Direitos Humanos

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    ISBN 978-85-02-20849-0

    Piovesan, FlviaDireitos humanos e o direito constitucionalinternacional / Flvia Piovesan. 14. ed., rev. e atual. So Paulo : Saraiva, 2013.Bibliografia.1. Direito constitucional 2. Direitos humanos(Direito internacional) I. Ttulo.CDU-347.121.1:341:342

    ndice para catlogo sistemtico:1. Direitos humanos e direito constitucional

    internacional 347.121.1:341:342

    Diretor editorial Luiz Roberto CuriaGerente de produo editorial Lgia Alves

    Editor Jnatas Junqueira de MelloAssistente editorial Sirlene Miranda de SalesProdutora editorial Clarissa Boraschi Maria

    Preparao de originais Ana Cristina Garcia / Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan / Liana Ganiko BritoArte e diagramao Cristina Aparecida Agudo de Freitas / Mnica LandiReviso de provas Rita de Cssia Queiroz Gorgati / Renato Medeiros

    Servios editoriais Camila Artioli Loureiro / Maria Ceclia Coutinho MartinsImagem de capa Stock Photos / The red vineyard Van Gogh (leo sobre tela, 1888)

    Produo grfica Marli RampimProduo eletrnica Ro Comunicao

    Data de fechamento da edio: 9-4-2013

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    Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prvia autorizao daEditora Saraiva.

    A violao dos direitos autorais crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Cdigo Penal.

  • Flvia Piovesan professora doutora da Faculdade de Direito da PUCSP nas disciplinas de Direito Constitucional e deDireitos Humanos. professora de Direitos Humanos do Curso de Ps-Graduao da PUCSP e da PUCPR. Professorado Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha,Espanha). Mestre e doutora em Direito Constitucional pela PUCSP, tendo desenvolvido seu doutoramento na Harvard LawSchool, na qualidade de visiting fellow do Human Rights Program, em 1995, tendo a este programa retornado em 2000 e2002. Foi visiting fellow do Centre for Brazilian Studies, na University of Oxford, em 2005. Foi visiting fellow do Max-Planck-Institute for Comparative Public Law and International Law, em Heidelberg, em 2007 e 2008. Desde 2009 HumboldtFoundation Georg Forster Research Fellow no Max-Planck-Institute for Comparative Public Law and International Law. procuradora do Estado de So Paulo desde 1991, tendo sido a primeira colocada no concurso de ingresso. Foicoordenadora do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado de 1996 a 2001.

    Membro do Comit Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), do Conselho deDefesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), da Comisso Justia e Paz, da Associao dos ConstitucionalistasDemocrticos, da SUR Human Rights University Network e do governing board da International Association of LawSchools (IALS). Membro da UN High Level Task Force on the implementation of the right to development e do OAS WorkingGroup para o monitoramento do Protocolo de San Salvador em matria de direitos econmicos, sociais e culturais.

    Foi observadora das Naes Unidas na 42 sesso da Comisso do Status da Mulher. Recebeu meno honrosa doPrmio Franz de Castro Holzwarth, conferido pela Comisso de Direitos Humanos da OAB/SP em 1997. Assessoracientfica da FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo) e consultora ad hoc do CNPq. Temprestado consultoria em direitos humanos para a Fundao Ford, Fundao Heinrich Boll; European Human RightsFoundation; United Nations High Commissioner for Human Rights; e Comisso Interamericana de Direitos Humanos.

    autora dos livros Temas de direitos humanos ; Direitos humanos e justia internacional; e Proteo judicial contraomisses legislativas: ao direta de inconstitucionalidade por omisso e mandado de injuno. Coautora do livro Afigura/personagem mulher em processos de famlia. Coorganizadora dos livros Direito, cidadania e justia; O sistemainteramericano de proteo dos direitos humanos e o direito brasileiro; Nos limites da vida; Ordem jurdica e igualdadetnico-racial; Direito humano alimentao adequada; Direitos humanos: fundamento, proteo e implementao; Direitoshumanos, igualdade e diferena; Direitos humanos: proteo nacional, regional e global; Direitos humanos e direito dotrabalho; Direitos humanos, democracia e integrao jurdica na Amrica do Sul; Direito ao desenvolvimento; Direitoshumanos, democracia e integrao jurdica: avanando no dilogo constitucional e regional; Doutrinas essenciais dedireitos humanos; e Estudos avanados de direitos humanos: democracia e integrao jurdica emergncia de um novodireito pblico. Coordenadora dos livros Direitos humanos, globalizao econmica e integrao regional: desafios dodireito constitucional internacional; Direitos humanos volume 1; e Cdigo de direito internacional dos direitos humanosanotado. Tem diversos artigos publicados em jornais, revistas e livros jurdicos.

    Tem participado de conferncias, seminrios e cursos sobre temas de direitos humanos no Brasil e no exterior,particularmente na Alemanha, ustria, Argentina, Bolvia, Uruguai, Peru, Venezuela, Costa Rica, Mxico, Estados Unidos,Canad, ndia, Turquia, Zimbbue, frica do Sul, Portugal, Espanha, Frana, Blgica, Holanda, Sua e Inglaterra.

  • It is true that we cannot be visionaries until we become realists. It is also true that to become realistswe must make ourselves into visionaries.

    (Roberto Mangabeira Unger, What should legal analysis become?, Cambridge, Harvard LawSchool, 1995, p. 356-357)

  • AGRADECIMENTO

    A convite da Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, no ano de1994, aceitei o fascinante desafio de ministrar um curso de Direitos Humanos para o 4 ano daFaculdade de Direito. Foi uma experincia indita, particularmente porque a disciplina de DireitosHumanos acabara de ser introduzida no currculo do Direito naquele mesmo ano. Esta aventura, peloseu encantamento, acabou por desviar os rumos do meu doutorado para aquela direo eis aqui oresultado.

    Ainda que a responsabilidade pela tese e pelas ideias aqui defendidas seja absolutamente pessoal, certo dizer que este livro, em sua essncia, revela a contribuio de instituies e de muitaspessoas para a sua realizao. A todos, meu sincero agradecimento.

    A Procuradoria Geral do Estado de So Paulo, o CNPq, o Human Rights Program da HarvardLaw School e a Faculdade de Direito da PUCSP ofereceram decisivo apoio, que tornou possvel aconcretizao deste trabalho.

    A professora Silvia Pimentel, minha orientadora, prestou uma contribuio efetiva consecuodeste estudo, atravs de observaes acuradas e crticas estimulantes. Sua forte crena naimportncia do valor dos direitos humanos foi fonte de um incentivo absoluto no desenvolvimento ereviso deste trabalho. Adiciono tambm a felicidade pela nossa preciosa amizade de mais de dezanos, que tanto veio e vem influenciar a minha formao humanista.

    Os professores Elizabeth Nazar Carrazza e Celso Antnio Pacheco Fiorillo, ento diretora e vice-diretor da Faculdade de Direito da PUCSP, tambm exerceram um papel fundamental na realizaodesta tese, por insistirem na necessidade de implantar o ensino de Direitos Humanos no mbito daFaculdade de Direito da PUCSP, sendo justo lembrar que desde 1990 os professores Silvia Pimentele Celso Campilongo j organizavam o primeiro curso de extenso universitria sobre o tema.

    O professor Antnio Augusto Canado Trindade, Juiz da Corte Interamericana de DireitosHumanos e diretor executivo do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, foi excepcional nocuidado e na ateno de suas importantes observaes, na voz e na experincia de quem pode serconsiderado o pai da introduo do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Brasil.

    Aos professores Lcia Valle Figueiredo, Maria Garcia, Dalmo de Abreu Dallari, Fernanda DiasMenezes de Almeida, agradeo pelo privilgio que a mim representa terem examinado esta tese,aprimorando-a a partir de crticas construtivas e relevantes consideraes, na condio de notveisreferenciais, inclusive histricos, na luta pela implementao dos direitos humanos e pelaconsolidao de um constitucionalismo democrtico em nosso pas.

    O professor Henry Steiner, diretor do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School,contribuiu definitivamente realizao deste trabalho nosso especial convvio ao longo do ano de1995 deixa as marcas e a lembrana de seu entusiasmo acadmico, de seu vigor intelectual e de seusricos questionamentos. Makau wa Mutua, diretor associado do Programa, apresentou valiosassugestes verso inicial deste estudo, a partir de crticas instigantes, prprias de seu pensamentoto vivo e provocativo. A Gerry Azzata, Susan Roman e Wendy Brown sou grata por todo o apoio eincentivo ao longo do desenvolvimento desta tese.

    A experincia na Harvard Law School, durante o ano de 1995, ainda permitiu o contacto com o

  • professor Roberto Mangabeira Unger e com as suas ideias fascinantes, criativas e idealizadoras detantas alternativas transformadoras, o que enriqueceu a anlise de muitas questes que permeiam estetrabalho.

    Ronaldo Porto Macedo, Dora Lcia de Lima Bertlio, Ivo Gomes, Ricardo Tadeu Cabral deSoares e Gabriela Whitaker-Cillo foram amigos sempre presentes e souberam encorajar-me diantedos sentimentos antagnicos e variados que este trabalho pde proporcionar das dificuldades eangstias aos momentos de euforia. Ao Ronaldo e Dora sou especialmente grata pelo nosso grupode estudos e pelas longas tardes de reflexo e discusso de nossos projetos, que auxiliaramimensamente o amadurecimento desta tese.

    Mais uma vez e a distncia, Luciana Piovesan e Priscila Kei Sato prestaram, com mximacompetncia, auxlio no levantamento de bibliografia nacional sobre a matria.

    amiga e professora Leda Pereira e Mota agradeo sinceramente o importante estmulo e astantas sugestes. Ao professor Luiz Alberto David Araujo sou grata pelos comentrios queacompanharam as diversas verses deste estudo, acrescentando-lhe maior rigor cientfico. AFrancisca Pimenta Evrard agradeo o primoroso auxlio na cuidadosa reviso deste livro. A VeraNusdeo Lopes e Maurcio Ribeiro Lopes sou grata pela especial amizade de sempre.

    Uma palavra ainda aos meus pais, Joo Batista Piovesan e Elizabeth Valejo Piovesan, pelocarinho da enorme saudade que, durante meu exlio acadmico, estimulou a tarefa de desenvolveresta tese e termin-la. A Hannelore e Alfredo Fuchs, sou grata pelo afeto de tantos gestos e peloencantamento de nosso convvio. Finalmente, ao querido Marcos Fuchs, pelo nosso amor, que doabeleza e sentido arte de existir e de acreditar que tudo isto vale a pena.

