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DIREITOS HUMANOS: LIBERDADE E IGUALDADE NUMA VISÃO KANTIANA HUMAN RIGHTS: FREEDOM AND EQUALITY IN A VISION KANTIANA Paulo Francisco de Oliveira RESUMO Resumo. O objetivo do presente trabalho é apresentar os princípios liberais segundo o pensamento jurídico do filósofo alemão, Immanuel Kant, tendo em vista que suas idéias marcam a defesa da liberdade como valor essencial, a partir do momento que se coloca a necessidade de por limites ao processo radical-revolucionário burguês, iniciado pela revolução francesa de 1789. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVES. DIREITO; LIBERDADE; IGUALDADE; LEI; CIDADANIA ABSTRACT Abstract. The objective of the present work is to present the liberal beginnings according to the legal thought of the German philosopher, Immanuel Kant, I have in mind that his ideas mark the defense of the freedom like essential value, from the moment that puts the necessity of for limits to the revolutionary-radical bourgeois process begun by the French revolution of 1789. KEYWORDS: KEY-WORDS. RIGHT; FREEDOM; EQUALITY; LAW; CITIZENSHIP INTRODUÇÃO Sob a égide do Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição da República de 1988, batizada de Constituição Cidadã, torna-se importante a pesquisa da evolução da cidadania. Este estudo perpassa os caminhos da própria democracia e da participação popular, cujas matrizes são os direitos à liberdade e igualdade. Impregnado dos ideais da Revolução Francesa, Kant realiza uma síntese histórica dos valores da liberdade e igualdade, indispensáveis para o desenvolvimento do conceito de cidadania. Ele desenvolve os conteúdos da igualdade e liberdade e consolida a concepção funcional do poder, cuja sede é o povo. O homem se torna fim em si mesmo e o papel 6241

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DIREITOS HUMANOS: LIBERDADE E IGUALDADE NUMA VISÃO KANTIANA

HUMAN RIGHTS: FREEDOM AND EQUALITY IN A VISION KANTIANA

Paulo Francisco de Oliveira

RESUMO

Resumo. O objetivo do presente trabalho é apresentar os princípios liberais segundo o pensamento jurídico do filósofo alemão, Immanuel Kant, tendo em vista que suas idéias marcam a defesa da liberdade como valor essencial, a partir do momento que se coloca a necessidade de por limites ao processo radical-revolucionário burguês, iniciado pela revolução francesa de 1789.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVES. DIREITO; LIBERDADE; IGUALDADE; LEI; CIDADANIA

ABSTRACT

Abstract. The objective of the present work is to present the liberal beginnings according to the legal thought of the German philosopher, Immanuel Kant, I have in mind that his ideas mark the defense of the freedom like essential value, from the moment that puts the necessity of for limits to the revolutionary-radical bourgeois process begun by the French revolution of 1789.

KEYWORDS: KEY-WORDS. RIGHT; FREEDOM; EQUALITY; LAW; CITIZENSHIP

INTRODUÇÃO

Sob a égide do Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição da República de 1988, batizada de Constituição Cidadã, torna-se importante a pesquisa da evolução da cidadania. Este estudo perpassa os caminhos da própria democracia e da participação popular, cujas matrizes são os direitos à liberdade e igualdade. Impregnado dos ideais da Revolução Francesa, Kant realiza uma síntese histórica dos valores da liberdade e igualdade, indispensáveis para o desenvolvimento do conceito de cidadania.

Ele desenvolve os conteúdos da igualdade e liberdade e consolida a concepção funcional do poder, cuja sede é o povo. O homem se torna fim em si mesmo e o papel

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do Estado fica intimamente associado à realização deste homem, que, reunido na sociedade civil, passa a se denominar cidadão.

Interessante, que quando pensamos, estudamos e discutimos o sentido de liberdade que envolve o ocidente e também a igualdade, geralmente ignoramos quais os fundamentos que alicerçam tais conceitos e a partir de que momento suas construções se dão, provisoriamente, por acabada, mas neste trabalho decorreremos sobre os Direitos Humanos e seus fundamentos: liberdade e igualdade, segundo a doutrina de Immanuel Kant.

1. DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

1.1. Panorama Histórico da Revolução Francesa

Como a Revolução Francesa não teve apenas por objetivo mudar um governo antigo, mas abolir a forma antiga da sociedade, ela teve de ver-se a braços a um só tempo com todos os poderes estabelecidos, arruinar todas as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar costumes e os usos e, de alguma maneira, esvaziar o espírito humano de todas as idéias sobre as quais se tinham fundado até então o respeito e a obediência.

