha o texto reproduzido cláusula constante da Constituição anterior, vedando a indelegabilidade de atribuições, ela continua existindo pela noção mesma do princípio. Assinale-se, contudo, que essa independência não é absoluta, pois a própria Constituição prevê expressamente a atribuição de funções atípicas aos três Poderes do Estado. Citem-se, como exemplos, a competência do Executivo para expedir medidas provisórias, iniciar o processo legislativo e vetar projetos de lei, como atos de natureza legislativa; a competência do Legislativo para julgar o Presidente da República por crime de responsabilidade (função jurisdicional), aprovar a indicação de determinados titulares de cargos públicos (função executiva), e a competência do Judiciário para iniciar o processo legislativo referentemente a determinadas matérias (função legislativa) e nomear osmagistrados de carreira (função executiva). Mas tais funções atípicas têm sempre em vista a noção de freios e contrapesos: assim, as medidas provisórias baixadas pelo Presidente da República deverão, para se converterem em lei, ser aprovadas pelo Congresso Nacional, que poderá também rejeitar o veto presidencial a projeto de lei, pelo voto da maioria dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto (art. 66, § 4°); se ao Poder Judiciário não cabe elaborar as leis, pode declarar a sua inconstitucionalidade, compensando-se, neste caso, a falta dessa prerrogativa. Pode-se concluir no sentido de que o princípio da separação de Poderes, tãocaro aos liberais, se acha em processo de irreversível transformação: o Estado contemporâneo não aceita mais a rigidez da separação de Poderes. Sem negar o princípio, cumpre, no entanto, atualizá-lo de modo a compatibilizar a eficiência do Estado com a preservação das liberdades constitucionais.

& 11 SOBERANIASoberania, palavra que tem sua origem em super omnia superanus ou supremitas,indica o poder de mando de última instância numa sociedade politicamente

(34) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 9G.180

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOorganizada. No plano interno, consiste na supremacia ou superioridade do Estado sobre as demais organizações, e, no externo, quer dizer independência do Estado em relação aos demais Estados.A concepção de soberania surgiu no século XVI para justificar o Estado absolutista, então emergente, com a eliminação dos poderes intermediários dos senhores feudais. O Estado moderno nasceu soberano, chegando-se até mesmo a falar que a soberania constituía traço essencial do Estado. O surgimento do Estado Federal criou, no entanto, o Estado não soberano dotado apenas de autonomia. Além do Estado Federal, o aprimoramento da teoria da separação de Poderes e a consolidação dos direitos fundamentais do homem, que provocaram a ruptura do Estado absoluto, empolgaram o conceito de soberania com o fracionamento do poder absoluto, que passou assim o sofrer limitações. A crise da noção de soberania tem-se agravado no mundo contemporâneo, havendo, inclusive, quem sustente que vivemos o ocaso da soberania, em razão, sobretudo, da superação do Estado nacional por outras formas de convivência social. Por isso mesmo é que Pablo Lucas Verdú, examinando a questão, acentua que "a crise do Estado nacional soberano exige a criação e consolidação de estruturas e instituições supranacionais de diversos tipos: econômico, militar, cultural [...], de modo que a questão da soberania se redimensione principalmente no plano das relações exteriores." (35)

& 12 CIDADANIAA cidadania constitui outro fundamento do Estado Democrático de Direito (art.1°, II). "Se nacionalidade é a sujeição, por nascimento ou por adoção, do indivíduo ao Estado, para gozo e exercício dos direitos políticos, cidadania é a habilitação do nacional para o exercício dos direitos políticos", esclarece magistramente José Cretella. (36)Cidadania constitui, portanto, status do nacional para o exercício dos direitospolíticos. É conceito aplicável apenas às pessoas físicas que podem votar e ser votadas, enquanto que nacionalidade se aplica também a coisas (navios e aeronaves).O texto constitucional em vigor ampliou os mecanismos de participação popular no processo político, redimensionando assim a cidadania: I - art. 5°, LXXVII, que diz serem gratuitas as ações de habeas corpus e habeasdata, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania;II - art. 14, que afirma que a soberania popular será exercida pelo sufrágiouniversal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular;

(35) VERDÚ, Pablo Lucas. Op. cit., p. 132.(36) CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 138.

KILDARE GONÇALVES CARVALHOIII - art. 14, II, c, que institui o alistamento e o voto facultativo para osmaiores de dezesseis e menores de dezoito anos, notando-se que, além da Constituição brasileira, a única no mundo, em vigor, que prevê o voto do maior de dezesseis anos é a Constituição da República da Nicarágua, de 19 de novembro de 1986, e publicada a 9 de janeiro de 1987;IV - art. 37, I, que assegura o acesso a cargos, empregos e funções públicas;V - art. 5°, LXXIII, que prevê legitimidade ao cidadão para a propositura deação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Observe-se ainda que, por expressa determinação da Constituição, matéria referente à cidadania não pode ser objeto de delegação legislativa ao Presidente da República (art. 68, § 1°, II).A Constituição considera, desta forma, o estágio atual de evolução da vida dospovos, para admitir que a idéia de cidadania não se acha restrita ao cidadão eleitor, mas se projeta em vários instrumentos jurídico-políticos imprescindíveis para viabilizá-la.Deve-se destacar, ainda, o parágrafo único do art. 1° da Constituição, que prevê, ao lado da

representação política, o exercício direto do poder pelo povo, reminiscência da democracia direta e que se traduz no plebiscito, referendo e iniciativa popular.A democracia participativa, no entanto, segundo entendemos, deve ser valorizada não como substitutiva da democracia indireta ou representativa, mas comotécnica capaz de corrigir os excessos e as insuficiências da representação política.Assim, as duas formas de democracia que emergem do texto constitucional não se excluem mutuamente, mas antes se completam.

& 13 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANAA dignidade da pessoa humana, que a Constituição de 1988 inscreve como fundamento do Estado, significa não só um reconhecimento do valor do homem emsua dimensão de liberdade, como também de que o próprio Estado se constrói combase nesse princípio.O princípio abrange não só os direitos individuais, mas também os de natureza econômica, social e cultural. Na ordem econômica, vem garantido quando diz aConstituição que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humanoe na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170); na ordem social, quando declara a Constituição que "a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais" (art. 193). Vem ainda reforçado no art. 5°, III (ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante); no inciso X, que garante a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas; no inciso XLI, que prevê a punição, por lei, de qualquer discriminação atentória dos

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DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOdireitos e liberdades fundamentais; no art. 7° (direitos sociais dos trabalhadores), quando, no inciso IV, institui como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais o salário mínimo, fixado em lei, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família; no inciso XXX, que proíbe diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

& 14 VALORES SOCIAIS DO TRABALHO E DA LIVRE INICIATIVAA Constituição da Espanha de 1978 estabelece, em seu art. 35, que "todos osespanhóis têm o dever de trabalhar e o direito ao trabalho". O texto constitucional brasileiro, se não contém preceito idêntico, reconhece o trabalho como um valor social (art. 1°, IV) que, ao lado da livre iniciativa, constitui fundamento do Estado e da ordem econômica (art. 170). O trabalho pode ser apreciado sob dois ângulos: individual e social. Por dignificar o homem, a Constituição atribui-lhe relevante valor social, colocando-o, assim, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

& 15 PLURALISMO POLÍTICO - INTERESSES COLETIVOS E DIFUSOSO Estado contemporâneo é essencialmente pluralista. A complexidade das relações sociais determinou a necessidade da formação de estruturas diversificadas em grupos em que se divide a sociedade, cada um deles com base ideológica própria.Surgem então os sindicatos, as entidades culturais, ecológicas, clubes de lazer, cooperativas e tantas outras categorias sociais, acarretando a existência de uma sociedade conflitiva, com interesses contraditórios. Mas a democracia pluralista que se configura nesse tipo de sociedade, porque formada a partir de grupos sociais de variados matizes ideológicos entre o homem e o Estado, constitui fator de descompressão social, na medida em que amplia a participação popular nos mecanismos do poder que se descentraliza por força das reivindicações populares. Fala-se então em pluralismo político, pluralismo econômico, pluralismo religioso, pluralismo cultural, já que o homem passa a participar, simultaneamente, de uma pluralidade de organizações.Em profunda análise a respeito do pluralismo, ressalta Norberto Bobbio que,"se, do ponto de vista do Estado, a acusação que pode ser levantada contra opluralismo é a de enfraquecer a compatibilidade e diminuir a força unificante e

necessária, do ponto de vista do indivíduo o perigo consiste na tendência natural de cada grupo de interesse endurecer suas estruturas à medida que cresce o número dos membros e se amplia o raio de ação, da mesma forma que o indivíduo crê ter-se libertado do Estado-patrão torna-se escravo de muitos patrões". (37)

(37) BOBBIO, Norberto. As ideologias e poder em crise, p. 33.183

KILDARE GONÇALVES CARVALHOSaliente-se que a Constituição brasileira, não obstante mencionar o pluralismopolítico como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, declara, noart. 5°, XX, que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecerassociado, norma que vem reforçada no art. 8°, V, no que se refere à sindicalização.Com o pluralismo político surgem os interesses coletivos e difusos, os quais deixam de se referir ao Estado para se centrarem nos grupos e na própria sociedade.Tem-se assim, inicialmente, o interesse coletivo, cujo sujeito, apesar de plural, é determinado, havendo uma relação-base jurídica que permite sua identificação, qualificando-se ainda pelo pólo de concentração que reside sempre num grupo social diferenciado. Não é uma soma de interesses individuais, mas um tertium genus, conflitando-se, em alguns casos, com os interesses individuais e até mesmo a eles se sobrepondo.São coletivos, entre outros, o direito de um condomínio horizontal, de associação de bairro e de sindicato.Já o interesse difuso traduz-se na indefinição subjetiva e na indivisibilidadeobjetiva: trata-se de direito que a muitos cabe, impassível de fruição individualizada excludente. Sem pólo de concentração, manifesta-se na indisponibilidade e na inexistência de titularidade identificável (interesse que é de todos e ao mesmo tempo de ninguém, nem mesmo de grupo definido).São difusos, entre outros, o direito ao meio ambiente, ao patrimônio artístico,estético, paisagístico e turístico, e o direito do consumidor.

& 16 OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DO ESTADO BRASILEIROO estilo adotado pela Constituição brasileira, ao estabelecer os objetivos fundamentais do Estado, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, configura o que se tem convencionado chamar de proclamações "emblemáticas", (38) adquirindo assim a linguagem constitucional todo um valor literário e simbólico, que se acha também presente no Preâmbulo. Não obstante, a Constituição, sobretudo no Título referente à ordem econômica (arts. 170 a 191), estabelece os instrumentos para a efetiva realização dos objetivos do Estado Democrático de Direito.

& 17 PRINCÍPIOS DA ORDEM INTERNACIONALA Constituição enumera, no art. 4°, os princípios que nortearão as relaçõesinternacionais envolvendo o Estado brasileiro: independência nacional; prevalência

(38) MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 205.184

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOdos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos e repúdio ao terrorismo e ao racismo. O Ministro Francisco Rezek, analisando o tema, mostrou que há no texto constitucional uma redundância, pois os mencionados princípios poderiam ser reduzidos a apenas três; "a independência e a autodeterminação dos povos, e não-intervenção nos assuntos domésticos do Estado, e a igualdade de todas as soberanias na cena internacional". (39)Independência e autodeterminação dos povos compõem a concepção de soberania, pelo que o

Estado não se sujeita a nenhum outro, podendo adotar a forma e ogoverno que atendam ao seu povo.O princípio da prevalência dos direitos humanos situa o homem como destinatário do direito internacional.Assim, deve o Brasil tomar posição contrária aos Estados que desrespeitam os direitos humanos. A própria Constituição revela preocupação com os direitos humanos não só quando ressalta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado (art. 1°, III), mas sobretudo quando declara, no art. 5°, § 2°, que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", admitindo, com isso, a obrigação de respeitar direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais. O princípio da igualdade jurídica reconhece aos Estados, não obstante as suaspeculiaridades próprias, sejam elas econômicas, políticas, sociais, culturais, a mesma igualdade de tratamento jurídico. Anote-se, todavia, que, "de modo gritantemente escandaloso, a ONU, que patrocina todas as Convenções sobre os direitos políticos, econômicos e internacionais, estabeleceu privilégio de veto nas sessões do Conselho de Segurança, para as cinco maiores potências: Rússia, Estados Unidos, França, China e Grã-Bretanha". (40)O direito de asilo a que se refere o texto constitucional é o asilo político, ouseja, aquele concedido pelo Estado asilante à pessoa estrangeira perseguida por motivos políticos. Há ainda uma outra modalidade de asilo, o territorial, que se verifica quando alguém, perseguido no seu Estado por motivos políticos, religiosos ou de raça, solicita refúgio no Estado em que se encontra, na condição de refugiado.O asilado está sujeito à observância das normas jurídicas que o governo estabelecer, não podendo deixar o país sem autorização, sob pena de perder a condição de asilado.Finalmente, há um objetivo fixado para a política externa brasileira, que é o debuscar a integração econômica, política e cultural dos povos da América Latina,

(39) REZEK, José Francisco. Princípios fundamentais. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações, p. 14.(40) COSTA, Elcias Ferreira da. Comentários breves à Constituição Federal, p. 26.185

KILDARE GONÇALVES CARVALHOvisando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (art. 4°, parágrafo único), fortalecendo-se, dessa forma, o grupo latino-americano, sobretudo para a negociação da dívida externa.

& 18 CONSIDERAÇÕES FINAISOs princípios fundamentais da Constituição de 1988 exercem, como se verificou, uma função ordenadora, conferindo unidade e consistência à Constituição. Nãose deve, todavia, conceber a Constituição como algo eterno ou imutável, mas, porexpressar as aspirações populares e a idéia de Direito presentes num dado momento histórico, é que a Constituição, para ser estável, deve adaptar-se à realidade social cambiante. Os princípios fundamentais, além da função ordenadora, exercem, assim, função dinamizadora e transformadora da Constituição, possibilitando uma interpretação renovadora do seu texto, de modo a preservar o Estado Democrático de Direito.

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Capítulo 10DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Sumário1 Histórico2 Valor jurídico das declarações de direitos

3 Classificação4 Limites dos direitos fundamentais5 Direitos e garantias fundamentais na Constituição de 1988

& 1 HISTÓRICOOs direitos individuais, entendidos como inerentes ao homem e oponíveis aoEstado, surgiram em fins do século XVIII, com as declarações de direitos na França e nos Estados Unidos.Não existiram na Antigüidade grega e romana, não obstante a referência estoicista às idéias de dignidade e igualdade. A polis grega e a civitas romana absorviam o homem na sua dimensão individual, não se manifestando a liberdade como direito autônomo: livre era o cidadão que gozava de capacidade para se integrar no Estado, participando das decisões políticas. Mesmo nas Artes e na Religião, não se concebia o homem na sua individualidade, já que era absorvido pelo todo, como dimensão da comunidade política. O cristianismo é apontado como marco inicial dos direitos fundamentais, manifestados nas parábolas de Jesus sobre o reino dos céus: a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. "Os direitos fundamentais do homem foram pregados por Jesus", é o que, em livro dedicado ao tema, fala João de Oliveira Filho. (1) Nesse sentido, observa ainda José Carlos Vieira de Andrade que, "no seguimento da tradição cristã, o poder temporal deixa de submeter o poder espiritual (pelo contrário, haveria de defender-se a sua subordinação a este último), tornando-se um poderio limitado, em contraposição ao totalitarismo da polis. (2)Na Inglaterra medieval, os direitos fundamentais foram marcados pelo pragmatismo e significaram concessões ou privilégios para a Igreja, nobreza, corporações, não se reconhecendo direitos universais, mas concretos, em relação aos que ossubscreviam: a Magna Carta se obrigava a respeitar alguns direitos, como o direito à vida, a administração da justiça, garantias do processo criminal, a Petition of Rights, de 1628, assinada por Carlos I, o Habeas Corpus Amendment Act (1679), assinado por Carlos II, e o Bill of Rights, de 1689, subscrito por Guilherme de Orange.Foi, no entanto, com a Revolução Francesa de 1789 que os direitos fundamentais ganharam universalidade, pois as declarações de direitos (que inclusive constavam de documento à parte do texto da Constituição) eram fundadas em bases filosóficas e teóricas, destacando-se o Contrato social de Rousseau e as concepções jusnaturalistas.

(1) OLIVEIRA FILHO, João de. Origem cristã dos direitos fundamentais, p. 12.(2) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 13.189

KILDARE GONÇALVES CARVALHOSurge então, na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de1789, onde se afirma, no seu art. 16, que "toda sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos fundamentais nem estabelecida a separação de Poderes não tem Constituição", verificando-se aí uma íntima conexão entre os direitos fundamentais e o princípio da separação de Poderes, e o caráter de universalidade e permanência dos direitos naturais: "Todos os homens nascem livres e iguais em direitos".Também as declarações de direitos surgem nos Estados Unidos, iniciando-se com as de Virgínia, Pensilvânia e Maryland, todas de 177G, e, depois, as das primeirasnove emendas da Constituição de 1787. Com o advento do Estado Social do pós-Guerra (1914-1918), os direitos fundamentais sofreram profundas alterações com as restrições ao direito de propriedade, para atender à sua função social e, em termos genéricos, à intervenção do Estado do domínio econômico e social.A concepção liberal-burguesa do homem abstrato e artificial foi substituídapelo conceito do homem em sua concretitude histórica, socializando-se então osdireitos humanos. O Estado deixa de ser absenteísta para assumir uma postura ativa, de quem são exigidas prestações para que sejam assegurados os direitos sociais (habitação, moradia, alimentação, segurança social, dentre outros).

Nos países totalitários, estabelece-se o primado do econômico e do social sobreo individual, com a coletivização dos meios de produção, buscando-se a igualdadematerial como condição da liberdade. Enfim, predomina uma concepçãotranspersonalista dos direitos fundamentais.Paralelamente a essa evolução histórica, e como decorrência das violações dosdireitos humanos, inicia-se no 2° pós-Guerra (1939-1945) a internacionalização dos direitos fundamentais. É assinada em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem; em 1966, são votados os Pactos Internacionais de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e de Direitos Cívicos e Políticos, em vigor desde 1976; e, em 1969, os Estados americanos assinam, em São José da Costa Rica, a Convenção Americana dos Direitos do Homem, para citarmos alguns exemplos.Discute-se, contudo, em Direito Internacional, a eficácia dessas declarações,alguns entendendo que elas mesmas teriam apenas valor de direito costumeiro. NoBrasil, tais declarações, passam a obrigar no território nacional (§ 2° do art. 5° da Constituição).Admitindo-se que a incorporação ocorra em nível de legislação ordinária, ostratados de direitos humanos não podem contrapor-se à Constituição, nem derrogam, por serem normas gerais, a legislação interna infraconstitucional.Sem embargo dos que adotam a teoria dualista para explicar as relações do direito externo com o direito interno, não se pode desconhecer que os tratados de direitos humanos não apenas se incorporam automaticamente na ordem jurídicainterna brasileira, por força do disposto no art. 5°, § 2°, da Constituição, como

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DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOtambém aqui passam a valer com o status hierárquico de norma constitucional, e não de norma ordinária.É que a teoria da paridade entre o tratado internacional e a legislação federalinfraconstitucional não se aplica aos tratados internacionais de direitos humanos, que se revestem de caráter especial, distinguindo-se dos tratados comuns.Com efeito, o tratamento jurídico diferenciado dos tratados internacionais dedireitos humanos deve ser reconhecido com base no art. 5°, § 2°, da Constituição de 1988, pelo fato de que, enquanto os tratados internacionais, que envolvem matéria comum, visam a reciprocidade e o equilíbrio das relações entre os Estados-partes, os tratados internacionais de direitos humanos transcendem os meros compromissos recíprocos dos Estados pactuantes, já que objetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano e não as prerrogativas dos Estados.A propósito, observa Juan Antônio Travieso:

"Os tratados modernos sobre direitos humanos em geral e, em particular, a Convenção Americana não são tratados multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de um intercâmbio recíproco de direitos, para o benefício mútuo dos Estados contratantes. Os seus objetivos e fins são a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto em face do seu próprio Estado, como em face de outros Estados contratantes. Ao aprovar estes tratados sobre direitos humanos, os Estados se submetem a uma ordem legal dentro da qual eles, em prol do bem comum, assumem várias obrigações, não em relação a outros Estados, mas em relação aos indivíduos que estão sob a sua jurisdição.Logo, a Convenção não vincula a penas os Estados-partes mas outorga garantias às pessoas. Por este motivo, justificadamente, não pode ser interpretada como qualquer outro tratado." (3)Ainda nesse sentido, manifestou-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva n.2, de setembro de 1982:"Ao aprovar estes tratados sobre direitos humanos, os Estados se submetem a uma ordem legal dentro da qual eles, em prol do bem comum, assumem várias obrigações, não em relação a outros Estados, mas em relação aos indivíduos que estão sob a sua jurisdição."Este caráter especial, portanto, é que vem justificar o status constitucional atribuído aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.

(3) TRAVIESO, Juan Antonio. Derechos humanos y derecho internacional. Buenos Aires: Heliasta,

1990, p. 90.191

KILDARE GONCALVES CARVALHOGomes Canotilho afirma:"O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivistica, ao `texto' da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da Constituição, alargando o `bloco da constitucionalidade' a princípios não escritos, mais ainda reconduzíveis aoprograma normativo-constitucionai, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regra constitucionais plasmadas. A paridade hierárquico-normativa, ou seja, o valor legislativo ordinário dasconvenções internacionais deve rejeitar-se pelo menos nos casos de convenções de conteúdo materialmente constitucional (exs.: convenção Européia de Direitos do Homem, Pacto Internaciona.l sobre Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais)." (4)Havendo conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Interno, ainda que este ultimo envolva preceito da própria Constituição, como proceder? O conflito poderia, à primeira vista, ser resolvido pela aplicação do princípiode que a lei posterior revoga a anterior com ela incompatível.Entretanto, em se tratando de direitos individuais, há um outro fundamentopeculiar para a resolução do conflito, que se situa no plano dos direitos humanos, que é o de considerar que deve ele ser dirimido pela escolha da norma mais favorável à vítima, privilegiando-se aquela que melhor proteja, no caso concreto, os direitos da pessoa humana, à consideração de que os tratados internacionais de direitos humanos são de natureza materialmente constitucional, equiparando-se, portanto, à própria Constituição.Então, se o tratado internacional, por ampliar o elenco dos direitos fundamentais, colidir com o texto constitucional, prevalecerá a norma mais benéfica à vítima, com a suspensão, se for o caso, do preceito de direito interno, aí considerada a própria norma constitucional, que lhe seja menos favorável.Gomes Canotilho, ao se referir à interpretação constitucional, esclarece que"no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais". (5)Já o internacionalista Antônio Augusto Cançado Trindade acentua que:"... desvencilhamo-nos das amarras da velha e ociosa polêmica entre monistas e dualistas; neste campo de proteção (dos direitos humanos), não se trata da primazia do direito internacional ou do direito interno, aqui em

(4) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 982, 227.(5) Op. cit., p. 227.192

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOconstante interação: a primazia é, no presente domínio, da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma de direito internacional ou de direito interno." (6)Ainda segundo o mesmo autor:"... cabe aos tribunais internos, e outros órgãos dos Estados, assegurar a implementação em nível nacional das normas internacionais de proteção, o que realça a importância de seu papel em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, no qual as obrigações convencionais abrigam um interesse comum superior de todos os Estados Partes, o da proteção do ser humano." (7)Tem-se falado contemporaneamente em uma terceira geração de direitos, como o direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à co-participação dopatrimônio comum do gênero humano, chamados de direitos de solidariedade. Taisdireitos decorreriam do Direito Internacional (tratados e declarações internacionais), estando também presentes em algumas Constituições (a Constituição brasileira de 1988 prevê, em seu art.

3°, II, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a garantia do desenvolvimento nacional e, em seu art. 225, o direito ao meio ambiente).No que se refere ao direito ao desenvolvimento, sua titularidade seria individual e coletiva. Uma Declaração sobre o assunto, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1986, estabeleceu que "O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos têm o direito de (are entitled to) participar, contribuir e usufruir do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais podem ser realizados".Seria, então, o direito de ter direitos, para pessoas e povos, com reflexo naprópria idéia de cidadania.O reconhecimento de uma terceira geração de direitos não deve, contudo, levarao entendimento de que as categorias de direitos humanos sejam antinômicas. Defato, os direitos individuais, políticos, sociais, coletivos e os de solidariedade,

(6) TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção dos direitos humanos nos planos nacional e internacional: perspectivas brasileiras. San José da Costa Rica/Brasília: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1992, p. 317-318.(7) TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília, v. 46, n. 182.193

KILDARE GONÇALVES CARVALHOhistoricamente mais recentes, interagem e se complementam sem concorrerem ou se excluírem mutuamente. Quer-se com isto dizer que os direitos humanos são indivisíveis, porque todos eles são inerentes e convergentes para a pessoa humana, e a realização plena, por exemplo, dos direitos civis e políticos é impossível sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais.Foi o que, a propósito, constou da Declaração de Viena, aprovada na II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993):"Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanosglobalmente de maneira justa e equitativa, em pé de igualdade e com amesma ênfase".

& 2 VALOR JURÍDICO DAS DECLARAÇÕES DE DIREITOSA indagação sobre o valor jurídico das declarações de direitos tem especialsignificado no sistema constitucional francês, em que as declarações não integravam, como ainda não integram, o texto normativo da Constituição, constando apenas do seu preâmbulo (a Constituição da França de 1958 remete â declaração de 1789 e ao preâmbulo da Constituição de 1946).Incorporados, todavia, ao texto da Constituição, as declarações de direitos têmaplicabilidade imediata.O § 1° do art. S° da Constituição de 1988 perfilha a tese do valor jurídicopleno da declaração de direitos, ao enunciar que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata".

& 3 CLASSIFICAÇÃOA expressão "direitos fundamentais" tem sido utilizada, nas últimas décadas,pela doutrina e pelos textos constitucionais, para designar o direito das pessoas, em face do Estado, que constituem objeto da Constituição. A expressão justifica-se por revelar uma direta e imediata relação entre a Constituição e os direitos que o nome sugere, a insuficiência da concepção oitocentista ao reduzi-los somente a liberdades individuais diante do Estado, bem como pelo auxílio que presta na distinção de institutos afins, como direitos de personalidade, direito dos povos, interesses difusos, garantias e deveres fundamentais.As classificações dos direitos fundamentais decorrem de vários critérios. José Carlos Vieira de Andrade afirma que eles são "suscetíveis de inúmeras

classificações, quanto à titularidade, e aos sujeitos, quanto ao conteúdo ou ao objeto, quanto à estrutura, quanto ao modo de proteção, quanto à força jurídica e, em geral,

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DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOquanto ao regime", propondo, então, inicialmente, uma classificação quanto à evolução histórica, distinguindo-os conforme sua matriz: liberal (direitos de liberdade), democrática (direitos políticos) ou social (direitos sociais). Depois passa a classificá-los, segundo o conteúdo ou o modo de proteção, em direitos de defesa, direitos de participação e direitos a prestações.Os direitos de defesa caracterizam-se por implicar, por parte do Estado, umdever de abstenção: abstenção de agir e, por isso, dever de não-interferência ou de não-intromissão no que respeita às liberdades constitucionais.Os direitos a prestações, ao contrário, impõem ao Estado um dever de agir,quer para a proteção dos bens jurídicos resguardados pelos direitos fundamentaiscontra a atividade, ou, excepcionalmente, omissão de terceiros, quer para o exercício efetivo desses bens jurídicos fundamentais (por exemplo, intervenção policial ou prestação de ensino).Os direitos de participação são mistos de direitos de defesa e de direitos aprestações. Afirma o citado constitucionalista que essa classificação não é muito precisa, pois mistura dois critérios, o do tipo do dever estatal e o do Fm, para depois adotar a classificação dos direitos fundamentais em direitos, liberdades e garantias e restantes direitos que chama de econômicos, sociais e culturais, ou sociais. (8)O também constitucionalista português Marcelo Rebelo de Sousa oferece classificação com base na titularidade, objeto e estrutura dos direitos fundamentais."I - quanto à titularidade:a) direitos individuais e direitos institucionais e coletivos, cabendo atitularidade dos primeiros a pessoas físicas e a dos segundos a instituições sociais, personalizadas ou não, ou a categorias sociais (por exemplo, os direitos ao trabalho e à educação são direitos individuais, enquanto que os direitos da Igreja e da família são direitos institucionais e coletivos);b) direitos comuns e direitos especiais, conforme se trate de direitos de todosos homens (direito à vida e à integridade da pessoa, por exemplo) ou de direitos de certas categorias de pessoas físicas (como os direitos dos deficientes);c) direitos do homem, direitos do cidadão e direitos do trabalhador, distinguindo os direitos do indivíduo enquanto ser humano (por exemplo, direito de sufrágio) dos direitos do trabalhador diante dos proprietários dos meios de produção (por exemplo, o direito de não ser despedido sem justa causa); tal como a classificação anterior, esta só se aplica aos direitos individuais, e já não aos institucionais e coletivos;d) direitos exclusivos dos cidadãos, direitos exclusivos dos estrangeiros, direitos comumente atribuídos a cidadãos, estrangeiros e apátridas (exemplo da primeira categoria são os direitos políticos; da segunda, o direito de asilo; a generalidade dos direitos fundamentais se integra na terceira);

(8) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p. 191-194.195

KILDARE GONÇALVES CARVALHOII - quanto ao objeto:a) direitos gerais e direitos consoante digam respeito à tutela de facetas essenciais da personalidade e da cidadania, ou se limitem à tutela de bens especiais, tutela essa dependente, na sua configuração particular, de uma organização social específica (nos domínios econômicos, sociais e culturais - são exemplos o direito à educação, o direito à saúde, o direito à habitação, dentre outros);b) direitos civis, direitos políticos e direitos sociais, consoante se trate de faculdade de livre atuação da pessoa isolada ou coletivamente (por exemplo, o direito à vida ou à liberdade de expressão de pensamento), de faculdades relativas à participação na designação dos titulares, no exercício e no controle do poder político (por exemplo, o direito de constituir partidos políticos ou o direito de

petição), ou de faculdades que se traduzem na exigência ao Estado da prestação de bens e serviços indispensáveis para a consecução de condições mínimas de vida em sociedade (por exemplo, o direito à segurança social);III - quanto à estrutura:- direitos e garantias, conforme valem autonomamente, ou são instrumentaisou acessórios visando proteger os primeiros." (9)No Brasil, Manoel Gonçalves Ferreira Filho agrupa os direitos fundamentaisem três categorias, segundo o seu objeto imediato, já que o mediato é sempre aliberdade:I - liberdade;II - segurança; eIII - propriedade. (10)José Afonso da Silva classifica os direitos fundamentais, com base na Constituição, em:"I - direitos individuais (art. 5°);II - direitos coletivos (art. 5°);III - direitos sociais (art. 6° e 193 e seg.);IV - direitos à nacionalidade (art. 12);V - direitos políticos (art. 14 a 17)." (11)

(9) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito constitucional, p. 170-173.(10) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 254-255.(11) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 164.196

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOJosé Luiz Quadros de Magalhães formula a seguinte classificação dos direitosindividuais na Constituição:"1. igualdade jurídica;2. liberdades físicas;2.1. liberdade de locomoção;2.2. segurança individual;2.3. inviolabilidade de domicílio;2.4. liberdade de reunião;2.5. liberdade de associação;3. liberdade de expressão;3.1. liberdade de comunicação;3.2. liberdade de imprensa;3.3. liberdade artística;3.4. liberdade científica;3.5. liberdade de crença e culto;3.6. sigilo de correspondência, de comunicações telefônica e telegráficas;4. liberdade de consciência;4.1. religiosa;4.2. filosófica;4.3. política;4.4. liberdade de não emitir o pensamento;5. propriedade privada;6. direitos de petição e de representação;7. garantias processuais;7.1. habeas corpus;7.2. habeas data;7.3. mandado de segurança;7.4. mandado de segurança;7.5. ação popular;7.6. ação direta de inconstitucionalidade por ação e omissão;7.7. princípios fundamentais de direito processual;

7.7.1. garantia da tutela jurisdicional;7.7.2. o devido processo legal;7.7.3. o juiz natural;7.7.4. a instrução contraditória;7.7.5. ampla defesa;7.7.6. acesso à justiça;7.7.7. publicidade;7.7.8. competência do juiz" (12)

(12) MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos humanos na ordem jurídica interna, p. 49-50.197

KILDARE GONÇALVES CARVALHODeve-se mencionar, ainda, em nosso constitucionalismo, direitos expressos edireitos implícitos, estes últimos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5°, § 2°).Fala-se também em direitos fundamentais e garantias constitucionais. Não háunanimidade na sua distinção, achando alguns, inclusive, que ambos se confundem.Enquanto que para Manoel Gonçalves Ferreira Filho "as garantias consistem nasprescrições que vedam determinadas ações do Poder Público que violariam direitoreconhecido", (a proibição da censura garante a liberdade de manifestação do pensamento), (13) chamando então de remédios constitucionais os processos especiais previstos na Constituição, para a defesa de direitos violados, tais como o habeas corpus e o mandado de segurança, José Afonso da Silva entende por garantias constitucionais "os meios destinados a fazer valer esses direitos (os fundamentais), instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens". (14) Rosah Russomano, adotando o sentido restrito para conceituar as garantias, diz que elas consistem nas determinações e nos procedimentos mediante os quais os direitos inerentes à pessoa obtêm uma tutela concreta. (15)

& 4 LIMITES DOS DIREITOS FUNDAMENTAISNão existe direito absoluto. Assim, os direitos fundamentais não são absolutosnem ilimitados. Encontram limitações na necessidade de se assegurar aos outros oexercício desses direitos, como têm ainda limites externos, decorrentes da necessidade de sua conciliação com as exigências da vida em sociedade, traduzidas na ordem pública, ética social, autoridade do Estado, etc..., resultando, daí, restrições dos direitos fundamentais em função dos valores aceitos pela sociedade.

& 5 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988A Constituição de 1988 ampliou consideravelmente o catálogo dos direitos egarantias fundamentais, desdobrando-se o art. 5° em 77 incisos, quando, pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, a matéria era tratada em 36 parágrafos, que integravam o art. 153. A razão do aumento de disposições acerca do tema resulta, sobretudo, da constitucionalização de valores penais que se achavam previstos na legislação penal ou processual penal.

(13) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 251.(14) SILVA, José Afonso da. Op. cit. p. 354.(15) RUSSOMANO, Rosah. Curso de direito constitucional, p. 399.198

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOOutro aspecto que deve ser salientado é o de que a declaração dos direitos fundamentais foi deslocada para o início do texto constitucional (Título II), rompendo assim a Constituição vigente com a técnica das Constituições anteriores, que situava os direitos fundamentais na parte final da Constituição, sempre depois da organização do Estado. Essa colocação topográfica da declaração de direitos no início da Constituição, seguindo modelo das Constituições do Japão, México,

Portugal, Espanha, dentre outras, tem especial significado, pois revela que todas as instituições estatais estão condicionadas aos direitos fundamentais, que deverão observar. Assim, nada se pode fazer fora do quadro da declaração de direitos fundamentais: Legislativo, Executivo e Judiciário, orçamento, ordem econômica, além de outras instituições, são orientados e delimitados pelos direitos humanos.Esclareça-se, ainda, que a expressão "estrangeiros residentes no País", constante do art. 5° da Constituição, "deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e o gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro. (16)Em conseqüência, mesmo o estrangeiro não residente no Brasil tem acesso àsações, inclusive mandado de segurança, e aos demais remédios judiciais"; é o que entende José Celso de Mello Filho. (17) De fato, os direitos fundamentais têm, como vimos, caráter universal, e deles serão destinatários todos os que se encontrem sob a tutela da ordem jurídica brasileira, pouco importando se são nacionais ou estrangeiros.

& 5.1 AbrangênciaO Título II da Constituição compreende cinco Capítulos. Neles são menciona-dos os direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I), os direitos sociais (Capítulo II), a nacionalidade (Capítulo III), os direitos políticos (Capítulo IV) e os partidos políticos (Capítulo V). Portanto, os direitos fundamentais, na Constituição de 1988, compreendem os direitos individuais, os direitos coletivos, os direitos sociais e os direitos políticos.Os direitos individuais são aqueles que se caracterizam pela autonomia eoponibilidade ao Estado, tendo por base a liberdade - autonomia como atributo dapessoa, relativamente a suas faculdades pessoais e a seus bens. Impõem, como vimos acima, ao tratarmos da sua classificação, uma abstenção, por parte do Estado, de modo a não interferir na esfera própria dessas liberdades.O direitos políticos têm por base a liberdade-participação, traduzida na possibilidade atribuída ao cidadão de participar do processo político, votando e sendo votado.Os direitos sociais referidos no art. G° da Constituição (educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância,

(16) RTJ3/566-568.(17) MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada, p. 320.

199assistência aos desamparados) são direitos que visam a uma melhoria das condições de existência, mediante prestações positivas do Estado, que deverá assegurar a criação de serviços de educação, saúde, ensino, habitação e outros, para a sua realização. A maioria dos direitos sociais vem enunciada em normas programáticas que demandam intervenção legislativa para se tornarem operativas e aplicáveis, pelo que não podem os seus destinatários invocá-los ou exigi-los imediatamente.Há autores que reconhecem a existência, na Constituição, além dos direitos sociais, de direitos econômicos, que, contidos em normas de conteúdo econômico,visam proporcionar, através de uma política econômica, v.g., a que trata do planejamento de metas e de financiamento para a consecução do pleno emprego (direito econômico), a realização dos demais direitos humanos, no caso, o oferecimento do salário mínimo (direito social) e o suprimento das necessidades humanas, conferindo ao homem uma vida digna (direito individual). Os direitos econômicos envolvem, desse modo, normas protetoras de interesses individuais, coletivos e difusos. Nesse sentido, posiciona-se José Luiz Quadros de Magalhães, que classifica os direitos econômicos em: I - direito ao meio ambiente; II - direito do consumidor; III - função social da propriedade rural e urbana; IV - transporte (como meio de circulação de mercadorias); V - pleno emprego (direito ao trabalho); VI - outras normas concretizadoras de direitos sociais, individuais e políticos). (18)Fala ainda a Constituição em direitos coletivos, entendendo-se como tais aqueles cujo exercício cabe a uma pluralidade de sujeitos, e não a cada indivíduo isoladamente. Entende José Carlos Vieira de Andrade que "o elemento coletivo integra o conteúdo do próprio direito - este só ganha sentido se for pensado em termos comunitários, pois estão em causa interesses partilhados por

uma categoria ou um grupo de pessoas". (19) Esses direitos coletivos se apresentam às vezes como "direitos individuais de expressão coletiva", em que o coletivo não é sujeito de direitos (direito de reunião e de associação), e outras vezes se confundem com os direitos das pessoas coletivas (direito de organização sindical). Como direitos fundamentais coletivos previstos no art. 5° são mencionados: o direito de reunião e de associação, o direito de entidades associativas representarem seus filiados, os direitos de recebimento deinformações de interesse coletivo, dentre outros. Finalmente, relacionados com os direitos fundamentais, apresentam-se os de-veres Fundamentais, referidos no Capítulo I, do Título II, da Constituição, sob a rubrica de deveres individuais e coletivos. Por deveres, em sentido genérico, deve-se entender as situações jurídicas de necessidade ou de restrições de comportamentos impostas pela Constituição às pessoas.Vale lembrar, a propósito, que os direitos individuais foram revelados na História como aquisição de direitos diante do Poder e não como sujeição a deveres.

(18) MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Op. cit., p. 219.(19) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p. 174.200

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICODaí não existir, no Capítulo dos Direitos Fundamentais, nenhum preceito dedicado a um dever, de forma específica e exclusiva. Os deveres se acham sempre ligados ou conexos com os direitos fundamentais (dever de votar, relacionado com o direito de voto - art. 14, § 1 °, I; dever de educar os filhos, relacionado com o direito à educação - art. 20 ; dever de defesa do meio ambiente,� conjugado com o direito correspondente - art. 225, etc.).

& 5.2 Direito â vidaO primeiro direito do homem consiste no direito à vida, condicionador de todos os demais. Desde a concepção até a morte natural, o homem tem o direito àexistência, não só biológica como também moral (a Constituição estabelece como um dos fundamentos do Estado a "dignidade da pessoa humana" - art. 1 °, III).No sentido biológico, a vida consiste no conjunto de propriedades e qualidades graças às quais os seres organizados, ao contrário dos organismos mortos ouda matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções, taiscomo o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, areprodução e outras.A vida humana se distingue das demais, seja pela sua origem, vale dizer, peloprocesso de sua reprodução a partir de outra vida, seja pela característica de sua constituição genética: 4G cromossomos para as células diplóides (respectivamente, 23 para as células haplóides ou gametas). (20)Assim, o embrião é protegido, sendo ilícito o aborto, porque, enquanto dura ,o processo fisiológico do feto no útero, o homem tem direito à vida embrionária. O aborto é atualmente considerado ilícito pelo nosso Direito, salvo nos casos especiais previstos na legislação penal. Tem sido polêmica, contudo, a tipificação penal do aborto.Há também controvérsia sobre a eutanásia ou homicídio piedoso, em que amorte é provocada para evitar o sofrimento decorrente de uma doença havida comoincurável. A Constituição brasileira não acolheu a eutanásia. De fato, não a recomendam o progresso da medicina e o fato de que a vida é um bem não só individual, mas também social, e o desinteresse por ela, pelo indivíduo, não há de excluí-la da proteção do Direito.A pena de morte foi proibida pela Constituição de 1988, salvo em caso de guerra declarada (art. 5°, XL VII, a). O Brasil é ainda parte na Convenção Americanasobre Direitos Humanos ("Pacto de San José de Costa Rica"), de 19G9, cujo art. 4° menciona o direito à vida como um direito fundamental e inderrogável. Por força também do art. 4°, 2 e 3, há proibição absoluta para estender, no futuro, a pena de

(20) GUIMAHÃES, Ylves José de Miranda Comentários à Constituição. Direitos e garantias individuais e coletivas, p. 17.

201

KILDARE GONÇALVES CARVALHOmorte para toda classe de delitos, bem como de seu restabelecimento nos Estadosque a hajam abolido, como é o caso do Brasil, que aderiu a convenção em 25 desetembro de 1992.O Brasil se obrigou, portanto, ao não-estabelecimento da pena de morte noPaís. Na hipótese de violação dessa obrigação convencional, estaria configurada a responsabilidade internacional do Brasil.O debate sobre a licitude e a oportunidade da pena de morte remonta ao Iluminismo, no século XVIII, com Beccaria, que examinou a função intimidatória da pena, ao dizer que "a finalidade da pena não é senão impedir o réu de causar novos danos aos seus concidadãos e demover os demais a fazerem o mesmo". (21)Neste contexto é que trata da pena de morte com relação e outras penas.No parágrafo intitulado "Doçura das penas", Beccaria sustenta que os maioresfreios contra os delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade e, conseqüentemente, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável. Assim, "não é necessário que as penas sejam cruéis para serem dissuasórias.Basta que sejam certas. O que constitui uma razão (aliás, a razão principal) para não se cometer o delito não é tanto a severidade da pena quanto a certeza de que será de algum modo punido." Portanto, conclui Beccaria, além da certeza da pena, há um segundo princípio: a intimidação que nasce não da intensidade da pena, mas de sua extensão, como, por exemplo a prisão perpétua. A pena de morte é muito intensa, enquanto a prisão perpétua é muito extensa. Então, a perda perpétua da própria liberdade tem mais força intimidatória do que a pena de morte.Este argumento de ordem utilitarista poderia, contudo, ser ultrapassado casose demonstrasse que a pena de morte preveniria os chamados crimes de sangue, commais eficácïa do que as outras penas.Neste caso, ter-se-ia que recorrer à instância de ordem moral, a um princípioético, derivado do imperativo moral "não matarás", a ser acolhido como um princípio de valor absoluto. Mas como?Se o indivíduo tem o direito de matar em legítima defesa, por que a coletividade não o tem?Responde então Norberto Bobbio:"A coletividade não tem esse direito porque a legítima defesa nasce e se justifica somente como resposta imediata numa situação onde seja impossível agir de outro modo; a resposta da coletividade é mediatizada através de um processo, por vezes até mesmo longo, no qual se conflitam argumentos pró e contra. Em outras palavras, a condenação à morte depois de um processo não é mais um homicídio em legítima defesa, mas um homicídio

(21) BECCARIA. Dei delitti e delle pene, P. 31.202

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOlegal, legalizado, perpetrado a sangue frio, premeditado. O Estado não pode colocar-se no mesmo plano do indivíduo singular. O indivíduo age por raiva, por paixão, por interesse, em defesa própria. O Estado responde de modo mediato, reflexivo, racional." (22)O saudoso Prof. Lydio Machado Bandeira de Mello, ao se insurgir contra a pena de morte, o fez admiravelmente em página insuperável:"O Direito Penal é um direito essencialmente mutável e relativo. Logo deve ficar fora de seu alcance a imposição de penas de caráter imutável e absoluto, de total irreversibilidade e irremediáveis quando se descobre que foram impostas pela perseguição, pelo capricho ou pelo erro. Deve ficar fora de seu alcance a pena que só um juiz onisciente, incorruptível, absolutamente igual seria competente para aplicar: a pena cuja imposição só deveria estar na alçada do ser absoluto, se ele estatuísse ou impusesse penas: a pena absoluta, a pena de morte. Aos seres relativos e falíveis só compete aplicar penas relativas e modificáveis. E, ainda assim, enquanto não soubermos substituir as penas por medidas mais humanas e eficazes de defesa social". (23)Note-se, finalmente, que o direito à saúde é outra conseqüência do direito à vida.

& 5.3 Direito à privacidadeA vida moderna, pela utilização de sofisticada tecnologia (teleobjetivas, aparelhos de escutas), tem acarretado enorme vulnerabilidade à privacidade daspessoas. Daí a Constituição declarar no art. 5° X que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano moral decorrente de sua violação". Portanto, o direito de estar só e o direito à própria imagem, às vezes tão impiedosamente exposta pelos meios de comunicação de massa, ganham eminência constitucional, protegendo-se o homem na sua intimidade e privacidade. O dano moral decorrente da violação desses direitos, além do dano material, será indenizado, encerrando assim a Constituição a polêmica até então existente no Direito brasileiro sobre a indenização do dano moral.O direito à honra alcança tanto o valor moral íntimo do homem como a estima dos outros, a consideração social, o bom nome, a boa fama, enfim, o sentimento ou a consciência da própria dignidade pessoal refletida na consideração dos

(22) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 176.(23) BANDEIRA DE MELLO, Lydio Machado. 0 criminoso, o crime e a pena, p. 335.203

KILDARE GONÇALVES CARVALHOoutros e no sentimento da própria pessoa. Envolve, portanto, a honra subjetiva e a honra objetiva, a primeira tendo por núcleo o sentimento de auto-estima do indivíduo, o sentimento que possui acerca de si mesmo, e a honra objetiva significando o conceito social que o indivíduo possui.O direito à imagem envolve duas vertentes: a imagem-retrato e a imagem-atributo. No primeiro sentido significa o direito relativo à reprodução gráfica (retrato, desenho, fotografia, filmagem, dentre outros) da figura humana, podendo envolver até mesmo partes do corpo da pessoa, como a voz, a boca, o nariz, as pernas, etc.No segundo sentido, é entendida como a imagem dentro de um determinado contexto, é dizer, o conjunto de atributos cultivados pelo indivíduo e reconhecidos pelomeio social.Distingue-se ainda o direito de privacidade do direito de intimidade. Considere-se que a vida social do indivíduo divide-se em pública e privada. Por privacidade deve-se entender os níveis de relacionamento ocultados ao público em geral, como a vida familiar, o lazer, os negócios, as aventuras amorosas. Dentro, contudo, dessa privacidade há outras formas de relações, como as que se estabelecem entre cônjuges, pai e filho, irmãos, namorados, em que poderá haver abusos ou violações. Assim, na esfera da vida privada há um outro espaço que é o da intimidade. Há, portanto, uma noção de privacidade em que as relações interindividuais devem permanecer ocultas ao público e existe o espaço da intimidade, onde pode ocorrer a denominada "tirania da vida privada", na qual o indivíduo deseja manter-se titular de direitos impenetráveis mesmo aos mais próximos. Enfim, dir-se-ia que o espaço privado compreende o direito à privacidade e o direito à intimidade, sendo exemplo de violação deste último o ato do pai que devassa o diário de sua filha adolescente ou o sigilo de suascomunicações telefônicas.A inviolabilidade do domicílio constitui manifestação do direito à privacidadede que cuidamos acima. A Constituição diz, no art. 5°, XI, que "a casa é asiloinviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por determinação judicial". Valem as seguintes observações.I - o termo "casa" empregado no texto constitucional compreende qualquercompartimento habitado, aposento habitado, ou compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (Código Penal, art. 150, § 4°). E a projeção espacial da pessoa; o espaço isolado do ambiente externo utilizado para o desenvolvimento das atividades da vida e do qual a pessoa pretenda normalmente excluir a presença de terceiros. Da noção de casa fazem parte as idéias de âmbito espacial, direito de exclusividade em relação a todos, direito à privacidade e à não-intromissão. De se considerar, portanto, que nos teatros, restaurantes,

mercados e lojas, desde que cerrem suas portas e neles haja domicílio, haverá a inviolabilidade por destinação, circunstância que não ocorre enquanto abertos; 204

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOII - o conceito de noite é o astronômico, ou seja, o lapso de tempo entre ocrepúsculo e a aurora;III - as exceções constitucionais ao princípio da inviolabilidade do domicíliosão: a) durante o dia, por determinação judicial, além da ocorrência das hipóteses previstas para a penetração à noite; b) durante a noite, no caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro.

& 5.4 Liberdades constitucionaisVários são os sentidos de liberdade.A liberdade, em sentido geral, consiste no estado de não estar sob o controle deoutrem, de não sofrer restrições ou imposições, tendo aqui sentido negativo. Massignifica também "a faculdade ou o poder que a pessoa tem de adotar a conduta que bem lhe parecer, sem que deva obediência a outrem". (24) José Afonso da Silva diz que a "liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal." (25) Já Ylves José de Miranda Guimarães entende que "a liberdade, conceitualmente, é a força eletiva dos meios, guardada a ordem dos fins." (26) E Harold Laski entende por liberdade "a ausência de coação sobre a existência daquelas condições sociais que, na civilização moderna, são as garantias necessárias da felicidade individual". (27)A liberdade, assim, é inerente à pessoa humana, condição da individualidadedo homem.A Constituição estabelece várias formas de liberdade, que passaremos a examinar.Liberdade de ação: é o ponto de contato entre a liberdade e a legalidade - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5°, II), base do Estado de Direito: um "governo mais das leis do que dos homens". O sentido de lei aqui é formal, ou seja, aquela espécie normativa elaborada pelo Congresso Nacional, segundo tramitação constitucional.Considere-se ainda que, embora o Executivo exerça a função legislativa, ela éefetivada em caráter excepcional e exige a participação do Congresso Nacional em seu aperfeiçoamento, para que o ato legislativo se transforme em lei. Excluem-se, então, a nosso juízo, do conceito de lei a que se refere o dispositivo constitucional, as medidas provisórias, pois que, embora tenham força de lei (art. 62) desde a sua edição, não são leis, somente passando a sê-lo após o processo de conversão que depende do voto da maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional.

(24) CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v, 1, p. 355.(25) SILVA, José Afonso da. 0p. cit., p. 207.(26) GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Op. cir., p. 19.(27) LASKI, Harold J. La libertad en el Estado moderno. p. 17.205

KILDARE GONÇALVES CARVALHODe resto, vale ressaltar que a Constituição instituiu para determinadas matérias o princípio da reserva da lei, que coincide com a reserva de lei parlamentar, ouseja, matérias como criação de tributos, tipificação de crimes, restrição a direitos fundamentais, dentre outras, somente poderão ser disciplinadas em lei elaborada pelo Poder Legislativo, segundo tramitação própria.Liberdade de locomoção: trata-se de liberdade da pessoa física, segundo aqual "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens" (art. 5°, XV). O direito de ir, vir e ficar é protegido pelo habeas corpus (arr. 5° LXVIII). O direito de circulação no território nacional, em tempo de paz, é livre, observando-se, no entanto, que, se a circulação envolver meios de transporte (bicicleta, automóvel, motocicleta e outros), caberá ao poder de polícia estabelecer o

controle do tráfego, sem que isso importe restrição ao direito. No caso de estrangeiros, a lei poderá estabelecer limitações para a entrada e saída do País com os seus bens, e, em tempo deguerra, poderá esse direito sofrer mais limitações, não excedentes, contudo, as previstas para o estado de sítio.Liberdade de pensamento: enquanto mera cogitação, o pensamento é livre, em termos absolutos, pois não se pode penetrar no mundo interior. José Cretella Jr.diz que "o ser humano pode pensar o que quiser (pensiero non paga gabella), nãorecebendo, por este ato, tão-só, qualquer espécie de punição (nemo poenam cogitationis patitur). Aliás, o pensamento, mau ou bom, que pode preocupar a religião, a qual recrimina o primeiro e exalta o segundo, é estranho às cogitações do mundo jurídico.No entanto, o próprio pensar tem sido objeto da ação administrativa, havendo regimes, em nossos dias, que preconizam e praticam a própria mudança do pensamento, mediante a lavagem cerebral. (28)Liberdade de consciência ou de crença: é assegurada pela Constituição (art.5°, VI, parte inicial) "A liberdade de consciência é a liberdade do foro íntimo, em questão não religiosa. A liberdade de crença é também a liberdade do foro íntimo, mas voltada para a religião." (29) A Constituição declara ainda que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar prestação alternativa, fixada em lei" (inciso VIII). Esse dispositivo se refere à escusa ou objeção de consciência, nomeadamente em se tratando de serviço militar (art. 143, § 1°), em que poderá ser invocada, em tempo de paz, a fim de que o indivíduo seja excluído de atividades essencialmente militares, sujeitando-se, contudo, a outros encargos que a lei estabelecer, em caráter de substituição.Liberdade de manifestação do pensamento: o homem não se contenta com o pensamento interiorizado. Projeta o seu pensamento através da palavra ou oral ou

(28) CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988, v. 1, p. 205-206(29) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários... Op. cit., p. 33.206

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOescrita, ou outros símbolos que sirvam de veículo exteriorizador do pensamento. A Constituição declara que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado oanonimato" (art. 5°, IV), notando-se que a vedação do anonimato é para que se possa tornar efetivo o direito de resposta, proporcional ao agravo, com indenização por dano material ou moral à imagem (art. 5°, V).A Constituição, para garantir a livre manifestação do pensamento, declara que"é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" (art. 5°, XII). Note-se que o sigilo das comunicações poderá ser suspenso na vigência de estado de defesa e estado de sítio (art. 136, § 1 °, I, b e c, e art. 139, III).

Há nesse ponto que examinar as noções de interceptação telefônica e gravaçãoclandestina.A interceptação telefônica consiste na captação e gravação de conversa telefônica, no mesmo momento em que ela se realiza, por terceira pessoa sem o conhecimento de qualquer dos interlocutores.A gravação clandestina é aquela em que a captação e gravação da conversa pessoal, ambiental ou telefônica se dá no momento em que a mesma se realiza, sendo feita por um dos interlocutores, ou por terceira pessoa com seu consentimento, sem que haja conhecimento dos demais interlocutores (Alexandre de Moraes).A distinção entre as duas modalidades de quebra do sigilo de conversa telefônica está em que, enquanto na interceptação telefônica nenhum dos interlocutorestem ciência da gravação, na segunda um deles tem pleno conhecimento de que agravação se realiza.

Note-se que a Constituição Federal prevê exceção apenas relativamente àinterceptação telefônica ( art. 5°, XII), desde que presentes os seguintes requisitos: a) ordem judicial ; b) para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; c) nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer. A matéria se acha regulada pela Lei n. 9.29G, de 24 de julho de 199G. Anote-se que a adoção da escuta telefônica é permitida apenas, como se viu, no âmbito penal, para o exercício da investigação penal ou com vistas à instrução criminal. Assim, em princípio, seria incabível postular a escuta para outras finalidades, sendo, pois, impertinente sua utilização no processo civil, pois seria urna prova ilícita vedada pelo inciso LVI do art. S° da Constituição. A propósito, o Supremo Tribunal Federal, em caso líder, não admitiu prova de adultério obtida por gravação clandestina em fita magnética, em ação de antigo desquite (RTJ 84/609). Em outro julgamento, e reforçando esse entendimento, deixou consignado, em voto do Ministro Celso de Mello, que:"A gravação de conversação com terceiros, feita através de fita magnética,sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode sercontra este utilizada pelo Estado em juízo, urna vez que esse procedimentoprecisamente por realizar-se de modo sub-reptício, envolve quebra evidente207

de privacidade, sendo, em conseqüência, nula a eficácia jurídica da provacoligida por esse meio. O fato de um dos interlocutores desconhecer a circunstância de que a conversação que mantém com outrem está sendo objeto de gravação atua, em juízo, como causa obstativa desse meio de prova. O reconhecimento constitucional do direito à privacidade ( CF, art. 5°, X)desautoriza o valor probante do conteúdo de fita magnética que registra, deforma clandestina, o diálogo mantido com alguém que venha a sofrer a persecução penal do Estado. A gravação de diálogos privados, quando executada com total desconhecimento de um de seus partícipes, apresenta-se eivada de absoluta desvalia, especialmente quando 0 órgão da acusação penal postula, com base nela, a prolação de um decreto condenatório" (Ação Penal 307- DF ).Realmente, não se deve desconhecer que as gravações telefônicas apresentampossibilidades de manipulação, através de sofisticados meios eletrônicos ecomputadorizados, em que se pode suprimir trechos da gravação, efetuar montagenscom textos diversos, alterar o sentido de determinadas conversas, realizar montagens e frases com a utilização de padrões vocais de determinadas pessoas, o que leva à imprestabilidade de tais provas.Advirta-se, no entanto, que a rigidez da vedação das provas ilícitas vem sendoabrandada, mas em casos de excepcional gravidade, pela aplicação do princípio daproporcionalidade, caso em que as provas ilícitas, verificada a excepcionalidade do caso, poderão ser utilizadas. Para tanto é necessário, contudo, que o direito tutelado seja mais importante que o direito à intimidade, segredo e privacidade.Enfim, a regra geral é a da inadmissibilidade das provas ilícitas, que só excepcionalmente poderiam ser aceitas em juízo, restrita ainda ao âmbito penal, pois a razão nuclear das normas que imponham restrições de direitos fundamentais não é outra senão a de assegurar a previsibilidade das conseqüências derivadas da conduta dos indivíduos. Toda intervenção na liberdade tem de ser previsível, além de clara e precisa. Anote-se que a censura foi proscrita da Constituição, mencionando o incisoIX, do art. 5°, que "é livre a manifestação da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença", e o art. 220, § 2°, que "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". Acentue-se, contudo, que a Constituição institui como princípios orientadores da produção e programação das emissoras de rádio e televisão, dentre outros, os seguintes (art. 221, I e IV): I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.208

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOSegundo o disposto § 3° do art. 220 da Constituição, compete à lei federalestabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem tais princípios, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.Compete, ainda, à lei federal regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que se recomendam, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990)dispõe que nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado em emissora de rádioou televisão, sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição, constituindo infração administrativa, sujeita a multa, o descumprimento desta obrigação. Em caso de reincidência, a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias (arts. 76, parágrafo único, e 254, do Estatuto).Liberdade de informação jornalística: está dito na Constituição que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição" (art. 220), sendo livre a expressão de comunicação (art. 5°, IX). Assim, a liberdade de informação jornalística, referida no § 1° do art. 220, não se restringe à liberdade de imprensa, pois alcança qualquer veículo de comunicação (rádio, cinema, televisão, dentre outros). Mas a liberdade de informação jornalística se relaciona com o direito ao acesso à informação (art. 5°, XIV), ou seja, como direito individual, a Constituição assegura o direito de ser informado corretamente não só ao jornalista,mas ao telespectador ou ao leitor de jornal. O habeas data é o instrumento que protege o acesso à informação. O sigilo da fonte é resguardado, quando necessário, ao exercício profissional. A Constituição garante o direito de resposta proporcional ao agravo, bem como a indenização pelo dano moral decorrente da violação da intimidade, vida privada, honra ou imagem da pessoa (art. 5°, V e IX).Anote-se que a informação jornalística se compõe pela notícia e pela crítica. Anotícia traduz a divulgação de um fato cujo conhecimento tenha importância para o indivíduo na sociedade em que vive, e a crítica denota uma opinião , um juízo de valor que recai sobre a notícia. .Desse modo, o direito de informação jornalística deve ser exercitado segundoesses requisitos, considerando-se ainda que o fato a ser noticiado seja importante para que o indivíduo possa participar do mundo em que vive.O direito à informação jornalística, para que seja considerado preferencial aosdemais direitos da personalidade, deve atender aos requisitos acima referidos, é dizer, versar sobre fatos de real significado para o sociedade e a opinião pública. Versando sobre fatos sem importância, normalmente relacionados com a vida íntima das pessoas, desveste-se a notícia do caráter de informação, atingindo, muitas vezes, a honra e a imagem do ser humano.209

KILDARE GONÇACVES CARVALHOA respeito do assunto, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo deixouconsignado que:"No cotejo entre o direito à honra e o direito de informar, temos que esteúltimo prepondera sobre o primeiro. Porém, para que isto ocorra, necessário verificar se a informação é verídica e o informe ofensivo à honra alheiainevitável para a perfeita compreensão da mensagem. Nesse contexto, que é onde se insere o problema proposto à nossa solução,temos as seguintes regras:1a) o direito à informação ë mais forte do que o direito à honra;2a) para que o exercício do direito à informação, em detrimento da honra alheia, se manifeste legitimamente, é necessário o atendimento de dois pressupostos:a) a informação deve ser verdadeira;b) a informação deve ser inevitável para passar a mensagem." (30)

Considere-se ainda que, como qualquer direito fundamental, a liberdade de informação jornalística contém limites, pelo que, mesmo verdadeira, não deve serveiculada de forma insidiosa ou abusiva, trazendo contornos de escândalo, sob pena de ensejar reparação por dano moral (RT743/381).Liberdade religiosa: a liberdade religiosa deriva da liberdade de pensamento.É liberdade de crença e de culto e vem declarada no art. 5°, VI: "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". A liberdade de crença envolve a de não ter crença e a de aderir ou mudar de religião. A liberdade de culto é a liberdade de exteriorizar a fé religiosa, mediante atose cerimônias, como procissões, adorações, cantos sagrados, missas, sacrifícios, dentre outros. Afirma José Cretella Jr. que, "na verdade, não existe religião sem culto, porque as crenças não constituem por si mesmas uma religião. Se não existe culto ou ritual, correspondente á crença, pode haver posição contemplativa, filosófica, jamais uma religião. (31)A Constituição assegura, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5°, VII), mas no art. 19, I, veda ao Estado estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar

(30) AC. 110, RJDTACrim/SP 17:206-209, rel. Juiz Pedro Gagliardi. Apud ARAUJO, Luiz Alberto David; JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 78.(31) CRETELLA JÚNIOR, José. Liberdades públicas, p. 103.210

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOlhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Assim, todos os cultos deverão receber tratamento de igualdade pelo Poder Público, já que o Estado confessional existente no Império foi abolido com a República.Liberdade de reunião: diz o art., 5 °, XVI, que "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". A reunião consiste no "agrupamento voluntário de diversas pessoas que, previamente convocadas, acorrem ao mesmo lugar, com objetivos comuns", ensina José Cretella Jr. (32) É o gênero, do qual a aglomeração constitui espécie, entendendo-se por aglomeração o ajuntamento de várias pessoas sem pré-aviso, imprevisto, levadas pela curiosidade, pelo acontecimento fortuito.A reunião diferencia-se da associação, pois que esta tem base contratual e caráter de continuidade e estabilidade.A reunião de pessoas desarmadas é livre, somente sofrendo limitação caso asua realização impeça outra reunião convocada para o mesmo local. Exige-se apenas prévia comunicação ã autoridade competente, não lhe cabendo, no entanto, indicar o local da reunião, que é escolhido pelos seus participantes. Nada impede que a polícia tome providências para o resguardo da ordem pública durante a reunião, sem, contudo, frustrá-la, devendo, ao contrário, garantir a sua realização. Liberdade de associação: a associação consiste num direito individual de expressão coletiva, como já acentuamos. Sua base é contratual, seu fim lícito, e o elemento psíquico é maior do que na liberdade de reunião (o objetivo comum será realizado em tempo relativamente longo, implicando vínculos mais duradouros e contínuos).A Constituição trata das associações no art. 5°, XVII a XXI. A criação de associações e, na forma da lei, de cooperativas independe de autorização, vedando-se a interferência do Estado em seu funcionamento. A dissolução ou a suspensão das atividades das associações só se dará mediante decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, trânsito em julgado. Diz ainda a Constituição que "ninguém será compelido a associar-se ou a permanecer associado", reproduzindo-se a regra no art. 8°, V, relativamente aos sindicatos. Permite o texto constitucional (art. 5°, XXI) que as associações, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados, judicial ou extrajudicialmente.

Liberdade de exercício profissional: dispõe o art. 5°, XIII, que "é livre oexercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Trata-se do direito de livre escolha da profissão. A liberdade de ação profissional, reconhecida pela Constituição, exclui o privilégio de profissão, de que eram exemplos ilustrativos as corporações de ofício. Mas a liberdade

(32) CRETELLA JUNIOR, José. Liberdades.... Op. cit., p. 227.211

de trabalho está condicionada às qualificações profissionais previstas em lei federal (cabe à União legislar sobre "condições para o exercício de profissões" - art. 22 XVI, parte final), entendendo-se por qualificações profissionais o conjunto de conhecimentos necessários e suficientes para a prática de alguma profissão.Liberdade de ensino e aprendizagem: embora se caracterize como manifestação do pensamento, a Constituição destaca a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, segundo os princípios do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino (art. 20G, II e III). Refere-se a Constituição não só àliberdade de ensinar, mas também à liberdade de aprender e de pesquisar. Assim, se por um lado o professor dispõe de autonomia sobre o que ensinar, limitada, é certo, pelo conteúdo programático da disciplina, por outro lado o aluno tem o direito de "reclamar um trabalho sério de seus mestres." (33)

& 5.5 Direito de igualdadeA Constituição abre o Título da Declaração de Direitos afirmando, no caput doart. 5°, que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", dispondo ainda o seu inciso I que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". A igualdade figura também no art. 3° IV, da Constituição, como objetivo fundamental do Estado brasileiro.Ao cuidar dos direitos sociais, a Constituição insere o princípio da igualdadenos incisos XXX e XXXI, do art. 7°, ao proibir:a) diferença de salários, de exercícios de funções e de critério de admissão pormotivo de sexo, idade, cor ou estado civil;b) qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão dotrabalhador portador de deficiência, notando-se que a vedação da letra a se estende aos servidores públicos civis (art. 39, § 2°).O princípio da igualdade é o que mais tem "desafiado a inteligência humana edividido os homens", afirma Paulino Jacques. (34) De fato, a igualdade formal, entendida como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, tem sido insuficiente para que se efetive a igualdade material, isto é, a igualdade de todos os homens perante os bens da vida, tão enfatizada nas chamadas democracias populares, e que, nas Constituições democráticas liberais, vem traduzida em normas de caráter programático, como é o caso da Constituição brasileira.

