Direitos Fundamentais GILMAR-MENDES

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    Nmero 23 julho/agosto/setembro de 2010 Salvador Bahia Brasil - ISSN 1981-187X -

    OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SEUS MLTIPLOSSIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL

    P r o f . G il m a r F er r e i r a M e n d e s

    Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Adjunto da UNB. Mestre em Direito (UNB).Doutor em Direito pela Universidade de Mnster, Repblica Federal da Alemanha - RFA

    1. INTRODUO

    A Constituio brasileira de 1988 atribuiu significado mpar aos direitosindividuais. J a colocao do catlogo dos direitos fundamentais no incio dotexto constitucional denota a inteno do constituinte de lhes emprestarsignificado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra emsetenta e sete incisos e dois pargrafos (art. 5o), refora a impresso sobre aposio de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idiade que os direitos individuais devem ter eficcia imediata ressalta a vinculaodireta dos rgos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estritaobservncia.

    O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais soelementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituio,considerando, por isso, ilegtima qualquer reforma constitucional tendente asuprimi-los (art. 60, 4o).

    Se se pretende atribuir aos direitos individuais eficcia superior dasnormas meramente programticas, ento deve-se identificar precisamente oscontornos e limites de cada direito, isto , a exata definio do seu mbito deproteo. Tal colocao j suficiente para realar o papel especial conferidoao legislador tanto na concretizao de determinados direitos, quanto noestabelecimento de eventuais limitaes ou restries1. Evidentemente, nos o legislador, mas tambm os demais rgos estatais com poderesnormativos, judiciais ou administrativos cumprem uma importante tarefa narealizao dos direitos fundamentais.

    1. LERCHE, Peter, Grundrechtlicher Schutzbereich, Grundrechtsprgung und Grundrechtseingriff,in : Isensee/Kirchhoff, Handbuch des Staatsrechts, vol. V, p. 739 (740).

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    Os direitos fundamentais so, a um s tempo, direitos subjetivos e

    elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitossubjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titularesa possibilidade deimpor os seus interesses em face dos rgos obrigados2. Na sua dimenso

    como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitosfundamentais - tanto aqueles que no asseguram, primariamente, um direitosubjetivo, quanto aqueloutros, concebidos como garantias individuais - formama base do ordenamento jurdico de um Estado de Direito democrtico.

    verdade consabida, desde que Jellinek desenvolveu a sua Teoria dosquatro status3, que os direitos fundamentais cumprem diferentes funes naordem jurdica.

    Na sua concepo tradicional, os direitos fundamentais so direitos dedefesa (Abwehrrechte), destinados a proteger determinadas posies

    subjetivas contra a interveno do Poder Pblico, seja pelo (a) no-impedimento da prtica de determinado ato, seja pela (b) no-interveno emsituaes subjetivas ou pela no-eliminao de posies jurdicas4.

    Nessa dimenso, os direitos fundamentais contm disposiesdefinidoras de uma competncia negativa do Poder Pblico (negativeKompetenzbestimmung), que fica obrigado, assim, a respeitar o ncleo deliberdade constitucionalmente assegurado5.

    Outras normas consagram direitos a prestaes de ndole positiva(Leistungsrechte), que tanto podem referir-se a prestaes fticas de ndole

    positiva (faktische positive Handlungen), quanto a prestaes normativas dendole positiva (normative Handlungen)6.

    Tal como observado por Hesse, a garantia de liberdade do indivduo queos direitos fundamentais pretendem assegurar somente exitosa no contextode uma sociedade livre. Por outro lado, uma sociedade livre pressupe aliberdade dos indivduos e cidados, aptos a decidir sobre as questes de seuinteresse e responsveis pelas questes centrais de interesse da comunidade.Essas caractersticas condicionam e tipificam, segundo Hesse, a estrutura e afuno dos direitos fundamentais. Eles asseguram no apenas direitos

    2. HESSE, Konrad, Grundzge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland,Heidelberg, 1995, p. 112; KREBS, Walter. Freiheitsschutz durch Grundrechte, in : JURA 1988, p. 617(619).