    Cambridge, 1995.A Autora

  • SUMRIO

    AgradecimentoNota 14 edioNota 13 edioNota 12 edioNota 11 edioNota 10 edioNota 9 edioNota 8 edioNota 7 edioNota 5 edioNota 4 edioPrefcio, Henry SteinerApresentao, Antnio Augusto Canado Trindade

    Primeira ParteA CONSTITUIO BRASILEIRA DE 1988 E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE

    PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS

    Captulo I INTRODUOCaptulo II UM ESCLARECIMENTO NECESSRIO DELIMITANDO E SITUANDO OOBJETO DE ESTUDO

    a) Delimitando o objeto de estudo: a Constituio brasileira e o Direito Internacional dosDireitos Humanos

    b) Situando o objeto de estudo: os delineamentos do Direito Constitucional Internacionalc) Justificativas para a opo metodolgicaCaptulo III A CONSTITUIO BRASILEIRA DE 1988 E O PROCESSO DEDEMOCRATIZAO NO BRASIL A INSTITUCIONALIZAO DOS DIREITOS EGARANTIAS FUNDAMENTAIS

    a) O processo de democratizao no Brasil e a Constituio brasileira de 1988b) A Constituio brasileira de 1988 e a institucionalizao dos direitos e garantias fundamentaisc) Os princpios constitucionais a reger o Brasil nas relaes internacionaisCaptulo IV A CONSTITUIO BRASILEIRA DE 1988 E OS TRATADOS INTERNACIONAISDE PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS

  • a) Breves consideraes sobre os tratados internacionaisb) O processo de formao dos tratados internacionaisc) A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanosd) A incorporao dos tratados internacionais de direitos humanose) O impacto jurdico dos tratados internacionais de direitos humanos no Direito interno

    brasileiro

    Segunda ParteO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS

    Captulo V PRECEDENTES HISTRICOS DO PROCESSO DE INTERNACIONALIZAO EUNIVERSALIZAO DOS DIREITOS HUMANOS

    a) Primeiros precedentes do processo de internacionalizao dos direitos humanos o DireitoHumanitrio, a Liga das Naes e a Organizao Internacional do Trabalho

    b) A internacionalizao dos direitos humanos o ps-guerrac) A Carta das Naes Unidas de 1945d) A Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948e) Universalismo e relativismo culturalCaptulo VI A ESTRUTURA NORMATIVA DO SISTEMA GLOBAL DE PROTEOINTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

    a) Introduob) Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticosc) Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticosd) Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturaise) Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturaisf) Demais convenes internacionais de direitos humanos breves consideraes sobre o

    Sistema Especial de Proteog) Conveno Internacional sobre a Eliminao de todas as forma de Discriminao Racialh) Conveno sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao contra a Mulheri) Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantesj) Conveno sobre os Direitos da Crianak) Conveno Internacional sobre a Proteo dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e

    dos Membros de suas Famliasl) Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficinciam) O Tribunal Penal Internacional, a Conveno para a Preveno e Represso do Crime de

    Genocdio e a Conveno Internacional para a Proteo de todas as Pessoas contra oDesaparecimento Forado

    n) Mecanismos globais no convencionais de proteo dos direitos humanosCaptulo VII A ESTRUTURA NORMATIVA DO SISTEMA REGIONAL DE PROTEO DOSDIREITOS HUMANOS O SISTEMA INTERAMERICANO

  • a) Introduob) Breves consideraes sobre a Conveno Americana de Direitos Humanosc) A Comisso Interamericana de Direitos Humanosd) A Corte Interamericana de Direitos Humanos

    Terceira ParteO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS E A

    REDEFINIO DA CIDADANIA NO BRASIL

    Captulo VIII O ESTADO BRASILEIRO E O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEODOS DIREITOS HUMANOS

    a) A agenda internacional do Brasil a partir da democratizao e a afirmao dos direitoshumanos como tema global

    b) O Brasil e os tratados internacionais de direitos humanosc) Pela plena vigncia dos tratados internacionais de direitos humanos: a reviso de reservas e

    declaraes restritivas, a reavaliao da posio do Brasil quanto a clusulas e procedimentosfacultativos e outras medidas

    Captulo IX A ADVOCACIA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS:CASOS CONTRA O ESTADO BRASILEIRO PERANTE O SISTEMA INTERAMERICANO DEDIREITOS HUMANOS

    a) Introduob) Federalizao das violaes de direitos humanosc) Casos contra o Estado brasileiro perante a Comisso Interamericana de Direitos Humanosd) Anlise dos casos limites e possibilidades da advocacia do Direito Internacional dos

    Direitos Humanos no Brasile) Casos contra o Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos HumanosCaptulo X ENCERRAMENTO: O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS EA REDEFINIO DA CIDADANIA NO BRASIL

    Captulo XI SNTESE

    APNDICEInstrumentos internacionais de proteo dos direitos humanosCarta das Naes Unidas PreceitosDeclarao Universal dos Direitos HumanosPacto Internacional dos Direitos Civis e PolticosProtocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e PolticosSegundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos para a Abolioda Pena de Morte

    Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

  • Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e CulturaisConveno para a Preveno e Represso do Crime de GenocdioConveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou DegradantesProtocolo Facultativo Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis,Desumanos ou Degradantes

    Conveno sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao contra a MulherProtocolo Facultativo Conveno sobre a Eliminao de todas as Formas de Discriminao contraa Mulher

    Conveno Internacional sobre a Eliminao de todas as Formas de Discriminao RacialConveno sobre os Direitos da CrianaConveno sobre os Direitos das Pessoas com DeficinciaProtocolo Facultativo Conveno sobre os Direitos das Pessoas com DeficinciaConveno Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jos da Costa Rica)Protocolo Adicional Conveno Americana sobre Direitos Humanos em Matria de DireitosEconmicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador)

    Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a TorturaConveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher (Convenode Belm do Par)

    Bibliografia

  • NOTA 14 EDIO

    State sovereignty is becoming diluted. Public power is being rearticulated inpluralistic and polycentric forms. () This pluralism requires an order to fill in the gaps,reduce fragmentation and induce cooperation between different systems; to establishhierarchies of values and principles; and to introduce rules of the recognition, validity andeffectiveness of norms (Antonio Cassesse, When legal orders collidle: the role of theCourts, Global Law Press editorial Derecho Global, Sevilha, 2010, p. 15).

    Ao enfocar os direitos humanos sob a perspectiva do Direito Constitucional Internacional, a

    ambio inicial deste trabalho era contribuir para o fortalecimento do dilogo entre a ordemconstitucional e a ordem internacional, tendo nos direitos humanos seu vrtice emancipatrio. Em1995 quando esta tese foi elaborada , constatava-se o estranhamento recproco entre estas duasordens, clamando-se, desde ento, pela premncia em equacionar a distncia entre elas mediante aintegrao e o reforo das duas sistemticas em prol do modelo que mais eficazmente possa protegeros direitos da pessoa humana, com a prevalncia do valor da dignidade humana1.

    Em 2013, ao tecer esta nota 14 edio da obra, felizmente, a paisagem diversa, ao vislumbrara emergncia de um novo paradigma jurdico.

    Com efeito, por mais de um sculo, a cultura jurdica latino-americana tem adotado um paradigmajurdico fundado em 3 (trs) caractersticas essenciais:

    a) pirmide com a Constituio no pice da ordem jurdica, tendo como maior referencial tericoHans Kelsen, na afirmao de um sistema jurdico endgeno e autorreferencial (observa-se que, emgeral, Hans Kelsen tem sido equivocadamente interpretado, j que sua doutrina defende o monismocom a primazia do Direito Internacional o que tem sido tradicionalmente desconsiderado naAmrica Latina);

    b) o hermetismo de um Direito purificado, com nfase no ngulo interno da ordem jurdica e nadimenso estritamente normativa (mediante um dogmatismo jurdico a afastar elementos impurosdo Direito); e

    c) o State approach (State centered perspective), sob um prisma que abarca como conceitosestruturais e fundantes a soberania do Estado no mbito externo e a segurana nacional no mbitointerno, tendo como fonte inspiradora a lente ex parte principe, radicada no Estado e nos deveresdos sditos, na expresso de Norberto Bobbio2.

    Testemunha-se a crise deste paradigma tradicional e a emergncia de um novo paradigma a guiar acultura jurdica latino-americana, que, por sua vez, adota como 3 (trs) caractersticas essenciais:

    a) o trapzio com a Constituio e os tratados internacionais de direitos humanos no pice daordem jurdica (com repdio a um sistema jurdico endgeno e autorreferencial, destacando-se queas Constituies latino-americanas estabelecem clusulas constitucionais abertas, que permitem aintegrao entre a ordem constitucional e a ordem internacional, especialmente no campo dos direitoshumanos, ampliando e expandindo o bloco de constitucionalidade);

    b) a crescente abertura do Direito agora impuro , marcado pelo dilogo do ngulo internocom o ngulo externo (h a permeabilidade do Direito mediante o dilogo entre jurisdies;

  • emprstimos constitucionais; e a interdisciplinariedade, a fomentar o dilogo do Direito com outrossaberes e diversos atores sociais, resignificando, assim, a experincia jurdica)3; e

    c) o human rights approach (human centered approach ), sob um prisma que abarca comoconceitos estruturais e fundantes a soberania popular e a segurana cidad no mbito interno, tendocomo fonte inspiradora a lente ex parte populi, radicada na cidadania e nos direitos dos cidados,na expresso de Norberto Bobbio4.

    Para Luigi Ferrajoli, a dignidade humana referncia estrutural para o constitucionalismomundial, a emprestar-lhe fundamento de validade, seja qual for o ordenamento, no apenas dentro,mas tambm fora e contra todos os Estados5.

    No plano internacional, vislumbra-se a humanizao do Direito Internacional e ainternacionalizao dos direitos humanos6. Para Ruti Teitel, The law of humanity reshapes thediscourse in international relations7. Deste modo, a interpretao jurdica v-se pautada pela foraexpansiva do princpio da dignidade humana e dos direitos humanos, conferindo prevalncia aohuman rights approach (human centered approach).

    Esta transio paradigmtica, marcada pela crise do paradigma tradicional e pela emergncia deum novo paradigma jurdico, surge com o o contexto a fomentar o dilogo entre a ordemconstitucional e a ordem internacional na convergncia da proteo aos direitos humanos.Fundamental avanar na interao entre as esferas global, regional e local, potencializando oimpacto entre elas, mediante o fortalecimento do controle da convencionalidade e do dilogo entrejurisdies, luz da racionalidade emancipatria dos direitos humanos.

    Sob esta inspirao, este livro foi cuidadosamente revisado e atualizado, no ritual de detidareflexo a respeito dos avanos do processo de internacionalizao dos direitos humanos e de seuextraordinrio impacto no mbito interno brasileiro.