As instituições feudais do Antigo Regime iam sendo superadas à medida que a burguesia, a partir do século XVIII, consolidava cada vez mais seu poder econômico.

A sociedade francesa exigia que o país se modernizasse, mas o entrave do absolutismo apagava essa expectativa.

O descontentamento era geral, todos achavam que essa situação não podia continuar. Entretanto, um movimento iniciado há alguns anos, por um grupo de intelectuais franceses, parecia ter a resposta. Esse movimento criticava e questionava o regime absolutista. Eram os iluministas, que achavam que a única maneira possível de a França se adiantar em relação à Inglaterra era passar o poder político para as mãos da nova classe, isto é, a burguesia (comerciantes, industriais, banqueiros). Era preciso destituir a nobreza que, representada pelo Rei , se mantinha no poder.

A monarquia absoluta que, antes, tantos benefícios havia trazido para o desenvolvimento do comércio e da burguesia francesa, agora era um empecilho. As leis mercantilistas impediam que se vendessem mercadorias livremente. Os grêmios de ofício impediam que se desenvolvessem processos mais rápidos de fabricação de mercadorias. Enfim, a monarquia absoluta era um obstáculo, impedindo a modernização da França. Esse obstáculo precisava ser removido. E o foi pela revolução.

A Revolução Francesa significou o fim da monarquia absoluta na França. O fim do antigo regime significou, principalmente, a subida da burguesia ao poder político e também a preparação para a consolidação do capitalismo. Mas a Revolução Francesa não ficou restrita à França. suas idéias espalharam-se pela Europa, atravessaram o oceano e vieram para a América latina, contribuindo para a elaboração de nossa independência política. Por esse seu caráter enumênico é que se convencionou ser a Revolução Francesa o marco da passagem para a Idade Contemporânea.

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1.1.1. A Economia

A situação econômica da França era crítica. A maioria da renda vinha da agricultura, onde as técnicas eram atrasadas em relação ao consumo do país. Dos 26 milhões de habitantes, 20 milhões viviam no campo em condições de vida extremamente precárias. Uma parte dos camponeses estava ainda sob o regime de servidão.

Um comerciante, para transportar suas mercadorias de um lado para outro do país, teria que passar pelas barreiras alfandegárias das propriedades feudais, pagando altíssimos impostos, o que impedia os comerciantes de venderem livremente suas mercadorias.

Para piorar a situação, parece que ate a natureza ajudou a revolução: entre os anos de 1784 a 1785 houve inundações e secas alienadamente, fazendo com que os preços dos produtos ora subissem, não dando condições para que os pobres comprassem, ora descessem, levando alguns pequenos proprietários à falência.

A situação da industria francesa não era melhor, pois parte dela ainda estava sob o sistema rural e domestico, e as corporações (grêmios) impediam o desenvolvimento de novas técnicas. Como se não bastasse, o governo francês assinou o seguinte tratado com o governo inglês: os franceses venderiam vinhos para os ingleses, e estes venderiam panos para os franceses, sem pagar impostos, o que levou as manufaturas francesas a não suportarem a concorrência dos tecidos ingleses, entrando numa grave crise.

1.1.2. A Sociedade

A sociedade francesa, na época, estava dividida em três partes, conhecidas como Estados:

Primeiro Estado - era o clero francês e estava dividido em alto e baixo. O alto clero era composto por elementos vindos das ricas famílias da nobreza, possuindo toda a sorte de privilégios, inclusive o de não pagar impostos. O baixo clero era o pobre, estando ligado ao povo em geral e não à nobreza, como o primeiro;

Segundo Estado - era a nobreza em geral. Os privilégios eram incontáveis, sendo que o mais importante era a isenção de impostos. Há que se salientar aqui que a nobreza também estava dividida: a nobreza cortesã, que vivia no palácio, e outros setores da nobreza, que viviam na corte, recebendo pensões do Rei, onerando os seus castelos, no campo, as custas do trabalho de seus servos. À

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Terceiro Estado - era constituído de todos aqueles que não pertenciam nem ao Primeiro nem ao Segundo Estado. Afinal, o que era o Terceiro Estado?

Era o setor da sociedade francesa composto pela maioria esmagadora da população, sobre cujos ombros recaia todo o peso de sustentação do reino francês. Esse setor era composto, na sua maioria, pelos camponeses que, com um árduo trabalho, forneciam os alimentos para toda a França, além de terem de pagar pesadíssimos impostos.

Finalmente, os membros mais destacados do Terceiro Estado, quanto a liderança: a burguesia. Esta se dividia em pequenos burgueses (pequenos comerciantes, artesãos), uma camada média (composta de lojistas, profissionais liberais) e a alta burguesia (grandes banqueiros, comércio exterior).