(33) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 227.(34) JACQUES, Paulino. Da igualdade perante a lei, p. 19.212

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICONo exame do princípio da igualdade, deve-se levar em conta, ainda, que, embora sejam iguais em dignidade, os homens são profundamente desiguais em capacidade, circunstância que, ao lado de outros fatores, como compleição física e estruturapsicológica, dificulta a efetivação do princípio.Daí ser incorreto o enunciado do art. 5° de que todos são iguais sem distinção de qualquer natureza, pois "prever simetria onde há desproporção visível não é garantir igualdade real, mas consagrar desigualdade palpitante e condenável." (35)

Igualdade, desde Aristóteles, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.A questão, no entanto, é saber quem são os iguais e quem são os desiguais.Para isso, importa conhecer os fatores de desigualação, já que, como se verificou, as coisas, os seres e as situações, se apresentam pontos comuns, revelam diferenças em alguns aspectos ou circunstâncias.Como então identificar as desigualações sem que haja o comprometimento doprincípio da igualdade sob, naturalmente, um ponto de vista normativo?Em notável monografia acerca do tema, Celso Antônio Bandeira de Mello acentuou:"Para que um discrímen legal seja conveniente com a isonomia, impende que concorram quatro elementos:a) que a desequiparação não atinja, de modo atual e absoluto, um só indivíduo;b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços,nelas residentes, diferençados;c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecidapela norma jurídica;d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente emfunção dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulta emdiferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa - ao lumedo texto constitucional - para o bem público." (36)Pondere-se ainda que a idéia de igualdade se relaciona com a da própria justiça,quando se trata de exigir de cada um aquilo que sua capacidade e possibilidade permitirem, e conceder algo a cada um, de acordo com os seus méritos (justiça distributiva).Anote-se que a igualdade perante a lei, declarada em nossa Constituição (art.5°, I), significa uma limitação ao legislador e uma regra de interpretação. Esclarece

(35) MARINHO, Josaphar. À margem da Constituinte, p. 44.(36) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Regime constitucional dos servidores da administração direta e indireta, p.51213

KILDARE GONÇALVES CARVALHOManoel Gonçalves Ferreira Filho que, "como limitação ao legislador, proíbe-o deeditar regras que estabeleçam privilégios, especialmente em razão da classe ou posição social, da raça, da religião, da fortuna ou do sexo do indivíduo. É também um princípio de interpretação. O juiz deverá dar sempre à lei o entendimento que não crie privilégios de espécie alguma. E, como juiz, assim deverá proceder todo aquele que tiver de aplicar uma lei." (37)O princípio da igualdade, como se vê, não é absoluto, como nenhum direito o é.De início, a Constituição, embora estabeleça no art. 5°, caput, que o direito àigualdade tem como destinarários brasileiros e estrangeiros residentes no País, ressalva, no § 2° do art. 12, algumas diferenciações. Assim, por exemplo, não obstante vede a extradição de brasileiro, o texto constitucional a admite para o brasileiro naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas, na forma da lei (art. 5°, LI), tornando ainda privativa de brasileiro nato ou naturalizado há mais de dez anos a propriedade de empresa jornalística e de radiofusão sonora e de sons e imagens, aos quais caberá a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual (art. 222).Também no tocante à proibição de critério de admissão por motivo de idade,quanto ao serviço público, assinala Celso Antônio Bandeira de Mello que "tal requisito como regra não pode ser exigido. Isto porque haverá hipóteses nas quais do fator idade pode resultar uma específica incompatibilidade com algum determinado cargo ou emprego, cujo satisfatório desempenho demande grande esforço físico ou acarrete desgaste excessivo, inadequados ou impossíveis a partir de certa fase da vida. Não se tratará, pois, de uma pretendida limitação indiscriminada e inespecífica - inadmitida elo texto constitucional -, mas, pelo contrário, da

inadequação física para o satisfatório desempenho de certas funções como conseqüência natural da idade." (38)O Supremo Tribunal Federal, depois de reconhecer a vedação constitucionalde diferença de critério de admissão por motivo de idade como corolário do princípio fundamental de igualdade na esfera das relações de trabalho, estendendo-se a todo o sistema do pessoal civil, ressaltou que "é ponderável, não obstante, a ressalva das hipóteses em que a limitação de idade se possa legitimar como imposição da natureza e das atribuições do cargo a preencher." (39)Assinale-se ainda que a Emenda Constitucional n. 19/98, ao dar nova redaçãoao inciso II do art. 37, reforçou esta tese, ao prever que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei.

(37) FERREIRA FILHO Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 242.(38) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Regime constitucional dor servidores da administração direta e indireta, p. 51.(39) BRASÍLIA, STF, KMS 21.046-RJ, Rel.: Min. Sepúlveda Pertence. DJU de 14/11/91, p. 16.356.214

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA própria Constituição prevê ainda idade mínima de trinta e cinco e máxima de sessenta e cinco anos para os cargos, por nomeação do Presidente da República,de Ministro do Supremo Tribunal (art. 101); do Superior Tribunal de Justiça (art. 104, parágrafo único); do Tribunal Superior do Trabalho (art. 111, § 1°); de Juiz dos Tribunais Regionais Federais (art. 107); e idade mínima de 35 anos para o cargo de Ministro civil do Superior Tribunal Militar (art. 123, parágrafo único). Há entendimento no sentido de que a idade mínima e máxima (respeitado nesta última o limite de sessenta e cinco anos), para o ingresso na magistratura decarreira, poderá ser fixada em lei (Estatuto da Magistratura), o mesmo ocorrendoquanto aos cargos iniciais da carreira do Ministério Publico, cujo limite de idade será estabelecido em lei. Tal entendimento tem como fundamento o fato de que os magistrados e os membros do Ministério Público têm regime funcional próprio, não se submetendo ao disposto no art. 39.

& 5.6 Direito de propriedade - FundamentosA propriedade, objeto imediato dos direitos fundamentais (art. 5°, caput), é garantida pelo inciso XXII e constitui princípio da ordem econômica (art. 170, II). O direito de propriedade é "abrangente de todo o patrimônio, isto é, os direi-tos reais, pessoais e a propriedade literária, a artística, a de invenções e descoberta. A conceituação de patrimônio inclui o conjunto de direitos e obrigações economicamente apreciáveis, atingindo, conseqüentemente, as coisas, créditos e os débitos, todas as relações jurídicas de conteúdo econômico das quais participe a pessoa, ativa ou passivamente", ensina Ylves José de Miranda Guimarães. (40) Para o Direito Natural, a propriedade antecede ao Estado e à própria sociedade,e não poderá ser abolida, mas seu uso poderá ser regulado em função do bem comum.

& 5.6.1 Função social da propriedade

Concebida como direito fundamental, a propriedade não é, contudo, um direito absoluto, estando ultrapassada a afirmação constante da Declaração dos Direitosdo Homem e do Cidadão, de 1789, considerando-a sagrada.Ao dispor que "a propriedade atenderá a sua função social", o art. 5°, XXIII, daConstituição a desvincula da concepção individualista do século XVIII. A propriedade, sem deixar de ser privada, se socializou, com isso significando que deve oferecer à coletividade uma maior utilidade, dentro da concepção de que o social orienta o individual.A função social da propriedade, que corresponde a uma concepção ativa ecomissiva do uso da propriedade, faz com que o titular do direito seja obrigado a fazer, a valer-se de seus poderes e faculdades, no sentido do bem comum.

(40) GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Op. cit., p. 44.215

KILDARE GONCALVES CARVALHOMencione-se, ainda, que a função social da propriedade vai além das limitaçõesque lhe são impostas em benefício de vizinhos, previstas no Código Civil, pois que elas visam ao benefício da comunidade, do bem comum, do interesse social.A função social da propriedade urbana vem qualificada pela própria Constituição, ao estabelecer, no § 2° do art. 182, que "a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor".Observe-se que o plano diretor, obrigatório para cidades com mais de 20 milhabitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento de expansão urbana e será estabelecido em lei municipal (art. 182, §§ 1° e 2°). O Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, poderá exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:I - parcelamento ou edificação compulsórios;II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais (art. 182, § 4°, I a III). O Prof. Raul Machado Horta, depois de dizer que "os capítulos da Política Urbana, da Política Agrícola, Fundiária e da Reforma Agrária estão igualmente impregnados de normas ambíguas e elásticas, sob a aparência de razoabilidade, mas que poderão conduzir a resultado extremos, na medida em que o legislador preferir explorar conteúdo dilatador da norma constitucional federal autorizativa", adverte para o fato de que a lei municipal, sob a invocação do princípio da função social da propriedade, poderá sujeitar o proprietário urbano a retaliações locais, muitas vezes inspiradas no facciosismo político. (41)A função social da propriedade rural vem qualificada no art. 186 da Constituição, ou seja, é cumprida quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:I - aproveitamento racional e adequado;II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação domeio ambiente;III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

(41) HORTA, Raul Machado. A ordem econômica na nova Constituição - Problemas e contradições. In: A Constituição brasileira- 1988 - Interpretações, p. 392.216

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 5.6.2 DesapropriaçãoOs bens do proprietário poderão ser transferidos para o Estado ou para terceiros, sempre que haja necessidade ou utilidade públicas, ou interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvadas as hipóteses constitucionais em que a indenização se fará mediante títulos da dívida pública (art. 182, § 4°, III - desapropriação como sanção ao proprietário de imóvel urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado), e títulos da dívida agrária (arts. 184 e 186 - desapropriação, pela União, por interesse social para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social)."Há necessidade pública sempre que a expropriação de determinado bem é indispensável para atividade essencial do Estado. Há utilidade pública quando determinado bem, ainda que não seja imprescindível ou insubstituível, é conveniente para o desempenho da atividade estatal. Entende-se existir interesse social toda vez que a expropriação de um bem for conveniente para a paz, o

progresso social ou para o desenvolvimento da sociedade." (42)A Constituição prevê, no art. 5°, XXV, que, "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada aoproprietário indenização ulterior, se houver dano". Trata-se de requisição, que não se confunde com a desapropriação, pois a indenização será posterior à utilização da propriedade particular, que nem sempre será transferida para o Poder Público, ocorrendo apenas a sua utilização temporária. Anote-se que compete privativamente à União legislar sobre requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra (art. 22, III).Os incisos XXVII a XXIX do art. 5° tratam de propriedades especiais, taiscomo a propriedade literária, artística e científica, a propriedade de invenções e a propriedade das marcas de indústria e comércio.

& 5.7 Garantias constitucionais - Explicação inicialConforme vimos no item 3 deste Capítulo, há controvérsia sobre a conceituação de garantias constitucionais, entendendo-se até mesmo que rigorosamente elas seconfundem com os próprios direitos fundamentais, se concebidas como limitaçõesimpostas ao Poder Público. Em vez de se utilizarem da expressão garantias constitucionais", alguns autores preferem chamar de "remédios constitucionais" os processos revistos na Constituição para a defesa dos direitos violados (habeas corpus, mandado de segurança, dentre outros).Assumindo posição diante da controvérsia, adotamos, para os fins deste trabalho, o sentido dado às garantias constitucionais por Rosah Russomano, ou seja, as

(42) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 265.217

KILDARE GONÇALVES CARVALHOdeterminações e procedimentos mediante os quais os direitos inerentes à pessoahumanas obtêm uma tutela concreta. Assim, passaremos ao exame de algumas delas.

& 5.7.1 Garantias das relações jurídicasAo preceituar que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídicoperfeito e a coisa julgada" (art. 5°, XXXVI), a Constituição procura tutelar situações consolidadas pelo tempo, dando segurança e certeza às relações jurídicas. A Constituição não veda expressamente a retroatividade das leis. Impede apenas que as leis novas apliquem-se a determinados atos passados (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada). As normas penais também não poderão retroagir, salvo para beneficiar o réu. As leis, assim, deverão reger e produzir efeitos para o futuro, não incidindo eficazmente sobre fatos consumados, produzidos pela lei anterior.Tem-se por direito adquirido, segundo estabelece o art. 6°, § 2° da Lei deIntrodução ao Código Civil, aquele que o seu titular ou alguém por ele possa exercer, como aquele cujo começo do exercício tenha termo pré-fixado, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. Pontes de Miranda, ao tratar do dificílimo tema, define o direito adquirido como "o direito irradiado de fato jurídico, quando a lei não o concebeu como atingível pela lei nova". (43)Para De Plácido e Silva, "direito adquirido é o direito que já se incorporou aopatrimônio da pessoa, já é de sua propriedade, já constitui um bem, que deve serprotegido contra qualquer ataque exterior, que ouse ofendê-lo ou turbá-lo.No campo do Direito Público, muito se tem discutido acerca da ocorrência ounão do direito adquirido. A questão está, a nosso ver, em verificar se o direito de que se trata já se acha incorporado ou não ao patrimônio de seu titular. Na hipótese afirmativa, deve-se reconhecer a sua existência. Mas no caso contrário, ou seja, naquela situação jurídica em que o particular não teve ainda incorporado ao seu patrimônio determinado direito (como, por exemplo, o público), não pode invocar a imunidade contra o Poder Público, pois a natureza de seu direito comporta revogação a qualquer tempo.Ato jurídico perfeito, de acordo com a Lei de Introdução ao Código Civil (arr.6°, § 1°), é aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

Pontes de Miranda (45) sustenta que ato jurídico perfeito "é o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais de vontade, como os negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos, como as reclamações, interpelações, a fixação de prazo para a aceitação de doação, as cominações, a constituição de domicílio, as notificações, o reconhecimento para interromper a prescrição ou como sua eficácia (atos jurídicos stricto sensu)."

(43) PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. I, de 1969, p. 78-79.(44) SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, p.(45) PONTES DE MIRANDA. Op. cit., p. 102.218

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPortanto, é perfeito o ato jurídico que reúna os elementos substanciais previstos na lei civil, quais sejam: agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não vedada por lei. Ressalte-se ainda que, embora não consumado, o ato jurídico perfeito que se encontra apto a produzir efeitos tem garantida a sua execução contra a lei nova que não os pode regular, subordinados que ficam à lei antiga.Chama-se coisa julgada a decisão judicial de que já não caiba recurso (art. 6°,§ 4°, da Lei de Introdução ao Código Civil). O Código de Processo Civil, em seu art. 467, define a coisa julgada material como "a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário." Ensina José Cretella Jr. que coisa julgada formal é "a decisão definitiva que não mais pode ser discutida no âmbito do mesmo processo", sendo a coisa julgada material "a decisão definitiva, perene, imutável, que nem em outro processo pode mais ser discutida". (46)Parece-nos que a Constituição, por não distinguir, outorga proteção tanto àCoisa julgada formal quanto à coisa julgada material.As garantias das relações jurídicas, como previstas na Constituição, constituem cláusula irreformável, já que se trata de garantias individuais. Assim, emenda àConstituição que vise desconstituí-las é suscetível de argüição de inconstitucionalidade. Elas devem ainda ser concebidas como valores inerentes à estrutura do Estado Democrático de Direito, assim definido na Constituição de 1988.

& 5.7.2 Garantias criminaisSeu objeto é a tutela da liberdade pessoal, incluindo-se as constantes dos seguintes incisos do art. 5°: proibição de juízes ou tribunais de exceção (inciso XXXVII); julgamento dos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri (inciso XXXVIII), notando-se o fortalecimento da instituição do júri pelos princípios da plenitude da defesa, sigilo da votações e soberanias dos veredictos; garantia do juiz competente (incisos LIII e LXI); comunicação de toda prisão ao juiz competente (inciso LXII); o contraditório e a ampla defesa, que se estendem ao processo administrativo (inciso LV); anterioridade da lei penal (inciso XL), individualização da pena (inciso XLVI); personalização da pena (inciso XLV); proibição de penas de banimento, prisão perpétua, trabalhos forçados e de morte; salvo, neste último caso, em caso de guerra declarada (inciso XLVII); proibição de prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (inciso LXVII); proibição da não-extradição de estrangeiro em razão de crime político, ou de opinião, e em caso algum de brasileiro (incisos LI e LII); presunção de inocência (inciso LVII), com a proibição de identificação criminal do civilmente, identificado, salvo nas hipóteses previstas em lei (inciso LVIII); vedação e punição da tortura (inciso XLIII); vedação e punição do racismo (inciso XLII).

(46) CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., v. 1, p. 461.219

KILDARE GONÇALVES CARVALHOObserve-se que a Constituição considera crimes imprescritíveis a prática doracismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado

Democrático, rompendo assim com tradição de nosso Direito, que sempre considerou o decurso do tempo como causa de extinção da punibilidade.Dentro das garantias criminais, avulta o habeas corpus, que, como se viu, éconsiderado remédio constitucional.O habeas corpus tutela a liberdade de locomoção: "conceder-se habeas corpussempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder" (art. 5°, LXVIII).Instituto originário da Inglaterra medieval, o habeas corpus surgiu com a MagnaCarta de 1215, reaparecendo depois no Bill of Rights, e no Habeas Corpus Act, de 1679.No Brasil, o habeas corpus não era previsto na Constituição do Império de 1824,tendo sido instituído pela Constituição Republicana de 1891.O seu objeto é a tutela da liberdade de locomoção, ou seja, ir, vir e ficar, sendo excluídos de sua proteção os direitos públicos subjetivos, amparados por outros remédios constitucionais (mandado de segurança e habeas data, como se verá adiante).Seu sujeito ativo é a pessoa, nacional ou estrangeiro, e pode ser imperradomesmo por incapaz, sendo desnecessária a intervenção de advogado.Seu sujeito passivo é a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso depoder, de que resulte a coação ou violência (ou a ameaça delas) na liberdade delocomoção. Discute-se sobre a possibilidade de particular vir a ser sujeito passivo de habeas corpus. A matéria não é pacífica, mas, em alguns casos, os Tribunais têm concedido a ordem, como, por exemplo, contra síndico de condomínio, para permitir a entrada ou a saída de pessoas, ou contra diretor clínico de hospital, para liberar paciente retido por falta de pagamento do débito hospitalar.O habeas corpus pode ser preventivo ou liberatório. No primeiro caso, previne-sea coação, e, no segundo, é utilizado quando a coação já se consumou.Diz expressamente a Constituição que "não caberá habeas corpus em relação apunições disciplinares militares" (art. 142, § 2°).

& 5.7.3 Garantias jurisdicionaisA primeira garantia jurisdicional vem tratada no art. 5°, XXXV: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito". É ainafastabilidade ao acesso ao Judiciário, traduzida no monopólio da jurisdição, ou seja, havendo ameaça ou lesão de direito, não pode a lei impedir o acesso ao Poder Judiciário. Anote-se que o preceito constitucional não reproduz cláusula constante da Emenda Constitucional n. 1, de 1969 (art. 153, § 4°), a qual possibilitava que o ingresso em juízo poderia ser condicionado à prévia exaustão das vias administrativas, desde que não fosse exigida garantia de instância, sem ultrapassar o prazo de 220

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOcento e oitenta dias para a decisão do pedido. Assim, não existe mais o contencioso administrativo: o acesso ao Poder Judiciário é assegurado, mesmo pendente recurso na esfera administrativa.O princípio do juízo competente (art. 5°, LIII), segundo o qual "ninguémserá processado nem sentenciado senão pela autoridade competente", e a vedação de juízo ou tribunal de exceção (art. 5°, XXXVII) são garantias jurisdicionais.Tribunal de exceção, segundo Marcelo Caetano, "é o criado especialmente parajulgamento de certos crimes já cometidos ou de pessoas determinadas, argüidasde fatos passados, podendo mesmo suceder, em épocas revolucionárias, que taisfatos só sejam, qualificados como delituosos por lei retroativa." (47) O tribunal de exceção não se confunde, todavia, com o foro privilegiado estabelecido para o processo e julgamento de determinadas pessoas, a fim de preservar a independência do exercício de suas funções. Citamos como exemplos: o Prefeito é julgado pelo Tribunal de Justiça (art. 29, X); Deputados Federais, Senadores e Presidente da República são processados e julgados criminalmente pelo Supremo Tribunal Federal (art. 53, § 4°, e 102, I, b).

& 5.7.4 Garantias processuais

Como garantias processuais, destacam-se, na Constituição, a do devido processo legal, agora expressamente prevista no art. 5°, LIV ("ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"), a do contraditório e a da ampla defesa, asseguradas no art. 5°, LV ("aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"). Note-se que a Constituição estende a garantia do contraditório e da ampla defesa aos processos administrativos.Deveras, para que se possa decidir a lide, é indispensável que sejam ouvidas aspartes litigantes, sem o que não haverá julgamento justo e nem garantia das liberdades constitucionais.Como acentua Nelson Nery Júnior,"o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se emmanifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório."

(47) CAETANO, Marcelo. Op. cit., v. 2, p. 390.221

& 5.7.5 Garantias tributáriasAs garantias tributárias vêm expressas no art. 150, compreendendo as seguintes:I - nenhum tributo será exigido ou aumentado, senão em virtude de lei. Esse princípio se acha excepcionado, pois a Constituição faculta ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos de importação, exportação, produtos industrializados e operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários;II - não se instituirá tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;III - nenhum imposto será cobrado em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado, e no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, não se aplicando o princípio aos impostos mencionados acima, no incisoI, nem aos impostos extraordinários instituídos pela União na iminência ou no caso de guerra externa (art. 150, § 1°);IV - não haverá tributo com efeito confiscatório.

& 5.7.6 Garantias civisConsistem na obtenção, independentemente do pagamento de taxas, de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situaçõespessoais (art. 5°, XXXIV, b). O direito à obtenção de certidão é limitado à situação pessoal, e o seu exercício independe de regulamentação.Relacionam-se ainda as garantias civis com o mandado de segurança e o habeas data.Mandado de segurança - O mandado de segurança foi instituído pela Constituição de 1934.Na vigência da Constituição de 1891, pretendeu-se estender aos direitos públicos subjetivos o habeas corpus, dado o caráter abrangente da cláusula constitucionalque dizia: "dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (art. 72, § 22, da Constituição de 1891). Como, no entanto, a revisão da Constituição de 1891, ocorrida em 1926, restringiu o habeas corpus ao direito de locomoção, os demais direitos fundamentais ficaram sem proteção. Assim, a Carta de 1934 criou o mandado de segurança "para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade" cujo processo seria o mesmo do habeas corpus (art. 113, item 33).222

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

O mandado de segurança se acha atualmente previsto no art. 5°, LXIX, da Constituição, sendo que o inciso seguinte trata de variante do instituto, que é o mandado de segurança coletivo.Dispõe o art. 5°, LXIX, da Constituição que conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeasdata, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuição do Poder Público". O direito líquido e certo é aquele cuja comprovação se faz de plano com a impetração, sem necessidade de dilação probatória. Esclarece Hely Lopes Meirelles que ``direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocado, para ser amparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante. Se sua existência for duvidosa; se sua extensão não estiver determinada; se o seu exercício depender de situações e fatos não esclarecidos nos autos, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais." (48)Sujeito ativo do mandado de segurança é o titular do direito pessoal líquidoe certo; sujeito passivo é a autoridade pública, entendida como todo agente público que exerce função estatal, bem como os agentes delegados, ou seja, os que exercem Funções delegadas (concessionários, permissionários e agentes de pessoas jurídicas privadas que executem, a qualquer título, atividades, serviços e obras públicas).Mandado de segurança coletivo - A Constituição prevê ainda o mandado de segurança coletivo, omisso nas Constituições anteriores. Diz o inciso LXX do art. 5°:"O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:- partido político com representação no Congresso Nacional;- organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados".O mandado de segurança coletivo suscita algumas questões quanto àlegitimação das entidades de classe e associativas. Para Celso Agrícola Barbi, "quando se tratar de organização sindical, entidade de classe ou associação, é necessário que a ameaça ou lesão seja a interesses de seus membros ou associados." (49)José Afonso da Silva pensa que "há ponderações a fazer quanto a isso, pois nãose pode, p. ex., deixar de levar em conta o disposto no art. 8°, III, que dá aos

(48) MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança e ação popular, p. 15.(49) BARBI, Celso Agrícola. Mandado de segurança na Constituição de 1988. In: Mandados de segurança e de injunção, p. 73.223

KILDARE GONÇALVES CARVALHOsindicatos legitimidade para a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria em Juízo." (50)Para J. J. Calmon de Passos, "deve haver afinidade entre o interesse (individual) substrato do direito subjetivo e o interesse (social) que justifica ou fundamenta a associação. Nesta linha de raciocínio, carecerá de ação "a organização sindical que ajuizar o mandamus relativamente a interesse difuso do interesse da categoria sindicalizada e pertinente à representatividade do sindicato, a entidade de classe que promover a defesa de interesse que não seja o da classe (específico) que ela aglutina e representa" (51).Para impetração do mandado de segurança coletivo, entendemos necessária aautorização expressa aludida no art. 5°, XXI, que é regra genérica.Observe-se, finalmente, que, antes mesmo da instituição do mandado de segurança coletivo, reconhecia-se à Ordem dos Advogados do Brasil (art. 1°, parágrafo único, da Lei n. 4.215, de 1963, hoje revogada) legitimidade para pleitear, em juízo ou fora dele, os interesses gerais da classe dos advogados e os individuais, relacionados com o exercício da profissão, bem como pela Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, conferiu-se a associações de consumidores legitimação para promoverem

o reconhecimento dos interesses de seus associados.Assim, a nosso juízo, o mandado de segurança coletivo se presta para a defesa dedireito individuais ou coletivos relacionados com os membros ou associados das entidades e associações mencionadas na alínea b do inciso LXX do art. 5° da Constituição.No que respeita aos partidos políticos como pessoas legitimadas para a impetração da segurança coletiva, pensamos que os interesses individuais a seremdefendidos devem referir-se a seus filiados e não a qualquer pessoa indistintamente.Habeas data - Instituto novo, criado pela Constituição de 1988, é o habeas data(art. 5°, LXXII, a e b)."Conceder-se-á habeas data:- para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;- para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo."Visa o habeas data assegurar ao impetrante (nacional ou estrangeiro) o conhecimento de informações existentes em registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público e retificar tais dados.

(50) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 395.(51) PASSOS, J. J. Calmon de. Mandado de segurança coletivo, mandado de injunção, habeas data- Constituição e processo, p. 25, 31.224

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA locução latina habeas data compõe-se de habeas, segunda pessoa do subjuntivode habeo... habere, significa aqui, "tenhas em tua posse", que é uma das acepções do verbo; e data é o acusativo plural de datum. Então: "que tenhas os registros ou dados". (52)Sujeito passivo do habeas data são as entidades governamentais ou de caráterpúblico, incluindo-se, nestas últimas, as entidades privadas que prestem serviço público, tais como concessionários, permissionários, instituições de cadastramento e de proteção ao crédito, dentre outras.Note-se, contudo, que o inciso XXXIII do art. 5° diz que "todos têm o direito areceber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado". Entendemos que a ressalva da disposição constitucional não se aplica ao habeas data, que assegura o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, tratando-se de proteção à privacidade, à intimidade e à honra do indivíduo, em que não pode haver segredo para o titular do direito. Com relação ao processo do habeas data, a Lei n. 8.038, de 28 de maio de 1990,declara a que "no mandado de injunção e no habeas data serão observados, no quecouber, as normas do mandado de segurança, enquanto não editada legislação específica (art. 24, parágrafo único).Editou-se, contudo, a Lei n. 9507, de 12 de novembro de 1997, que regula odireito de acesso à informação e disciplina o rito processual do habeas data, que, em seu texto, guarda semelhança com a Lei n. 1533/51, que trata do mandado de segurança.

& 5.7.7 Garantias políticasComo garantias políticas, examinaremos o direito de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (art. 5°, XXXIV, a), e a ação popular (art. 5°, LXXIII).Direito de petição - Quanto ao direito de petição, o texto constitucionaleliminou a expressão "direito de representação", constante do art. 153, § 30, daEmenda Constitucional n. 1, de 1969.O direito de petição se exercita perante qualquer dos Poderes do Estado(Legislativo, Executivo e Judiciário) e cabe a nacional ou estrangeiro, devendo ser veiculado por escrito.

Ação popular - A ação popular, prevista no art. 5°, LXXIII, acha-se reguladapela Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965.Segundo o inciso constitucional, "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de

(52) OTHON SIDOU, J. M. Habeas corpus mandado de segurança, ação popular, p. 448.

225

KILDARE GONÇALVES CARVALHOque o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência."A ação popular foi instituída pela Constituição de 1934, tendo sido mantidapelas Constituições posteriores, à exceção da Carta de 1937. A Constituição de 1988 ampliou-lhe o objeto para abranger, além da anulação de atos lesivos ao patrimônio público, os de entidade de que o Estado participe e os atos lesivos à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.O autor popular é o cidadão (eleitor no gozo dos direitos políticos), não tendo,assim, legitimidade ativa para a propositura da ação o nacional não-eleitor, o estrangeiro e as pessoas jurídicas.Tem-se aceitado ação popular contra ato legislativo, desde que de efeitosconcretos.O ato a ser anulado deve ser ilegal e lesivo.Com a ampliação do objeto da ação popular no texto constitucional, sustenta-se que basta a lesividade para que seja considerado nulo o ato que se pretende invalidar: é que a lesividade traz em si a ilegalidade.

& 5.8 Mandado de injunçãoA ausência de norma regulamentadora de direitos consagrados na Constituição, pela inércia do legislador, levou à inserção, no texto constitucional de 1988, do mandado de injunção:"Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania" (art. S°, LXXI).Visa, pois, o mandado de injunção possibilitar o exercício de direitos e liberdades constitucionais e de prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, inviabilizados pela falta de norma regulamentadora do dispositivo constitucional não auto-aplicável que os instituiu.Alguns problemas têm sido suscitados, não só pelo fato de que a Constituiçãonão diz o que é mandado de injunção, mas apenas quando se dará (art. 5°, LXXI). A insuficiência do Direito Comparado, que não dispõe de instituto idêntico, nadaobstante haver alguma semelhança com o writ of injuction do Direito norte-americano, é também outro problema.Cuida-se, inicialmente, de verificar a extensão do mandado de injunção. Pelaleitura do texto constitucional, parece-nos que a garantia alcança os direitos e 226

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOliberdades constitucionais (individuais, coletivos e sociais), e as prerrogativas inerentes à nacionalidade, cidadania (direitos políticos) e soberania (entendida como soberania popular - art. 14).A injunção surge no caso concreto, depois de verificada a ausência normativa, pois o prejudicado se acha impedido de exercer o direito, dada a omissão legislativa ou do Poder Executivo. Não cabe a injunção caso já exista a norma regulamentadora da qual decorre a efetividade do direito reclamado.A natureza da providência judicial deferida com a impetração do mandado deinjunção tem provocado pronunciamentos de eminentes juristas. Alguns entendem

que o alcance do mandado de injunção é análogo ao da inconstitucionalidade poromissão, escrevendo Manoel Gonçalves Ferreira Filho que "sua concessão leva o Judiciário a dar ciência ao Poder competente da falta de norma sem a qual é inviável o exercício de direito fundamental. Não importa no estabelecimento pelo próprio órgão jurisdicional da norma regulamento necessária à viabilização do direito. Aliás, tal alcance está fora da sistemática constitucional brasileira, que consagra a "separação de Poderes", para concluir que "não se pode dar ao mandado de injunção um alcance que não tem a inconstitucionalidade por omissão" (53).Outros juristas pensam de modo diferente. José Afonso da Silva entende que "o conteúdo da decisão consiste na outorga direta do direito reclamado. Compete aoJuiz definir as condições para a satisfação direta do direito reclamado e determiná-la imperativamente". (54)De fato, a ausência de norma regulamentadora para determinado caso concreto autoriza a impetração, com o Poder Judiciário criando norma individual para dar a proteção ou a garantia até então inexistente, em virtude da omissão do Legislador ou de órgão do Executivo. Assim decidindo, o Judiciário não compromete o princípio da separação de Poderes, pois não há criação de norma jurídica geral, mas apenas individual, específica, para atender ao caso concreto. Na injunção, o juiz julga sem lei, porque é ele quem cria a lei para o caso concreto, servindo-se para tanto da eqüidade como critério de julgamento,Mas o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Injunção n. 168, (55) sendo relator o Ministro Sepúlveda Pertence, decidiu que "o mandado deinjunção nem autoriza o Judiciário a suprir a omissão legislativa ou regulamentar, editando o ato normativo omitido, nem menos ainda lhe permite ordenar, de imediato, ato concreto de satisfação do direito reclamado: mas, no pedido, posto que de atendimento impossível, para que o Tribunal o faça, se contém o pedido de atendimento possível para a declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciência ao órgão competente para que a supra".

(53) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 277.(54) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 389-390.(55) DJ de 20/4/90, p. 3.047.227

KILDARE GONÇALVES CARVALHOAssim decidindo, quer-nos parecer que o Supremo Tribunal Federal adotou a tese de que os efeitos do mandado de injunção são análogos aos da inconstitucionalidade por omissão, tornando-se, então, inócuo ou de nenhuma aplicação prática o novo instituto constitucional. (56)Observe-se, finalmente, que o parágrafo único do art. 24 da Lei n. 8.038, de 28de maio de 1990, determina que, "no mandado de injunção e no habeas data, serãoobservadas, no que couber, as normas do mandado de segurança, enquanto não editada legislação específica."

& 5.9 Direitos sociaisA Constituição enumera, no art. 6°, os direitos sociais: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.Os direitos sociais estão assim referidos no Capítulo II do Título II da Constituição, sendo, portanto, considerados como direitos fundamentais. A esses direitos acrescente-se o direito ao transporte, mencionado indiretamente no art. 7º , IV, da Constituição, ao dispor que o salário mínimo deve atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e sua família, dentre elas a do transporte, e no art. 230, § 2º , que trata do transporte coletivo gratuito como direito aos idosos. Também a habitação é um direito social, porque referido, pela mesma razão acima enunciada, no art. 7º , IV, da Constituição.Como se disse no subitem 5.1 deste Capítulo, os direitos sociais visam a umamelhoria das condições de existência, através de prestações positivas do Estado, que deverá assegurar a criação de serviços de educação, saúde, habitação, dentre outros, para a sua realização. Enquanto que os direitos individuais impõem uma abstenção por parte do Estado, preservando a autonomia dos indivíduos, os direitos sociais, como se mostrou, reclamam

"atividades positivas do Estado, do próximo e da própria sociedade ara subministrar ao homem certos bens e condições. Em contraste com os chamados direitos individuais, cujo conteúdo é um 'não fazer', 'um não violar', um 'não prejudicar', por parte das demais pessoas e sobretudo das autoridades públicas, resulta que, pelo contrário, o conteúdo dos direitos sociais consiste em 'um fazer', 'um contribuir', 'um ajudar', por parte dos órgãos estatais". (57)Se os direitos individuais estão entrelaçados com o liberalismo, o Estado dasdeclarações de direitos, tendo em sua base a liberdade humana, os direitos sociais vinculam-se ao Estado Social, "elaborado pelas revoltas populares e pelo

(56) Novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal surgiu, no entanto com o julgamento do Mandado de Injunção n. 232 - RJ, em que, dada a ocorrência da mora do Poder Legislativo, fixou prazo para o Congresso Nacional adorar as providências legislativas, visando ao cumprimento da obrigação de legislar, sob a cominação de considerar satisfeito o direito do impetrante.(57) SILVA, Floriano Vaz Corrêa da. Direito constitucional do trabalho, p. 12.228

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOdescontentamento das massas proletárias", protagonizando-se pela tentativa de estabelecimento de igualdade jurídica, política e social, através de mudança gradual ou estrutural. (58)Os direitos sociais surgiram nas Constituições do 1° pós-Guerra, sendo pioneira a do México, de 1917 (embora não contivesse capítulo com essa denominação), seguida pela Constituição de Weimar, de 1919, em que foram aprofundados.Alguns juristas vêm admitindo até mesmo a existência de um Direito Social, diverso do Direito Público e do Direito Privado. Legaz y Lacambra, na lembrança de Eduardo Novoa Monreal, que também defende a tríplice divisão do Direito, sustenta que a referida divisão baseia-se na classe de relações sociais que regula. Assim, "há relações de subordinação, que são as que têm um sujeito com a autoridade; sua expressão está na obediência, porquanto aquele deve acatar a esta para manter a organização. Há, também, relações entre sujeitos iguais e independentes entre si, cujo acerto se situa nos direitos e no respeito à liberdade de cada um. Há, finalmente, relações de sujeitos enquanto membros de uma comunidade integrada, que põe ênfase na solidariedade e nos deveres de todos, nas quais se age como companheiro ou camarada e que tendem a assegurar a colaboração de cada um para o bem social. As primeiras correspondem ao Direito Publico, as segundas ao Direito Privado e as últimas ao Direito Social." (59)Ao examinar as formas sociais, Georges Gurvitch já falava em relações de sociabilidade por interdependência, que se produzem entre sujeitos que se consideram independentes entre si e que se apóiam na desconfiança, formando o direito individual, e de relações de sociabilidade por interpenetração, que se produzem entre os membros da sociedade, vinculados entre si, e se baseiam na confiança, mútua ajuda e cooperação, formando o direito social, que, no entanto, se delineia à margem do Estado, como um produto espontâneo da vida social. (60)Nada obstante tais assertivas, deve-se responder que todos os direitos são sociais, pois pressupõem sempre um relacionamento interpessoal (o direito regula coercitivamente as relações interpessoais).

& 5.9.1. Direitos sociais dos trabalhadoresExaminaremos neste tópico os direitos dos trabalhadores, mencionados no Capítulo II, do Título II da Constituição, deixando os restantes direitos sociais (educação, saúde, assistência social, dentre outros) para serem tratados no Capítulo deste trabalho dedicado à ordem social.A relação constitucional dos direitos sociais dos trabalhadores é meramenteexemplificativa, pois à enumeração dos direitos constantes do art. 7°, por força da

(58) SARAIVA, Paulo Lopo. Garantia constitucional dos direitos sociais no Brasil, p. 25-26.(59) MONTREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstáculo à transformação social, p. 117.(60) MONTREAL, Eduardo Novoa. Op. cit., p. 116.229

KILDARE GONÇALVES CARVALHOprópria norma constitucional, poderão ser acrescidos outros que visem à melhoria da sua condição social. Observe-se ainda que o texto de 1988 equiparou o trabalhador urbano ao rural, eliminando a diferença de tratamento entre uma e outra categorias.Passaremos ao exame dos direitos dos trabalhadores:I - proteção da relação de emprego: a relação de emprego é protegida contradespedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos da lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos. Enquanto não se elaborar a lei complementar, prevê o art. 10 das Disposições Transitórias um aumento de quatro vezes da porcentagem prevista na Lei n. 5.107, de 13 de dezembro de 1966, vedando ainda esse dispositivo transitório a dispensa arbitrária ou sem justa causa do empregado eleito para cargo de direção de comissões internas de prevenção de acidentes, desde o registro de sua candidatura até um ano após o final de seu mandado, e da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. É vedada também a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei(art. 8°, VIII). Relacionam-se ainda com a garantia do emprego a previsão do seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário (art. 7°, II), e a extensão do fundo de garantia do tempo de serviço para o empregado rural (art. 7° III);II - salário e remuneração: o salário mínimo, agora fixado em lei, extensivo atodo trabalhador, inclusive ao que percebe remuneração variável, nacionalmenteunificável (não pode ser mais fixado conforme as condições de cada região), visa atender a suas necessidades vitais básicas e às da família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo. Importante é notar que a Constituição veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, não podendo, pois, servir de referência para o aumento de qualquer prestação, como preços, aluguéis, dentre outras.Os incisos V a XII tratam de outras normas referentes ao salário ou remuneração. Assim, o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho, consistindo num salário mínimo de determinadas categorias profissionais ou de certas atividades; a irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo, o que constitui novidade no campo constitucional dos direitos sociais dos trabalhadores; garantia do salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável, décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria, pago por ocasião do Natal; remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, valendo dizer que o horário noturno, pela legislação trabalhista em vigor, vai das 22 às 5 horas; remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à do normal (art. 7°, XVI); proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retencão dolosa, notando-se que à lei penal caberá a tipificação dessa figura delituosa; e salário-família para os dependentes do trabalhador, de baixa230

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOrenda, havendo, quanto à natureza do salário-família, controvérsia, admitindo uns sua natureza salarial e outros (em maioria) natureza apenas previdencial;III - participação nos lucros e co-gestão: a Constituição prevê, no inciso XI doart. 7°, como direito do trabalhador, "a participação nos lucros, ou resultados,desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei". A participação nos lucros, embora prevista na Constituição de 1946, jamais foi regulamentada A Constituição de 1988 não fala mais em "participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, nos termos e pela forma que a lei determinar", constante do texto constitucional de 1946 (art. 157, IV), desvinculando ainda essa participação da remuneração, pelo que passa a mesma a ser uma vantagem a mais do trabalhador. A participação na gestão da empresa é assegurada ao trabalhador que a exercerá, em caráter excepcional, nos termos da lei;IV - duração do trabalho, repouso, férias, licenças, proteção dos trabalhadores e aviso prévio: dispõe a Constituição (art. 7°, XIII) que a duração do trabalho, não superior a oito horas diárias e

quarenta e quatro semanais, facultada acompensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convençãocoletiva de trabalho, constitui direito do trabalhador, que terá ainda direito à jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva. O repouso semanal, preferencialmente aos domingos, é remunerado. No feriados, quer civis, quer religiosos, haverá ainda o repouso do trabalhador, ensejando-se assim sua participação nas comemorações cívicas e nos cultos religiosos. As férias anuais serão remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal. Observa, a propósito, Manoel Gonçalves Ferreira Filho que "trata-se de norma paradoxal, pois valoriza o descanso mais do que o labor", ao determinar a Constituição o acréscimo de um terço na remuneração das férias. (61)A gestante tem o direito, no período entre a concepção e o parto, de licençaespecial, consistente numa estabilidade provisória, com a duração de cento e vinte dias corridos, sem prejuízo do emprego e do salário. Haverá ainda licença-paternidade, a ser gozada nos termos fixados em lei, observando-se, contudo, que, enquanto não editada a lei, o art. 10, § 1°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fixou em cinco dias a duração da licença-paternidade. As normas protetoras dos trabalhadores foram ampliadas. Consistem elas na forma de segurança do trabalho, através da redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, proteção, em face da automação, na forma da lei, o que irá possibilitar o estabelecimento de condições de defesa do trabalhador, em face dos avanços da tecnologia, pelasubstituição da mão-de-obra humana por equipamentos sofisticados.Também constitui norma de proteção do trabalho o seguro contra acidentesdo trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa. Protegem ainda o trabalhador as normas

(61) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988, v. 1, p. 100.231

KILDARE GONÇALVES CARVALHOconstitucionais que tratam da isonomia material, proibindo: diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7°, XXX); discriminação no tocante a salário e critério de admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 7° XXXI), bem como a norma que garante a igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso (art. 7°, XXXIV). Proíbe ainda a Constituição o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos (redação dada ao inciso XXXIII do art. 7° da Constituição, pela Emenda Constitucional n. 20/98). Fala ainda a Constituição em proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei (art. 7°, XX). Considere-se finalmente que o aviso prévio (notificação dada por uma parte à outra - empregado ou empregador - da rescisão do contrato de trabalho, sem justa causa) é, no mínimo, de trinta dias, podendo a lei determinar critérios proporcionais ao tempo de serviço, observado, contudo, o prazo mínimo de trinta dias acima referido;V - direitos dos dependentes: além do salário-família, mencionado no n. II.acima, a Constituição prevê, como direito dos dependentes do trabalhador, a assistência gratuita aos filhos e dependentes, desde o nascimento até seis anos de idade, em creches e pré-escolas (art. 7°, XXV).

& 5.9.2 Liberdade sindical A Constituição institui a liberdade de associação profissional ou sindical, nadaobstante o texto constitucional já ter previsto, em caráter genérico, a liberdade de associação (art. 5°, XVI a XXI). A fundação de sindicatos independe de autorização governamental, ressalvado, contudo, o registro em órgão competente, que é a Delegacia Regional do Trabalho. Ao Poder Público é vedado, igualmente, interferência ou intervenção em sindicato. A Constituição consagrou a unicidade sindical, ao vedar a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um

Município. Aos sindicatos é assegurada a participação, em caráter obrigatório, nas negociações coletivas de trabalho. Foi instituída pela Constituição uma nova contribuição (que não é a sindical) a ser fixada pela assembléia geral, em se tratando de categoria profissional, e que será descontada em folha, destinada ao custeio dosistema confederativo da representação sindical respectiva. Nada impede, contudo, que se estabeleça, em lei, a contribuição sindical.

& 5.9.3 GreveO direito de greve foi consideravelmente ampliado pela Constituição, pois compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os 232

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOinteresses que devam por meio dele defender. Entenda-se que tais interesses deverão ser os relacionados com os direitos sociais dos trabalhadores, e não de qualquer outra natureza, como reivindicações político-partidárias.A Constituição dispõe que "a lei definirá os serviços ou atividades essenciais edisporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade", sendo que "os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei". Verifica-se, portanto, que poderá haver greve nas atividades essenciais ou no serviço público (art. 37, VII), cabendo, todavia, à lei dispor sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Observe-se, finalmente, que a Constituição acolheu a teoria do abuso do direito no tocante à greve (art. 9°, § 2°). Há abuso de direito, na lição de Silvio Rodrigues, lembrando Josserrand, "quando ele não é exercido de acordo com a finalidade social para a qual foi conferi-do, pois, como diz este jurista, os direitos são conferidos ao homem para seremusados de uma forma que se acomodem ao interesse coletivo, obedecendo à suafinalidade, segundo o espírito da instituição". (62) Nessa linha de raciocínio, enfatiza, Manoel Gonçalves Ferreira Filho que "a lei deve apenar o exercício abusivo do direito de greve. Quer dizer, a greve com o fito preponderante de prejudicar a empresa, a greve que se exerça de modo a causar prejuízos anormais à vida da empresa, a greve desligada de objetivo reivindicativo de caráter trabalhista, a greve política, etc. Igualmente, como é óbvio, a greve que em serviços ou atividades sociais se faça sem resguardar o atendimento às necessidades inadiáveis da comunidade". (63)

& 5.9.4 Garantias dos direitos sociaisDeclarados na Constituição os direitos sociais, para se tornarem operativos eefetivos, dependem de prestações positivas do Estado. Em sua maioria, vêm enumerado em normas constitucionais não auto-aplicáveis. O saudoso Professor Afonso Arinos, no discurso proferido quando da promulgação da Constituição de 1988, advertia que "o Direito, nas novas Constituições, parece evoluir em conjunto, para tornar-se mais um corpo de normas teóricas e finalísticas, e cada vez menos um sistema legal vigente e aplicável. Por outras palavras: nunca existiu distância maior entre a letra escrita dos textos constitucionais e a sua aplicação. Hoje poderíamos juntar algo de mais grave, que é o seguinte: a aplicabilidade dos textos depende da sua aplicação." E enfatiza que "esta situação anômala manifesta-se fortemente no texto de 1988, confirmando-se aqui aquilo que Oliveira Viana chamou de `idealismo constitucional"', para então concluir que "a garantia dos direitos individuais é cada vez mais eficaz e operativa nas Constituições Contemporâneas, mas a garantia dos direitos coletivos e sociais, fortemente capituladas nos textos, sobretudo nos países

(62) RODRIGUES, Silvio. Direito civil, p. 309.(63) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários..., p. 112.233

KILDARE GONÇALVES CARVALHOem desenvolvimento, e, particularmente no Brasil, torna-se extremamente duvidosa(para usarmos uma expressão branda), quaisquer que sejam as afirmações gráficas

existentes nos documentos como este que estamos, hoje, comemorando. Afirmar ocontrário é ingenuidade, ilusão, ou falta de sinceridade, quem sabe de coragem. Direito individual assegurado, direito social sem garantia - eis a situação". (64)Também Paulo Lopo Saraiva, ao examinar, ainda na vigência da Emenda Constitucional n. 1/69, a necessidade de uma garantia para os direitos sociais, que ele propunha fosse o "mandado de garantia social", escreveu, perplexo: "como se dará crédito a uma norma constitucional estabelecedora do seguro-desemprego, se há milhões de desempregados ou subempregados, sem nenhum acesso ao Judiciário, para garantia do direito que a Constituição lhes confere"? (65)Em exaustivo estudo sobre a efetividade das normas constitucionais, LuisRoberto Barroso mostrou que, além das garantias jurídicas, outras há necessáriaspara fazer com que as normas jurídicas constitucionais se transformem, de exigências abstratas dirigidas à vontade humana, em ações concretas: tais são as garantias políticas e sociais, destacando-se a atuação participativa da sociedade civil, mediante organismos setoriais, como a Ordem dos Advogados do Brasil, sindicatos, movimentos de moradores de bairro, de negros, de mulheres, de preservação do meio ambiente, de mutuários do sistema financeiro da habitação, dentre outros. (66)Já as garantias jurídicas se acham consubstanciadas nos meios processuais deproteção dos direitos, com destaque para as novidades emergentes da Constituiçãode 1988, como o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão.

(64) BONAVIDES, Paulo, ANDRADE, Paes de. História constitucional Do Brasil, p. 927.(65) SARAIVA, Paulo Lopo. Op. cit., p. 67.(66) I3ARROSO, Luis Roberto. 0 direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 118-119.234

Capítulo 11NACIONALIDADE

Sumário1 Nacionais e estrangeiros2 Aquisição da nacionalidade - Jus soli e jus sanguinis3 Brasileiro nato e naturalizado4 Perda da nacionalidade5 Situação jurídica do estrangeiro no Brasil

& 1 NACIONAIS E ESTRANGEIROSA atribuição de nacionalidade a determinado indivíduo traduz a dimensão pessoal do Estado soberano. Com efeito, o conjunto das pessoas que se encontram no território do Estado, compreendendo nacionais e estrangeiros, constitui a suapopulação, conceito demográfico apenas.Assim, aquela dimensão pessoal do Estado é representada pelos nacionais, ouseja, pelos indivíduos que mantêm um vínculo jurídico-público com o Estado de que fazem parte.Clóvis Beviláqua, lembrado por Yussef Said Cahali, conceitua nacionalidadecomo "um vínculo público e pessoal, que liga o indivíduo a determinado país, suapátria de origem ou de adoção, tornando-o parte integrante do povo desse país, esubmetendo-o à autoridade e proteção da soberania, que nele impera. A nacionalidade é, assim, o estado de dependência, fonte de deveres mas também de direitos, no qual se encontram os indivíduos em face de uma comunidade politicamente organizada". (1)Conseqüentemente, estrangeiro é o não-nacional, ou seja, aquele indivíduo que não satisfaz os pressupostos normativos do Estado para que se considere nacional. O Estado soberano, embora não esteja obrigado a consentir estrangeiros em seu território, mesmo em caráter temporário, a partir do momento em que nele os admite, passa a ter deveres para com os mesmos, decorrentes de normas de direito internacional costumeiro, não se descuidando, contudo, da preservação dos interesses nacionais, à luz dos quais estabelecerá a condição jurídica do não-nacional.

& 2 AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE - JUS SOLI E JUS SANGUINISCabe ao Estado legislar sobre nacionalidade, estabelecendo os modos de suaaquisição e perda. O Ministro Francisco Rezek anota, contudo, que o Estado deverá observar regras gerais de Direito Internacional, assim como regras particulares com que acaso se tenha comprometido, destacando-se, dentre as regras gerais, a de que "todo homem tem direito a uma nacionalidade. Ninguém será arbitrariamente

(1) CAHALI, Yussef, Said. Estatuto do estrangeiro, P. 3.237

KILDARE GONÇALVES CARVALHOprivado de sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade, constante do art. 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem" (ONU - 1948). (2)Os critérios utilizados para a aquisição de nacionalidade são o do jus soli e o do jus sanguinis. O primeiro considera nacional o indivíduo nascido no território do Estado; o outro atribui a nacionalidade, levando em consideração a descendência (nacionalidades dos pais).A Constituição de 1988 adota o jus soli (art. 12, I, a), fazendo ainda concessões ao jus sanguinis (art. 12, I, b e c).Assim, são brasileiros natos:a) os nascidos em território brasileiro, ainda que de pais estrangeiros, desdeque estes não estejam a serviço de seu país;b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde quequalquer deles esteja a serviço do Brasil;c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde quevenham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo,pela nacionalidade brasilleira (EC da Revisão n. 3/94).Fala-se ainda em nacionalidade originária e nacionalidade derivada. Originária é aquela que resulta do lugar do nascimento ou da nacionalidade dos pais, nãopressupondo, assim, vínculo patrial anterior (observa-se, contudo, que o apátrida, não tendo nacionalidade, adquire-a de um Estado pela naturalização). Já a derivada consiste na aquisição da nacionalidade mediante a naturalização, e, regra geral, resulta do rompimento de vínculo anterior.

& 3 BRASILEIRO NATO E NATURALIZADOA Constituição prevê essas duas categorias de nacionais. Brasileiro nato é oque nasce em território brasileiro, ou sua nacionalidade decorre da nacionalidade dos pais (ar t. 12, I, a, b e c).A Emenda Constitucional de Revisão n. 3/94 alterou a redação da alínea c doinciso I, do art. 12, para considerar brasileiros natos os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira. Decorre daí que a nacionalidade brasileira é adquirida imediatamente, ou seja,no momento do nascimento, mas subordinada a dois eventos futuros: fixação deresidência no território nacional e opção, a qualquer tempo, sendo a residência no

(2) REZEK, José Francisco. Op. cit., p. 191.238

DIREITO CONSTITUCIONAI OIOÁTIC'C1Brasil requisito para a opção, que deverá ser manifestada perante Juiz Federal (art. 109, X, da Constituição). Embora o texto constitucional mencione que a opção possa ser feita a qualquer tempo, exige-se do optante capacidade civil plena e formal.Sustenta Francisco Xavier da Silva Guimarães que "A fixação de residência no Brasil e a opção, tal como previstas, não geram nacionalidade, pois esta já existe antes daquelas condições que apenas suspendem o exercício da condição de brasileiro enquanto não ocorridas; é, assim, instituto de conservação do status de nacionalidade brasileira, gerador da definitividade que faz gerar a condição pendente." (3)

Naturalizado é o que adquire a nacionalidade brasileira nos termos do art. 12II, a e b, da Constituição. Constitui, quase sempre, modalidade derivada de aquisição da nacionalidade.Dispõe a Constituição (art. 12, II) que são brasileiros naturalizados:a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas dosoriginários de países de língua portuguesa (e não somente de Portugal) apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes no Brasil há mais dequinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira (o prazo de residência no Brasil, que era de trinta anos, foi reduzido para quinze anos pela Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 7 de junho de 1994). Houve recepção, pela Constituição de 1988, da Lei n. 818, de 18/9/1949 (emparte), e da Lei n. 6.815, de 19/8/1980 (Estatuto dos Estrangeiros), no que se refere à naturalização.São modalidades de naturalização:1. naturalização comum - concedida ao estrangeiro residente no Brasil peloprazo mínimo de quatro anos, que atenda às demais exigências do art. 112 da Lei n. 6.815/80;2. naturalização extraordinária, excepcional ou simplificada - concedida aoestrangeiro residente no Brasil, na forma da alínea b do inciso II do art. 12 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 3/94;3. naturalização provisória - voltada para os que foram admitidos no território nacional durante os primeiros cinco anos de vida e a requerem antes da maioridade se aqui definitivamente radicados. Uma vez completada esta, poderá tornar-se definitiva por manifestação expressa, até dois anos após a maioridade - art. 116 e seu parágrafo único, da Lei n. 6.815/80;

(3) Nacionalidade - Aquisição, perda e reaquisão. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 27.239

KILDARE GONÇALVES CARVALHO4. naturalização especial - conferida ao cônjuge casado há mais de cinco anos com diplomata brasileiro em atividade e aos empregados em missão diplomática brasileira ou em repartição consular do Brasil, com mais de dez anos de serviçosininterruptos - art. 114 da Lei n. 6.815/80 e art. 14 da Lei n. 818/49. (4)A naturalização depende de solicitação, escolha ou opção do indivíduo, que, aoaceitá-la, renuncia à nacionalidade de outro Estado. Perante a ordem jurídica brasileira, a naturalização confere ao indivíduo a condição única de brasileiro, pouco importando se, perante o Estado de origem, ele continua seu nacional.A naturalização é ato discricionário do Estado soberano, que poderá concedê-la ou recusá-la, segundo aspectos de conveniência ou oportunidade. Inexiste direitopúblico subjetivo à sua obtenção. Compete ao Ministro da Justiça concedê-la (art. 111 da Lei n. 6.815/80). Anaturalização produz efeitos ex nunc. Permanece assim inalterada a condição anterior, em relação a fatos verificados antes da naturalização, motivo por que persiste a responsabilidade civil e penal do naturalizado para com o país de origem.Constitui regra constitucional a isonomia entre brasileiros natos e naturalizados: "a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição" (art. 12, § 2°).Verifica-se que são privativos de brasileiros natos os cargos de Presidente eVice-Presidente da República; Presidente da Câmara dos Deputados; Presidente doSenado Federal; Ministro do Supremo Tribunal Federal; da carreira diplomática e de oficial das Forças Armadas (art. 12, § 3°, I a VI) e ainda os membros do Conselho da República nomeados pelo Presidente da República (art. 89, VII).Ainda de acordo com o art. 5°, LI, a Constituição não admite a extradição dobrasileiro nato, mas prevê a do naturalizado em caso de crime comum, praticadoantes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei. Finalmente, a Constituição declara ser privativa de brasileiro nato ou

naturalizado, há mais de dez anos, a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora de sons e imagens (art. 222).Observe-se que a Constituição confere tratamento especial aos portugueses quanto ao exercício dos direitos inerentes aos brasileiros natos, salvo nos casos previstos na Constituição.Pela disposição do § 1° do art. 12, o tratamento favorável aos portugueses nãoestá condicionado à sua naturalização, exigindo-se apenas residência permanente no País e reciprocidade em favor dos brasileiros (a Convenção sobre igualdade de direitos e deveres entre brasileiros e portugueses foi firmada em Brasília, a 7 de setembro de 1971, sendo que, após a edição, no Brasil, de vários diplomas normativos referentes ao assunto, o Decreto n. 70.436, de 18 de abril de 1972, regulamentou a aquisição, pelos portugueses, no Brasil, dos direitos e obrigações previstos no Estatuto da Igualdade).

(4) GUIMARAES, Francisco da Silva Xavier. Op. cit., p. 43.240

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 4 PERDA DA NACIONALIDADEA perda da nacionalidade, de acordo com o § 4° do art. 12, será declarada, relativamente ao brasileiro que tiver cancelada sua naturalização por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional, e de adquirir outra nacionalidade, salvo, como se depreende da Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 7 de junho de 1994, nos casos de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira, de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em Estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis.Note-se que a Constituição não arrola como causa de perda de nacionalidade aaceitação, pelo brasileiro, de governo estrangeiro, sem licença do Presidente da República, de comissão, emprego ou pensão, que constava do art. 146, II, da Emenda Constitucional n. 1, de 1969.As hipóteses de perda de nacionalidade são aquelas taxativamente enumeradasno texto constitucional, inadmitindo-se que venham a ser ampliadas por lei ordinária. A ela cabe apenas prever o procedimento de apuração das causas ensejadoras da perda da nacionalidade.Por força da nova redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 3/94ao inciso II com acréscimo das alíneas a e b, do § 4° do art. 12, da Constituição, na verificação dos motivos que levam à perda da nacionalidade brasileira, o que deverá ser apurado não é mais a intenção da pessoa que se naturalizou, mas a imposição da lei estrangeira da naturalização.Tem-se admitido a possibilidade da reaquisição da nacionalidade brasileira,mas como a lei ordinária não pode instituir outros casos de nacionalidade originária, entende-se que tanto os brasileiros natos como os naturalizados somente podem voltar a ser nacionais, na condição de naturalizados.Há, contudo, posicionamento de eminentes autores (Pinto Ferreira, Pontes de Miranda, Yussef Cahali e Dardeau de Carvalho), no sentido de que a reaquisição tem efeitos de naturalização, ou seja, aquele que readquire uma determinada nacionalidade recupera o antigo status: se nato, volta a ser nato; se naturalizado, volta a ser naturalizado, porquanto só se pode readquirir aquilo que se perdeu.

& 5 SITUAÇÃO JURÍDICA DO ESTRANGEIRO NO BRASILNo Brasil, a situação do estrangeiro se acha regulada pela Lei n. 6.815, de 19/8/1980, alterada pela Lei n. 6.964/81.Destacamos, para análise, alguns institutos relativos à condição do estrangeirono Brasil: 1. entrada - todo estrangeiro tem direito a entrar no Brasil, mediante algumascondições legais, mencionando-se a obtenção do visto de entrada, que pode ser de241

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

trânsito, de turista, temporário, permanente, de cortesia, oficial ou diplomático. O visto não será concedido ao estrangeiro menor de 18 anos, salvo se viajar acompanhado de responsável;2. permanência - consiste na estada do estrangeiro no Brasil, sem limitaçãode tempo, que abrange aquele que obtenha o visto com a intenção de fixar-se definitivamente no País, bem como aquele que, obtendo visto de turista ou temporário, resolva permanecer no Brasil definitivamente, desde que preencha as condições para o visto permanente;3. direitos civis e políticos - quanto aos direitos civis, o Código Civil (art. 3°) não distingue entre nacionais e estrangeiros. A Constituição estabelece, contudo, algumas restrições, como, por exemplo, a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira, bem como os casos que dependerão de licença do Congresso Nacional (art. 190); envio de remessa de lucros para o exterior (art. 172). Já com relação aos direitos políticos, a Constituição os atribui apenas aos brasileiros natos ou naturalizados, ressalvada a situação dos portugueses no Brasil, desde que haja reciprocidade em favor de brasileiros (art. 12, § 1°);4. asilo político - consiste no recebimento do estrangeiro no território nacional, para evitar punição ou perseguição, no país de origem, por delito político ou ideológico. Nossa Constituição vinculou o asilo político às relações internacionais, pois que ele constitui um princípio da ordem internacional (arc. 4°, X). Nada obstante, o asilado sujeita-se à observância das normas que o governo estabelecer, não podendo deixar o País sem autorização;5. extradição - é a transferência compulsória de um indivíduo de um Estadopara outro, que a requer, para que nele responda a processo ou cumpra pena. Deacordo com o disposto no art. 5°, LI, e LII, nenhum brasileiro será extraditado (ver adiante), e não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião. Note-se que a extradição depende do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca da legalidade e procedência do pedido, podendo, no entanto, o Presidente da República deixar de consumar a extradição, mesmo com o pronunciamento a ela favorável do Supremo;6. expulsão - consiste em se expelir do território nacional um estrangeiro,por ter nele praticado delito ou atentado à sua ordem jurídica, que o tornem in-conveniente;7. deportação - consiste na saída compulsória do estrangeiro, por ter entradoou permanecido irregularmente no território nacional.O brasileiro não pode ser expulso nem deportado, o que caracterizaria o banimento, proibido pelo art. 5°, XLVII, da Constituição.242

Capítulo 12DIREITOS POLÍTICOS

Sumário1 Considerações gerais2 Sufrágio3 Elegibilidade4 Inelegibilidade5 Suspensão e perda dos direitos políticos6 Sistemas eleitorais

& 1 CONSIDERAÇÕES GERAISA participação do nacional no processo político, votando, sendo votado, exercendo cargo público e fiscalizando os atos dos detentores do poder, é traço do Estado Democrático de Direito. Assim, ao lado da liberdade-autonomia, que se traduz na existência de direitos inerentes ao indivíduo e oponíveis ao Estado, fala-se em liberdade-participação, entendida como a prerrogativa do indivíduo de participar da vida política do Estado.Os direitos políticos configuram, pois, essa liberdade-participação, que é assegurada a determinada categoria de nacionais, os chamados cidadãos. Portanto, há de se distinguir entre nacional e cidadão: nacional é aquele que se acha vinculado ao Estado por um liame jurídico-público, que, como vimos, o sujeita à ordem jurídica estatal; já o cidadão é o nacional capaz de exercer direitos políticos. Anote-se, contudo, que alguns autores tomam uma expressão pela outra,

sem distingui-las. Em nosso Direito, nacionalidade e cidadania não se equivalem: cidadão é o nacional investido da condição departicipante do processo político: "é um status ligado ao regime político". (1)Dentre as diversas formas em que se manifesta (ver Cap. 9, n. 12), a cidadaniapode ser ativa (capacidade de votar) ou passiva (capacidade de ser votado).

& 2 SUFRÁGIOO sufrágio é universal, e o voto, direto e secreto, dispõe a Constituição no art. 14. Cumpre inicialmente distinguir sufrágio (direito), voto (exercício), e escrutínio (modo de exercício).O sufrágio é universal, isto é, o direito de votar e de ser votado é conferido atodos os cidadãos, independentemente de qualquer distinção quanto, por exemplo, a sexo, classe social ou econômica, mas que atendam às condições indicadas genérica e abstratamente no texto constitucional, relativas à nacionalidade, capacidade, idade e alistamento eleitoral, que, no entanto, não desqualificam o sufrágio como universal, desde que sejam prévia, genérica e abstratamente definidos e aplicáveis a todos os

(1) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 99.245

KILDARE GONÇALVES CARVALHOcidadãos. O voto é direto, ou seja, a escolha se faz sem a figura de eleitores intermediários. O escrutínio é secreto, pois com isso se procura resguardar a autenticidade da manifestação do eleitor, garantindo o sigilo da votação, através de mecanismos previstos na lei eleitoral, tais como cédula oficial entregue ao eleitor no momento da votação, recolhimento deste à cabine indevassável para o exercício do voto, depósito da cédula na urna, mostrando antes a parte externa rubricada para comprovação de que não houve substituição fraudulenta.Diz a Constituição que o alistamento e o voto são:a) obrigatórios para maiores de dezoito anos;b) facultativos para os analfabetos, os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (art. 14, § 1°), não podendo alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos. Note-se, então, dezesseis e menor de dezoito anos detém capacidade eleitoral ativa, ou seja, pode votar mas não pode ser votado, o que acarretará, com certeza, algumas questões delicadas, em virtude de não ser penalmente imputável, no caso de crime eleitoral. O voto do analfabeto tem sido justificado pela circunstância de que os meios de comunicação de massa concorreriam para a efetivação de um nível de informações suficientes ao exercício do voto. Pondere-se, contudo, que o reconhecimento do voto ao analfabeto pode ser fator de desestímulo à alfabetização e, portanto, estímulo ao analfabetismo, podendo ainda contribuir para a ocorrência de fraudes eleitorais, pela dificuldade em sepreservar a plenitude da independência e da liberdade do analfabeto no ato de votar.Tem-se por analfabeto aquele que não sabe ler nem escrever. Se escreve, embora mal, ou sobretudo se lê e se compreende razoavelmente o que lê, há de ser considerado elegível.Não se considera, então, analfabeto aquele que lê ou escreve mal. Distingue-se, pois, o analfabeto do semi-alfabetizado, sendo este o que, emvirtude de baixa escolaridade, escreve ou lê com dificuldade, mas consegue apreender o sentido de um texto simples.O texto constitucional, desse modo, não exige como condição de elegibilidadea alfabetização: basta que o candidato não seja analfabeto, e nesta situação se encontra o semi-alfabetizado.

& 3 ELEGIBILIDADEA elegibilidade consiste na capacidade eleitoral passiva, isto é, capacidade de ser votado.São condições de elegibilidade, segundo o § 3°, do art. 14 da Constituição: anacionalidade brasileira; o pleno exercício dos direitos políticos; o alistamento eleitoral; o domicílio eleitoral na circunscrição; a filiação partidária; a idade mínima de trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República; trinta anos para 246

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOGovernador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e Juiz de Paz; dezoito anos para Vereador.A nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos e o alistamento eleitoral poderiam, como requisitos de elegibilidade, ser reduzidos à condição de ser o elegível eleitor, pois, se por um lado somente o brasileiro é alistável, uma vez cumprido esse dever de alistamento eleitoral, passa a gozar da presunção, juris tantum, de exercício pleno dos direitos políticos.Domicílio eleitoral "é o lugar da residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á domicílio qualquer delas" (Código Eleitoral, art. 42, parágrafo único).Daí não se confundir domicílio civil com domicílio eleitoral, pois, enquanto 0primeiro pressupõe dois fatos, a residência e o ânimo definitivo de residir (art. 31 do Código Civil), para a caracterização do domicílio eleitoral é suficiente a moradia que revele um liame de interesse público na circunscrição, tanto que, tendo o candidato mais de uma moradia, poderá escolher qualquer delas. Mas a fim de conferir maior legitimidade à representação, tem a lei exigido tempo mínimo de moradia na circunscrição para o fim de ser votado.Consideram-se circunscrições eleitorais, para fins de domicílio eleitoral: a) oterritório nacional, nas eleições presidenciais; b) o território estadual, nas eleições federais e estaduais; c) o território municipal, nas eleições municipais.A filiação partidária diz com o princípio constitucional do monopólio dospartidos políticos na apresentação de candidaturas. Não há, em nosso Direito, candidaturas avulsas, isoladas ou independentes. O eleitor que se pretende candidato deve, portanto, filiar-se tempestivamente a partido político, identificando-se com o seu programa e submetendo-se à disciplina partidária.O eleitor menor de 18 e maior de 16 anos pode filiar-se a partido político, mas não pode exercer cargo na agremiação partidária, por faltar-lhe capacidade civil plena (Resolução TSE n. 16.790).Quanto ao militar, alistável (art. 14, § 2°) e elegível (art. 14, § 8°), mas nãofiliável (art. 42, § 6°), embora necessária a sua filiação partidária como requisito de elegibilidade (art. 14, § 3°, V), basta-lhe o pedido de registro da candidatura, apresentado pelo partido e autorizado pelo candidato, conforme decidiu o TSE, Ac. 11.314, relator Ministro Gallotti, 30/8/90.Os inalistáveis não podem votar nem ser votados; os analfabetos podem votar,mas não podem ser votados.