    No sistema global, comemora-se a adoo do Protocolo Facultativo Conveno sobre osDireitos da Criana relativo ao procedimento de comunicaes, em 19 de dezembro de 2011. Com oobjetivo de instituir child-sensitive procedures, e sempre endossando o princpio do interessesuperior da criana, o Protocolo habilita o Comit de Direitos da Criana a apreciar petiesindividuais (inclusive no caso de violao a direitos econmicos, sociais e culturais); a adotarinterim measures quando houver urgncia, em situaes excepcionais, e para evitar danosirreparveis s vtimas de violao; a apreciar comunicaes interestatais; e a realizar investigaesin loco, nas hipteses de graves ou sistemticas violaes aos direitos humanos das crianas. Atdezembro de 2012, todavia, remanescem os desafios de ampliar o nmero de ratificaes doProtocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais(permitindo sua entrada em vigor, nos termos do art. 18 do Protocolo); da Conveno sobre aProteo dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famlias (queconta somente com 46 Estados-partes) e da Conveno Internacional para a Proteo de Todas asPessoas contra o Desaparecimento Forado (que conta apenas com 37 Estados-partes).

    Foram devidamente atualizados os casos pendentes de apreciao no Tribunal Penal Internacional,com especial destaque sua primeira sentena condenatria, proferida em 14 de maro de 2012, emface de Thomas Lubanga Dyilo, pela prtica de crime de guerra consistente em alistar, recrutar eutilizar crianas menores de 15 anos em conflitos armados em Ituri, na Repblica Democrtica doCongo, de setembro de 2002 a 13 de agosto de 2003. Tambm foram atualizados os casos submetidos

  • aos Comits da ONU (os UN treaty bodies), com realce jurisprudncia por eles fomentada. Note-se que, em 27 de setembro de 2011, o Comit sobre a Eliminao da Discriminao contra a Mulher(Comit CEDAW) proferiu sua primeira condenao em face do Estado Brasileiro, no caso Alyne daSilva Pimentel Teixeira, envolvendo a condenao do Brasil por evitvel morte materna, emviolao aos arts. 12 (acesso sude), 2, c (acesso justia), e 2, e (dever do Estado deregulamentar as atividades do servio privado de sade) da aludida Conveno.

    No sistema interamericano, peculiar nfase recebeu o leading case Atala Riffo y nias contra oChile, decidido pela Corte Interamericana em 24 de fevereiro de 2012. Trata-se do primeiro casojulgado pela Corte concernente violao aos direitos da diversidade sexual. Ineditamente, foianalisada a responsabilidade internacional daquele Estado em face do tratamento discriminatrio einterferncia indevida na vida privada e familiar da vtima Karen Atala devido sua orientaosexual. Tambm mereceu destaque o impacto da jurisprudncia do sistema interamericano naexperincia brasileira, com meno aprovao, em 18 de novembro de 2011, da Lei n. 12.528, queinstitui a Comisso Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as gravesviolaes de direitos humanos praticadas durante o regime militar, a fim de efetivar o direito memria e verdade e promover a reconciliao nacional. Em 18 de novembro de 2011, foitambm adotada a Lei n. 12.527, que garante o acesso informao, sob o lema de que a publicidade a regra, sendo o sigilo a exceo. Direito verdade e direito informao simbolizam um avanoextraordinrio ao fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos noBrasil. Estes avanos da justia de transio so reflexo da fora catalisadora da jurisprudncia daCorte Interamericana na experincia brasileira em particular da sentena relativa ao caso GomesLund e outros versus o Brasil, proferida pela Corte Interamericana em 24 de novembro de 2010.

    Mais uma vez, os meus mais sinceros agradecimentos ao Max-Planck-Institute for ComparativePublic Law and International Law (Heidelberg), pela to especial acolhida acadmica, pelo vigorintelectual dos qualificados debates e pelo intenso estmulo de um dilogo jurdico transnacional. Aoprofessor Armin von Bogdandy, manifesto a minha maior gratido, pelo inestimvel apoio, por seupensamento vibrante, pela abertura a fascinantes ideias e pelos tantos projetos compartilhados. Aoprofessor Rudiger Wolfrum, expresso a minha profunda gratido, por sua generosidade, por suaextraordinria qualidade humana e grandeza intelectual. Aos to queridos amigos Mariela Morales(minha amiga de alma), Holger Hestermeyer, Matthias Hartwig e Christina Binder, o meu maiorcarinho por nossa preciosa amizade, pela cumplicidade e por compartilhar tantos e belos projetos.Ao professor e amigo Friedrich Muller, sou grata pelo encantamento de nosso dilogo e pelasinesquecveis conversas no Frisch Caf, na bela Heidelberg.

    Expresso, ainda, a minha maior gratido Humboldt Foundation, pela renovao da GeorgForster Research Fellowship, que viabilizou o desenvolvimento de pesquisas e estudos a contribuirextraordinariamente cuidadosa atualizao desta obra para a sua 14 edio.

    Por fim, minha mais fiel companheira, minha filha Sophia, por ser a vida que, em suaespontaneidade, transborda, pulsa, ilumina e inspira, permitindo a plenitude de muitas vidas em umas.

    Heidelberg, dezembro de 2012.

    A Autora

  • 1 Ver captulo II deste livro, especialmente o tpico b, dedicado aos delineamentos do Direito Constitucional Internacional.2 Norberto Bobbio, Era dos direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988.3 No caso brasileiro, por exemplo, crescente a realizao de audincias pblicas pelo Supremo Tribunal Federal, contando com os

    mais diversos atores sociais para enfrentar temas complexos e de elevado impacto social. a partir do dilogo a envolver saberesdiversos e atores diversos que se verifica a democratizao da interpretao constitucional a resignificar o Direito.

    4 Norberto Bobbio, Era dos direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988.5 Luigi Ferrajoli, Diritti fondamentali un dibattito teorico, a cura di Ermanno Vitale, Roma, Bari, Laterza, 2002, p. 338. Para

    Luigi Ferrajoli, os direitos humanos simbolizam a lei do mais fraco contra a lei do mais forte, na expresso de um contrapoder em facedos absolutismos, que advenham do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera domstica.

    6 Para Thomas Buergenthal, este cdigo, como j observei em outros escritos, tem humanizado o direito internacionalcontemporneo e internacionalizado os direitos humanos, ao reconhecer que os seres humanos tm direitos protegidos pelo direitointernacional e que a denegao desses direitos engaja a responsabilidade internacional dos Estados independentemente da nacionalidadedas vtimas de tais violaes (Thomas Buergenthal, Prlogo. In: Antonio Augusto Canado Trindade, A proteo internacional dosdireitos humanos: fundamentos jurdicos e instrumentos bsicos, So Paulo, Saraiva, 1991, p. XXXI).

    7 Ruti Teitel, Humanitys Law , Oxford, Oxford University Press, 2011, p. 225. Acrescenta a autora: We observe greaterinterdependence and interconnection of diverse actors across state boundaries (). There is interconnection without integration ().What we see is the emergence of transnational rights, implying the equal recognition of peoples across borders. Such solidarity existsacross state lines and in normative terms, constituting an emergent global human society.

  • NOTA 13 EDIO

    Revisar, atualizar e ampliar este livro para a sua 13 edio constitui um momento privilegiadopara um mergulho reflexivo nas inovaes, avanos, perspectivas e desafios para a proteo dosdireitos humanos no plano internacional e interno.

    Na esfera internacional, observou-se a tendncia de fortalecimento da jurisdio em matria dedireitos humanos, com a expanso do repertrio de casos submetidos ao Tribunal Penal Internacional(com destaque aos casos relativos Lbia1 e Costa do Marfim2), bem como a ampliao dajurisprudncia dos Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslvia e para a Ruanda, e da Corte Interamericanade Direitos Humanos.

    Decises emblemticas da Corte Interamericana mereceram especial nfase, como o caso GomesLund vs. Brasil3, em que a Corte condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes daguerrilha do Araguaia durante as operaes militares ocorridas na dcada de 70, ressaltando que alei de anistia de 1979 manifestamente incompatvel com a Conveno Americana, carece de efeitosjurdicos e no pode seguir representando um obstculo para a investigao de graves violaes dedireitos humanos, nem para a identificao e punio dos responsveis. No caso Acevedo Buendavs. Peru4, a Corte reconheceu que os direitos humanos devem ser interpretados sob a perspectiva desua integralidade e interdependncia, a conjugar direitos civis e polticos e direitos econmicos,sociais e culturais, inexistindo hierarquia entre eles e sendo todos direitos exigveis. Realou ser aaplicao progressiva dos direitos sociais suscetvel de controle e fiscalizao pelas instnciascompetentes, destacando o dever dos Estados de no regressividade em matria de direitos sociais.Outra situao emblemtica refere-se ao caso Xkmok Ksek vs. Paraguai5, em que a Corteconsagrou o direito da comunidade indgena identidade cultural, salientando o dever do Estado emassegurar especial proteo s comunidades indgenas, luz de suas particularidades prprias, suascaractersticas econmicas e sociais e suas especiais vulnerabilidades, considerando o direitoconsuetudinrio, os valores, os usos e os costumes dos povos indgenas.

    Constatou-se tambm avanos na crescente ampliao do universo de Estados-partes em tratadosde direitos humanos, com realce entrada em vigor da Conveno Internacional para a proteo detodas as pessoas contra o Desaparecimento Forado, ratificada pelo Estado brasileiro em 29 denovembro de 2010. No plano do monitoramento internacional, esta edio realizou atenta ecuidadosa reviso, atualizando o trabalho dos Comits da ONU (os treaty bodies) e realando ajurisprudncia por eles fomentada. Com relao ao Conselho de Direitos Humanos da ONU,destaque foi dado deciso de 25 de fevereiro de 2011, que, por unanimidade, recomendou asuspenso da Lbia, em face de graves e sistemticas violaes a direitos humanos.

    No tocante proteo dos direitos econmicos, sociais e culturais, esta 13 edio propiciou umaprofundamento de sua lgica e principiologia, com especial considerao ao componentedemocrtico como princpio estruturante dos direitos sociais, bem como ao princpio da progressivaaplicao destes direitos do qual decorre tanto a proibio do retrocesso quanto a proibio dacontnua inao estatal.

    Na esfera domstica, merece meno a consolidao da jurisprudncia do Supremo TribunalFederal no sentido de conferir aos tratados internacionais de direitos humanos um regime especial e

  • diferenciado, distinto dos tratados tradicionais, baseado na supralegalidade dos tratados de direitoshumanos6. Verificou-se, assim, o impacto e a fora catalizadora do leading case RecursoExtraordinrio n. 466.343/2008 a compor um novo norte interpretativo aos julgados proferidos peloSupremo Tribunal Federal. Percebeu-se, ainda, maior abertura desta Corte aos parmetros protetivosinternacionais, com a gradativa incorporao de instrumentos e jurisprudncia internacionais em suasdecises.