O Terceiro Estado será aquele que, pelo peso das responsabilidades, se levantará contra a opressão do Estado Absolutista. Os camponeses terão papel importante, os pobres das cidades também, mas a liderança e os frutos dessa revolução caberão a uma fração do Terceiro Estado: a burguesia.

A política na França pré-revolucionária mostrava os sinais da decadência acumulada dos outros Reis absolutos, principalmente um déficit crônico no reinado Luís XVI, que subiu ao trono em 1774.

As críticas ao regime aumentavam dia-a-dia. Os intelectuais, baseando-se nas teoria dos iluministas, não poupavam seus escritos para criticar desesperadamente o regime.

1.1.3. Os Antecedentes da Revolução

O Rei, diante dessa situação, tenta alguns expediantes para resolver a questão. Convidou um iluminista de nome Neckerque começou a trabalhar imediatamente, pois queria ver sanado o mal do país. Necker, um homem de confiança do Rei, que pensa numa solução para a crise, era preciso que todos pagassem impostos na França.

Necker faz seu primeiro ato: manda publicar as contas do Estado, onde fica claro o enorme Déficit de 126 milhões de libras Em seguida, com a anuência do Rei e da nobreza, convoca os Estados Gerais, única solução encontrada para discutir uma saída.

Os Estados Gerais, uma assembléia de todos os Estados que desde 1614 não eram convocados, deveriam discutir mais ou menos abertamente uma solução para a crise financeira e achar uma saída para que todos pagassem impostos iguais. Todavia, o Terceiro Estado não pensava só nisso, mas também em aproveitar a oportunidade e fazer exigências de caráter político.

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A notícia da convocação dos Estados Gerais caiu como uma bomba sobre a França. Da noite para o dia todo o país foi invadido por milhares de jornais, panfletos e cartazes. Os bares e os cafés tornaram-se centro de agitação, como o famoso Café Procope. A nobreza e o Rei viam isso tudo apavorados: "Já se propõe a supressão dos direitos feudais... Vossa Majestade estaria acaso determinado a sacrificar e humilhar sua brava e antiga ... nobreza ?". Este era um desesperado apelo da nobreza ao Rei.

Como reagia o Terceiro Estado? Organizava-se ainda mais e queria as transformações imediatamente. Os Estados Gerais começaram sua reunião de abertura no dia 5 de maio de 1789, sendo que dai em diante foi impossível deter a revolução.

1.1.4. A Revolução estourou: as jornadas

O Rei abre a sessão dos Estados Gerais fazendo um discurso de advertência contra as pretensões políticas: "Estamos aqui para tratar de problemas financeiros e não para tratar de política".

O Terceiro Estado reagiu prontamente, exigindo a qualquer custo que as reuniões fossem conjuntas e não separadamente por Estados. Diante da negação, o Terceiro Estado proclama-se em Assembléia Geral Nacional. O Rei, desesperado diante do atrevimento dos representantes populares, manda fechar a saia de reuniões. Mas o Terceiro Estado não se da por vencido e seus deputados se dirigem para um salão que a nobreza utilizava para jogos. Lá mesmo fizeram uma reunião, onde ficou estabelecido que permaneceriam reunidos até que a França tivesse uma Constituição. Esse ato ficou conhecido com o nome de O Juramento do Jogo de Pela.

No dia 9 de julho de 1789, reúne-se uma Assembléia Nacional Constituinte, incumbida de elaborar uma Constituição para a França. Isso significava que o Rei deixaria de ser o senhor absoluto do reino.

A burguesia francesa, por sua vez, apelou para o povo. No dia 14 de julho de 1789, toda a população parisiense avança, num movimento nunca visto, para a Bastilha, a prisão política da época, onde o responsável pela prisão foi preso e enforcado.

O momento agora e dos camponeses, que percebem a fraqueza da nobreza e invadem os castelos, executando famílias inteiras de nobres numa espécie de vingança, de uma raiva acumulada durante séculos. Avançam sobre a propriedade feudal e exigem reformas. A burguesia, na Assembléia, temerosa de que as exigências chegassem também às suas propriedades, propõe que se extingam os direitos feudais como única saída para conter o furor revolucionário dos camponeses. A 4 de agosto de 1789, extingue-se aquilo que por muitos séculos significou a opressão sobre os camponeses.

A burguesia, preocupada em estabelecer as bases teóricas de sua revolução, fez aprovar, no dia 26 de agosto do mesmo ano, um documento que se tornou mundialmente famoso: A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

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1.2. Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão de 1798

Os representantes do povo francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder legislativo e do Poder executivo, a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.