& 4 INELEGIBILIDADEInelegível é o que não pode ser votado. Consiste a inelegibilidade na suspensãoda capacidade eleitoral passiva. As inelegibilidades visam proteger a probidade 247

administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta (art. 14, § 9°, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão n. 4, de 7 de junho de 1994). Resguardam o regime democrático.No plano normativo, a inelegibilidade contém três significados:"a) é situação objetiva, contida no conteúdo proibitivo do preceito legal, criando obstáculo à candidatura, b) é estatuição impondo a desincompatibilização, visando à garantia da liberdade de voto, à lisura e à legitimidade das eleições e c) é sanção jurídica pelo descumprimento da estatuição ou desincompatibilização, isto é, implica um efeito imposto pela ordem jurídica: o impedimento e a nulidade dos atos concernentes à candidatura" (2).Inelegibilidade não se confunde com incompatibilidade parlamentar, impedimento que se verifica após a eleição do congressista (cf. Capítulo 16, item 8).As inelegibilidades previstas na Constituição de 1988 são mais amplas do queas da Constituição de 1946, que apenas as restringia a determinados cargos públicos, cujos titulares ficavam impossibilitados de se candidatarem.As inelegibilidades podem ser absolutas e relativas.Absolutas são as que valem para todos os cargos, sem prazo para desincompatibilização, como,

por exemplo, as dos inalistáveis e analfabetos.Relativas são as que valem para determinados cargos eletivos, com possibilidade de desaparecerem, caso o cidadão se desembarace da situação que o torna inelegível, mediante a desincompatibilização.Estabelecia a Constituição: "São inelegíveis para os mesmos cargos, no períodosubseqüente, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do DistritoFederal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído nos seis meses anteriores ao pleito" (art. 14, § 5°).Rompendo tradição de nosso constitucionalismo, foi promulgada a EmendaConstitucional n. 16, de 4 de junho de 1997, introduzindo a reeleição para um único período subsequente dos titulares de cargos executivos, nos três níveis de governo, vale dizer, Presidente da República, Governadores de Estado e do Distrito Federal, e Prefeitos Municipais. Naturalmente que os respectivos vices poderão ser reeleitos, já que inexiste vedação constitucional para tanto, notando-se ainda que, mesmo tendo sucedido ou substituído os titulares, no curso dos mandatos, esta circunstância não constitui impedimento à reeleição, como se depreende do disposto no § 5° do art. 14 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 16/97.

(2) MENDES, Antônio Carlos. Introdução à teoria das inelegibilidades. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 112.248

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPara que possam ser reeleitos, os exercentes de cargos executivos não necessitam afastar-se das funções inerentes aos seus cargos, podendo neles permanecer até otérmino do mandato, salvo se pretenderem concorrer a outros cargos, hipótese emque o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito (art. 14, § 6° ).As inelegibílidades relativas, para evitar abuso de poder, ou por motivos funcionais, admitem a desincompatibilização, que é o modo pelo qual o cidadão passa a elegível, afastando-se daquela situação que o torna inelegível. Tal afastamento, em alguns casos, deve ser permanente, e em outros, temporário.O § 7° do art. 14 da Constituição prevê casos de inelegibilidade por motivo deparentesco, dizendo que "são inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato e candidato à reeleição".Cônjuge é o casado civilmente. A Constituição Federal reconhece, entretanto,como entidade familiar, a união estável entre o homem e a mulher (art. 226, § 3°).O parentesco que leva â inelegibilidade em análise pode ser consagüíneo ou afim, até o 2° grau ou por adoção.Consagüíneo ou natural é o parentesco "quando o nexo que vincula entre si pessoas oriundas umas das outras ou de um tronco ancestral comum, resulta sempredos laços de sangue."(4) É afim o parentesco que alia um consorte aos parentes consangüíneos do outro, e o parentesco por adoção se verifica quando o nexo é estabelecido artificialmente pela lei.Na linha reta ascendente, até o 2° grau, encontram-se os pais e os avós daspessoas que exercem os cargos aludidos no preceptivo constitucional; na linha reta descendente, os filhos e os netos; na linha colateral, os irmãos.Já na linha reta ascendente, por afinidade, até o 2° grau, acham-se o sogro, asogra, o padastro e a madrasta, e os avós do cônjuge; na linha reta descendente, o genro, a nora, o enteado e a enteada, e os netos do cônjuge; na linha transversal, os cunhados.A inelegibilidade por parentesco é restrita ao território sujeito à influênciadireta do Chefe do Poder Executivo, vale dizer, à sua circunscrição. Deste modo, o cônjuge ou parente até 2° grau do Presidente da República ficam impossibilitados de elegerem-se no território nacional para qualquer cargo; já o cônjuge ou parente até 2° grau de Governador de Estado não

podem disputar mandato eletivo municipal ou estadual no Estado que o seu parente chefia, podendo candidatar-se em outros

(3) BRASÍLIA, STJ, Recurso Extraordinário 158.564-1-AL, Rel.: Adin. Celso de Mello - DOU de 30/4/93, p. 7.562 a 7.574.(4) OLIVEIRA, Arthur Vasco Itabaiana. Tratado de direito das sucessões. Rio de Janeiro: Freiras Bastos, 1987, p. 36.249

KILDARE GONÇALVES CARVALHOEstados ou a mandato federal, e o cônjuge ou parente até 2° grau de Prefeito nãopodem candidatar-se a este cargo ou a Vereador no âmbito do território do mesmoMunicípio. Tal inelegibilidade não se aplica no caso de reeleição e nem a qualquer outra situação: irmão de Deputado, por exemplo, pode candidatar-se ao cargo de Presidente da República ou a outro cargo eletivo.No que concerne aos militares, a Constituição deu-lhes condição de elegibilidade, à exceção de uma categoria de praças de pré, os conscritos, que são inalistáveis (art. 14, § 2°), observado o seguinte: se contar em menos de dez anos de serviço, deverão afastar-se da atividade; em mais de dez anos de serviço, serão agregados pela autoridade superior e, se eleitos, passarão automaticamente, no ato da diplomação, para a inatividade (art. 14, § 8°).Observe-se finalmente que caberá à lei complementar estabelecer outros casosde inelegibilidade e os prazos de sua cessação (art. 14, § 9°). Trata-se da Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990.

& 5 SUSPENSÃO E PERDA DOS DIREITOS POLÍTICOSO cidadão pode ser privado, temporária (suspensão) ou definitivamente (perda), de seus direitos políticos.São casos de suspensão dos direitos políticos a incapacidade civil absoluta, acondenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, e aimprobidade administrativa nos termos do art. 37, § 4°, da Constituição.A perda dos direitos políticos, segundo pensamos, se dará nos casos de cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado e de recusa em cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa nos termos no art. 5°, VIII (objeção de consciência).A recuperação dos direitos políticos ocorre tanto nos casos de suspensão comonos de perda, pela cessação dos motivos que as determinaram.

& 6 SISTEMAS ELEITORAISAo se estudar os direitos políticos, impõe-se o conhecimento dos sistemaseleitorais, para a exata compreensão da organização político-partidária do Estado, no que diz respeito à captação da vontade popular com vistas à formação do governo e do Parlamento.São dois, em síntese, os sistemas eleitorais: o sistema majoritário e o sistema de representação proporcional.Pelo sistema majoritário, divide-se o território do País em circunscrições eleitorais correspondentes aos mandatos, elegendo-se em cada uma delas o candidato mais250

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOvotado. Tal sistema comporta variante, como o voto distrital (há divisão do território em distritos eleitorais, onde se elege um candidato, por maioria simples ou relativa).Pode haver, no sistema majoritário, escrutínio em dois turnos: se nenhum candidato alcançar maioria absoluta, realiza-se uma segunda votação, considerando-se eleito o candidato que tiver obtido maior número de votos entre os primeiros colocados na primeira votação.As vantagens e desvantagens do sistema majoritário vêm elencadas por PauloBonavides. Como vantagens, produz governos estáveis, evita a pulverização partidária, aproxima o eleitor do candidato, afasta do Parlamento grupos de interesses, fazendo com que o eleitor vote em pessoas mais do que em partidos, proporcionando soluções objetivas a problemas concretos

de governo. Mas como desvantagens, o sistema majoritário pode conduzir ao governo, com maioria no Parlamento, um partido que saiu vitorioso das eleições, sem, contudo, haver obtido no país uma quantidade superior de votos. Pesa a influência positiva ou negativa que poderá ter para os partidos o critério adotado na repartição do país em circunscrições eleitorais, em razão do status social e econômico correspondente ao eleitorado dessas circunscrições. A repartição pode eventualmente ser inspirada, manipulada ou patrocinada por grupos empenhados na obtenção de determinados resultados eleitorais, favoráveis aos seus interesse (5).O sistema de representação proporcional visa assegurar a cada corrente de opinião, entre as quais se repartem os eleitores, um número de representantes proporcional às suas respectivas forças eleitorais.O sistema pressupõe a divisão de uma mesma circunscrição eleitoral entre as referidas correntes eleitorais. A distribuição no Parlamento deve ser proporcional aos votos obtidos, na eleição, pelos partidos políticos. Assim, em termos ideais, se determinado partido obteve 35°ó dos votos, este mesmo percentual deverá corresponder no Parlamento ao número de Cadeiras por ele preenchidas.Para se proceder ao cálculo da proporção, utiliza-se o chamado quociente eleitoral, que resulta da divisão do número de votos válidos pelo número de Cadeiras a preencher no Parlamento.É ainda Paulo Bonavides quem ressalta as vantagens do sistema de representação proporcional:"Encare-se em geral o princípio da justiça que preside ao sistema de representação proporcional. Ali todo voto possui igual parcela de eficácia e nenhum eleitor será representado por um deputado em quem não haja votado. É também o sistema que confere às minorias igual ensejo de representação de acordo com sua força quantitativa. Constitui este último aspecto alto penhor de proteção e defesa que o sistema proporciona aos grupos minoritários, cuja representação fica desatendida pelo sistema majoritário.

(5) BONAVIDES, Paulo. Ciência política, p. 296.251

KILDARE GON ALVES CARVALHO�Sendo por sua natureza, como se vê, aberto e flexível, ele favorece, e até certo ponto estimula, a fundação de novos partidos, acentuando desse modo o pluralismo político da democracia partidária. Torna por conseguinte a vida política mais dinâmica e abre à circulação das idéias e das opiniões novos condutos que impedem uma rápida e eventual esclerose do sistema partidário, tal como acontece onde se adota o sistema eleitoral majoritário, determinante da rigidez bipartidária." Com relação às desvantagens do sistema representativo proporcional, escreve:"Uma das objeções feitas se refere à multiplicidade de partidos que ela engendra e de que resulta a fraqueza e instabilidade dos governos, sobretudo no parlamentarismo. A representação proporcional ameaça de esfacelamento e desintegração o sistema partidário ou enseja uniões esdrúxulas de partidos - uniões intrinsecamente oportunistas - que arrefecem no eleitorado o sentimento de desconfiança na legitimidade da representação, burlada pelas alianças e coligações de partidos, cujos programas não raro brigam ideologicamente. Da ocorrência dessas alianças deduz-se outro defeito grave da representação proporcional: exagera em demasia a importância das pequenas agremiações políticas, concedendo a grupos minoritários excessiva soma de influência, em inteiro desacordo numérico dos seus efetivos eleitorais. Ofende assim o princípio da justiça representativa, que se almeja com a adoção daquela técnica, fazendo de partidos insignificantes os `donos do poder', em determinadas coligações. E que de seu apoio dependerá a continuidade de um ministério no parlamentarismo ou a conservação da maioria legislativa no presidencialismo." (6)Anote-se ainda que é possível a adoção de sistema misto, resultado da combinação do sistema majoritário e do sistema de representação proporcional.A Constituição brasileira consagra o sistema majoritário - art. 77 - e o sistemade representação proporcional - art. 45 (ver, a propósito, os Capítulos 16 e 19).Considere-se, ademais, que a representação proporcional, que tem como propósito a representação dos partidos políticos, sendo que o cálculo para a distribuiçãodas cadeiras é feito tomando como base a votação total das legendas, torna-se necessária a utilização de procedimentos a fim de definir como as candidaturas individuais serão eleitas. Fala-

se, então, em representação proporcional de lista, para a seleção de candidatos, compreendendo as listas fechada, flexível, aberta e livre.No sistema de lista fechada, os eleitores não votam em candidaturas individuais, mas apenas na lista partidária, ficando a cargo dos partidos políticos decidir,

(6) BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 298-299.252

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOantes das eleições, a posição de cada candidato na lista. Desse modo, as cadeiras que cada partido conquistar serão ocupadas pelos primeiros nomes da lista. Por esse sistema, privilegia-se o controle dos partidos na designação dos seus representantes, desprestigiando-se os eleitores, que ficam em segundo plano, já que não podem mudar a posição de cada candidato na lista. Israel e, parcialmente, a Alemanha adotam esse sistema.No sistema de lista flexível, apesar de também caber aos partidos a ordenaçãodas candidaturas, com a posição de cada candidato na lista, os eleitores têm como intervir na sua disposição, já que podem votar, em alguns casos, em um candidato e, noutros, alterar a posição em que se encontram. A lista flexível é adotada, entre outros países, pela Bélgica, Holanda, Áustria, Suécia e Grécia.No sistema de lista aberta, os eleitores votam em um candidato da lista ou na legenda, cabendo-lhes, e não aos partidos, determinar a ordem final dos candidatos, já que as agremiações partidárias não apresentam relação de nomes preordenados.Os candidatos que receberem maior número de votos individualmente ocuparão ascadeiras a que o partido terá direito. Critica-se esse sistema pelo fato de acarretar acirrada competição entre os candidatos de um mesmo partido, bem corno pela possibilidade de produzir resultados distintos e não desejados pelo eleitor, que, em caso de partido acentuadamente heterogêneo, o voto dado a um candidato de sua preferência pode ajudar a eleger um outro de tendência oposta e conflitante com suas afinidades políticas. A Finlândia e o Brasil adoram a lista aberta. No sistema de lista livre, os eleitores dispõem de maior número de alternativas,podendo votar em tantos nomes quantas forem as cadeiras a preencher em seu distrito eleitoral, escolhidos entre candidatos constantes de uma lista não-ordenada e apresentada pelos partidos políticos. Formula-se crítica a esse sistema, porquanto a possibilidade de o eleitor dar dois votos para um mesmo candidato, ou votar em candidatos de mais de um partido, acaba comprometendo o princípio do sistema proporcional de lista, que é o da representação prioritária dos partidos. Luxembrugo e Suíça adotam a lista livre.

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Capítulo 13PARTIDOS POLÍTICOS E GRUPOS DE PRESSÃO

Sumário1 Considerações gerais2 Classificação dos partidos políticos3 Funções dos partidos políticos4 Os partidos políticos na Constituição de 19885 Grupos de pressão

& 1 CONSIDERAÇÕES GERAISDiz Maurice Duverger, autor da proposta do termo "estasiologia" para umapossível ciência dos partidos políticos, que, "em 1850, nenhum país do mundo (salvo os Estados Unidos) conhecia partidos políticos no sentido moderno do termo: encontravam-se tendências de opiniões; clubes populares, associações de pensamento, grupos parlamentares, mas nenhum partido propriamente dito. Em 1950, estes funcionavam na maior parte das nações civilizadas, os

outros se esforçavam por imitá-las" (1).Os partidos políticos desempenham significativo papel nos regimes democráticos, falando-se até mesmo em democracia de partidos, porquanto é através deles que se organiza a vontade popular, em busca do poder para a realização de um programa comum. Assim, na noção de partido político entram todas as organizações da sociedade civil, surgidas no momento em que se reconhecia teórica ou praticamente ao povo o direito de participar da gestão do Poder Público. Os conceitos de partidos políticos são vários, destacando-se o de Jellinek,para quem "são grupos formados sob a influência de convicções comuns voltadaspara certos fins políticos, que se esforçam para realizar", e o de P. Virga que concebe os partidos políticos como "uma formação social espontânea que tem comobase uma concepção política ou interesses políticos comuns, e que se propõe àconquista do poder" (2).Os partidos políticos no Brasil foram institucionalizados com a Constituição de1946, dizendo Paulo Bonavides que não andaria exagerado quem datasse dessa Constituição "a existência verdadeira do partido político em nosso país, existência que começa com o advento dos partidos nacionais. Os cem anos antecedentes viram apenas agremiações que, à luz dos conceitos contemporâneos, relativos à organização e funcionamento dos partidos, dificilmente poderiam receber o nome partidário." (3)Note-se, contudo, que no Brasil não há tradição partidária, seja pelo exageradopersonalismo que domina a vida política brasileira e a dos próprio partidos, levando ao desapreço pelos programas e diretrizes partidárias, seja pelo acentuado regionalismo que tem servido de base e orientado a sua formação.

(1) DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos, p. 19.(2) TRANSMONTE, Baldomero Cores. Dicionário de ciências sociais. Verbete: partido político.(3) BONAVIDES, Paulo. Ciência política, p. 470.257

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 2 CLASSIFICAÇÃO DOS PARTIDOS POLÍTICOSHá vários critérios utilizados para a classificação dos partidos políticos.Os partidos de quadros e os partidos de massas tomam como base a estrutura interna. Proposta por Duverger, considera ele partidos de quadros os que secaracterizam por visar à qualidade de seus membros, e não à sua quantidade, cujogrupo reduzido desenvolve a atividade partidária. Procura reunir personalidadesque devem ter um certo prestígio e que, pela fortuna, se disponham a ajudar acobrir as despesas partidárias.Os partidos de massas caracterizam-se por englobarem um maior número deadeptos e visam contribuir para a formação política da população, criar estruturas econômicas e sociais de massas. As contribuições financeiras se baseiam em quotas pagas pelos adeptos do partido.Os partidos flexíveis caracterizam-se pela ausência de disciplina interna e bancadas parlamentares; já os partidos rígidos, por serem centralizados, exigem uma "disciplina estreita" a seus integrantes.Fala-se ainda em sistemas de partido único, sistemas bipartidários e sistemasmultipartidários, considerando-se sua organização externa. "O unipartidarismopode ser simples ou básico, na hipótese de existir, apenas, um partido, como naUnião Soviética (extinta), na Alemanha nazista ou na Itália fascista, ou existirem mais, sujeitos, todavia, à ação de um partido predominante, como no México (Partido Republicano Institucional). O mesmo sucede com o bipartidarismo que, no aspecto ortodoxo, existe no Uruguai e na Turquia (blancos e colorados, e Partido da Nação e Partido Democrata, respectivamente). Os regimes inglês (também o canadense) e americano são bipartidários básicos". (4)Apesar da existência do bipartidarismo no Brasil, depois de 1964, esse dualismopartidário foi fraudado pela ação de um partido absorvente, ocorrendo, assim,indissimulável monocracia partidária, é o que esclarece Fernando Whitaker da Cunha.

O pluripartidarismo caracteriza-se pela existência de vários partidos, com apossibilidade de um predominar sobre os demais. A multiplicação, contudo, de partidos políticos, pode levar a uma excessiva divisão do eleitorado, com a necessidade de coligações partidárias, como pode ocorrer a formação de um bipartidarismo, pela existência de duas agremiações de maior presença.Mencione-se, ainda, os partidos de patronagem (buscam o poder para entregá-lo a seus dirigentes e servir à sua clientela); os partidos ideológicos (objetivam aaplicação política de suas idéias); os partidos de classe (representam determinadas camadas sociais), classificação proposta por Max Weber.São ainda tipos partidários, os partidos de direita, de esquerda ou de centro,segundo assumam uma orientação conservadora, socializante ou intermediária.

(4) CUNHA, Fernando Whitaker da. Representação política e poder, p. 74.258

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPode-se ainda diferenciar o "partido do poder" do que não está no poder: oprimeiro se desintegra quando está no governo em razão das transações políticas que deve realizar, da inaplicabilidade de muitos dos seus princípios e das resistências que suscitam outros; o segundo é um partido de oposição, com as facilidades que tal postura acarreta. É mais fácil unir-se contra que a favor de algo; por isso, o partido de oposição aproveita a crítica ao partido governante para obter a adesão de muitos simpatizantes (Bidart Campos).Finalmente, há os partidos nacionais, devendo ter filiados em grande parte doterritório nacional que lhes confiram expressão nacional; os partidos regionais, limitado o âmbito de sua atuação a determinada região, e os partidos locais, de âmbito municipal.

& 3 FUNÇÕES DOS PARTIDOS POLÍTICOSConsideram-se como principais funções dos partidos políticos as seguintes: a)coordenação e simplificação de opiniões e interesses concretos com vistas a influir no poder político, consubstanciados em idéias gerais, como justiça social, igualdade, segurança; b) difusão do seu programa político, já que todo partido é sempre um instrumento de promoção ideológica; c) seleção, em seu próprio âmbito de atuação, `das pessoas que devem ascender a cargos no governo, como organizador da chamada classe política , orientando e promovendo a experiência da carreira política de seus membros; d) organização das eleições, com a apresentação e apoio aos seus candidatos, mediante a utilização de sua estrutura; e) apoio, com propaganda e ação partidária, em determinado órgão do Poder, especialmente no Parlamento, à obra do governo, quando se tratar de partido da situação, e crítica a seus adversários; f) realização de atividades internas de conservação, estabelecendo os seus quadros e os meios necessários para suas atividades, como donativos, cotas, etc.; g) realização, em nívelde seus líderes e de seus quadros diretivos, do equilíbrio entre consenso e conflito, resultante de uma divisão ou confronto de interesses ou ideologias.

& 4 OS PARTIDOS POLÍTICOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988Dispõe o art. 17 da Constituição de 1988 que "é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana, e observados os seguintes preceitos:I - caráter nacional;II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governoestrangeiros ou de subordinação a estes;III - prestação de contas à Justiça Eleitoral;IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei".259

KILDARE GONÇALVES CARVALHOOs partidos políticos têm autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento (§ 1° do art. 17). Assim, tais matérias que refletem a autonomia partidária serão

reguladas no estatuto do partido, e não em lei. O estatuto disporá ainda sobre normas de fidelidade e disciplina partidárias, notando-se que a Constituição não contém norma que sanciona, com a perda do mandato parlamentar, a infidelidade partidária. O estatuto é que disporá sobre a expulsão do congressista infiel ao partido.Inovação significativa do texto de 1988 diz respeito à natureza jurídica dos partidos políticos, que são agora pessoas jurídicas de direito privado, pois, após adquirirem personalidade jurídica na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral (art. 17, § 2°). Quer isso dizer que os partidos políticos deverão inscrever seus estatutos no registro das pessoas jurídicas, adquirindo personalidade jurídica de direito privado.Têm os partidos políticos direito a recursos do fundo partidário para a realização de qualquer serviço, trabalho ou empreendimento da agremiação, e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei (art. 17, § 3°).Veda-se aos partidos a utilização de organização paramilitar, pois a própriaConstituição declara, no art. 5°, XLIV, que "constitui crime inafiançável eimprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".

& 5 GRUPOS DE PRESSÃOGrupo de pressão é aquele que se constitui para influir nas decisões do poderpolítico, com um objetivo concreto e determinado, sem assumir as responsabilidades da decisão política.Mas, além dos grupos de pressão, que são coletivos, há, no tocante à influênciasobre o poder político, a pressão desenvolvida por indivíduos isoladamente, motivo por que se deve considerar os grupos de pressão como um aspecto parcial das forças de pressão, que podem ser individuais e plurais.Mencione-se ainda, como distinto do grupo de pressão, o grupo de interessesque, ao contrário daquele, não persegue necessariamente o político, mas, de índole política, cultural ou religiosa, agrega pessoas que apenas sustentam um gosto comum, ou uma atitude comum perante o mundo e a vida. (5)Os grupos de pressão se acham inseridos na sociedade pluralista e suprem ainsuficiência dos partidos políticos que não conseguem satisfazer as necessidades

(5) MOREIRA, Adriano. Ciência política, p. 154.260

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOdas aspirações populares, nem tutelar seus interesses. Cria-se, desse modo, um vazio preenchido pelos grupos de pressão.Daí por que no sistema representativo "se desenvolveu uma forma de representação de grupos que supera os corpos eleitorais distribuídos geograficamente e faz pesar muito mais fortemente a influência dos interesses especiais na balançalegislativa do que a de qualquer agregado irrelevante de eleitores ocasionais". (6)E a capacidade de influência dos grupos de pressão acha-se condicionada a trêscaracterísticas: número representativo de componentes, capacidade financeira e organização.Quanto ao número de filiados, que garante a legitimidade do grupo para agirem nome de determinado segmento social ou empresarial, pode ser grande ou pequeno, variando em função do interesse motivador, devendo, contudo, ser representativo. Já a capacidade financeira e a organização residem nos grupos bem estruturados, com vistas a dotar a associação de mobilidade e instrumental de persuasão, capacitando-o gerencialmente para a obtenção de recursos humanos, técnicos e financeiros, para o exercício de influência no processo decisório.Podem-se citar como motivação dos grupos, as seguintes: a) econômica; b) ideológica; c) religiosa; d) cultural; e) política; f) profissional; g) ambiental; h) geográfica. Observa-se que, na maioria dos casos, as motivações não surgem isoladamente como fator de impulsão dos grupos, mas se acham permeadas por mais de um deles. Assim, no que se refere à atuação dos grupos no Congresso Nacional, na sua maioria está presente a motivação econômica associada a fatores políticos, profissionais ou de caráter regional.

Os grupos de pressão, conhecidos como lobbys (= antecâmaras, corredores, acabala dos corredores do Congresso), envolve o lobbying, isto é, o método de ação por eles empregado, bem como o lobbyisten, que são as pessoas que se entregam à prática dessa atuação política.A ação dos "lobistas" pode ser positiva ou negativa.No primeiro caso, ela suplementa a ação dos partidos políticos, permitindo arealização do próprio interesse público, em especial junto ao processo legislativo:como falava Nehemias Gueiros, na 1a Conferência da Ordem dos Advogados doBrasil, o lobbying é "uma atividade correta e corregedora, espécie de higiene da lei".Observe-se, no entanto, que muitas vezes os grupos de pressão, em vez de influenciar a feitura das leis, buscam criar uma aparência de apoio público.No aspecto negativo, assinale-se os graves inconvenientes dos grupos de pressão, quais sejam, sua luta desenfreada pelos interesses particulares (utilizando, atémesmo, a intimidação e a corrupção), o poder sem responsabilidade, a desunião dos

(6) RODRIGUES, Lêda Boechat. Direito e política, p. 148.261

KILDARE GONÇALVES CARVALHOmembros da comunidade e a sua contribuição para o que se pode chamar de dispersão ou atomização do poder:"É certo que uma série de fatores deve ser considerado ao analisar o grupo de pressão. Primeiramente, cumpre verificar que tipos de interesses almejam, se permanentes ou ocasionais; permanentes no sentido do interesse fixo perseguido, por exemplo, econômico, material, social etc. Qual o número de seus adeptos e qual a capacidade financeira do grupo: como está organizado, qual a capacidade que tem em influenciar os agentes estatais ou mesmo a opinião pública, direta ou indiretamente: que tipos de `métodos' são utilizados para conseguir alcançar seus objetivos. Obviamente respondendo a essa série de questões, ter-se-á uma boa medida do grupo depressão analisado, e de sua conveniência ou não ao sistema democrático". (7)Deve-se então buscar corretivos contra a influência de determinados grupos depressão: tais se encontrariam no fortalecimento dos partidos políticos, eleições honestas, amplo sufrágio e livre exercício das liberdades públicas.

(7) FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria geral do Estado, p. 134.262

Capítulo 14ESTADO FEDERAL

Sumário1 Introdução2 A federação no Brasil - Evolução3 Estrutura da federação4 Repartição de competências5 União- Natureza jurídica6 Estados federados - Autonomia7 Municípios - Posição na federação8 Distrito Federal - Natureza9 Territórios10 Intervenção federal11 Intervenção nos Municípios

& 1 INTRODUÇÃOAo tratarmos das formas de Estado e dos princípios fundamentais da Constituição, examinamos a noção de Estado Federal, identificando-lhe os traços básicos, e, sucintamente, a evolução do

federalismo no Brasil (cf. Capítulos 2 e 9).Apesar disso, insistiremos na análise do tema, a fim de melhor compreendermos a estrutura federal brasileira.O Estado Federal surgiu no século XVIII, com a Constituição norte-americanade 1787, não obstante se falar em federações na Grécia antiga, as quais, sem as características dos Estados federais modernos, traduziam meras alianças temporárias.É importante, pois, examinarmos o nascimento histórico do Estado Federal nomundo moderno, para extrairmos dessa análise o seu perfil constitucional.A federação norte-americana resultou da necessidade que tiveram as ex-trezecolônias inglesas, recém-independentes, de não regredirem ao estado colonial, objetivando uma unidade política suficientemente forte para garantir a independência conquistada. Assinaram, então, em 1781, após a independência ocorrida em 1776, - um tratado com o nome de Artigos de Confederação, pelo qual conservava cada Estado independente sua soberania, mesmo porque esse acordo podia a qualquer tempo ser desfeito pelo Estado subscritor, revogando a delegação que havia cedido para os Estados Unidos (art. 2° do Tratado).Surgiu, então, em 1787, a Constituição norte-americana, quando os Estadospassaram a se sujeitar a uma série de princípios e diretrizes emanados da Constituição comum a todos eles, estreitando-se o vínculo federativo. Reservaram-se todos os poderes que não foram delegados para a União.Afirma o Prof. Raul Machado Horta que "o Estado Federal criou o Estado nãosoberano". (1) Ao se analisar o Estado Federal, deve-se destacar, assim, as idéias de soberania e autonomia.De fato, no Estado Federal a soberania pertence à União e a autonomia, aos Estados-Membros, não se falando, pois, em dualidade de soberanias, como se pretendeu por algum tempo.Em razão disso, há, no Estado Federal, na concepção de Kelsen, uma ordemjurídica central e ordens jurídicas parciais, sendo que a primeira abrange todos os

(1) HORTA, Raul Machado. A autonomia do Estado-Membro no direito constitucional brasileiro, p. 39.265

KILDARE GON ALVES CARVALHO�indivíduos que se encontram no território do Estado, e as outras, os que se acham no âmbito territorial dos entes federados. A reunião dessas duas ordens jurídicas forma a terceira ordem jurídica, que é o Estado Federal, comunidade jurídica total.Outro aspecto relevante do Estado Federal é a descentralização político-normativa.Deveras, há no Estado Federal uma descentralização do poder político, distribuído pela Constituição entre União e Estados Federados. Não é apenas administrativo o nível dessa descentralização, mas constitucional-normativo, ou seja, cada Estado detém competência para estabelecer sua organização política, mediante Constituição própria, configurando-se assim o princípio da autonomia, que "pressupõe um poder de direito público não soberano, que pode, em virtude de direito próprio e não de delegação, estabelecer regras de direito obrigatórias". (2)Não há federação sem que se assegure a participação dos Estados federados naformação da vontade nacional, que se manifesta geralmente através de uma CâmaraLegislativa dos Estados, o Senado Federal, embora possa haver outros instrumentos que viabilizem essa participação. As características do Estado Federal vêm sumariadas por Marcelo Rebelo de Sousa da seguinte forma:"a) as Constituições dos Estados federados conformam-se necessariamente com a Constituição do Estado Federal;b) os Estados federados usualmente não podem desvincular-se do Estado Federal;c) os Tribunais federais controlam a conformidade das Constituições e leis dos Estados federados relativamente à Constituição do Estado Federal;d) compete exclusivamente ao Estado Federal manter as relações internacionais, bem como definir

a política de defesa de toda a federação."Os principais poderes de que usufruem os Estados federados são os seguintes:"a) os Estados federados se autoconstituem, isto é, elaboram a sua própriaConstituição:b) os Estados federados participam, através de representantes próprios, nafeitura e revisão da Constituição Federal;c) os Estados federados dispõem normalmente de representantes seus numa das Câmaras Parlamentares do Estado Federal;d) os Estados federados têm poderes legislativos próprios, que respeitam a matérias de interesse específico, e não de interesse da federação ou de interesse comum a vários Estados federados (princípio da especialidade dasleis). A estes corresponde uma orgânica legislativa própria;

(2) HORTA, Raul Machado. Op. cit., p. 40.266

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOe) os Estados federados dispõem de Tribunais, Administração Pública eforças de segurança aos quais incumbe a aplicação e execução das leis noseu território." (3)Pode-se sintetizar dizendo que no Estado Federal ocorrem dois princípios que lhe são basilares: o princípio da autonomia dos Estados federados e o princípio da sua participação na formação das leis nacionais.

& 2 A FEDERAÇÃO NO BRASIL - EVOLUÇÃOA federação brasileira resultou da desagregação do Estado unitário, com atransformação das províncias em Estados-Membros. Não se configurou no Brasil ofenômeno norte-americano da agregação, em que o Estado Federal surgiu depois dese extinguirem os Estados soberanos que renasceram como entes autônomos.O federalismo brasileiro tem sofrido avanços e recuos. Estruturada inicialmente pela Constituição de 1891, depois de ter sido provisoriamente estabelecida pelo Decreto n. 1, de 1889, a federação tem caminhado para uma progressiva centralização de competências em favor da União, notadamente a partir da Constituição de 1934, que deu início ao federalismo de cooperação, substituindo a federação dual ou isolacionista da República Velha. O apogeu da centralização antifederativa ocorreu com a Constituição de 1967 e sua Emenda n. 1, de 1969, que instituíram a federação hegemônica da União, sufocando a autonomia dos Estados-Membros. A propósito, disse Raul Machado Horta que "a centralização antifederativa se associou, especialmente, a partir da Emenda Constitucional n. 1, de 1969, ao fortalecimento exacerbado do Presidencialismo, dos poderes do Presidente da República, a fazendo com que o regime presidencial se transfigurasse na ditadura presidencial, submetendo Estados, Municípios, instituições, Poderes, economia pública e privada, cidadãos e partidos à vontade absoluta e incontestável do Presidente da República. A ditadura presidencial edificou o Estado centralizado, seja em normas escritas da Constituição e das leis, como nos atos paralegislativos que diariamente brotavam das antecâmaras rninisteriais. O presidencialismo autoritário desfigurou a federação, e o edifício federativo fragmentou-se nos escombros que identificam as ruínas do federalismo brasileiro". (4)A Constituição de 1988 se propõe a restaurar o Estado Federal brasileiro estruturando um federalismo de equilíbrio, mediante a ampliação da autonomia dosEstados federados e o fortalecimento de sua competência tributária.

(3) SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito constitucional, p. 134-135.(4) HORTA, Raul Machado. Anais do Simpósio Minas Gerais e a Constituinte, p. 503.267KILDARE GONCALVES CARVALHO

& 3 ESTRUTURA DA FEDERAÇÃODeclara o art. 18 da Constituição que a organização político-administrativa da

República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição. O art. 1 ° da Constituição afirma que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios, constitui-se em Estado Democrático de Direito, configurando-se uma federação de dois níveis pela presença dos Municípios. Ao denominar o Título III, em que se insere o art. 18, de "Organização do Estado", afastou-se a Constituição da quase centenária experiência de redação constitucional republicana e federal, pois abandonou a qualificação consagrada nas Constituições Federais de 1891, 1934 e 1946 - Da organização Federal -, que tem o mérito de revelar, desde logo, a matéria própria do Título III, denominação preferível à da Constituição, a qual, desatenta à organização da forma de Estado, preferiu a designação genérica e global: é o que afirma o Prof. Raul Machado Horta, no Pronunciamento do Instituto dos Advogados de Minas Gerais sobre o Projeto de Constituição.Os Municípios passam a compor o Estado Federal, rompendo o texto de 1988, também neste passo, com tradição de nosso constitucionalismo que foi a de não fazer constar o Município como ente integrante da estrutura federal. A rigor, não háfederação de Municípios, mas de Estados, não se justificando, em princípio, suainserção no quadro federativo, notadamente se observarmos que os Municípios nãodispõem de órgão legislativo próprio, como o Senado Federal, que é câmara dosEstados, para efetivar o princípio da participação na formação da vontade nacional, essencial à caracterização do Estado Federal. Os Territórios foram excluídos da organização federal, eis que deixaram de serseus componentes para se integrarem apenas na União, segundo dispõe o art. 18, § 2°. Já o Distrito Federal teve sua autonomia ampliada, como veremos adiante, dispondo de autonomia organizacional, legislativa, de governo e administrativa (art. 32).

& 4 REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIASComo foi assinalado, no Estado Federal ocorre uma descentralização do poderpolítico.Toda a estrutura federal baseia-se, assim, na repartição de competências considerada como a grande questão do federalismo, o elemento essencial da construção federal, o tema representativo de medida dos poderes políticos do Estado.Competências, no dizer de José Afonso da Silva, "são as diversas modalidadesde poder de que servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções". (5)

(5) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 413.268 DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOImpõe-se, então, o exame do critério, da técnica (maneira como se distribuem),e dos tipos de competências consagrados no texto constitucional.Inicialmente, lembre-se de que o critério próprio para a repartição de competências é o "da amplitude do interesse em jogo. A União dirá respeito a tudo quanto concernir ao país em sua totalidade, abrangendo-se, sob este prisma genérico, o âmbito de suas relações internas, e o domínio de suas relações externas. Aos Estados-Membros dirá respeito tudo quanto se vincular a seu próprio território e aos interesses preponderantemente regionais". (6)Acentue-se, todavia, que interesses que ontem eram dos Estados podem hoje serevestir de generalidade, passando para a esfera da União. No tocante às técnicas de repartição, avultam-se as seguintes:a) repartição enumerada da competência de cada entidade política, consagradana Constituição hindu;b) enumeração da competência da União e atribuição aos Estados dos poderesreservados ou não enumerados, originária da Constituição norte-americana e adotada na Constituição brasileira;c) enumeração da competência dos Estados-Membros e atribuição à União dospoderes reservados, técnica constante da Constituição da Canadá.No Brasil, há de se falar em enumeração da competência da União e dos Municípios, pela presença dessas entidades locais na estrutura federal, atribuindo-se aos Estados os poderes

reservados.Identifica-se na Constituição os seguintes tipos de competências: competência exclusiva (material e legislativa), competência legislativa concorrente, competência material comum, competência legislativa supletiva e competência legislativa complementar.Competência legislativa é aquela relacionada com a elaboração da lei, enquanto que a competência material, geral ou de execução, se acha voltada para a realização de diferentes tarefas ou serviços. Trata-se de competência não legislativa. É bom lembrar, todavia, que a competência material não exclui a possibilidadede ação normativa precedente da pessoa jurídica que a titulariza. Por isso mesmo é que as competências materiais da União se acham relacionadas com as competências legislativas privativas ou exclusivas constantes do art. 22.Por competência exclusiva (material e legislativa) entende-se aquela conferidaa determinada entidade que a exerce em toda sua plenitude, sem interferência de outra

(6) RUSSOMANO, Rosah. 0 princípio do federalismo na Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965, p. 58.269

KILDARE GONÇALVES CARVALHOentidade política. José Afonso da Silva distingue, no entanto, "quanto à extensão, ou seja, quanto à participação de uma ou mais entidades na esfera da normatividade ou da realização material", competência exclusiva de competência privativa.No primeiro caso, trata-se de competência indelegável (art. 21), e no segundo,quando enumerada como própria de uma entidade, pode ser de delegação ou suplementar (art. 22 e seu parágrafo único, e art. 24 e seus parágrafos).(7)Pondere-se, todavia, que o entendimento do consagrado publicista, no sentido de distinguir competência exclusiva de competência privativa, parece conflitarcom o próprio significado de "exclusivo" e "privativo", pois ambos os termos indicam privação, negação, ou o que é próprio da pessoa, com exclusão das demais.Note-se ainda que a Constituição toma uma expressão pela outra, ao mencionar,nos arts. 51 e 52, como indelegáveis as competências privativas da Câmara dosDeputados e do Senado Federal.Nada há, no entanto, que impeça o estabelecimento de uma classificação decompetências delegáveis e indelegáveis como categoria própria: o que nos parecedeva ser afastada é a distinção entre competência privativa e exclusiva, com base no critério da delegação, pois ambas denotam a idéia de exclusão, tendo assim, o mesmo significado no texto constitucional.Competência legislativa concorrente é a exercida por duas ou várias entidadespolíticas, desaparecendo a exclusividade (art. 24). A competência concorrente pode ser:a) cumulativa ou clássica, quando não há limites prévios à atuação legislativa dos entes políticos, que podem assim legislar ilimitadamente sobre as mesmas matérias;b) não-cumulativa ou limitada, quando a União fixa princípios, diretrizes, normas gerais, e os Estados estabelecem normas de aplicação, ou específicas, detalhando as normas gerais da União.Note-se que o art. 24 não inclui os Municípios no campo da legislação concorrente, embora afirme o art. 30, II, que é de sua competência suplementar a legislação federal e estadual.A competência suplementar do Município só caberá, segundo pensamos, em relação a assuntos que digam respeito ao interesse local, pois não haveria sentido o Município suplementar a legislação federal ou estadual em matérias a ele estranhas, como, por exemplo, a legislação referente à nacionalidade ou à organização do Poder Judiciário estadual.Competência legislativa supletiva é a que permite que os entes políticos próprios supram a legislação federal não exercida, quando a União deixa de regular

(7) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 414.270

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

determinada matéria. A Constituição, no art. 24, § 3°, diz que inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. Mas a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (art. 24, § 4°).Competência legislativa complementar é a que os Estados-Membros, respeitadas as normas gerais ou os princípios emanados da União, exercem para complementar a legislação federal, a fim de atender a peculiaridades locais.É importante acentuar que, no âmbito da legislação concorrente, cabe à Uniãolegislar sobre normas gerais (art. 24, § 1°), sendo que os Estados federados irão completar a legislação federal, detalhando-a segundo suas peculiaridades, mas respeitando sempre os limites da lei federal.Não é fácil a formulação de um conceito de normas gerais, notadamente peloângulo positivo; pelo ângulo negativo a dificuldade é menor.Assim, pelo enfoque positivo, tem-se entendido que normas gerais são princípios, bases, diretrizes, que sustentam um sistema jurídico. Na conceituação de Diogode Figueiredo Moreira Neto, "normas gerais são declarações principiológicas quecabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita aoestabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitados pelos Estados-Membros na feitura das suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e indiretamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos". (8)A dificuldade reside, contudo, em saber até onde a norma será geral, e a partirde onde haverá particularização. Pelo enfoque negativo, as normas que não complementem, particularizem ou especifiquem são gerais.Apesar de todas essas dificuldades na sua identificação, as normas gerais se justificam pela necessidade de uniformização de determinadas matérias, a fim de se evitar que a excessiva diversificação normativa dos Estados-Membros comprometa o conjunto do país.A Constituição dispõe ainda sobre competência comum, que é uma competência concorrente administrativa, deferida à União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23).Quanto ao conteúdo, encontra-se na Constituição competência político-administrativa, competência econômico-social, competência legislativa e competência tributária, notando-se que, nesta última, é enumerada a competência de todas as entidades componentes da federação (arts. 153, 155 e 156).

(8) MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada. O problema de conceituação de normas gerais. Revista de Informação Legislativa, ano 25, n. 100, out./dez./88.271

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 5 UNIÃO-NATUREZA JURÍDICAA União é pessoa jurídica de direito público, que exerce competências própriasconferidas pela Constituição, seja na ordem interna, seja na ordem internacional.Resulta da aglutinação de Estados federados, fonte da federação.A União age em nome próprio, como em nome da federação. Agindo em nome próprio é dotada, sobretudo, de autonomia, pois "exerce parcela de competência que lhe é atribuída pela Constituição" (9). Como entidade que encarna o Estado Federal, manifesta-se soberana, quando, por exemplo, celebra tratados internacionais. Note-se que é de competência exclusiva da União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, já que sujeitos de Direito Internacional são os Estados soberanos e as organizações internacionais. Esclarece, contudo, o Ministro Francisco Rezek que "não há razão por que o direito internacional se oponha à atitude do Estado soberano que, na conformidade de sua ordem jurídica interna, decide vestir seus componentes federados de alguma competência para atuar no plano internacional, na medida em que as outras soberanias interessadas tolerem esse procedimento,

conscientes de que, na realidade, quem responde pela província é a união federal" (10). Por isso é que se vêem Estados federados contratando empréstimo externo ou celebrando com organismos internacionais outros contratos financeiros. Nesses casos o contrato não vincula a União, salvo se houve sua participação no instrumento negocial.

& 5.1 Competências da UniãoA União exerce competência material exclusiva (arr. 21), competência legislativa privativa ou exclusiva (art. 22), competência material comum (art. 23) e competência legislativa concorrente, limitada a normas gerais (art. 24). As competências da União são enumeradas, como já vimos. Fala-se ainda em poderes implícitos da União, formulação da Corte Suprema norte-americana no julgamento do caso McCullock v. Maryland, decidido, em 1819, por John Marshall, onde ficou patente que "embora o Governo federal tenha os seus poderes enumerados, a sua autoridade não é descrita minuciosamente, admitindo-se que ele possua não somente os poderes que lhe são específica ou expressamente outorgados, mas também aqueles necessários e apropriados ao exercício efetivo de tais poderes expressos" (11). São, portanto, poderes implícitos da União os que se desdobram em consonância com os expressos, de maneira a permitir sua realização.

(9) BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 2G0.(10) REZEK, José Francisco. Direito internacional público (curso elementar), p. 239.(11) SCHWARTZ, Bernard. Direito constitucional americano, p. 53-54.272

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICONo campo tributário, a União, além da competência enumerada (art. 153), exerce:a) competência residual para instituir outros impostos, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição (art. 154, I);b) competência extraordinária, para a instituição de impostos extraordinários,compreendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos,gradativamente, cessadas as causas de sua criação;c) competência concorrente com os Estados, Distrito Federal e Municípios,para a instituição de taxas e contribuição de melhoria (art. 145, II e III).A Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, em seu art. 2°, conferiu à União competência exclusiva para instituir, nos termos de lei complementar,com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.O produto de arrecadação do referido imposto provisório não será repartidocom outra entidade federada.As competências materiais exclusivas da União, constantes do art. 21, são aseguir enumeradas:I - competência internacional ou de relações internacionais: cabe à União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais (art. 21, I); declarar a guerra e celebrar a paz (art. 21, II). Há erronia técnica na menção à declaração de guerra. É que as guerras declaradas foram suprimidas, desde 1945, pela Carta da ONU; permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente (art. 21, IV); II - competência de política de segurança ou de defesa nacional: compete à União assegurar a defesa nacional (art. 21, III); decretar o estado de sítio, o estadode defesa e a intervenção federal (art. 21, V); autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico (art. 21, VI); organizar e manter a polícia federal, a polícia rodoviária e a ferroviária federais, bem como a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal e dos Territórios (art. 21, XIV); conceder anistia (art. 21, XVII); executar os serviços de polícia marítima, aérea e de fronteira (art. 21, XXII);III - competência econômico-social e financeira: compete à União elaborar eexecutar planos nacionais e regionais de ordenação do território nacional e de desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX); institui diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (art. 21, XX); organizar, manter e executar a

inspeção do trabalho (art. 21, XXIV); estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa (art. 21, XXV); emitir moeda (art. 21, VII); administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar273

KILDARE GONÇALVES CARVALHOas operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguro e de previdência privada (art. 21, VIII);IV - competências de cooperação: cabe à União elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX); organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios (art. 21, XIII); planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações (art. 21, XVIII); instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (art. 21, XX); V - competência de comunicações e de prestação de serviços: compete à União manter o serviço postal e o correio aéreo nacional (art. 21, X); organizar emanter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e carrografia de âmbito nacional (art. 21, XV); exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão (art. 21, XVI), cabendo à lei federal a regulamentação de diversões e espetáculos para efeitos classificatórios (art. 220, § 3°, I). Note-se ainda que é vedada qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, científica e de comunicação (art. 5°, e 220, § 2°); instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso (art. 21, XIX); estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação (art. 21, XXI); explorar, diretamente ou mediante autorização, concessãoou permissão:a) os serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens; os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais (redação dada pela Emenda Constitucional n. 8, de 15 de agosto de 1995). Verifica-se, pois, que cabe à lei estabelecer os serviços de telecomunicações que poderão ser explorados diretamente pela União ou mediante autorização, concessão ou permissão. A nova disciplina da matéria, decorrente da mencionada emenda constitucional, irá possibilitar a flexibilização dos serviços de telecomunicações, cuja exploração não está mais restrita a empresa sob o controle estatal.b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros efronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;f) os portos marítimos, fluviais e lacustres (art. 21, XII, a, b, c, d, f);274

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOVI - competência nuclear: compete à União explorar os serviços de instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, alavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida parafins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;b) sob regime de concessão ou permissão, é autorizada a utilização de radioisótopos e atividades análogas;c) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência deculpa (art. 21, XXIII, a, b, c).O art. 21 não esgota o elenco de competências materiais exclusivas da União.Outros dispositivos constitucionais desdobram ou prevêem novas competências.O art. 142 dispõe sobre as Forças Armadas como instituições nacionais, sob a

autoridade suprema do Presidente da República, e o art. 144, § 1 °, discrimina as competências da polícia federal. O art. 214 prevê o plano nacional de educação. Já o art. 198 revela a ocorrência de uma centralização das ações e serviços públicos de saúde que integrarão uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único. A saúde vem tratada ainda no art. 194, que constitui uma Seção do Capítulo da seguridade social, e compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinadas a assegurar dos direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. O art. 164 e seus parágrafos cuidam da competência da União para emitir moeda, deferida ao Banco Central, e o art. 176 e seus parágrafos tratam da pesquisa e lavra de recursos minerais e aproveitamento de energia hidráulica. O art. 177 refere-se à pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos, à refinação do petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos, à refinação do petróleo nacional ou estrangeiro, à importação e exportação dos produtos derivados básicos resultantes dessas atividades, ao transporte marítimo do petróleo e seus derivados e à pesquisa, lavra, enriquecimento, processamento, industrialização e comércio de minérios nucleares. Nos setores de política fundiária e agrícola, encontra-se, no art. 184, regra segundo a qual cabe à autoridade federal a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não atenda à função social da propriedade, cabendo ainda à União o planejamento e a execução da política agrícola, que deve ser compatível com a política de reforma agrária. É ainda da competência da União a organização da seguridade social (art. 194) e do sistema único de saúde (art. 198). Cabe também à União as funções de fiscalização, incentivo e planejamento da atividade econômica, tendo em vista as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual deverá incorporar e compatibilizar os planos nacionais e regionais de desenvolvimento (art. 174, § 1°). 275

KILDARE GONÇALVES CARVALHOO rol de competências materiais da União não foi reduzido. Ao contrário, ampliou-se, com a explicitação, inclusive, de competências anteriormente consideradas implícitas, como a que se refere à administração das reservas cambiais do País, e às condições para o exercício da garimpagem, em forma associativa.A competência material comum vem referida no art. 23, que enumera, em seus incisos de I a XII, as matérias de competência comum da União, dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípios, envolvendo a prestação de serviços a serem partilhados entre essas entidades políticas.Dispõe o parágrafo único do citado art. 23 que lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.Tais entes políticos exercerão, portanto, ação conjunta de cooperação na execução de tarefas e objetivos comuns a eles conferidos pelo texto constitucional.Segundo o art. 23 da Constituição, constitui competência material comum dos mencionados entes políticos:I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas conservar o patrimônio público;II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e deoutros bens de valor histórico, artístico ou cultural;V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suasformas;VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;

X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa eexploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;XII - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.Observe-se que também a competência material comum pressupõe normatividade precedente. A maioria dos temas que se incluem na competência material comum são de competência legislativa concorrente, cabendo à União editar regras gerais e às demais esferas do poder a legislação suplementar (art. 24).276

DIREITO CONSTITUICIONAL DIDÁTICOÉ o que se verifica, por exemplo, com matérias como cuidar da saúde e daproteção dos deficientes; proteger o patrimônio cultural; proporcionar o acesso à cultura e à educação; proteger o meio ambiente; preservar florestas, a fauna e a Flora, as quais pressupõem a existência de regras gerais da União (art. 24, VI, VII, VIII, IX, XII e XIV).A competência legislativa privativa da União vem tratada, em sua maior parte, no art, 22 da Constituição que, ao mencionar as atribuições legislativas doCongresso Nacional, também a elas faz referência no art. 48.O mencionado art. 22 traz, no entanto, algumas matérias que são de competência concorrente, em que cabe à União editar, a respeito, normas gerais, e nãolegislar plenamente sobre elas.A propósito, esclarece José Afonso da Silva que a competência da União paralegislar sobre normas gerais abrange não apenas as normas referidas no art. 24 no tocante a matéria nele relacionada, mas também "as normas gerais indicadas em outros dispositivos constitucionais, porque justamente a característica da legislação principiológica (normas gerais, diretrizes, bases), na repartição de competências federativas, consiste em sua correlação com competência suplementar (complementar ou supletiva) dos Estados". (12)Tais são os incisos IX, XXI, XXIV e XXVII, que tratam de diretrizes da políticanacional de transportes, de normas gerais de organização das policiais militares, de diretrizes e bases da educação nacional e de normas gerais de licitação e contratação na Administração Pública em geral. Também o inciso I, na parte referente ao Direito Processual, pois compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre custas do serviço forense (art. 24, IV); criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas (art. 24, X); procedimentos em matéria processual (art. 24, XI). Note-se que enquanto o processo consiste numa relação jurídica que envolve direitos e ônus das partes, poderes e deveres do juiz com a participação de terceiros, como testemunhas, peritos, etc., visando à realização da função jurisdicional, o procedimento consiste no conjunto de normas que regulamentam a forma exterior do processo, sem, no entanto, interferir no próprio Direito. Exemplificando: a indeclinabilidade da citação constitui norma processual, e a maneira de realizá-la é norma procedimental. O direito ao recurso é norma processual, mas como processá-lo é regra procedimental; assistência jurídica e defensoria pública; o inciso XXIII, sobre seguridade social, já que o art. 24, XII, insere na órbita de competência concorrente a legislação sobre previdência social, proteção e defesa da saúde. A inserção de assuntos de competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal no campo da competência legislativa privativa da União constitui grave erro de técnica constitucional, que poderá acarretar equívocos no domínio da interpretação do texto constitucional comprometedores dos fundamentos da repartição de competências na federação. É que, de fato, poder-se-ia erroneamente entender

(12) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 434.277 KILDARE GONÇALVES CARVALHOque a edição, pelos Estados federados, de normas específicas sobre matérias decompetência concorrente estaria sujeita a prévia autorização da União, mediante lei complementar (art. 22, parágrafo único).Sustentamos que as matérias constantes dos incisos XI, XXI, XXIV e XXVIII,

do art. 22, não estão sujeitas à incidência do seu parágrafo único, já que sobre questões específicas, no âmbito da competência concorrente, os Estados legislam por direito próprio e não por delegação da União.Como se verifica do próprio texto constitucional, os mencionados incisos referem-se a matérias em que à União cabe legislar, não em toda sua extensão, mas apenas sobre regras gerais ou diretrizes. Assim, estando a União inibida de regular questões específicas dessas matérias, é então intuitivo que não lhe caberá delegar ou transferir aos Estados a competência que não possui, ou seja, aquela voltada para a disciplina das especificidades, desde que, insista-se, a competência da União está limitada a normas gerais.Quanto à delegação das competências privativas da União, prevista no parágrafo único do art. 22, ver o que a propósito escrevemos acima (item 4), ao tratarmosda noção de competência exclusiva. Ainda sobre o assunto, Manoel GonçalvesFerreira Filho entende que a delegação de competências privativas da União para os estados só tem sentido desde que não seja feita nos mesmos termos, relativamente a todos os Estados. Assim, a delegação de competências deverá atender às peculiaridades e condições de cada Estado federado, caso em que a norma editada terá eficáciaapenas no seu território. (3). Pondere-se, todavia, que o princípio da igualdade jurídica dos Estados que alicerça a federação brasileira (federalismo simétrico) impede a atribuição de competências desiguais aos entes federados, a menos que haja disposição constitucional expressa nesse sentido. Resulta daí que "a transferência de competência privativa para os Estados, mesmo para as questões específicas, não poderá ser desigual em número, profundidade ou complexidade, sequer para atender à diversidade entre os Estados". (14)

& 5.2 Bens da UniãoA União tem os seus bens enumerados no art. 20 da Constituição. Pelo art. 66,I a III, do Código Civil, os bens públicos classificam-se em:a) de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças;b) de uso especial, tais como os edifícios ou terrenos aplicados a serviço ouestabelecimento federal, estadual ou municipal;c) dominicais, os que constituem o patrimônio da União, dos Estados ou dosMunicípios, como objeto de direito pessoal ou real de cada uma dessas entidades.

(13) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988, p. 1, p. 23.(14) FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. União, Estados e Municípios na nova Constituição - Enfoque jurídico-formal. In: A nova Constituição paulista, p. 71.278

DIREITO CONSTITUICIONAL DIDÁTICOSão bens da União:I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei. Por terras devolutas se entende as que jamais saíram do patrimônio público, ou a ele não retornaram depois de terem saído, e que não se encontrem afetadas a uma utilização pública, prevalecendo ainda quanto a elas o princípio de que são públicas desde que o particular não possa, através de título hábil, fazer prova de sua propriedade; (15)III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio,ou que banham mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou seestendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;IV - as ilhas fluviais e lacustres, nas zonas limítrofes com outros países; aspraias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas destas as áreas referidas no art. 26, II;V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva;VI - o mar territorial. Pelo Decreto-Lei n. 1.098, de 25 de maio de 1970, o mar

territorial do Brasil foi estendido para até 200 milhas da costa brasileira. Mas a Lei n. 8.617, de 4 de janeiro e 1993, revogou este Decreto-Lei, estabelecendo em 12 milhas marítimas de largura o mar territorial brasileiro e uma zona econômica exclusiva numa faixa que se estende das 12 às 200 milhas marítimas;VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;VIII - os potenciais de energia hidráulica;IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo. Afirma o art. 176 que asjazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra;X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos;XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos silvícolas.As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse per-manente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, e são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis, é o que declaram os §§ 2° e 4° do art. 231.

1(5) BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 265.279

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 6 ESTADOS FEDERADOS - AUTONOMIAA autonomia dos Estados-Membros constitui, no dizer de Raul Machado Horta, "elemento essencial à configuração do Estado Federal", (16) e consiste na capacidade de que são dotados os Estados federados para expedirem normas básicas de organização (constituição e leis) dentro dos princípios constitucionais da União. Portanto, tendo os Estados federados autonomia constitucional, suas Constituições deverão ser elaboradas por um Poder que se tem convencionado chamar de Poder Constituinte Decorrente, apesar de alguns autores negarem sua existência. Como Poder Constituinte, é derivado, subordinado e condicionado, desdobrando-se ainda em Poder Constituinte Decorrente Institucionalizador, cuja missão é a de organizar inicialmente a ordem jurídica do Estado, e Poder Constituinte Decorrente de Revisão Estadual, voltado para a revisão do texto constitucional estadual.Ainda é Raul Machado Horta quem afirma que "a autonomia do Estado-Membro, no Direito Constitucional brasileiro, apresenta três elementos constantes: a capacidade de auto-organizar-se pelo exercício do poder constituinte, a de elaborar ordenamento jurídico ordinário, mediante atividade legislativa própria, e a de prover as necessidades do governo e da administração"."Temos aí o conteúdo da autonomia dos Estados federados:I - auto-organização (art. 25, dizendo a Constituição que os Estados organizam-se e se regem pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípiosda Constituição);II - autolegislação (art. 25);III - autogoverno (arts. 27, 28 e 12 , referindo-se ao Governador, Vice-Governador de Estado,� número de Deputados à Assembléia Legislativa, e Poder Judiciário estadual);IV - auto-administração (art. 25, § 1 °, em que são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas pela Constituição).

& 6.1 Conteúdo das Constituições EstaduaisA auto-organização dos Estados federados, consagrada pelo art. 25 da Constituição, revela-se através de Constituição própria elaborada pelo Poder Constituinte Decorrente. Assim, aos Estados são reservados todos os poderes que não lhes sejam vedados pela Constituição (art. 2 , § 1°).� Verifica-se, pois, que a autonomia estadual decorre da Constituição Federal, fonte matriz do Poder Constituinte Estadual, que estabelece uma série de princípios e vedações a serem observados pelos Estados federados na sua organização.

(16) HORTA, Raul Machado. Op. cit., p. 13.(17) HORTA, Raul Machado. Op. cit., p. 330.280

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOFala-se então naquela situação de sujeição (heteronomia) dos Estados-Membros à observância de normas constitucionais federais que preordenam a estrutura normativa das Constituições estaduais.Naturalmente que haverá ampliação do campo autonômico dos Estados federados, se ocorrer redução dos princípios ou das vedações que lhes impõe a Constituição Federal, e contração daquela autonomia, no caso de ampliação das normas federais centrais.A formulação de uma teoria das limitações do Poder Constituinte Decorrente não há de partir dos ordenamentos estaduais, mas sim da análise do ordenamentoconstitucional federal, matriz do Poder Constituinte Estadual.São princípios da Constituição Federal, limitadores da autonomia dos Estados-Membros:I - princípios constitucionais enumerados (ou, na classificação de José Afonsoda Silva, princípios constitucionais sensíveis), os constantes do art. 34, VII, a até d, e que se referem aos valores que informam o nosso sistema constitucional, formando assim os seus pilares ou vigas mestras, traduzidos na forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta e indireta, A violação desses princípios autoriza a intervenção federal nos Estados;II - princípios estabelecidos, cuja identificação reclama pesquisa e interpretação do texto constitucional federal, no seu conjunto. Observa Raul Machado Horta que "os princípios estabelecidos se alojam nas normas constitucionais federais sobre repartição de competências, o sistema tributário, a organização dos poderes, os direitos políticos, a nacionalidade, os direitos sociais, a ordem econômica, a educação, a família, a cultura, afinal, na matéria dispersa no texto constitucional federal". (18)Sem pretender esgotar a matéria, enunciaremos alguns princípios constitucionais estabelecidos, segundo estudo realizado por Raul Machado Horta,(19) observandoainda que há também, na Constituição, normas específicas limitadoras e condicionadoras da autonomia dos Estados-Membros (normas de preordenação).Assim, além dos princípios constitucionais enumerados (art. 34, inciso VII), sãoprincípios da Constituição de observância obrigatória pelos Estados-Membros: os fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa (art. 1°, I, II, III, IV, V; art. 3°, I, II, III, IV; art. 4°, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X); a separação de Poderes (art. 2°); os princípios contidos nos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5°). Também os direitos sociais (arts. G°, 7°, 8°, g°, 10, 11); as normas sobre nacionalidade e direitos

(18) HORTA, Raul Machado. Natureza do poder constituinte do Estado-Membro. RDP 85/63.(19) HORTA, Raul Machado. O Estado-Membro na Constituição Federal brasileira. Revista brasileira de Estudos Políticos 69/70, jul./89/jan./90, p. 61-89.281

KILDARE GONÇALVES CARVALHOpolíticos (arts. 12 e 14); preceitos aplicáveis aos Municípios (art. 29, I a XIV); preceitos relativos à administração pública direta, indireta e fundacional (art. 37 a 39); princípios aplicáveis à magistratura (art. 93, I a XI e art. 9S, I, II e III); princípios de organização da Justiça estadual (art. 125); princípios da ordem econômica (art. 170, § 1°); limitações do poder de tributar (art. 1S0, I, II, III, a e b, IV, V, VI, a, b, c, e d; §§ 1° a 6° e art. 1S2);objetivos da seguridade social (art. 194, parágrafo único, I a VII); diretrizes do sistema único de Saúde (art. 198, I a III, e art. 199, §§ 1° a 4°); princípios informadores do plano de Previdência Social (art. 201, I a V, §§ 1° a 8°); objetivos da assistência social (art. 203, I a V); princípios do ensino (art. 206, I a VII); princípios aplicáveis à produção e à programação de emissoras de rádio e televisão (art. 221, I a N); princípios doplanejamento familiar (art. 226, § 7°).Ainda, na terminologia de Raul Machado Horta, são normas de preordenação que incidem sobre o

poder de organização dos Estados-Membros: número de Deputados à Assembléia Legislativa (art. 27); mandato dos Deputados Estaduais (art. 27, § 1°); subsídio dos Deputados Estaduais ( art. 27, § 2° ), que será fixado por lei de iniciativa da Assembléia Legislativa, na razão de, no máximo, 7S% daquele estabelecido, em espécie, para os Deputados Federais, observado o que dispõem os arts. 39, § 4°, S7, § 7°, 150, II, 153, III e 153, § 2°, I (redação dada pela EC n. 19/98); eleição, mandato e posse do Governador e do Vice-Governador (art. 28); perda do mandato do Governador e do Prefeito (art. 28, § 1°); organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas e Conselhos de Contas dos Municípios; garantias dos Juízes (art. 9S, I a III); vedações aos Juízes (art. 9S, parágrafo único, I a III); normas básicas para os dez primeiros anosde criação de novo Estado (art. 235, I a XI).

& 6.2 Competências dos Estados federadosOs Estados federados detêm poderes reservados, ou seja, são-lhes reservadas todas as competências não vedadas pela Constituição. As competências, portanto,que sobrarem ou remanescerem dos poderes da União e dos Municípios serão deatribuição dos Estados.Além das competências reservadas, têm os Estados competência comum com a União e Municípios, em assuntos de caráter administrativo (art. 23), e competêncialegislativa concorrente com a União (art. 24). Exercem ainda os Estados federados competência tributária expressa para a instituição de impostos (art. 1SS) e taxas e contribuição de melhoria (art. 145, II e III), sendo esta última competência nominalmente comum.Note-se finalmente que a Constituição discrimina algumas competências dos Estados: criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios, obedecidosos requisitos do § 4° do art. 18; exploração, direta ou mediante concessão, dos serviços locais de gás canalizado, na forma da lei (art. 25, § 2°, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. S, de 1S/8/9S) e instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (art. 25, § 3°).282

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOVerifica-se da leitura do texto constitucional que, em matéria de competências materiais privativas e competências legislativas privativas, é bastante restrito o âmbito de atuação dos Estados, que se limita a matérias administrativas e financeiras. Tal fato decorre, sobretudo, do alargamento dos princípios constitucionais de imposição obrigatória aos Estados, e da ampliação das competências dos Municípios.

& 7 MUNICÍPIOS - POSIÇÃO NA FEDERAÇÃOO Município passa a integrar a federação como ente federativo: é o que seinfere dos arts. 1 ° e 18 da Constituição de 1988 - o primeiro falando em uniãoindissolúvel dos Estados e Municípios na formação da federação, e o outro estabelecendo que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição.A posição dos Municípios como entes políticos essenciais da federação rompecom a tradição de nosso federalismo, que foi a de não alçá-los à condição de ente federativo, embora sempre dotando-os de autonomia.Alguns publicistas não aceitam, contudo, a idéia de que os Municípios componham a federação como entidades de segundo nível, como José Afonso da Silva, ao dizer que "não temos uma federação de Municípios. Não é uma união de Municípios que forma a federação. Se houvesse uma federação de Municípios, estes assumiriama natureza de Estados-Membros, mas poderiam ser Estados-Membros (de segundaclasse?) dentro dos Estados federados?" (20) Também Aires Barreto segue a mesma linha, ao indagar sobre o alcance do art. 1° da Constituição: "ora, que ente federativo é este, que não tem representação no Congresso?" (21)Não teria sentido, todavia, inserir-se o Município na definição da estrutura federal brasileira, se o texto constitucional não pretendesse atribuir-lhe status federativo.