    Outro avano extraordinrio foi a indita deciso do Superior Tribunal de Justia, no IDC n. 2, em27 de outubro de 2010, determinando o imediato deslocamento das investigaes e do processamentoda ao penal do caso Manoel Mattos ao mbito federal, por considerar atendidos os pressupostosdo art. 109, 5, da Constituio Federal concernentes federalizao das violaes de direitoshumanos.

    Ao Max-Planck-Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg), umavez mais e sempre, expresso minha profunda gratido por prover um ambiente acadmico singular depaz e tranquilidade e, ao mesmo tempo, de intenso estmulo e vigor intelectual. Ao professorWolfrum, renovo meu reconhecimento por sua exemplar generosidade humana e grandeza intelectual.Ao professor Bogdandy, reafirmo o meu imenso respeito e admirao intelectual e a satisfao porprojetos acadmicos compartilhados. Aos meus queridos colegas e grandes amigos do Instituto,Mariela Morales Antoniazzi, Holger Hestermeyer, Matthias Hartwig e Christina Binder, externo aalegria por nossa preciosa amizade, pelo intercmbio acadmico, pelo encontro de vidas e por tantocompartilhar, o que doa um encantamento especial a esta experincia.

    Expresso minha maior gratido Humboldt Foundation, pela concesso da Georg ForsterResearch Fellowship, que viabilizou o desenvolvimento de pesquisas e estudos e contribuiuextraordinariamente cuidadosa atualizao desta obra.

    Por fim, minha mais fiel companheira, minha filha Sophia, por me abenoar com um mundohabitado por infinitos horizontes, vibrantes histrias e incrveis personagens, com a criatividade,inventividade e imaginao que tudo emancipa, na fora expansiva do realismo mgico que nutre demagia toda realidade e da ddiva do sentimento amoroso que tudo ilumina, dignifica e transforma.

    Heidelberg, junho de 2011.

    A Autora

    1. Em 26 de fevereiro de 2011, o Conselho de Segurana, por unanimidade, nos termos da Resoluo n.1.970, decidiu submeter asituao da Lbia Promotoria do Tribunal Penal Internacional. Em 3 de maro de 2011, a Promotoria anunciou sua deciso de instauraruma investigao com relao situao da Lbia.

    2. Em 20 de maio de 2011, a Promotoria do Tribunal Penal Internacional concluiu que h uma base slida para a abertura deprocesso de investigao relativamente ocorrncia de graves crimes internacionais na Costa do Marfim desde 28 de novembro de2010.

    3. Caso Gomes Lund e outros contra o Brasil, sentena proferida em 24 de novembro de 2010.4. Caso Acevedo Buenda y otros (Cesantes y Jubilados de la Contralora) contra o Peru, sentena prolatada em 1 de julho de

    2009.

  • 5. Caso da comunidade indgena Xkmok Ksek contra o Paraguai, sentena proferida em 24 de agosto de 2010.6. Reitera-se que esta autora defende a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de proteo dos direitos humanos

    ratificados pelo Brasil.

  • NOTA 12 EDIO

    O ritual de atualizao desta obra, agora para a sua 12 edio, significa um estimulante convitepara avaliar os dilemas, os desafios e as perspectivas do processo de internacionalizao dosdireitos humanos e seu impacto no mbito domstico. O vrtice maior da proteo global, regional elocal dos direitos humanos proteger as vtimas reais e potenciais de abusos de direitos, onde querque se encontrem, celebrando a luta por dignidade, direitos e justia.

    Neste balano, observam-se histricos avanos no mbito brasileiro. Finalmente, o Estadobrasileiro ratificou a Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados em 25 de setembro de 2009.Nota-se que esta Conveno foi assinada em 1969, encaminhada apreciao do CongressoNacional em 1992, tendo sido aprovada pelo Decreto Legislativo n. 496, em 17 de julho de 2009, eratificada em 25 de setembro de 2009. A esta ratificao soma-se a ratificao do ProtocoloFacultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos e do Segundo Protocolo Facultativopara a Abolio da Pena de Morte tambm em 25 de setembro de 2009. Estes avanos revelam ocrescente alinhamento do Brasil arquitetura de proteo internacional dos direitos humanos.

    No plano do monitoramento internacional, a 12 edio deste livro realizou atenta e cuidadosareviso, atualizando o trabalho dos Comits da ONU (os treaty bodies) e realando a jurisprudnciapor eles fomentada. No campo da justia internacional, destaque foi conferido atuao dosTribunais ad hoc para a ex-Iugoslvia e para Ruanda e do Tribunal Penal Internacional. Com relao atuao do Tribunal Penal Internacional, merece meno o caso referente ao Qunia, em que aCmara de Questes Preliminares em deciso de 31 de maro de 2010 autorizou investigao pelaPromotoria de supostos crimes contra a humanidade perpetrados de 1 de junho de 2005 a 26 denovembro de 2009, no Qunia.

    Quanto ao sistema interamericano, foram adicionados relevantes casos julgados recentemente pelaCorte Interamericana. No que se refere proteo dos direitos humanos das mulheres, emblemtico o caso Gonzlez e outras contra o Mxico (caso Campo Algodonero), em que a CorteInteramericana condenou o Mxico em virtude do desaparecimento e morte de mulheres em CiudadJuarez, sob o argumento de que a omisso estatal contribua para a cultura da violncia e dadiscriminao contra a mulher1.

    Tambm foram atualizados os casos envolvendo o Estado brasileiro no mbito do sistemainteramericano, com destaque a duas recentes condenaes sofridas pelo Brasil no caso Escher eoutros e no caso Garibaldi. No caso Escher, em sentena de 6 de julho de 2009, a CorteInteramericana condenou o Estado brasileiro em virtude de interpretao e monitoramento ilegal delinhas telefnicas envolvendo integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra(MST), por violao ao direito vida privada, honra e reputao, bem como ao direito liberdade de associao, determinando ao Estado o pagamento de indenizao por danos imateriaiss vtimas, a publicao da sentena em jornais de ampla circulao nacional e a investigao dosfatos que geraram a violao2. No caso Garibaldi, concernente execuo sumria ocorrida emnovembro de 1998, quando do despejo de famlias de trabalhadores que ocupavam uma fazenda emQuerncia no Norte, no Paran, a Corte, em sentena de 23 de setembro de 2009, condenou o Estadobrasileiro pela violao aos direitos proteo judicial e s garantias judiciais, determinando a

  • publicao da sentena em jornais de ampla circulao nacional, o pagamento de danos materiais eimateriais aos familiares da vtima, bem como condenando o Estado ao dever de conduzireficazmente e dentro de um prazo razovel o inqurito para identificar, processar e punir os autoresda morte da vtima3.

    A respeito do dilogo entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo TribunalFederal, cabe realce ao primoroso voto do Ministro Celso de Mello, que ao endossar a hierarquiaconstitucional dos tratados de direitos humanos no julgamento do HC 96.772, em 9 de junho de 2009,aplicou a hermenutica vocacionada aos direitos humanos inspirada na prevalncia da norma maisfavorvel vtima como critrio a reger a interpretao do Poder Judicirio. No dizer do MinistroCelso de Mello: Os magistrados e Tribunais, no exerccio de sua atividade interpretativa,especialmente no mbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar umprinccio hermenutico bsico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Conveno Americana deDireitos Humanos), consistente em atribuir primazia norma que se revele mais favorvel pessoahumana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteo jurdica. O Poder Judicirio, nesseprocesso hermenutico que prestigia o critrio da norma mais favorvel (que tanto pode ser aquelaprevista no tratado internacional como a que se acha positivada no prprio direito interno doEstado), dever extrair a mxima eficcia das declaraes internacionais e das proclamaesconstitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivduos e dos grupos sociais,notadamente os mais vulnerveis, a sistemas institucionalizados de proteo aos direitosfundamentais da pessoa humana (...).

    Como j salientado na nota 11 edio desta obra, a deciso proferida no RecursoExtraordinrio n. 466.343 pelo Supremo Tribunal Federal, em dezembro de 2008, constituiu umadeciso paradigmtica, tendo a fora catalisadora de impactar a jurisprudncia nacional, a fim deassegurar aos tratados de direitos humanos um regime privilegiado no sistema jurdico brasileiro,propiciando a incorporao de parmetros protetivos internacionais no mbito domstico e o adventodo controle da convencionalidade das leis. A deciso do HC 96.772/09 deve ser contextualizadaneste novo momento jurisprudencial, em que se intensifica o dilogo vertical de jurisdies, o queimpulsiona no Brasil o controle da convencionalidade das leis. Como enfatiza a CorteInteramericana de Direitos Humanos: Quando um Estado ratifica um tratado internacional como aConveno Americana, seus juzes, como parte do aparato do Estado, tambm esto submetidos aela, o que lhes obriga a zelar para que os efeitos dos dispositivos da Conveno no se vejammitigados pela aplicao de leis contrrias a seu objeto (...) o Poder Judicirio deve exercer umaespcie de controle da convencionalidade das leis entre as normas internas que aplicam nos casosconcretos e a Conveno Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judicirio deveter em conta no somente o tratado, mas tambm a interpretao que do mesmo tem feito a CorteInteramericana, intrprete ltima da Conveno Americana4.

    Por fim, expresso minha maior gratido Humboldt Foundation, pela concesso da Georg ForsterResearch Fellowship, que viabilizou o desenvolvimento de pesquisa e estudos a contribuirextraordinariamente cuidadosa atualizao desta obra para a sua 12 edio.

    Uma vez mais, externo a minha profunda gratido ao Max-Planck- -Institute for ComparativePublic Law and International Law (Heidelberg) pela especial e carinhosa acolhida, em um espaoprivilegiado de elevado rigor acadmico, consistente investigao jurdica e fascinantes projetos depesquisa. Ao professor Wolfrum, renovo meu reconhecimento por sua exemplar generosidade

  • humana e grandeza intelectual. Ao professor Von Bogdandy, reafirmo o meu imenso respeito eadmirao intelectual e a satisfao por projetos acadmicos compartilhados. Mariela Morales,minha amiga de alma, a minha maior alegria por nossa preciosa amizade e pelas tantas parceriasacadmicas. Ao Holger Hestermeyer e ao Matthias Hartwig, minha gratido por nossa verdadeiraamizade, pelas experincias intercambiais e por tanta cumplicidade.

    minha pequena e encantadora Sophia dedico meu mais puro sentimento amoroso, por tantoensinar, por tanto iluminar e por cultivar o direito ao infinito, abraando-me com sua capacidadeinventiva e criativa a ousar no horizonte de mundos libertos.