Por conseqüência, a ASSEMBLÉIIA NACIONAL reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:

Artigo 1º- Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum;

Artigo 2º- O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade. a propriedade, a segurança e a resistência à opressão;

Artigo 3º- O princípio de toda a soberania reside essencialmente em a Nação. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela não emane expressamente;

Artigo 4º- A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei;

Artigo 5º- A Lei não proíbe senão as ações prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene;

Artigo 6º- A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer se destine a proteger quer a punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade, e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos;

Artigo 7º- Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela Lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser castigados; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da Lei deve obedecer imediatamente, senão torna-se culpado de resistência;

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Artigo 8º- A Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada;

Artigo 9º- Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei.;

Artigo 10º- Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, contando que a manifestação delas não perturbe a ordem pública estabelecida pela Lei;

Artigo 11º- A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei;

Artigo 12º- A garantia dos direitos do Homem e do Cidadão carece de uma força pública; esta força é, pois, instituída para vantagem de todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada;

Artigo 13º- Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum, que deve ser repartida entre os cidadãos de acordo com as suas possibilidades;

Artigo 14º- Todos os cidadãos têm o direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, a necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração;

Artigo 15º- A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua administração;

Artigo 16º- Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição;

Artigo 17º- Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indeminização.

1.3. A Revolução Francesa e os Direitos do Homem

Segundo Kant[1], a Revolução Francesa representou a primeira vez que houve exercício do direito do povo de decidir seu próprio destino (direito de liberdade em um de seus sentidos), ou seja, “o direito que tem um povo de não ser impedido por outras forças de dar a si mesmo uma Constituição Civil que ele crê boa”[2]. Esse direito segundo Kant revelara-se pela primeira vez na Revolução Francesa. E esse era o direito de Liberdade num dos dois sentidos principais do termo, ou seja, como autodeterminação, como autonomia como capacidade de legislar para si mesmo, como a antítese de toda a forma de poder paterno ou patriarcal, que caracterizava os governos despóticos tradicionais. Kant fora fortemente influenciado pelos ideais da Revolução, o que se evidencia pelo seu conceito de liberdade: “A liberdade jurídica é a faculdade de só obedecer a leis externas às quais pude dar o meu assentimento”[3]; claramente inspirado em Rousseau: “liberdade é a obediência à lei que nós mesmos prescrevemos”[4].

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Hegel, por sua vez, considerou a Revolução como uma “esplêndida aurora”, “como se então tivesse finalmente ocorrido a verdadeira conciliação do divino com o mundo”[5]. Convicto de que com a Revolução iniciou-se uma política de afirmação dos direitos naturais (liberdade e igualdade).

Norberto Bobbio[6] cita que a primeira defesa que se conhece da Declaração está na obra de Thomas Paine[7], Os direitos do homem, de 1791. Paine justifica os direitos do homem através da religião, isto é, seria preciso “transcender a história e chegar ao momento da origem, quando o homem surgiu das mãos do criador”[8]. Dessa forma, antes de ter direitos civis, o homem teria direitos naturais, e estes seriam fundamento daqueles. Paine participou ativamente da revolução norte-americana, e acreditava ser esta o início do desenvolvimento da francesa; isto porque idênticos eram os princípios inspiradores, ambas se fundavam no direito natural, e alcançaram um governo fundado no contrato social. Neste ponto, Bobbio parte para comparações entre as duas revoluções: a Declaração Francesa se ocupou em estabelecer um Estado liberal (e não garantir a felicidade dos indivíduos), e foi mais individualista que a norte-americana. Ambas as Declarações consideram os homens de forma singular, cada qual com seu direito, sendo que este é anterior à sociedade. Mas a Declaração Francesa invoca a “utilidade comum” para justificar “distinções sociais”, afirmando exclusivamente o direito dos indivíduos; enquanto que a norte-americana ressalta que a finalidade da associação política é alcançar o bem comum (common benefit). Ainda, saber qual das revoluções foi ética e politicamente superior há muitas controvérsias. Mas Bobbio afirma que foi a Declaração Francesa que constituiu um ponto de referência em defesa, ou não, da liberdade.

A base da doutrina da Declaração Francesa está nos seus três artigos inaugurais:

a) Condição natural dos indivíduos precede a sociedade civil, idéia esta que foi mantida no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Fala da igualdade de direitos;

b) A finalidade da sociedade política vem depois do estado de natureza; e o objetivo das associações políticas seria o de garantir os direitos naturais: liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, dentre outros. Este artigo especifica quais os direitos de serão iguais;

c) O princípio de legitimidade do poder cabe à nação.