    3. JELLINEK, G. Sistema dei Diritti Pubblici Subiettivi, trad. ital., Milo, 1912, p. 244. Sobre acrtica da Teoria de Jellinek, Cf. ALEXY, Robert, Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986, p.243 s; Cf., tambm, SARLET, Ingo, A eficcia dos Direitos Fundamentais, Porto Alegre, 1998, p. 153 s..

    4. Cf. ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 174; Ver, tambm, CANOTILHO, DireitoConstitucional, Coimbra, 1991, p. 548.

    5

    . Cf., HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., p. 133.6. ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 179; Ver, tambm, CANOTILHO, DireitoConstitucional, cit., p. 549.

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    subjetivos, mas tambm os princpios objetivos da ordem constitucional edemocrtica7.

    2. DIREITOS FUNDAMENTAIS ENQUANTO DIREITOS DE DEFESA

    Enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram aesfera de liberdade individual contra interferncias ilegtimas do Poder Pblico,provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judicirio. Se oEstado viola esse princpio, dispe o indivduo da correspondente pretensoque pode consistir, fundamentalmente, em uma:

    (1) pretenso de absteno (Unterlassungsanspruch);

    (2) pretenso de revogao (Aufhebungsanspruch), ou, ainda, em uma

    (3) pretenso de anulao (Beseitigungsanspruch)8.

    Os direitos de defesa ou de liberdade legitimam ainda duas outraspretenses adicionais:

    (4) pretenso de considerao (Bercksitigungsanspruch), que impe aoEstado o dever de levar em conta a situao do eventual afetado, fazendo asdevidas ponderaes9; e

    (5) pretenso de defesa ou de proteo (Schutzanspruch), que impe aoEstado, nos casos extremos, o dever de agir contra terceiros10.

    A clssica concepo de matriz liberal-burguesa dos direitosfundamentais informa que tais direitos constituem, em primeiro plano, direitosde defesa do indivduo contra ingerncias do Estado em sua liberdade pessoale propriedade. Esta concepo de direitos fundamentais apesar de serpacfico na doutrina o reconhecimento de diversas outras ainda continuaocupando um lugar de destaque na aplicao dos direitos fundamentais. Estaconcepo, sobretudo, objetiva a limitao do poder estatal a fim de assegurar

    ao indivduo uma esfera de liberdade. Para tanto, outorga ao indivduo umdireito subjetivo que permite evitar interferncias indevidas no mbito deproteo do direito fundamental ou mesmo a eliminao de agresses queesteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal.11

    7. HESSE, Bedeutung der Grundrechte, in : BENDA, Ernst/ MAIHOFER, Werner/ VOGEL, Hans-Jochen, Handbuch des Verfassungsrechts, Berlim, 1995, vol I, p. 127 (134).

    8. Cf. BATTIS, Ulrich/GUSY, Christoph, Einfhrung in das Staatsrecht, 4 edio, Heidelberg,1999, p. 236.

    9 BATTIS/GUSY, Einfhrung in das Staatsrecht, cit., p. 236.10. BATTIS/GUSY, Einfhrung in das Staatsrecht, cit., p. 236 s.11. SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais, p. 167.

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    Analisando as posies jurdicas fundamentais que integram os direitos

    de defesa, importa consignar que estes no se limitam s liberdades eigualdades (direito geral de liberdade e igualdade, bem como suasconcretizaes), abrangendo, ainda, as mais diversas posies jurdicas que os

    direitos fundamentais intentam proteger contra ingerncias dos poderespblicos e tambm contra abusos de entidades particulares, de forma que secuida de garantir a livre manifestao da personalidade, assegurando umaesfera de auto-determinao do indivduo.12

    3. DIREITOS FUNDAMENTAIS ENQUANTO NORMAS DE PROTEODE INSTITUTOS JURDICOS

    A Constituio outorga, no raras vezes, garantia a determinadosinstitutos, isto , a um complexo coordenado de normas, tais como apropriedade, a herana, o casamento, etc. Outras vezes, clssicos direitos deliberdade dependem, para sua realizao, de interveno do legislador.