& 7.1 Lei orgânica dos Municípios A Constituição confere expressamente aos Municípios competência para a elaboração de sua lei orgânica. A Constituição, no art. 29, dispõe sobre o conteúdo da lei orgânica municipal, que é dotada de certa rigidez, já que sua alteração depende do voto de dois terços dos membros da Câmara Municipal, uma vez que este quorum especial é exigido para sua aprovação.Diz a Constituição que a lei orgânica do Município será promulgada pela Câmara Municipal (não há sanção nem veto do Prefeito).O poder encarregado de elaborá-la é o político. A lei orgânica difere das demais normas jurídicas municipais em função do processo legislativo previsto para a sua elaboração e revisão.283

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA Constituição, no art. 29, fixa o conteúdo da lei orgânica do Município, que,observados os princípios estabelecidos na Constituição Federal e do respectivo Estado, versará sobre:1. eletividade do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores;2. posse do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores;3. número de Vereadores proporcional à população do Município, observados os limites estabelecidos na Constituição;4. subsídios do Prefeito do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais fixadospor lei de iniciativa da Câmara Municipal, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4°, 150, II, 153, III e 153, § 2°, I; subsídio dos Vereadores fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal, na razão de, no máximo, 75% daquele estabelecido, em espécie, para os Deputados Estaduais, observado o que dispõem os arts. 39, § 4° 57, § 7°, 150, II, 153, III, 153, § 2° , I (redação dada pela EC n. 19/98);5. inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato e na circunscrição do Município, observando-se que os Vereadores gozam apenas da inviolabilidade ou imunidade material, não sendo amparados pela imunidade formal ou processual;6. proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no quecouber, ao disposto na Constituição do respectivo Estado, para os membros do Congresso Nacional e, na Constituição do respectivo Estado, para os membros da Assembléia Legislativa;7. julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça. A competência do Poder Judiciário enunciada neste inciso, segundo vem entendendo o Supremo Tribunal Federal, abrange os crimes tipificados no art. 1° do Decreto-Lei n. 201, de 1967, os quais, na realidade, são crimes comuns, apesar de denominados crimes de responsabilidade. Ela não se estende, contudo, às chamadas infrações político-administrativas dos prefeitos, sancionadas com a cassação do mandato. Neste caso, estão os chefes do Executivo Municipal sujeitos ao julgamento pela Câmara de Vereadores.Tais infrações, na tradição do direito brasileiro, podem ser denominadas de crimes de responsabilidade (STJ-HC 71991-1 - MG, Rel. Min. Sidney Sanches).8. organização das funções legislativas e fiscalizadoras da Câmara Municipal;9. cooperação das associações representativas no planejamento municipal;10. iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairro, através de manifestação de, pelo menos, 5% do eleitorado. Observe-se que a iniciativa popular, instituto da democracia direta, manifesta-se, no âmbito federal, através de 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados,

(20) SILVA José Afonso da. Op. cit., p. 408.(21) BARRETO, Aires. Os municípios na nova Constituição brasileira. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações, p. 83.284

DIREITO CONSTITUICIONAL DIDÁTICOcom não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2°) e, no âmbito dos Estados federados, será regulado pela respectiva Constituição (art. 27, § 4°);11. perda do mandato do Prefeito, tendo como uma de suas causas a assunção de outro cargo ou

função na administração pública direta ou indireta, ressalvada aposse em virtude de concurso público e observado o disposto no art. 38, I, IV e V.O exame dos incisos constitucionais que tratam do conteúdo mínimo da lei orgânica (art. 29, I a XIV) revela algumas impropriedades de ordem técnica. Tais são por exemplo, aqueles que cuidam de assuntos que não são de competência da lei orgânica, mas de normas federais e até mesmo constitucionais, como os referentes à definição de eleições, duração de mandato, pleito direto e simultâneo em todo o País, época de eleições e princípio da maioria absoluta (dois turnos), bem como o privilégio de foro para o julgamento do Prefeito.Por outro lado, a lei orgânica não é ato normativo idôneo para tratar de assuntos próprios de lei ordinária, cuja iniciativa seja reservada ao Prefeito Municipal. Ora, a lei orgânica, como se viu, além de se submeter a procedimento legislativo especial de elaboração, é promulgada pela Câmara Municipal. Assim, inexiste a participação do Prefeito em sua elaboração. Não há, pois, iniciativa, sanção, veto ou promulgação do chefe do Executivo municipal. Decorre dessa circunstância que assuntos dependentes de iniciativa legislativa exclusiva do Prefeito, como, por exemplo, aumento de despesa pública e criação de órgãos ou entidades municipais, não podem ser disciplinados na lei orgânica, sob pena de ocorrer usurpação de competência.Havendo contrariedade das leis ordinárias municipais em relação à lei orgânica, não cabe ação direta de inconstitucionalidade ou invalidade para impugná-las. Ainvalidade ou ilegitimidade da lei ordinária, nessas condições, será declarada pelo Poder Judiciário apenas mediante via indireta. A propósito, menciona José Afonso da Silva que "as leis locais contrárias à lei orgânica serão ilegítimas e inválidas, desde que assim seja declarado pelo Judiciário, por via indireta, não estando prevista na Constituição Federal a possibilidade de ação direta de ilegitimidade da lei local em face da lei orgânica do Município." (22)

& 7.2 Competências dos MunicípiosA competência dos Municípios foi ampliada pela Constituição de 1988. Deve-se ressaltar, contudo, que o texto constitucional, para delimitar a matéria de competência municipal, substituiu a expressão "peculiar interesse", da tradição de nosso constitucionalismo, por "interesse local", o que certamente dará margem a novas interpretações. Entendemos, contudo, que a alteração da expressão "peculiar interesse" por "interesse local" não implica mudança do sentido que aquela expressão sempre teve em nosso Direito, consistindo no interesse predominante e não exclusivo do

(22) SILVA, José Afonso da. O Município na Constituição de 1988, P. 14285

KILDARE GONÇALVES CARVALHOMunicípio, em relação aos interesses da União e dos Estados. O texto constitucional não restringiu, com a adoção de "interesse local", a autonomia dos Municípios.Anote-se: o que determina a competência dos Municípios é o "interesse local" a ser satisfeito e não o inverso. "Sob esse ângulo, a situação é precisamente oposta ao que se passa com a União. No caso dela, em face da matéria pré-selecionada é que comparece, por definição, o interesse nacional". (23)Relevante fator de fortalecimento da autonomia dos Municípios foi o reconhecimento expresso de sua capacidade de auto-organização (art. 29), a ser materializada, como se viu, em lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na do respectivo Estado.De acordo com o art. 30 da Constituição, compete aos Municípios:I - legislar sobre assuntos de interesse local;II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, notando-seque, embora o art. 24 não inclua os Municípios na competência legislativa concorrente, pelo art. 30, II, serão eles titulares de competência complementar relativamente às matérias enumeradas no art. 24, que envolvam interesse local;III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência (taxas, contribuiçãode melhoria e os impostos discriminados no art. 156), bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo

da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial. Observe-se que alguns serviços são privativos dos Municípios; outros, no entanto, sujeitam-se à atuação da União, Estados e Municípios, como, por exemplo, o que se refere a trânsito, cujas normas gerais são da União, as secundárias dos Estados e a regulamentação urbana cabe aos Municípios (estacionamento, mão e contra-mão, velocidade no perímetro urbano, etc.); VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, programas de atendimento à saúde da população e programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental;VII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, medianteplanejamento e controle d.o uso do parcelamento e da ocupação do solo urbano,notando-se que é obrigatório plano diretor para cidades com mais de 20 mil habitantes (art. 182, § 1°). Pela Constituição, cabe à União, Estados e Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito Urbanístico (art. 24, I). Os Municípios poderão,

(23) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. RDP 69/289-290286

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOno entanto, estabelecer regras específicas sobre a matéria (art. 182), suplementando a legislação federal e estadual, no que couber;VIII - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observadaa legislação e ação fiscalizadora federal e estadual.

& 7.3 Fiscalização financeira e orçamentária dos MunicípiosA fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios será exercida mediante sistema de controle interno do Poder Execurivo municipal, na forma da lei, e sistema de controle externo pela Câmara Municipal, auxiliada pelo Tribunal de Contas do respectivo Estado ou do Município, ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade nos termos da lei (art. 31, § 3°), instituindo a Constituição, aqui, a fiscalização popular das contas municipais.Embora possa revelar aparente contradição com o disposto no § 1° do art. 31,que fala em Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, o § 4° deste mesmoartigo, ao vedar a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais, pretendeu estabelecer que o controle externo das contas dos Municípios seja feito com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado.

& 8 DISTRITO FEDERAL - NATUREZAA Constituição, no art. 18, § 1°, declara que Brasília é a Capital Federal. Mas a cidade de Brasília se insere na divisão administrativa do Distrito Federal, que compreende várias regiões administrativas, incluindo as chamadas cidades-satélites, já que o Distrito Federal não pode ser dividido em Municípios.O Distrito Federal não é Estado nem Município, mas pessoa jurídica de direitopúblico (Código Civil, art. 14), integrado por Brasília, a Capital Federal. Compõe formalmente a federação, ao lado da União, dos Estados-Membros e dos Municípios.

& 8.1 AutonomiaA Constituição de 1988 conferiu ao Distrito Federal:I - autonomia organizacional para elaborar a sua lei orgânica, que será votadapela Câmara Legislativa em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, aprovada por dois terços de seus membros (Deputados Distritais) e promulgada pelo citado órgão legislativo;287KILDARE GONÇALVES CARVALHO

II - autonomia legislativa: cabe ainda à Câmara Legislativa legislar para oDistrito Federal sobre as matérias de competência dos Estados e Municípios;III - autogoverno, revelado: a) pela existência de uma Câmara Legislativa, com-posta por Deputados Distritais, cujo número será fixado nos termos do art. 27 e aos quais se aplica o tratamento constitucional dispensado aos Deputados, às Assembléias Legislativas estaduais, pertinentes à duração do mandato, princípios constitucionais sobre o sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda do mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas; b) pelo Poder Executivo, chefiado por um Governador, que será eleito com um Vice-Governador pelo voto direto, para mandato de quatro anos. Anote-se que o Poder Judiciário, no âmbito do Distrito Federal, é organizado e mantido pela União, mas, não obstante, é local e não integra a Justiça Federal. O mesmo se diga relativamente ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Dispõe ainda a Constituição (art. 75) que haverá um Tribunal de Contas no Distrito Federal, auxiliar do Legislativo na fiscalização financeira e orçamentária. O Distrito Federal elege Deputados Federais e três Senadores;IV - auto-administração, pela capacidade de gerir os serviços públicos locais, devendo, contudo, observar que a utilização, pelo governo do Distrito Federal, das polícias civil e militar e do corpo de bombeiros militar dependerá de leifederal (art. 32, § 4°).

& 8.2 CompetênciasO Distrito Federal exerce as competências legislativas atribuídas aos Estados e Municípios, cabendo-lhe ainda as competências comum, concorrente, supletiva e complementar. No campo tributário, compete-lhe instituir taxas e contribuição de melhoria, e os impostos de competência dos Estados e dos Municípios (arts. 145, 147 e 155).

& 9 TERRITÓRIOSOs Territórios não integram o Estado Federal.Os dois últimos Territórios, Amapá e Roraima, foram transformados em Estados, e o de Fernando de Noronha incorporado ao Estado de Pernambuco (arts. 14 e 15 das Disposições Transitórias).A Constituição estabelece, no art. 18, § 2°, que os Territórios integram aUnião, e sua criação, transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão regulados em lei complementar. Já a organização administrativa e judiciária será estabelecida em lei federal. Prevê a Constituição (art. 33, § 3°) que, nos Territórios com mais de 100 mil habitantes, haverá órgãos judiciários de primeira e segunda instâncias, membros do Ministério Público e Defensores Públicos federais, bem como uma Câmara Territorial com função deliberativa.288

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 10 INTERVENÇÃO FEDERALRompendo técnica adotada pelas Constituições anteriores (1934, 1946, 1967 esua Emenda n. 1, de 1969), que foi a de dar tratamento separado à intervençãofederal, a Constituição de 1988 trata, no Capítulo VI do Título III, da intervenção no sentido global, mencionando a intervenção federal e a intervenção dos Estados nos Municípios. Note-se ainda que foi prevista intervenção no Distrito Federal, em razão de ser o mesmo considerado ente autônomo integrante da federação (art. 18).A intervenção é cláusula de defesa da federação, objetivando garantir o equilíbrio federativo contra situações que, pela sua gravidade, possam comprometer a integridade ou a unidade do Estado Federal.O art. 34 consagra o princípio da não-intervenção: prevalece, no sistema federativo, a regra geral da autonomia dos Estados-Membros, sendo a intervenção federal, que acarreta suspensão provisória dessa autonomia, cláusula excepcional.Por se tratar de exceção, a intervenção federal só poderá ocorrer nas hipótesesexaustivamente enumeradas no texto constitucional, não se admitindo sejam elasampliadas por norma infraconstitucional.

São hipóteses de intervenção federal:I - defesa nacional interna e externa (art. 34, I a III);II - respeito dos poderes constituídos e observância da Constituição (art. 34,IV, V e VII, a e d);III - ordem financeira (art. 34, V, a e b).São, portanto, materiais ou de fundo as hipóteses de intervenção previstas naConstituição para:- manter a integridade nacional - Sendo federativa a forma do Estado brasileiro(art. 1° da Constituição), vedado é o direito de secessão a qualquer das entidades componentes da união indissolúvel. Havendo, portanto, ameaça à coesão nacional, mediante propósitos separatistas, é viável a intervenção federal;- repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da federação em outra - Na caracterização de invasão estrangeira não é necessário que o governo estadual seja conivente com ela, bastando que importe em sacrifício da autonomia do Estado Federado a ação do governo federal, a fim de afastar a apontada invasão, de impedi-la ou evitá-la, se iminente.No caso de invasão de um Estado em outro, há ruptura da coesão nacional edo equilíbrio federativo, entendendo-se estar a União autorizada a intervir tanto no Estado invasor, quanto no invadido;- pôr termo a grave comprometimento da ordem pública - A perturbação da ordemhá de ser grave, ou seja, aquela que o Estado Federado não pode ou não quer debelar.289

KILDARE GONÇALVES CARVALHODispondo, pois, o Estado-Membro de condições para debelar a crise, não se há falar em intervenção federal, que, no caso, violaria a sua autonomia;- garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da federação - Ocorrendo coação de um dos poderes nas unidades da federação, ou estando impedido de exercer as suas funções, viabiliza-se a intervenção federal, dependendo, contudo, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coato ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário (art. 36, I);- reorganizar as finanças das unidades da federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas na Constituição, nos prazos estabelecidos em lei - Dívida fundada, segundo o disposto no art. 98 da Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964, compreende os compromissos de exigibilidade superior a doze meses, contraídos para atender a desequilíbrio orçamentário ou a financiamento de obras e serviços públicos. Segundo dispõe o parágrafo único dessa disposição normativa, "a dívida fundada será escriturada com individuação e especificações que permitam verificar, a qualquer momento, a posição dos empréstimos, bem como os respectivos serviços de amortização e juros." Para Ernesto Leme,"a dívida pública pode ser externa e interna. Uma e outra podem ser ativa epassiva. E ambas se subdividem em fundada, flutuante e especial. A dívidaé fundada quando constituída por títulos de renda ou apólices, inscritasnos livros respectivos, negociáveis na bolsa, de juros, assim como a prazo,de pagamento e resgate expressamente estipulados" (24).Pontes de Miranda, aproximando-se dessa conceituação, fala que dívida fundada "é a resultante da vinculação da entidade estatal, regularmente inscrita nos livrosda Fazenda, tal como se dá com os títulos, os empréstimos e adicionais restituíveis" (25).Já para Geraldo Ataliba, toda dívida pública é igual, diferenciando-se a dívidafundada e a flutuante apenas nos objetivos da administração ao tomar um empréstimo em dinheiro. Segundo este jurista, dívida fundada é "aquela que corresponde a um investimento de capital, a um incremento do patrimônio público ou a uma inversão de qualquer forma duradoura, que apresente um saldo positivo - ou financeiro, ou patrimonial - para o Estado, ou, pelo menos, equilíbrio entre a quantia que fica o Estado devendo e o benefício que ela produz ou propicia." E arremata: "Não é o prazo de doze meses que qualifica uma dívida como fundada; não cabe constituir dívida fundada para atender a desequilíbrio orçamentário" (26).

(24) LEME, Ernesto. A intervenção federal, p. 187.(25) PONTES DE MIRANDA. Comentários a Constituição de 1969 com a Emenda n. l, de 1969. Op. cit., t. II. p. 228.(26) ATALIBA, Geraldo. Regime jurídico do crédito público, p. 98, 99, 139.290

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICONo entender de Hely Lopes Meirelles, dívida fundada ou consolidada "é a garantia por título próprio da entidade pública devedora, amortizável ou resgatável em prazo certo, geralmente longo, com fluência de juros prefixados, sendo os títulos negociáveis nos respectivos mercados e bolsas. Distingue-se da dívida flutuante, que é aquela que o Poder Público contraipor um breve e indeterminado período de tempo para atender às momentâneas necessidades de caixa, pelo que é também denominada dívida de tesouraria ou dívida administrativa" (27).Em decorrência das regras inerentes ao federalismo cooperativo, os Estados federados se acham obrigados a transferir aos Municípios determinadas quotas tributárias, nos prazos fixados em lei, cuja retenção é sancionada com a intervenção federal;- prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial - Tem-se entendido que a intervenção para a execução de lei federal somente poderá ocorrer quando não haja solução judicial para o caso, ou seja, a recusa do governo estadual em cumprir lei federal não seja passível de correção pelos órgãos judiciários.O descumprimento de ordem ou decisão judicial refere-se a decisão proferidatanto pela Justiça Federal quanto pela Estadual; - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta - Tais são os denominados princípios constitucionais enumerados ou sensíveis, referidos no item 6.1 do Capítulo 14 deste trabalho, notando-se que a inobservância, pelos Estados-Membros, dos direitos da pessoa humana, como hipótese interventiva, foi introduzida pela Constituição de 1988.Compete ao Presidente da República decretar a intervenção, mediante audiência dos Conselhos da República e de Defesa Nacional (arts. 90, I, e 91, § 1°, II),devendo o decreto interventivo ser submetido à apreciação do Congresso Nacional,no prazo de vinte e quatro horas (art. 36, § 1°).O Congresso Nacional exerce, assim, controle político a posteriori sobre o decreto de intervenção, admitindo-se até mesmo venha a responsabilizar o Presidente da República, caso verifique a ocorrência de crime de responsabilidade.Pondere-se que o ato interventivo produz eficácia desde a sua edição, independentemente de aprovação pelo Poder Legislativo. A suspensão da intervenção pelo Congresso Nacional produz efeitos meramente ex nunc.Tem-se entendido que a intervenção consiste num dever do Presidente da República, quando requisitada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Tribunal

(27) MEIRELLES. Hely Lopes. Op. cit., P. 105.291

KILDARE GONÇALVES CARVALHOSuperior Eleitoral, mas é direito do Chefe do Executivo quando for solicitada pelo Executivo ou Legislativo.Na hipótese de descumprimento de princípio constitucional enumerado (art.34, VII e alíneas) e de recusa ao cumprimento de lei federal (art. 34, VI), a intervenção dependerá de representação do Procurador-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, e do provimento da representação. Nesse caso, o Tribunal competente comunicará a decisão ao Presidente da República, que suspenderá a execução do ato impugnado, se essa medida tiver eficácia (art. 36, § 3°). Assim, a intervenção só ocorrerá se o Estado federado ou o Distrito Federal não acatarem a medida presidencial de suspensão do ato impugnado.

No caso de recusa a execução de lei federal (art. 34, VI), a intervenção dependerá, como se viu, do provimento, pelo Superior Tribunal de Justiça, de representação do Procurador-Geral da Republica (art. 36, IV). O afastamento do Supremo Tribunal Federal para o exame da ação interventiva, neste caso, revela-se inadequado, pois é a ele que cabe, como órgão máximo do Poder Judiciário, o controle da autonomia do Estado-Membro e a defesa da federação.O decreto de intervenção especificará a amplitude, o prazo e as condições desua execução e, se couber, nomeará o interventor. A intervenção nem sempre ocorre sobre os três Poderes do Estado, podendo incidir em apenas um ou dois deles.

Diz a Constituição que, cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal (art. 36, § 4°), como, por exemplo, suspensão ou perda dos direitos políticos e término do mandato.

& 11 INTERVENÇÃO NOS MUNICÍPIOSA Constituição prevê a intervenção dos Estados nos Municípios, ou da União nos Municípios situados em Território (art. 35).A intervenção nos Municípios se explica, principalmente, pela autonomia deque desfrutam no sistema deferal, já que não se entende o exercício da autonomiafora de certos limites. E a intervenção consiste justamente num instrumento jurídico-político, mais drástico deles, concebido para controlar a autonomia municipal.Hely Lopes Meirelles afirma, a propósito, em conceito adotado pelo SupremoTribunal Federal (RE 94.252-I-PB), que "a intervenção do Estado no Município é" medida excepcional de caráter corretivo político-administrativo .Se a intervenção é, por um lado, antítese da autonomia municipal, por outrolado constitui medida eficaz para a preservação dessa autonomia, pois, sem suportar a medida interventiva, os entes locais poderiam chegar até mesmo ao aniqüilamento de suas instituições. Hely Lopes Meirelles observa que,"com as cautelas estabelecidas pela Constituição e com a prudência dosgovernantes na utilização desse instrumento de controle das atividades292

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOcomunais, a intervenção estadual não desfigura o nosso regime municipal nem descaracteriza as franquias dos governantes locais, que devem ser autônomos, mas sujeitos a responsabilizações e sanções pelos desmandos administrativos que cometerem". (28)Cabe indagar se a intervenção estadual nos Municípios confunde-se com a intervenção federal nos Estados ou, ao contrário, dispõe de contornos jurídicos próprios.Josaphat Marinho enfrentou com inteira propriedade a questão, ao interpretar o pensamento de Pontes de Miranda. Disse que, "se Pontes de Miranda acentua que `aintervenção pelo Estado-Membro é inconfundível com a intervenção federal no Estado-Membro', não o faz por ver entre as duas diferença da natureza, mas porque a última pode ser restrita a alguma zona, a algum Município ou a alguns Municípios." (29)Consideram-se materiais ou de fundo as quatro hipóteses interventivas previstas nos incisos correspondentes ao art. 35 da Constituição Federal, e que se referem à ordem financeira municipal (art. 35, I e III), observância da Constituição Estadual e respeito dos poderes constituídos (art. 35, II e IV).Por se tratar de medida excepcional, a intervenção em Município só poderáocorrer nas hipóteses exaustivamente enumeradas no texto constitucional federalnão se admitindo sejam elas ampliadas pela Constituição do Estado-Membro ou porlei infraconstitucional.

& 11.1 Falta de pagamento da dívida fundadaA falta de pagamento da dívida fundada, sem motivo de força maior, por doisanos consecutivos, é a primeira hipótese de intervenção estadual em Município (art. 35, I, da Constituição Federal).O conceito de dívida fundada foi examinado anteriormente (item 10).

Acrescente-se que o montante da dívida fundada ou consolidada dos Municípios está sujeito aos limites fixados pelo Senado Federal, por proposta do Presidenteda República (art. 52, VI, da Constituição Federal), cabendo ainda ao Senado Federal dispor sobre os limites globais e as condições para as operações de crédito externo e interno dos Municípios (art. S2, VII, da Constituição Federal).0 exame da dívida municipal, que ensejará eventual intervenção, deve ser procedido minuciosamente por técnicos ou agentes do Estado, incluindo os do Tribunal de Contas.Advirta-se que o Município deverá provar a ocorrência de força maior paraeximir-se da intervenção, não bastando alegá-la. E o conceito de força maior é olegal, consistindo no "fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar, ou impedir" (Código Civil, art. I.OS8, parágrafo único).

(28) MEIRELLES, Helly Lopes. Direito municipal brasileiro. Op. cit., p. 103.(29) MARiNHO, Josaphat. Intervenção em município. Revista de Direito Público, n. 64, p. 62, out./dez., 1982.293

KILDARE GONÇALVES CARVALHOJá "no cômputo dos dois anos consecutivos, exclui-se o dia do começo, que é odo vencimento mesmo, ou o da exigibilidade, e inclui-se o último, porque se trata de princípio geral de direito, tanto invocável no direito privado quanto no direito público", esclarece Pontes de Miranda. (30)

& 11.2 Não-prestação de contasA prestação de contas constitui dever do Prefeito, como administrador público.A Constituição prevê, em seu art. 35, II, intervenção em Município, "desde que não forem prestadas contas devidas, na forma da lei". O texto constitucional anterior mencionava a expressão "lei estadual". O atual considera apenas o termo lei, circunstância que possibilita a intervenção por violação de lei federal, estadual ou municipal (a lei orgânica no Município contém regras sobre controle interno de cada um dos Poderes).Hely Lopes Meirelles distingue a falta de prestação de contas da sua prestaçãoirregular, para concluir que apenas no primeiro caso é admissível a intervenção, pois que, a dar um sentido mais amplo ao dispositivo constitucional, iríamos propiciar a intervenção do Estado no Município toda vez que o Prefeito errasse na prestação de contas ou apresentasse qualquer irregularidade na efetivação da despesa" (31). Na hipótese de ocorrer prestação irregular de contas, pelo Prefeito, ao Tribunal de Contas do Estado, Tribunal ou Conselho de Contas dos Municípios, onde houver, aplicar-se-á ao Chefe do Executivo local as sanções político-administrativas, civis e penais cabíveis, sendo desnecessária a medida extrema da intervenção.

& 11.3 Inaplicação do percentual constitucional da receita de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensinoA Constituição Federal autoriza, em seu art. 35, III, a intervenção, se "não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino". De acordo com o disposto no seu art. 212, os Municípios aplicarão 25 por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. A respeito dessa hipótese de intervenção, cabem algumas observações. A primeira é a de que a referida porcentagem compreende não só as receitas tributáriasdo Município, de que trata o art. 156, I a III, da Constituição Federal, como também as resultantes de transferências de outros entes da federação, vale dizer, União e Estados-Membros. Outra observação diz respeito ao grau de ensino objeto da aplicação da receita tributária. Apesar de o art. 21 l, § 2°, da Carta Federal determinar que os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e

(30) PONTES DE MIRANDA. Comentários... Cit., p. 228-229.(31) MEIRELLES, Hely, Lopes. Direito municipal brasileiro. Op. cit., p. 106.

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DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPré-escolar, nada impede que, respeitada essa prioridade, o percentual em consideração seja aplicado em qualquer grau de ensino. Uma terceira observação está no faro de que integram as despesas de ensino aquelas referentes a gastos com transportes de professores e alunos, segurança nas escolas, construção, recuperação e aluguel de imóveis destinados ao funcionamento de escolas, pagamento de pessoal docente e seus correspondentes encargos sociais, fornecimento de material didático e escolar para o ensino fundamental, pagamento de despesas com o educando, seja com alimentação, aí incluída a merenda escolar, assistência à saúde, como médicos, dentistas, enfermeiros, medicamentos, na unidade escolar. Finalmente, vale a observação de que a diferença entre a receita e a despesa previstas e as efetivamente realizadas que resultem no não-atendimento do percentual mínimo obrigatório, admite compensação no exercício seguinte, de acordo com o disposto no § 4° da Lei federal n. 7.348, de 24 de julho de 1985.

& 11.4 Inobservância dos princípios indicados na Constituição Estadual, descumprimento de lei, ordem ou decisão judicialOs Municípios estão obrigados a respeitar os princípios constantes da Constituição do respectivo Estado-Membro, que, por sua vez, incorpora os princípios da Constituição Federal (arts. 25 a 28, e 29) e acrescenta outros referentes à diversidade regional.A inobservância, pelo Município, desses princípios acarreta intervenção. São princípios constitucionais: forma republicana, sistema representativo, regime democrático, direitos da pessoa humana, autonomia municipal, independência e harmonia dos Poderes, os referentes à elaboração e execução orçamentária, moralidade e probidade administrativa, dentre tantos outros identificáveis no texto constitucional.O descumprimento de lei constitui hipótese interventiva no Município. Esclareça-se que a Constituição Federal (art. 35, IV) não qualifica a lei como municipal: trata-se, dessa forma, de qualquer lei (federal, estadual ou municipal). Também o decreto, "que é lei em sentido material e tem o mesmo conteúdo normativo da lei formal, nas matérias de sua alçada, há de ser cumprido fielmente pelas autoridades e agentes municipais", sob pena de intervenção, é o que esclarece Hely Lopes Meirelles. (32)O Prefeito, como Chefe do Executivo municipal, pode deixar de cumprir leismunicipais inconstitucionais? A despeito da polêmica acerca da matéria, entendemos que sim. Nesse sentido, opinou Adroaldo Mesquita da Costa: "A tese de que o Poder Executivo pode e deve negar cumprimento a leis que julgar inconstitucionais é francamente vitoriosa". (33)

(32) MEIRELLES Hely Lopes. Direito muncipal brasileiro. Op. cit., p. 109.(33) CONSTA, Adroaldo Mesquita da. Revista de Direito Administrativo, v. 82, p. 358, out./dez., 1965295

KIIDARE GONÇALVES CARVALHOO emitente Ministro Moreira Alves, em voto proferido no Supremo TribunalFederal, acentuou:"Não tenho dúvida em filiar-me à corrente que sustenta que pode o Chefe do Poder Executivo deixar de cumprir - assumindo os riscos daí decorrentes - lei que se lhe afigura insconstitucional. A opção entre cumprir a Constituição é concedida ao particular para a defesa do seu interesse privado. Não o será ao Chefe de um dos Poderes do Estado para a defesa, não do seu interesse particular, mas da supremacia da Constituição que estrutura o próprio Estado."; (34)Este poder-dever ao Prefeito em não cumprir leis inconstitucionais deve cercar-se de alguns condicionamentos. A justificativa para não dar cumprimento a normainconstitucional é o primeiro deles. Ao recusar aplicação a lei que reputeinconstitucional, o Prefeito deverá motivar a recusa, fundamentando-a devidamente, para que não incida em responsabilização criminal (art. 1°, XIV, do Decreto-Lei n. 201/67). Outro condicionamento situa-se no plano constitucional-processual. Na hipótese de figurar o Prefeito

como legitimado ativo para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal, em face da Constituição Estadual, deverá, paralelamente ao ato de recusa de cumprimento da norma inconstitucional, ajuizar a competente ação direta junto ao Tribunal de Justiça. Requerendo medida cautelar, continuará a não aplicar a lei que entenda inconstitucional; até a decisão dessa medida que, deferida, libera o Chefe do Executivo local a prosseguir na recusa de cumprimento da lei. Caso seja indeferida, desaparecem os fundamentos do ato de rejeição à lei, que deverá então ser cumprida.O descumprimento de ordem ou de decisão judicial acarreta intervenção em Município.Ordem judicial significa "qualquer comandamento ou mandado", e por decisão judicial entende-se "qualquer resolução, que se haja de executar". (35)A ordem ou a decisão devem expressar o exercício de função jurisdicional.Assim, os atos administrativos praticados pelos juízes não se enquadram na categoria de ordem ou decisão judicial.Os casos de intervenção mencionados neste tópico dependem de representação do Procurador-Geral de Justiça ao Tribunal de Justiça do Estado, que lhe daráprovimento (art. 35, IV, da Constituição Federal).Note-se ainda que a Constituição Federal prevê uma fase premonitória paraesses casos de intervenção, ou seja, haverá decreto do Governador suspendendo aexecução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade,

(34) REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA, v. 95, p. 508, abr., 1981.(35) PONTES DE MIRANDA. Comentários... Cit., p. 244.296

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOcircunstância que evita a intervenção. Se, no entanto, o Prefeito não acatar odecreto do Governador, insistindo na prática do ato, será inevitável a medidainterventiva.A competência para decretar a intervenção é do Governador, mediante decreto.Não se exige lei autorizada para o ato.O decreto de intervenção deverá especificar as razões, o prazo e as condições deexecução da medida e, se couber, nomeará o interventor.A renuncia antecipada do Prefeito e a assunção do cargo pelo Vice-Prefeito nãoobstam juridicamente a intervenção, foi o que decidiu o Supremo Tribunal Federal(RE 94.252-1 - PB), com o voto do Ministro Leitão de Abreu, assim expresso:"A intervenção, pela qual se intenta restaurar a regularidade na administração municipal, supõe o interventor e o afastamento, por isso mesmo, do Prefeito do Município, bem que esse afastamento possua, em regra, caráter provisório, utna vez que a intervenção não é forma de destituição de cargo político, a qual só poderá ocorrer em face de outra causa legal. Em outras palavras, o ato de intervenção, ato político-administrativo, implica o afastamento de quem se ache na Chefia da Prefeitura, cujas atribuições passam ao interventor."297

Capítulo 15A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Sumário1 Princípios e normas gerais2 Agentes e cargos públicos3 Servidores públicos4 Militares

& 1 PRINCÍPIOS E NORMAS GERAISA Constituição trata da "administração pública" no Capítulo VII do Título III,incluindo normas referentes aos servidores públicos civis e militares.Afirma Oswaldo Aranha Bandeira de Mello que "a palavra administração,

etimologicamente, vem do latim, segundo uns, da preposição ad e do verbo ministro-as-are, que significa servir, executar, e, segundo outros, de ad manus trahere, que envolve idéia de direção ou gestão. Daí a possibilidade de lhe emprestar sentido amplo, sem restringi-lo a uma compreensão tão-somente de execução subordinada. Lícito, também, se afigura incluir nela a compreensão de deliberação, de comando".(1)Pode-se entender Administração Pública em sentido subjetivo (e aqui a palavra é grafada com maiúscula), como em sentido objetivo, ou seja, "conjunto de atividades preponderantemente executórias de pessoas jurídicas de Direito Público ou delas delegatárias, gerindo interesses coletivos, na prossecução dos fins desejados pelo Estado".(2)A Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, introduziu relevantesalterações neste Capítulo, como a seguir verificaremos.O art. 37 da Constituição menciona que a administração direta e indireta dequalquer dos Poderes da União, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.Observe-se que o texto constitucional anterior faz menção à administração direta, indireta e fundacional. Abrange a administração direta os órgãos administrativos que compõem a organização administrativa do Estado; a indireta é integrada pelas autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, e a fundacional compreende as fundações instituídas pelo Poder Público.Em crítica ao texto constitucional anterior, José Cretella Jr. diz que o constituinte se equivocou, pois quando coloca a administração indireta ao lado da fundação (e sem o atributo "pública"), incide em erro, porque a "entidade fundacional pública é uma das espécies em que se desdobra o gênero Administração Indireta".(3)

(1) BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo, v. 1, p. 34.(2) MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo, p. 88.(3) CRETELLA JÚNIOR, José. A administração pública. In: A Constituição Brasileira - I988 - Interpretações, p. 142.301

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA administração direta, indireta ou fundacional revela-se nas três esferas degoverno em que se articula a federação (União, Estados e Municípios), havendo ainda a Administração local do Distrito Federal. Ao mencionar "administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes" (art. 37), parece-nos que o texto constitucional está abrindo apossibilidade de não só o Executivo, mas também o Legislativo e o Judiciário instituírem autarquias e outras entidades da administração indireta, bem como fundações, desde que convenientes para a descentralização de seus serviços de natureza administrativa, embora tais serviços sejam atípicos desses dois Poderes. Ainda é José Cretella Jr. quem observa, a propósito:"Administração existe nos três Poderes, mas o volume de serviços administrativos do Poder Judiciário e do Poder Legislativo é pequeno e, regra geral, interno (concessão de férias, de licenças aos agentes desses Poderes), às vezes externo (atendimento ao público). O volume, a massa, o grande número, o acúmulo de `serviço administrativo' é que se torna a `causa determinante' da descentralização e, pois, da criação de entidades periféricas, que colaboram com o centro superlotado. Onde não existe superlotação não existe `exportação'ou `transferência' e, portanto, Administração Indireta, criação incompatívellógica e juridicamente com o Poder Judiciário e com o Poder Legislativo."Para concluir:`desse modo, constituintes e seus assessores deram às expressões `Administração Pública', `Administração Direta', `Administração Indireta' e `entidade fundacional' sentidos não-técnicos, divorciados da doutrina, do Direito positivo e da realidade prática. Para que o dispositivo fique inatacável, basta asupressão da expressão `de qualquer dos Poderes"'. (4)O equívoco ficou, no entanto, reparado com a Emenda Constitucional n. 19/98

que eliminou o termo "fundações" do caput do art. 37.A Constituição menciona, no art. 37, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, a serem observados pela administração pública.Vale notar, inicialmente, que esses princípios não são os únicos em DireitoAdministrativo, fixando os publicistas inúmeros deles.Por outro lado, o texto constitucional faz referência, no inciso XXI e nos §§ 5°e 6° do art. 37, a outros princípios da Administração Pública (licitação pública, prescritibilidade dos ilícitos administrativos, responsabilidade civil da Administração), que examinaremos sucintamente adiante.

(4) CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 145.302

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO princípio da legalidade subordina a administração pública à lei. Diferentemente do indivíduo, que é livre para agir, podendo fazer tudo o que a lei não proíbe, a administração, somente poderá fazer o que a lei manda ou permite. Esclarece Hely Lopes Meirelles que "a legalidade, como princípio de administração, significa que o administrador publico está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso".(5)O princípio da impessoabilidade revela que os atos da Administração Públicanão são imputáveis a quem os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativacompetentes. A impessoalidade consiste ainda na vedação de tratamento discriminatório pelos agentes públicos. Desdobramento desse princípio é a regra do § 1°, do art. 37 da Constituição,no sentido de que "a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos".A moralidade administrativa como princípio, segundo escreve Hely Lopes Meirelles, "constitui hoje pressuposto da validade de todo ato da AdministraçãoPública". Não se trata - diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito - da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como "o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração". Assim, o administrador, ao agir, deverá decidir não só entre o legal e o ilegal, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. (6)A moral administrativa é ainda tutelada pela ação popular (art. 5°, LXXIII),mencionando a Constituição que a suspensão dos direitos políticos se dará no caso de improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4°.A publicidade consiste na "divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos", não sendo elemento formativo do ato administrativo, mas condição de sua eficácia.'Ó princípio da eficiência foi introduzido pela Emenda Constitucional n. 19/98. Relaciona-se com as normas da boa administração no sentido de que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar suas atividades com vistas a extrair o maior número possível de efeitos positivos ao administrado, sopesando a relação custo-benefício, buscando a excelência de recursos, enfim, dotando de maior eficácia possível as ações do Estado.Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o princípio da eficiência impõe aoagente público um modo de atuar que produza resultados favoráveis à consecução

(5) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, p. 67.(6) MEIRELLES. Hely Lopes. Op. cit., p. 68-69.(7) MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p.72.303

KILDARE GONÇALVES CARVALHOdos fins que cabem ao Estado alcançar. Salienta que " a eficiência é princípio que se soma aos demais princípios impostos à Administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles, especialmente ao da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança jurídica e ao próprio Estado de Direito". (8)Acentua Alexandre de Moraes que " o princípio da eficiência compõe-se dasseguintes características básicas: direcionamento da atividade e dos serviços públicos à efetividade do bem comum, imparcialidade, neutralidade, transparência, participação e aproximação dos serviços públicos da população, eficácia, desburocratização e busca da qualidade". (9)Como princípios extraídos de alguns incisos do art. 37, avultam os seguintes:I - princípio da licitação pública, mencionado no inciso XXI, segundo o qual,"ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamentos, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações". A licitação objetiva possibilitar a disputa entre todos quantos desejem participar de negócios com a Administração, assegurando-lhes a seleção de propostas mais vantajosas. Por sua vez, dispõe o art. 22, XXVII, que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III. Observe-se que, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/98 à aduzida cláusula constitucional, no que toca à licitação e ao contrato, submetem-se ao disposto no art. 37, XXI, todos os entes políticos das diversas esferas de governo, integrantes da administração direta, indireta e fundacional, enquanto que as empresas públicas e sociedades mistas reger-se-ão, nessa matéria, pelo inciso III do § 1° do art. 173, que, a seu turno, prevê lei específica para o processo de licitação, contratação a ser objeto de regulamentação própria, que assim poderá simplificá-lo, e adaptá-lo às peculiaridades de cada uma dessas espécies institucionais, sem, contudo, deixar de observar os princípios da administração pública.A esses princípios acrescente-se outros que são extraídos do texto constitucional de forma implícita. São eles: Princípio da supremacia do interesse público sobre o privado:

(8) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 10. ed., São Paulo: Atlas, 1998, p. 73/74.(9) MOARES, Alexandre de. Direito constitucional. 6. ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 299.304

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOos interesses da administração pública sobrepõem-se aos particulares, no caso decom estes colidir. Baseados neste princípio é que se fala na autotutela administrativa, pela qual a Administração tem o poder de anular os seus próprios atos praticados em desrespeito à lei, e de revogá-los por conveniência e oportunidade, mediante juízo de discricionariedade.Princípio da finalidade: cabe à autoridade administrativa praticar o ato administrativo com o propósito de realizar a finalidade prevista em lei.Princípio da razoabilidade: o administrador, na realização do ato administrativodiscricionário, deve empreender a necessária ponderação dos valores existentes, segundo os parâmetros extraídos de um senso médio de racionalidade. Afirma CelsoAntônio Bandeira de Mello que " enuncia-se com este princípio que a administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidam a outorga da competência exercida". (10)II - princípio da prescritibilidade dos ilícitos administrativos (art. 37, §5°), mediante o qual "a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por

qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento". Assim, pela ressalva constante da parte final do dispositivo, somente não prescreverá o direito da administração ao ressarcimento ou indenização do prejuízo;III - princípio da responsabilidade civil da Administração, que figura no g6° do art. 37, com a seguinte redação:"As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadorasde serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Trata-se de responsabilidade objetiva da Administração, não estando o prejudicado obrigado a provar a ocorrência de dolo ou culpa do agente causador do dano, bastando a existência de nexo causal entre a ação ou omissão e o resultado danoso. A Administração poderá eximir-se da obrigação de indenizar, caso prove que houve culpa exclusiva do terceiro. Haverá ação regressiva contra o agente causador do dano, se demonstrar a Administração que o mesmo agiu com dolo ou culpa. Observe-se, finalmente, que a norma constitucional alargou a incidência da obrigação de indenizar da Administração, incluindo os danos provocados pelas pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviços públicos, tais como as empresas concessionárias ou permissionárias (art. 175).

(10) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 7. ed., São Paulo: Malheiros, p. 63.305

& 2 AGENTES E CARGOS PÚBLICOSNo que respeita aos agentes e cargos públicos, a Constituição, no art. 37, prevêos preceitos que são de observância obrigatória pela administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, assim enunciados:1. os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros quepreencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei. Observe-se que o acesso de estrangeiros aos cargos, empregos e funções públicas dependerá de lei, que, por óbvio, não poderá estabelecer diferenciações abusivas e arbitrárias, privilegiando-os em detrimento dos brasileiros. Entende-se que essa norma constitucional aplica-se tanto aos estrangeiros residentes no País quanto aos que aqui não residem, podendo-se, na forma da lei, permitir que sejam admitidos estrangeiros para o exercício de cargo, função ou emprego público em repartições brasileiras no exterior, como motoristas, recepcionistas, etc. Mencione-se ainda que, de acordo com o § 1° do art. 207, é facultada às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei; 2. a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia emconcurso público de provas ou provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. Acrescente-se a essa norma constitucional o inciso IX do art. 37, que prescreve: a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público". Assim, a primeira exceção à regra do concurso reclama que a lei determine expressamente quais os cargos de confiança que podem ser providos por pessoas estranhas ao funcionalismo e sem o concurso público, e a segunda exceção depende da ocorrência desses requisitos: a) excepcional interesse público; b) temporariedade da contratação; c) hipóteses expressamente previstas em lei, que poderá ser federal, estadual, distrital ou municipal, segundo a entidade contratadora. Acentue-se finalmente que a exigência do concurso público seimpõe não só para a primeira investidura, mas ainda para as hipóteses de transformação de cargos e transferência de servidores para outros cargos ou categorias funcionais diversas das iniciais; 3. o prazo de validade do concurso público será de dois anos, prorrogável umavez, por igual período;4. durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado comprioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira.

Assim, expirado o prazo de validade do concurso, não há mais falar em expectativa de direito dos aprovados, quanto à nomeação;306

DIREITO CONSÏ ITUCIONAL DIDÁTICO5. as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantesde cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores decarreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam- se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento. A norma constitucional que prevê essa regra ( inciso V do art. 37, com a redação dada pela EC n.19/98), substitui o termo "preferencialmente", que constava da redação anterior, pela expressão "percentuais mínimos previstos em lei", para a ocupação de cargos em comissão por servidores de carreira;6. é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical;7. o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em leiespecífica. Verifica-se que o direito de greve assegurado pela Constituição aos servidores públicos não tem a mesma extensão com que foi conferido aos trabalhadores sob regime de direito privado, já que para aqueles deverá preexistir lei específica;8. a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoasportadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão. Isso não quer dizer que o acesso dessas pessoas aos cargos públicos será indiscriminado, mas que, havendo aprovação em concurso público, deverá existir prioridade na classificação. Assim, o concurso será o mesmo, observadas as peculiaridades em relação aos deficientes, que, uma vez aprovados, terão sua classificação feita separadamente, ingressando no serviço público aquele que obteve melhor classificação dentre os deficientes;9. a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4° doart. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa, em cada caso, assegurada a revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices. Tem-se que cabe à lei ordinária a fixação do teto de remuneração bruta do funcionalismo público, sendo impróprio que tal matéria seja estabelecida em decreto do Executivo, ou resolução do Legislativo ou do Judiciário.Observa-se que, segundo o § 4° do art. 39, introduziu-se mecanismo híbrido deremuneração dos servidores públicos. Com efeito, o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado, os Secretários Estaduais e Municipais, membros do Ministério Público, Procuradores do Estado e do Distrito Federal, membros da Advocacia Geral da União, membros da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e da Defensoria Pública passam a ser remunerados exclusivamente por "subsídio fixado em parcela única", vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou qualquer outra espécie remuneratória, percebidas cumulativamente ou não, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI. Já a remuneração dos servidores públicos, organizados em carreira poderá, de acordo com o disposto no art. 39, § 8°, ser fixada nos termos do § 4° do art. 39. Desta forma, os servidores que não foram incluídos expressamente na relação dos remunerados por subsídio poderão, ou não, caso organizados em carreira, sê-lo por meio deste. Portanto, há, no tocante ao regime de remuneração, a convivência de duas modalidades: subsídio para os casos expressamente indicados pela 307

KILDARE GONÇALVES CARVALHOConstituição e para os servidores organizados em carreira. Nas outras hipóteses,permanece a remuneração pelo sistema de vencimentos;10. a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregospúblicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Cuida-se de norma constitucional de eficácia limitada à edição de lei ordinária de iniciativa conjunta dos

Presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal ( art. 48, XV): foi o que deliberou o Supremo Tribunal Federal, reunido em Sessão Administrativa;11. os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário nãopoderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo; 12. os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados, para fins de concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título ou idêntico fundamento;13. o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicossão irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV do art. 37 e nos arts. 39, § 4°, 150, 11, 153, III, e 153, § 2° , I;14. a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suasáreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei;15. a lei disporá sobre os requisitos e as restrições ao ocupante de cargo ou emprego da administração direta e indireta que possibilite o acesso a informações privilegiadas;16. é vedada a acumulação de cargos públicos, exceto quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:a) a de dois cargos de professor;b) a de um cargo de professor com outro, técnico ou científico;c) a de dois cargos privativos de médico.Observe-se que a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público.A Emenda Constitucional n. 19/98 instituiu, para os casos suscetíveis de cumulação de cargos públicos, uma limitação salarial, ao determinar, no inciso XI do art. 37, que a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos308

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOpúblicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qual-quer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.Já o § 10 acrescentado ao art. 37 pela Emenda Constitucional n. 20/98, estabelece ser vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria com aremuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos constitucionalmente acumuláveis, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração. Ainda por força da referida Emenda Constitucional, é vedada a percepção de mais de uma aposentadoria à conta do regime previdenciário do art. 40 da Constituição Federal, ressalvadas as aposentadorias decorrentes de cargos acumuláveis constitucionalmente. E nessa última hipótese, não haverá possibilidade de se exceder o valor referente ao subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.Ao servidor público da administração direta, autárquica e fundacional, no exercício de mandato eletivo, aplicam-se as seguintes regras:a) tratando-se de mandato eletivo federal, estadual ou distrital, ficará afastado de seu cargo, emprego ou função; se a remuneração do cargo eletivo for menor, nada impede que o servidor opte pela do cargo público em que se deu o afastamento, pois não há vedação constitucional para tanto;b) investido no mandato de Prefeito, será afastado do cargo, emprego ou função, sendo-lhe facultado optar pela sua remuneração;c) investido no mandato de Vereador, havendo compatibilidade de horários, perceberá as vantagens de seu cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração do cargo eletivo, e, não havendo compatibilidade, será aplicada a regra anterior.

Determina ainda a Constituição que, em qualquer caso que exige o afastamento para o exercício de mandato eletivo, seu tempo de serviço será contado para todos os efeitos legais, exceto para promoção por merecimento.

& 3 SERVIDORES PÚBLICOSO art. 39 da Constituição, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional n. 19/98, dispõe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão planos de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. Eliminou-se a figura do regime jurídico único, possibilitando agora a multiplicidade de regimes. 309

KILDARE GONÇALVES CARVALHOAos servidores públicos civis se estendem os direitos sociais previstos no art. 7°, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, da Constituição, quais sejam:1. salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada a sua vinculação para qualquer fim;2. garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável;3. décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor daaposentadoria;4. remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;5. salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa rendanos termos da lei;6. salário- família para os seus dependentes;7. duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e 44 semanais,facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção de trabalho;8. repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; 9. remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à do normal;10. gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal;11. licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 dias;12. licença-paternidade, nos termos fixados em lei; 13. proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;14. redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;15. proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.Além desses direitos, a Constituição conferiu ao servidores públicos civis odireito à livre associação sindical e o direito de greve, como acima explicitado.

& 3.1 EstabilidadeDeclara a Constituição, em seu art. 41, que "são estáveis, após 3 (três) anos deefetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público". Desse modo, são requisitos para a aquisição da estabilidade 310

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOa nomeação para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público, oefetivo exercício por três anos (estágio probatório), e avaliação especial e obrigatória de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.A estabilidade diz respeito à permanência no serviço público. Não se confundecom a efetividade, que é inerente ao cargo. A estabilidade, embora seja um plus em relação à efetividade, pois somente são estáveis os servidores nomeados por concurso público, dela se desvincula, em caráter excepcional, quando a Constituição, no art. 19 das Disposições

Transitórias, dispõe que "os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37 da Constituição, são considerados estáveis no serviço público".Essa estabilidade não se aplica. aos ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança ou em comissão, nem aos que a lei declare de livre exoneração, nem aos professores de nível superior, nos termos da lei (art. 19, §§ 2° e 3°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).Os servidores estáveis só perderão o cargo em virtude de sentença judicialtransitada em julgado, mediante processo administrativo em que lhes seja assegurada ampla defesa, mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. Além dessas hipóteses, a Emenda Constitucional n.19/98 prevê uma outra hipótese para a perda do cargo, pelo servidor estável, dependente de lei complementar. Essa hipótese se dará se as medidas previstas no art. 169 não forem suficientes para assegurar o cumprimento das providências previstas na lei complementar, é dizer, com redução em pelo menos 20°% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança, exoneração dos servidores estáveis. A perda do cargo do estável exige que o ato correspondente seja motivado e que cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal. Acentue-se que o servidor estável que perder o cargo na mencionada hipótese, terá direito à indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço, sendo que o cargo objeto da redução será extinto, vedada a criação de cargo, emprego ou função com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo de quatro anos.Observe-a que, segundo dispõe o art. 247, acrescentado à Constituição pelaEmenda Constitucional n. 19/98, as leis complementares que regularão a perda docargo do servidor estável, e a adoção das medidas previstas no art. 169, estabelecerão critérios e garantias especiais para o servidor que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado.

& 3.2 AposentadoriaA Constituição assegura aos servidores públicos civis o direito à aposentadoria, em regime de previdência de caráter contributivo, observado os critérios311

KILDARE GONÇALVES CARVALHOque preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, segundo as seguintes regras gerais:1. por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei;2. compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionaisao tempo de contribuição;3. voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria. observadas as seguintes condições: sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher; sessenta e cinco de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao serviço de contribuição.Note-se que, pelo art. 4° da Emenda Constitucional n. 20/98, " o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado como tempo de contribuição". E, pelo § 10 do art. 40, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 20/98, "a lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício".Prevê ainda a Emenda Constitucional n. 20/98, relativamente aos professoresa redução dos requisitos de idade e tempo de contribuição em cinco anos, o que Faz com que possam aposentar-se voluntariamente aos cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se homem, e cinqüenta anos de idade e vinte e cinco de contribuição, se mulher. Observe-se que essa redução refere-se apenas à aposentadoria integral e voluntária dos professores que

comprovem exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.Prevê ainda a Constituição, no § 13 do art. 40, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 20/98, que " ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo emcomissão declarado em lei de livre nomeação, e exoneração bem como de outro cargo temporário ou emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social".Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão.Ainda segundo a Emenda Constitucional n. 20,/98, os proventos de aposentadoria, por ocasião de sua concessão, serão calculados com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria e, na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração.Os proventos de aposentadoria serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo312

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDATICOtambém estendidos aos aposentados e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão, na forma da lei. Esse preceito se aplica aos pensionistas dos militares, dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.Os notários a que se refere o art. 236 da Constituição acham-se sujeitos àsregras da aposentadoria compulsória, como já decidiu o STF, no RE n. 199.801-6-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, publicado no DJU de 29/4/96, p. 1.996.Relativamente à pensão, prevê a Emenda Constitucional n. 20/98, que a leidisporá sobre a concessão do benefício da pensão por morte, que será igual ao valor dos proventos do servidor falecido ou ao valor dos proventos a que teria direito o servidor em atividade na data de seu falecimento, estendendo-se essa disposição aos pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Trata-se de norma auto-aplicável.Finalmente, note-se que o art. 8° da Emenda Constitucional n. 20/98 constituiregra de transição, ao assegurar o direito à aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o art. 40, § 3°, da Constituição, àquele que tivesse ingressado regularmente em cargo efetivo na administração pública, direta, autárquica e fundacional, até a data de sua publicação, desde que o servidor preenchesse cumulativamente os seguintes requisitos: a) cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher; b) cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se dará a aposentadoria; c) tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de trinta e cinco anos, se homem, e trinta anos, se mulher, bem como um período adicional de contribuição equivalente a 20% do tempo que, na data da publicação da Emenda Constitucional n. 20/98, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior.Com as peculiaridades próprias, as regras de transição aplicam-se aos magistrados, aos membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Há ainda regra de transição para os professores (art. 8°, § 4°, da Emenda Constitucional n. 20/98).Finalmente, a Emenda Constitucional n. 20/98 autoriza a criação de regimesde previdência complementar para os servidores titulares de cargo efetivo pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo que esse regime somente será obrigatório para os servidores titulares de cargo efetivo que ingressarem no serviço público após a data da publicação do ato de sua instituição.

& 4 MILITARESA Constituição Federal, por força da Emenda Constitucional n. 18/98, passoua tratar, em capítulos diversos, os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos 313

KILDARE GONÇALVES CARVALHOTerritórios (art. 42), e as Forças Armadas (art. 142). Alexandre de Moraes lembra que " o regime

único dos servidores públicos militares já diferia entre si, até porque o ingresso nas Forças Armadas dá-se tanto pela via compulsória do recrutamento oficial, quanto pela via voluntária do concurso de ingresso nos cursos de formação de oficiais; enquanto o ingresso dos servidores militares das polícias militares ocorre somente por vontade própria do interessado, que se submeterá a obrigatório concurso público" (11).Consideram-se militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios osmembros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, sendo-lhes aplicáveis, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições previstas no art. 14, § 8°, art. 40, § 9°, e no art. 142, §§ 2° e 3°.À lei estadual cabe especificar sobre o ingresso dos Militares dos Estados, oslimites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência cio militar para a inatividade, os direitos, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, dos Estados, consideradas as peculiaridades de suas atividades. As patentes dos Militares dos Estados e do Distrito Federal só serão conferidas pelo Governador do Estado ou do Distrito Federal.

(11) MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6. ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 299.

314

Capítulo 16PODER LEGISLATIVO

Sumário1 Introdução2 Funções do Poder Legislativo3 Organização do Poder Legislativo4 Sessões conjuntas do Congresso Nacional5 Auto-organização e regimento interno6 Atribuições do Congresso Nacional7 Garantias legislativas8 Incompatibilidades parlamentares e perda do mandato9 Considerações finais

& 1 INTRODUÇÃOA Constituição Federal brasileira de 1988 consagra o princípio da divisão ouseparação de Poderes (art. 2°), cabendo ao Poder Legislativo o exercício precípuo da função legislativa voltada para a criação de normas jurídicas obrigatórias que vão inovar o Direito, e aos Poderes Executivo e Judiciário a sua realização. Incluem-se, ainda, como atividades típicas do Legislativo a fiscalização e o controle dos atos do Executivo. É que, antes mesmo de exercer função legislativa, o Parlamento reunia-se para "saber da regularidade da captação de recursos pelos emissários reais, para depois fixar as contribuições dos feudos e escrevê-las, a pedido do rei" (1).Em sua clássica obra O mecanismo do governo britânico, o Prof. Orlando Magalhães Carvalho narra que "o rei consultava o Magnum Consilium (de cujas reuniõessurgiu o Parlamento) para fazer leis e lançar impostos. O Parlamento não legislava, aprovava medidas. A sua função legislativa decorreu de prática posterior. No fim do século XIV, com a separação das câmaras e como parte do mesmo processo geral, o sistema de petição ao rei contra agravos sofridos nos direitos ou contra a infração de costumes transforma-se em processo legislativo. O Parlamento que, até então, se limitara a opinar quando consultado e somente sobre o consultado, investiu-se de autoridade legislativa, elaborando a lei, que o rei sancionava, reservando-se a prerrogativa de obstar à sua execução pelo veto" (2).Afirmando que, "tradicionalmente, o Legislativo é o poder financeiro", ManoelGonçalves Ferreira Filho esclarece que "o poder de votar as regras jurídicas - as leis -, foi, em realidade, conquistado por essas Câmaras (legislativas), na Inglaterra, a `mãe dos Parlamentos', por meio de uma barganha: o consentimento em impostos em troca da extensão de sua influência

na função legislativa" (3).Com a Revolução Francesa, o Poder Legislativo atingiu notável posição desupremacia.O advento do 1° pós-Guerra (1914-1918) acarretou o declínio do Poder Legislativo na sua função criadora do Direito. É que a intervenção do Estado nos

(1) SOARES, Rosinethe Monteiro. Fiscalização e controle do Executivo pelo Legislativo. Revista de Informação Legislativa 101/147.(2) CARVALHO, Orlando Magalhães. 0 mecanismo do governo britânico, p. 87.(3) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 138.317

KILDARE GONÇALVES CARVALHO múltiplos setores da realidade social, em razão da concepção do Estado de Bem- Estar (Welfare State), revelou a incapacidade do Legislativo para o atendimento normativo das necessidades sociais e econômicas da sociedade. A morosidade das deliberações legislativas contribuiu para o avanço do Executivo. Surgiu a idéia da urgência legislativa, com a introdução, nas Constituições, de mecanismos que autorizavam o governo a prontamente legislar (leis delegadas, decretos autônomos, decretos-leis).O Estado contemporâneo não mais se compatibiliza com a rígida separação dePoderes do século XVIII, seja pela expansão, como se viu, de suas atividades, seja pela lentidão do processo de criação das leis no âmbito do Legislativo, circunstâncias essas que levaram o Executivo a ampliar o espectro de sua atuação normativa. Assinale-se, todavia, que o "Poder Legislativo, por natureza, corresponde à sociedade; e, como representantes dela, às câmaras, cuja missão é formular regras públicas em harmonia com as necessidades de cada época" (4). Daí o indeclinável papel que cabe ao Legislativo no Estado Democrático de Direito, voltado para o controle e a fiscalização dos atos do Executivo, impedindo-lhe os abusos comprometedares das liberdades democráticas.

& 2 FUNÇÕES DO PODER LEGISLATIVOAo lado das funções típicas do Legislativo, quais sejam, a criação da lei, afiscalização e o controle dos atos do Executivo, a Constituição atribui-lhe funções atípicas consubstanciadoras da concepção de freios e contrapesos (checks and balances), inerentes às relações entre os Poderes do Estado. Assim, o Poder Legislativo, além de criar o Direito, participa da função jurisdicional e executiva, quando o Senado Federal julga o Presidente da República por crime de responsabilidade (art. 52, I, parágrafo único) e aprova a indicação de nomes para cargos na estrutura política da República brasileira (art. 52, III). Por sua vez, o Executivo também legisla, adotando medidas provisórias (arts. 62 e 84, III). Já o Poder Judiciário exerce função legislativa ao iniciar o processo legislativo, encaminhando à Câmara dos Deputados projeto de lei sobre determinadas matérias (art. 96, II), e ainda função administrativa, quando os Presidentes dos Tribunais concedem férias aos seus servidores, ou procedem ao provimento dos cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição (art. 96, I, c). Verifica-se, pois, com tais exemplos, que o princípio da separação de Poderesnão deve ser entendido naquela rigidez absoluta que historicamente deu origem aoseu surgimento, justificado pela necessidade de se limitar o poder do monarca. Assim, quando o Senado Federal aprecia a indicação, pelo Presidente da República, de nome para ocupar determinado cargo na estrutura política da República, está

(4) MARTINEZ, Esteban Mestre. Poder Legislativo. In: Dicionário de ciências sociais, p. 918.318

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOfreando o Executivo que, por sua vez, freia o Legislativo ao vetar projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional (art. 66, § 1°). Da mesma forma o Poder Judiciário, que, se não exerce função legislativa, declara a inconstitucionalidade das leis.

& 3 ORGANIZAÇÃO DO PODER LEGISLATIVOSeguindo tradição de nossas Constituições, a Carta Magna de 1988 consagra aorganização bicameral do Poder Legislativo, enunciando, no art. 44, que o PoderLegislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.O bicameralismo brasileiro é do tipo federal, pois decorre da forma de Estado(cabe ao Senado Federal a função de órgão representativo dos Estados federados na formação das leis nacionais, implementando-se, assim, o princípio da participação, essencial à configuração do federalismo), embora com resquícios do bicameralismo de moderação, por figurar como condição de elegibilidade, dentre outras, para o Senado, a idade mais avançada: trinta e cinco anos (art. 14, § 3°, VI, a), em relação à Câmara dos Deputados.As Constituições brasileiras anteriores adotaram o bicameralismo, abrandado,todavia, pelas Constituições de 1934 e 1937, sendo que naquela o Senado exerciapapel de coordenação de Poderes; bicameral, quando "se impunha a colaboração doSenado na confecção dos atos legislativos (art. 22, 91, I, a até I), e monocameral, quando essa colaboração era dispensada (art. 43)", na síntese do Prof. Raul Machado Horta (5). Por sua vez, o não-funcionamento do Parlamento Nacional, durante a vigência da Constituição de 1937, desfigurou o bicameralismo nela previsto. O sistema bicameral constitui, todavia, à exceção das referidas Constituições,uma constante no constitucionalismo brasileiro.Aponta-se, em favor do bicameralismo, a sua contribuição para o aprimoramento da técnica legislativa. É que, submetendo-se o projeto de lei à discussão e votação das duas Casas Legislativas, tal fato concorre para a melhoria da qualidadedas leis. Há, contudo, fortes argumentos contra o sistema bicameral, arrolando-se como principais o da morosidade do processo de elaboração das leis, acarretando essa lentidão a necessidade de ampliação da atividade normativa pelo Executivo, e o de que, sendo a lei a expressão da vontade do povo, não poderia haver duas vontades diferentes ao mesmo tempo sobre uma única questão legislativa.No bicameralismo brasileiro não há predominância ou hierarquia de uma Casa sobre outra. O que a Constituição estabelece em favor da Câmara dos Deputados é formalmente "certa primazia relativamente à iniciativa legislativa", pois é

(5) HORTA, Raul Machado. O processo legislativo nas Constituições Federais brasileiras. Revista de Informação Legislativa. 101/10.319

KILDARE GONÇALVES CAKVALHOperante ela que o Presidente da República, o Supremo Tribunal Federal, os Tribunais Superiores de Justiça e os cidadãos promovem a iniciativa do processo de elaboração das leis (arts. 61, § 2°, e 64), acentua José Afonso da Silva (6).

& 3.1 Câmara dos DeputadosA Câmara dos Deputados, de acordo com o art. 45 da Constituição, compõe-se de representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional em cada Estado e Território, e no Distrito Federal. O número total de Deputados varia, de acordo com o § 1° do arr. 45, proporcionalmente à população de cada Estado ou do Distrito Federal, e será estabelecido, para cada legislatura, no ano anterior às eleições, por lei complementar, a fim de que nenhum Estado-Membro, ou o Distrito Federal, tenha menos de 8 ou mais de 70 Deputados, critério que tem sido considerado injusto, pela disparidade existente entre os Estados mais populosos e os menos populosos. Um exemplo ilustrará a hipótese de que pela regra constitucional da proporcionalidade na composição da Câmara dos Deputados, os Estados mais representativos ficariam sub-representados: São Paulo, com aproximadamente 32 milhões de habitantes, teria 70 Deputados, ou seja, um Deputado para cada 457.142 habitantes; e um Estado com 640 mil habitantes teria um Deputado para cada 80 mil habitantes. Além do mais, aplicando-se o coeficiente de 457.142 (resultado da divisão do número da maior população, hoje o Estado de São Paulo, pelo número máximo de 70 Deputados), haveria inevitavelmente uma redução da representação popular em

vários Estados da federação. Daí a necessidade de mudança no critério constitucional (art. 4º, § 1°) para a composição da Câmara.Os requisitos de elegibilidade para a Câmara dos Deputados, de acordo com o art. 45, são os seguintes: ser brasileiro (nato ou naturalizado); maior de vinte e umanos de idade; ser eleitor, e não apresentar a condição de inelegível. Observe-se que, pelo art. 12, § 3°, II, é privativo de brasileiro nato apenas o cargo de Presidente da Câmara dos Deputados, não o de Deputado Federal. Assim, o cidadão brasileiro naturalizado pode-se eleger Deputado Federal, mas não Presidente da Câmara dos Deputados. A explicação é simples. É que o Presidente da Câmara dos Deputados pode exercer, temporariamente, a Presidência da República, em caso de impedimento do Presidente e do Vice-Presidente ou vacância desses cargos (art, 80). Dessa forma, evita-se um conflito de lealdade entre o país de origem e o país onde se naturalizou.Os Deputados são eleitos pelo sistema proporcional, e os Senadores pelo sistemamajoritário. Pelo sistema majoritário elege-se o mais votado. Ao sistema proporcional não se aplica a regra simples de se eleger o mais votado.O sistema proporcional, cujos contornos jurídicos e critérios para apuração daproporcionalidade vêm fixados na legislação eleitoral, é considerado mais democrático do que o majoritário.

(6) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 440.320

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO De fato, a eleição majoritária despreza parcela significativa de condutos de opinião da sociedade. Já o sistema proporcional possibilita que as Cadeiras a preencher sejam distribuídas entre partidos políticos minoritários, representativos de múltiplas correntes ideológicas.Como se apura a proporcionalidade? No Brasil o sistema proporcional gravitaem torno de dois quocientes: quociente eleitoral e quociente partidário. Para se verificar o critério de distribuição das Cadeiras a preencher na Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas ou Câmaras Municipais, apura-se em primeiro lugar o número de votos válidos, nele compreendidos os votos em branco. Apurados os votos válidos, divide-se esse número pelo de Cadeiras a preencher, encontrando-se o quociente eleitoral. O quociente eleitoral será assim o número mínimo de votos que um partido político deverá obter para eleger candidatos. O quociente partidário resulta da divisão do número de votos obtidos pelo partido político (legenda) pelo quociente eleitoral, encontrando-se o mínimo de Cadeiras que irá preencher. Havendo sobras (Cadeiras no ar), soma-se uma unidade ao número de eleitos pelo partido, exclui-se o que não houver obtido número de votos ao menos igual ao quociente eleitoral, e divide-se por esse número o total de votos do partido. Repete-se a operação para cada partido, apurando-se qual o que tem a maior média, e atribui-se a este o lugar. Esse critério é repetido até que se preencham todas as Cadeiras.A Constituição enumera, no art. 51, as competências privativas da Câmara dos Deputados, que são: autorizar, por dois terços de seus membros, a instauraçãode processo contra o Presidente da República, o Vice-Presidente e os Ministros de Estado, que consiste no juízo de admissibilidade, que conduzirá à pronúncia ou não do Chefe do Governo, acarretando o seu impeachment mediante decisão doSenado Federal (art. 52, I, parágrafo único); proceder à tomada de contas do Presidente da República, quando não apresentadas ao Congresso Nacional dentro desessenta dias após a abertura da sessão legislativa, acentuando-se que a abertura da sessão anual do Congresso Nacional se verifica no dia 15 de fevereiro de cada ano (art. 57); elaborar seu regimento interno, assunto interna corporis, que constitui um dos principais fatores de independência da Câmara dos Deputados; dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei (trata-se de iniciativa reservada) para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos em lei orçamentária; eleger membros do Conselho da República, nos termos do art. 89, VII, ou seja, dois cidadãos brasileiros natos com mais de trinta e cinco anos de idade.