A Declaração, no entanto, foi acusada de ser demasiadamente abstrata e de ser excessivamente ligada a uma classe particular (de Marx e da esquerda em geral).

1.4. Kant e a Revolução Francesa

Atualmente, a responsabilidade do ser humano assume dois significados: o primeiro de levar em conta as conseqüências do próprio ato e; o segundo, responder pelas suas ações ante seu próximo. Interessante que a história sempre foi ambígua, apesar das aparências,

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já que deu sempre respostas diversas conforme quem a interrogava e as circunstâncias em que o fazia. Mas hoje essa ambigüidade, é maior do que nunca.

“O mundo dos homens dirigi-se para a paz universal, como Kant havia previsto, ou para a guerra exterminadora, para qual foi cunhada”[9]

Interessante, que Norberto Bobbio enfatizou a idéia de um “sujeito universal”, ou seja, a atribuição de poderes próprios a um sujeito, diferente do homem singular, o qual permitiria apenas uma reconstrução conjetural, o que para Kant, seria apenas uma idéia ilusória.

Kant difere a história conjetural da história profética (ou filosófica), sendo esta a única capaz de evitar a guerra, em harmonia com os direitos naturais do homem singular, de modo que aqueles que obedecem à lei, poderão sobre ela legislar. Ressalta, ainda, que se faz necessário uma autodisciplina do conflito para se alcançar a Constituição de um ordenamento civil universal, ou seja, uma cosmópolis, em que cada homem é cidadão do mundo, e não somente de um Estado particular.

Para o filósofo, além das relações entre Estados e Estados, deve haver uma relação entre cada Estado particular com os cidadãos de outros Estados, surgindo uma reciprocidade entre o Direito de visita do cidadão estrangeiro e o dever de hospitalidade do Estado visitado.

Concluindo, diz Kant que o direito Cosmopolita seria necessário para o surgimento de uma paz perpétua e criação de um direito público geral.

“(...) o direito Cosmopolita para Kant, é ‘o necessário coroamento do código não escrito, tanto do direito público interno como do direito internacional, para a fundação de um direito público geral e, portanto, para a realização da paz perpétua’”[10]

Para Norberto Bobbio, o único sinal de um seguro movimento histórico seria um reconhecimento e uma garantia, cada vez maior, dos direitos do homem.

2. LIBERDADE NO PENSAMENTO DE KANT

2.1. O Conceito de Liberdade em Kant

Segundo Kant, o homem está submetido às leis da natureza (determinismo) e, ao mesmo tempo, às leis da liberdade (moral). Isto significa dizer que o homem é um ser fadado ao determinismo da natureza e ao mesmo tempo livre enquanto ser pensante[11]; livre para criar suas próprias regras. Assim, o homem é capaz de perceber que ele próprio é a causa dos fenômenos que existem no mundo, ou seja, compreende que a razão humana é

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livre e determinante e, portanto, possui algo que o difere dos animais, denominada de liberdade transcendental[12]. É justamente no âmbito da vontade[13] ou da razão[14] que podemos perceber a liberdade, ou seja, a liberdade prática ou independência da vontade pode ser demonstrada quando a razão nos fornece a “regra de conduta”[15], quando entra em jogo o que devemos ou não fazer. É exatamente nessa experiência interior, exclusivamente pessoal que conhecemos a idéia de liberdade transcendental como um tipo de causalidade da razão capaz de determinar a vontade a agir com ou sem as influências de impulsos sensíveis (interesses). Nesse sentido, Kant concebeu a liberdade transcendental como o livre-arbítrio e, portanto, tudo o que se relaciona com essa dimensão do livre-arbítrio “é chamado prático”[16]. Resulta dessa afirmação, que devemos entender por prático, o que diz respeito à moral e ao direito.

Então, a liberdade prática que significa liberdade da vontade, é uma variante da liberdade transcendental. Nesse ponto importa observar que Kant se filiou a uma tradição filosófica que estabeleceu a separação entre uma faculdade superior, a razão, e uma faculdade sensitiva, as inclinações. Sendo assim, a independência da vontade de motivos empíricos está estritamente relacionada com a fundamentação da moralidade kantiana, isso porque a moralidade implica o conceito de autonomia, que é conseqüência da existência de uma vontade livre de motivos sensíveis ou direções estranhas.

Kant precisou de uma liberdade transcendental relacionada à dimensão racional do homem para construir a sua teoria moral. Seu argumento encontra fundamento na idéia segundo a qual sempre que nos pensamos como livres reconhecemos a consciência da possibilidade de autonomia. Por conseguinte, como ser racional, o homem é dotado de uma vontade livre capaz da elevada função de permitir a moralidade, seria contraditório que esse mesmo homem permanecesse sob tutela.