    Assim, a liberdade de associao (CF, art. 5o, XVII) depende, pelomenos parcialmente, da existncia de normas disciplinadoras do direito desociedade (constituio e organizao de pessoa jurdica, etc.). Tambm aliberdade de exerccio profissional exige a possibilidade de estabelecimento devnculo contratual e pressupe, pois, uma disciplina da matria noordenamento jurdico. O direito de propriedade, como observado, no sequer

    imaginvel sem disciplina normativa13.

    Da mesma forma, o direito de proteo judiciria, previsto no art. 5o,XXXV, o direito de defesa (art. 5o, LV), e o direito ao juiz natural (art. 5o,XXXVII), as garantias constitucionais do habeas corpus, do mandado desegurana, do mandado de injuno e do habeas dataso tpicas garantias decarter institucional, dotadas de mbito de proteo marcadamentenormativo14.

    Entre ns, Ingo Sarlet assinala como autnticas garantias institucionaisno catlogo da nossa Constituio a garantia da propriedade (art. 5o, XXII), o

    direito de herana (art. 5o, XXX), o Tribunal do Jri (art. 5o, XXXVIII), a lnguanacional portuguesa (art. 13), os partidos polticos e sua autonomia (art 17,caput e 1o). Tambm fora do rol dos direitos e garantias fundamentais (TtuloII) podem ser localizadas garantias institucionais, tais como a garantia de umsistema de seguridade social (art. 194), da famlia (art. 226), bem como daautonomia das universidades (art. 207), apenas para mencionarmos alguns dosexemplos mais tpicos. Ressalte-se que alguns desses institutos podem at

    12. Cf. nesse sentido SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais, p. 16913. Cf., sobre o assunto, KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, JURA 1988, p. 617 (623).14. Cf., PIEROTH/SCHLINK, Grundrechte - Staatsrecht II, p. 53.

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    mesmo ser considerados garantias institucionais fundamentais, em face daabertura material propiciada pelo art. 5o, 2oda Constituio.15

    Nesses casos, a atuao do legislador revela-se indispensvel para a

    prpria concretizao do direito. Pode-se ter aqui um autntico deverconstitucional de legislar (Verfassungsauftrag), que obriga o legislador aexpedir atos normativos conformadores e concretizadores de algunsdireitos16.

    4. DIREITOS FUNDAMENTAIS ENQUANTO GARANTIAS POSITIVASDO EXERCCIO DAS LIBERDADES

    A garantia dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa contrainterveno indevida do Estado e contra medidas legais restritivas dos direitosde liberdade no se afigura suficiente para assegurar o pleno exerccio daliberdade. Observe-se que no apenas a existncia de lei, mas tambm a suafalta podem revelar-se afrontosas aos direitos fundamentais17. o que severifica, v.g., com os direitos prestao positiva de ndole normativa, inclusiveo chamado direito organizao e ao processo (Recht auf Organization undauf Verfahren) e, no raras vezes, com o direito de igualdade.

    Vinculados concepo de que ao Estado incumbe, alm da no-interveno na esfera da liberdade pessoal dos indivduos, garantida pelos

    direitos de defesa, a tarefa de colocar disposio os meios materiais eimplementar as condies fticas que possibilitem o efetivo exerccio dasliberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestaes objetivam, emltima anlise, a garantia no apenas da liberdade-autonomia (liberdadeperante o Estado), mas tambm da liberdade por intermdio do Estado,partindo da premissa de que o indivduo, no que concerne conquista emanuteno de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dospoderes pblicos. Assim, enquanto direitos de defesa (status libertatis estatus negativus) se dirigem, em princpio, a uma posio de respeito eabsteno por parte dos poderes pblicos, os direitos a prestaes, que, demodo geral, e ressalvados os avanos registrados ao longo do tempo, podemser reconduzidos ao status positivusde Jellinek, implicam uma postura ativado Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar disposiodos indivduos prestaes de natureza jurdica e material.18

    A concretizao dos direitos de garantias s liberdades exige, no rarasvezes, a edio de atos legislativos, de modo que eventual inrcia do legisladorpode configurar afronta a um dever constitucional de legislar.

    15. SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais, p. 182.16. BATTIS/GUSY, Einfhrung in das Staatsrecht, cit., p. 327.17. Cf., sobre o assunto, KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (623).18. Cf., nesse sentido, SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais, p. 185-186.