& 3.2 Senado Federal

O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário. Cada Estado-Membro e o Distrito 321

KILDARE GO ÇALVES CARVALHO�Federal elegerão três Senadores (eram dois Senadores pela Constituição de 1934). É traço do federalismo homogêneo que a representação de cada Escado-Membro sejaem número fixo. Dois dos raros exemplos em que o número de Senadores varia de acordo com a população do Estado-Membro são a Constituição da Alemanha Federal (Lei Fundamental de Bonn de 1949) e a Constituição da Áustria. O Distrito Federal também se faz representar por três Senadores. A renovação da representação de cada Estado e do Distrito Federal se faz alternadamente, de quatro em quatro anos, por um e dois terços. O Senado Federal funciona como Câmara de resfriamento, por se afigurar mais conservador e como órgão de equilíbrio (veja-se a exigência de idade superior a trinta e cinco anos como requisito de elegibilidade para o Senado). Como requisitos de elegibilidade, a Constituição exige que o candidato seja brasileiro nato ou naturalizado (é privativo de brasileiro nato o cargo de Presidente do Senado, pelas mesmas razões antes apontadas para a Câmara dos Deputados); tenha idade superior a trinta e cinco anos e não seja inelegível. As atribuições privativas do Senado constam do art. 52 da Constituição, assim discriminadas: I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República, nos crimes de responsabilidade, e os Ministros de Estado, nos crimes da mesma naturezaconexos com aqueles, ressaltando-se que essa competência será exercida depois que a Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços dos seus membros, a instauração do processo (art. 51, I). A sessão de julgamento será presidida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, e a condenação, proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, limitar-se-á à perda do cargo com inabilitação por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (art. 52, parágrafo único). Note-se ainda que, se o crime de responsabilidade, imputado a Ministro de Estado, não for conexo com o do Presidente da República, a competência para o seu processo e julgamento é do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, c);II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União, nos crimes de responsabilidade, sendo a sessão de julgamento presidida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se à condenação o que foi dito anteriormente;III - aprovar, previamente: a) por voto secreto, após argüição pública, a escolha de: magistrados, nas hipóteses previstas na Constituição, ou seja, Ministros do Tribunal de Contas da União, Governador de Território, presidente e diretores do banco central, Procurador-Geral da República todos indicados pelo Presidente da República; b) em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente; IV - autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; fixar, por proposta do Presidente da República, limites globais para o montante da dívidaconsolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; disporsobre limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e 322

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOdemais entidades controladas pelo Poder Público Federal; dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno; estabelecer limites globais e condições para o montante da dívida mobiliária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Refere-se essa competência à intervenção do Senado Federal em matéria financeira envolvendo os Estados, Distrito Federal e Municípios e, em alguns casos, a União;V - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Aqui valem duas observações: a primeira é que essa competência do Senado Federal somente será exercida em se tratando de inconstitucionalidade no

caso concreto, ou pelo método difuso, e não de inconstitucionalidade em tese. É que nesta última hipótese a decisão do Supremo Tribunal Federal produz efeitos erga omnes, tornando-se desnecessária aintervenção do Senado Federal, como já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal no processo administrativo n. 4.477/72, e hoje entendimento constante do art. 178 do seu regimento interno. A segunda observação é a de que a referida comunicação só se dirige ao Senado Federal quando não se tratar de ação direta de inconstitucionalidade para fins de intervenção federal (arr. 34, VII, e art. 36, III), caso em que a comunicação da inconstitucionalidade será feita ao Presidente da República para as providências mencionadas no § 3° do art. 36, ou seja, suspensão da execução do ato normativo ou da lei declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal; VI - elaborar o seu regimento interno e dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção de cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, aplicando-se o que foi dito acima sobre a competência da Câmara dos Deputados.

& 4 SESSÕES CONJUNTAS DO CONGRESSO NACIONALA regra geral do bicameralismo é o funcionamento separado de cada Casa Legislativa.A Constituição estabelece, contudo, alguns casos de reunião conjunta do Congresso Nacional para: a) inaugurar sessão legislativa; b) elaborar o regimento comum e regular a criação de serviços comuns às duas Casas; c) receber o compromisso do Presidente e do Vice-Presidente da República; d) conhecer do veto e sobre ele deliberar (art. 57, § 3°, I a IV).

& 5 AUTO-ORGANIZAÇÃO E REGIMENTO INTERNOImportante requisito de autonomia do Poder Legislativo é a garantia constitucional de sua auto-organização, expressa na Constituição de 1988 nos arts. 51, III e 323

IV, para a Câmara dos Deputados; 52, XII e XIII, para o Senado Federal; e 57, § 3°, II, para o Congresso Nacional.Considera Esmein que "cada uma das Câmaras tem o direito de fazer separadamente seu regimento interno. O regimento é a lei interna de uma Assembléia deliberante. Ele determina as regras segundo as quais ela prepara e conduz suas deliberações; ele fixa os direitos e os deveres internos dos membros que a compõem" (7).Há, contudo, na Constituição de 1988, várias regras que preordenam os regimentos internos das Casas Legislativas e do próprio Congresso Nacional, restritivasda autonomia regimental, e que passaremos a examinar.

& 5.1 Direção e funcionamento dos trabalhos legislativosNeste tema se incluem:a) composição da mesa: embora não estabeleça a composição numérica dos membros da mesa de cada Casa Legislativa, considerando-se por Mesa o órgão diretor dos trabalhos legislativos, a Constituição fixa, no entanto, que o Presidente doSenado Federal preside a Mesa do Congresso Nacional, sendo os demais cargos exercidos, alternadamente, pelos ocupantes de cargos equivalentes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal (art. 57, § 5°). A Constituição fixa ainda a duração do mandato dos membros de qualquer das Casas e do Congresso Nacional em dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente, o que vale dizer que não é inelegível para Presidente da Câmara o Deputado que ocupava no período anterior o cargo, por exemplo, de Vice-Presidente;b) quorum para deliberações: constitui regra geral extraída do art. 47 da Constituição que as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadaspor maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros. Não se deve confundir o quorum de instalação da sessão com o de deliberação.Pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 79, § 2°), a Sessão Ordinária é instalada, achando-se presente na Casa pelo menos a décima parte do número total de Deputados, desprezada a fração. Já o quorum de deliberação pressupõe a presença da maioria absoluta dos

membros da Casa Legislativa (por maioria absoluta deve-se entender o primeiro número inteiro depois da metade, "sendo erro considerá-lo como metade mais um, como não raro se ouve e se lê, visto que será impossível apurá-lo quando a Câmara se compuser de número impar de membros", esclarece José Afonso da Silva)(8), devendo ainda ser tomado em relação à totalidade dos integrantes da Casa Legislativa e não em relação aos presentes. As deliberações serão tomadas pelo voto da maioria simples, apurado entre os presentes à reunião. Observe-se que a Constituição estabelece, em relação a determinadas matérias, quorum

(7) ESMLIN, A. Éléments de droit constitutionnel, français et comparé, p. 404.(8) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 448.324

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOqualificado. Assim, exige maioria absoluta para a cassação de mandato de parlamentar (art. 55, § 2°); rejeição de veto (art. 66, § 4°); aprovação de projeto de lei complementar (art. 69); maioria de três quintos para aprovação de proposta de emenda à Constituição (art. 60, § 2°); dois terços dos membros da Câmara dos Deputados para a autorização de instauração do processo por crimes comum e de responsabilidade contra o Presidente da República (art. 51, I), bem como do Senado Federal para a sua condenação por este último crime (art. 52, parágrafo único).

& 5.2 Abertura e término das sessões legislativasO art. 57 fixa o início da sessão legislativa ordinária ou anual em 15 de fevereiro, esclarecendo que ela compreende dois períodos legislativos, terminando o primeiro, iniciado a 15 de fevereiro, no dia 30 de junho, e o outro, começando a 1° de agosto, para se encerrar a 15 de dezembro. A Constituição prevê ainda sessão legislativa extraordinária do Congresso Nacional, e não de cada uma de suas Casas isoladamente, que poderá ser convocado durante o recesso pelo Presidente do Senado Federal, em caso de decretação de estado de sítio ou de intervenção federal, de pedido de autorização para a decretação de estado de sítio ou para o compromisso e a posse do Presidente e do Vice-Presidente da República; pelo Presidente da República, pelos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ou a requerimento da maioria (absoluta) dos membros de ambas as Casas, em caso de urgência ou interesse público relevante (art. 57, § 6°, I e II). Durante a sessão legislativa extraordinária o Congresso Nacional somente deliberará sobre a matéria para a qual foi convocado, dispõe o art. 57, § 7°.Sessão legislativa ordinária consiste no período anual de funcionamento dasCasas Legislativas. Sessão legislativa extraordinária refere-se ao funcionamento excepcional do Congresso Nacional durante o recesso. Sessão ordinária significa a reunião diária das Casas Legislativas. Sessão extraordinária é a reunião realizada além do horário ou em dias não-úteis. A sessão ordinária e a extraordinária são disciplinadas pelo regimento interno.Legislatura não se confunde com sessão legislativa. Legislatura compreende operíodo de funcionamento do Congresso Nacional equivalente à duração do mandatode Deputado Federal: quatro anos (art. 44, parágrafo único). A Constituição prevê ainda sessões preparatórias, que se realizam a partir de 1° de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse dos congressistas e eleição da Mesa de cada Casa Legislativa.

& 5.3 Comissões parlamentaresA complexidade dos assuntos submetidos à apreciação do Poder Legislativo, decorrente da própria estrutura da sociedade contemporânea, acarreta a necessidade de se especializarem, no âmbito dos Parlamentos, as competências legislativas em razão das matérias sujeitas ao seu exame. Daí a exigência do estudo prévio e especializado das 325

KILDARE GONÇALVES CARVALHOpropostas legislativas pelas comissões parlamentares, na sua função de órgãos técnicos que irão emitir parecer para posterior apreciação em plenário. Vê-se, então, que o Congresso Nacional não se reduz ao plenário, mas tem nas comissões parlamentares um de seus principais pontos de apoio e de fortalecimento.

Em estudo dedicado às comissões parlamentares, notadamente às comissões parlamentares de inquérito, José Alfredo de Oliveira Baracho, depois de esclarecer que o, papel das comissões é preparar o trabalho legislativo, mostra que as comissões parlamentares "tiveram seus primeiros indícios no regime inglês. No Parlamento, desde que o projeto fosse apresentado, designava-se o seu autor e outro que o secundava (seconder), com um ou dois membros, para procederem ao estudo. Com o decorrer do tempo, surgiu a especialização, começando a praticar-se a fórmula de dar determinadas competências a certas Comissões". (9)O art. 58 da Constituição de 1988 distingue as comissões parlamentares em permanentes e temporárias, que poderão ser criadas em cada Casa Legislativa ou pelo Congresso Nacional.Ingrid Ahumada Muñoz, citado por José Alfredo de Oliveira Baracho, classifica as comissões parlamentares segundo os seguintes critérios: "a) de acordo com a competência:- legislativas;- investigadoras;- de acusação;- protocolares;b) segundo a forma de integração:- formadas por membros de uma só Câmara;- formadas por membros de ambas as Câmaras (Comissões Mistas Permanentes);- membros das Câmaras, setores privados e do Executivo; c) comissões formadas por parlamentares:- técnicos, grupos de interesse e do Executivo;d) de acordo com a duração:- permanentes;- especiais;

(9) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral das comissões parlamentares, p. 39.326

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOe) segundo a sua origem:- comissões constitucionais;- comissões legais;- comissões regulamentares". (10)Seguindo orientação do texto constitucional e do regimento interno da Câmara dos Deputados, pode-se classificar as comissões parlamentares em:a) permanentes, assim consideradas as que têm a mesma composição durantea legislatura e são estruturadas "em função da matéria, geralmente coincidente com o campo funcional dos Ministérios"; (11)b) temporárias, as que funcionam durante a legislatura, ou se dissolvem como encerramento dos seus trabalhos, subdividindo-se em externas, quando visam representar a Câmara em atos externos (congressos, solenidades e outros), e especiais, para tratar de assuntos concretos;c) mistas, as constituídas por Deputados e Senadores, ou seja, comissões doCongresso Nacional (criadas, por exemplo, para emitir parecer sobre o veto, projetos de leis financeiras, ou seja, plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, créditos adicionais);d) de inquérito, as que têm poderes de investigação próprios das autoridadesjudiciais, além de outros previstos nos regimentos internos das respectivas Casas Legislativas, e serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores (art. 58, § 3°).As comissões parlamentares de inquérito, omitidas na Constituição Federalde 1891 e previstas pela primeira vez no texto constitucional de 1934, têm suscitado graves problemas quanto à efetividade de suas conclusões, pois que, na sua maioria, têm os seus

resultados comprometidos por ação política ou de grupos.Não se deve, contudo, exagerar o papel dessas comissões que se incluem comoinstrumento de fiscalização e investigação pelo Poder Legislativo e, por isso mesmo, têm limitações constitucionais. Salienta a esse propósito o Prof. Raul Machado Horta que, "dentro do sistema constitucional de governo, a funçâo parlamentar de investigação está naturalmente sujeita às regras e limitações que atingem o

(10) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit., p. 39-40.(11) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 443.327

KILDARE GONÇALVES CARVALHOpróprio órgão legislativo. A competência das comissões de inquérito deve comportar-se no quadro da competência do Poder Legislativo."(12) São as comissões parlamentares de inquérito que irão colher as informações para a tarefa legislativa, pois tão importante quanto a tarefa de legislar é a função investigatória subjacente. Daí se entender que as comissões parlamentares de inquérito não devem ser analisadas em si mesmas, porém como instrumento de atividade do Congresso Nacional, voltada para a criação das leis e do controle dos atos do Poder Executivo. Assim, não "podem substituir-se à ação dos juízes e tribunais, para determinar procedimentos de natureza judiciária. Se o fizessem, atentariam contra a divisão de poderes e poriam em risco as próprias liberdades individuais". (13)Deve-se considerar, no entanto, que as conclusões das comissões parlamentares de inquérito, se não são substitutivas da função jurisdicional, constituem fator de fortalecimento do Poder Legislativo e, de resto, do próprio Estado Democrático de Direito, mostrando à opinião pública eventuais irregularidades apuradas, tornando assim efetivo o princípio republicano e democrático da responsabilidade dos agentes políticos; e) comissão representativa do Congresso Nacional: a Constituição de 1988 prevê uma comissão representativa do Congresso Nacional, eleita por suas Casas naúltima sessão ordinária do período legislativo, com atribuições definidas no regimento comum, cuja composição reproduzirá, quanto possível, a proporcionalidade da representação partidária (art. 58, § 4°). Essa comissão representa o Congresso Nacional durante o recesso, mostrando aos que se opõem à Democracia que o Congresso Nacional está de plantão, exercendo suas atribuições, controlando e fiscalizando os atos do Executivo.As comissões parlamentares, seja de que natureza for, serão constituídas de forma a assegurar, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa Legislativa (art. 58, § I °), esclarecendo Elias Ferreira da Costa que "a composição proporcional da Mesa e das Comissões resulta de aplicação de um quociente final que se obtém, dividindo o número de membros da Câmara pelo número de membros de cada comissão e dividindo, em seguida, o número de Deputados de cada Partido pelo quociente alcançado". (14)Pode-se afinal afirmar que a Constituição de 1988 valorizou as comissões parlamentares, seja pela criação de uma comissão representativa do Congresso Nacional, seja pela ampliação dos poderes das comissões parlamentares de inquérito,

(12) HORTA, Raul Machado, Limitações constitucionais dos poderes de investigação. Revista de Direito Público. 5/34.(13) SÁ FILHO, Francisco. Relações entre os Poderes do Estado, P. 104-105.(14) COSTA, Elcias Ferreira da. Comentários breves à Constituição Federal, p. 131.328

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOseja ainda pelas atribuições que se lhes assinalou nos incisos I a VI do § 2° do art. 58, relacionadas com:a) discussão e votação de projeto de lei que dispensar, na forma do regimento,a competência do plenário (delegação interna corporis);b) realização de audiências públicas com entidades da sociedade civil (necessárias à colheita de

informações para o aprimoramento de projetos de lei ou para a efetividade da função fiscalizadora);c) convocação de Ministros de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à presidência da República, para prestarem informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições, sob pena de crime de responsabilidade (art. 50);d) recebimento de petições, reclamações ou queixas de qualquer pessoa contraatos ou omissões das autoridades ou entidades publicas (atribuição relacionada com o direito de petição, de que trata o art. 5°, XXXIV, a);e) solicitação de depoimento de qualquer autoridade ou cidadão;f) finalmente, apreciação de programas de obras, planos nacionais, regionais esetoriais de desenvolvimento para a emissão de parecer.

& 5.4 Poder de políciaO Congresso Nacional dispõe do poder de polícia, a ser regulado no regimentointerno, voltado para a manutenção da ordem dos trabalhos legislativos. Para tanto, poderá regulamentar o acesso de populares às suas dependências, dispor de guardas próprios, cabendo ao Presidente da Casa a prática de atos necessários ao resguardo do bom funcionamento das funções legislativas.

& 6 ATRIBUIÇÕES DO CONGRESSO NACIONALA Constituição enumera, no art. 48, as atribuições legislativas e, no art. 49, as atribuições deliberativas do Congresso Nacional. A distinção está em que as primeiras se praticam com a sanção do Presidente da República, sendo, portanto,reguladas em lei, e as outras se exercitam sem a sanção presidencial, particularmente através de decreto legislativo, pois encerram assuntos de competência exclusiva do Congresso Nacional.Às atribuições legislativas constantes do art. 48 poderão ser acrescidas outrasconstantes do texto constitucional, desde que de competência da União (arts. 21, 22, 23 e 24).Note-se que, pela nova Constituição, a criação, estruturação e atribuições dosMinistérios e órgãos da administração pública são matérias de lei, havendo, neste aspecto, alteração do texto constitucional anterior (Emenda Constitucional n. 1/69),329

KILDARE GONÇALVES CARVALHOcujo art. 81, V, atribuía à competência privativa do Presidente da República "dispor sobre estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal".Passaremos em revista as atribuições deliberativas do Congresso Nacional, dada a circunstância de ter havido, no texto constitucional de 1988, abrangentesinovações.Assim, é da competência exclusiva do Congresso Nacional: a) resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais queacarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. De acordocom o art. 21, I, é da competência exclusiva da União manter relações com estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, detendo assim a União competência internacional. Poder-se-ia imaginar que os tratados, acordos ou atos internacionais que não acarretam encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, estão dispensados da ratificação congressual. Anote-se, contudo, que Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a propósito do assunto, esclarece que "a fórmula é ampla e, se for amplamente aplicada, nada, no relacionamento do Brasil com o exterior, poderá ser feito sem passar pelo Congresso Nacional, porque, evidentemente, sempre haverá um encargo, senão um compromisso gravoso, para o patrimônio nacional, por detrás de qualquer negociação internacional"; (15)b) autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, apermitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar. Essa atribuição se relaciona ainda com a competência internacional da União (art. 21, II, III e IV). Vale lembrar que ao Conselho de Defesa Nacional compete opinar nas hipóteses de declaração de guerra e de celebração da paz (art. 91, § 1°, I). O Ministro Francisco Rezek adverte, no entanto, que "desde 1945 não há mais guerras declaradas. A proibição da guerra na cena internacional começa a

germinar em 1919, no Pacto da Sociedade das Nações; dá um passo alentado com o Pacto Briand-Kellog de 1928, e se consolida, em 1945, com a carta da ONU· Sabemos que, infelizmente, a confrontação armada é uma possibilidade constante, que poderia, Deus não permita, abater-se sobre o Brasil um dia. Nunca, porém, à luz do velho figurino· Há 40 anos não existe mais `declaração de guerra', de modo que a referência a esse ato, numa Constituição a promulgar-se em 1988, ë um evidente descuido de índole técnica"; (16)c) autorizar o Presidente e o Vice-Presidenre da República a se ausentarem doPaís, quando a ausência exceder a quinze dias. Tem sido da tradição de nossa política a prática de assumir o Vice-Presidente as funções presidenciais, quando o titular se ausenta do País em viagem. Nada há que justifique essa liturgia. Arnaldo Malheiros Filho mostra que "o presidencialismo é absolutamente incompatível com a repartição da

(15) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Organização dos Poderes - Poder Legislativo. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações, p. 156.(16) REZEK, José Francisco. Princípios fundamentais. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações, p- 14.330

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOchefia do Executivo entre duas pessoas diferentes. Não é possível que, no mesmo dia, haja um cidadão expedindo um decreto e outro firmando um convênio internacional, ambos usando o título de Presidente da República Federativa do Brasil"; (17)d) aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado desítio ou suspender qualquer uma dessas medidas. Enquanto o estado de sítio serádecretado após prévia autorização do Congresso Nacional, o estado de defesa e aintervenção federal serão decretados pelo Presidente da República sem aquela autorização, devendo, no entanto, o ato respectivo, com sua justificação, ser encaminhado posteriormente ao Congresso Nacional para fins de controle político das medidas;e) sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa. Trata-se de atribuição nova. Essa atribuição não poderá, naturalmente, excluir o pronunciamento do Poder Judiciário, a quem cabe o controle da constitucionalidade e dos atos administrativos na sistemática jurídica brasileira. Caso o Executivo não aceite a suspensão do ato regulamentar, por entendê-lo nos limites da lei, irá postular sua validade junto ao Judiciário, que dará a palavra final;f) mudar temporariamente sua sede. Note-se que a mudança temporária da sede do governo federal constitui matéria de lei (art. 48, VII); a do Congresso é queserá determinada mediante decreto legislativo; g) fixar idêntico subsídio para os Deputados Federais e os Senadores, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4°, 150, II, 153, III, e 153, § 2°, I;h) fixar os subsídios do Presidente e do Vice-Presidente da República e dosMinistros de Estado, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4°, 150, II, 153, III, e 153, §2°, I;i) julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo. Essa é uma atribuiçãofiscalizadora e de controle do Executivo. O Presidente da República deverá prestar, anualmente, ao Congresso Nacional, dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, ou seja, contados de 15 de fevereiro de cada ano (art. 57), as contas referentes ao exercício anterior. Se não o fizer, cabe à Câmara dos Deputados proceder à tomada de contas (art. 51, II);j) fiscalizar e controlar diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos doPoder Executivo, incluídos os da administração indireta. Nessa atribuição se consolida uma das funções típicas do Legislativo, que é a fiscalização dos atos do Executivo; l) zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuiçãonormativa dos outros Poderes. A Constituição atribui função legislativa, em caráter atípico, ao Executivo (medidas provisórias e leis delegadas) e ao Judiciário. Cabe ao Congresso Nacional zelar pela preservação de sua competência normativa, reforçando-se aqui a idéia de que a criação do Direito é tarefa predominante do Poder Legislativo;

(17) MALHEIROS FILHO, Arnaldo. Se um é, o outro não é. Revista Veja, 1.087/142.331

KILDARE GONÇALVES CARVALHOm) apreciar os atos de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádioe televisão. O pronunciamento do Congresso Nacional deve efetivar-se no prazo dequarenta e cinco dias, contados do recebimento da mensagem presidencial (prazo global para a Câmara e o Senado Federal), por força do disposto no art. 223, § 1°);n) escolher dois terços dos membros do Tribunal de Contas da União. O fortalecimento do Poder Legislativo implica o do Tribunal de Contas, que é órgãoauxiliar do Congresso Nacional para o controle externo da atividade financeira e do orçamento do Estado. Os requisitos para o provimento do cargo de Ministro doTribunal de Contas da União constam do § 1 ° do art. 73; o) aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares;p) autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursoshídricos e a pesquisa e lavra de riquezas naturais. Esse assunto, como o anterior, envolve matéria tipicamente administrativa, sujeita, agora, ao controle do Legislativo. A autorização em tela se dará mediante audiência das comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei (art. 231, § 3°);q) aprovar previamente a alienação ou concessão de terras públicas com áreasuperior a 2 mil e quinhentos hectares. Na Constituição anterior, essa competência se referia a 3 mil hectares e era exclusiva do Senado Federal (art. 171, parágrafo único da Emenda Constitucional n. 1/69). O art. 188, § 2°, exclui da autorização do Congresso Nacional as alienações ou concessões de terras públicas, mesmo superiores a 2 mil e quinhentos hectares, desde que sejam para fins de reforma agrária;r) autorizar referendo e convocar plebiscito. Como formas de consulta ao eleitorado genericamente previstas no art. 14, I e II, o plebiscito e o referendo deverão ser autorizados pelo Congresso Nacional, cabendo, no entanto, à lei fixar os critérios para sua realização.

& 7 GARANTIAS LEGISLATIVASAs garantias legislativas, segundo ensina Esmein, se dividem em dois grupos:no primeiro grupo estão as que se referem às Câmaras como expressão do PoderLegislativo, e no segundo grupo consideram-se as que protegem os parlamentaresindividualmente considerados. (18) Num caso ou noutro, constituem condição de independência do Poder Legislativo, pois mesmo as imunidades parlamentares que passaremos a examinar não são instituídas como privilégios dos membros do Congresso Nacional, mas têm finalidade pública e não particular, voltada para a garantia de independência e bom funcionamento do Legislativo.A Constituição de 1988 prevê duas categorias de imunidades: imunidade material ou inviolabilidade, imunidade formal ou processual.

(18) ESMEIN, A. Op. cit., y. 391.332

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOA imunidade material ou inviolabilidade (freedom of speech), prevista no art. 53, exclui a responsabilidade penal dos congressistas por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato. Ela exclui o crime de opinião, esclarecendo Rosah Russomano que "o congressista usufrui de uma proteção ampla, integral, ininterrupta, sempre que atua no exercício do mandato. Sua palavra é livre, desconhece peias e limitações. Vota pelo modo que lhe parece mais digno e que melhor se coadune com os reclamos de sua consciência. Emite opiniões desafogadamente, sem que o atormente o receio de haver incidido em algum crime de calúnia, de injúria ou de difamação". (19) Por excluir o crime, não há que se falar em processo penal instaurado contra congressista, mesmo após o término de seu mandato. O notável Pedro Aleixo, em monografia sobre o tema, rejeita a opinião dos que pretendem que a inviolabilidade não compreenda fatos criminosos, hipótese em que teria a Constituição proclamado a imunidade material apenas quanto

a opiniões, palavras e votos que não estivessem sujeitos a qualquersanção penal. E o faz com simples argumento: "para isso, evidentemente, não seria necessária a solene proclamação que o art. 44 (da Constituição de 1946) contém. A esse propósito o Sr. Deputado Raimundo Brito, em declaração de voto sobre o Projeto de Resolução n. 115, de 19S7, com muita penetração escreveu: `As opiniões, palavras e votos hão de conter, pois, necessariamente, um aspecto de ilicitude, ou os parlamentares não seriam resguardados pela inviolabilidade'." (20)A imunidade formal ou processual (freedom from arrest) não exclui o crime:garante o congressista contra a prisão ou o processo penal, segundo o sistema brasileiro (art. 53, § 1°). A regra é, pois, a da improcessabilidade, ou seja, tanto a prisão do congressista (ressalvada a prisão em flagrante de crime inafiançável, quando os autos deverão ser remetidos à Casa Legislativa competente para que decida sobre a prisão e autorize ou não a formação da culpa) quanto a instauração do processo penal dependem de prévia licença da Casa Legislativa a que pertencer o congressista.Por se referir a atividades estranhas à função parlamentar é que a imunidadeprocessual não exclui o crime; impede apenas a prisão ou a formação da culpa,alcançando o parlamentar somente enquanto durar o seu mandato.Ao apreciar o pedido de licença, a Câmara, segundo observa Pedro Aleixo,"exercendo ato de sua exclusiva competência, não está subordinada a condições certas, não está adstrita a limitadas determinações. Mas nem por isso deverá deixar de informar sua conduta em relevantes princípios de ordem moral, política e jurídica" (21).Os abusos, no entanto, devem ser evitados, para que a imunidade formal, influenciada pela camaradagem parlamentar, não se transforme em incentivo à impunidade.Tem-se admitido que são competentes para formular pedido de licença para processar congressista: a) o Ministério Público, nos crimes de ação pública; b) o ofendido

(19) RUSSOMANO. Kosah. O Poder Legislativo na República, p. 140-141.(20) ALEIXO, Pedro. Imunidades parlamentares, p. 69.(21) ALEIXO, Pedro. Op. cit., p. 89.333

KILDARE GONÇALVES CARVALHOou quem tenha qualidade para representá-lo ou sucedê-lo, na ação privada; c) aautoridade policial, no caso de prisão em flagrante por crime inafiançável; d) o órgão do Poder Judiciário competente para o processo ou para o seu prosseguimento.A Constituição contém salutar preceito, ao prescrever que o indeferimento dopedido de licença ou a ausência de deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato (art. 53, § 2°).O privilégio de foro é outra garantia parlamentar prevista no § 4º do art. 53,segundo o qual os Deputados e Senadores serão submetidos a julgamento perante oSupremo Tribunal Federal. Note-se, contudo, que esse privilégio de foro só se refere ao processo penal, e não aos ilícitos de outra natureza, como os civis e trabalhistas.Com relação ao dever de testemunhar, a Constituição, embora não o exclua relativamente aos congressistas, restringe seu alcance, ao dizer que os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiarem ou deles receberam informações (art. 53, § 5°).A isenção do serviço militar vem prevista no art. 53, G°, significando que a�incorporação às Forças Armadas, embora seja o congressista militar e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença da Casa respectiva. Como anotaManoel Gonçalves Ferreira Filho, ``sua inserção no texto visa a impedir a repetição do que fez o Mal. Floriano, qual seja, convocar nas férias para serviço ativo parlamentar oposicionista, a fim de que este aprendesse disciplina". (22)Têm os congressistas direito a subsídio. De fato, imunidade, subsídio e impedimentos são os alicerces da independência do parlamentar. O direito a uma remuneração contribui para a democratização do mandato eletivo, que não fica restrito a pequeno grupo de pessoas em condições de se manterem e à sua família durante os trabalhos congressuais. De outra parte, o

subsídio concorre para evitar que o congressista venha a se dedicar a atividades escusas e desonestas, desde que seria inevitavelmente levado a barganhar com grupos econômicos ou outros para compensar a ausência de remuneração.O subsídio dos congressistas vem regulado no art. 49, VII, da Constituição,presentes os seguintes requisitos, de acordo com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/98: a) os subsídios são idênticos para Deputados Federais e Senadores; b) a remuneração, o subsídio e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais de qualquer natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; c) os congressistas serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI; d) vedação de tratamento privilegiado em

(22) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso.... Op. cit., p. 155.334

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOrelação aos demais contribuintes (art. 150, II); e) vedação à exclusão da incidência de imposto de renda e proventos de qualquer natureza (art. 153, III); f) respeito aos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade (art. 153, § 2°, I).

& 8 INCOMPATIBILIDADES PARLAMENTARES E PERDA DO MANDATOAo lado das garantias legislativas, a Constituição estabelece impedimento paraos congressistas cujos propósitos são os mesmos daquelas, ou seja, preservar a dignidade e a autonomia do Poder Legislativo. De fato, ao vedar o exercício pelo congressista de determinada função, cargo ou emprego público, ou a prática de certa atividade, simultaneamente com o desempenho do mandato eletivo, a Constituição preserva a função parlamentar, evitando que o congressista, valendo-se de sua posição, venha a utilizá-la com objetivos escusos para alcançar proveitos pessoais, ou se sujeite a pressões do Executivo que influenciem seu voto ou sua opinião.As incompatibilidades parlamentares se acham descritas no art. 54 da Constituição, ocorrendo algumas a partir da diplomação, e outras, depois da posse (incisos I e II do art. 54), todas, no entanto, acarretando a perda do mandato, como veremos adiante.Importa estabelecer distinção entre incompatibilidade parlamentar e inelegibilidade. Inelegível é o que não dispõe de capacidade eleitoral passiva, ou seja, o que não pode ser eleito. A Constituição estabelece, no art. 14, §§ 1° a 9°, algumas hipóteses de inelegibilidade, remetendo, contudo (art. 14, § 9°), para a lei complementar a fixação de outros casos de inelegibilidade. Há inelegibilidade absoluta quando o impedimento eleitoral se refere a qualquer cargo eletivo, sem possibilidade de o impedido se desvencilhar da situação de inelegibilidade a tempo de concorrer ao cargo; há inelegibilidade relativa quando o impedimento se refere a alguns cargos eletivos, com possibilidade de o inelegível passar a elegível mediante a desincompatibilização (afastamento permanente ou temporário da situação que o tornava inelegível). A inelegibilidade se verifica, portanto, antes da eleição e, por ser circunstância impeditiva, acarreta a invalidade do pleito.A incompatibilidade se refere ao eleito, impedindo-o de exercer, concomitantemente com a função eletiva, determinada função, cargo ou emprego público, oupraticar certos atos. Se eleito, deve deixar o cargo que anteriormente ocupava ou não vir a ocupá-lo, vedando-lhe ainda a Constituição a realização de determinadas atividades. Verificada a situação de incompatibilidade, o congressista perderá o mandato (art. 55, I).A perda do mandato eletivo constitui sanção constitucional para o congressista que violou qualquer uma das proibições do art. 54, I e II, ou dos incisos II a VI do art. 55. As hipóteses mencionadas nos incisos I (incompatibilidade), II (procedimento do membro do Congresso Nacional incompatível com o decoro parlamentar) e VI (condenação criminal em sentença transitada em julgado), todas do art. 55, constituem335

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

casos de cassação, ou seja, a perda do mandato será decretada pela Câmara dosDeputados ou pelo Senado federal por voto secreto e maioria absoluta, medianteprovocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no CongressoNacional, assegurado ao acusado o direito de ampla defesa. Já as hipóteses previstas nos incisos III e V do art. SS se referem à extinção do mandato, que será declarada pelas Mesas da Câmara dos Deputados ou Senado Federal, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada também ampla defesa ao congressista.A Emenda Constitucional de Revisão n. 6, de 7 de junho de 1994, dispôs que arenúncia de congressista submetido a processo que vise ou possa levar à perda domandato, terá seus efeitos suspensos até as correspondentes deliberações finais. Trata-se de norma moralizadora, pois evita a utilização da renúncia como instrumento impeditivo da aplicação de eventual sanção a congressista.Ressalte-se que a Constituição de 1988 não previu a perda do mandato decongressista por infidelidade partidária. Cabe agora aos estatutos dos partidos políticos fixar as regras de fidelidade partidária.A perda do mandato de congressista, cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar, surgiu pela primeira vez na Constituição de 1946.O vigente texto constitucional, apesar de mencionar que é incompatível com o decoro parlamentar o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas (art. SS, § 1°), não esclarece o que se deve entender por decoro parlamentar, ficando assim a sua conceituação a cargo do regimento interno. Tem-se entendido que a falta de decoro parlamentar se caracteriza pela prática de atos que afetam a dignidade do mandato, inconciliáveis com as qualidades morais ou compostura que se exige dos congressistas.As regras referentes às incompatibilidades comportam exceções. A Constituição declara, no art. 56, as hipóteses que não acarretam perda do mandato: a investidura do congressista no cargo de Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Distrito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária, bem como se licenciado pela respectiva Casa por motivo de doença ou para tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que, nesse caso, o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa.Nessas hipóteses, será convocado o suplente e, não o havendo, far-se-á eleiçãopara preencher a vaga, se faltarem mais de quinze meses para o término do mandato.Assim, caso ocorra a vaga em período inferior a quinze meses, inexistindo suplente, permanecerá vago o cargo eletivo até a próxima legislatura.O exercício de cargo na esfera do Executivo por membro do Congresso Nacional, de regra proibitiva na Constituição de 1891 (art. S0, parágrafo único), declarando a perda do mandato eletivo de Deputado ou Senador, que, salvo missões diplomáticas, aceitasse cargo de Ministro de Estado, vem, no entanto, recebendo tratamento336

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOCondescendente ao longo do nosso constitucionalismo. A permissão para o congressista exercer cargo executivo, se compromete o princípio da separação dePoderes, vê-se justificada pela crescente necessidade de se estreitarem as relações entre Legislativo e Executivo, mediante proveitosa troca de experiências.

& 9 CONSIDERAÇÕES FINAISA tarefa de legislar não tem sido monopólio do Poder Legislativo, como seobserva na atualidade (delegação legislativa e medidas provisórias na Constituição brasileira). Esse fenômeno que permite ao Executivo legislar, embora sob o controle político do Legislativo, resulta, sobretudo, da inércia dos Parlamentos que, em virtude de mecanismos regimentais, neles incluída a obstrução parlamentar, concorre para a morosidade das deliberações legislativas. Por outro lado, a desvalorização da idéia de lei como norma geral, observável nos dias que correm, leva o Executivo a necessitar regularmente de leis de efeitos concretos, pois a ausência de normas gerais orientadoras da ação administrativa faz com que só se possa governar legislando.

Não obstante, ao Poder Legislativo, por corresponder à sociedade, cabe aindeclinável tarefa de preservar as liberdades e o Estado Democrático de Direito, intermediando o permanente diálogo entre governantes e governados.A renovação do Poder Legislativo brasileiro está relacionada com o exercíciopleno das tarefas que a Constituição de 1988 lhe atribuiu.Rapidez e eficácia na elaboração das leis, grandeza e autoridade nas relaçõescom o Poder Executivo concorrerão certamente para a afirmação do Poder Legislativo como Poder representativo e autêntico.337

Capítulo 17PROCESSO LEGISLATIVO

1 Introdução2 Noção de processo legislativo3 Atos do processo legislativo4 Espécies normativas5 Leis orçamentárias6 Plebiscito e referendo7 Processo legislativo nos Estados e Municípios8 Processo legislativo e controle da constitucionalidade9 Considerações finais

& 1 INTRODUÇÃOO Direito é a ciência que prevê o processo de sua própria criação. Assim, oprocesso legislativo que estuda a formação das leis reveste-se de significativa importância, na medida em que se concebe o Direito como complexo normativo.Neste trabalho abordamos o processo legislativo no sentido estritamente jurídico, muito embora segundo elucida Nelson de Sousa Sampaio, possa também ser entendido no sentido sociológico, quando se refere "ao conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em movimento os legisladores e ao modo como eles costumamproceder ao realizar a tarefa legislativa" (1), examinando-se, neste aspecto, a opinião pública, as crises sociais, os grupos de pressão, os acordos partidários, enfim, todos aqueles fatores que, de alguma forma, condicionam ou determinam a "demanda da lei".De outra parte, assinale-se com Raul Machado Horta que "o processo legislativo não existe autonomamente, como valor em si, pois é técnica a serviço de concepções políticas, realizando fins do Poder. Daí sua mutabilidade no tempo e na sua compreensão variada, refletindo a organização social, as formas de Governo e de Estado, a estrutura partidária e o sistema político" (2).

& 2 NOÇÃO DE PROCESSO LEGISLATIVOO processo legislativo compreende o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados pelos órgãos legislativos visando à formação de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções que, como espécies normativas, constituem o seu objeto. (3)Para Marcelo Caetano, o processo legislativo consiste na "sucessão ordenada dostrâmites a observar na elaboração dos atos normativos pelos órgãos colegiados constitucionalmente competentes para legislar, e das formalidades complementares". (4)

(1) SAMPAIO, Nelson de Sousa. O Processo Legislativo, p. 1.(2) HORTA, Raul Machado. O processo legislativo nas Constituições Federais. Revista de Informação Legislativa, 101/5.(3) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 452.(4) CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional, v. 2, p, 275.341

KILDARE GONÇALVES CARVALHONelson de Sousa Sampaio esclarece que o processo legislativo "prescreve acompetência e a Forma para a criação de normas de caráter geral, inclusive, portanto, das normas dos outros processos" (5).A expressão processo legislativo sugere dúvida, levantada por Manoel GonçalvesFerreira Filho, sobre o significado de legislativo no texto constitucional: "referir-se-á a esse adjetivo à matéria ou ao sujeito? E se ao sujeito, a qual sujeito, o Poder Legislativo ou o Legislador?" (6)Na realidade, considerando a matéria, no elenco dos objetos do processo legislativo se encontram atos de efeitos concretos, como as resoluções, e não se inserem outros de caráter abstrato, como os regimentos internos de cada Casa Legislativa ou dos Tribunais, e, considerando o sujeito, o processo legislativo inclui as emendas à Constituição, que não são elaboradas pelo legislador ordinário, mas pelo Poder Constituinte Derivado ou Poder de Revisão, e ainda trata das medidas provisórias elaboradas pelo Presidente da República, não obstante a possibilidade de se converterem em lei por manifestação do Legislativo (art. 62, parágrafo único).

& 3 ATOS DO PROCESSO LEGISLATIVOComeçaremos por examinar os atos do processo legislativo, da iniciativa àsanção e ao veto, para depois cuidarmos da promulgação e da publicação da lei como atos complementares.

& 3.1 IniciativaO primeiro ato do processo legislativo é a iniciativa. A iniciativa deflagra eimpulsiona o trâmite legislativo. Através dela o órgão legislativo competente encaminha projeto de lei, depositando-o junto à Mesa da Casa Legislativa competente (Câmara dos Deputados ou Senado Federal), objetivando sua aprovação, para afinal se converter em lei.A Constituição Federal, no art. 61, indica quais os órgãos ou pessoas competentes para apresentar projeto de lei complementar ou ordinária ao PoderLegislativo. Pela análise desse dispositivo, verifica-se que houve ampliação do poder de iniciativa, já que o ordenamento constitucional anterior, ao tratar da iniciativa geral, estabelecia como seus titulares número menor de órgãos ou pessoas. A Constituição de 1988 ampliou o elenco dos titulares do poder de iniciativa geral, incluindo neles o Procurador-Geral da República (art. 127, § 2°, e art. 128, § 5°), como também estabeleceu a iniciativa popular (art. 61, § 2°), mediante a qual os cidadãos que

(5) SAMPAIO, Nelson de Sousa. Op. cit., p. 3.(6) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo, p. 199.342

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOrepresentam 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados,com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles, poderão propor projeto de lei complementar ou ordinária à Câmara dos Deputados.A Emenda Constitucional n. 19/98, ao acrescentar o inciso XV ao art. 48 daConstituição, introduziu uma nova modalidade de iniciativa, a que denominamos deconjunta, que é aquela que indica que o poder de iniciativa pertence conjuntamente a mais de uma pessoa, pressupondo o consenso de vontades, para a deflagração do processo legislativo, no caso, traduzida no projeto de lei, que fixa o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, de iniciativa conjunta dos Presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal. Prevê, ainda, a Constituição a iniciativa reservada ou exclusiva, pela qual determinadas matérias somente poderão ser objeto de projeto de lei, se apresentados por único órgão legislativo. A iniciativa reservada se revela assim pela matéria que determina o órgão competente para o depósito do projeto de lei, sendo seus titulares:a) o Presidente da República, para a iniciativa das leis a que se refere o § 1° do art. 61 da Constituição: fixação ou modificação dos efetivos das Forças Armadas; criação de cargos,

empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade: organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, valendo notar que a competência para a iniciativa da lei de organização do Ministério Público da União e dos Estados é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, daí se tratar de iniciativaconcorrente com o Presidente da República e Governadores de Estado (art. 128, §5º), e, finalmente, criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da Administração Pública;b) Câmara dos Deputados, sobre assuntos exclusivos de seu interesse (art. 51,V), o mesmo ocorrendo com o Senado federal (art. 52, VIII);c) o Supremo Tribunal Federal, para a lei complementar que estabelecerá oestatuto da magistratura (art. 93) e para as leis de criação e extinção de cargos e fixação de vencimentos de seus membros e dos seus serviços auxiliares (art. 96, II, b);d) dos Tribunais Superiores, para as leis de alteração de cargos e fixação devencimentos de seus membros, dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver, e dos serviços auxiliares e dos juízes que lhes forem vinculados (art. 96, II, a, b e c). Vale dizer que é dos Tribunais de Justiça a iniciativa reservada para propor às Assembléias Legislativas projeto de lei de alteração da organização e divisão judiciárias (arr. 96, II, d).343

& 3.2 EmendaIniciado o processo legislativo, através do encaminhamento à Câmara ou ao Senado de projeto de lei (observe-se que a Câmara dos Deputados funciona comoCâmara iniciadora dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, dos Tribunais Superiores e dos cidadãos - art. 61, § 2°, e art. 64 da Constituição), ele ficará sobre a Mesa para receber emendas.A segunda fase do processo legislativo é a da emenda. Não se confunda a emenda como aro do processo legislativo com a emenda à Constituição como seu objeto (art. 60). Como ato do processo legislativo, a emenda é o acessório do principal (projeto de lei).A Constituição Federal de 1988 ampliou o poder de emenda dos parlamentares. Pela Constituição anterior, não se admitia emenda aos projetos de lei de iniciativa reservada do Presidente da Republica, desde que da emenda decorresse aumentoda despesa; agora, por força do art. 166, §§ 3° e 4°, da Constituição, os projetos do orçamento anual e das diretrizes orçamentárias podem ser emendados.As emendas podem ser aditivas, quando acrescentam algo ao projeto; supressivas, quando visam eliminar disposição ou parte do projeto; modificativas, quando visam alterar o projeto. Há uma emenda modificativa, que é chamada substitutivo,cujo objetivo é alterar substancialmente o projeto; aglutinativas, quando resultam da fusão de outras emendas ou destas com o texto, por transaçãa tendente ã aproximação dos respectivos objetos. Mencione-se ainda a subemenda, que é a emenda apresentada em Comissão a outra emenda, e pode ser supressiva, substitutiva ou aditiva.A quem cabe o poder de emenda? Se partirmos da idéia de que a emenda é umaproposição acessória apresentada a uma proposta principal (projeto de lei), ela seria um corolário do poder de iniciativa. Então, quem pode iniciar o projeto pode emendá-lo, inclusive o Presidente da República como titular extraparlamentar. Se, no entanto, entendermos que a emenda se situa em determinado momento da tramitação legislativa, poderíamos concluir que o poder de emenda cabe somente aos Congressistas ou às Comissões Parlamentares. Isto porque os titulares extraparlamentares não participam da fase legislativa em que as emendas são apresentadas. A prática parlamentar tem, contudo, admitido o exercício do poder de emenda dos titulares extraparlamentares, mediante a apresentação de mensagens aditivas.

& 3.3 Votação

A discussão e votação do projeto de lei se procedem mediante a manifestaçãodas duas Casas Legislativas. Não basta que o projeto seja aprovado na Câmara; se for aprovado na Câmara e rejeitado no Senado, não está aprovado. Só será aprovado pelas duas Casas Legislativas, ou seja, pela Casa iniciadora e pela Casa revisora. Não há exclusividade, seja da Câmara, seja do Senado, em atuar como Casa iniciadora. É de se observar, no entanto, que, pelo art. 64, há cerra primazia da Câmara dos Deputados344

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOcomo Casa iniciadora, pois os projetos de lei apresentados pelo Presidente daRepública, pelo Supremo Tribunal Federal, pelos Tribunais Superiores e pelos cidadãos deverão ser depositados na Mesa da Câmara. As hipóteses que poderão ocorrer nas relações entre Câmara iniciadora e revisora são: o projeto aprovado pela Casa iniciadora, se aprovado também pela Casa revisora, será encaminhado ao Presidente da República para sanção; se o projeto aprovado pela Casa iniciadora for rejeitado pela Casa revisora, será arquivado, porque não houve a manifestação do Poder Legislativo que compreende as duas Casas. A terceira hipótese é a aprovação do projeto de lei pela Casa iniciadora, mas emendado pela Casa revisora. De acordo com o parágrafo único do art. 65, o projeto emendado pela Casa revisora retorna à Casa iniciadora para que aprecie a emenda.No tocante à votação, é preciso ainda considerar que a Constituição eliminouo chamado decurso de prazo existente na Constituição anterior, em que o Presidente da República poderia encaminhar às Casas Legislativas projeto de lei de sua iniciativa e solicitar que a apreciação daquele projeto se fizesse em determinado prazo, sob pena de se considerar aprovado por decurso de prazo. Esse instituto foi muito criticado, porque possibilitava a aprovação de um projeto de lei sem a manifestação do Congresso Nacional. O decurso de prazo comprometia o ideal democrático. A Constituição vigente eliminou o decurso de prazo, mas manteve, no art. 64, § 1°, a chamada urgência para a apreciação de projeto de lei de iniciativa do Presidente da República. Se Câmara e Senado não apreciarem o projeto em até quarenta e cinco dias (prazo global), contados do seu recebimento, ele não se considera aprovado por decurso de prazo. O que ocorre é que esse projeto será incluído na ordem do dia para apreciação, sobrestando-se a deliberação sobre os demais assuntos até que se ultime a votação.

& 3.4 SançãoA Câmara que por último apreciou o projeto de lei o encaminhará ao Presidente da Republica para sanção.A sanção é a concordância, a aquiescência do Presidente da Republica a projetode lei aprovado pelo Legislativo. Não são suscetíveis de sanção ou de veto os projetos de emenda à Constituição, os decretos legislativos e as resoluções. A sanção pode ser expressa ou tácita. Sanção expressa é a dada por escrito; a tácita decorre do silêncio do Presidente da República no prazo de quinze dias úteis de que dispõe para sancionar (art. 66, § 3°).Observe-se que a Constituição não fixa expressamente o prazo para sanção.Refere-se ao prazo para o veto, que é o mesmo para a sanção (art. 66, §1°).

& 3.5 Veto Ao invés de concordar com o projeto, o Presidente da República (art. 66, § 1°)pode vetá-lo. O poder de veto equilibra, no sistema presidencial, a falta de prerrogativa345

do Presidente para dissolver a Câmara. O veto é a negativa ou a antítese da sanção.O veto, ao contrário da sanção, é sempre expresso, inexistindo veto tácito porque,decorridos os quinze dias úteis sem manifestação, presume-se que o projeto tenhasido tacitamente sancionado. O veto tem de ser motivado por inconstitucionalidadedo projeto, ou por ser o mesmo contrário ao interesse público, que se qualifica, por

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

exemplo, pelo seu distanciamento das diretrizes políticas, de governo e administrativas, ou econômicas, dentre outras, traçadas ou propostas pelo Presidente. O veto, em nosso Direito, é relativo e não absoluto. Relativo porque, vetado, o projeto de lei não se extingue, mas necessariamente retorna ao exame do Congresso Nacional, que vai dar a última palavra sobre se o projeto deve ou não ser aprovado. Para rejeitar o veto e assim aprovar o projeto (§ 4° do art. 66), exige-se o voto da maioria absoluta de Deputados e Senadores em escrutínio secreto. A Constituição de 1988 reduziu o quorum de rejeição do veto, que, pela Constituição anterior, era de dois terços dos membros de cada uma das Casas. O veto pode ser total ou parcial (§ 1° do art. 66). O veto total incide sobre todo o projeto de lei, e o veto parcial, sobre determinado dispositivo do projeto. De acordo com o § 2° do art. 66, o veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, parágrafo, inciso ou alínea. A prática constitucional mostrou que o veto parcial, incidindo sobre qualquer parte do projeto, como previsto na Constituição revogada, desvirtuava, muitas vezes, o sentido da proposta legislativa e transformava o Presidente em legislador.Michel Temer, com apoio em Nelson de Sousa Sampaio, acha que não andou bem a Constituição ao proibir o veto de palavras ou do conjunto delas, pois, segundo pensa:"a) o todo lógico da lei pode desfigurar-se também pelo veto, por inteiro, doartigo, do inciso, do item ou da alínea. E até com maiores possibilidades;b) se isto ocorrer - tanto em razão do veto da palavra ou de artigo -, o que severifica é usurpação de competência pelo Executivo, circunstância vedada pelo art. 2º da Constituição Federal."(7)

& 3.6 PromulgaçãoPromulgação, do latim promulgare, que significa publicar, dar a conhecer umalei, constitui ato complementar do processo legislativo. José Afonso da Silva, citando Laband, aponta as duas naturezas da promulgação: legislativa e executiva. Como ato de natureza legislativa, entende-se a promulgação como declaração de existência da lei, dizendo-se que sem promulgação não há lei; como ato de natureza executiva, a

(7) TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, p. 143-144.346

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOpromulgação não faz a lei, mas certifica a regularidade de seu processo de formação, assegurando-lhe a execução. (8)Num caso ou noutro, a promulgação não se confunde com a sanção, esta incidindo sobre o projeto e aquela sobre a lei.Os Constituintes de 1988 deixaram passar rara oportunidade para corrigir defeito do texto de 19G9, que falava em promulgação do projeto de lei (art. 59, § 3°,parte final da Constituição revogada), mantendo o mesmo equívoco no art. 66, § 5°, ao declarar que "se o vero for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente da República".A competência para promulgar a lei é do Presidente da Republica, que dispõedo prazo de quarenta e oito horas, contado do término dos quinze dias úteis, semque tenha sancionado o projeto (sanção tácita), ou da data em que recebeu o projeto aprovado pelo Congresso Nacional, depois de rejeitado o veto (art. 66, § 7°).Essa competência é sucessiva, pois, de acordo com o mencionado dispositivoconstitucional, se o Presidente da República não promulgar a lei no prazo acima referido, caberá ao Presidente do Senado a promulgação, no mesmo prazo de quarenta e oito horas, e, finalmente, caso não o faça, a competência recai no Vice-Presidente do Senado, sem sucessão. Tal circunstância impede a recusa, pelo Vice-Presidente do Senado, de promulgar a lei. Assim, caso não o faça, poderá vir a ser responsabilizado.E que a recusa do Vice-Presidente do Senado em promulgar a lei resulta nonão-cumprimento da Constituição, já que não se trata de projeto de lei, mas de lei sancionada por decurso de prazo ou porque o Congresso Nacional reafirmou o projeto, rejeitando o veto (art. 66, §§ 3° e 4°). E a própria Constituição diz

taxativamente constituir crime de responsabilidade os atos que atenrarem contra ela: assim pensam Luiz Bispo e Pontes de Miranda, dizendo este jurisconsulto que, "se o Vice-Presidente do Senado Federal não cumpre o que se lhe atribui o § 5° do art. 59 (da Emenda Constitucional n. 1/69), comete crime de responsabilidade (a lei ordinária pode e tem de apontar os crimes de responsabilidade; porém há casos em que já resulta a figura de alguma regra jurídica constitucional que estabeleça dever)". (9)Contra a tese da responsabilização do Vice-Presidente do Senado insurge-seNelson de Sousa Sampaio, ponderando que a norma constitucional que dispõe sobrea competência para a promulgação é uma norma imperfeita, como muitas do DireitoConstitucional. Assim, a tese da responsabilização do Vice-Presidente do SenadoFederal "somente procederia se a lei sobre os crimes de responsabilidade incluísse tal figura delituosa." E criticando a posição de Pontes de Miranda acima referida, diz ainda que "o nosso comentarista, ao examinar a quebra do dever de promulgar, refere-se apenas a crime de responsabilidade do Vice-Presidente do Senado - o que, se não for um cochilo, será, ao mesmo tempo, uma contradição e uma injustiça.

(8) SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no direito constitucional, p. 208-209.(9) PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969, v. 3, p. 191.347

KILDARE GONÇALVES CARVALHOO Vice-Presidente do Senado, então e hoje também o seu Presidente não estão sujeitos a impeachment. Ademais, seria inconcebível que a responsabilidade somente atingisse a última autoridade, na cadeia das encarregadas da promulgação dos projetos".(10) Sem criticar expressamente o ponto de vista de Pontes de Miranda, no sentido de se imputar crime de responsabilidade ao Vice-Presidente do Senado Federal, Manoel Gonçalves Ferreira Filho observa, também, como Nelson de Sousa Sampaio, que a lei que define tais crimes ignorou, contudo, essa figura delituosa (Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950), quanto à recusa de promulgação pelo Vice-Presidente do Senado."Note-se que, nas hipóteses de atos normativos de competência do CongressoNacional (decreto legislativo ou resolução de cada uma de suas Casas), a promulgação será de competência de seus Presidentes e não do Presidente da República, o mesmo ocorrendo com as emendas à Constituição, que serão promulgadas pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem (art. 60, § 3°). Ocorrendo sanção expressa, os atos da sanção e da promulgação se realizam num mesmo momento, embora sejam distintos, o que levou Nelson de Sousa Sampaio a qualificá-los de "atos xifópagos". (11)

& 3.7 PublicaçãoA publicação informa a existência e o conteúdo da lei aos seus destinatários.A competência para publicar recai sobre a autoridade que promulga. A Constituição não contém normas acerca da publicação, que é tratada na Lei de Introdução ao Código Civil (art. 1º).O veto parcial rejeitado pelo Congresso Nacional acarretará duas datas de vigência da lei: a da parte cujo veto foi rejeitado, esta última começando a vigorar a partir da publicação do ato promulgatório do dispositivo aprovado pelo Congresso Nacional.

& 4 ESPÉCIES NORMATIVASO processo legislativo tem por objeto as espécies normativas arroladas nos seteincisos do art. 59, que serão examinadas segundo sua natureza e o processo de sua elaboração.

& 4.1 Emendas à ConstituiçãoAs emendas à Constituição visam promover acréscimo, supressão ou modificação no texto constitucional.

(10) SAMPAIO, Nelson de Sousa. Op. cit., p. 87-88.

(11) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo... Op. cit., p. 265.(12) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo... Op. cit., p. 57.348

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOConstituem processos formais de mudança da Constituição, distinguindo-se dos processos informais de mutação constitucional que, segundo ensina Anna Cândida da Cunha Ferraz, são "a interpretação constitucional, em suas várias modalidades, os usos e costumes constitucionais. (13)É significativo insistir em que as mudanças constitucionais não se restringemàs emendas formais, mas, como esclarece a eminente publicista, "segundo Biscaretti di Ruffia, embora. a letra da Constituição permaneça inalterada, graças a fatores diversos, sofre modificações consideráveis que podem ser agrupadas em dois tipos.No primeiro, reúnem-se modificações operadas em virtude de atos elaborados porórgãos estatais: a) de caráter normativo (leis, regulamentos, etc.); b) de natureza jurisdicional (decisões judiciais, notadamente em matéria de controle de constitucionalidade das leis). No segundo grupo, as operadas em virtude de fatos: a) de caráter jurídico (tais como os costumes); b) de natureza político-social (tais como as normas convencionais ou as regras sociais de conduta correta frente à Constituição), ou simplesmente as práticas constitucionais (tais como a inatividade do legislador ordinário que, não elaborando normas de execução, logra, em substância, impedir a realização efetiva de disposições constitucionais)". (14)O processo legislativo das emendas à Constituição se acha descrito no art. 60da Constituição, não se confundindo com o processo de sua revisão, constante doart. 3° do Aro das Disposições Constitucionais Transitórias, prevista para ser realizada após cinco anos contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.Por ter sido o dispositivo de revisão transitório e não o reproduzindo a Constituição revista, houve apenas urna primeira e única revisão, encerrada no dia 31 de maio de 1994. (Sobre a revisão da Constituição de 1988, ver Capítulo 8, item 7.).São titulares do poder de iniciativa do projeto de emenda à Constituição: umterço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, oPresidente da República e mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (art. 60, I a III). A titularidade das Assembléias Legislativas constava das Constituições de 1891, art. 90; 1934, art. 178, § 1°, b, e § 2°; 1946, art. 217, § 1°; e 1967, art. 50, III, § 4°. A iniciativa popular não se aplica aos projetos de emenda à Constituição. Inovação constante do texto constitucional de 1988 refere-se à discussão e votação da proposta de emenda em cada Casa do Congresso Nacional e não em reunião conjunta dessas duas Casas, considerando-se aprovada a emenda que obtiver, em ambas, três quintos (e não dois terços, como ocorria anteriormente) dos votos dos respectivos membros (art. 60, § 2°).

(13) FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição, mutações constitucionais e mutações inconstitucionais, P. 13.(14) FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op. cit., p. 12.349

KILDARE GONÇALVES CARVALHOHouve ampliação das cláusulas pétreas, entendidas assim as irreformáveis porvia de emenda. Declara o texto constitucional que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, e os direitos e garantias individuais.Dispõe ainda a Constituição que a matéria constante de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de emenda na mesma sessão legislativa(art. 60, § 5°), pouco importando que a proposta tenha partido do Presidente daRepública, que não poderá renová-la na mesma sessão legislativa anual.A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal,de estado de defesa ou de estado de sítio (arr. 60, § 1°), pois em tais circunstâncias não há clima

de liberdade para a plenitude da manifestação do Poder de Emenda.A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem (art. 60, § 3°).

& 4.2 Leis complementaresAs leis complementares não são tipificadas pela Constituição segundo critérioontológico. Caracterizam-se pelos assuntos que a Carta lhes reserva e pelo quorum de aprovação. Assim, aquelas matérias indicadas na Constituição como próprias de lei complementar não podem ser tratadas pelas leis ordinárias, que não têm força para modificar preceitos nela contidos, salvo se cuidarem de assuntos de lei ordinária. A Constituição exige, no art. 69, o voto da maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional para a aprovação de projeto de lei complementar, resultando daí maior dificuldade para sua elaboração.Debate-se acerca da hierarquia da lei complementar em relação â lei ordinária.A doutrina que admite a superioridade hierárquica entre a lei complementar e a ordinária utiliza-se de três critérios: a) a posição topográfica da lei complementar no texto constitucional (art. 59,II), logo abaixo das emendas à Constituição, revelaria sua posição hierárquica entre as regras jurídicas componentes do ordenamento jurídico brasileiro;b) formalmente, a lei complementar é superior à lei ordinária, pois esta nãopode alterá-la, mas, ao contrário, a lei complementar revoga e altera a lei ordinária;c) o quorum especial e qualificado exigido pela Constituição para a aprovaçãoda lei complementar (maioria absoluta dos membros das duas Casas do CongressoNacional) conferiria à lei complementar uma superioridade formal com relação à lei ordinária.Examinando a eficácia e a hierarquia da lei complementar, José Souto MaiorBorges, em substancioso estudo, mostra o equívoco dos que, com base nos três critérios350

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOacima referidos, sustentam a tese da hierarquia daquela espécie normativa, dizendo, em síntese:a) "concluir pela supremacia hierárquica de lei complementar - porque ela está situada, na enunciação das categorias legislativas pelo art. 46 (referia-se à Emenda Constitucional n. 1/69), logo abaixo das emendas constitucionais - é tão descabido quanto sustentar que as leis delegadas (n. 4) e os decretos-leis (n. 5), porque situados abaixo das leis ordinárias (n. 3) estão hierarquicamente numa posição inferior a estas";b) a superioridade formal da lei complementar sobre a lei ordinária não significa, contudo, que se admita a possibilidade de que aquela espécie normativa possa revogar lei ordinária. Sustenta então o referido publicista que "os campos da lei complementar e da lei ordinária, em princípio, não se interpenetram, numa decorrência da técnica constitucional de distribuição ratione materiae de competência legislativa", para então concluir que "não se coloca o problema da revogação das leis quando estamos diante de campos legislativos distintos. Do mesmo modo, a inobservância do quorum especial e qualificado e a extravasão do seu âmbito material de validez não possibilitam sequer o aperfeiçoamento existencial de ato legislativo, como lei complementar";c) não é o quorum especial previsto para a aprovação de lei complementar que lheconfere uma superioridade formal com relação à lei ordinária, pois tal quorum é tão-somente um requisito de existência e não um requisito de eficácia da lei complementar: situa-se na fase de elaboração da lei e não na sua fase executiva, sendo, portanto, irrelevante para, com base nele, admitir-se a hierarquia formal da lei complementar. (15)Pela inexistência da hierarquia entre as duas espécies normativas também seposicionam, além de José Souto Maior Borges, eminentes juristas, como Pontes deMiranda, Celso Bastos e Michel Temer.

& 4.3 Leis ordináriasO procedimento de elaboração das leis ordinárias é o comum, segundo terminologia de José Afonso da Silva,(16) compreendendo as seguintes fases:a) introdutória, em que ocorre a apresentação do projeto;b) exame do projeto pelas Comissões parlamentares permanentes, onde ocorre seu estudo e se

abre a possibilidade de emendas;c) discussões, onde ainda se admitem emendas;

(15) BORGES, José Souto Maior. Eficácia e hierarquia da lei complementar. RDP 25/93.(16) SILVA, José Afonso da. Curso... Op. cit., p. 456.351

KILDARE GONÇALVES CARVALHOd) decisória, ou seja, aprovação ou rejeição do projeto, observando-se que oquorum de aprovação do projeto é o da maioria simples de votos, presente a maioria absoluta dos membros da Casa Legislativa (art. 47);e) revisória, onde o projeto aprovado será revisto pela outra Casa, passandopelas mesmas fases anteriores, observando-se que haverá, na Casa revisora, apenas um turno de votação.O campo de abrangência da lei ordinária é o residual, vale dizer, cabe-lhe dispor sobre todas as matérias que, a juízo do legislador, devem ser normatizadas. Há, contudo, algumas matérias vedadas à lei ordinária: a primeira delas consiste naquelas reservadas à lei complementar, vindo depois as de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49), e as privativas da Cãmara dos Deputados e do Senado Federal (arts. 51 e 52), as quais, por serem tratadas em decretos legislativos ou resoluções, excluem a sanção do Presidente da República.

& 4.4 Leis delegadasA Constituição cuida, na parte relativa ao processo legislativo, da delegação externa, entendida como a autorização concedida pelo Congresso Nacional ao Presidente da República, para a elaboração de leis delegadas (art. 68). A delegação interna vem prevista no art. 58 § 2º, que trata das Comissões, consistindo na discussão e votação por Comissões permanentes, de projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa.A delegação externa, que a princípio sofreu resistência, por constituir violaçãoao princípio da separação de Poderes, tem sido hoje aceita como mecanismo necessário para possibilitar a eficiência do Estado, em razão da inércia dos parlamentos.Acentue-se, todavia, que, para preservar a idéia de separação de Poderes do Estado Democrático de Direito, não se deve permitir que a delegação abranja qualquer matéria. A restrição se acha na Constituição de 1988 (art. 68, § 1°), que enumera, como insuscetíveis de delegação, os atos de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, a legislação sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros, nacionalidade, cidadania, direitos políticos e eleitorais, planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.

& 4.5 Medidas provisóriasPretende-se que as medidas provisórias previstas no art. 62 da Constituiçãoencontrem inspiração no art. 77 da Constituição da Itália de 1947, que assim dispõe:

"quando em casos extraordinários de necessidade e de urgência o Governo adote, sob sua responsabilidade, medidas provisórias (provvedimenti352

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOprovvisori) com força de lei, deverá apresentá-las no mesmo dia para suaconversão às Câmaras, as quais, inclusive achando-se dissolvidas, serão devidamente convocadas e se reunirão dentro dos cinco dias seguintes.Os decretos perderão todo efeito desde o princípio, se não forem convertidos em leis (convertiti in legge) dentro de sessenta dias de sua publicação. As Câmaras poderão, sem embargo, regular mediante lei as relações jurídicas surgidas em virtude dos decretos que não tenham sido convertidos".O dispositivo constitucional brasileiro está assim redigido:"Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas

provisórias, com força de lei, devendo submetê-las deimediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicasdelas decorrentes".Simples comparação dos dois textos revela que, no sistema italiano, a medida provisória será baixada pelo governo, sob sua responsabilidade, o que é naturalem se tratando de regime parlamentar, porquanto o governo corre o risco de atéser destituído, caso o Parlamento não aprove os provvedimenti provvisori, tendo assim o governo o dever de acertar, sob pena de responsabilidade política. Outroaspecto revelado pelo art. 77 da Constituição italiana reside em que, na hipótese de rejeição das medidas provisórias, o Parlamento poderá regular, mediante lei, as relações jurídicas delas decorrentes.As medidas provisórias na Constituição brasileira são instrumentos que, setêm pressupostos semelhantes aos da Constituição italiana, apresentam diferençasprofundas quanto aos efeitos. É que, sendo editadas em regime presidencial de governo, sua rejeição pelo Congresso Nacional não implica a responsabilidade política nem a destituição do Presidente da República que, ao baixá-las, não terá sempre que considerar ou se preocupar com o acerto dessas medidas no plano de governo.No que respeita aos efeitos da não-aprovação das medidas provisórias, enquanto pela Constituição italiana as Câmaras dispõem da faculdade de disciplinar,mediante lei, as relações jurídicas delas decorrentes, a Constituição brasileira estabelece como dever essa providência (art. 62, parágrafo único).Se a abrangência das medidas provisórias é mais ampla do que os extintos decretos-leis previstos na Constituição anterior, por outro lado sua previsão decorre da necessidade de, contemporaneamente, não se desconhecer a participação do Executivo na atividade normativa, seja pela inércia do Legislativo, seja pela circunstância de que a tarefa de governar envolve e depende, hoje mais do que antes, da atividade legislativa.353

KILDARE GONÇALVES CARVALHOO então Consultor-Geral da República, Saulo Ramos, sustentou a tese da possibilidade da reedição de medida provisória, rejeitada pelo Congresso Nacional ou não apreciada no prazo de trinta dias (art. 62, parágrafo único), uma vez que essas hipóteses não acarretariam a eficácia extintiva das razões de necessidade, urgência e relevância que justificaram a sua edição, mantendo-se, assim, a prerrogativa presidencial de entender permanecerem as condições para a reedição da medida. (17)Contrariamente a esse entendimento, posicionam-se eminentes juristas (TércioSampaio Ferraz Jr., Fábio Konder Komparato, Guilherme Stussi Neves). Ivo Dantas, em estudo sistematizado sobre a matéria, sustenta veementemente, a impossibilidade da reedição da medida provisória, seja em virtude de sua rejeição pelo Congresso Nacional, seja por não ter sido apreciada no prazo constitucional de trinta dias. Argumenta o ilustre constitucionalista que "o instituto das medidas provisórias representa uma exceção à função legiferante do Poder Legislativo (apenas quanto à iniciativa), pois a titularidade de julgar a oportunidade da lei, representada no conteúdo do art. 62 da Constituição pela expressão `relevância e urgência', permanece nas mãos do Congresso Nacional; rejeitada, expressamente, pela sua não conversão em Lei, ao Poder Executivoé vedado reeditar medida provisória, ainda que com algumas variações, mas desde que o assunto seja o mesmo; e o silêncio do Congresso Nacional durante os trinta dias previstos no parágrafo único do art. 62 da Constituição, não se pronunciando sobre a medida provisória, implicará em rejeição da mesma, o que representa, no espírito total da Constituição, o inverso do art. 55, § 1°, combinado com o art. 51, § 3°, do texto de 67/69, que, no silêncio do Parlamento, produzia efeitos favoráveis ao Executivo, ou seja, sua aprovação pelo decurso de prazo". (18)Pondere-se, todavia, que a reapresentação de medida provisória, não apreciada

no prazo de trinta dias, fica na dependência de sua admissibilidade pelo Legislativo, que poderá aceitá-la, entendendo presentes os pressupostos de relevância e urgência.Pela Emenda Constitucional n. 6, de 15/8/95, ficou vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sidoalterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995.Foi ainda vedada a adoção de medida provisória: a) pela Emenda Constitucional n. 8, de 15/8/95, para a regulamentação do disposto no inciso XXI do art. 21 daConstituição; e b) pela Emenda Constitucional n. 9 de 9/11/95, para a regulamentação de matéria prevista nos incisos I a IV e dos §§ 1° e 2° do art. 177 da Constituição.