E, assim, associada à idéia de liberdade está a de autonomia, que, por um lado, é entendida como liberdade em relação a direções estranhas e, por outro, como a liberdade da faculdade da vontade capaz de autolegislar.

Interessante, que a liberdade tem de pressupor-se como a propriedade da vontade de todos os seres racionais. A todo ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente a idéia de liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir[17].

A partir da lei moral nos consideramos livres, isto é, autolegisladores, para depois concluirmos, a partir da liberdade, que estamos submetidos à lei moral. É um círculo aparente que advém do dualismo kantiano: o sujeito como inteligência pertence ao mundo numenal, por outro lado, como ser sensível, pertence à esfera fenomenal. O homem enquanto ser puramente racional considera-se livre, para daí concluir que, enquanto ser fenomenal, está submetido à lei moral. Um ser racional agiria sempre conforme a razão, mas o homem que pertence ao mundo sensível e ao mundo inteligível tem que considerar-se como submetido à lei prescritiva da razão. A razão contém a idéia de liberdade e esta contém a lei do mundo inteligível. Logo, todo ser racional tem que conhecer as leis do mundo inteligível como imperativos e as ações deles decorrentes como deveres[18].

Diante disto, indaga-se:

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“Em que situação a ação humana (e a Razão) pode ser considerada livre? Se a ação humana é aquela que não sofre influência de uma força externa, então, em um primeiro momento, liberdade pode ser concebida como não submissão. Ser livre é não se submeter a nada de externo a nós. Esse é o conceito negativo ou prático de liberdade apresentado por Kant na Crítica da Razão Prática, e significa basicamente independência, ou seja, não-necessidade na orientação da ação”[19]

O Direito e a lei, que se exprime no dever ser, exigem uma causa originária que lhe dê fundamento, esta causa é a liberdade.

“A liberdade não é agir independentemente do dever, mas, ao contrário, agir conforme e, sobretudo por dever. Liberdade não é o agir sem normas, ao contrário, liberdade implica a disposição de seguir as normas que o próprio sujeito moral se representa, tendo em vista apenas o respeito que devemos a elas”[20]

Kant, a partir destas colocações faz da liberdade o fundamento da moral e do direito. O direito surge exatamente no momento em que as várias liberdades individuais precisam ser harmonizadas e possibilitadas no contexto da sociedade. Por isso Kant vai definir o direito como o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de alguém pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal de liberdade[21].

Para que a liberdade possa ser o termo de conexão, é preciso que ela possa ser atribuída a todos os seres racionais, já que a moralidade tem que valer como lei universal. A liberdade tem de ser pressuposta como propriedade da vontade de todo ser racional, pois do contrário ele não poderia, de modo algum, pensar-se com agente[22].

Conseqüentemente, o princípio universal do direito é: “Age externamente de tal modo que o uso livre de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal”. A razão vê a necessidade de impor regras à conduta humana, que se expressa pelo imperativo categórico. Eles mandam uma ação objetivamente, necessária por si mesma, sem relação de finalidade: uma ação boa em si mesma[23]. O imperativo categórico dá a forma de legislação moral: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. Para que uma máxima se converta numa lei moral, ela seja posta à prova pelo imperativo categórico, sobretudo em sua fórmula de universalização, expressa na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que diz: “Age apenas segundo a máxima, a qual tu possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma lei universal”. Isso significa que a representação de um dever só significa também a existência de um dever legítimo se este puder ser atribuído universalmente a qualquer ser racional, o que implica que a existência de um dever não pode se contradizer”[24] .

A liberdade se subdivide em interna (moral) e externa (jurídica). A interna gera a obrigação moral, a exteriorizada gera a obrigação jurídica, garantida por um sistema de coação. O fundamento do Direito é a liberdade entendida como autonomia da razão. A liberdade fundamenta a existência de leis internas, que criam deveres internos, na forma de imperativos categóricos. E é esta mesma liberdade interna que fundamenta a

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existência de leis exteriores, que tornam possível o convívio das liberdades individuais. O direito é, portanto, a liberdade exteriorizada. A moral não é suficiente e a mesma liberdade que manda o homem agir conforme o dever interno e pelo dever interno, manda que sejam criadas leis externas para garanti-las[25].

O direito se fundamenta na consciência da obrigação de cada um segundo uma lei, apoiando-se numa coação exterior que lhe dá eficácia, as que pode coexistir com a liberdade de cada um segundo leis universais[26].