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    4.1 Direitos fundamentais enquanto direitos a prestaes positivas

    Como ressaltado, a viso dos direitos fundamentais enquanto direitos dedefesa (Abwehrrecht) revela-se insuficiente para assegurar a pretenso deeficcia que dimana do texto constitucional. Tal como observado por Krebs,no se cuida apenas de ter liberdade em relao ao Estado (Freiheit vom...),mas de desfrutar essa liberdade mediante atuao do Estado (Freiheitdurch...)19.

    A moderna dogmtica dos direitos fundamentais discute a possibilidadede o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fticos necessrios aoexerccio efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e sobre a

    possibilidade deeventual titular do direito dispor de pretenso a prestaes porparte do Estado20.

    Se alguns sistemas constitucionais, como aquele fundado pela LeiFundamental de Bonn, admitem discusso sobre a existncia de direitosfundamentais de carter social (soziale Grundrechte)21, certo que talcontrovrsia no assume maior relevo entre ns, uma vez que o constituinte,embora em captulos destacados, houve por bem consagrar os direitos sociais,que tambm vinculam o Poder Pblico, por fora inclusive da eficciavinculante que se extrai da garantia processual-constitucional do mandado deinjuno e da ao direta de inconstitucionalidade por omisso22.

    No subsiste dvida, tal como enfatizado, de que a garantia da liberdadedo exerccio profissional ou da inviolabilidade do domiclio no assegurapretenso ao trabalho ou moradia. Tais pretenses exigem no s aolegislativa, como, no raras vezes, medidas administrativas23.

    Se o Estado est constitucionalmente obrigado a prover tais demandas,cabe indagar se, e em que medida, as aes com o propsito de satisfazer taispretenses podem serjuridicizadas, isto , se, e em que medida, tais aes sedeixam vincular juridicamente24.

    19. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624).20. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624).21. Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624-5); ALEXY, Theorie der

    Grundrechte, 395 s.22. O mandado de injuno, concebido para assegurar direitos e liberdades constitucionais,

    sempre que a falta de norma regulamentadora tornar invivel o seu exerccio (CF, art. 5 o, LXXI), e a aodireta de inconstitucionalidade por omisso (CF, art. 103, 2o), destinada a tornar efetiva normaconstitucional, expressam, no plano material, o efeito vinculante para o legislador das normas quereclamam expedio de ato normativo.

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    . Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624-5); ALEXY, Theorie derGrundrechte, 1988, p.395 s.24. Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (625).

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    Outra peculiaridade dessas pretenses a prestaes de ndole positiva

    a de que elas esto voltadas mais para a conformao do futuro do que para apreservao do status quo. Tal como observado por Krebs, pretenses conformao do futuro (Zukunftgestaltung) impem decises que esto

    submetidas a elevados riscos: o direito ao trabalho (CF, art. 6o) exige umapoltica estatal adequada de criao de empregos. Da mesma forma, o direito educao (CF, art. 205 c/c art. 6o), o direito assistncia social (CF, art. 203c/c art. 6o) e previdncia social (CF, art. 201 c/c art. 6o) dependem dasatisfao de uma srie de pressupostos de ndole econmica, poltica e

    jurdica.

    A submisso dessas posies a regras jurdicas opera um fenmeno detransmutao, convertendo situaes tradicionalmente consideradas denatureza poltica em situaes jurdicas. Tem-se, pois, a juridicizao doprocesso decisrio, acentuando-se a tenso entre direito e poltica25.

    Observe-se que, embora tais decises estejam vinculadas juridicamente, certo que a sua efetivao est submetida, dentre outras condicionantes, reserva do financeiramente possvel (Vorbehalt des finanziell Mglichen).Nesse sentido, reconheceu a Corte Constitucional alem, na famosa decisosobre numerus clausus de vagas nas Universidades (numerus-claususEntscheidung), que pretenses destinadas a criar os pressupostos fticosnecessrios para o exerccio de determinado direito esto submetidas reserva do possvel (Vorbehalt des Mglichen)26.