& 4.6 Decretos legislativosOs decretos legislativos são "as leis a que a Constituição não exige a remessa ao Presidente da República para a sanção (promulgação ou veto)", declara Pontes de Miranda. (19)

(17) PARECER SR-92, de 21/6/89. DOU de 23/6/89.(18) DANTAS, Francisco Ivo Cavalcanti. Aspectos jurídicos das medidas provisórias, p. 102-103.(19) PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969, v. 3, p. 142.354DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPara José Afonso da Silva, decretos legislativos são "atos destinados a regularmatérias de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49) que tenham efeitos externos a ele; independem de sanção e de veto". (20)A Constituição conferiu ao Congresso Nacional competência exclusiva (a serexercida sem a sanção ou veto presidencial). Portanto, as matérias que tenham efeitos externos e que se enquadrem no âmbito da competência privativa do Congresso serão disciplinadas através de decreto legislativo, promulgado pela Mesa.

& 4.7 ResoluçõesSe os decretos legislativos são atos destinados a disciplinar matéria de competência exclusiva do Congresso Nacional com efeitos externos, as resoluções têm a mesma natureza, porém com efeitos internos, (21) acrescentando-se que as matérias de competência exclusiva de cada Casa Legislativa (arts. S1 e 52) serão reguladas por resoluções.

& 5 LEIS ORÇAMENTÁRIASA Constituição indica, em seu art. 165, as leis orçamentárias: lei do planoplurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei do orçamento anual.Essas espécies normativas têm formação legislativa especial. A iniciativa para sua propositura é reservada ao Presidente da República. Trata-se de iniciativa vinculada, impondo a Constituição a apresentação do projeto, pelo Chefe do Executivo, no prazo que vier a ser fixado em lei complementar (art. 84, XXIII e art. 165, § 9°, I). Entende Manoel Gonçalves Ferreira Filho que "essa obrigação é sancionada como crime de responsabilidade, conforme permite o art. 85, VI, da Constituição, segundo o art. 10 da Lei n. 1.079 de 1950 que o define". (22)A apreciação das leis orçamentárias será feita pelas duas Casas do CongressoNacional, na forma do regimento comum (art. 166). As emendas serão apresentadasna Comissão mista, que sobre elas emitirá parecer, para apreciação do Plenário da Câmara dos Depurados e do Senado Federal. Se tiverem por objeto modificar a lei do plano anual, não poderão ser com ele incompatíveis (art. 166, § 4°).A Constituição ampliou o poder de emenda dos parlamentares, eis que poderãoagora alterar a destinação da despesa. Mas, neste caso, deverão indicar os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação da despesa que não se refiram a dotações de pessoal e seus encargos, serviço da dívida, transferências tributárias constitucionais para os Estados, Municípios e Distrito Federal, ou sejam relacionadas com a correção de erros ou omissões ou com dispositivo do texto do projeto de lei.

(20) SILVA, José Afonso da. Curso... Op. cit., p. 452.(21) SILVA, José Afonso da. Curso... Op. cit., p. 452.(22) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 165.355

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA Constituição prevê a hipótese de rejeição ou de veto total ao projeto de leiorçamentária anual, caso em que poderão ser utilizados créditos adicionais (especiais ou suplementares) com prévia e específica autorização legislativa (art. 16G, § 8°). O projeto de lei de diretrizes orçamentárias não comporta rejeição, pois o art. 57, § 2° prescreve que não se interromperá a sessão legislativa anual sem a sua aprovação (23).

& 6 PLEBISCITO E REFERENDOO plebiscito e o referendo constituem institutos da democracia semidireta ouparticipativa (art. 14, I e II).A Constituição, no art. 49, XV, confere ao Congresso Nacional competênciapara autorizar referendo ou convocar plebiscito, podendo a lei ordinária estabelecer os critérios e as circunstâncias em que ocorrerão. Note-se, no entanto, que a própria Constituição já previu um plebiscito para o dia 7 de setembro, antecipado para 21 de abril de 1993, quando o eleitorado definiu a forma (república) e o sistema de governo (presidencialismo) que deverão vigorar no País (art. 2° do Ato das Disposições Transitórias), bem como, na parte permanente da Constituição (art. 18, §§ 3° e 4°), há a exigência de plebiscito para a criação de novos Estados e Municípios.A distinção entre as duas modalidades de consulta direta ao eleitorado está emque, no referendo, a deliberação popular aprova ou rejeita ato legislativo ou lei constitucional, e, no plebiscito, o povo é chamado a se manifestar acerca de questão ou fato político ou institucional, normalmente antes de sua concretização normativa. (24)

& 7 PROCESSO LEGISLATIVO NOS ESTADOS E MUNICÍPIOSA Constituição de 1988 não reproduziu cláusula da anterior, segundo a qualos Estados federados se sujeitavam à observância de princípios relativos ao processo legislativo (art. 13, III, da Emenda Constitucional n. 1/69).Há, portanto, maior liberdade do constituinte estadual no tocante às regras deelaboração legislativa.Não obstante, a Constituição em vigor determinou que "a lei disporá sobre ainiciativa popular no processo legislativo estadual" (art. 27, § 4°), o mesmo ocorrendo com relação aos Municípios, ao impor-Ihes a obrigação de instituir iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, 5% do eleitorado (art. 29, XIII).

(23) SILVA, José Afonso da. Curso.... Op. cit., p. 622.(24) COSTA, Elcias Ferreira da. Comentários breves à Constituição Federal, p. 62.356

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOÉ, contudo, de todo conveniente a adoção, pelos Estados federados, de um processo legislativo harmônico com o da Constituição Federal, a fim de que se preserve o equilíbrio federativo.Nada impede a adoção, pelos Estados federados ou Municípios, das medidas provisórias, embora a rigor não haja motivos de ordem local que justifiquem suaintrodução nas Constituições estaduais ou nas leis orgânicas municipais.

& 8 PROCESSO LEGISLATIVO E CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADEHá inconstitucionalidade formal quando a lei foi elaborada em desacordo comas normas previstas para sua criação, incluindo-se a incompetência do órgão que a emitiu. A inconstitucionalidade material decorre da incompatibilidade do conteúdo da norma com o texto constitucional.

Constata-se, portanto, relação entre o controle da constitucionalidade e asregras do processo legislativo, pois, se violadas, haverá a aprovação de leiinconstitucional.A Constituição prevê, como modos de controle, o preventivo ou a priori, que sesitua no plano do processo legislativo, e o repressivo ou a posteriori, que incide sobre a lei promulgada.O controle preventivo é, sobretudo, político, pois se inicia com o exame doprojeto pelas Comissões parlamentares, que poderão rejeitá-lo por inconstitucionalidade sendo ainda exercido pelo Presidente da República através do veto (art. 66, § 1°), depois que foi o projeto aprovado pelo Congresso Nacional.Questão polêmica tem sido a de considerar se a sanção supre o defeito de iniciativa do projeto. Manoel Gonçalves Ferreira Filho discute amplamente a questão, concluindo pela não-convalidação da iniciativa embora haja respeitáveis pontos de vista pela convalidação, como os de José Afonso da Silva, Themístocles Cavalcanti e Seabra Fagundes, entre outros publicistas. (25)Segundo José Afonso da Silva, "a sanção supre a falta de iniciativa governamental para a formação de leis de iniciativa exclusiva do Executivo. A regra de reserva tem como fundamento pôr na dependência do titular da iniciativa a regulamentação dos interesses vinculados a certas matérias. Não se trata de adotar aqui a tendência que distingue as cláusulas constitucionais em diretórias e mandatórias. Pois a regra de reserva é imperativa no que tange subordinar a formação da lei à vontade exclusiva do titular de iniciativa. Ora, essa vontade pode atuar em dois momentos: no da iniciativa e no da sanção. Faltando a sua incidência, o ato é nulo; mas se ela incidir, com a sanção, satisfeita estará a razão da norma de reserva. (26) (25) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo... Op. cit., p. 218-224.(26) SILVA, José Afonso da. Princípios..., Op. cit., p. 191.357

KILDARE GONÇALVES CARVALHOPondere-se, contudo, com Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que sustenta atese da não-convalidação, que "a validade de qualquer ato derivado da Constituição depende de sua concordância com a Constituição. Depende, mais precisamente, da observância dos requisitos formais e substanciais estabelecidos na Constituição. ...No plano estritamente jurídico, a tese da convalidação contradiz um dos postulados que a doutrina italiana aponta a respeito do ato complexo. De fato, segundo o ensinamento dessa doutrina, `não é válido um ato complexo se não são válidos todos os elementos que devem concorrer à sua formação'. Destarte, não sendo válida a iniciativa seria inválida a lei, apesar da sanção posterior." (27)O Supremo Tribunal Federal, (28) ainda na vigência da Emenda Constitucional n.1/69, adotou a tese da não-convalidação, alterando a Súmula n. 5, que admitia aconvalidação. Acatou, assim, a tese da natureza obrigatória e vinculativa das regras do processo legislativo. A inconstitucionalidade por omissão vem prevista no art. 103, § 2°: "declaradaa inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias".A inconstitucionalidade por omissão é tema referente ao silêncio do legisladorque não edita as leis necessárias para conferir operatividade às normas constitucionais não exeqüíveis.Daí a ação de inconstitucionalidade por omissão, que visa obter do Poder Judiciário declaração no sentido de que da inércia decorre a inconstitucionalidade. A dificuldade (e neste ponto é que o tema se relaciona com o processo legislativo) está nos efeitos práticos da sentença que acolhe a inconstitucionalidade por omissão. Se a omissão for de medida administrativa, a Constituição estabelece o prazo de trinta dias para sua concretização. Se, no entanto, for do legislador, dá-se apenas ciência ao Poder Legislativo da decisão, pois, em razão do princípio da separação de Poderes (art. 2°), não há como compelir o Legislativo a criar a lei, desde que nada se pode contra a inércia do legislador.

& 9 PROCEDIMENTO LEGISLATIVOCostuma-se distinguir processo de procedimento legislativo. Este último tsido entendido como cada um dos ritos do processo legislativo.Para José Afonso da Silva, "o procedimento legislativo é parte do processoformação das leis. Este constitui os princípios abstratos, estáticos de que o procedimento

(27) FERREIA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso... Op. cit., p. 172.(28) BRASÍLIA, STF, Representações 890-GB (RTJ 626/64) e 1.051-GO (DJ de 15/5/81).358

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOé o fator concreto e dinâmico; é, por assim dizer, o processo em movimentopara atingir o fim a que se propõe: a formação da lei. (29)Levando em conta o Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, são identificados seis tipos de procedimento legislativo:1. procedimento legislativo normal ou comum;2. procedimento legislativo abreviado;3. procedimento legislativo sumário;4. procedimento legislativo sumaríssimo;5. procedimento legislativo concentrado;6. procedimento legislativo especial.É importante esclarecer que a matéria que se submete ao processo legislativotem a forma de proposição. E, segundo dispõe o art. 100 do Regimento Interno daCâmara dos Deputados, proposição é toda matéria sujeita a sua deliberação, podendo consistir em proposta de emenda à Constituição, projeto, emenda, indicação, requerimento, recurso, parecer e proposta de fiscalização e controle.O procedimento legislativo normal ou comum aplica-se à elaboração das leis ordinárias. Dele são, no entanto, excluídas as leis financeiras (plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamentos anuais e projetos de abertura de crédito adicional) e os códigos.O procedimento se verifica nas Comissões Permanentes e no Plenário de cada uma das Casas Legislativas. É iniciado com a apresentação e a leitura do projetorealizada em Plenário; prossegue nas Comissões Permanentes, as quais, depois deestudá-lo e debatê-lo, emitem parecer, com o pronunciamento de todas as Comissões a que tenha sido distribuído, o projeto vai a Plenário (fase de discussão e votação).À exceção das proposições apresentadas por Senador ou Comissão do Senado e das que se sujeitam a reunião conjunta do Congresso Nacional, todos os projetosde lei têm seu procedimento legislativo iniciado na Câmara dos Deputados (Constituição Federal, art. 61, § 2°, e 64).Haverá. antecipação do término do procedimento legislativo, nas hipóteses dedeclaração de prejudicialidade ou arquivamento. São consideradas prejudicadas: aproposição idêntica a outra aprovada ou rejeitada na mesma sessão legislativa: aquela que tiver substitutivo aprovado ou for semelhante a outra consideradainconstitucional; aquela cujo objeto perdeu a oportunidade, entre outras (Regimento Interno da Câmara, arts. 163 e 164). Dá-se o arquivamento, dentre outras hipóteses, por sugestão da Comissão (art. 57, IV), quando todas as Comissões de mérito dão parecer contrário (art. 133) e ao fim da legislatura (art. 105, caput).

(29) SILVA, José Afonso da. Princípios ... Op. cit., P. 239.359

KILDARE GONÇALVES CARVALHOAs emendas à proposição são oferecidas tanto na Comissão quanto no Plenário (fase de discussão), hipótese em que retorna às Comissões Técnicas.Os projetos de lei ordinária sujeitam-se, de regra, a turno único de discussão evotação; os de lei complementar, a dois turnos, salvo na Casa revisora.

Com o encerramento da discussão, os projetos são votados. O quorum para aprovação é o da maioria simples de votos, presente a maioria absoluta dos membros da Casa Legislativa. No caso de lei complementar, o quorum para aprovação é o da maioria absoluta dos membros de cada Casa Legislativa (Constituição Federal, art. 69).Aprovada a redação final, o projeto é encaminhado à Casa revisora, onde se repete todo o procedimento. Se receber novas emendas, voltará à Casa iniciadora,que se limitará a aprovar ou rejeitar as emendas, proibida a subemenda. Rejeitadas ou aprovadas as emendas, a Casa de origem envia o projeto para a sanção. Se não houver emenda ao projeto, caberá à Casa revisora remeter o projeto para a sanção.O procedimento legislativo abreviado dispensa a competência do Plenário, já que a deliberação terminativa ocorre nas próprias Comissões permanentes (art. 58,§ 2°, I, da Constituição Federal).Consta dos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados (art. 24, II) e doSenado Federal (art. 91) que esse procedimento não se aplica a projetos de lei complementar; projetos de códigos; projetos de lei de iniciativa popular, matéria não delegável, mencionada no § 1° do art. 68 da Constituição Federal: projetos de lei de Comissões; projetos de lei oriundos da outra Casa do Congresso, onde tenham ido a Plenário; projetos de lei com pareceres divergentes; projetos em regime de urgência. Apesar de conferir celeridade ao processo, as Casas Legislativas, como se observa, reduziram sobremaneira a utilização do procedimento abreviado. Note-se ainda que a Constituição Federal contribuiu para a redução da utilização do rito abreviado, ao prever que um décimo dos membros da Casa Legislativa correspondente possa recorrer da decisão das Comissões, para o Plenário (art. 58, § 2°, I, parte final).O procedimento legislativo sumário é o que se aplica aos projetos de lei deiniciativa do Presidente da República (excluídos os códigos), cuja mensagem de encaminhamento traga a solicitação presidencial no sentido de urgência (art. 64, §§ 1° a 4°, da Constituição Federal).O prazo de quarenta e cinco dias para a tramitação do projeto é global (não setrata quarenta e cinco + quarenta e cinco dias), devendo ser o mesmo incluído naordem do dia, sobrestando a votação sobre os demais assuntos até que se ultime avotação (Constituição Federal, art. 64, § 2°).O procedimento legislativo sumaríssimo decorre de mecanismo regimental que assegura deliberação instantânea sobre matérias submetidas à apreciação dasCasas do Congresso Nacional. É o regime conhecido informalmente por "urgência urgentíssima", previsto noart. 155 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e art. 336, alíneas a e b, do Regimento Interno do Senado Federal.360

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICONele, todas as formalidades regimentais, entre elas os prazos, mas excluídas asexigências de quorum, pareceres e publicações, são dispensadas.Em se tratando de matéria de relevante e inadiável interesse nacional, é suficiente que, na Câmara dos Deputados, líderes com representação de metade mais um dos Depurados, ou a maioria absoluta destes, requeiram a urgência urgentíssima para a proposição entrar automaticamente na ordem do dia, em discussão e votação imediata (art. 155 do Regimento Interno).No Senado Federal, da mesma forma, quando se trata de matéria que envolvaperigo para a segurança nacional ou calamidade pública, ou simplesmente quando se pretende incluir a matéria na mesma sessão, aplica-se o procedimento sumaríssimo.O procedimento legislativo concentrado é o que envolve a apreciação de matérias sujeitas à reunião conjunta de Deputados e Senadores (medidas provisórias, leis financeiras e leis delegadas). Cada uma destas matérias se sujeita a um procedimento próprio.As medidas provisórias previstas no art. 62 da Constituição Federal têm o seuprocedimento legislativo tipificado na Resolução n. 1, de 1989, do Congresso Nacional.Com a notícia da publicação da medida provisória no Diário Oficial da União, oPresidente do Congresso Nacional, nas quarenta e oiro horas seguintes, determina a distribuição

de avulsos com o texto da medida provisória, e designa Comissão mista para estudá-la e emitir parecer (art. 2° da Res. 1/89-CN).Apresentada emenda parlamentar, o relator apresentará necessariamente projeto de lei de conversão (art. 7°, § I °, da Res. 1/89-CN).Transformada a medida provisória em projeto de lei de conversão, será ele, depois de aprovado, remetido ã sanção do Presidente da República.Rejeitada ou não apreciada a medida provisória no prazo de trinta dias contadosde sua publicação, uma Comissão mista elaborará projeto de decreto legislativo para disciplinar as relações jurídicas decorrentes de sua vigência. A tramitação desse projeto de decreto legislativo terá início na Câmara dos Deputados (art. 17 da Res. 1/89-CN).O procedimento legislativo das leis orçamentárias refere-se ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamentos anuais e projetos de abertura decrédito adicional.A deliberação sobre tais projetos ocorrerá em sessão conjunta do CongressoNacional, depois de parecer emitido por uma Comissão mista, que os poderá emendar, na forma do art. 166, §§ 3° e 4°, da Constituição Federal.O Presidente da República, se pretender modificar as proposições orçamentárias, poderá enviar ao Congresso Nacional mensagem aditiva, desde que a Comissãomista não tenha ainda votado a parte a alterar (arts. 166, § 5°, da ConstituiçãoFederal).As leis delegadas estão previstas no art. 68 da Constituição Federal.A delegação legislativa vem tratada nos arts. 116 a 127 do Regimento Comum.361

KILDARE GONÇALVES C.ARVALHOA proposta de delegação será encaminhada pelo Presidente da República aoPresidente do Senado Federal, que convocará sessão conjunta para, dentro de setenta e dois horas, dela tomar conhecimento (art. 119 do Regimento Comum). Na sessão conjunta, com a distribuição da matéria em avulsos, será constituída Comissão mista para emitir parecer sobre a proposta.O parecer concluirá pela apresentação de projeto de resolução, em que se especificará o conteúdo da delegação, os termos de seu exercício e a fixação de prazo, não superior a quarenta e cinco dias para a remessa do projeto de lei delegada à apreciação do Congresso Nacional (Regimento Comum, art. 119, § 2°, e Constituição Federal, art. 68).O parecer será discutido em sessão a realizar-se cinco dias após a distribuição de avulsos com o seu texto. Encerrada a discussão, havendo emendas, a matériaretorna à Comissão mista.Em caso contrário, vai o parecer à votação. Proferido parecer sobre as emendas,convoca-se a sessão de votação.Aprovado o projeto de resolução, este será promulgado em vinte e quatro horas, comunicando-se o fato ao Presidente da República.Determinando a resolução do Congresso Nacional que a votação do projeto se faça pelo Plenário, este ao recebê-lo examinará sua conformidade com o conteúdoda delegação, e votará o projeto em bloco, admitido o destaque de partes que, segundo a Comissão, haja extrapolado o ato de delegação. Não poderá, nesta fase, haver emendas (art. G8, § 3°, da Constituição Federal).A delegação será considerada insubsistente, caso o Presidente da República nãoremeta o projeto de lei delegada à apreciação do Congresso Nacional no prazo assinalado pelo parecer da Comissão mista (arts. 119, § 2°, e 127, do Regimento Comum).O procedimento legislativo especial aplica-se, com ritos distintos, à elaboração de emendas à Constituição e à de códigos.A emenda à Constituição pode ser proposta a qualquer tempo (não há limitação temporal, que é prevista apenas para a revisão constitucional; neste caso, após cinco anos contados da promulgação da Constituição, conforme consta doart. 3° do ADCT).Não cabe, todavia, emenda durante intervenção federal, estado de defesa ou de

sítio, nem será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma Federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de Poderes e os direitos e garantias individuais.É necessário, ainda, que o objeto da emenda não constitua matéria rejeitada ouprejudicada na mesma sessão legislativa (art. 60, §§ 1° a 5° da Constituição Federal).A iniciativa da proposta de emenda compete a um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ao Presidente da República e às Assembléias Legislativas (mais da metade delas com o voto da maioria relativa de seus membros - art. 60, I a III).362

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOHaverá dois turnos em cada uma das Casas do Congresso. Uma vez aprovada, a emenda será promulgada pelas mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, inexistindo, assim, sanção presidencial.O Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê o rito da emenda constitucional no arr. 202, §§ 1° a 8°, aplicável também à emenda originária do Senado Federal ou quando este subemendou aquela iniciada na Câmara (art. 203).Pelo art. 212 do Regimento Interno do Senado Federal, a tramitação da emenda constitucional só não se iniciará na Câmara dos Deputados quando proposta porum terço dos Senadores ou por mais da metade das Assembléias Legislativas dasunidades da Federação, hipóteses em que o Senado atuará como Casa iniciadora daproposta de emenda constitucional.A elaboração de códigos, dada a complexidade e extensão de que se reveste amatéria, condiciona-se a rito extremamente lento, o que possibilita amplo e profundo debate.Dispõe, com efeito, o art. 374, XVI, do Regimento Interno do Senado Federal que este rito se aplica exclusivamente "aos projetos de códigos elaborados por juristas, comissão de juristas, comissão ou subcomissão especialmente criada com esta finalidade, e que tenham sido antes amplamente divulgados".A Câmara dos Deputados, por sua vez, só receberá projetos de lei com o procedimento de que se trata, quando a matéria, pela sua complexidade e abrangência, deva ser apreciada como código (art. 212, parágrafo único, do Regimento Interno).A tramitação do projeto de código inicia-se com a instalação de órgão específico para cuidar da matéria. Na Câmara dos Deputados, trata-se de Comissão temporária. Haverá a designação de um relator-geral e de tantos relatores parciais quantos sejam necessários para as diversas partes do código.Os prazos de tramitação do projeto podem ser quadruplicados e mesmo suspensos por até 120 sessões, desde que haja necessidade de análise mais aprofundada do assunto.Enfim, em virtude da relevância do tema, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 212) admite a tramitação simultânea de apenas dois projetos de código.

& 10 CONSIDERAÇÕES FINAISA Constituição de 1988, seguindo terminologia da Carta anterior, estruturouo processo legislativo em Seção própria do Capítulo dedicado ao Poder Legislativo.Houve, no entanto, supressão do decurso de prazo (aprovação presumida deprojeto de lei sem manifestação do Congresso Nacional), preservando o texto de1988 o procedimento legislativo sumário (art. 64, §§ 1° e 2°) para os projetos de iniciativa do Presidente da República, que poderá solicitar urgência para sua apreciação. Caso o projeto não seja apreciado, sucessivamente, no prazo de quarenta e cinco 363

KILDARE GONÇALVES CARVALHOdias pelas duas Casas Legislativas, será incluído na ordem do dia, sobrestando-se a deliberação quanto aos demais assuntos, até que se ultime a votação.A iniciativa geral das leis foi ampliada com o surgimento da iniciativa popular(art. 62, § 2°) e a inclusão do Procurador-Geral da República como titular do poder de iniciativa para os projetos de lei relativos à criação e extinção de cargos e serviços auxiliares do Ministério

Público, bem como de lei complementar de organização, atribuições e estatuto da Instituição (art. 127, § 2°, e art. 128, § 5°).Ampliou-se, também, a matéria de iniciativa exclusiva dos Tribunais, sendo doSupremo Tribunal Federal a iniciativa da lei complementar que estabelecerá o estatuto da magistratura (art. 93), das leis de criação e extinção de cargos e fixação de vencimentos de seus membros e dos seus serviços auxiliares, cabendo aos Tribunais Superiores a iniciativa das leis de alteração de cargos e fixação de vencimentos de seus membros, juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver, e dos serviços auxiliares e dos juízes que lhes forem vinculados (art. 96, II, a, b e c), e aos Tribunais de Justiça propor às Assembléias Legislativas a alteração da organização e da divisão judiciárias (art. 96, II, d).A Constituição também restabeleceu a iniciativa da proposta de emenda à Constituição Federal pelas Assembléias Legislativas dos Estados, eliminou airreformabilidade da República, ampliou os casos de irreformabilidade constitucional, instituiu a adoção de medidas provisórias com força de lei, reduziu o quorum na deliberação sobre o veto presidencial e incluiu a matéria reservada à lei complementar no elenco da indelegabilidade.O exame do texto constitucional revela, ainda, o fortalecimento das Comissõespermanentes, que terão a faculdade de realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil (art. 58, § 2°, II), possibilitando-lhes, assim, no âmbito do processo legislativo, instruírem de maneira adequada os estudos legislativos. Ao valorizar as Comissões, a Constituição valoriza o próprio Poder Legislativo que não se reduz apenas ao Plenário, mas tem nas Comissões uma das suas principais bases de autoridade perante a opinião pública.Por último, deve-se considerar que a agilização da tramitação legislativa, sem ocomprometimento, como é óbvio, da qualidade das leis, depende, sobretudo, de umaestrutura administrativa e de apoio no âmbito das Casas Legislativas, e de um regimento interno flexível que concorra para a eficiência da produção normativa, tarefa nuclear do Poder Legislativo. 364

Capítulo 18FISCALIZAÇÃO CONTÁBIL, FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA

Sumário1 Sistemas de controle - Externo e interno2 O Tribunal de Contas da União3 Composição do Tribunal de Contas da União4 Tribunal de Contas nos Estados e Municípios5 Sistema de controle interno

& 1 SISTEMAS DE CONTROLE - EXTERNO E INTERNOO art. 70 da Constituição prevê que "a fiscalização contábil, financeira e orçamentária da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncias de receitas, será exercido pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder".Verifica-se inicialmente que o mencionado dispositivo inaugura a Seção IX doCapítulo I, que trata do Poder Legislativo, integrante do Título IV da Constituição.Não é, pois, sem motivo que a fiscalização da atividade financeira e do orçamento do Estado esteja prevista na parte dedicada ao Poder Legislativo: é que, de fato, como vimos no item 1 do Capítulo 16 deste trabalho, o Poder Legislativo é tradicionalmente o poder financeiro, pois antes de legislar autorizava a cobrança de tributos e consentia nos gastos públicos (no taxation without representation). Permanece, então, nas Constituições democráticas, essa conquista dos Parlamentos, atribuindo-se a um órgão distinto do Executivo a função fiscalizadora de suas contas. A função de controle pelo Poder Legislativo não exclui, contudo, a autofiscalização (sistema de controle interno), exercida pelos Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário), através de órgãos próprios integrantes da sua estrutura administrativa (art. 74), como veremos adiante.

& 2 O TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

O sistema de controle externo é exercido pelo Poder Legislativo, com o auxílio de um órgão especializado, que, no âmbito federal, é o Tribunal de Contas daUnião. Verifica-se, pois, que a posição constitucional do Tribunal de Contas noBrasil é a de auxiliar o Poder Legislativo no controle da execução do orçamento e da aplicação do dinheiro público; o Tribunal de Contas não é órgão do PoderExecutivo nem do Poder Judiciário, como se depreende, inclusive da própria colocação tropográfica do órgão no texto constitucional, ou seja, no Capítulo destinado ao Poder Legislativo.367

KILDARE GONÇALVES CARVALHOEmbora não previsto na Constituição de 1824, o Tribunal de Contas já era reclamado por Pimenta Bueno, em seu Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, ao escrever:"É de suma necessidade a criação de um Tribunal de Contas, devidamente organizado, que examine e compare a Fidelidade das despesas com os créditos votados, as receitas com a lei do imposto, perscrute e siga pelo testemunho dos documentos autênticos em todos os seus movimentos a aplicação e emprego dos valores do Estado, e que, enfim, possa assegurar a realidade das contas. Sem esse poderoso auxiliar nada conseguirão as Câmaras".(1)Note-se que, pelo art. 172 da Constituição do Império, "o Ministro de Estadoda Fazenda, havendo recebido dos outros ministros os orçamentos relativos às despesas das suas repartições, apresentará na Câmara dos Deputados anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço geral da receita e despesa do tesouro nacional do ano antecedente, e igualmente o orçamento geral de todas as despesas públicas do ano futuro, e da importância de todas as contribuições e rendas públicas".Criado sob a inspiração de Rui Barbosa pelo Decreto n. 966, de 7 de novembro de 1890, do Governo Provisório, o Tribunal de Contas passou a se incorporar a todas as Constituições subseqüentes (Constituição de 1891, art. 89; Constituição de 1934, art. 99; Constituição de 1937, art. 114, notando-se que nesse ordenamento não se enquadrou, por motivos óbvios, no âmbito do Poder Legislativo; Constituição de 1946, art. 77; Constituição de 1967 e sua Emenda n. 1/69, art. 70, § 1°).A Constituição de 1988 mantém o Tribunal de Contas da União no art. 71, ampliando suas funções em razão do próprio fortalecimento do Congresso Nacional,de que é órgão auxiliar. São funções do Tribunal de Contas:I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio, que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento. Observe-se que, se essas contas não forem prestadas anualmente pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, cabe à Câmara dos Deputados proceder, de ofício, à sua tomada;II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros,bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público. O Tribunal de Contas, como se viu, não integra o Poder Judiciário, mas é

(1) PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, P. 89.368

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOórgão auxiliar do Poder Legislativo no controle da execução do orçamento e da aplicação do dinheiro público. A Constituição, ao usar a expressão "julgar", não transforma o Tribunal de Contas em órgão jurisdicional. A função que exerce é materialmente administrativa: é o que pensam Seabra Fagundes, Wilson Accioli (2) e Michel Temer, dentre outros (3). O consagrado José Afonso da Silva, a propósito do assunto, fala que não se trata de função jurisdicional; o Tribunal de Contas não julga pessoas nem dirime conflitos de interesse, mas apenas exerce um julgamento técnico de contas (4);

III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargos em comissão, bem como a das concessões de aposentadoria, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;IV - realizar por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditoria de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e demais entidades referidas no n. II;V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capitalsocial a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratadoconstitutivo;VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Municípios;VII - prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalizaçãocontábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ou dano causado ao erário. É importante notar que a resolução do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terá eficácia de título executivo (art. 71, § 3°) Trata-se de título executivo extrajudicial (art. 58, VII, do Código de Processo Civil) de eficácia plena, pois seu manejo independe de inscrição como dívida ativa. A eficácia de título executivo refere-se a decisão dos Tribunais de Conta da União, dos Estados, do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios (art. 71, § 3°, e art. 75, caput), de que resulte imputação de débito ou multa;IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

(2) ACCIOLI, Wilson. Instituições de direito constitucional, p. 384.(3) TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, p. 134-135.(4) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 629.369

KILDARE GONÇALVES CARVALHOX - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. No caso de sustação de contrato, a competência é do Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao PoderExecutivo as medidas cabíveis. Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo nãoefetivarem, no prazo de noventa dias, as medidas cabíveis, o Tribunal de Contasdecidirá a respeito, dentro, naturalmente, de suas atribuições constitucionais;XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.As contas do Tribunal serão prestadas ao Congresso Nacional, que irá fiscalizá-las, aprovando-as ou rejeitando-as.

& 3 COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃOO Tribunal de Contas da União é integrado por nove Ministros, escolhidos da seguinte forma: um terço (três Ministros) pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo dois, alternadamente, dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de antigüidade e merecimento, e dois terços (seis Ministros) pelo Congresso Nacional. Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão nomeados dentre brasileiros (natos ou naturalizados), maiores de trinta e cinco, mas com menos de sessenta e cinco anos de idade, idoneidade moral e reputação ilibada, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública, e mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os

conhecimentos acima mencionados. Terão os Ministros do Tribunal de Contas da União as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça e somente poderão aposentar-se com as vantagens do cargo, quando o tiverem exercido efetivamente por mais de cinco anos. O auditor do Tribunal de Contas, convocado para substituir Ministro, teráas mesmas garantias e impedimentos do titular e, quando no exercício das demaisatribuições da judicatura, as de juiz de Tribunal Regional Federal.

& 4 TRIBUNAL DE CONTAS NOS ESTADOS E MUNICÍPIOS

A Constituição Federal esclarece, no parágrafo único do art. 75, que cabe àsConstituições estaduais disporem sobre os Tribunais de Contas respectivos, que serão integrados por sete Conselheiros. Serão três os Conselheiros nos novos Estados, para os dez primeiros anos de sua criação, nomeados pelo Governador eleito, dentre brasileiros de comprovada idoneidade e notório saber (art. 235, III). O controle externo da execução orçamentária e dos gastos públicos dos Municípios vem disciplinado 370

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOno art. 31: o assunto foi por nós tratado no Capítulo 14, subitem 7.3, para onderemetemos o leitor.Mencione-se ainda que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverãoobservar as normas estabelecidas na Constituição Federal referentes à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas respectivos e dos Conselhos ou Tribunais de Contas municipais.Constitui caso de intervenção Federal no Distrito Federal e nos Estados o não-cumprimento de princípio constitucional enumerado no art. 34, VIII, d, referente à obrigatoriedade de prestação de contas da administração pública direta e indireta, prevendo ainda a Constituição Federal intervenção do Estado em Município que deixar de pagar, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada não prestar contas devidas, na forma da lei; não tiver aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino, ou seja, 25% por cento da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências (art. 212). Daí a inegável importância do Tribunal de Contas no exame técnico de matérias pertinentes à intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal e dos Estados nos Municípios.

& 5 SISTEMA DE CONTROLE INTERNOAlém do controle externo, a Constituição prevê o sistema de controle interno,realizado de forma integrada nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, tendo por finalidade (art. 74, I a IV):I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execuçãodos programas de governo e dos orçamentos da União;II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia da gestãoorçamentária, financeira e patrimonial, nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem comodos direitos e haveres da União;IV - apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional (aConstituição prevê, no art. 74, § 1°, que os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária).371

Capítulo 19-PODER EXECUTIVO

Sumário1 Poder de conteúdo incerto2 Chefia de Estado e chefia de governo3 Poder regulamentar4 Presidente da República- Elegibilidade, eleição, mandato, posse e exercício5 Vice-Presidente da República6 Vacância da Presidência7 Atribuições do Presidente da República8 Responsabilidade do Presidente da República9 Ministros de Estado10 Conselho da República11 Conselho de Defesa Nacional

& 1 PODER DE CONTEÚDO INCERTODeclara o art. 76 da Constituição que o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado. Edward S. Corwin assinala que a expressão "Poder Executivo" é de conteúdo incerto, sendo o art. II o mais indefinido da Constituição norte-americana (1). Essa incerteza quanto às funções do Executivo vem-se tornando mais acentuada depois que o Estado ampliou suas tarefas, quase sempre realizadas pelo Executivo, nos mais variados setores da realidade econômica, social, financeira, cultural e tecnológica, dentre outros.Josaphat Marinho diz que, no Brasil, agravam as dificuldades naturais da estrutura do Poder Executivo "as deformações introduzidas na engrenagem do regime republicano e do governo presidencial entre nós, desde a Constituição de 1891" (2). A propósito do crescimento das atividades do Poder Executivo, de forma a dificultar-lhe o delineamento constitucional, Manoel Gonçalves Ferreira Filho observa que esse crescimento físico é tradução de um fenômeno psicossocial muito mais importante, pois é do Executivo que o povo passa a esperar a melhoria das condições de vida, e, portanto, é no Executivo que são postas as esperanças do eleitorado (3).Tamanhos poderes exercidos por uma única pessoa têm, no Brasil, levado a exageros tais que Campos Sales chegou a caracterizar o presidencialismo como "ogoverno pessoal, constitucionalmente organizado". Daí a explicação para a desconfiança das Constituições em relação ao Poder Executivo, mas também a irresistível atração pelo poder pessoal do Presidente daRepública (4).

& 2 CHEFIA DE ESTADO E CHEFIA DE GOVERNONo presidencialismo, o Presidente da República exerce as funções de Chefe deEstado e de Chefe de governo, ao contrário do parlamentarismo em que essas

(1) CORWIN, Edward S. El Poder Executivo (función y poderes), p. 1.(2) MARINHO, Josaphat. Poder Executivo. In: Constituição e Constituinte, p. 145.(3) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Organização dos Poderes - Poder Legislativo. In: A Constituição brasileira- 1988 - Interpretações. p. 152.4 DUARTE. Nestor. Discurso. Anais da Assembléia Constituinte, 1948. Apud Josaphat Marinho. Op. cit., p. 148.375

KILDARE GONÇALVES CARVALHOfunções são separadas: a de Estado a cargo do Rei ou do Presidente da República, e a de governo a cargo de um Gabinete chefiado pelo Primeiro-Ministro.A chefia de Estado diz respeito à representação do Estado na sua unidade, que deve ser exercida acima de paixões políticas, de modo a revelar equilíbrio e moderação em atos como representação do Estado nas relações internacionais, recepções e representantes diplomáticas, nomeação para determinados cargos que não tenham caráter político.No exercício da chefia de Estado, o Presidente da República não presta contasde seus atos ao Legislativo, pois, na realidade, é politicamente irresponsável.A chefia de governo se acha relacionada com a orientação política geral, mediante permanente

atividade voltada para a realização dos objetivos governamentais e tomada de decisões nos diversos setores da realidade do Estado. Nota-se, como se mostrou, que a expansão das atividades do Estado contemporâneo tem exigido constante presença do governo no sentido de traçar rumos e eleger processos e recursos capazes de realizarem os objetivos institucionais que cabem ao Presidente da República como Chefe de governo.

& 3 PODER REGULAMENTARO poder regulamentar constitui uma das mais significativas prerrogativas do Executivo, estabelecendo a Constituição, em seu art. 84, IV, caber privativamente ao Presidente da Republica "sancionar, promulgar e fazer publicar as leis bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução". Trata-se de atividade indelegável, pois as suscetíveis de delegação vêm enunciadas no parágrafo único do art. 84, que não faz referência ao referido inciso IV.A Constituição menciona a existência de decretos e regulamentos. Assim, a atividade administrativa do Presidente da República pode instrumentalizar-se ematos de efeitos concretos, consistindo numa determinada categoria de decretos, ou em atos de efeitos genéricos que são os regulamentos. Num caso ou noutro, osdecretos e os regulamentos deverão subordinar-se sempre à lei, pois é nele que encontram seu fundamento de validade. Não podem ainda inovar o Direito, nem introduzir modificações na ordem jurídica.Lembra José Cretella Jr. que "a forma tradicional é redigir regulamento em texto separado e baixar-se decreto que o aprove, mas nada impede que o texto seja um só, isto é, que os preceitos do regulamento estejam consubstanciados no próprio decreto, como já se vem observando em alguns casos." (5)Note-se que em muitos casos o decreto costuma invadir o campo legislativo, configurando-se aí usurpação de competência. Nessa hipótese, estabelece a

(5) CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988, p. 2.897.376

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOConstituição competir ao Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa (art. 49, V). Tal circunstância não impede, todavia, que o Poder Judiciário examine a questão, caso entenda o Executivo ter sido o decreto editado nos limites da lei. A doutrina tem consagrado três tipos de regulamentos: os autônomos, os delegados e os de execução.Autônomos são os regulamentos que têm por objeto disciplinar a organização ou a atividade administrativa e, por extrair sua validade diretamente da Constituição, inovam o Direito, equivalendo-se então à lei. Posicionamo-nos ao lado daqueles que entendem não existirem os regulamentos autônomos no sistema jurídico brasileiro, em face, sobretudo, do princípio da legalidade declarado no art. 5°, II, da Constituição, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Nada obstante, há quem sustente tese oposta (Diógenes Gasparini).Delegados são os regulamentos que desenvolvem a lei, inovando a ordem jurídica, e editados segundo autorização legislativa. Também entendemos não existirem em nosso Direito, em decorrência do princípio da separação de Poderes (art. 2°),que acarreta a vedação da delegação de atribuições, excepcionada apenas nos casos expressamente previstos na Constituição.São de execução os regulamentos mencionados no art. 84, IV, ou seja, aquelesemanados diretamente da lei e que não criam, alteram ou extinguem direitos, masapenas desenvolvem a lei existente e dela dependem. Os regulamentos facilitam,portanto, a aplicação da lei, criando os meios necessários para a sua melhor compreensão, com o detalhamento de pontos específicos que não se encontram na generalidade da lei.

& 4 PRESIDENTE DA REPÚBLICA - ELEGIBILIDADE, ELEIÇÃO, MANDATO, POSSE E

EXERCÍCIOO presidencialismo no Brasil é unipessoal, porque exercido por uma só pessoa,o Presidente da República, sendo os Ministros de Estado meros auxiliares do governo, de cuja chefia não participam.São requisitos de elegibilidade para Presidente da República: a) ser brasileiro nato; b) estar no pleno exercício dos direitos políticos; c) ter idade superior a trinta e cinco anos; d) não ser inelegível.O Presidente da República é eleito para mandato de quatro anos, permitida areeleição para um único período subseqüente, novidade introduzida pela EmendaConstitucional n. 1G/97. O mandato do Presidente da República, que era fixado emcinco anos, foi reduzido para quatro, por força da Emenda Constitucional de Revi377

KILDARE GONÇALVES CARVALHORevisão n. 5 de 7 de junho de 1994 com vigência a partir de 1° de outubro de 1995, e mantido pela Emenda Constitucional n. 16/97, ao dar nova redação ao art. 82 da Constituição, encerrando-se a 31 de dezembro, com a posse e o exercício do eleito a 1° de janeiro. A eleição se realizará no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao do término do mandato presidencial vigente. A eleição é pelo sufrágio universal, e o voto, direto e secreto. Haverá um segundo turno ( nova eleição), no último domingo de outubro, mês em que se realizou o primeiro turno (art. 77 da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 16/97), caso nenhum candidato alcance a maioria absoluta de votos, não computados os votos em branco e os nulos. Concorrerão no segundo turno os dois candidatos mais votados, considerando-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos. Diz a Constituição que, se antes de realizado o segundo turno ocorrer morte, desistência ou impedimento legal de candidato, convocar-se-á, dentre os remanescentes, o de maior votação. Remanescendo, em segundo lugar, mais de um candidato com a mesma votação, qualificar-se-á o mais idoso.O Presidente toma posse em sessão do Congresso Nacional, prestando o compromisso (a Constituição não fala em juramento) de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a União, a integridade e a independência do Brasil (art. 78). A Constituição, embora não se refira ao exercício da Presidência, fixa o início do mandato para o dia 1° de janeiro do ano seguinte ao da eleição (art. 82).Vedada pelas Constituições anteriores, a reeleição somente veio a serintroduzida no Brasil pela Emenda Constitucional n.16/97.A reelegibilidade imediata do Presidente da Republica, tal como prevista naConstituição Federal, não é medida adotada pela maioria dos países presidencialistas. Enquanto a Bolívia, a Colômbia, a Costa Rica, o Chile, o Equador, El Salvador, a Guatemala, Honduras, o México, o Panamá, o Uruguai e a Venezuela, não admitem a reeleição, a Argentina, os Estados Unidos, as Filipinas, a Nicarágua, o Paraguai e o Peru a prevêem. O Panamá e a Venezuela só permitem um segundo mandato depois de um intervalo de dez anos, e os demais países acima citados, que não consagram a reeleição, permitem um segundo mandato após um intervalo igual ao do mandato presidencial.Argumenta-se contrariamente à reeleição que a renovação do mandato possibilita a abertura de caminho para a autocracia, e que o Presidente, sucedendo a si mesmo, termina o seu mandato fazendo campanha, o que não ocorreria se vedada fosse a renovação do mandato.Já os argumentos favoráveis à reeleição são os de que: a) com um só mandato, o Presidente logo se enfraquece politicamente, porquanto não há como obter apoio dos que o sustentam no Parlamento, em troca de proteção futura; b) tratando-se de um Presidente reformista, manifesta ele uma pressa imprópria em administrar, ou seja, um querer fazer e concluir; c) um bom Presidente deve ser premiado, constituindo um 378

DIRFITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOdesperdício deixar de aproveitá-lo, sendo que a renovação imediata do mandato concorre para que se viabilizem programas e projetos de governo de maior duração.

& 5 VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICAO Vice-Presidente é eleito com a eleição do Presidente da República, pois nãoadmite a Constituição candidatura avulsa do Vice, que deverá ser registrada com a do titular, Os requisitos de elegibilidade, eleição e posse se aplicam ao Vice-Presidente.O Vice-Presidente é o substituto e o sucessor do Presidente. Não mais exerce aPresidência do Senado Federal ou do Congresso Nacional, mas desempenhará atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, e auxiliará o Presidente sempre que por ele convocado, para missões especiais. Destacam-se como funções principais do Vice as de substituição e sucessão do Presidente da República. O impedimento do Presidente da República se carateriza pela ocorrência de circunstância ocasional, transitória, implicando simples afastamento temporário da Presidência. Já a vacância do cargo, que leva à sucessão presidencial, significa circunstância permanente, definitiva, que desvincula o Presidente do seu cargo.Havendo, contudo, impedimento de ambas as autoridades (Presidente e Vice-Presidente da República), diz a Constituição que serão sucessivamente chamados ao exercício da presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal. Vagando ambos os cargos, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.Prevê a Constituição eleição indireta para Presidente da República quando avacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República ocorrer nos últimos dois anos do período presidencial, sendo a eleição realizada trinta dias depois de aberta a última vaga pelo Congresso Nacional, na forma da lei.

& 6 VACÂNCIA DA PRESIDÊNCIAA vacância da presidência ocorre:a) por crime de responsabilidade, ou comum, mediante decisão do Senado Federal ou do Supremo Tribunal Federal, respectivamente;b) por morte, renúncia, perda ou suspensão dos direitos políticos e perda da nacionalidade brasileira;c) não-comparecimento para a posse dentro de dez dias contados da data fixada para a mesma, salvo motivo de força maior;d) ausência do País por mais de quinze dias, sem licença do Congresso Nacional. O Vice-Presidente perde o mandato nas mesmas hipóteses referidas para o Presidente da República.379

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 7 ATRIBUIÇÕES DO PRESIDENTE DA REPÚBLICAA Constituição enumera, no art. 84, as atribuições do Presidente da República. Relacionam-se com a chefia de Estado e a chefia de governo, estando as primeirasmencionadas nos incisos VII, VIII, XVIII, segunda parte, XIV (nomeação de Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, cargos sem caráter político), XIX, XX, XXI, XXII, e as de Chefia de governo nos incisos I, III, IV, V, IX, X, XII, XIII, XIV, XVIII, primeira parte, XXIII, XXIV e XXVII.Permite a Constituição que algumas dessas atribuições sejam delegadas aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, sendo suscetíveis de delegação as mencionadas nos incisos VI, XII e XXV,primeira parte (prover os cargos públicos federais, na forma da lei). As autoridades delegadas deverão observar os limites traçados nas respectivas delegações (parágrafo único do art. 84).

& 8 RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICAO Presidente da República não é irresponsável no exercício da Presidência.Embora, como Chefe de governo não possa ser destituído por ter deixado de merecer a confiança do Congresso Nacional circunstância esta que só ocorre no parlamentarismo, o Presidente da República se sujeita a ser responsabilizado pela prática de crime comum ou de responsabilidade. Não tem ele a garantia da inviolabilidade nem a da imunidade processual ou formal.

O processo pelo qual se apura a conduta do Presidente da República, destituindo-o do cargo, consiste no impeachment. Tem sido controvertida a sua naturezajurídica: para alguns o impeachment tem natureza política, para outros possui natureza penal.Impeachment é palavra de procedência inglesa, que significa "acusação por alta traição", embora etimologicamente (deriva do latim impedimentum) queira dizer "aproibição da entrada". (6)Originário da Inglaterra, o impeachment teria surgido no século XIV (usadocontra Richard Lyons, ou o Lord Latimer, em 1376), ou no século XIII (acusaçãocontra David, em 1283), e o último foi intentado em 1848 contra Lord Palmerston,há, portanto, mais de um século e meio.Objetivava o impeachment inglês punir súditos do reino, pares ou comuns, altas autoridades ou simples cidadãos. Somente a Coroa a ele não se sujeitava (TheKing can do not wrong), mediante a aplicação de penas livremente escolhidas pelaCâmara dos Lordes.

(6) CRETELLA JUNIOR, José. Natureza jurídica do impeachment. Revista de Informação Legislativa, 215/14-18.380

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOCom a racionalização do parlamentarismo, ocorrida no século XVIII, o impeachment perdeu importância, já que a ameaça política ao Gabinete, que poderialevar os seus membros ao impeachment, implicava a sua substituição sobrepondo-sedesta forma o caráter político ao aspecto judiciário do instituto. Nos Estados Unidos, o impeachment foi previsto em várias Constituições esta-duais, e no art. II, Seção IV, da Constituição Federal: "O Presidente e o Vice-Presidente dos Estados Unidos serão afastados do cargo mediante impeachment, nos casos de traição, suborno ou outros crimes graves e de má conduta." Verifica-se então que a Constituição norte-americana enumera taxativamente os crimes de responsabilidade.Se na Inglaterra o impeachment tem caráter penal, pois "atinge a um tempo aautoridade e castiga o homem", nos Estados Unidos tem caráter não-penal, porque"fere apenas a autoridade, despojando-a do cargo, e deixa imune o homem, sujeito, como qualquer, e quando for o caso, à ação da justiça' (7): Não visa o impeachment punir delinqüentes, mas proteger o Estado defendendo-o contra o mau administrador. No Brasil, a partir da República, o impeachment parece ter caráter apenas político (não penal). A Constituição de 1988, na linha das Constituições republicanas anteriores e seguindo o Direito norte-americano, visa, com o impeachment, ao afastamento do cargo da autoridade que praticou crime de responsabilidade, com inabilitação para o exercício de função pública, por oito anos. Se houver também ilícito penal na conduta do Presidente, ele será submetido a processo e julgamento pelo Poder Judiciário: a própria Constituição trata, pois, de distinguir as duas sanções, vale dizer, a política e a penal.Os crimes de responsabilidade do Presidente da República vêm previstos noart. 85 e são classificados por José Afonso da Silva em:

a) infrações políticas (art. 85, I a IV): atentado contra a existência da Uniãocontra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação, contra o exercício dos direitos políticos individuais e sociais, e contra a segurança interna do País;b) crimes funcionais (art. 85, V a VII): atentado contra a probidade da administração, a lei orçamentária e o cumprimento das leis e decisões judiciais. (8)Esses crimes serão definidos em lei especial, que ainda estabelecerá as normasde processo e julgamento (Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950).O processo previsto para os crimes de responsabilidade e os crimes comunscompreende duas fases: a do juízo de admissibilidade do processo e a do processo e julgamento. A primeira fase é privativa da Câmara dos Deputados, a quem cabeautorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o

Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado. Trata-se de pronunciamento

(7) BROSSARD, Paulo. O impeachment, p. 21.(8) SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, p. 472.381

KILDARE GONÇALVES CARVALHOjurisdicional e político, esclarecendo Sampaio Dória que a autorização de instauração de processo contra o Presidente da República é ato discricionário, pois "não é o imperativo da lei que se decide. Mas a conveniência aos interesses da nação, a oportunidade de deposição, ainda que merecida. Entre o mal da permanência no cargo de quem tanto mal causou e poderá repeti-lo, além do exemplo de impunidade, e o mal da deposição numa atmosfera social e política carregada de ódios, ainda que culpado o Presidente, poderá a Câmara dos Deputados isentá-lo do julgamento, dando por improcedente a acusação". (9)Autorizada a instauração do processo contra o Presidente da República, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade, ficando suspenso de suas funções com o recebimento da denúncia ou queixa-crime peloSupremo, ou após a instauração do processo pelo Senado Federal. O afastamentocessa, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.No Senado Federal, a sessão de julgamento será presidida pelo Presidente doSupremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.Também o Senado julgará o Presidente fundado em elementos de caráter político, com motivação e inspiração políticas, sendo o julgamento final irrecorrível edefinitivo.Poderá assim haver abuso, que ultrapassará os limites da imparcialidade: pelaCâmara, ao se abster de decretar a acusação, quando deveria fazê-lo, ou autorizar a acusação, quando deveria se abster de fazê-lo; pelo Senado, no absolver quando deveria condenar o Presidente, ou condená-lo, quando deveria absolver. A respeito, escreve Paulo Brossard:"Admita-se que o Senado à unanimidade, esteja pela condenação do Presidente. Todavia, em face da inação da Câmara, nada pode aquele fazer, senão assistir à dissolução do país, contemplar a anarquia, presenciar a comoção civil, testemunhar, quiçá, a guerra intestina, até que a Câmara acorde e cumpra seus altos deveres. Falhando 0 órgão incumbido pela Constituição de praticar o ato inicial do processo, providência legal ou solução jurídica não existe para a catástrofe." (10)Controverte-se sobre se a renúncia do Presidente extingue o processo de impeachment por falta de objeto. Embora o impeachment tenha por pressuposto a

(9) DÓRIA, Sampaio. Comentários à Constituição de 1946, v. 3, p. 388-389.(10) BROSSARD, Paulo. Op. cit., p. 176.382

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOpermanência do acusado no cargo, é cerro também que a Constituição prevê não só a perda do cargo, mas ainda a inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sendo este um efeito que não poderia ser elidido pela renúncia.Nesse sentido entendeu o Supremo Tribunal Federal, ao decidir, em 1993, mandado de segurança, impetrado pelo ex-Presidente Fernando Collor, que, embora tenha renunciado momentos antes de seu julgamento pelo Senado Federal, foi considerado inabilitado para o exercício, por oito anos, de função pública.Se a autoridade retorna ao cargo, restaura-se a jurisdição política, isto é, oimpeachment pode ser iniciado ou prosseguido. Não há que se falar, em se tratando de impeachment, nos conceitos de prescrição ou de reincidência, pois neste processo político "as

infrações são apreciadas e julgadas em relação à conduta geral da autoridade. (11)Considere-se, finalmente, o § 4° do art. 86 da Constituição, que estabelece queo Presidente da República não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções. O dispositivo há de ser entendido no sentido de que somente se sujeitará o Presidente da República, em processo de impeachment, ao julgamento do Senado, por atos vinculados às suas funções.

& 9 MINISTROS DE ESTADOOs Ministros de Estado são meros auxiliares do Presidente da República, nãoparticipando da chefia do Executivo, que é privativa do Presidente. Acentua Marcelo Caetano que "os Ministros de Estado são, pois, na concepção constitucional, auxiliares do Presidente da República e como tais, hão de comungar na orientação política por ele fixada, colaborar com dedicação e lealdade na obra dele" (12).São os Ministros de Estado escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e umanos e no exercício dos direitos políticos; sendo livremente nomeados e destituídos peio Presidente da República. Assim, a sua permanência no cargo repousa na confiança que merecerem do Presidente da República.Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições fixadas em lei:I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades daadministração Federal, na área de sua competência, e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República. Quanto ao referendo, vale a observação de que, sem ele, tem-se considerado inexistente o ato, porque a assinatura é imperativo da Constituição. Não estão sujeitos ao referendo os atos pessoais do Presidente da República, como as mensagens, a renúncia, dentre outros;II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;

(11) BROSSARD, Paulo. Op. Cit., p. 132.(12) CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v. 2, P. 3S9.383

KILDARE GONÇALVES CARVALHOIII - apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão noMinistério;IV - praticar atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República (art. 87, parágrafo único, I a IV).Os Ministros de Estado poderão comparecer ao Senado Federal, à Câmara dosDeputados ou a qualquer de suas Comissões, por sua iniciativa e mediante entendimentos com a Mesa respectiva, para expor assunto de relevância de seu Ministério (art. 50, § 1°).Por outro lado, os Ministros de Estado se sujeitam a responder por crime deresponsabilidade, caso se recusem, não atendam ou prestem informações falsas, noprazo de trinta dias, decorrentes de pedidos escritos das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Também estão sujeitos a crime de responsabilidade, caso não compareçam à Câmara dos Deputados, ou ao Senado Federal, ou a qualquer de suas Comissões, para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado. Nos crimes de responsabilidade, os ministros de Estado serão processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, b). Mas se o crime de responsabilidade for conexo com o do Presidente da República, o processo e julgamento será de competência do Senado Federal (art. 52, I), depois que a Câmara dos Deputados, por dois terços de seus membros, autorizar a instauração do processo (art. 51, I).

& 10 CONSELHO DA REPÚBLICAO Conselho da República, cuja organização e funcionamento serão reguladosem lei ordinária, é órgão superior de consulta do Presidente da República e deleparticipam: o Vice-Presidente da República; o Presidente da Câmara dos Deputados; o Presidente do Senado Federal; os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal; o Ministro da Justiça; seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta anos de idade,

sendo dois nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo Senado Federal e dois eleitos pela Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução.Compete ao Conselho da República pronunciar-se sobre intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio, e questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas.

& 11 CONSELHO DE DEFESA NACIONALEsse Conselho substitui o Conselho de Segurança Nacional, previsto na Constituição anterior. É órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos384

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOrelacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático. Note-se que a Constituição não fala em segurança nacional, que perde seu sentido ideológico, preferindo mencionar as expressões "soberania nacional" e "defesa do Estado democrático", preocupada com a garantia dos cidadãos contra o Estado e não com a do Estado contra os cidadãos.Participam do Conselho de Defesa Nacional, como membros natos: o Vice-Presidente da República; os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; os Ministros de Justiça, das Relações Exteriores e do Planejamento; os Ministrosmilitares (art. 91, I a VII). Compete ao Conselho de Defesa Nacional opinar nas hipóteses de declaração deguerra e de celebração da paz, decretação de estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal; propor critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo; estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático.A organização e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional dependerão de lei.Ambos os Conselhos opinam em caráter não vinculativo, podendo assim o Presidente da República deixar de acatar o pronunciamento deles. 385

Capítulo 20PODER JUDICIÁRIO

Sumário1 Função jurisdicional2 Monopólio da jurisdição3 O devido processo legal4 Garantias da magistratura5 Competência dos Tribunais6 Os magistrados e seu estatuto7 Organização do Poder Judiciário8 Supremo Tribunal Federal9 Superior Tribunal de Justiça10 Justiça Federal Comum11 Justiça do Trabalho12 Justiça Eleitoral13 Justiça Militar14 Juizados Especiais e Justiça de Paz15 Justiça dos Estados

& 1 FUNÇÃO JURISDICIONALSe a função do Estado voltada para a criação do Direito, predominantementeatribuída ao Poder Legislativo, é de fácil caracterização, a de realizá-la já não se apresenta com a mesma facilidade. De fato, não têm sido unânimes os autores em demarcar a atividade administrativa e a jurisdicional, ambas voltadas para a realização do Direito. Chega-se até mesmo

a confundi-las, conforme assinala Pinto Ferreira:"Diversos doutrinadores franceses sustentam a existência de dois poderes apenas, de dois poderes constitucionais, a saber, o Legislativo e o Executivo, fazendo do Judiciário um simples ramo do Poder Executivo. Assim se orientam Duguit, Ducroq, Garsonner, Barthélemy e outros. Esta tendência entretanto não foi generalizada nem pela doutrina nem pela prática tradicional". (1)A questão reside, portanto, em saber em que se distingue a função executiva dajurisdicional.A função jurisdicional é substitutiva da vontade das partes na aplicação doDireito: a autotutela (salvo em casos especialíssimos, como a legítima defesa) é substituída pela tutela estatal, ou seja, a lide será resolvida pelos órgãos judiciários próprios que substituem a vontade privada.Além desse caráter de substituição, caracterizam a função jurisdicional a provocação e a definitividade. Nenhum juiz atua senão mediante provocação do interessado: nemo iudex sine actore, enquanto que a Administração age quase sempre de ofício. Também as decisões do Judiciário tendem à definitividade, fazendo coisa julgada, sendo que os atos administrativos são quase sempre revogáveis. A tutela jurisdicional se obtém, ainda, mediante o devido processo legal (de que cuidaremos adiante), nora relevante para a caracterização da jurisdição. Enfim, como na expressão de Pedro Lessa, "o Poder Judiciário é o que tem por missão aplicar contenciosamente a lei a casos particulares".

& 2 MONOPÓLIO DA JURISDIÇÃOA Constituição Federal de 1988 declara, no art. 5°, XXXV, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Com pequenas

(1) PINTO FERREIRA, Luiz. Curso de direito constitucional, p. 472.389

KILDARE GONÇALVES CARVALHOvariantes, é a mesma redação que surgiu em nosso constitucionalismo com a Cartade 1946. Trata-se aqui do monopólio da jurisdição, do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional de ato ilegal ou eivado de abuso de poder, ou da garantia de acesso aos Tribunais. Assim, o monopólio da jurisdição erige-se em mecanismo de garantia dos direitos individuais, com vistas à aplicação da Justiça. O texto constitucional se dirige ainda ao Poder Legislativo, que não poderá "suprimir ou restringir a apreciação judiciária sobre as violações de qualquer direito subjetivo, e não apenas dos direitos fundamentais do homem", enfatiza Humberto Theodoro Júnior. (2)

& 3 O DEVIDO PROCESSO LEGALReveste-se de singular importância, para a compreensão do papel do Poder Judiciário, o exame do direito ao devido processo legal (due process of law), inscrito na Constituição brasileira de 1988, art. 5°, LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".Essa cláusula é, mais do que um direito, uma garantia jurisdicional que a Constituição expressamente confere ao indivíduo. De fato, não basta que o texto constitucional estabeleça direitos, prevendo órgãos judiciais para satisfazê-los segundo regras e mecanismos que assegurem a realização de um processo justo. Surge então o devido processo de lei, instituição do Estado Democrático de Direito e que compreende três categorias: "o juiz natural, o direito de defesa e a adequação das formalidades essenciais do procedimento", como observa o mesmo Humberto Theodoro Júnior, (3) e que devem estar presentes em qualquer espécie de demanda e não apenas nas demandas de natureza penal. Somente com o devido processo legal, "o processo se transforma, de simples instrumento de justiça, em garantia de liberdade". (4)

& 4 GARANTIAS DA MAGISTRATURAEm exposição para a Subcomissão do Poder Judiciário da Assembléia Nacional Constituinte, o Prof. Raul Machado Horta assim destacou o papel do Poder Judiciário:"Poder que assegura direitos, aplaca dissídios, compõe interesses, na diuturna aplicação da lei e de sua adaptação às mutáveis condições sociais, econômicas e políticas. É o Poder que enfrenta e

deslinda dramas humanos, ouvindo queixas, reivindicações e protestos. É o Poder onde explode o ódio das vítimas e dos condenados, a revolta dos oprimidos, e a arrogância dos

(2) THEODORO JUNIOR, Humberto. A execução de sentença e a garantia do devido processo legal, p. 65.(3) THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 60.(4) GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação, p. 19.390

DIREITO CONSTITUCION'AL DIDÁTICOopressores. É o Poder que reclama de seus membros serenidade e bravura, paciência e desassombro, humildade e altivez, independência e compreensão. Poder tão próximo do dia-a-dia do Homem e da Sociedade, é natural o interesse dos cidadãos e das instituições pelo seu destino". (5)Daí assumir fundamental importância o exame das garantias dos magistrados, eis que necessárias para a preservação da sua independência, autonomia e dignidade,afastando-se assim da. influência comprometedora dos outros Poderes do Estado edos próprios particulares.A Constituição prevê como garantias da magistratura:I - vitaliciedade, adquirida no primeiro grau de jurisdição, após dois anos deexercício de função judicante, e a partir da posse, para os demais magistrados, não podendo o juiz perder o cargo senão por força de decisão judiciária. Implica ainda a vinculação do juiz ao cargo, salvo disponibilidade compulsória pelo voto de dois terços dos membros do respectivo Tribunal, ocorrendo interesse público;II - inamovibilidade, assegurando-se ao magistrado a permanência na sua sedede atividades, de onde só poderá ser removido com a sua concordância ou por interesse público, nas condições previstas para a disponibilidade;III - irredutibilidade de subsídios, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI,39, § 4°, 150, II, 153, III, e 153, § 2°, I.Mas ao lado das garantias da magistratura, a Constituição estabelece algumasvedações cujo propósito é o mesmo daquelas: preservar a dignidade da funçãojudicante, possibilitando aos juízes condições para um julgamento justo e imparcial.São vedações da magistratura: exercício, ainda que em disponibilidade, de outrocargo ou função, salvo uma de magistério (qualquer que seja o nível de ensino);recebimento, a qualquer título ou pretexto, de custas ou participação em processo (evita-se com isso tendência para o julgamento da causa contra os que poderiam arcar com o pagamento das custas); dedicação à atividade político-partidária. Há abrandamento dessa vedação, previsto no art. 80, caso o Presidente do Supremo Tribunal Federal venha a exercer temporariamente a Presidência da República.

& 5 COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAISTrata-se aqui de competência não jurisdicional, ou seja, administrativa, normativa, financeira e orçamentária, como requisito de independência do PoderJudiciário.

(5) HORTA, Raul Machado. Unidade e dualidade da magistratura. In: Exposição em painel da subcomissão do Poder Judiciário, da Assembléia Nacional Constituinte.391

KILDARE GONÇALVES CARVALHOCom efeito, dispõe o art. 96 que compete privativamente aos Tribunais:I - elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e o funcionamento dos respectivo órgãos jurisdicionais e administrativos; proporao Poder Legislativo a alteração de membros dos tribunais inferiores, a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde

houver, ressalvado o disposto no art. 48, XV; a criação ou extinção de tribunais inferiores, a alteração da organização e da divisão judiciárias e, nomeadamente, à Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições em dissídio coletivo, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção do trabalho - arr. 114, § 2°, parte final (competência normativa);II - eleger seus órgãos diretivos, organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correcional respectiva; prover, na forma da Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição, e, por concurso público, de provas, ou de provas e títulos, observado o disposto no art. 169, parágrafo único da Constituição os cargos necessários à administração da justiça, exceto os de confiança, assim definidos em lei; conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados (competência administrativa). A Constituição confere ainda ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira, cabendo aos Tribunais a elaboração de suas propostas orçamentárias ouvidos os outros Tribunais interessados, dentro dos limites estipulados conjuntamente com osdemais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.