    Heidelberg, maio de 2010.

    A Autora

    1 No perodo de 1993 a 2003 estima-se que de 260 a 370 mulheres tenham sido vtimas de assassinato em Ciudad Juarez. Asentena da Corte condenou o Estado do Mxico ao dever de investigar, sob a perspectiva de gnero, as graves violaes ocorridas,garantindo direitos e adotando medidas preventivas necessrias de forma a combater a discriminao contra a mulher. Ver sentena de16 de novembro de 2009. Disponvel em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_205_esp.pdf.

    2 Caso Escher e outros versus Brasil, Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de julio de 2009.Srie C n. 200. Disponvel em: http//:www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_por.pdf (acesso em 2-4-2010). Ver ainda casoEscher e outros versus Brasil, Interpretacin de la Sentencia de Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de20 de noviembro de 2009. Serie C n. 208. Disponvel em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_208_por.pdf (acesso em2-4-2010). Em 20 de abril de 2010, foi publicado o Decreto n. 7.158 autorizando a Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia daRepblica a dar cumprimento sentena da Corte Interamericana no caso Escher, de forma a promover as gestes necessrias visandoespecialmente ao pagamento de indenizao pelas violaes dos direitos humanos s vtimas.

    3 Caso Garibaldi versus Brasil, Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas, Sentencia de 23 de septiembre de 2009.Serie C n. 203. Disponvel em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf (acesso em 2-4-2010).

    4 Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, sentena de 26 de setembro de 2006.Escassa ainda a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal que implementa a jurisprudncia da Corte Interamericana, destacando-seat maro de 2010 apenas e to somente dois casos: a) um relativo ao direito do estrangeiro detido de ser informado sobre a assistnciaconsular como parte do devido processo legal criminal, com base na Opinio Consultiva da Corte Interamericana n. 16 de 1999 (verdeciso proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 2006, na Extradio n. 954/2006); e b) outro caso relativo ao fim da exigncia dediploma para a profisso de jornalista, com fundamento no direito informao e na liberdade de expresso, luz da Opinio Consultivada Corte Interamericana n. 5 de 1985 (ver deciso proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, no RE 511961). Levantamentorealizado acerca das decises do Supremo Tribunal Federal, baseadas em precedentes judiciais de rgos internacionais e estrangeiros,constata que 80 casos aludem jurisprudncia da Suprema Corte dos EUA, ao passo que 58 casos aludem jurisprudncia do TribunalConstitucional Federal da Alemanha enquanto, reitere-se, apenas 2 casos amparam-se na jurisprudncia da Corte Interamericana.Nesse sentido, Virglio Afonso da Silva, Integrao e dilogo constitucional na Amrica do Sul. In: Armin Von Bogdandy, FlviaPiovesan e Mariela Morales Antoniazzi (coord.), Direitos humanos, democracia e integrao jurdica na Amrica do Sul, Rio deJaneiro, Lumen Juris, 2010, p. 529. Apenas so localizados julgados que remetem incidncia de dispositivos da Conveno Americana nesta direo, foram localizados 79 acrdos versando sobre: priso do depositrio infiel; duplo grau de jurisdio; uso de algemas;individualizao da pena; presuno de inocncia, direito de recorrer em liberdade; razovel durao do processo; dentre outros temasespecialmente afetos ao garantismo penal.

  • NOTA 11 EDIO

    A elaborao de cada nota de atualizao desta obra propicia um momento privilegiado debalano a respeito dos avanos, dos desafios e das perspectivas da proteo dos direitos humanosnas esferas global, regional e local. O trabalho de atualizao pontual, esparso e fragmentado ganha,assim, o corpo de uma unidade de sentido, a apontar o horizonte de afirmao dos direitos humanosna ordem contempornea.

    Nesse sentido, este livro vem a celebrar uma das inovaes mais extraordinrias na luta pelosdireitos humanos, que foi a aprovao do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos DireitosEconmicos, Sociais e Culturais, em 10 de dezembro de 2008. Atente-se que, desde 1996, o Comitde Direitos Econmicos, Sociais e Culturais j adotava um projeto de Protocolo, contando com oapoio de pases da Amrica Latina, frica e Leste Europeu e a resistncia do Reino Unido, EUA,Canad, Austrlia, entre outros.

    O Protocolo Facultativo habilita o Comit de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais a: a)apreciar peties submetidas por indivduos ou grupos de indivduos, sob a alegao de seremvtimas de violao de direitos enunciados no Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociaise Culturais; b) requisitar ao Estado-parte a adoo de medidas de urgncia para evitar danosirreparveis s vtimas de violaes; c) apreciar comunicaes interestatais, mediante as quais umEstado-parte denuncia a violao de direitos do Pacto por outro Estado-parte; e d) realizarinvestigaes in loco, na hiptese de grave ou sistemtica violao por um Estado-parte de direitoenunciado no Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. O ProtocoloFacultativo uma relevante iniciativa para romper com o desequilbrio at ento existente entre aproteo conferida aos direitos civis e polticos e aos direitos econmicos, sociais e culturais naesfera internacional, endossando a viso integral dos direitos humanos, a indivisibilidade e ainterdependncia de direitos. Trata-se de instrumento com potencialidade de impactar positivamenteo grau de justiciabilidade dos direitos econmicos, sociais e culturais, nas esferas global, regional elocal.

    Alm deste relevante avano, a 11 edio desta obra tambm envolveu o esforo de atualizar otrabalho desenvolvido pelos Comits da ONU (os chamados treaty bodies), a posio dos Estadosem relao a clusulas e procedimentos facultativos, bem como a jurisprudncia fomentada peloTribunal Penal Internacional e pelos Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslvia e Ruanda. Demandou,ainda, a atualizao dos casos contra o Brasil submetidos perante o sistema interamericano deproteo dos direitos humanos e de decises emblemticas proferidas pela Corte Interamericana.

    No mbito domstico, mereceu destaque o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do RecursoExtraordinrio n. 466.343, estendendo a proibio da priso civil por dvida hiptese de alienaofiduciria em garantia, com fundamento na Conveno Americana de Direitos Humanos (art. 7, 7).Nessa deciso, o Supremo convergiu em conferir aos tratados de direitos humanos um regimeespecial e diferenciado, distinto do regime jurdico aplicvel aos tratados tradicionais. Divergiu,todavia, no que se refere especificamente hierarquia a ser atribuda aos tratados de direitoshumanos, remanescendo dividido entre a tese da supralegalidade e a tese da constitucionalidade dostratados de direitos humanos, sendo a primeira tese a majoritria, vencidos os Ministros Celso de

  • Mello, Cesar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que conferiam aos tratados de direitos humanosstatus constitucional.

    A deciso proferida no Recurso Extraordinrio n. 466.343 constitui uma deciso paradigmtica,tendo a fora catalisadora de impactar a jurisprudncia nacional, a fim de assegurar aos tratados dedireitos humanos um regime privilegiado no sistema jurdico brasileiro, propiciando a incorporaode parmetros protetivos internacionais no mbito domstico ainda que este trabalho insista natese da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos.

    Por fim, resta expressar minha profunda gratido Humboldt Foundation, pela concesso daGeorg Forster Research Fellowship, que viabilizou a realizao de pesquisas e estudos a contribuirimensamente cuidadosa atualizao desta obra para a sua 11 edio.

    Uma vez mais, minha maior gratido ao Max-Planck-Institute for Comparative Public Law andInternational Law (Heidelberg) por propiciar um ambiente acadmico de extrema vitalidade, aberturae rigor intelectual, que tanto pde inspirar este trabalho. Ao professor Wolfrum, meu reconhecimentopor sua generosidade, sensibilidade e destacado profissionalismo acadmico. Ao professor VonBogdandy, expresso meu respeito e admirao intelectual, bem como o entusiasmo pelos fascinantesprojetos compartilhados. minha querida amiga Mariela Morales, receba minha alegria por nossapreciosa amizade, bem como pelo estmulo de nossas tantas parcerias. Ao professor Ackermann e aoMijail Mendonza Escalante, deixo o registro do encantamento de nosso profcuo convvioacadmico.

    Por fim, minha gratido vida por ter diariamente, ao longo do sabtico em Heidelberg, apequena Sophia, fonte de tanta luz e de infinito sentimento amoroso, que tudo redimensiona eressignifica, na curiosidade mais pura e na criatividade mais espontnea, a transformar a realidademundana na incessante descoberta de horizontes libertos.

    Heidelberg, maio de 2009.

    A Autora

  • NOTA 10 EDIO

    A 10 edio desta obra invoca a consolidao de avanos do processo de internacionalizaodos direitos humanos, com reflexos nos mbitos global, regional e local.

    Na esfera global, dentre os avanos, destacam-se: a entrada em vigor da Conveno sobre osDireitos das Pessoas com Deficincia, em maio de 2008; a consolidao do novo Conselho deDireitos Humanos da ONU; as propostas para a reforma e o fortalecimento da ONU; e a crescenteatuao do Tribunal Penal Internacional em relao aos desafios da justia internacional1.

    Na esfera local, nfase merece ser conferida gradativa sensibilizao do Supremo TribunalFederal quanto necessidade e urgncia de reavaliao e atualizao de sua jurisprudncia acercados tratados internacionais de direitos humanos, reconhecendo a existncia de um regime jurdicoprprio a eles aplicvel, bem como de sua hierarquia privilegiada na ordem jurdica interna2. Cabetambm meno a indita aprovao da Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia ede seu Protocolo Facultativo, nos termos do ritual introduzido pelo 3 do art. 5 da ConstituioFederal3. Outro avano do mbito domstico atm-se ao cumprimento pelo Brasil de decises dosistema interamericano de direitos humanos, com destaque ao caso Damio Ximenes Lopes (quelevou primeira condenao do Brasil pela Corte Interamericana); ao caso Maria da Penha; e aocaso Simone Diniz4. Estes casos so capazes de revelar a potencialidade da litigncia internacionalem fomentar transformaes internas, permitindo o aprimoramento do regime domstico de proteode direitos.

    Uma vez mais, expresso a minha maior gratido ao Max-Planck-Institute for Comparative PublicLaw and International Law (Heidelberg), em especial ao professor Wolfrum, pela inspiradoraacolhida acadmica, que tanto contribuiu para os trabalhos desta 10 edio.

    A dinmica da afirmao dos direitos humanos, em sua historicidade no linear, traduz atransformao emancipatria, a permitir a cada ser humano o desenvolvimento livre e pleno de suaspotencialidades. sob o lema da esperana inquieta, pulsante e visionria que prossegue a luta pordignidade e direitos, lembrando a advertncia de Ortega y Gasset, de que a expectativa uma funoprimria essencial vida, sendo a esperana o seu rgo mais visceral.