    Os direitos a prestaes encontraram uma receptividade semprecedentes no constitucionalismo ptrio, resultando, inclusive, na abertura deum captulo especialmente dedicado aos direitos sociais no catlogo dosdireitos e garantias fundamentais. Alm disso, verifica-se que mesmo emoutras partes do texto constitucional encontra-se uma variada gama de direitosa prestaes. Neste contexto, limitando-nos, aqui, aos direitos fundamentais,basta uma breve referncia aos exemplos do art. 17, 3o da ConstituioFederal (direito dos partidos polticos a recursos do fundo partidrio), bemcomo do art. 5o, incisos XXXV e LXXIV (acesso Justia e assistncia jurdicaintegral e gratuita).27

    4.2 Direito organizao e ao procedimento

    Nos ltimos tempos vem a doutrina utilizando-se do conceito de direito organizao e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren)para designar todos aqueles direitos fundamentais que dependem, na suarealizao, tanto de providncias estatais com vistas criao e conformao

    25. Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (625).26. BVerfGE 33, 303 (333).27. SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais, p. 186

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    de rgos, setores ou reparties (direito organizao), como de outras,normalmente de ndole normativa, destinadas a ordenar a fruio dedeterminados direitos ou garantias, como o caso das garantias processuais-constitucionais (direito de acesso justia; direito de proteo judiciria; direito

    de defesa)28.

    Reconhece-se o significado do direito organizao e ao procedimentocomo elemento essencial da realizao e garantia dos direitos fundamentais29.

    Isto se aplica de imediato aos direitos fundamentais que tm por objeto agarantia dos postulados da organizao e do procedimento, como o caso daliberdade de associao (CF, art. 5o, XVII), das garantias processuais-constitucionais da defesa e do contraditrio (art. 5o, LV), do direito ao juiznatural (art. 5o, XXXVII), das garantias processuais-constitucionais de carterpenal (inadmissibilidade da prova ilcita, o direito do acusado ao silncio e

    no-auto-incriminao, etc.). Tambm poder-se-ia cogitar aqui da incluso, nogrupo dos direitos de participao na organizao e procedimento, do direitodos partidos polticos a recursos do fundo partidrio e do acesso propagandapoltica gratuita nos meios de comunicao (art. 17 3oda CF), na medida emque se trata de prestaes dirigidas tanto manuteno da estruturaorganizacional dos partidos (e at mesmo de sua prpria existncia comoinstituies de importncia vital para a democracia), quanto garantia de umaigualdade de oportunidades no que concerne participao no processodemocrtico.30

    Ingo Sarlet ressalta que a problemtica dos direitos de participao naorganizao e procedimento centra-se na possibilidade de exigir-se do Estado(de modo especial do legislador) a emisso de atos legislativos eadministrativos destinados a criar rgos e estabelecer procedimentos, oumesmo de medidas que objetivem garantir aos indivduos a participao efetivana organizao e procedimento. Na verdade, trata-se de saber se existe umaobrigao do Estado nestesentido e se a esta corresponde um direito subjetivofundamental do indivduo31.

    Assim, quando se impe que determinadas medidas estatais que afetemdireitos fundamentais devam observar um determinado procedimento, sobpena de nulidade, no se est a fazer outra coisa seno proteger o direitomediante o estabelecimento de determinadas normas de procedimento.

    o que ocorre, v.g., quando se impe que determinados atosprocessuais somente podero ser praticados com a presena do advogado doacusado. Ou, tal como faz a Constituio brasileira, quando se estabelece que

    28Cf., sobre o assunto, HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., p. 144; ALEXY, Theoriede Grundrechte, p. 430; CANOTILHO, Direito Constitucional, Coimbra, 1993, p. 546 s.

    29. HESSE Konrad, Bedeutung der Grundrechte, in : Handbuch des Verfassungsrechts, in :BENDA, Ernest/ MAIHOFER, Werner/ VOGEL, Hans-Jochen, Handbuch des Verfassungsrechts, Berlim,1995, p. 127 (146-147).

    30. SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais, p. 19631. SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais, p. 196-197.

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    as negociaes coletivas somente podero ser celebradas com a participaodas organizaes sindicais (Constituio Federal, art. 8o, VI)32.