Quem age moralmente, age por dever, pois este dever advém da razão, lei universal. Agir por dever é agir racionalmente e exercitar a verdadeira liberdade, livre das inclinações externas do mundo sensível. A liberdade está em agir sem inclinações ou coações externas. Ela coexiste com a coação do Direito na medida em que o Direito representa a própria razão, e seu descumprimento significa agir irracionalmente, sem se importar com os danos que possam ser causados aos demais na sociedade. A coação é legítima na medida em que busca impedir a injustiça.

O conceito de liberdade como autonomia de participação do cidadão na elaboração da lei que vai reger a sua conduta é uma das grandes contribuições de Rousseau e Kant para a compreensão do Estado democrático. A palavra liberdade pode ser tomada como sinônimo de autonomia, como fazia Rousseau, que em passagem célere de sua obra O Contrato Social fornece a intuição essencial da filosofia prática kantiana. Diz Rousseau que, no Estado Civil, que sucede o Estado Natural, acrescenta-se aos homens (como cidadãos) a liberdade moral, única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estitui a si mesma é liberdade.

O papel do Estado está associado à realização do próprio homem como ser que se autodetermina.

“Como a etimologia da palavra indica, uma sociedade livre e autônoma, ou ainda um ser autônomo, é aquele que é autor, de suas próprias normas. Portanto, o ser livre é aquele que age autonomamente, ou seja, segundo as normas morais que sua Razão se lhe representa. A Razão é autônoma uma vez que é autora de suas próprias leis morais, ou seja, uma vez que representa seu próprio dever. Esse é o sentido positivo ou transcendental do termo liberdade que significa, antes de mais nada, ‘a legislação própria da Razão pura’”[27]

2.2. As Leis da Liberdade: as Leis Morais e Leis Jurídicas

Segundo Kant, o homem vive na tensão entre os impulsos, inclinações sensíveis e a razão, porque encontra, além das leis da natureza, as da liberdade denominadas de leis jurídicas e leis morais. Leis que decorrem de dimensão transcendental e que nos revela um status privilegiado, somos a causa dos fenômenos no mundo, ou como dizia Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”. Neste diapasão, a legislação jurídica diz respeito às ações sob o ponto de vista externo, destacando a mera

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conformidade com o que prescreve a lei; o que configura o sentido de legalidade. As leis éticas ou morais, ao contrário, vinculam-se às determinações das ações e revelam a moralidade. Assim, no caso da legislação jurídica temos o sentido de liberdade como exercício do arbítrio e no caso da legislação ética, a liberdade apresenta-se nos exercícios externo quanto interno do arbítrio.

Na Metafísica dos Costumes, Kant concentra seus esforços na clássica distinção entre a legislação moral e a jurídica, assinalando para o problema inicial da filosofia do direito: a distinção entre as duas esferas. Nesse sentido, o que efetivamente distingue as duas legislações não é tão somente o fato de uma legislação ser interna e a outra externa, mas em particular a idéia do dever como impulso. Portanto, para entendermos melhor essa idéia, temos que considerar que toda legislação, como pondera Kant, possui dois elementos constitutivos, a saber: o elemento objetivo que significa a representação da lei como necessária à ação e que, portanto converte a ação em dever, e um elemento subjetivo que liga a representação da lei ao fundamento de determinação do arbítrio para realização de tal ação. No primeiro momento, temos o que Kant denominou de conhecimento teórico da possibilidade da regra prática e, no segundo, o dever como impulso.

“A legislação que erige uma ação como dever, e o dever, ao mesmo tempo como impulso, é ética. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta última condição na lei e que admite também um motivo diferente da idéia do próprio dever é jurídica. No que diz respeito à esta última, vemos facilmente que estes motivos, diferentes da idéia do dever, têm que extrair-se de fundamentos patológicos da determinação do arbítrio, das inclinações e aversões e, dentre estas, das últimas porque tem que ser uma legislação que obrigue, não um chamado atraente”[28]

A implicação mais imediata desta distinção é o fato de que os deveres característicos da legislação jurídica são externos, pois não exigem a idéia de um dever interior. Importa ressaltar com certa cautela que é preciso não esquecer que a legislação ética, por ser mais ampla, envolve também a legislação jurídica, o que justifica a afirmação de Kant a respeito da legislação ética como relacionada ao dever em geral:

“A legislação ética converte também em deveres ações internas, porém não excluindo as externas, senão que afeta a tudo o que é dever em geral. Mas justamente por isso, porque a legislação ética inclui também em sua lei o impulso interno da ação (a idéia do dever), cuja determinação não pode transpor de modo algum em uma legislação externa, a legislação ética não pode ser externa (ainda que de uma vontade divina), embora admita como impulsos em sua legislação deveres que desprendem de outra legislação, ou seja, de uma legislação externa, desde que sejam deveres. Disto se infere que todos os deveres, simplesmente por serem deveres, pertencem à ética; mas nem por isso sua legislação está sempre contida na ética”[29]

Assim, teremos a legalidade se houver uma simples conformidade externa com a lei, “a coincidência de uma ação com a lei do dever”[30] e a moralidade quando o dever afigurar-se como impulso da ação, ou seja, quando “a máxima da ação [coincidir] com

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a lei”[31]. Há, contudo deveres interiores que não são éticos e deveres exteriores que não são jurídicos; há deveres éticos diretos (moralidade) e deveres éticos indiretos (legalidade). Isso implica dizer que todos os deveres são também deveres éticos; todo dever é considerado dever de virtude[32].