    Heidelberg, abril de 2008.

    A Autora

    1 Em 15 de julho de 2008, a promotoria do Tribunal Penal Internacional solicitou ordem de priso contra o presidente do Sudo, Omaral-Bashir, acusado pela prtica de crime de genocdio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos na regio de Darfur.Caber ao Tribunal Penal Internacional decidir pela admissibilidade do caso, que seria o primeiro do tribunal contra um presidente emexerccio. Se o caso for aceito, o Sudo ter que cumprir um mandado de priso, com a entrega de seu presidente. Adicione-se que, em21 de julho de 2008, foi preso o ex-lder servo-bsnio, Radovan Karadzic, o carniceiro de Belgrado, indiciado por crime de genocdio,

  • crimes de guerra e crimes contra a humanidade. acusado de ter ordenado o extermnio de 8 mil muulmanos no massacre deSrebrenica em 1995 essa considerada a pior atrocidade registrada na Europa desde a 2 Guerra Mundial. Foi determinada suaextradio ao Tribunal Penal Internacional pela ex-Iugoslvia. Com a extradio, o caso Karadzic seguir o caminho do caso SlobodanMilosevic, ex-presidente srvio, que esteve sob a custdia do mesmo Tribunal desde 2000, vindo a falecer em 2006, antes da conclusode seu processo.

    2 A respeito, consultar RE 466.343, em especial o voto do Ministro Gilmar Mendes, de 22-11-2006, e o HC 87.585-8, em particular ovoto do Ministro Celso de Mello, de 12-3-2008. Sobre o tema, ver o Captulo IV deste livro.

    3 Sobre o tema, ver o Decreto Legislativo n. 186, de 10 de julho de 2008.4 Sobre o cumprimento das decises relativas a estes casos, ver o Captulo IX deste livro.

  • NOTA 9 EDIO

    A reviso, ampliao e atualizao desta obra, agora para a sua 9 edio, reafirmam a pulso dosdireitos humanos como uma plataforma libertria e emancipatria, inspirada em espaos de luta peladignidade humana.

    So justamente os frutos e os acmulos dessa ao transformadora que justificam os avanos noregime de proteo de direitos humanos destacados ao longo desta 9 edio.

    No marco do sistema especial de proteo, ao lado dos demais instrumentos especficos, dadanfase Conveno Internacional sobre a Proteo dos Direitos de todos os TrabalhadoresMigrantes e dos Membros de suas Famlias1, bem como a recente Conveno sobre os Direitos dasPessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo, adotados em 13 de dezembro de 2006. Ambosos instrumentos endossam a igualdade e a no discriminao como um princpio fundamental queilumina e ampara todo sistema internacional de direitos humanos. Sua proteo requisito, condioe pressuposto para o pleno e livre exerccio de direitos. O direito igualdade material, o direito diferena e o direito ao reconhecimento de identidades integram a essncia dos direitos humanos, emsua dupla vocao em prol da defesa da dignidade humana e da preveno do sofrimento humano.

    Alm destes avanos, soma-se a crescente consolidao da justia internacional, mediante aexpanso do repertrio jurisprudencial da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da submissode novos casos jurisdio do Tribunal Penal Internacional temas atualizados nesta edio.

    Por fim, no que se refere particularmente poltica nacional de proteo dos direitos humanos,celebra-se a vitria da ratificao pelo Estado brasileiro do Protocolo Facultativo Convenocontra a Tortura e outros Tratamentos Cruis, Desumanos e Degradantes, em 11 de janeiro de 20072.O Protocolo introduz relevante sistema preventivo de visitas regulares a locais de deteno.

    Por si, essas conquistas tecem a travessia de construo dos direitos humanos, a compor umahistria no linear, aberta, incompleta, marcada por tenses, aes e lutas, movida, sobretudo, pelainquietude da esperana e pela profunda capacidade criativa e transformadora de realidades.

    Heidelberg, maio de 2007.

    A Autora

    1 Esta Conveno foi adotada em 18 de dezembro de 1990 e entrou em vigor em 1 de julho de 2003.2 O Protocolo foi promulgado pelo Decreto n. 6.085, de 19 de abril de 2007.

  • NOTA 8 EDIO

    Para Joaqun Herrera Flores, os direitos humanos traduzem processos que abrem e consolidamespaos de luta pela dignidade humana. No mesmo sentido, Celso Lafer, lembrando Danile Lochak,reala que a histria dos direitos humanos no nem a histria de uma marcha triunfal, nem a histriade uma causa perdida de antemo, mas a histria de um combate1. Para Micheline R. Ishay, a histriados direitos humanos pode ser pensada como uma viagem guiada por luzes que atravessam runasdeixadas por tempestades devastadoras e intermitentes, como a eloquente descrio feita por WalterBenjamin da pintura Angelus Novus (The angel of history) de Paul Klee2.

    A 8 edio desta obra, inicialmente lanada em 1996, vem a celebrar a historicidade dos direitoshumanos, a partir de uma histria no linear, marcada por avanos e recuos, na afirmao de umlocus simblico de luta e ao social. Em 1996, recordo-me da articulao global para a criao deum Tribunal Penal Internacional e da campanha nacional para o reconhecimento pelo Brasil dajurisdio da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em 2006, passados dez anos, este livrorevisado, ampliado e atualizado para a 8 edio, destaca os primeiros casos j submetidos aoTribunal Penal Internacional, bem como a primeira sentena condenatria do Brasil proferida pelaCorte Interamericana de Direitos Humanos. Enfoca, ainda, os debates a respeito da reforma da Cartada ONU e a recente criao do Conselho de Direitos Humanos. Aponta as divergnciasinterpretativas relativamente ao 3 do art. 5 da Constituio Federal de 1988, introduzido pelaEmenda Constitucional n. 45/2004, no que se refere hierarquia e incorporao dos tratados dedireitos humanos no Direito brasileiro.

    A todo tempo, a obra ressalta a dupla vocao dos parmetros protetivos internacionais: estimularavanos e evitar retrocessos no regime interno de proteo de direitos. A justia global tem sidocapaz de propiciar avanos locais, invocando a proteo da dignidade humana e aliviando a carga dedor e sofrimento humano.

    A tica dos direitos humanos a tica que v no outro um ser merecedor de igual considerao eprofundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre,autnoma e plena. a tica que tem na abertura do dilogo uma fora transformadora onde odilogo teve xito ficou algo para ns e em ns que nos transformou, parafraseando Gadamer.

    O fio condutor desta obra, a doar-lhe especial integridade e sentido, o princpio da esperana,da ao emancipatria e da capacidade criativa e transformadora. Vislumbra Hannah Arendt a vidacomo um milagre, o ser humano como, ao mesmo tempo, um incio e um iniciador, acenando que possvel modificar pacientemente o deserto com as faculdades da paixo e do agir. Afinal, se allhuman must die; each is born to begin3.

    Juquehy, setembro de 2006.

    A Autora

  • 1 Celso Lafer, prefcio ao livro Direitos humanos e justia internacional, Flvia Piovesan, So Paulo, Saraiva, 2006, p. XXII.2 Na interpretao de Walter Benjamin: A face do anjo da histria virada para o passado. Ainda que ns vejamos uma cadeia de

    eventos, ele v apenas uma catstrofe (...). O anjo gostaria de l permanecer, para ser despertado pela morte, atestando tudo o que teriasido violentamente destrudo. Mas uma tempestade se propaga do paraso; alcana suas asas com tamanha violncia que o anjo no maispode fech-las. Esta tempestade o compele ao futuro, para o qual suas costas estavam viradas (...). Esta tempestade o que nschamamos de progresso (Walter Benjamin, The theses on the philosophy of history, apud Micheline R. Ishay, The history of humanrights, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 2004, p. 3).

    3 Hannah Arendt, The human condition, Chicago, The University of Chicago Press, 1998. Ver ainda da mesma autora Men indark times, New York, Harcourt Brace & Company, 1995.

  • NOTA 7 EDIO

    A reviso, ampliao e atualizao desta obra, agora em sua 7 edio, objetivaram inicialmenteincorporar reflexes sobre o impacto da reforma do Poder Judicirio, introduzida pela EmendaConstitucional n. 45/2004, sob a perspectiva da proteo dos direitos humanos. Nesse sentido, foramabordadas as inovaes decorrentes do art. 5, 3, no que se refere recepo dos tratadosinternacionais de proteo dos direitos humanos na ordem jurdica brasileira; do art. 5, 4, quantoao reconhecimento constitucional da jurisdio do Tribunal Penal Internacional; e do art. 109, V-A e 5, concernente chamada federalizao dos crimes de direitos humanos.

    Foram tambm aprofundados e atualizados os Captulos V, VI e VII, com destaque para o temaafeto ao universalismo e relativismo cultural (Captulo V), bem como o desenvolvimento dajurisprudncia internacional firmada pelo Tribunal Penal Internacional (Captulo VI) e pela CorteInteramericana de Direitos Humanos (Captulo VII). A Akemi Kamimura, meus sincerosagradecimentos pelo auxlio na realizao de pesquisa para a atualizao dos Captulos VI e VII.

    O Captulo VIII, por sua vez, foi atualizado no sentido de apontar os atuais avanos, bem como osretrocessos da poltica brasileira na arena internacional de proteo dos direitos humanos. Quantoaos avanos, merecem meno: a) a ratificao do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal PenalInternacional, em 20 de junho de 2002; b) o acolhimento do direito de petio, previsto no art. 14 daConveno sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao Racial, mediante declaraofacultativa efetuada em 17 de junho de 2002; c) a ratificao do Protocolo Facultativo Convenosobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao contra a Mulher, em 28 de junho de 2002;d) a assinatura do Protocolo Facultativo Conveno contra a Tortura, em 13 de outubro de 2003; ee) a ratificao dos dois Protocolos Facultativos Conveno sobre os Direitos da Criana,referentes ao envolvimento de crianas em conflitos armados e venda de crianas e prostituio epornografia infantis, em 24 de janeiro de 2004.

    O Captulo IX, relativo advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com nfasenos casos contra o Estado brasileiro perante a Comisso Interamericana de Direitos Humanos, foiprofundamente revisado e ampliado, a fim de abarcar a anlise dos casos brasileiros admitidos pelaComisso at 2004, bem como de seu impacto. Um agradecimento especial feito ao amigo SilvioAlbuquerque, diplomata da misso brasileira junto OEA, pelo imprescindvel fornecimento deinformaes, que tornou possvel a atualizao desse captulo.