    Canotilho anota que o direito fundamental material tem irradiao sobre

    o procedimento, devendo este ser conformado de forma a assegurar aefetividade tima do direito protegido33.

    4.3. Os direitos de igualdade: a hiptese de excluso de benefcioincompatvel com o princpio da igualdade

    O princpio da isonomia pode ser visto tanto como exigncia detratamento igualitrio (Gleichbehandlungsgebot), quanto como proibio de

    tratamento discriminatrio (Ungleichbehandlungsverbot)34

    . A leso ao princpioda isonomia oferece problemas sobretudo quando se tem a chamadaexcluso de benefcio incompatvel com o princpio da igualdade (willkrlicherBegnstigungsausschluss).

    Tem-se uma excluso de benefcio incompatvel com o princpio daigualdade se a norma afronta ao princpio da isonomia, concedendo vantagensou benefcios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros quese encontram em condies idnticas.

    Essa excluso pode verificar-se de forma concludente ou explcita. Ela

    concludente se a lei concede benefcios apenas a determinado grupo35

    ; aexcluso de benefcios explcita 36se a lei geral que outorgadeterminadosbenefcios a certo grupo exclui sua aplicao a outros segmentos37.

    O postulado da igualdade pressupe a existncia de,pelo menos, duassituaes que se encontram numa relao de comparao38. Essa relatividadedo postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a uma inconstitucionalidaderelativa (relative Verfassungswidrigkeit) no no sentido de umainconstitucionalidade menos grave. que inconstitucional no se afigura a

    32. Cf. ADIMC 1361, DJ de 12.4.96.33. CANOTILHO, J.J. Gomes, Tpicos sobre um curso de mestrado sobre efeitos fundamentais.

    Procedimento Processo e Organizao, Coimbra, 1990, tpico 2.2.34. CANOTILHO, Constituio Dirigente e Vinculao do Legislador, Coimbra, 1982, p. 381-382.35. Cf. BVerfGE 18, 288 (301); 22, 349 (360).36. Cf. BVerfGE 25, 101.37. Cf., a propsito, MAURER, Zur Verfassungswidrigerklrung von Gesetzen, in : Festschrift fr

    Werner Weber, Berlim, 1974, p. 345 (349); IPSEN, Jrn, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von

    Norm und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, p. 109; JLICHER, Friedrich, Die Verfassungsbeschwerdegegen Urteile bei gesetzgeberischem Unterlassen, Berlim, 1972, p. 51 s.38. MAURER, Hartmut, Zur Verfassungswidrigerklrung, cit., p. 345 (354).

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    norma A ou B, mas a disciplina diferenciada das situaes (dieUnterschiedlichkeit der Regelung)39.

    Essa peculiaridade do princpio da isonomia causa embaraos, uma vez

    que a tcnica convencional de superao da ofensa (cassao; declarao denulidade) no parece adequada na hiptese, podendo inclusive suprimir ofundamento em que assenta a pretenso de eventual lesado40.

    5. Direitos fundamentais e dever de proteo

    A concepo que identifica os direitos fundamentais como princpiosobjetivos legitima a idia de que o Estado se obriga no apenas a observar os

    direitos de qualquer indivduo em face das investidas do Poder Pblico (direitofundamental enquanto direito de proteo ou de defesa Abwehrrecht), mastambm a garantir os direitos fundamentais contra agresso propiciada porterceiros (Schutzpflicht des Staats)41.

    A forma como esse dever ser satisfeito constitui tarefa dos rgosestatais, que dispem de ampla liberdade de conformao42.

    A jurisprudncia da Corte Constitucional alem acabou por consolidarentendimento no sentido de que do significado objetivo dos direitosfundamentais resulta o dever do Estado no apenas de se abster de intervir no

    mbito de proteo desses direitos, mas tambm de proteger esses direitoscontra a agresso ensejada por atos de terceiros43.