& 6 OS MAGISTRADOS E SEU ESTATUTOPrevê a Constituição que lei complementar, de iniciativa do Supremo TribunalFederal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, que deverá observar princípios constantes do texto constitucional, que a seguir examinaremos. Antes, porém, é curial que se distingam juízes togados de juízes não-togados ou leigos. Marcelo Caetano assim se pronuncia:"Chamam-se togados, por poderem envergar a toga, traje profissional tradicional, os juízes diplomados em Direito, recrutados para a magistratura judicial mediante concurso de prestação de provas ou por virtude do anterior exercício de uma profissão parajudiciária (Ministério Público, advocacia ou outra). O juiz não-togado não é designado em razão dos seus específicos conhecimentos de Direito, mas por outros motivos, como sucede com os 392

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOjuízes militares e os juízes classistas na Justiça do Trabalho. Se se considerarem juízes ou jurados (juízes de fato), também eles serão não-togados, bem como os juízes de paz". (6)Passemos ao exame dos princípios constitucionais que se referem à magistratura:I - sistema de ingresso na carreira e promoções: o ingresso na carreira damagistratura, cujo cargo inicial é o de juiz substituto, se dará através de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação. A promoção se fará de entrância para entrância, alternadamente, por antigüidade e merecimento, atendidas as seguintes normas:a) é obrigatória a promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas oucinco alternadas em lista de merecimento;b) a promoção por merecimento pressupõe dois anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte da lista de antigüidade desta, salvo se não houver com tais requisitos quem aceite o lugar vago;c) aferição do merecimento pelos critérios de presteza e segurança no exercícioda jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos reconhecidos de aperfeiçoamento;d) na apuração da antigüidade, o Tribunal somente poderá recusar o juiz maisantigo pelo voto de dois terços de seus membros, conforme procedimento próprio,repetindo-se a votação até fazer-se a indicação. A Constituição estabelece ainda que o Estatuto deverá prever cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistrados como requisito para ingresso e promoção na carreira;II - acesso aos tribunais de segundo grau: o acesso aos tribunais de segundograu far-se-á por antigüidade e merecimento, alternadamente, apurados na últimaentrância ou, onde houver, no Tribunal de Alçada, quando se tratar de promoçãopara o Tribunal de Justiça, de acordo com o inciso II e a classe de origem.Observe-se que um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dosTribunais dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (o chamado quinto constitucional) será composto de membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados

de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes (Procuradorias Federal, Estadual e do Distrito Federal e Conselhos Federal ou Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil). Recebidas as indicações, o Tribunal Formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subseqüentes, escolherá um de seus integrantes

(6) CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, v. 2, P. 394-395.393

KILDARE GONÇALVES CARVALHOpara nomeação. Assim, a nomeação do quinto constitucional não é do Presidente do Tribunal, mas do Chefe do Executivo Federal ou Estadual. A Constituição, contudo, não prevê sanção para o descumprimento do prazo de vinte dias de que dispõe o Chefe do Executivo para a nomeação do quinto constitucional (art. 94).A propósito da alusão final do inciso III do art. 93 - classe de origem -, oSupremo Tribunal Federal se pronunciou no sentido de que esta expressão "nãointerfere no critério fixado no seu art. 94, pois os Juízes do Tribunal de Alçada ao nele ingressarem, embora o tenham feito como membros do Ministério Público ou advogados, passam a ser considerados magistrados, e em tal qualidade é que concorrerão às vagas dos quatro quintos dos Tribunais de Justiça, destinados a tal categoria. Não há, magistrados que passaram a ser, como considerá-los ainda integrantes da classe dos advogados ou membros do Ministério Público para os fins do art. 94 da Constituição Federal, que nenhuma ressalva estipula a respeito (7).O próprio Supremo Federal, entretanto, ao julgar, em 9 de junho de 1994, a ADIn n. 813-7, modificou esse entendimento para admitir a tese de que onde houverTribunal de Alçada as vagas do quinto constitucional ocorridas no Tribunal de Justiça serão providas por integrantes do Tribunal de Alçada pertencentes à classe de advogados ou membro do Ministério Público, inaplicando-se, nesse caso, o disposto no art. 94 da Constituição;III - subsídios: o subsídio dos Ministros dos Tribunais Superiores corresponderá a noventa e cinco por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal e os subsídios dos demais magistrados serão fixados em lei e escalonados, em nível federal e estadual, conforme as respectivas categorias da estrutura judiciária nacional, não podendo a diferença entre uma e outra ser superior a dez por cento ou inferior a cinco por cento, nem exceder a noventa e cinco por cento do subsídio mensal dos Ministros dos Tribunais Superiores, obedecido, em qualquer caso, o disposto nos arts. 37, XI e 39, § 4°.IV - aposentadoria: a aposentadoria, sempre com proventos integrais, é compulsória por invalidez ou aos setenta anos de idade, e facultativa aos trinta anos de serviço, após cinco de exercício efetivo na judicatura;V - publicidade das decisões: os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes, e a seus advogados, ou somente a estes;VI - órgão especial: nos Tribunais com número superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais da competência do Tribunal pleno. Constitui atribuição relevante desse órgão especial a declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do Poder Público, pelo voto da maioria de seus membros (art. 97).

(7) BRASÍLIA. STF. ADIn n. 29/2-RS, Rel.: Min. Aldir Passarinho. DJ de 22/6/90.394

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO O Estatuto da Magistratura, que deverá observar os princípios acima mencionados, estabelecerá os direitos e os deveres dos magistrados, podendo ainda prever sanções pelo seu descumprimento.

& 7 ORGANIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

Vê-se do art. 92 da Constituição, que são órgãos do Poder Judiciário:a) Supremo Tribunal Federal;b) Superior Tribunal de Justiça;c) Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais;d) Tribunais e Juízes do Trabalho;e) Tribunais e Juízes Militares;f) Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.Integram, pois, o Poder Judiciário, além do Supremo Tribunal Federal, que é o seu órgão de cúpula, Tribunais (órgãos colegiados) e Juízes Federais e de Direito (órgãos monocráticos).Mantém a Constituição a dualidade da magistratura, eis que prevê Justiça Federal (Comum e Especializada) e Justiça dos Estados (Comum e Especializada Militar).À Justiça Federal Especializada (do Trabalho, Eleitoral e Militar), conforme examinaremos adiante, cabe processar e julgar matérias de natureza do trabalhoeleitoral e militar, e à Justiça Federal Comum cabe processar e julgar o remanescente, ou seja rodo o resíduo, desde que haja interesse da União, exceto as causas de falência, acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.À Justiça Estadual cabe aplicar o direito estadual e o federal comum, desde quenão haja interesse da União. Na realidade, a Justiça Estadual aplica mais as leis federais do que as estaduais.A Constituição criou um órgão novo de superposição na estrutura do Poder Judiciário: o Superior Tribunal de Justiça, corte de cassação, cuja competência se relaciona com o contencioso da lei federal, ficando o contencioso constitucional com o Supremo Tribunal Federal, a quem compete, "precipuamente, a guarda da Constituição" (art. 102).

& 8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERALA Constituição de 1824 previa um Supremo Tribunal de Justiça (arts. 163 e 164), que foi sucedido pelo Supremo Tribunal Federal, organizado pelo Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, mas previsto anteriormente pelo Decreto n. 510, de395

KILDARE GONCALVES CARVALHO22 de junho de 1890, que publicou o texto da Constituição elaborada pela "Comissão dos Cinco" e revisto por Rui Barbosa.A Constituição de 1891 instituiu o Supremo Tribunal Federal, composto dequinze Juízes, tendo a Constituição de 1934 alterado o nome do Supremo Tribunalpara Corte Suprema e reduzido o número de juízes para onze (art. 73), facultando, no entanto, sua elevação para dezesseis. O Supremo teve o seu nome de origem restaurado pela Constituição de 1937, sendo que o número de Ministros, que era de onze na vigência da Constituição de 1946, foi aumentado para dezesseis pelo Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965, número este mantido na Constituição de 1967. A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, reduziu o número de Ministros para onze (art. 118).O Supremo Tribunal Federal é, pela Constituição de 1988, composto de onze Ministros, nomeados pelo Presidente da República, dentre cidadãos (brasileiros natos - art. 12, § 3°, IV) com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.Tem sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional (art. 92, parágrafo único).Vê-se inicialmente que o Supremo Tribunal Federal não constitui final de carreira da magistratura, pois a Constituição não exige a pré-condição de magistrado para o cargo de Ministro, mas o preenchimento dos requisitos acima referidos.O texto constitucional de 1988 conferiu ao Supremo Tribunal Federal a função precípua de guarda da Constituição, retirando-lhe, por conseguinte, as funçõesque anteriormente lhe eram conferidas de guarda da lei federal e uniformizador da jurisprudência, que foram deslocadas para o Superior Tribunal de Justiça, órgão novo integrante da estrutura do Poder Judiciário.É importante assinalar, ainda, que o regimento interno do Supremo não mais terá força normativa no que concerne aos requisitos para os feitos de sua competência.

Observe-se que a função de guarda da Constituição não é privativa do PretórioExcelso, pois, como nosso Direito consagra o sistema difuso de controle, outrosórgãos do Poder Judiciário, desde que competentes para apreciar o caso concreto, o são também para a declaração de inconstitucionalidade. De outra parte, o Supremo não teve reduzida sua competência tão-só ao controle da constitucionalidade. Pelo que se vê da Constituição, continua competente para processar e julgar outras causas: ações penais; habeas corpus; mandados de segurança; litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; homologação de sentença estrangeira, e a concessão de exequatur às cartas rogatórias; extradição solicitada por Estado estrangeiro; revisão criminal e ação rescisória de seus julgados; reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões. 396

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOO Supremo Tribunal Federal exerce competência originária e recursal (ordinária e extraordinária).Os casos acima mencionados se inserem na competência originária do Supremo, constituindo inovações: o processo e julgamento, nas infrações penais comuns,de seus próprios Ministros; o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância (redação dada pela EC n. 22/99); o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal.Destacam-se, na competência originária do Supremo Tribunal Federal, o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de lei contra ato normativo federal ou estadual, segundo o art. 103 (a inconstitucionalidade de lei ouato normativo municipal limitada à Constituição estadual é, por via de ação direta, de competência dos Tribunais estaduais - art. 125, § 2°). Poderá haver pedido de medida cautelar (arr. 102, I, p). Em todas as argüições de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal, deverá ser previamente ouvido o Procurador-Geral da República. Nesse aspecto vale a crítica do Ministro Moreira Alves:"Quem tem a mínima vivência de Supremo Tribunal Federal sabe que seus juízes, por via de regra, ouvem a Procuradoria Geral da República em percentagem não superior a 10 ou 15 por cento dos processos a serem julgados, e, isso não obstante, a demora nela é substancial. Os Procuradores da Republica não atuam somente para o Supremo Tribunal Federal, mas emitem pareceres também, hoje, para os Tribunais de Justiça, tribunais esses também de imensa sobrecarga de serviços. Para que a audiência obrigatória da Procuradoria em agravos de instrumento contra decisões de não-admissão de recurso extraordinário até por intempestividade?" (8)Na competência recursal ordinária, o Supremo Tribunal Federal julga, em grau de recurso ordinário (art. 102, II), o crime político, os habeas corpus, o mandadode segurança, o habeas data e o mandado de injunção, decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão.Não é fácil a caracterização do crime político. Aníbal Bruno, escrevendo sobre otema, diz que "o seu objetivo não é egoísta, mas altruísta; não é o dano, mas a melhoria das condições de vida coletiva. Enfim, a evolução dos povos, todas as grandes transformações

(8) ALVES, Moreira. Poder Judiciário. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações, p.205.397

KILDARE GONÇALVES CARVALHOpolítico-sociais da humanidade processam-se geralmente através de movimentos que integram tipos de crimes políticos. Vitoriosos, os seus autores são proclamadosheróis; vencidos, são processados e punidos, mas suas idéias inspiram muitas vezes novos movimentos possivelmente mais felizes, consagrando-se, então, mártires os seus precursores. Tomado assim o conceito, tem-se procurado estabelecer distinções entre os crimes políticos: crimes políticos próprios, os que ofendem a organização política do Estado; crimes políticos

impróprios, os que acometem um direito político do cidadão. E, ainda, crimes políticos puros, os que têm exclusivamente caráter político; e crimes políticos relativos, compreendendo os complexos ou mistos, que ofendem ao mesmo tempo um direito político e um bem jurídico tutelado pelo Direito Penal Comum; e os crimes comuns conexos a crimes políticos". (9) Assinale-se que na competência recursal ordinária não se subtrai do Supremoo exame do fato. Assim, poderá ser apreciado e revisto todo o contexto probatório do processo, o que não é possível em se tratando de recurso extraordinário.Na competência recursal extraordinária (art. 102, III), o Supremo Tribunal Federal se limita a examinar matéria constitucional, já que o contencioso da leifederal, que antes era tratado no recurso extraordinário, passou para a competência do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, III, a, b e c). Assim, ao Supremo Tribunal Federal cabe julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo da Constituição federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal.Finalmente, o parágrafo único do art. 102 diz que "a argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei", que deverá dispor sobre as normasprocedimentais próprias.

& 9 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇAO Superior Tribunal de Justiça, órgão de superposição na estrutura do PoderJudiciário, foi criado pela Constituição de 1988. Sua instalação se deu com a dos cinco Tribunais Regionais Federais, previstos no § G° do art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A composição inicial do Superior Tribunal de Justiça se efetivou de acordo com o disposto no § 2° do art. 27 das mencionadas Disposições Transitórias.O Ministro Antônio de Pádua Ribeiro esclarece que "o Superior Tribunal de Justiça nada tem a ver, em última análise, com a Justiça Especial, pois, conforme salientado, é o órgão de cúpula da Justiça Comum, federal e estadual. A Justiça Especializada

(9) BRUNO, Aníbal. Direito penal, t. 2, P. 224-226.398

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOcontinua a ser a Eleitoral, a Militar e a do Trabalho. O único elo entre o STJ e a Justiça Especial concerne à sua competência para julgar conflitos de competência." (10)Segundo a Constituição, o Superior Tribunal de Justiça tem sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional (art. 92, parágrafo único). Compõe-se de, no mínimo, trinta e três Ministros (número que poderá ser ampliado por lei), nomeados pelo Presidente da República, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, sendo:a) um terço dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais e um terço dentredesembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal;b) um terço, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territórios, alternadamente, indica-dos na forma do art. 94 da Constituição, ou seja, lista sêxtupla elaborada pelosórgãos de representação de classe, depois lista tríplice formada pelo Tribunal que a encaminhará ao Presidente da República para nomeação.O Superior Tribunal de Justiça exerce competência originária e recursal ordinária e especial.No exercício da competência originária, cabe ao Superior Tribunal de Justiçaprocessar e julgar (art. 105, I, a até h): nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério

Público da União que oficiem perante Tribunais; os mandados de segurança e os habeas data contra ato de Ministro de Estado ou do próprio Tribunal; os habeas corpus, quando o coator ou paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea do inciso I do art. 105, quando coator for tribunal, sujeito à jurisdição do STJ, ou Ministro de Estado, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral ( redação dada pela EC n. 22/99); os conflitos de jurisdição entre quaisquer Tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, o, bem como entre Tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a Tribunais diversos; as revisões criminais e as ações rescisórias de seus julgados; a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; os conflitos de atribuições entre autoridades administrativas e judiciárias da União, ou entre autoridades judiciárias de um Estado e administrativas de outro,

(10) RIBEIRO, Antônio de Pádua. O Superior Tribunal de Justiça e a Justiça Especial. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações. p. 215.399

KILDARE GONCALVES CARVALHOou do Distrito Federal, ou entre as deste e da União; o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuados os casos de competência do Supremo Tribunal Federal e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal.A competência recursal ordinária (há exame do fato e do direito) se refere às seguintes matérias (art. 105, II, a a c): os habeas corpus decididos em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for denegatória; os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegarória a decisão; as causas em que forem partes Estado estrangeiro ou organismo internacional de um lado, e, do outro lado, Município ou pessoa residente ou domiciliada no País.É na competência recursal especial que se tem justificado a criação do Superior Tribunal de Justiça, pois, através do recurso especial, desempenhará a função deguardião da lei federal e de órgão uniformizador da jurisprudência dos Tribunais, tarefas estas atribuídas anteriormente ao Supremo Tribunal Federal.Assim, cabe ao Superior Tribunal de Justiça (art. 105, III, a a c) julgar, emrecurso especial, as causas decididas, em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal (por envolver, por parte de lei local, invasão de competência de lei federal, essa é uma questão também constitucional, pelo que poderá haver recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal contra a decisão do próprio Superior Tribunal de Justiça); der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro Tribunal.Uma observação final: nada impede que o Superior Tribunal de Justiça examine matéria constitucional, restrita, no entanto, às causas de sua competência originária e ordinária, pois na especial só aprecia matéria infraconstitucional.

& 10 JUSTIÇA FEDERAL COMUMSão órgãos da Justiça Federal Comum os Tribunais Regionais Federais e osJuízes Federais de 1a instância.A Justiça Federal Comum foi instituída pelo Decreto n. 848, de 11 de outubrode 1890, antes mesmo da Constituição da República de 1891, estabelecendo que oPoder Judiciário da União seria exercido pelo Supremo Tribunal Federal e tantosjuízes e Tribunais federais, distribuídos pelo País, quantos o Congresso criasse.A Constituição de 1937 suprimiu a Justiça Federal, passando sua competênciapara os juízes estaduais. O Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965, restaurou400

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOa Justiça Federal de 1 a instância, pois já existia a 2a instância desde a Constituição de 1946, que criou o Tribunal Federal de Recursos.A Constituição de 1988 regionalizou a 2a instância da Justiça Federal, ao prever os Tribunais Regionais Federais, com jurisdição e sede a serem determinadas emlei (art. 107, parágrafo único), notando-se, contudo, que o art. 27, § 6°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias criou desde logo cinco Tribunais Regionais Federais, cuja sede e jurisdição foram fixadas pelo Tribunal Federal de Recursos, extinto com a instalação desses Tribunais.Os Tribunais Regionais Federais compõem-se de, no mínimo, sete juízes, recrutados, quando possível, na respectiva região, e nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, sendo um quinto dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade profissional e membros do Ministério Público Federal com mais de dez anos de carreira, indicados na forma do art. 94, parágrafo único, e os demais, mediante promoção de juízes federais com mais de cinco anos de exercício, por antigüidade e merecimento, alternadamente (art. 107, I e II).Compete aos Tribunais Regionais Federais:I - processar e julgar originariamente os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região; os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal; e os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal;II - julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.Os juízes federais de 1 a instância ingressam na carreira mediante aprovação,em concurso público de provas e títulos, sendo-lhes aplicáveis, quanto à investidura, o disposto no art. 93, I, e no art. 96, I, c.A competência da Justiça Federal é fixada em razão da pessoa interessada, ouseja, União, autarquia ou empresa publica federal, havendo ainda competência emrazão da matéria, prevista nos incisos III, IV, V, VI, IX, X e XI do art. 109.Diz a Constituição que cada Estado, bem como o Distrito Federal, constituiráuma seção judiciária, que terá por sede a respectiva Capital, varas localizadas, segundo o estabelecido em lei.As causas em que a União for autora serão, todavia, aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte (art. 109, § 1°). 401

KILDARE GON ALVES CARVALHO�As causas intentadas contra a União poderão ser ajuizadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal (art. 109, § 2°).Serão processadas e julgadas na Justiça Estadual, no foro do domicílio dossegurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela Justiça Federal, com recurso cabível para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau (art. 109, §§ 3° e 4°).

& 11 JUSTIÇA DO TRABALHOA Justiça do Trabalho foi criada, como órgão do Poder Judiciário, na Constituição de 1946.São órgãos da Justiça do Trabalho: Tribunal Superior do Trabalho, Tribunais Regionais do Trabalho e Juntas de Conciliação e Julgamento (art. 3°, I a III), podendo a lei atribuir a jurisdição trabalhista aos Juízes de Direito na comarca onde não houver Junta de Conciliação e Julgamento (art. 112).

O Tribunal Superior do Trabalho é composto de vinte e sete Ministros, escolhidos dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo Senado Federal, sendo dezessete togados e vitalícios, dos quais onze escolhidos dentre juízes de carreira da magistratura trabalhista, três dentre advogados e três dentre membros do Ministério Público do Trabalho; dez classistas temporários, com representação paritária dos trabalhadores e empregadores. O Tribunal encaminhará ao Presidente da República listas tríplices, observando-se, quanto às vagas destinadas aos advogados e aos membros do Ministério Público, o disposto no art. 94, e, para os classistas, o resultado de indicação do colégio eleitoral integrado pelas diretorias das confederações nacionais de trabalhadores ou empregadores, conforme o caso; as listas tríplices para o provimento de cargos destinados aos juizes da magistratura trabalhista de carreira deverão ser elaboradas pelos Ministros togados e vitalícios (art. 111 § 2°).Os Tribunais Regionais do Trabalho serão compostos de juízes nomeados peloPresidente da República, sendo dois terços de juízes togados vitalícios e um terço de juízes classistas temporários, observada, entre os juízes togados, a proporcionalidade estabelecida no art. 111, § 1°, I. Os magistrados dos Tribunais Regionais do Trabalho serão juízes do trabalho, escolhidos por promoção, alternadamente, por antigüidade e merecimento; advogados e membros do Ministério Publico do Trabalho, obedecido o disposto no art. 94; classistas indicados em listas tríplices pelas diretorias das federações e dos sindicatos com base territorial na região. 402

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOHaverá pelo menos um Tribunal Regional do Trabalho em cada Estado e no Distrito Federal.A Junta de Conciliação e Julgamento será composta de um juiz do trabalho, que a presidirá, e dois juízes classistas temporários, representantes dos empregadose empregadores. Note-se que a Constituição sempre fala em juízes classistas, mesmo na composição das Juntas de Conciliação e Julgamento. Neste caso, serão nomeados pelo Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, na forma da lei, permitida uma recondução.Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais ecoletivos entre trabalhadores e empregadores, com abrangência dos entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas (art. 114).A Constituição retirou, portanto, a competência da Justiça Federal Comum notocante aos dissídios decorrentes das relações de trabalho entre a União e empregado seu, cabendo agora aos órgãos da Justiça do Trabalho a competência para o seu processo e julgamento.Quanto aos servidores públicos civis sujeitos às normas estatutárias, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido de que a decisão sobre litígios entre a Administração Pública e seus servidores excede da competência da Justiça do Trabalho. (11)" O Superior Tribunal de Justiça também entendeu que "a disposição ínsita no art. 114 da Constituição não abrange o pessoal estatutário, dizendo unicamente com aquele submetido ao regime celetista". (12)Não obstante tais pronunciamentos, previa o art. 240, e, da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990 (disposição mantida pelo Congresso Nacional, em decorrência da rejeição de veto presidencial), que era assegurado ao servidor público civil, entre outros direitos, o de ajuizamento, individual e coletivamente, perante a Justiça do Trabalho.O Supremo Tribunal Federal, apreciando a ação direta de inconstitucionalidade n. 492-1, proposta pelo Procurador-Geral da República, declarou inconstitucionais as alíneas d e e do arr. 240 da Lei n. 8.112/90, que asseguravam ao servidor público civil da União os direitos de negociação coletiva (alínea d) e deajuizamento de dissídio coletivo e individual perante a Justiça do Trabalho (decisão de 12 de novembro de 1992).Observe-se, finalmente, que, por força do § 3° do art. 114, acrescentado àConstituição pela Emenda Constitucional n. 20/98, compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, a, e II, e seus acréscimos legais,

decorrentes das sentenças que proferir.

(11) BRASÍLIA, STF. Conflito de Jurisdição 6.829-8-SP. DJ de 14/4/89.(12) BRASÍLIA, STJ. Conflitos de Competências 1.203-PR e 1.336-SP. DJ de 24/9/90.403

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 12 JUSTIÇA ELEITORALA Justiça Eleitoral data do Código Eleitoral de 1932, tendo sido constitucionalizada na Carta de 1934. Antes de sua instituição, cabia às próprias Câmaras o processo de verificação de poderes. Diz Victor Nunes Leal que "duas falsificações mais importantes dominavam as eleições da Primeira República: o bico de pena e a degola ou depuração. A primeira era praticada pelas Mesas eleitorais, com funções de junta apuradora: inventavam-se nomes, eram ressuscitados os mortos, e os ausentes compareciam; na feitura das atas, a pena todo-poderosa dos mesários realizava milagres portentosos. A segunda metamorfose era obra das Câmaras legislativas no reconhecimento de poderes: muitos dos que escapavam das ordálias preliminares tinham seus diplomas cassados na provação final." (13)A competência da Justiça Eleitoral será fixada em lei complementar, diz o art. 121 da Constituição, sendo certo que a ela cabe fiscalizar todo o processo eleitoral, desde a qualificação do eleitor até a proclamação dos eleitos. A Constituição de 1988 estabeleceu, no § 10 do art. 14, que o mandato eletivo obtido mediante abuso do poder econômico, corrupção ou fraude poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação.Peculiaridade da Justiça Eleitoral, no que concerne à composição de seus Tribunais, é a regra segundo a qual os juízes dos Tribunais eleitorais, salvo motivo justificado, servirão por dois anos, no mínimo, e nunca por mais de dois biênios consecutivos (§ 2°, art. 121), procurando assim garantir os juízes eleitorais contra a suspeita da parcialidade, pela natureza mesma do processo eleitoral que envolve intensa paixão partidária.São órgãos da Justiça Eleitoral:a) Tribunal Superior Eleitoral;b) Tribunais Regionais Eleitorais;c) Juízes Eleitorais, que são os Juízes de Direito Estaduais ou do Distrito Federal;d) Juntas Eleitorais.O Tribunal Superior Eleitoral compor-se-á, no mínimo, de sete membros, escolhidos:I - mediante eleição, pelo voto secreto; a) três juízes dentre os Ministros doSupremo Tribunal Federal; b) dois juízes dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça;

(13) LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto, p. 229.404

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOII - por nomeação do Presidente da República, dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo TribunalFederal. O Presidente e o Vice-Presidente do Tribunal Superior Eleitoral serão eleitos pelo próprio Tribunal dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal, e o Corregedor Eleitoral, dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça.São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que contrariarem a Constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança, dada a existência de um calendário eleitoral com prazos exíguos, que devem ser cumpridos à risca, em razão do próprio processo eleitoral.Haverá um Tribunal Regional Eleitoral na Capital de cada Estado e no Distrito Federal, cuja composição é a seguinte: I - mediante eleição, pelo voto secreto: a) dois juízes dentre os Desembargadores do Tribunal de Justiça; b) dois juízes, dentre Juízes de Direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça;II - um juiz do Tribunal Regional Federal com sede na Capital do Estado ou no Distrito Federal, ou, não havendo, de juiz federal, escolhido, em qualquer caso,

pelo Tribunal Regional Federal respectivo;III - por nomeação, pelo Presidente da República, de dois juízes dentre seisadvogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça. O Presidente e o Vice-Presidente do Tribunal Regional Eleitoral serão eleitos pelo próprio Tribunal, dentre os Desembargadores.São também irrecorríveis as decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais, pelosmesmos motivos antes apontados, e somente caberá recurso quando: forem proferidas contra disposição expressa da Constituição ou de lei; ocorrer divergência na interpretação da lei entre dois ou mais Tribunais eleitorais; versarem sobre inelegibilidade ou expedição de diplomas nas eleições federais e estaduais; anularem diplomas ou decretarem a perda de mandatos eletivos federais ou estaduais e denegarem habeas corpus, mandado de segurança, habeas data ou mandado de injunção (arr. 121, § 4°, I a V).

& 13 JUSTIÇA MILITARA Justiça Militar foi organizada em 1808, através de alvará assinado por D.João VI, e era composta do Conselho Supremo Militar de Justiça, e dos Conselhos de Guerra de 1a instância. A Constituição Republicana de 1891 instituiu um Supremo Tribunal Militar no âmbito do Poder Executivo. A Justiça Militar passou a integrar o Poder Judiciário com a Constituição de 1934, tendo a Constituição de 1946 alterado a denominação do Supremo Tribunal Militar para Superior Tribunal Militar.405

KILDAKE GONÇALVES CARVALHOA Constituição de 1988 dispõe sobre a organização da Justiça Militar no art.122, e no art. 123 trata da composição do Superior Tribunal Militar. São órgãos da Justiça Militar: a) Superior Tribunal Militar; b) Tribunais e Juízes instituídos por lei (Auditorias Militares do Exército, Marinha e Aeronáutica Militar). O Superior Tribunal Militar compõe-se de quinze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis. Os Ministros civis serão escolhidos pelo Presidente da República dentre brasileiros maiores de trinta e cinco anos, sendo:I - três dentre advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, commais de dez anos de efetiva atividade profissional;II - dois, por escolha paritária, dentre juízes auditores e membros do Ministério Público da Justiça Militar.Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares definidos emlei. Assim, poderão os civis se submeter ao Foro militar, desde que sejam considerados autores de crime militar (assemelhados).

& 14 JUIZADOS ESPECIAIS E )USTIÇA DE PAZA Constituição prevê, no art. 98, I e II, a criação, pela União, no DistritoFederal e nos Territórios, e pelos Estados, de:I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação e julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Observe-se que poderá haver recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal contra a decisão desses juizados especiais ou da turma julgadora, na hipótese de violação da Constituição (art. 102, III, a). Pela Emenda Constitucional n. 22/99, foi acrescido o parágrafo único ao art. 98 da Constituição, prevendo que lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal;II - justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto,universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma dalei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo

de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação.406

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 15 JUSTIÇA DOS ESTADOSA Constituição, embora inclua de maneira imprópria os Tribunais e Juízes dosEstados na estrutura do Poder Judiciário nacional, dispõe, em seu art. 125, que os Estados organizarão a sua Justiça, observados os princípios nela estabelecidos.O Poder Judiciário dos Estados será exercido pelo Tribunal de Justiça como órgão de cúpula (2a instância) e pelo Tribunal de Alçada, órgão inferior de 2a instância, que poderá ser criado, pela referência que a ele faz a Constituição, no art. 93, III.O acesso a esses Tribunais se dará por antigüidade ou merecimento, alternadamente, apurados na última entrância ou, onde houver, no Tribunal de Alçada, quando se tratar de promoção para o Tribunal de Justiça, de acordo com o inciso II do art. 93 e a classe de origem. A composição numérica dos Tribunais estaduais de 2a instância será fixada em lei, e sua competência será definida na Constituição do Estado. Um quinto desses Tribunais será composto de membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados na forma do art. 94 e seu parágrafo único, conforme já examinamos.Poderá ser criado nos Tribunais estaduais de 2a instância, desde que sua composição seja superior a vinte e cinco julgadores, órgão especial para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais da competência do Tribunal pleno (art. 93, XI).Cabe ao Tribunal de Justiça a iniciativa privativa para propor à AssembléiaLegislativa projeto de lei de alteração da organização e da divisão judiciárias (art. 96, II, d).Os Estados instituirão a representação de inconstitucionalidade de leis ou atosnormativos estaduais ou municipais, em Face da Constituição Estadual, vedada a um único órgão a legitimação para agir.O Tribunal de Justiça, para dirimir conflitos fundiários, designará juízes deentrância especial, com competência exclusiva para questões agrárias, os quais, sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, far-se-ão presentes no local do litígio.Pensamos que essa competência deveria ter sido deferida à Justiça Federal,porque a maioria dos conflitos fundiários se acha relacionada com a reforma agrária, cuja competência para efetivá-la (declaração de interesse social e conseqüente processo expropriatório) é privativa da União.Os Juízes de Direito têm as garantias da magistratura em geral e se sujeitam aoseu estatuto, sendo-lhes aplicáveis o que dissemos nos itens 4 e 6 acima.Poderão ainda os Estados instituir, mediante proposta do Tribunal de JustiçaMilitar Estadual, constituída, em primeiro grau, pelos Conselhos de Justiça e, em segundo, pelo próprio Tribunal de Justiça ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo da polícia militar seja superior a vinte mil integrantes. Compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os policiais militares e os bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, cabendo ao Tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. 407

Capítulo 21FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA

Sumário1 Ministério Público - Posição constitucional2 Advocacia Geral da União3 Defensoria Pública4 Advocacia

& 1 MINISTÉRIO PÚBLICO - POSIÇÃO CONSTITUCIONALA Constituição dispensa ao Ministério Público tratamento especial, instituindo princípios, ampliando suas funções e fixando garantias tanto para a instituiçãocorno para seus membros.Não é um quarto poder do Estado, mas a Constituição coloca o Ministério Público a salvo de ingerências dos outros Poderes, assegurando aos seus membros independência no exercício de suas funções. Com efeito, o Ministério Público é conceituado pela Constituição como instituição permanente, essencial à funçãojurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, o Ministério Público não promove a defesa dos interesses dos governantes, de quem se acha desvinculado, mas busca a realização dos interesses da sociedade.

& 1.1 Princípios, autonomia e garantias Diz a Constituição que são princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, assegurada autonomia funcional e administrativa.Unidade quer dizer que os membros do Ministério Público integram um só órgão sob a direção de um só chefe; "indivisibilidade significa que seus membros podem ser substituídos uns pelos outros, não arbitrariamente, porém, sob pena de grande desordem, mas segundo a forma estabelecida em lei".(1) Assim, os poderes dosProcuradores-Gerais encontram limite na própria independência funcional dosmembros da instituição. Não fala a Constituição expressamente em autonomia orçamentária e financeira, restando, pois, a controvérsia. Entende, contudo, Hugo Nigro Mazzilli que oMinistério Público dispõe de tal autonomia, "que é inerente aos órgãos funcionalmente independentes, como são o Ministério Público e os Tribunais de Contas, os quais não poderiam realizar plenamente as suas funções se ficassem na dependência financeira de outro órgão controlador de suas dotações orçamentárias" (2) (a Constituição

(1) MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988, p. 53.(2) MAZZILLI, Hugo Nigro. Op. cit., p. 61.411

KILDARE GONÇALVES CARVALHOdispõe que o Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro doslimites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias - art. 127, § 3°).A autonomia financeira do Ministério Público vem, no entanto, asseguradaexpressamente no art. 3° da Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, que instituiu a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.Passa o Ministério Público a dispor, pelo texto constitucional de 1988, de iniciativa para propor ao Poder Legislativo projeto de lei sobre a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, bem como sobre a organização, atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, sendo esta última matéria, no âmbito da União, de iniciativa concorrente com o Presidente da República (art. 61, § 1°, II, d).O provimento dos cargos e serviços auxiliares da instituição é de competênciaprivativa do Chefe do respectivo Ministério Público (art. 127, § 2°).As garantias asseguradas pela Constituição aos membros do Ministério Público são as da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio, fixado na forma do art. 39, § 4°, e ressalvado o disposto nos arts. 37, X, e XI, 150, II, 153, III, 153, § 2°, I. E a eles vedado: receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; exercer a advocacia, participar de sociedade comercial, na forma da lei, e exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério. Note-se, contudo, que a Constituição, em disposição transitória dirigida aos Procuradores da República, possibilitou opção pelo regime anterior, quanto a garantias e vantagens, bem como quanto a vedações (art. 29, § 3°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

& 1.2 Funções do Ministério PúblicoO Ministério Público teve suas funções institucionais ampliadas pela Constituição.Assim, cabe-lhe, de acordo com o art. 129:a) promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;b) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevânciapública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;c) promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção dopatrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos ecoletivos;d) promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins deintervenção da União e dos Estados;e) defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;f) expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;412

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOg) exercer o controle externo da atividade policial, na forma da referida leicomplementar;h) requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial,indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;i) exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis comsua finalidade.No exercício de suas funções, o Ministério Público atua como agente ou interveniente, sendo exemplo, no primeiro caso, a titularidade da ação penal pública, da ação civil pública, dentre outras, e, no outro, a intervenção em processos onde haja de atuar como fiscal da lei. Hugo Nigro Mazzilli fala ainda em funções típicas, como nos casos acima citados, em que incumbe ao Ministério Público atividades peculiares ou intrínsecas às suas finalidades e funções atípicas, como, por exemplo, o patrocínio do reclamante trabalhista, ou nas hipóteses de substituição processual do revel ficto, dentre outras. (3)É importante destacar que a Constituição veda ao Ministério Público a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (art. 129, IX, parte final), pois, na realidade, nada justificava o exercício dessa atribuição, e que agora foi proibida pelo texto constitucional, dentro do princípio de que os membros do Ministério Público são "partes imparciais" e não advogados de entidades públicas.

& 1.3 Os diversos Ministérios PúblicosA Constituição prevê os seguintes Ministérios Públicos:I - O Ministério Público da União, que compreende: a) o Ministério PúblicoFederal; b) o Ministério Público do Trabalho; c) o Ministério Público Militar; d) o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.II - Os Ministérios Públicos dos Estados:.Dentro do propósito de fortalecimento da instituição, a Constituição estabeleceu novos critérios para a indicação do Procurador-Geral da República, Chefe doMinistério Publico da União, que será. nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação do nome pela maioria absoluta do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução, sendo que sua destituição, por iniciativa do Presidente da República, deverá ser precedida de autorização do Senado Federal, por sua maioria absoluta.

(3) MAZZILLI, Hugo Nigro. Op. cit., p. 95-96.413

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

Dessa forma, evita-se a tutela presidencial sobre o Procurador-Geral da República, que assim vê ampliada sua independência.Assinale-se, no entanto, que a possibilidade de recondução, para mandatos sucessivos do Procurador-Geral da República (a Constituição não menciona a expressão "uma única recondução"), longe de fortalecer o Ministério Público, afronta o princípio da periodicidade do mandato, o qual o próprio Ministério Público está obrigado a defender (art. 127).A nomeação e destituição dos Procuradores-Gerais nos Estados, Distrito Federal e Territórios seguem os parâmetros constitucionais para o Procurador-Geral daRepública (art. 128, §§ 3° e 4°), valendo assinalar que a sua nomeação se faz mediante lista tríplice elaborada pela respectiva instituição.Enfim, o ingresso na carreira do Ministério Público se dá mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, e observada, nas nomeações, a ordem de classificação (art. 129, § 3°).

& 2 ADVOCACIA GERAL DA UNIÃOA representação judicial e extrajudicial da União é feita pela Advocacia Geralda União, sendo vedada ao Ministério Público essa função. A Advocacia Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre" nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. O ingresso nas classes iniciais da carreira far-se-á por concurso público de provas e títulos (art. 131, §§ 1° e 2°).A Advocacia Geral da União é regulada pela Lei Complementar n. 73, de 10 defevereiro de 1993. Trata ainda a Constituição das Procuradorias dos Estados, quando dispõe noart. 132, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/98, que osProcuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades da federação. Prevê ainda o parágrafo único daquele artigo que aos procuradores é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias. Ressalte-se, no entanto, que o art. 69 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias permitiu aos Estados manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias Gerais ou Advocacias Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tivessem órgãos distintos para as respectivas funções.414

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 3 DEFENSORIA PÚBLICAConstitui um dos princípios da igualdade jurisdicional o acesso ao Poder Judiciário pelos ricos e pobres. A Constituição prescreve, no seu art. 5°, LXXIV, que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.O benefício da justiça gratuita, como direito à dispensa de despesas processuais, é regulado pela Lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, cujos arts. 1° e 4° foram alterados pela Lei n. 7.510, de 4 de julho de 1986.A assistência jurídica a ser prestada pelo Estado aos necessitados é integral:aquele que se encontre em situação de miserabilidade será dispensado de despesasprocessuais, providenciando-lhe ainda o Estado defensor em juízo. A Defensoria Pública é, assim, órgão essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-1he a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, e será organizada no âmbito da União, do Distrito Federal e dos Territórios, por lei complementar que fixará ainda normas gerais para sua organização nos Estados (art. 134, parágrafo único). Trata-se da Lei Complementar n. 80, de 12/1/94.A Constituição Federal assegura a isonomia de vencimentos para as carreirasque acabamos de examinar.

A propósito do tema, acentua Celso Bastos:"Em alguns casos poderá apresentar alguma dificuldade o dizer se determinado cargo tem funções senão iguais, ao menos assemelhados, como exige o dispositivo acima transcrito (art. 39, § 1°). Todavia, com respeito às carreiras do Ministério Público, da Advocacia Geral da União, das Procuradorias Estaduais e das Defensorias Públicas em geral, não pode haver dúvidas quanto à sua inserção debaixo do preceito equiparador, por força do art. 135 da Constituição que manda à lei regulamentar dar implemento a essa medida isonômica". (4)Não obstante esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal, no julgamentoda Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 171-0, ocorrida em sessão do dia 15 de abril de 1993, não reconheceu a isonomia das carreiras jurídicas com o Ministério Público. (5)Essa matéria recebeu, no entanto, novo contorno constitucional, quando pelaredação dada ao art. 135, pela Emenda Constitucional n. 19/98, ficou expresso que os servidores integrantes das carreiras disciplinadas nas Seções II e III do Capítulo IV do Título IV, serão remunerados na forma do art. 39, § 4°, é dizer, por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória.

(4) BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 342.(5) DJU de 3/6/94, p. 13.853.415

KILDARE GONÇALVES C,SRVALHO

& 4 ADVOCACIAO art. 133 da Constituição diz que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão e nos limites da lei.É a primeira vez que uma Constituição Federal brasileira dedica disposição aoadvogado. Na realidade, os advogados têm tido papel destacado na vida judiciária e política brasileira, sendo agora de se lhes exigir a defesa não só da ordem jurídica, mas sobretudo das instituições do Estado Democrático de Direito.Quanto à atuação do advogado como indispensável à administração da justiça, observe que há processos em que as partes vêm por si mesmas postulando emjuízo: reclamações trabalhistas, alguns recursos eleitorais interpostos pelos delegados de partido.Como ficariam essas exceções diante do princípio constitucional da indispensabilidade do advogado na administração da justiça?Elcias Ferreira da Costa acha que a expressão "indispensável" no dispositivoconstitucional tem sentido histórico-objetivo do momento sociológico que lhe serviu de inspiração, qual seja: `respeitadas as exceções consagradas pela prática jurisprudencial, o advogado continua sendo indispensável à justiça". (6)Já para Randolpho Gomes, somente constituiria exceção à obrigatoriedade dapresença do advogado nos feitos judiciais a impetração de habeas corpus, dado o princípio maior da liberdade. (7)Note-se que a Lei n. 8.906, de 4/7/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), esclarece ser atividade privativa deAdvocacia a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais, dela excepcionando apenas a impetração de habeas corpus (art. 1°, I, § 1°).O STF, contudo, ao apreciar a ADIn n. 1.127-8-DF, deferiu medida cautelarpara suspender a eficácia no inciso I do art. 1° do novo Estatuto, da palavra "qualquer", explicitando que não é necessária a presença do advogado nos Juizados de Pequenas Causas, na Justiça de Paz e na Justiça do Trabalho. (8)

(6) COSTA, Elcias Ferreira da. Comentários breves à Constituição Federal, p. 204.(7) GOMES, Randolpho. O advogado e a Constituição Federal, p. 17-18.(8) DJU de 14/10/94, Sec. I, p. 27.596.416

Capítulo 22DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS

Sumário1 Estado Democrático de Direito e crise2 Sistema constitucional das crises - Flexível e rígido3 Estado de defesa4 Estado de sítio5 Forças Armadas6 Segurança pública

& 1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E CRISEO Estado Democrático de Direito, conforme vimos no Capítulo 9 item 9, compreende a limitação jurídica do arbítrio do poder político e a estabilidade jurídica das garantias individuais, tendo ainda a Constituição como norma suprema, o que reclama uma adequação de todo o ordenamento infraconstitucional com as normas constitucionais.Como acentua Queiroz Lima, "não se pode admitir o progresso político, desdeque falhe alguma destas duas condições, das quais a segunda é uma conseqüência da primeira. E, sendo o arbítrio político incompatível com a segurança individual, pode-se dizer que o traço prático pelo qual se reconhece o Estado de Direito é o grau de garantia de que são cercados os indivíduos". (1)Na vida de uma comunidade política, pode, no entanto, ocorrer situações decrise (econômicas, bélicas, políticas, sociais, físicas, como epidemias, terremotos, inundações, etc.), acarretando a ruptura do equilíbrio institucional. As crises que incidem sobre a organização estatal foram tipificadas por Paul Leroy:"a) crises deflagradas com a finalidade de destruir a independência ou aintegridade territorial do Estado; b) crises engenhadas para derrubar o regime político-institucional e, assim, a ordem constitucional vigente; c) criseseconômico-financeiras". (2)Para debelar a anormalidade, superando a situação de crise, surge a necessidade da "constitucionalização das circunstâncias excepcionais" (Burdeau), vale dizer, a Constituição passa a estabelecer medidas destinadas à defesa do Estado e de suas instituições. Fala-se então em direito constitucional de crise ou legalidade especial, cuidando-se de fixar o alcance, os limites e as garantias das medidas excepcionais, sobretudo as referentes ao retorno à normalidade.Advirta-se, contudo, com Ivo Dantas (3), que a atual Constituição Federal brasileira, ao falar em "Defesa do Estado e das Instituições Democráticas" (Título V), não

(1) LIMA, Eusébio de Queiroz. Teoria do Esta<lo, p. 54.(2) LEROY, Paul. L'organisation constitutuionnelle et les crises. p. 13-15.(3) DANTAS, Francisco Ivo Cavalcanti. Da defesa do Estado e das Constituições democráticas na nova Constituição, p. 26-29.419

KILDARE GONÇALVES CARVALHOestá autorizando a defesa do governo, que é transitório, ou de um determinadosistema político, que nem sempre representa o verdadeiro conceito de democracia,mas a integridade do sistema jurídico-constitucional com respeito às liberdades e garantias individuais, traduzida na origem popular do poder político e naprevalência da legalidade.

& 2 SISTEMA CONSTITUCIONAL DAS CRISES - FLEXÍVEL E RÍGIDOO sistema constitucional das crises, entendido como o conjunto de normas constitucionais estruturadas, ordenadas e coerentes, tendo como ponto comum ascrises, é fundado nos princípios da necessidade e da temporariedade. O primeirocaracteriza-se pela ocorrência de situações que, pela sua gravidade, colocam em risco a

estabilidade do regime, objetivando, por isso mesmo, a manutenção e a preservação da ordem constitucional e das instituições. O princípio da temporariedade significa que a exceção constitucional terá duração e prazo determinados. Esses princípios acarretam a decretação de medidas excepcionais que, por traduzirem uma legalidade especial, não podem ser efetivadas sem a ocorrência fundada em elementos seguros da emergência; não podem exceder os limites da defesa do regime e das instituições democráticas, nem quanto à natureza das medidas, nem quanto à extensão no espaço e duração no tempo, necessárias e suficientes; não se podem furtar ao controle político do Legislativo, ainda que a posteriori, e não podem fugir ao controle jurisdicional que repare desvios e abusos. (4)Anote-se que as medidas excepcionais têm sido executadas pelo Poder Executivo. Lembra Camus, citado por Francisco Fernandes Segado, que cr Executivo reúnetrês vantagens essenciais: a permanência, a homogeneidade e a orientação habitual para tarefas análogas a uma missão de salvação pública. A permanência permite-lhe seguir dia a dia a atividade política do País, dirigi-la e orientá-la em função dos acontecimentos. Sua composição relativamente restrita enseja-lhe cerca homogeneidade. Finalmente, o Executivo se acha preparado para o exercício dos poderes excepcionais, em face da rotina de suas atividades. (5)Vale lembrar, contudo, que a Constituição não impede golpes de Estado. Sendo assim, não há dispositivo legal que impeça os riscos de abuso das medidas excepcionais. Adverte, a propósito, Oscar Dias Corrêa que "nessa perplexidade - entre a hipótese de prever a emergência e vê-la utilizada com ou sem real necessidade e conveniência, o que será sempre difícil distinguir, na realidade, e correndo o risco de não retornar, facilmente, à normalidade; e a hipótese de não a prever, com o risco da

(4) CORRÊA. Oscar Dias. A defesa do estado de direito e a emergência constitucional, p. 28.(5) SEGADO, Francisco Fernandez. El estado de excepción en el derecho constitucional español, p. 60.420

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOsubversão e dissolução do regime, pela vitória, sobre ele, das forças, internas ou externas, que o enfrentam e minam -, claro que a democracia só poderia optar pelo risco menor da primeira alternativa". (6)No magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "consideram-se flexíveistodos os sistemas de emergência que não predeterminam as ações de resposta porocasião de grave crise", autorizando as medidas que forem necessárias, em cada caso concreto, para o restabelecimento da normalidade (lei marcial e art. 16 da Constituição francesa de 1958). Rígidos "são todos os sistemas em que o rol de medidas extraordinárias que a declaração da emergência consente, é predeterminado, sendo taxativamente enumerado na lei". (7) (Estado de sítio.)lá entre os povos antigos - hebreus, cartagineses e gauleses - havia magistrados que se ïnvestiam de poderes extraordinários em certas circunstâncias. A Gréciaantiga também conheceu as medidas excepcionais através da eleição do esineta, umtirano com poderes discricionários a serem exercidos em situações de anormalidade, caracterizadas pelas lutas internas. Eleito por tempo certo, o tirano demitia-se após a normalização do estado de guerra e a restauração da paz.Roma conheceu também a figura do ditador, que se assemelhava à do tirano grego. E que as situações de emergência determinavam a adoção de providências enérgicas, com a supressão de algumas instituições jurídico-constitucionais, tais como a intercessio, a fim de que os demais magistrados não se opusessem às decisões superiores do ditador, e a provocacio ad populum, vedando-se qualquer apelação das sentenças do ditador romano, que, por isso mesmo, era considerado irresponsável por seus atos. Note-se que a ditadura romana compreendeu o período de 501 a.C., até 216 a.C., antes de se degenerar em instrumento de poder pessoal dos ditadores perpétuos (César e outros). O ditador romano que exercia poderes extraordinários era, como o esineta grego, eleito para um período de seis meses, podendo-se identificar nessa temporariedade um remoto antecedente do estado de sítio. (8)Na Inglaterra menciona-se a lei marcial, que também se juridicizou nos Esta-

dos Unidos. Para Alberto Veen Dicey, a lei marcial serve para designar "o direito que em common law possuem a Coroa e seus agentes, de repelir a força pela força em casos de insurreição, tumulto ou mais geralmente de resistência violenta à lei." (9) Admitida, portanto, pelo direito comum, a lei marcial, embora possibilite a utilização da força para a repressão de tumultos ou outras desordens, não exclui a responsabilidade pelos atos abusivos ou excessivos eventualmente praticados pelos agentes do Executivo, militares ou simples cidadãos, que deverão responder perante o Judiciário.

(6) CORRÊA, Oscar Dias. Op. cit., p. 24.(7) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A reconstrução da democracia, p. 215-16.(8) CARVALHO, Kildare Gonçalves. As medidas de emergência, o estado de sítio e o estado de emergência no direito constitucional comparado, p. 7-11.(9) SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. O estado de emergência, p. 27.421

KILDARE GONÇALVES CARVALHOPrevê a Constituição norte-americana, em seu art. I, 9a Seção, n. 2, a suspensãodo habeas corpus como instrumento necessário para a defesa da ordem constitucional, em casos de rebelião ou invasão. A medida excepcional deve ser declarada em ato formal do poder competente.O estado de sítio, previsto na França por um Decreto de 10 de julho de 1791,como instrumento excepcional de defesa do Estado (sua origem remonta-se à cidadesitiada, cercada, que, para a defesa comum, levava a autoridade militar a praticar atos arbitrários que excediam o respeito aos direitos individuais), constitui-se no mecanismo preferido das Constituições liberais. O estado de sítio consiste "na suspensão temporária e localizada das garantias constitucionais, ou mais explicitamente, regime excepcional das liberdades públicas, caracterizado pela suspensão localizada e temporária, autorizada pela Constituição para ocasiões de grave crise, de todas ou de algumas garantias". (10) Compõe, assim, o estado de sítio o sistema constitucional rígido das crises de que acima tratamos, pois as medidas de coação necessárias para debelar as crises se acham taxativamente enumeradas na Constituição. Não se pode concluir o exame dos sistemas constitucionais das crises sem referência, ainda que breve, ao art. 16 da Constituição francesa de 1958 (considerado como exemplo do sistema flexível), inspirado por De Gaulle, então Presidente do Conselho de Ministros, e que não via no estado de sítio o instrumento próprio para debelar a crise que se instaurara na França da IV República, considerando-se ainda a questão da Argélia, em face da guerra de argelinos e árabes contra a França e os franceses que lá residiam, em busca da libertação nacional.Dispõe, com efeito, o citado art. 16:"Quando as instituições da República, a independência do país, a integridade do seu território ou o cumprimento de seus compromissos internacionais estiverem ameaçados de maneira grave e imediata, e o funcionamento regular dos poderes públicos constitucionais estiver interrompido, o Presidente da República tomará as medidas exigidas por estas circunstâncias, após consultar oficialmente o Primeiro-Ministro, os Presidentes das Assembléias bem como o Conselho Constitucional.O Presidente da República informará a nação por meio de uma mensagem.Tais medidas deverão ser inspiradas por um desejo de garantir aos poderes públicos constitucionais, com a mínima demora, os meios de cumprir a sua missão. O Conselho Constitucional será consultado a respeito.O Parlamento se reunirá de pleno direito.A Assembléia Nacional não poderá ser dissolvida durante o exercício dospoderes extraordinários."

(10) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O estado de sítio, p. 98.422

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÃTICOComo se vê, os poderes extraordinários do Presidente da República vão além

das medidas correspondentes ao estado de sítio, tendo sido utilizados pelo Presidente De Gaulle durante a rebelião na Argélia. Observa Jimenez de Parga, em anotação de Segado, que "basta ler o art. 16 para ver que a V República francesa se acha atrás de República romana, pois são menos numerosos os requisitos que o citado preceito exige para que apareça o Presidente da República convertido em ditador, que os exigidos na antiga Roma para que ele surgisse". (11)

& 3 ESTADO DE DEFESAAs nossas Constituições têm adotado tradicionalmente o estado de sítio. Assim, a Constituição de 1891 (art. 80, alíneas 1a e 2a , do § 2°); a Constituição de 1934 (itens e §§ do art. 175); a Constituição de 1946 (art. 207 e 209); a Constituição de 1967 (§§ 2° e 3° do art. 152).A Constituição de 1988 consagra, além do estado de sítio, que examinaremos adiante, o estado de defesa, em substituição às medidas de emergência instituídas pela Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978. O estado de defesa, previsto no art. 136 da Constituição, tem, contudo, "características mais amplas e precisas do que as medidas de emergência: quanto ao poder de iniciativa, aos órgãos de consulta, finalidade, alcance, duração e controle". (12)Dispõe o art. 136 da Constituição que "o Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidadeinstitucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".Examinaremos o estado de defesa quanto às condições de fundo, forma, extensão, alcance e controle político e judicial. Esclarece Aricê Moacyr Amaral Santos queas condições de fundo encerram os pressupostos revelados pelo Direito como de real e imediato perigo à existência do Estado, da ordem constitucional e das suas instituições, e os interesses objeto de sua proteção jurídica. As condições de forma referem-se, para o citado autor, aos aspectos extrínsecos juridicizados na Constituição como necessários à formalização jurídico-existencial da medida excepcional. (13)São condições de fundo do estado de defesa a ocorrência de grave e iminenteinstabilidade institucional que ameace a ordem pública ou a paz social, e a existência de calamidade de grandes proporções na natureza que atinja a ordem pública ou a paz social.

(11) SEGADO, Francisco Fernandez. Op. cit., p. 59.(12) PRADO, Ney. A defesa do Estado e das instituições democráticas. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações, p. 287.(13) SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. Op. cit., p. 81-87.423

KILDARE GONÇALVES CARVALHOAs condições formais do estado de defesa consistem:a) na prévia manifestação dos Conselhos da República e de Defesa Nacional, cujos pronunciamentos têm caráter meramente consultivo, não vinculando o Presidente da República. Não obstante, lembra Ivo Dantas que, na hipótese de haver divergência entre os dois Conselhos, ou seja, "um entendendo que deva ser decretado o estado de defesa e o outro entendendo de modo contrário", o Presidente da República deverá acatar a decisão do Conselho da República pelo maior sentido derepresentatividade que possui; (14)b) decretação pelo Presidente da Republica;c) fixação do tempo de duração do estado de defesa, que não poderá ser superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistiremas razões que justificaram sua decretação;d) especificação das áreas a serem por ele abrangidas;e) indicação das medidas coercitivas dentre as indicadas no § 1° do art. 136.Não fala a Constituição em designação do executor das medidas, embora a elese refira no inciso I do § 3° do art. 136, e no art. 141. Entendemos, assim, que o decreto do estado de defesa deverá indicar o seu executor, sem o qual não seviabilizará a medida de exceção.

Quanto ao alcance, o estado de defesa importará, nos termos da lei, nas seguintes medidas coercitivas:a) restrições aos direitos de reunião, ainda que exercida no seio das associações;b) sigilo de correspondência;c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;d) ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.O controle político do estado de defesa, pelos §§ 4°, 5°, 6° e 7° do art. 136consiste em que, "decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta. Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa. Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa".Haverá ainda controle legislativo a posteriori, previsto no art. 141, ou seja, cessado o estado de defesa, cessarão também os seus efeitos, e as medidas aplicadas serão relatadas pelo Presidente da República, em mensagem ao Congresso Nacional, com

(14) DANTAS, Francisco Ivo Cavalcanti. Op. cit., p. 44.424

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOespecificação e justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos, e indicação das restrições aplicadas. Note-se, finalmente, que haverá um controle simultâneo com a execução do estado de defesa, mencionado no art. 140, em que a Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa. Trata-se de Comissão temporária, pois a sua existência estará limitada ao período de duração da medida excepcional.O controle pelo Judiciário vem previsto no § 3°, incisos I a III do art. 136 (aprisão por crime contra o Estado, determinado pelo executor da medida, será poreste comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial; a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação, e a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário, sendo ainda vedada a incomunicabilidade do preso). Dispõe ainda o art. 141 sobre o controle jurisdicional doestado de defesa, ao estabelecer a responsabilidade dos seus executores ou agentes pelos ilícitos cometidos.

& 4 ESTADO DE SÍTIOConstituem condições de fundo para a decretação do estado de sítio:a) comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de Fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa. Note-se que a expressão comoção apareceu duas vezes em nosso Direito: a primeira na Constituição de1891 (comoção intestina) e a segunda, na de 1946 (comoção intestina grave). Comoção deve ser entendido como perturbação, revolta ou motim. Segundo esclareceCarlos Maximiliano, "agitações comuns, simples desordens, motins sem importânciareprimem-se com os meios ordinários da polícia e dos tribunais. Somente quandoestes recursos vulgares forem insuficientes para assegurar a paz ou restabelecer a ordem, decretar-se-á o estado de sitio"; (15)b) declaração de estado de guerra ou resposta à agressão armada estrangeira (arespeito da impropriedade técnica da expressão "declaração de guerra", veja-se o item 6 do Capítulo 16).Evidencia-se do exame das condições de fundo do estado de sítio que a diferença é de grau em relação ao estado de defesa, pressupondo o estado de sítio a ocorrência de situações de maior gravidade que as justificadoras do estado de defesa.

(15) MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição brasileira, v. 3, p. 288.425

KILDARE GONÇALVES CARVALHOAs condições de forma do estado de sítio são:a) prévia audiência dos Conselhos da República e de Defesa Nacional, aplicando-se aqui o que foi dito no item anterior;b) decretação, pelo Presidente da República, após autorizado pelo voto damaioria absoluta do Congresso Nacional, diante de mensagem em que são relatadosos motivos determinantes do sítio;c) fixação do tempo de duração do estado de sítio, que não poderá ser superiora trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior. Quando se tratar de estado de sítio decretado com base no inciso II do art. 137, poderá ser prorrogado pelo tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira;d) normas necessárias à sua execução;e) garantias constitucionais que ficarão suspensas, dentre as discriminadas noart. 139. Após a publicação do decreto de estado de sítio, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas. Assim, embora para a justificação do estado de sítio com fundamento no inciso I do art. 137, a comoção grave deva ter repercussão nacional, a medida excepcional poderá abranger área específica do território nacional. Mencione-se ainda que tanto a indicação das áreas abrangidas como a designação do executor das medidas independem de autorização do Congresso Nacional, sendo ato unilateral do Presidente da República, eis que, pelo art. 138, serão estabelecidas, como se viu, após a publicação do decreto do sítio.No que concerne ao alcance do estado de sítio, na sua vigência só poderão sertomadas contra as pessoas as seguintes medidas:a) obrigação de permanência em localidade determinada;b) detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimescomuns;c) restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei, não se incluindo nessas restrições a difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa;d) suspensão da liberdade de reunião;e) busca e apreensão em domicílio;f) intervenção nas empresas de serviços públicos;g) requisição de bens.O controle político do estado de sítio cabe ao Congresso Nacional:a) antes de sua decretação, pois é ele quem autoriza o decreto do sítio. Se aautorização for solicitada durante o recesso parlamentar, o Presidente do Senado426

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOFederal, de imediato, convocará extraordinariamente o Congresso Nacional para sereunir dentro de cinco dias a fim de apreciar o ato, permanecendo em funcionamento até o término das medidas coercitivas;b) durante a duração do estado de sítio, porquanto a Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes parlamentares, deverá designar Comissão (temporária)composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução dasmedidas referentes ao estado de sítio;c) posteriormente à cessação do estado de sítio, em que o Presidente da República relatará em mensagem ao Congresso Nacional as medidas aplicadas, com especificação e justificação das providências adotadas, relação nominal dos atingidos, e indicação das restrições aplicadas.Haverá ainda controle jurisdicional, eis que, pelo art. 141, cessado o estado desítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por

seus executores ou agentes. Note-se, contudo, que, mesmo durante a execução das medidas excepcionais, não se afasta o controle jurisdicional, em virtude do que dispõe o art. 5°, XXXV, isto ê, havendo abuso ou excesso de poder, o prejudicado poderá recorrer ao Poder Judiciário, utilizando-se para tanto das ações judiciais.

& 5 FORÇAS ARMADASAs Forças Armadas, constituídas pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, quedesde a Constituição de 1824 têm merecido tratamento constitucional, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República (a quem cabe a orientação política da guerra, não a estratégica, que é específica dos chefes militares), destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.Verifica-se que as Forças Armadas não são mais executoras da política de segurança nacional, tendo a Constituição de 1988 eliminado disposição que, nesse sentido, constava do art. 91 da Emenda Constitucional n. 1, de 1969.As Forças Armadas são consideradas instituições nacionais permanentes e regulares. Quer isso dizer que os Estados federados não podem possuir Exército, Marinha ou Aeronáutica, dado o caráter nacional das Forças Armadas. É-lhes permitido, contudo, instituir polícias militares e corpos de bombeiros militares, considerados forças auxiliares e reserva do Exército (art. 144, § 6°). De outra parte, por serem conceituadas como "instituições permanentes e regulares", sua existência independe de pessoas e de momentos históricos para se protrair e se prolongar de forma duradoura, permanente e regular.427

KILDARE GONGALVES CARVALHOAdverte, contudo, Karl Loewenstein que só naqueles Estados nos quais existeuma ininterrupta tradição da primazia do poder civil sobre o militar - como sucede sobretudo nos países anglo-saxões e escandinavos, e também na Suíça - carece de possibilidade de triunfo a implantação de uma ditadura militar, (16) falando, a propósito, Manoel Gonçalves Ferreira Filho em "tentação militar" para pôr fim à agitação política, mediante intervenções militares diante das falhas ou da corrupção do poder civil, às vezes até mesmo imprescindíveis, nada obstante mencionar a possibilidade de riscos, pois "sempre há, por exemplo, o perigo de que a ambição de chefes veja necessidade onde não existe."" Anote-se ainda que o Exército, como instituição permanente, não é reconhecido nas Constituições da Costa Rica, Japão e Islândia.A hierarquia e a disciplina constituem as bases da organização das ForçasArmadas. Hierarquia, segundo dispõe o § 1° do art. 14 da Lei n. 6.880, de 9 dedezembro de 1980 (Estatuto dos Militares), é conceituada como "a ordenação daautoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia éconsubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade."Já disciplina, segundo o § 2° do citado art. 14 do Estatuto dos Militares, "é arigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo."Tendo qualquer um dos Poderes constitucionais iniciativa para provocar aatuação das Forças Armadas, no sentido de garantir a lei e a ordem (art. 142, parte final), como se proceder na hipótese de desavença entre eles? A quem as Forças Armadas terão de obedecer? Ivo Dantas responde que ao Supremo Tribunal Federal cabe dar a palavra final. (18) Não se deve esquecer, contudo, de que, se cabe â lei complementar estabelecer normas gerais a serem adotadas na organização, no processo e no emprego das Forças Armadas (art. 142, § 1°), tal espécie normativa deveria indicar a solução para os eventuais conflitos entre os poderes constitucionais. Adota a Constituição de 1988 o princípio da "nação em armas", pelo qual oserviço militar é obrigatório para todos nos termos da lei. Anote-se que a Constituição reconhece a

escusa de consciência (art. 5°, VIII), não se sujeitando, em tempo de paz, ao serviço militar obrigatório os que, após alistados, aleguem motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política. Prestarão, contudo, serviço alternativo, regulamentado pela Lei n. 8.239, de 4 de outubro de 1991. Mulheres e eclesiásticos ficam, também, isentos do serviço militar obrigatório,em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.

(16) LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, p. 497-498.(17) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 209. (18) DANTAS, Francisco Ivo Cavalcanti. Op. cit., p. 128-129.428

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 6 SEGURANÇA PÚBLICAA segurança pública tem por objeto a manutenção da ordem pública. A Constituição eliminou do Capítulo referente à Defesa do Estado a expressão "segurança nacional", constante do ordenamento anterior, o que revela preocupação com a segurança do cidadão.A segurança pública tem em vista a convivência pacífica e harmoniosa da população, fundando-se em valores jurídicos e éticos, imprescindíveis à existência de uma comunidade, distinguindo-se, neste passo, da segurança nacional, que se refere mais à segurança do Estado.Diogo de Figueiredo Moreira Neto elucida que, na segurança pública, o que segarante é o inefável valor da convivência pacífica e harmoniosa, que exclui a violência nas relações sociais; quem garante é o Estado, já que tomou para si o monopólio do uso da força na sociedade e é, pois, o responsável pela ordem pública; garante-se a ordem pública contra a ação de seus perturbadores, e garante-se a ordem pública através do exercício, pela Administração, do Poder de Polícia. (19)A Constituição de 1988 declara que a segurança pública, dever do Estado,direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144), indicando em seguida os órgãos encarregados de exercê-la:a) Polícia Federal;b) Polícia Rodoviária Federal;c) Polícia Ferroviária Federal;d) Polícias Civis;e) Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares.Mencione-se, ainda, a previsão, no texto constitucional, de guardas municipais, cuja instituição é Facultada aos Municípios, destinando-se à proteção de bens,serviços e instalações municipais, conforme dispuser a lei. Vê-se, assim, que os Municípios não dispõem de órgão policial de segurança, mas de guardas próprios para a proteção de seu patrimônio.

(19) MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito administrativo da segurança pública. In: Direito administrativo da ordem pública, p. 127-128429

Capítulo 23TRIBUTAÇÃO E ORÇAMENTO

Sumário1 Sistema Tributário Nacional - Considerações gerais2 Tributos3 Limitações constitucionais do poder de tributar4 Discriminação constitucional de rendas5 Repartição das receitas tributárias6 Finanças públicas

7 Orçamento: noção, natureza e elementos8 Características do orçamento9 Modalidades de orçamento10 Lei complementar e orçamento11 Vedações constitucionais orçamentárias12 Processo legislativo das leis orçamentárias

& 1 SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL - CONSIDERAÇÕES GERAISA Constituição de 1988 trata, no Capítulo dedicado ao Sistema Tributário Nacional, de três assuntos preferidos pelos ordenamentos constitucionais federais:a) limitações constitucionais do poder de tributar; b) discriminação constitucional de rendas; c) repartição das receitas tributárias. Além desses temas, encontra-se no texto constitucional brasileiro seção dedicada aos princípios gerais sobre tributação.O Sistema Tributário tem suas raízes na Emenda Constitucional n. 18/65, queintroduziu a reforma tributária no Brasil, de modo a dar maior consistência ecientificidade à matéria. A propósito, escreve Gilberto de Ulhôa Canto que "em 1965 e 1966 tentou-se fazer um planejamento apoiado, primordialmente, em pressupostos econômicos lógicos adequados ao Brasil. Naquela oportunidade foram eliminados tributos sem base lógica, tributos que se superpunham a outros, tributos que não evidenciavam capacidade contributiva, e foi reestruturado o sistema com o propósito de fazê-lo racional, científico".

& 2 TRIBUTOSA Constituição enuncia, no art. 145, os tributos que compõem o Sistema Tributário: impostos, taxas e contribuição de melhoria. A eles devem ser acrescidos o empréstimo compulsório (art. 148) e as contribuições sociais (art. 149).O tributo é, assim, o gênero do qual são espécies as categorias acima enuncia-das. O conceito de tributo decorre do art. 3° do Código Tributário Nacional: "Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada." Esclarece Sacha Calmon Navarro Coelho que o tributo caracteriza-se pela sua essência jurídica. E "a essência jurídica do tributo é ser prestação pecuniária compulsória em favor do Estado ou de pessoa por este indicada (parafiscalidade) que não constitua sanção de ato ilícito (não seja multa) instituída em lei (não decorrente de contrato)."