    O lanamento desta nova edio do livro, contudo, insere-se em um contexto internacionalmarcado por tenses concernentes proteo dos direitos humanos. Na ordem contempornea,destacam-se sete tenses1: a) universalismo vs. relativismo cultural; b) laicidade estatal vs.fundamentalismos religiosos; c) direito ao desenvolvimento vs. assimetrias globais; d) proteo dosdireitos econmicos, sociais e culturais vs. dilemas da globalizao econmica; e) respeito diversidade vs. intolerncias; f) combate ao terror vs. preservao de direitos e liberdades pblicas;e g) unilateralismo vs. multilateralismo.

    H o desafio de fortalecer o Estado de Direito e a construo da paz nas esferas global, regional elocal, mediante uma cultura de direitos humanos, enquanto racionalidade de resistncia e nicaplataforma emancipatria de nosso tempo.

  • Se esta obra a todo tempo reitera a historicidade dos direitos humanos, na medida em que no soum dado, mas um construdo, h que ressaltar que as violaes a esses direitos tambm o so. Isto ,as violaes, as excluses, as discriminaes e as intolerncias so um construdo histrico, a serurgentemente desconstrudo. H que assumir o risco de romper com a cultura da naturalizao dasdesigualdades e das excluses, que, enquanto construdos histricos, no compem de formainexorvel o destino de nossa humanidade. H que enfrentar essas amarras, mutiladoras doprotagonismo, da cidadania, da dignidade e da potencialidade de seres humanos.

    Dizia a poetisa Sophia Andresen que a poesia uma das raras atividades humanas, que, emtempos atuais, busca salvar certa espiritualidade. A poesia no uma religio, mas no h poeta, sejaou no crente, que no escreva para a salvao de sua alma, como quer que ela se chame amor,liberdade, dignidade ou beleza.

    Penso o mesmo dos direitos humanos, na medida em que sua defesa nos inspira ao exercciocotidiano de salvao de nossas prprias almas, traduzindo o sentimento da esperanaemancipatria, com o triunfo da dignidade e da paz.

    Oxford, 2005.

    A Autora

    1 Flvia Piovesan, Direitos humanos: desafios e perspectivas contemporneas , texto que serviu de base conferncia deabertura proferida no IV Frum Mundial de Juzes, em Porto Alegre, em 23 de janeiro de 2005.

  • NOTA 5 EDIO

    Atnito e perplexo, o mundo acompanhou as cenas de horrores do dia 11 de setembro de 2001. Se,para os internacionalistas, o Ps-1945 foi o marco para uma nova era a da reconstruo dedireitos , o Ps-2001 parece tambm surgir como novo marco divisrio na histria da humanidade.A Conferncia de Durban, na frica do Sul, encerrada em 8 de setembro de 2001, j antecipava oalcance e o grau do dissenso mundial na luta contra a discriminao racial, a xenofobia e aintolerncia, em uma ordem caracterizada pelo choque de culturas, crenas, etnias, raas e religies.

    Se o mundo da Guerra Fria refletia a bipolaridade de blocos, o mundo Ps-Guerra Fria, lembravaSamuel Huntington1, refletiria o choque entre civilizaes. Basta mencionar os conflitos da dcada de90 Bsnia, Ruanda, Timor, Kosovo, dentre outros.

    Neste cenrio, como enfrentar o terror? Como preservar a Era dos Direitos em tempos deterror? Como garantir liberdades e direitos em face do clamor pblico por segurana mxima? Deque modo os avanos civilizatrios da Era dos Direitos (criados em reao prpria barbrietotalitria) podem contribuir para o enfrentamento de conflitos dessa natureza e complexidade?

    O Ps-11 de setembro aponta ao desafio de que aes estatais sejam orientadas pelos princpioslegados do processo civilizatrio, sem dilapidar o patrimnio histrico atinente a garantias edireitos. O esforo de construo de um Estado de Direito Internacional, em uma arena maisdemocrtica e participativa, h de prevalecer em face da imediata busca do Estado Polcia nocampo internacional, fundamentalmente guiado pelo lema da fora e segurana internacional.

    Como demonstra esta obra, na ordem internacional os delineamentos de um Estado de DireitoInternacional fazem-se sentir. A internacionalizao de direitos, o consenso na fixao deparmetros protetivos mnimos para a defesa da dignidade e o recente intento da comunidadeinternacional pela criao de uma justia internacional como o Tribunal Penal Internacional justificam a esperana de um Estado de Direito Internacional.

    Testemunha-se hoje o processo de justicializao do Direito Internacional, com a certeza de queno basta apenas enunciar direitos, mas proteg-los e garanti-los.

    Este livro revela que as ltimas cinco dcadas permitiram a crescente consolidao do DireitoInternacional dos Direitos Humanos, como referencial tico conformador e inspirador das ordensnacionais e internacional. Permitiram, ainda, acreditar que a fora do direito poderia prevalecer emrelao ao direito da fora. Neste sentido, destacam-se casos paradigmticos que celebraram aaplicao da jurisdio universal para graves crimes atentatrios ordem internacional, como oscasos Pinochet, Milosevic, Tribunais ad hoc para Ruanda e Bsnia, Corte Internacional para oCamboja e instituio do Tribunal Penal Internacional.

    Por isto, o Ps-setembro de 2001 invocar o maior desafio da Era dos Direitos: avanar noEstado de Direito Internacional ou retroceder ao Estado Polcia? Uma vez mais: como preservara Era dos Direitos em tempos de terror? Quais as perspectivas para a justia global?

    Que o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao consagrar parmetros protetivos mnimosde defesa da dignidade, seja capaz de impedir retrocessos e arbitrariedades, propiciando avanos noregime de proteo dos direitos humanos no mbito internacional e interno. Hoje, mais do que nunca, tempo de inventar uma nova ordem, mais democrtica e igualitria, que tenha a sua centralidade no

  • valor da absoluta prevalncia da dignidade humana.

    So Paulo, janeiro de 2002.A Autora

    1 Samuel Huntington, The clash of civilizations and the remaking of the world order.

  • NOTA 4 EDIO

    A reviso, atualizao e ampliao desta obra, visando publicao de sua 4 edio, refletemdois fenmenos: a) o aprimoramento do sistema internacional de proteo dos direitos humanos, apartir de recentes e significativas transformaes e b) o crescente alinhamento do Estado brasileiro sistemtica internacional de proteo.

    O Tribunal Internacional Criminal Permanente (previsto pelo Estatuto de Roma, de 17 de julho de1998), o Protocolo Facultativo Conveno sobre a Eliminao de todas as formas deDiscriminao contra a Mulher (adotado em 12 de maro de 1999, na 43 Sesso da Comisso doStatus da Mulher da ONU), a entrada em vigor do Protocolo Adicional Conveno Americana emmatria de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (em novembro de 1999), por si ss, so capazesde revelar o alcance dos avanos do sistema internacional de proteo dos direitos humanos nosltimos dois anos. A relevncia destes avanos justifica a ampliao desta obra nesta 4 edio.Adicione-se, ainda, a necessidade de aprofundar determinados temas do livro, o que permitiu oexame cuidadoso, por exemplo, da Conveno sobre a Eliminao de todas as formas deDiscriminao Racial, da Conveno sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminaocontra a Mulher, da Conveno contra a Tortura, da Conveno sobre os Direitos da Criana e daConveno para a Preveno e Represso do Crime de Genocdio, agora enfocadas ao longo doCaptulo VI da obra.

    No bastando as significativas transformaes do sistema internacional de proteo dos direitoshumanos, o crescente alinhamento do Estado brasileiro sistemtica internacional de proteotambm vem a justificar as inovaes desta 4 edio. Em dezembro de 1998, finalmente, o Estadobrasileiro reconheceu a competncia jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos (nostermos do Decreto Legislativo n. 89, de 3 de dezembro de 1998) e, em 7 de fevereiro de 2000, oBrasil assinou o Estatuto do Tribunal Internacional Criminal Permanente. O Estado brasileirocomea, assim, a romper com a antiga postura de aceitar a sistemtica de direitos internacionais e, aomesmo tempo, negar as garantias internacionais de proteo. Alm disso, destaca-se o intensoenvolvimento do Brasil nos rgos internacionais voltados tutela dos direitos humanos, como aCorte Interamericana, hoje presidida pelo professor Antnio Augusto Canado Trindade, e aComisso Interamericana de Direitos Humanos, hoje presidida por Hlio Bicudo, sendo necessrioobservar que ambos, na qualidade de reconhecidos especialistas em matria de direitos humanos,atuam a ttulo pessoal e no como representantes do Estado brasileiro.

    A 4 edio desta obra objetivou tambm atualizar o estudo de casos relativos ao Estadobrasileiro no mbito da Comisso Interamericana de Direitos Humanos. Se em 1996 foram estudados27 casos contra o Estado brasileiro (admitidos pela Comisso Interamericana), passados quatroanos, 50 casos contra o Brasil so estudados, no Captulo IX desta 4 edio. Este dado simboliza ofortalecimento da advocacia internacional dos direitos humanos. Note-se que, no plano internacional,vige o princpio da subsidiariedade, pelo qual cabe ao Estado a responsabilidade primria notocante aos direitos humanos, tendo a comunidade internacional uma responsabilidade secundria esubsidiria. Isto , o aparato internacional s pode ser invocado quando as instituies nacionaismostrarem-se falhas ou omissas na proteo dos direitos humanos. O objetivo possibilitar,

  • mediante o monitoramento internacional, que avanos e progressos relativos aos direitos humanosocorram no plano interno.

    Ao lado da advocacia internacional de direitos humanos, objetivou-se ainda examinar a advocaciados tratados internacionais perante as Cortes nacionais, com destaque recente jurisprudncia doSupremo Tribunal Federal sobre a matria, bem como meno a decises judiciais que aplicaram anormatividade internacional de direitos humanos.

    A 4 edio desta obra intenta, assim, celebrar as significativas transformaes que marcaram osistema internacional de proteo de direitos humanos e o regime jurdico e poltico adotado peloEstado brasileiro em face destas inovaes.

    Neste incessante processo de reconstruo dos direitos humanos, vislumbra-se a dinmicainterao das esferas local, regional e global, acenando ao valor da dignidade humana, comoprincpio fundante de uma ordem renovada. Vive-se, mais do que nunca, a crescenteinternacionalizao dos direitos humanos, a partir dos delineamentos de uma cidadania universal, daqual emanam direitos e garantias internacionalmente assegurados.

    No dizer de Saramago, as pessoas nascem todos os dias; s delas que depende continuarem aviver o dia de ontem ou comearem de raiz e bero o dia novo o hoje. Por isso, mais do quetempo de inventar uma nova ordem, que consagre os direitos humanos como a plataformaemancipatria contempornea, inspirada no valor da absoluta prevalncia da dignidade humana.