    Essa interpretao do Bundesverfassungsgerichtempresta, sem dvida,uma nova dimenso aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estadoevolua da posio de adversrio (Gegner) para uma funo de guardiodesses direitos (Grundrechtsfreund oder Grundrechtsgarant)44.

    fcil ver que a idia de um dever genrico de proteo fundado nosdireitos fundamentais relativiza sobremaneira a separao entre a ordemconstitucional e a ordem legal, permitindo que se reconhea uma irradiao

    dos efeitos desses direitos (Austrahlungswirkung) sobre toda a ordemjurdica45.

    39. MAURER, Zur Verfassungswidrigerklrung, cit., p. 345 (354).40. MAURER, Zur Verfassungswidrigerklrung, cit., p. 347 (354).41. HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., p. 155-156.42. HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., p. 156.43. Cf., a propsito, BVerfGE 39, 1 s.; 46, 160 (164); 49, 89 (140 s.); 53, 50 (57 s.); 56, 54 (78);

    66; 39 (61); 77 170 (229 s.); 77, 381 (402 s); ver, tambm, DIETLEIN, Johannes, Die Lehre von dengrundrechtlichen Schutzpflichten, Berlim, 1991, p. 18.

    44. Cf., a propsito, DIETLEIN, Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten, cit., p. 17 s.45. von MNCH, Ingo, Grundgesetz-Kommentar, Kommentar zu Vorbemerkung Art 1-19, No22.

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    Assim, ainda que se no reconhea, em todos os casos, uma pretenso

    subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocamente, a identificao de umdever deste de tomar todas as providncias necessrias para a realizao ouconcretizao dos direitos fundamentais46.

    Os direitos fundamentais no contm apenas uma proibio deinterveno (Eingriffsverbote), expressando tambm um postulado de proteo(Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expresso de Canaris, noapenas uma proibio do excesso (bermassverbot), mas tambm umaproibio de omisso (Untermassverbot)47.

    Nos termos da doutrina e com base na jurisprudncia da CorteConstitucional alem, pode-se estabelecer a seguinte classificao do dever deproteo48:

    a) Dever de proibio (Verbotspflicht), consistente no dever de se proibiruma determinada conduta;

    (b) Dever de segurana (Sicherheitspflicht), que impe ao Estado odever de proteger o indivduo contra ataques de terceiros mediante adoo demedidas diversas;

    (c) Dever de evitar riscos (Risikopflicht), que autoriza o Estado a atuarcom o objetivo de evitar riscos para o cidado em geral, mediante a adoo demedidas de proteo ou de preveno, especialmente em relao aodesenvolvimento tcnico ou tecnolgico.

    Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo observnciado dever de proteo ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental proteo. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito,enfatizando que a no observncia de um dever proteo corresponde a umaleso do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental49.

    46. von MNCH, Ingo, Grundgesetz-Kommentar, Kommentar zu Vorbemerkung Art 1-19, No22.47. CANARIS, Claus-Wilhelm, Grundrechtswirkungen und Verhltnismssigkeitsprinzip in der

    richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS 1989, p. 161 (163).48. RICHTER, Ingo/ SCHUPPERT, Gunnar Folke, Casebook Verfassungsrecht, 3 edio,

    Munique, 1996,p. 35-36.49. Cf. BVerfGE 77, 170 (214); ver tambm RICHTER/SCHUPPERT, CasebookVerfassungsrecht, p. 36-37.

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    Referncia Bibliogrfica deste Trabalho:

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    MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus Mltiplos Significados na OrdemConstitucional. Revista Eletrnica de Direito do Estado (REDE), Salvador, InstitutoBrasileiro de Direito Pblico, n. 23, julho/agosto/setembro de 2010. Disponvel na Internet:.Acesso em: xx de xxxxxx de xxxx

    Observaes:

    1) Substituir x na referncia bibliogrfica por dados da data de efetivo acesso ao texto.

    2) A REDE - Revista Eletrnica de Direito do Estado - possui registro de NmeroInternacional Normalizado para Publicaes Seriadas (International Standard SerialNumber), indicador necessrio para referncia dos artigos em algumas bases de dadosacadmicas: ISSN 1981-187X

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    MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus Mltiplos Significados na OrdemConstitucional. Revista Brasileira de Direito Pblico - RBDP, Belo Horizonte, ano 1, n. 01, p.

    91-134, abr./jun. 2003

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