(1) ULHOA CANTO, Gilberto de. O sistema tributário nacional. In: A Constituição brasileira - 1988 - Interpretações, p. 306.(2) COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 (sistema tributário), p. 14.433

KILDARE GONÇALVES CARVALHOAtravés do tributo o Estado obtém dinheiro para a satisfação de suas necessidades e finalidades. Diz-se que se trata de receita derivada, já que, além desta, existe a receita originária, conceituada pelo saudoso mestre Alberto Deodato como "a que o Estado aufere dos seus próprios recursos, da venda de seus bens, do exercício de sua própria atividade, como se fosse um indivíduo". (3)Não se perca de vista, contudo, que contemporaneamente o tributo vem sendo utilizado para a Formulação e o atingimento de uma política econômica e social do Estado, quando, por exemplo, se cuida dos incentivos fiscais que visamestimular o desenvolvimento de determinadas regiões ou indústrias, ou ainda daprogressividade da alíquota de certos tributos, visando promover uma equânimedistribuição de rendas.

& 2.1 ImpostosO conceito de imposto decorre do art. 16 do Código Tributário Nacional: é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte. Destaca-se, pois, a idéia de que no imposto não há nenhuma contraprestação

estatal com vistas à sua cobrança; trata-se, dessa maneira, de tributo classificado como "não-vinculado", eis que sua instituição independe de qualquer participação ou intervenção do Estado relativamente ao contribuinte. O fato que ensejará sua cobrança (fato gerador) vem descrito na lei, bastando que o contribuinte realize o nela descrito para se sujeitar à incidência do imposto.

& 2.2 TaxasAs taxas são tributos que podem ser cobrados em razão do exercício do poderde polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos, específicos e divisíveis restados ao contribuinte ou postos à sua disposição art. 145 II . O Código Tributário Nacional, em seu art. 77, esclarece:"As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelosMunicípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição."Segundo o parágrafo único desse dispositivo, a taxa não pode ter base decálculo ou fato gerador idênticos aos que correspondam a imposto, nem ser calculada em função do capital das empresas.

(3) DEODATO, Alberto. Manual de ciência das finanças. 2. ed., p. 30.434

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOVerifica-se tratar a taxa de "tributo vinculado", pois, ao contrário do imposto,sua cobrança depende de uma atividade do Estado, ou em razão do exercício do poder de polícia, ou em decorrência da prestação efetiva ou potencial, de um serviço público.O serviço público a ser prestado deve ser específico e divisível. Considera-seespecífico aquele serviço que pode ser destacado em unidade autônoma, e divisível o que é suscetível de utilização individual pelo contribuinte, não se confundindo com os serviços gerais.Não se exige, para a cobrança da taxa, que o contribuinte tenha-se utilizadoefetivamente do serviço proporcionado pelo Estado: basta que o mesmo seja colocado à disposição do usuário.O Código Tributário Nacional conceitua, no art. 78, o poder de polícia, queconstitui o outro fundamento para a cobrança da taxa:"Considera-se poder de polícia a atividade da administração que, limitandoou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ouabstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, àhigiene, â ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, aoexercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos."Explicita o parágrafo único do art. 78:"Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder."

& 2.3 Contribuição de melhoriaA Constituição prevê, no art. 145, III, a instituição de contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas. Embora não fale em valorização do imóvelpor ela atingido, nem no limite representado pelo custo total da obra, pelo menos doutrinariamente muitos autores têm entendido que implicitamente tais exigências ainda persistem. Nesse sentido argumenta Celso Bastos:"Além da realização da obra pública é necessário que esta tenha repercutidono eventual contribuinte de uma determinada maneira, é dizer, causando-lhe uma plus valia. Seria o maior dos absurdos imaginar-se a contribuição de melhoria cobrada de alguém não beneficiado pela obra realizada, ou, até mesmo, por ela prejudicado". (4)

(4) BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito financeiro e de direito tributário, p. 155.

435

KILDARE GONÇALVES CARVALHOTambém assim pensam José Afonso da Silva (5), Ruy Barbosa Nogueira (6) e Ives Gandra (7). Ponto de vista contrário tem Sacha Calmon Navarro Coelho, ao entender que a supressão constitucional da exigência do limite da valorização do imóvel alterou a natureza jurídica da contribuição de melhoria. (8)

& 2.4 Empréstimos compulsóriosSegundo o art. 148 da Constituição, a União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias,decorrentes:a) de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;b) no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interessenacional, observado o disposto no art. 150, III, b, da Constituição.Sendo assim, somente na hipótese do inciso II é que não se dispensa a exigência do princípio da anterioridade. Observe-se finalmente que o empréstimo compulsório é tributo que só pode ser instituído em lei complementar pela União (veda-se aos Estados e Municípios sua criação).

& 2.5 Contribuições sociaisDe acordo com o disposto no art. 149 da Constituição, compete exclusivamenteà União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § G°, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo (contribuições de seguridade social, que poderão também ser instituídas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, e cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social, não se lhes aplicando o princípio da anterioridade, eis que poderão ser cobradas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado).Note-se que as contribuições são de três espécies: sociais, interventivas ecorporativas. Sacha Calmon Navarro Coelho escreve que "nitidamente apresentam-secomo impostos afetados a finalidades específicas (raramente são taxas), o que justifica o discurso de que podem, teoricamente, ser taxas ou impostos, dependendo do fato jurígeno escolhido pelo legislador para estruturar o gravame". (9)

(5) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 590.(6) NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário, p. 168.(7) MARTINS, Ives Gandra, BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, v. 6, t. 1, p. 55-56.(8) COELHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 77.(9) COELHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 164.436

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO

& 3 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS DO PODER DE TRIBUTARA Constituição, nos arts. 1S0 a 152, estabelece um conjunto de princípios e vedações que delimitam o poder de tributar do Estado, garantindo o contribuintecontra o Fisco:I - princípio da estrita legalidade, que vem inscrito no art. 150, inciso I,vedando-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir ou aumentar tributos sem que a lei o estabeleça. Assim, para que se crie ou majore tributos (ampliação da base de cálculo ou elevação de alíquota), é necessária a ocorrência de lei. Esclareça-se ainda que a lei referida no inciso constitucional há de ser formal, isto é, elaborada pelo Poder Legislativo, segundo tramitação própria, bem como material, vale dizer, norma geral, impessoal, abstrata e obrigatória. Além dessas características, os tributaristas exigem que a lei seja típica no que se refere ao seu

conteúdo. Explicando: é preciso que a lei tributária tipifique os sujeitos ativo e passivo, base de cálculo, alíquota, e outros fatores de quantificação tributária. Há, contudo, exceção ao princípio: a Constituição permite a alteração, pordecreto, das alíquotas dos impostos sobre importação, exportação, produto industrializado e operações financeiras, atendidas as condições e limites estabelecidos em lei (art. 153, § 1°). Observe-se que a suspensão do princípio da legalidade se refere somente à alteração (para cima ou para baixo) da alíquota dos citados impostos.A introdução, no texto constitucional de 1988, das medidas provisórias suscitaa indagação de serem elas cabíveis ou não em matéria tributária, ou, em especial, na instituição ou majoração de tributos.Verifica-se, inicialmente, que as medidas provisórias previstas no art. 62 daConstituição têm como pressuposto a ocorrência de relevância e urgência. E, segundo se depreende do dispositivo constitucional, as medidas provisórias têm efeitos imediatos desde a data de sua publicação. Ora, em primeiro lugar, a Constituição prevê dois tributos com fundamento na urgência: os empréstimos compulsórios, para atender a despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência (art. 148, I); impostos extraordinários, na iminência ou no caso de guerra externa (art. 154, II). "Afora estes dois casos de extrema urgência e relevância, a autorizar o uso das medidas de emergência, o constituinte previu, adrede, todas as hipóteses de urgência e relevância em matéria tributária, liberando-a, ora do princípio da legalidade escrita e estrita (lex escripta et stricts), ora do princípio da anterioridade, ora do princípio da repartição." (10) Em segundo lugar, a eficácia imediata, desde a edição das medidas provisórias, é incompatível com o princípio da anterioridade, isto é, o de que é vedado ao Poder Político cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (art. 150,

(10) COELHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 313.437

KILDARE GONÇALVES CARVALHOIII, b), reforçado pelo princípio da irretroatividade tributária, pelo qual se proíbe a cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do Início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado (art. 150, III, a).Assim, enquanto as leis ordinárias ou complementares, que instituem ou majorem tributos, têm eficácia e aplicabilidade adiada, em razão do princípio da anterioridade, as medidas provisórias, pois que fundadas em urgência e relevância, têm eficácia e aplicabilidade imediatas e antecipadas à lei de conversão.Por tudo isso é que não se deve admitir a instituição ou majoração de tributosem sede de medidas provisórias, exceção feita para os dois impostos acima referidos: empréstimos compulsórios de emergência (guerra, sua iminência e calamidade) e impostos extraordinários de guerra, assim pensa Sacha Calmon Navarro Coelho.Observe-se ainda que, para aqueles que não aceitam a adoçÃo de medidas provisórias em matéria reservada à lei complementar, elas ficariam limitadas aos impostos extraordinários de guerra, pois os empréstimos compulsórios de emergência (art. 148, I) dependem de lei complementar.Finalmente, mencione-se, dentre várias outras, a posição de Ives Gandra, paraquem medida provisória pode instituir tributos. Adverte, contudo, este publicista que "a lei tributária deve preencher os requisitos da estrita legalidade, da tipicidade fechada e da reserva absoluta da lei formal" (11);II - princípio da isonomia, mencionado no art. 150, II, segundo o qual é vedado ao Estado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;III - princípio da capacidade contributiva. Enunciado no art. 145, § 1°, significa esse princípio que os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Visa esse princípio possibilitar uma

oneração maior dos contribuintes que têm mais recursos para suportá-la;IV - princípio da irretroatividade tributária (art. 150, III, a), pelo qual é vedado cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início davigência da lei que os houver instituído ou aumentado;V - princípio da anterioridade. Assim denominado, tem-se que esse princípio, consagrado no art. 150, III, b, sucedeu ao princípio da anualidade. É que acobrança de tributos não mais está condicionada à autorização na lei orçamentária.Assim, o que a Constituição veda é a cobrança do tributo no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou (ano calendário).

(11) MARTINS, Ives Gandra, BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 147.438

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOAs exceções ao princípio da anterioridade são: impostos extraordinários de guerra (art. 154, I); empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência (art. 148, I);contribuições sociais (previdenciárias) previstas no § 6° do art. 195, que poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da lei que as houver instituído ou modificado. O princípio também não se aplica aos impostos de importação, exportação produtos industrializados, operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários - art. 53, I, II, IV e V - cujas alíquotas poderão ser alteradas por decreto do Presidente da República, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, por força do art. 153, § 1°;VI - princípio da uniformidade geográfica, segundo o qual é vedado aosPoderes Públicos instituírem tributo que não seja uniforme em todo território nacional, ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País, o que, de cerra forma, concorre para atenuar as desigualdades regionais;VII - princípio da não-diferenciação tributária, que veda aos Estados, aoDistrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino (art. 152);VIII - princípio da não-cumulatividade, válido para determinados tributos pelo qual subtrai-se do imposto devido na operação posterior o que foi exigido naanterior. O princípio se aplica aos impostos sobre produtos industrializados e sobre operações relativas à circulação de mercadorias e prestação de serviços (art. 153 IV § 3°, II, e art. 155, I, b, § 2°, I). Além dos princípios acima considerados, a Constituição veda a utilização dotributo com efeito de conosco (art. 150, IV). A propósito, Ives Gandra leciona que "não é fácil definir o que seja confisco, entendendo eu que, sempre que a tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se desenvolver (ganhos para necessidades essenciais e ganhos superiores ao atendimento destas necessidades para reinvestimento ou desenvolvimento), estar-se-á perante o confisco". Dizendo que o confisco ultrapassa os limites tributários, pois além do tributo confiscatório existe um sistema confiscatório interferindo no direito de propriedade, finaliza o apontado autor: "desta forma, por confisco deve-se entender toda a violação ao direito de propriedade dos bens materiais e imateriais, retirado do indivíduo sem justa e prévia indenização, não podendo a imposição tributária servir de disfarce para não o configurar" (12).Ressalte-se finalmente a chamada imunidade fiscal, limitada, contudo, aos impostos. O inciso VI do art. 150 dispõe sobre os casos de imunidade ao poder

(12) MARTINS. Ives Gandra, BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 161-164.439

KILDARE GONÇALVES CARVALHOimposicional. Esclarece o eminente tributarista Ruy Barbosa Nogueira que "a imunidade é categoria muito mais ampla que a da isenção. Enquanto a isenção exclui apenas o crédito tributário

(CTN, art. 175, I), a imunidade exclui o próprio poder de instituir imposto sobre determinados bens ou situações que, por sua natureza e por interesse público, não devem ficar sujeitos a impostos". (13)Dispõe, com efeito, o art. 150, VI, referentemente aos quatro casos de imunidade, que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir imposto sobre:a) patrimônio, renda ou serviços uns dos outros;b) templos de qualquer culto;c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão. A imunidademencionada na letra a estende-se as autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público exclusivamente no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados às suas finalidades essenciais ou dela decorrentes (art. 150, § 2°).E a imunidade das tetras b e c compreendem somente o patrimônio, a renda e osserviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas (art. 150, § 4°). Por sua vez, a imunidade não beneficia a União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, na exploração de atividades econômicas mencionadas no art. 173: é o que se depreende do disposto no § 3° do art. 150.

& 4 DISCRIMINAÇÃO CONSTITUCIONAL DE RENDASSendo várias os entes que compõem a Federação, a Constituição cuida de distribuir as competências tributárias entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.A discriminação de rendas, no texto constitucional, é rígida, vale dizer, a Constituição conferiu a cada um dos entes políticos que compõem a federação competências exclusivas, individualizando-lhes os tributos.Há, além da competência exclusiva, a chamada competência nominalmentecomum, voltada para a instituição, por todas as entidades tributantes, de taxas e contribuição de melhoria (art. 145, II e III).Fala-se ainda em competência residual (art. 154, II), que é conferida tão-somente à União, para instituir, mediante lei complementar, outros impostos que não

(13) NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Op. cit., p, 130.440

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOtenham fato gerador nem base de cálculo idênticos aos impostos expressamentediscriminados na Constituição e não serão cumulativos. É importante ressaltar que 20% do produto da arrecadação desses impostos caberão aos Estados e ao Distrito Federal (art. 157, II).Ao Distrito Federal cabem os impostos estaduais e municipais e à União, emTerritórios federais, os impostos estaduais e, se eles não forem divididos em Municípios, cumulativamente os impostos municipais (art. 147).

& 4.1 Impostos da União Os impostos Federais, de competência exclusiva da União (art. 153), são osseguintes: I - importação de produtos estrangeiros;II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;III - renda e proventos de qualquer natureza;IV - produtos industrializados;V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valoresmobiliários;VI - propriedade territorial rural;VII - grandes fortunas, nos termos da lei complementar.Vale observar que os impostos de importação e de exportação são chamados de impostos regulatórios, pois se revestem de uma função reguladora da economia,em especial no que concerne ao comércio exterior.

O imposto de renda, segundo estabelece o § 2° do art. 153, será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, e não incidirá sobre rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, pagos aosmaiores de sessenta e cinco anos, cuja renda seja constituída exclusivamente derendimentos do trabalho.O IPI será seletivo, em função da essencialidade do produto, e não será cumulativo (§ 3° do art. 153).O imposto sobre a propriedade territorial rural terá suas alíquotas fixadas deforma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas, e não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore, só ou com sua família, o proprietário que não possua outro imóvel, é o que dispõe o § 4° do art. 153.O imposto sobre grandes fortunas será instituído em lei complementar. Constitui um imposto novo previsto na Constituição. Para alguns, esse imposto desestimula a criação de bens e riquezas, mas para outros poderá ser utilizado com vistas a uma melhor distribuição de rendas. 441

KlLDARE GONÇALVES CARVALHOAlém dos impostos acima referidos, à União cabe instituir, por lei complementar, impostos de sua competência residual, bem como impostos extraordinários na iminência ou no caso de guerra externa (art. 154, I e II). A Emenda Constitucional n. 21/99 prorrogou, por trinta e seis meses, a cobrança da contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores ede créditos e direitos de natureza financeira de que trata o art. 74 do ADCT, instituída pela Lei n. 9.311, de 24 de outubro de 1996, modificada pela Lei n. 9.539, de 12 de dezembro de 1997, cuja vigência é também prorrogada por idêntico prazo. A alíquota da contribuição será de trinta e oito centésimos por cento, nos primeiros doze meses, e de trinta centésimos nos meses subseqüentes, facultado ao Poder Executivo reduzi-la total ou parcialmente, nos limites aqui definidos.O produto de arrecadação do referido imposto provisório não será repartido com outra unidade federada.

& 4.2 Impostos dos EstadosCompete aos Estados e ao Distrito Federal (art. 155, I e II) instituir impostos sobre:I - transmissões causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos;II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;III - propriedade de veículos automotores;IV - adicional de até 59ó do que for pago à União por pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas nos respectivos Territórios, a título do imposto de renda incidente sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital. Este imposto foi, contudo, excluído da competência tributária dos Estados pela Emenda Constitucional n. 3, de 1993. A sua eliminação somente produzirá efeitos a partir de 1° de janeiro de 1996, reduzindo-se, no entanto, a correspondente alíquota, pelo menos, a 2_,5% no exercício financeiro de 1995.Referentemente ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação, a competência para instituí-lo é dos Estados e do Distrito Federal, ficando com os Municípios o imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis. No caso de bens imóveis e respectivos direitos, sua arrecadação cabe ao Estado da situação do bem ou aoDistrito Federal (art. 155, § 1 °, I). Quando se tratar de bens móveis, títulos e créditos, a competência será definida pelo domicílio do doador ou pelo Estado ou Distrito Federal onde se processar o inventário ou arrolamento (art. 155, § 1°, II).Se o doador tiver domicílio ou residência no exterior, e se o de cujus possuíabens, era residente ou domiciliado, ou teve o seu inventário processado no exterior, a 442

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOcompetência para a instituição do imposto será regulada por lei complementar (art. 155, § 1°, III, a e b).

Cabe ao Senado Federal fixar as alíquotas máximas do imposto (art. 155, § 1°, IV).O imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e prestaçãode serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS)vem minuciosamente tratado nos diversos dispositivos em que se desdobra o § 2°do art. 155.Inicialmente é de se notar que a Constituição deixou para a lei complementar:a) definir seus contribuintes;b) dispor sobre substituição tributária;c) disciplinar o regime de compensação do imposto;d) fixar, para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços;e) excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços eoutros produtos, além dos produtos industrializados;f) prever casos de manutenção de crédito, relativamente à remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de serviços e mercadorias;g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do DistritoFederal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados (art. 155, § 2°, XII).Observe-se que o art. 34, § 8°, do Ato das Disposições Transitórias esclareceque, se no prazo de sessenta dias, contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do ICMS, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar n. 24, de 7 de janeiro de 197S, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria.Se cabe, contudo, à lei complementar federal regular rodos os itens básicos do ICMS, que também é disciplinado por deliberação conjunta dos Estados e do Distrito Federal, pouco resta à criatividade legislativa dos Estados, de per se, é o que constata Ruy Barbosa Nogueira. (14)O ICMS será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montantecobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado, ou pelo Distrito Federal. Esclarece, no entanto, o art. 155, § 2°, II, a e b, que a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará em crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes, acarretando a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

(14) NOGUEIRA, Ruy, Barbosa. Op. cit., p. 130.443

Poderá ainda o imposto ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços, matéria de política fiscal a ser regulada em lei complementar (art. 155, § 2°. XII, g).Com relação às alíquotas, cabe ao Senado Federal estabelecer as aplicáveis àsoperações e prestações interestaduais e de exportação. Quanto às operações internas, a Constituição esclarece que é facultado ao Senado Federal estabelecer alíquotas mínimas e fixar alíquotas máximas para resolver conflito específico que envolva interesse de Estados. As alíquotas internas não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais, salvo deliberação em contrário dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do disposto na alínea g do inciso XII do § 2° do art. 155. Dispõe ainda a Constituição que, em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele. Nahipótese da alínea a, a diferença entre a alíquota interna e a interestadual caberá ao Estado da localização do destinatário.A Constituição estabelece que o ICMS incide sobre:a) a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar debem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no

exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço;b) o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios, notando-se que, havendo serviços listados com fornecimento de mercadorias, há incidência de ICMSsobre o valor das mercadorias e do ISS sobre o valor dos serviços;c) operações relativas à energia elétrica, aos combustíveis líqüidos e gasosos aos lubrificantes e minerais do País.O ICMS não incide sobre:a) operações que destinem ao exterior produtos industrializados, exceto ossemi-elaborados, definidos em lei complementar;b) operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes,combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;c) o ouro, quando definido em lei complementar como ativo financeiro ouinstrumento cambial.Será excluída da base de cálculo do ICMS o montante do IPI quando a operação, realizada entre contribuintes e relativas a produto destinado à industrializaçãoou à comercialização, configurar fato gerador dos dois impostos.444

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOAnote-se finalmente que as isenções do ICMS somente poderão ser concedidase revogadas através de convênios celebrados pelos Estados, segundo o disposto em lei complementar. A propósito, tem prevalecido a tese de que basta o convênio para que se considere efetivada a isenção, nada obstante haver duas outras reses: uma condicionando a eficácia do convênio à ratificação das Assembléias Legislativas, e a outra entendendo que ao convênio cabe tão-só estabelecer normas gerais para a isenção que será concedida por lei.

& 4.3 Impostos dos MunicípiosAos Municípios compete instituir impostos sobre:I - propriedade predial e territorial urbana;II - transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;III - vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto óleo diesel. AEmenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, excluiu da competência tributária dos Municípios o imposto sobre vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, mas determinou, em seu art. 4°, que a eliminação desse imposto somente produzirá efeitos a partir de 1° de janeiro de 1996, reduzindo-se a correspondente alíquota, pelo menos, a 1,5% no exercício financeiro de 1995;IV - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, I, b, definidos em lei complementar (trata-se de serviços tributados pelo ICMS).O imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade, assim caracterizada, segundo vimos, no art. 182, § 2°.O imposto sobre a transmissão inter vivos não incide sobre a transmissão debens e direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização decapital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes da fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nestes casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil. O mencionado imposto, compete ao Município da situação do bem.O imposto sobre vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos não excluia incidência do ICMS.Enfim, cabe â lei complementar fixar as alíquotas máximas do imposto sobreserviços, bem como excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior.445

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 5 REPARTIÇÃO DAS RECEITAS TRIBUTÁRIASAlém da partilha de rendas mediante a atribuição do poder de tributar àspessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), a constituição possibilita a participaçÃo de uma entidade no produto da arrecadação de outra, surgindo assim uma cooperação financeira entre governos locais e o Governo Federal, o que caracteriza o chamado federalismo cooperativo.A Constituição de 1988 desenvolveu e aprofundou os mecanismos de cooperação financeira dentro do Estado Federal, através da repartição de receitas. Assim,prevê que pertencem aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o imposto da União sobre rendimentos pagos por eles, suas autarquias ou fundações (art. 157, I, e 158, I). Do produto da arrecadação do imposto da União sobre a propriedade territorial rural, SO% da arrecadação relativa aos imóveis situados nos Municípios pertencerão a cada um deles (art. 158, II); aos Municípios também serão entregues 50% do imposto sobre a propriedade de veículos automotores neles licenciados (art. 158, III) e 25% do ICMS (art. 158, iv). O art. 159 menciona a existência de fundos de participação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, constituídos de parcelas da arrecadação do imposto sobre a renda e produtos industrializados.Finalmente a Constituição, cuidando de evitar a interferência de fatores deordem política ou administrativa na liberação de tais recursos, dispõe ser vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego das receitas repartidas aos Estados, Distrito Federal e Municípios, os quais, juntamente com a União, divulgarão, até o último dia do mês subseqüente ao da arrecadação, os montantes de cada um dos tributos arrecadados, os recursos recebidos, os valores de origem tributária entregues e a entregar, e a expressão numérica dos critérios de rateio. Os dados divulgados pela União serão discriminados por Estado e por Município; os do Estado, por Município.

& 6 FINANÇAS PÚBLICASA Constituição dedica um Capítulo às finanças públicas, dentro do Título quetrata da tributação e do orçamento. O perfil das finanças públicas tem sofrido sensíveis alterações, notadamentecom a evolução da própria economia polítua e das transformações do Estado, passando assim a compreender, além da temática das receitas públicas e aplicação dos recursos do Estado, em bens, empreendimentos e obras, outras matérias relacionadas com mecanismos de fiscalização e estabilização desses recursos.O texto constitucional de 1988, no seu art. 163, remete para a lei complementar extensa relação de assuntos relativos às finanças públicas, na qual ela mesma se inclui:446

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICO I - dívida pública externa e interna, inclusive a das autarquias, fundações edemais entidades controladas pelo Poder Público;II - concessão de garantias pelas entidades públicas;III - emissão e resgate de títulos de dívida pública;IV - fiscalização das instituições financeiras;V - operações de câmbio realizadas por órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;VI - compatibilização das funções das instituições oficiais de crédito da União, resguardadas as características e condições operacionais plenas das voltadaspara o desenvolvimento regional.Note-se que ao banco central é vedado conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira, podendo, no entanto, comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, com o objetivo de regular a oferta de moeda ou a taxa de juros. Pelo § 3° do art. 163, as disponibilidades de caixa da União serão depositadas no banco central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos

órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei.

& 7 ORÇAMENTO - NOÇÃO, NATUREZA E ELEMENTOSA atividade financeira do Estado encontra no orçamento disciplina normativa que a delimita do ponto de vista da previsão da receita e fixação da despesa numdeterminado período.De simples ato prevendo a receita e a despesa pública, o orçamento passou arefletir um plano financeiro complexo, em decorrência, sobretudo, do intervencionismo estatal na economia. Mas, como tal, há de estar em sintonia e se compatibilizar com os demais planos e programas estatais, especialmente com o plano plurianual, que estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada (art. 165, § 1°).O orçamento é, pois, uma lei que traduz "um programa de obras, serviços e encargos públicos, expresso em termos de dinheiro, com estimativa da receita e fixação da despesa, a ser executado dentro de um exercício financeiro". (15)O orçamento encerra, ao mesmo tempo, três elementos fundamentais. No dizer de Celso Bastos, em escólio a Sousa Franco, tais elementos são o econômico, opolítico e o jurídico.

(15) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro, p. 238.447

KILDARE GONÇALVES CARVALHO"O elemento econômico traduz-se no fato de o orçamento assumir, inequivocamente, a forma de uma previsão da gestão orçamental do Estado, o que seria um autêntico plano financeiro. O elemento político consubstancia-se na autorização política para a efetivação desse plano ou projeto de gestão estadual. E, finalmente, oingrediente jurídico traduzido nos efeitos próprios dos orçamentos e regulamentados pelos diversos sistemas jurídicos." (16)

& 8 CARACTERÍSTICAS DO ORÇAMENTOO orçamento reveste-se de algumas características que o singularizam:a) anualidade: o orçamento é executado num determinado período financeiro, que tem sido anual em nosso Direito. Atualmente esse período coincide com o ano civil: 1° de janeiro e 31 de dezembro. Observe-se, no entanto, que, segundo odisposto no art. 165, § 1 °, I, da Constituição, cabe à lei complementar dispor sobre o exercício financeiro, que poderá, obviamente, não coincidir com o ano civil, embora se preserve a anualidade, pois a própria Constituição se refere à lei orçamentária anual nos arts. 48, II, 165, II e § 5°, e 166;b) universalidade: o orçamento deve conter todas as rendas e despesas dosPoderes, fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta. José Afonso da Silva chama a atenção para o fato de que o orçamento-programa dá nova configuração à universalidade do orçamento, eis que, embora não sejam nele incluídas todas as receitas e despesas, "eliminando-se inflexivelmente os Fundos especiais e a autonomia financeira de certas empresas governamentais", deverão, no entanto, ser incluídos no orçamento os elementos substantivos necessários à articulação do programa total do governo. (17) Pinto Ferreira mostra, por outro lado, que "verdadeira anarquia financeira já se operou no Brasil, por causa das autarquias e sociedades de economia mista, cujos déficits de operação eram cobertos pelo orçamento, mas sem terem sido incluídos na proposta orçamentária remetida ao Congresso"(18).c) equilíbrio orçamentário: a equivalência entre o montante das despesas e ovolume da receita prevista revela a igualdade matemática entre ingressos e gastos públicos. Essa regra do orçamento clássico tem sido renovada nos países de inflação crônica pela revisão de outras modalidades que irão cobrir o déficit: rendas patrimoniais, empréstimos públicos ou emissão de moeda;

d) exclusividade: a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho àprevisão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a

(16) BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 75.(17) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 619-620.(18) PINTO FERREIRA, Luiz. Curso de direito constitucional, p. 562.448

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOAutorização para a abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei (art. 1G5, § 8°). São, dessa forma, proibidas as chamadas "causas orçamentárias", isto é, matérias de natureza não-financeira. Note-se que a Constituição não veda a autorização para abertura de crédito suplementar, isto é, aquele a ser aberto por decreto do Presidente da República no curso do exercício financeiro visando reforçar alguma dotação que se tornou insuficiente. Não se confunda o crédito suplementar com o crédito especial, embora sejam ambos modalidades de crédito adicional. O crédito especial visa atender despesas para as quais não haja dotação orçamentária: assim, ao contrário do suplementar, o crédito especial só poderá ser aberto por lei específica. A seu turno, operação de crédito por antecipação de receita são os empréstimos que o Poder Público toma para saldar compromissos no mesmo exercício financeiro. Os créditos extraordinários, entendidos como tais os que visam atender despesas imprevisíveis e urgentes,como as decorrentes de grave comoção interna ou calamidade pública, independemde autorização legislativa;e) especialidade de créditos: tanto as receitas prováveis quanto as despesasvêm determinadas e particularizadas no orçamento, de tal forma que o PoderLegislativo controle o uso do dinheiro público, evitando-se assim a sua destinação, pelo Poder Executivo, para finalidade diferente daquela prevista na lei orçamentária.

& 9 MODALIDADES DE ORÇAMENTOA Constituição prevê três orçamentos, todos consubstanciados em leis de iniciativa do Poder Executivo:a) o plano plurianual, cujo objeto são as despesas de capital para os programas de duração continuada, isto é, que superem o orçamento anual em que foram iniciadas;b) as diretrizes orçamentárias, que compreenderão as metas e prioridades daadministração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, e orientação a elaboração da lei orçamentária anual, disporão sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerão a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento. Estabelece ainda a Constituição que o Poder Executivo publicará, até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, relatório resumido da execução orçamentária. Mencione-se ainda que os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional;c) o orçamento anual, que compreenderá: o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta,inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; o orçamento de investimentos das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria449

KILDARE GONÇALVES CARVALHOdo capital social com direito a voto; o orçamento de seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos da administração direta ou indireta a ela vinculados, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público.

& 10 LEI COMPLEMENTAR E ORÇAMENTOA Constituição remete para a lei complementar alguns temas relativos ao orçamento, e que são as normas sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual, gestão financeira e

patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos, compreendendo ainda os limites para a despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Observe-se, a propósito, que até a edição da lei complementar acima referida, segundo dispõe os arts. 35, § 2°, e 38 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: I - o projeto do plano plurianual, para vigência até o final do primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa;II - o projeto de lei de diretrizes orçamentárias será encaminhado até oitomeses e meio antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa;III - o projeto de lei orçamentária da União será encaminhado até quatromeses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa;IV - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderãodespender com pessoal mais do que 65% do valor das respectivas receitas correntes.Quando a respectiva despesa de pessoal exceder o mencionado limite, deverão a ele retornar, mediante redução do percentual excedente à razão de um quinto por ano.A Emenda Constitucional n. 19/20 introduziu na Constituição outras providências que deverão ser adotadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípioscom vistas à contenção da despesa com seu pessoal ativo e inativo, que não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar, medidas essas consubstanciadas no art. 169, §§ 1° a 7° da Constituição:1. a concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criaçãode cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como aadmissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da 450

administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas:a) se houve prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeçõesde despesa de pessoal e aos créscimos dela decorrentes;b) se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista;2. decorrido o prazo estabelecido na lei complementar acima referida para aadaptação aos parâmetros ali previstos, serão imediatamente suspensos todos osrepasses de verbas federais ou estaduais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios que não observarem os referidos limites;3. para o cumprimento dos limites estabelecidos com base no art. 169, duranteo prazo fixado na lei complementar, a União, os Estados, o Distrito Federal e osMunicípios adotarão as seguintes providências:a) redução em pelo menos 20°6 das despesas com cargos em comissão e funções de confiança;b) exoneração dos servidores estáveis;4. se as medidas acima mencionadas não forem suficientes para assegurar ocumprimento da determinação da lei complementar a que se faz referência, o servidor estável perderá o cargo, desde que aro normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal. Assinale-se que o servidor que perder o cargo nessa circunstância fará jus a indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de ser viço. Além disso, o cargo objeto da citada redução será extinto, vedada a criação de cargo, emprego ou função com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo de quatro anos; 5. lei federal disporá sobre as normas a serem obedecidas na efetivação dasmedidas referidas no n. 4 acima.

& 11 VEDAÇÕES CONSTITUCIONAIS ORÇAMENTÁRIASA Constituição enumera, no art. 167, as vedações em matéria orçamentária.

São vedados:I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual;II - a concessão ou utilização de créditos ilimitados;III - a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedamos créditos orçamentárias ou adicionais;451

KILDARE GONÇALVES CARVALHOIV - a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta, notando-se que os incisos II a IV, mencionados, consignam o chamado princípio da quantificação dos créditos orçamentários, impedindo-se assim a atualização monetária do orçamento;V - a vinculação de receita de impostos a órgãos, a fundo ou a despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado pelo art. 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita prevista no art. 165, § 8°;VI - a abertura de crédito suplementar ou especial, sem prévia autorizaçãolegislativa e sem indicação dos recursos correspondentes:VII - a transposição, o remanejamento ou a transferência de recurso de umacategoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa;VIII - a utilização, sem autorização legislativa, específica, de recursos dos orçamentos fiscal e de seguridade social para suprir necessidade ou cobrir o déficit de empresas, fundações e fundos, inclusive dos mencionados no art. 165, § 5º;IX - a instituição de fundos de qualquer natureza, sem prévia autorizaçãolegislativa.X - a transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos, inclusive por antecipação de receita, pelos Governos Federal e Estaduais e suas instituições financeiras, para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (inciso acrescentado pela EC n. 19/98).

& 12 PROCESSO LEGISLATIVO DAS LEIS ORÇAMENTÁRIASAs leis orçamentárias sujeitam-se a processo legislativo próprio, estudado noCapítulo 17, irem 5, para onde remetemos o leitor.452

Capítulo 24ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA

Sumário1 Fundamentos da ordem econômica - Liberalismo, intervencionismo e dirigismo econômico - O neoliberalismo2 Princípios da ordem econômica3 Atuação do Estado no domínio econômico 4 Planejamento5 Serviços públicos6 Regime das jazidas, minas, riquezas minerais e potenciais de energia hidráulica7 Política urbana8 Política agrícola, fundiária e reforma agrária9 Sistema financeiro nacional

& 1 FUNDAMENTOS DA ORDEM ECONÔMICA - LIBERALISMO, INTERVENCIONISMO E DIRIGISMO ECONÔMICO-O NEOLIBERALISMOA Constituição de 1988 dedica à "ordem econômica" (que se destaca da "ordem social") o Título

VII, compreendendo os Capítulos I a III - art. 170 a 191 -,tratando ainda, em único artigo (192), do sistema financeiro nacional.A opção do texto constitucional, embora não o diga expressamente, é pelo capitalismo e a apropriação privada dos meios de produção, com alguns preceitos apontando para uma socialização, sem, contudo, comprometer a essência do sistema.Diz a Constituição, no art. 170, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.Constituem, pois, seus fundamentos a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, que são elevadas inclusive à categoria de fundamentos do próprio Estado brasileiro (art. 1°, IV).Declara ainda o texto constitucional que os objetivos da ordem econômica sãogarantir a todos existência digna e realizar a justiça social.Dentro do modo capitalista de produção, tais objetivos constituem um desafio, pois tendo o lucro como fator predominante, com a conseqüente acumulação econcentração da riqueza, o sistema capitalista gera gritantes desigualdades sociais, difíceis de serem evitadas sem a intervenção do Estado. Por outro lado, o socialismo radical elimina a propriedade privada e esmaga, a pretexto de promover a igualdade, as liberdades fundamentais. Assim, a operacionalização dos preceitos constitucionais programáticos, através da atuação do Executivo e da intervenção legislativa, é que irá propiciar a plena realização dos objetivos a que se propõe a Constituição econômica, devendo-se a todo custo evitar o capitalismo selvagem e o socialismo radical.Deveras, os excessos da concepção liberal é que foram os responsáveis pelo intervencionismo estatal na economia, culminando com a apropriação dos meios deprodução pelo Estado, e eliminando a propriedade privada.De outra parte, a experiência socialista radical parece ter falhado nos seusobjetivos, pois, nos últimos anos, o que se tem visto na Rússia e na China são fatos que revelam a necessidade da redução do papel do Estado como agente econômico, admitindo-se a prática de certas instituições próprias do modelo capitalista e de uma economia de mercado.455

KILDARE GONCALVES CARVALHONos países do Terceiro Mundo, a presença do Estado na economia é apontada como um dos fatores do processo inflacionário, sobretudo porque as emissões de papel moeda e os empréstimos públicos têm sido destinados a cobrir as necessidadesdas empresas públicas e, em dimensão mais abrangente, do próprio déficit público.Fala-se então em desestatização, afastando-se o Estado progressivamente da economia, privatizando-se empresas públicas com obediência às leis do mercado.Como acentua José Afonso da Silva, "o problema do estatismo é que ele nemsempre importa na libertação do homem; não raro é despótico, tecnocrático, burocrático e gerador de uma nova classe dominante, como se reconhece no Estado produzido pela revolução russa, sem negar que o estatismo, assim mesmo, pode revelar-se uma força de progresso na medida mesma em que constitua uma ruptura com a mundialização do capitalismo" (1), mostrando ainda que no Brasil o estatismo "importou especialmente em acudir situações desastrosas da iniciativa privada, prejudicando a classe trabalhadora e comprometendo o desenvolvimento nacional". (2)Assim, a intervenção do Estado na economia só se justifica na medida em que"se busque condicionar a ordem econômica ao cumprimento de seu fim de assegurara existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social e por imperativo de segurança nacional". Mencione-se então o surgimento do neoliberalismo como um sistema políticoe econômico, que visa à renovação de certas posições do liberalismo do século XVIII.No plano econômico, considera insubstituível a iniciativa individual que cria aeconomia de mercado e reconhece que somente o Estado pode preservar o princípiofundamental da concorrência contra a ameaça do monopólio, considerado este como a liberdade de alguns à custa da liberdade dos demais.Já no plano político, sustenta a crença nas liberdades formais, que não podemser substituídas pelas chamadas liberdades reais, pois somente aquelas é que constituem a

garantia contra a ambição totalitária.

& 2 PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICAA Constituição explicita, no art. 170, os princípios da ordem econômica:I - soberania nacional: além de constituir fundamento do Estado Democráticode Direito (art. 1°, I), a soberania figura na ordem econômica, revelando assim a Constituição a existência de uma soberania econômica, no sentido de preservar e defender as riquezas nacionais, dentro de uma idéia nacionalista. Não se pode hoje ignorar, contudo, que a economia se internacionalizou, não cabendo o seu enclausuramento numa determinada sociedade. Assim, o princípio da soberania econômica há de ser

(1) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 670.(2) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 670.456

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOentendido como autonomia e independência nas negociações externas, em que deveráprevalecer o interesse nacional ao confronto com a economia externa.Dentro das concepções neoliberais de flexibilização da economia, foram promulgadas as Emendas Constitucionais n. 6, 7 e 8, de 15 de agosto de 1995, e 9, de 9 de novembro de 199S, que introduziram relevantes modificações restritivas do princípio da soberania econômica, no texto constitucional. Assim, foi eliminada a figura da empresa brasileira, distenderam-se as regras sobre transporte aquático, navegação de cabotagem, serviços de telecomunicações, pesquisa e lavra de jazidas de petróleo e gás natural e outros carbonetos fluidos, refinação de petróleo nacional ou estrangeiro, importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes dessas atividades, transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzido no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem. Foi preservado, no entanto, o monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minério e minerais nucleares e seus derivados.Com relação ao capital estrangeiro, a Constituição não veda seu ingresso noPaís; apenas acautela os interesses nacionais, estabelecendo, no art. 172, que "A lei disciplinará, com base no interesse nacional, investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros".A Constituição assegura (art. 20, § 1 °), nos termos da lei, aos Estados, Distrito Federal e Municípios, assim como a órgãos da administração direta da União, a participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais do respectivo Território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa participação;II - propriedade privada e função social da propriedade: embora consagrando a propriedade privada, a Constituição a condiciona à sua função social. A propósito do tema, veja-se o Capítulo 10, subitem 5.6.1, em que cuidamos da função social da propriedade;III - livre concorrência: tal princípio se relaciona com o da livre iniciativa evem assegurado no § 4° do arr. 173, ao estabelecer que "a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros". Pondere-se, no entanto, com Fávila Ribeiro, que "o capitalismo contemporâneo em sua conformação dominante é comprometido com a crescente expansão das gigantescas organizações, e quando estas chegam, espantam e destroem as unidades de inferior densidade econômica. Entre estruturas tão profundamente desiguais não podem ser estabelecidas relações competitivas, mas de dominação(dependência, essencialmente hegemônicas. Difícil, senão impossível, nessa montagem estrutural em que avulta a formação capitalista 457

concentradora, ter êxito na contenção ao expansionismo ganglionar, por maioresque sejam os influxos intervencionistas do Estado"; (3)IV - defesa do consumidor: a Constituição revela preocupação com a exploração do consumo

coletivo, pois, além de instituir a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica no art. 5°, inciso XXXII, que trata dos direitos fundamentais do homem, estabelece que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa doconsumidor", e arrola, dentre as funções do Ministério Público, a de promover oinquérito civil e ação civil pública, para a proteção de interesses difusos e coletivos; neles incluída a defesa do consumidor;V - defesa do meio ambiente: devendo, neste caso, toda atividade produtivarespeitar o meio ambiente como bem indispensável à vida, à fauna e à flora. A Constituição prevê, no art. 225, mecanismos de defesa do meio ambiente;VI - redução das desigualdades regionais e sociais. Esse é um princípio quevem previsto como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, constantedo art. 3°, III. Na ordem econômica, implica a necessidade de melhor distribuição de renda, mediante a formulação e execução de políticas que visem promover a integração nacional nos aspectos geográficos e demográficos;VII - busca de pleno emprego: diz a respeito Fávila Ribeiro que "não se tratade assumir o próprio Estado a posição cartorária de absorver o trabalho de um modo geral, com uma crescente publicização das atividades produtivas. Não é de tal que se cogita. É da influência a ser exercida na economia, amparando os desprotegidos, além das proteções sobre seguro-desemprego, a que se refere o art. 7°, II, da vigente Constituição"; (4)VIII - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, que se efetiva, segundo o art. 179, sobretudo pelo tratamento jurídico diferenciado, visando incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

& 3 ATUAÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICOO Estado é agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174), cabendo-lhe as funções de fiscalização, incentivo e planejamento.A Constituição prevê a exploração direta da atividade econômica pelo Estado, que será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (art. 173). José Afonsoda Silva sustenta que as duas formas de exploração direta do Estado na atividadeeconômica (a necessária - art. 173 - e a monopolística - art. 177) não significam

(3) RIBEIRO, Fávila. A Constituição e a realidade brasileira, p. 120.(4) RIBEIRO, Fávila. Op. cit., p. 124.458

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOparticipação suplementar ou subsidiária da iniciativa privada, pois essa participação sempre ocorrerá desde que presentes as exigências estabelecidas nos citados dispositivos constitucionais. (5)Mas a flexibilização da economia promovida pelas Emendas Constitucionais n. 6, 7, 8 e 9, de 1995, irá certamente acarretar a diminuição da exploração da atividade econômica pelo Estado, reduzindo-se, conseqüentemente, os níveis de estatização.Segundo o disposto no § 1 ° do art. 173, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/98, a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividades econômicas de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusivequanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal,com a participação de acionistas minoritários;V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

& 4 PLANEJAMENTOModalidade de intervenção indireta do Estado na economia é o planejamento, determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, sendo certo que "a lei estabelecerá as diretrizes e bases de planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento" (arr. 174, § 1°).O planejamento econômico, entendido como o processo de racionalização daeconomia, definindo e ordenando os fins econômicos a serem alcançados, se efetiva mediante planos estabelecidos pelo Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica, que serão determinantes para o setor público e indicativos para o setor privado, conforme se viu.Advirta-se, no entanto, com Raul Machado Horta, que "a linguagem elástica eambígua - `planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado' - sujeita à interpretação dilatora da iniciativa presidencial e de maiorias no Congresso Nacional, poderá converter-se em `cláusula transformadora' da Constituição, para instaurar o

(5) SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 673.459

KILDARE GONÇALVES CARVALHOplanejamento central da economia, sufocando a economia de mercado, a livre iniciativa e a livre concorrência." (6)O planejamento global da economia há, contudo, de se compatibilizar, no Estado federal, com as diferenciações geográficas, econômicas e culturais do País,devendo-se, pois, evitar uma absoluta uniformidade em sua concepção e execução.

& 5 SERVIÇOS PÚBLICOSServiço público é o prestado pela Administração para a realização de umanecessidade de interesse geral.Diz a Constituição que "incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos" (art. 175).Assim, a prestação dos serviços públicos será direta quando envolver órgãos daprópria Administração; indireta, a cargo de autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e mediante concessão ou permissão, envolvendo pessoas de direito privado ou de direito público.

& 6 REGIME DAS JAZIDAS, MINAS, RIQUEZAS MINERAIS E POTENCIAIS DE ENERGIA HIDRÁULICAA Constituição separa expressamente a propriedade do solo do domínio das jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerários, e os potenciais de energia hidráulica que pertencem à União (art. 176), assegurando-se ao proprietário do solo participação nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei.A exploração (pesquisa e lavra) desses recursos minerais e o aproveitamentodos potenciais de energia hidráulica somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, a brasileiros ou a empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País.

& 7 POLÍTICA URBANAPrevê a Constituição (art. 182) que os Municípios deverão adotar política de desenvolvimento urbanos, executada conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

(6) HORTA, Raul Machado. Op. cit., p. 391.460

DIRFITO CONSTITUCIONAL DIDATICO

Note-se que a política urbana não deve ser incompatível com a política nacional de desenvolvimento urbano, pois cabe à União (art. 21, XX) instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos.As cidades com mais de 20 mil habitantes terão um plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, considerado como o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Com relação à propriedade urbana, dispõe o texto constitucional que ela cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação dacidade, expressas no plano diretor (arr. 182, § 2°). A propriedade urbana está condicionada aos princípios e normas do Direito Urbanístico, voltados para a organização dos espaços habitáveis, de modo a propiciar ao homem o exercício de suas funções comunitárias essenciais: habitação, trabalho, recreação e circulação.As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização )em dinheiro ou com pagamento mediante títulos da dívida pública (art. 182, § 4º , III , no caso de descumprimento pelo proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, das exigências de seu adequado aproveitamento. Trata-se da desapropriação-sanção, relacionada com a função social da propriedade urbana, de que cuidamos nos subitens 5.6.1 e 5.6.2 do Capítulo 10 deste trabalho.A Constituição estabelece também o usucapião urbano. Segundo o art. 183, apessoa que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.O título de domínio (propriedade) e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Esses direitos não serão reconhecidos ao mesmo possuidor mais de uma vez. Enfim, proíbe a Constituição o usucapião de imóveis públicos.

& 8 POLÍTICA AGRÍCOLA, FUNDIÁRIA E REFORMA AGRÁRIAOs latifúndios improdutivos no Brasil têm acarretado as questões agrárias,notadamente as relacionadas com a função social da propriedade rural, que é cumprida quando a mesma atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:a) aproveitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação domeio ambiente;c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho;d) exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores(art. 186).461

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA propriedade produtiva terá tratamento especial garantido pela lei, que fixaránormas para o cumprimento dos requisitos relativos à sua função social, é o queprevê o parágrafo único do art. 185.O imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social poderá ser desapropriado para fins de reforma agrária. A reforma agrária, segundo estabelece o art. 16 do Estatuto da Terra, "visa estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do Pais, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio". Pinto Ferreira sustenta que "a reforma agrária consiste numa distribuição das terras ao campesinato, com o objetivo de aumentar a produtividade. O seu objetivo não é tão-somente a redistribuição das terras, mas de outro lado, ainda, o aumento da produção a fim de beneficiar a coletividade." (7)Para se ter idéia da injusta distribuição de terras no Brasil, basta verificar que o Plano Nacional de Reforma Agrária, divulgado pelo Governo da chamada Nova República, reconhecia a existência de 170 milhões de hectares improdutivos no País e de 6 milhões de famílias de trabalhadores sem terra.Segundo a Constituição, compete à União desapropriar por interesse social, para

fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei (art. 184). O pagamento da indenização em títulos da dívida pública foi instituído pela Emenda Constitucional n. 10, de 9 de novembro de 1964 (Governo João Goulart), dentro das chamadas "reformas de base".A pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra, e a propriedade produtiva são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária.As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro. Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário,para o processo judicial de desapropriação. O orçamento anual fixará o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício. São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária. Serão compatibilizadas as ações de política agrícola e de reforma agrária. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária. A alienação ou a concessão, a qualquer título, de terras públicas com área superior a 2 mil e quinhentos hectares a pessoa física ou jurídica, ainda que por interposta pessoa, dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional, dispensável esta quando se tratar de terras públicas para fins de reforma agrária.

(7) PINTO FERREIRA. Curso de direito constitucional, p. 590.462

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOOs beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei.A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transporte, levando em conta, especialmente, os instrumentos creditícios e fiscais, os preços compatíveis com os cursos de produção e a garantia da comercialização, o incentivo à pesquisa e à tecnologia, a assistência técnica e extensão rural e irrigação, e a habitação para o trabalhador rural. Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agroindustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais.Institui a Constituição o usucapião pro labore, em favor da pessoa que, nãosendo proprietária de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anosininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural, não superior a 50 hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia. O usucapião aqui previsto não alcança os imóveis públicos.A aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira serão regulados por lei, que também estabelecerá os casos que de-penderão de autorização pelo Congresso Nacional.

& 9 SISTEMA FINANCEIRO NACIONALA Constituição deferiu as regras pertinentes ao sistema financeiro nacional(art. 192) à legislação complementar, prefixando, todavia, o seu conteúdo material.Assim, será objeto de lei complementar:I - autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado àsinstituições bancárias oficiais e privadas acesso ao mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização;II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdênciae capitalização;III - condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições financeiras;

IV - organização, funcionamento e atribuições do banco central e demais instituições financeiras;VI - criação de fundo ou seguro com o objetivo de proteger a economia popular;VII - critérios restritivos da transferência de poupança de regiões de menordesenvolvimento para outras de maior desenvolvimento;VIII - funcionamento das cooperativas de crédito e requisitos de suaoperacionalidade.463

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA lei complementar do sistema financeiro nacional deverá ainda absorver asregras constitucionais que estabelecem a competência do banco central para a emissão de moeda; a vedação de empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira; a compra e venda de títulos de emissão do Tesouro Nacional, com o objetivo de regular a oferta de moeda ou a taxa de juros (art. 164, §§ 1° a 3°).Ressalte-se, finalmente, que não são auto-aplicáveis as normas constitucionaisreferentes ao sistema financeiro nacional, parecendo-nos, assim, que não deve ser considerada como de aplicabilidade imediata a regra constitucional sobre taxas de juros reais não superiores a 12% ao ano (art. 192, § 3°).464

Capítulo 25ORDEM SOCIAL

Sumário1 Considerações gerais2 A seguridade social3 Educação e cultura4 Desporto5 Ciência e tecnologia6 Comunicação social7 Meio ambiente8 Família9 Criança, adolescente e idoso10 Índios

& 1 CONSIDERAÇÕES GERAISA Constituição dedica o Título VIII à "ordem social", que se desvincula da "ordem econômica". Afasta-se assim o texto constitucional de 1988 da orientaçãodas Constituições anteriores, que, a partir de 1934, incluíam a "ordem social" no Título da "ordem econômica".O Título que examinaremos contém inúmeros princípios e preceitos programáticos, dependendo sua eficácia de legislação integrativa, mas, de qualquer forma, direcionando a atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que deverão ater-se às diretrizes nele enunciadas.A ordem social tem como base o primado do trabalho, e, como objetivos, o bem-estar e a justiça sociais, diz o art. 193. Privilegia o texto constitucional o trabalho nas suas relações com o capital, visando precipuamente à realização da justiça social. O capital constitui, pois, instrumento para a promoção do bem-estar dos indivíduos, e não um fim em si mesmo.

& 2 A SEGURIDADE SOCIALA seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos àsaúde, à previdência e à assistência social. A seguridade social será custeada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de contribuições sociais dos empregadores e dos trabalhadores, sobre a receita de concursos de prognósticos, bem como mediante impostos de competência residual da União (art. 154, I).

Anote-se que as contribuições sociais para o custeio do sistema de seguridadesocial somente poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 1S0, III, b, referente ao princípio da anualidade tributária.Os objetivos da seguridade social vêm discriminados nos incisos I a VII do parágrafo único do art. 194, destacando-se: a universalidade da cobertura e do atendimento 467

KILDARE GONCALVES CARVALHO(inciso I), no sentido de que todos têm direito aos benefícios do sistema, independentemente de contribuição prévia; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais (inciso II), seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços (inciso III), que deverão se voltar para os mais necessitados; irredutibilidade do valor dos benefícios (inciso IV), determinando a Constituição seu reajuste, nos termos do art. 201, §§ 2° e 3°; eqüidade na forma de participação no custeio (inciso V); diversidade de base de financiamento (inciso VI); caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados ( inciso VII acrescentado pela EC n. 20/98).

& 2.1 SaúdeA Constituição declara, no art. 196, que "a saúde é direito de todos e dever doEstado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dorisco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".A respeito, pondera Elcias Ferreira da Costa que a redação é pouco adequada."Não é dever do Estado dar saúde, mas proteger a saúde. O adimplemento peloEstado consiste nas políticas social e econômica a serem executadas nessa área." (1) A Constituição de Portugal prevê, em disposição tecnicamente correta (art. 64), que "todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.

& 2.2 Previdência socialA previdência social, de acordo com o disposto no art. 210, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 20/98, será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. A previdência social atenderá, nos termos da lei, os seguintes preceitos:1. cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;2. proteção à maternidade, especialmente à gestante;3. proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;4. salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixarenda;5. pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes.

(1) COSTA, Elcias Ferreira da. Comentários breves à Constituição Federal, p. 264.463

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOPelo § 1° do art. 201 da Constituição, veda-se a adoção de requisitos diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, definidos em lei complementar. Todos os salários de contribuição, considerados para o cálculo do benefício, serão devidamente atualizados, na forma da lei, assegurado o reajustamento dos benefícios, no intuito de preservar-lhe, em caráter permanente, o valor real. Veda-se ainda a filiação ao regime geral de previdência social, na qualidade de segurado facultativo, de pessoa participante de regime próprio de previdência. Anote-se que são auto-aplicáveis, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, as normas constitucionais que prevêem que nenhum benefício que substitua o salário de contribuição, ou o rendimento do

trabalho do segurado, terá valor mensal inferior ao salário mínimo, e a de que a gratificação natalina dos aposentados e pensionistas terá por base o valor dos proventos do mês de dezembro de cada ano (art. 201,§ 6°).A aposentadoria é assegurada, nos termos da lei, no regime geral de previdência social, desde que atendidas as seguintes condições: 1. trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher;2. sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher;3. sessenta anos de idade, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade, se mulher, para os trabalhadores rurais e para os que exerçam suas atividades emregime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e opescador artesanal;4. no caso de professor, trinta anos de contribuição, se homem, e vinte e cinco anos de contribuição, se mulher, desde que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensinofundamental e médio. Há regras de transição da aposentadoria voluntária integral e proporcional.Possibilita-se, ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normasestabelecidas para o regime geral de previdência social, o direito à aposentadoriapelas normas estabelecidas para o regime geral de previdência social, o direito à aposentadoria do segurado que se tenha filiado ao regime geral de previdência social, até a data de sua publicação, desde que preencha os requisitos previstos no art. 9° da Emenda Constitucional n. 20/98. Ao professor também se dirigem as regras de transição, nos termos do § 2° do art. 9° da Emenda Constitucional n. 20/98. Permite ainda a Constituição Federal, no art. 202, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 20/)8, regime de previdência privada, que será baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado.469

KILDARE GONÇALVES CARVALHO

& 2.3 Assistência socialA assistência social é um direito assegurado pela Constituição a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social. Os recursos para as ações governamentais na área da assistência social serão provenientes do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes.A assistência social tem por objetivos:I - proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;II - amparo às crianças e adolescentes carentes;III - promoção da integração ao mercado de trabalho;IV - habilitação e reabilitação das pessoas deficientes e a promoção de suaintegração à vida comunitária, bem como garantia de um salário mínimo a elas e ao idoso que comprovem não possuírem meios de prover a manutenção deles ou de tê-la provida por suas famílias, conforme dispuser a lei.

& 3 EDUCAÇÃO E CULTURAA educação é direito de todos e dever do Estado e da família, tendo por objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa, seu amparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte eo saber;III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino, mas, neste último caso, mediante o cumprimento das normas gerais da educação nacional, autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II);IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;V - valorização dos profissionais do ensino, garantindo, na forma da lei, plano

de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;VII - garantia de padrão de qualidade.Observe-se que as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Obedecerão ao princípio daindissociabilidade dentre ensino, pesquisa e extensão.470

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOSendo o ensino fundamental obrigatório e gratuito e constituindo direito público subjetivo (art. 208, § 1°), Manoel Gonçalves Ferreira Filho acentua que "o titular desse direito poderá fazer valê-lo em juízo, contra o Estado, que deverá assegurar-lhe matrícula em escola pública, ou bolsa de estudos em escola particular (art. 213, § 1°), se houver falta de vagas nos cursos públicos." (2)A Constituição determina a aplicação, anualmente, pela União, de nunca menosde 18%, e pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, de 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferência, na manutenção e desenvolvimento do ensino. No caso dos Municípios, o descumprimento dessa determinação constitucional acarreta intervenção do Estado federado (art. 35, III).O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso àsfontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, enfatizando as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das culturas de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (art. 215, § 1°).O patrimônio cultural brasileiro, constituído pelos bens de natureza material e imaterial, mencionados no art. 216, terá que ser protegido pelo Poder Público, com a colaboração da comunidade, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação.

& 4 DESPORTOA Constituição declara ser dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados os princípios mencionados no art. 217.O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competiçõesdesportivas após esgotarem-se as instâncias da Justiça desportiva, regulada em lei, que terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final. Assim, prevê a Constituição um requisito de ordem processual para o ingresso no Poder Judiciário, relativamente às ações que versem sobre disciplina e competições desportivas.

& 5 CIÊNCIA E TECNOLOGIACabe ao Estado promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisae a capacitação tecnológicas.

(2) FFRREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 312.471

KILDARE GONÇALVES CARVALHOA pesquisa pode ser científica básica, que receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências, e tecnológica, que se voltará preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.

& 6 COMUNICAÇÃO SOCIALDeclarando livre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, a Constituição veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. A influência, no entanto, que detêm os meios de comunicação de massa sobre o comportamento individual e de grupos, fez com que a Constituição estabelecesse

princípios para a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão, dentre os quais se destaca o do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221, IV), assegurando-se ainda, nos termos da lei federal, meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariarem os princípios a que estão sujeitos a observar, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.Dispõe ainda a Constituição que a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de som e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, aos quais caberá a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual (art. 222).Enfim, os atos do Poder Público de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádio e televisão serão apreciados pelo Congresso Nacional, cuja aprovação ou rejeição dependem do voto nominal de dois quintos dos seus membros.

& 7 MEIO AMBIENTEA Constituição declara, no art. 255, que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".Por meio ambiente deve-se entender o complexo de relações entre o mundo natural e os seres vivos. Ecologia consiste no domínio científico que se dedica aosestudos dessas relações. Ecossistema é o conjunto d.e relacionamentos mútuos entre determinado meio ambiente e a flora, a fauna e os microorganismos que nele habitam, e que incluem fatores de equilíbrio geológico, atmosférico, meteorológico e biológico, sendo os mais ameaçados os ecosistemas de água doce, terras alagadiças, 472

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOrecifes de coral, ilhas oceânicas, áreas de clima mediterrâneo, florestas úmidas tropicais, dentre outros.Verifica-se inicialmente que o direito ao meio ambiente se relaciona com o próprio direito à vida do qual é uma de suas manifestação, dizendo José Afonso da Silva que "as normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente." (3)Preocupa-se o texto constitucional com a tutela do direito ao meio ambiente, ao prever no § 3° do art. 225 que "as condutas e atividades consideradaslesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar osdanos causados". Note-se ainda que são garantias constitucionais de proteção dodireito ao meio ambiente a ação popular (art. 5°, LXXIII) e a ação civil pública(art. 129, III).O meio ambiente é tratado ainda na Constituição, ao discriminar as competências dos entes federativos (art. 23, VI e VII; art. 24, VIII); ao estabelecer os princípios da ordem econômica e financeira (art. 170, VI; art. 174, § 3°); ao inserir o ambiente de trabalho no conceito do meio ambiente (art. 200, VIII); e ao incluir no conceito de patrimônio cultural brasileiro o sítios de valor ecológico (art. 216, V).

& 8 FAMÍLIAA família, como grupo social primário, não é constituída apenas pelo casamento, como ocorria no direito anterior, pois a Constituição a ela equipara a união estável entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.Na família, os direitos e deveres são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.O casamento é civil, e gratuita a celebração, não o seu processamento, sendoque o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.A paternidade responsável vem mencionada na Constituição, ao declarar que o

planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separaçãojudicial por mais de um ano, nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.

(3) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 708.473

& 9 CRIANÇA, ADOLESCENTE E IDOSOPelo que dispõe o art. 2° do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990), considera-se criança a pessoa até doze anos de idadeincompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.E dever da família assegurar à criança e ao adolescente uma série de direitosmencionados no art. 227.Importante inovação do texto constitucional refere-se ao § 6° do art. 227, aodeclarar que "os filhos, havidos ou não de relação do casamento, ou por adoção,terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designaçõesdiscriminatórias relativas à filiação." A proibição constitucional alcança os assentos civis, bem como o direito sucessório.Normas de tutela dos idosos também constam da Constituição. Para fins de gratuidade dos transportes coletivos, considera-se idoso o maior de sessenta e cinco anos (art. 230, § 2°), e para fins de aposentadoria compulsória no serviço público os maiores de setenta anos de idade (art. 40, II).Os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carênciaou enfermidade. Também a família, a sociedade e o Estado têm o dever de ampararas pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo suadignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente emseus lares.

& 10 ÍNDIOSA Constituição protege os índios, que, segundo estimativa de 1990, são, noBrasil, em número de aproximadamente 245 mil, constituindo-se em duzentos grupos distintos, que falam mais de cento e setenta línguas e dialetos diferentes.Reconhece-lhes ainda o texto constitucional o direito à organização social,costumes, línguas, crenças e tradições e às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à posse permanente dos mesmos, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios edos lagos nelas existentes.Tais terras, que constituem patrimônio da União, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. São nulos e extintos os atos que tenham 474

DIREITO CONSTITUCIONAL DIDÁTICOpor objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras, bem como a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse publico da União, segundo o que dispuser lei complementar. A nulidade e extinção não geram direito ã indenização ou ação contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, apesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, só pode ser efetivado com autorização do Congresso Nacional (art. 49, XVI), ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei.Dispõem os índios, suas comunidades e organizações de legitimação para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em rodos os atos do processo.

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Capítulo 26DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAL GERAIS E TRANSITÓRIAS

Sumário1 Disposições gerais - Natureza2 Serviços notariais e de registro3 Disposições transitórias: natureza e forma

& 1 DISPOSIÇÕES GERAIS - NATUREZADisposições gerais são "aquelas que interessam a toda Constituição e que nãoforam objeto de capítulo especial" (1). No texto constitucional de 1988 as disposições gerais constituem o Título IX, compreendendo os arts. 233 a 246, este introduzido pela Emenda Constitucional n. 6/95. Nota-se a existência, em sede de disposições gerais, de alguns assuntos que a rigor deveriam inserir-se em outros Títulos, como, por exemplo, os arts. 234, 235, 240, 241 e 24G, ou o próprio artigo inaugural dessas disposições.

& 2 SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTROO art. 236 estabelece que os serviços notariais e de registro serão exercidos emcaráter privado por delegação do Poder Público. Trata-se de disposição geral queinova substancialmente o regime anterior de serventias extrajudiciais. Destaca-se, a propósito, que os serviços notariais foram privatizados, nada obstante os atos dos notários e registradores submeterem-se à fiscalização pelo Poder Judiciário. Serão regulados em lei as atividades, a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos.Dispõe o § 3° do art. 236 que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga por mais de seis meses, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção. Se a Constituição estabelece expressamente que a fiscalização dos atos notariais cabe ao Poder Judiciário (art. 236, § 1°), quer-nos parecer que a delegaçãoefetiva para a atividade é do Poder Executivo, pois a competência do Judiciário vem mencionada apenas para a sua fiscalização. Este assunto, no entanto, deverá ser regulamentado em lei.

& 3 DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS - NATUREZA E FORMAAs disposições transitórias são estabelecidas em caráter temporário e se destinam à transição de um regime constitucional para outro. Relacionam-se com o direito

(1) JACQUES, Paulino. Curso de direito constitucional, p. 521.479

KILDARE GONÇALVES CARVALHOintertemporal, vinculadas que se acham aos efeitos da lei no tempo, sua retroatividade e imediata aplicação.Daí sustentar Pontes de Miranda que "o princípio jurídico fundamental é o da incidência imediata da nova Constituição. Se o legislador constituinte prefere que se regule a transição, cabe-lhe dizê-lo explicitamente, ou, pelo menos, implicitamente". (2)Note-se que, na ocorrência de mudança radical de um regime político para outro, alterando-se a estrutura do Estado, tornam-se desnecessárias as disposiçõestransitórias: foi o que ocorreu com a Constituição do Império de 1824, a Constituição norte-

americana de 1787, e as Constituições da França de 1793 e 1795, de cujos textos não constaram disposições transitórias, para citarmos alguns exemplos.A Constituição de 1988 contempla as disposições transitórias, que constituemato autônomo em relação ao texto permanente, com numeração própria (são 73artigos, sendo os de números 71 a 73 acrescentados pela Emenda Constitucional deRevisão n. 1, de 1° de março de 1994), seguindo assim a linha das Constituições de 1891, 1934 e 1946, já que as de 1937, 1967 e sua Emenda n. 1, de 1969, incluíram as disposições transitórias na parte permanente. Embora separado do texto permanente da Constituição, não se deve esquecer que as disposições transitórias são elaboradas, votadas promulgadas pelo próprio poder criado da Constituição.É extensa a matéria tratada no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. Observa-se que grande parte dela exorbitou de suanatureza técnica, para promover o acertamento de situações funcionais de servidores públicos e conjunturais.As disposições transitórias não seguem a técnica redacional da parte permanente da Constituição, eis que não vêm divididas em Títulos, Capítulos ou Seções.Os temas são regulados de maneira desordenada e assistemática.Não se há de falar em conflito entre disposições permanentes e disposiçõestransitórias, pois enquanto aquelas pressupõem vigência perene, estas se esgotamcom a ocorrência do tempo. A propósito, esclarece Roberto Magalhães que "a doutrina de que as disposições permanentes devem prevalecer sobre as disposições transitórias conduziria a conseqüências da maior gravidade, tornando inoperante, por vezes, o próprio instrumento constitucional, pela impossibilidade de sua adaptação às condições de fato preexistentes" (3). Na maioria das situações, pode ocorrer assim que a norma transitória não esteja em consonância com as regras gerais da parte permanente da Constituição.

(2) PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969, t. 6, p. 386.(3) MAGALHÃES, Roberto Barcelos de. A Constituição de 1967 comentada, t. 2, p. 533.480