    So Paulo, maro de 2000.

    A Autora

  • PREFCIO

    O dinmico movimento de direitos humanos, que se desenvolveu a partir da Segunda GuerraMundial, revelou uma impressionante capacidade de estabelecer parmetros comuns atravs detratados e declaraes internacionais. Contudo, sua capacidade de implementar regras e princpioscontra os Estados violadores ainda se mostra aqum do desejvel. Dada esta fragilidade do sistemainternacional de proteo dos direitos humanos, a esperana de que haja uma resposta eficazfrequentemente se volta ordem jurdica e poltica interna dos Estados signatrios daqueles tratados.Esses Estados devem pr suas prprias casas em ordem sem a necessidade de que as vtimas deviolaes de direitos humanos recorram ao sistema de monitoramento internacional. Afinal de contas,tais violaes surgem dentro dos Estados, no em alto-mar ou no espao sideral. Idealmente, cabeaos Estados nos quais as violaes de direitos humanos se manifestam o dever de punir eremediar essas violaes. Em termos jurdicos formais, a doutrina do esgotamento dos recursosinternos consagra exatamente esta regra.

    A impressionante tese de doutoramento de Flvia Piovesan examina esta questo no plano doBrasil contemporneo. A autora investiga em que medida, e atravs de quais tcnicas jurdicas epolticas, o Brasil tem alcanado, ou busca alcanar, a observncia interna dos direitos humanos, quese comprometeu a proteger atravs da ratificao de tratados internacionais bsicos.

    Esta pesquisa conduzida dentro de um contexto histrico mais amplo. O trabalho de FlviaPiovesan adota como ponto de partida o processo de democratizao no Brasil, que se iniciou com aConstituio de 1988. Na realidade, a autora analisa a relao entre trs fenmenos: ademocratizao poltica no Brasil, a participao do Brasil no movimento internacional de direitoshumanos, mediante a ratificao de tratados, e a efetiva proteo dos direitos humanos pelo Estadobrasileiro. Ela examina os meios jurdicos formais capazes de tornar os tratados aplicveis peranteas Cortes nacionais, no mbito da ordem jurdica brasileira. Ela tambm investiga o modo pelo qualas vtimas de violaes, perpetradas pelo Estado brasileiro, podem recorrer aos rgosintergovernamentais de proteo de direitos humanos particularmente Comisso Interamericanade Direitos Humanos no sentido de submeter denncias contra o Brasil. O crculo se fecha com aespeculao da autora sobre a forma pela qual a efetiva internacionalizao e proteo dos direitoshumanos no cenrio brasileiro podem acelerar o processo de democratizao que, em seu turno,permitiu a ratificao de tratados internacionais de proteo destes direitos.

    Trata-se de um trabalho srio, inteligente e esclarecedor, que deve interessar a todos aqueles quese preocupam com os direitos humanos e com a democracia, bem como com a relao entre oscompromissos internacionais assumidos pelo Brasil e a ordem interna brasileira. umaimpressionante realizao de uma das mais jovens e promissoras docentes de Direitos Humanos doBrasil. Eu felicito a autora e aguardo com entusiasmo suas futuras contribuies acadmicas.

    Janeiro de 1996.

    Henry Steiner

    Professor de Direito e

  • Diretor do Programa de Direitos Humanosda Harvard Law School

  • APRESENTAO

    IAo final de cinco dcadas de extraordinria evoluo, o direito internacional dos direitos

    humanos afirma-se hoje, com inegvel vigor, como um ramo autnomo do direito, dotado deespecificidade prpria. Trata-se essencialmente de um direito de proteo , marcado por uma lgicaprpria, e voltado salvaguarda dos direitos dos seres humanos e no dos Estados. Formam-no, noplano substantivo, um conjunto de normas que requerem uma interpretao de modo a lograr seuobjeto e propsito e, no plano operacional, uma srie de mecanismos (de peties ou denncias,relatrios e investigaes) de superviso ou controle que lhe so prprios. A conformao destenovo e vasto corpus juris vem atender a uma das grandes preocupaes de nossos tempos: assegurara proteo do ser humano, nos planos nacional e internacional, em toda e qualquer circunstncia. Opresente livro da Dra. Flvia Piovesan, que tenho a grata satisfao de apresentar, revelador de quea semente do Direito Internacional dos Direitos Humanos passa enfim a germinar, e dar bons frutos,tambm em terras brasileiras.

    Podemos, na verdade, ir mais alm do plano puramente internacional, ao articular a formao donovo Direito dos Direitos Humanos, a abranger as normas de proteo de origem tanto internacionalquanto nacional. Este novo direito impe-se, a meu modo de ver, de modo irreversvel, pelaconjuno de dois significativos fatores: por um lado, a atribuio expressa de funes, pelosprprios tratados de direitos humanos, aos rgos pblicos do Estado; e, por outro, a refernciaexpressa, por parte de um nmero crescente de Constituies contemporneas, aos direitosconsagrados nos tratados de direitos humanos, incorporando-os ao elenco dos direitos garantidos noplano do direito interno. Desse modo, o direito internacional e o direito pblico interno revelam umaalentadora identidade de propsito de proteo do ser humano, e contribuem cristalizao do novoDireito dos Direitos Humanos.

    IIA publicao de obras de qualidade como a presente refora minha confiana de que a nova

    gerao que emerge de juristas brasileiros saber cultivar o Direito dos Direitos Humanos e extrairtodas as consequncias deste novo e fascinante ramo do direito. Saber, a partir da constatao denossa realidade social, sobrepor-se s incompreenses e insensibilidade alimentadas por um ensinodo direito dissociado das prementes necessidades de proteo do ser humano. O ensino ministradoem nossas Faculdades de Direito, centros com raras e honrosas excees do conservadorismojurdico e de instruo (nem sequer educao) para o establishment legal em meio a um positivismojurdico degenerado, tem sido em grande parte responsvel pela perpetuao, de uma gerao aoutra, de certos dogmas do passado, que o Direito dos Direitos Humanos vem agora questionar edesafiar.

    Permito-me destacar trs ou quatro exemplos, e brevemente recapitular alguns pontos capitais quevenho sustentando, ao longo de muitos anos, tanto em meus escritos quanto na soluo de casosinternacionais de direitos humanos em que tenho tido ocasio de atuar. O primeiro exemplo diz

  • respeito distino rgida entre Direito Pblico e Direito Privado, contra a qual se insurgem asnecessidades de proteo do ser humano, com maior fora ante a atual diversificao das fontes deviolaes de seus direitos. A rigidez da distino entre o pblico e o privado no resiste aosimperativos de proteo dos direitos humanos, por exemplo, nas relaes interindividuais (e. g.,violncia domstica) e nos atentados perpetrados por agentes no identificados, meios decomunicao, grupos econmicos e outros entes no estatais.

    O segundo exemplo diz respeito justiciabilidade das distintas categorias de direitos; a contrriodo que comumente se supe, muitos dos direitos econmicos e sociais, ou componentes destes, so, aexemplo dos direitos civis e polticos, perfeitamente justiciveis. As necessidades de proteo doser humano novamente se insurgem contra construes tericas nefastas que, invocando a pretensanatureza jurdica de determinadas categorias de direitos, buscam negar-lhes meios eficazes deimplementao, e separar o econmico do social e do poltico, como se o ser humano, titular detodos os direitos humanos, pudesse dividir-se nas diferentes reas de sua atuao.

    O terceiro exemplo atinente s relaes entre o direito internacional e o direito interno,enfocadas ad nauseam luz da polmica clssica, estril e ociosa, entre dualistas e monistas,tambm erigida sobre falsas premissas. Igualmente contra esta se insurge o Direito dos DireitosHumanos, ao sustentar que o ser humano sujeito tanto do direito interno quanto do direitointernacional, dotado em ambos de personalidade e capacidade jurdicas prprias. No presentedomnio de proteo, o direito internacional e o direito interno, longe de operarem de modo estanqueou compartimentalizado, se mostram em constante interao, de modo a assegurar a proteo eficazdo ser humano. Como decorre de disposies expressas dos prprios tratados de direitos humanos, eda abertura do direito constitucional contemporneo aos direitos internacionalmente consagrados,no mais cabe insistir na primazia das normas do direito internacional ou do direito interno,porquanto o primado sempre da norma de origem internacional ou interna que melhor protejaos direitos humanos. O Direito dos Direitos Humanos efetivamente consagra o critrio da primaziada norma mais favorvel s vtimas.

    O quarto exemplo diz respeito fantasia das chamadas geraes de direitos, a qual correspondea uma viso atomizada ou fragmentada destes ltimos no tempo. A noo simplista das chamadasgeraes de direitos, histrica e juridicamente infundada, tem prestado um desservio aopensamento mais lcido a inspirar a evoluo do direito internacional dos direitos humanos.Distintamente do que a infeliz invocao da imagem analgica da sucesso generacional pareceriasupor, os direitos humanos no se sucedem ou substituem uns aos outros, mas antes se expandem,se acumulam e fortalecem, interagindo os direitos individuais e sociais (tendo estes ltimos inclusiveprecedido os primeiros no plano internacional, a exemplo das primeiras convenes internacionaisdo trabalho). O que testemunhamos o fenmeno no de uma sucesso, mas antes da expanso,cumulao e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, a revelar a natureza complementar detodos os direitos humanos. Contra as tentaes dos poderosos de fragmentar os direitos humanos emcategorias, postergando sob pretextos diversos a realizao de alguns destes (e. g., os direitoseconmicos e sociais) para um amanh indefinido, se insurge o Direito dos Direitos Humanos,afirmando a unidade fundamental de concepo, a indivisibilidade e a justiciabilidade de todos osdireitos humanos.

  • IIIO Direito dos Direitos Humanos no rege as relaes entre iguais; opera precisamente em defesa

    dos ostensivamente mais fracos. Nas relaes entre desiguais, posiciona-se em favor dos maisnecessitados de proteo. No busca obter um equilbrio abstrato entre as partes, mas remediar osefeitos do desequilbrio e das disparidades. No se nutre das barganhas da reciprocidade, mas seinspira nas consideraes de ordre public em defesa de interesses superiores, da realizao dajustia. o direito de proteo dos mais fracos e vulnerveis, cujos avanos em sua evoluohistrica se tm devido em grande parte mobilizao da sociedade civil contra todos os tipos dedominao, excluso e represso. Neste domnio de proteo, as normas jurdicas so interpretadas eaplicadas tendo sempre presentes as necessidades prementes de proteo das supostas vtimas.

    Mesmo se nos ativermos ao plano to somente da normativa internacional, a mesma lgica sedesprende deste direito de