Os atributos de interno e externo apenas sinalizam para a forma de adesão, observando ou não o animus com o qual é cumprida uma ação. Nesse caso a liberdade se torna o ponto chave ou o elo entre as duas esferas, se constituindo no conceito limite capaz de conferir sentido e direção à conduta humana na esfera da vida em sociedade[33]. Assim as normas jurídica e ética derivam da razão humana e legisladora.

A partir desta concepção podemos afirmar que o direito identifica-se com a idéia de autonomia. Para Kant, o conceito de direito coincide com o conceito de autonomia, pois “A legislação própria da razão prática é a liberdade em sentido positivo, autonomia”. Essa relação entre direito e autonomia exclui qualquer possibilidade de violência, menoridade e os mais variados tipos de desrespeitos para com certas regras de convivência mútua. E, portanto conceito de liberdade vincula-se necessariamente à idéia de uma sociedade, daí o sentido de limitação recíproca, pois não podemos esperar que todos tenham motivação ética para o cumprimento das leis. As leis morais e jurídicas são leis da liberdade que ordenam na medida em que somos livres, portanto autônomos.

2.3. A Liberdade Interna e Externa

Depois de apreciar essa distinção entre legislação interna e externa, Kant relaciona os atributos interno e externo ao conceito de liberdade, para esclarecer e justificar o seu conceito de direito. Surge, assim, outro critério de distinção que se baseia no sentido de liberdade interna e liberdade externa cuja esfera da ética vincula-se à liberdade interna e a esfera jurídica à liberdade externa.

O primeiro tipo de liberdade refere-se à faculdade de agir segundo leis que a nossa própria razão nos fornece; o segundo, a jurídica, remete-nos à faculdade de agir no mundo exterior, mas limitada pela mesma liberdade presente nas outras pessoas. Então, o âmbito da moralidade diz respeito à liberdade interna e o âmbito da legalidade à liberdade externa.

Na relação entre liberdade e dever não podemos vincular estritamente a liberdade interna com os deveres para consigo próprio e a liberdade externa com deveres para com o próximo. Na verdade, somos responsáveis por todas as nossas ações, primeiramente diante de nossa própria consciência e depois, em alguns casos, diante do olhar dos outros. Ressalte-se que no âmbito da ética, somos responsáveis frente a nós mesmos e na esfera do direito, somos responsáveis frente à coletividade. Assim, podemos pensar a liberdade interna atuando nos dois momentos distintos, ou seja, no âmbito da ética e na esfera jurídica, embora a relação jurídica tenha como característica fundamental a intersubjetividade. Tal relação exige a presença de dois seres humanos para a limitação recíproca da própria liberdade externa.

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Por isso no âmbito da legislação externa, as leis obrigatórias podem ser de dois tipos, a saber: as naturais e as positivas. As leis externas naturais são aquelas cuja obrigação é reconhecida a priori pela razão, ainda que não haja nenhuma legislação jurídica a seu respeito. As leis externas positivas são aquelas cuja obrigação depende necessariamente de uma legislação externa efetiva. É neste ponto que Kant, como legítimo representante do pensamento jusnaturalista, entende que as leis positivas encontram seu fundamento nas leis naturais, o que equivale dizer que o direito se fundamenta na moral.

A lei natural fundamenta a autoridade do legislador, ou seja, confere a faculdade de poder obrigar outrem mediante seu arbítrio[34]. Neste momento, reforça a idéia do seu imperativo categórico no sentido de que prescreve a todos a necessidade de se pôr no papel de um suposto legislador para observar a possibilidade de universalização das máximas do agir. “Por conseguinte - afirma Kant, deves considerar tuas ações primeiro desde o teu princípio subjetivo: todavia podes reconhecer se esse princípio pode ser também objetivamente válido”[35]. Esse exercício nos permite conhecer nosso arbítrio e conseqüentemente nossa liberdade.

Kant estabeleceu a relação entre liberdade e arbítrio quando destacou a possibilidade da liberdade ser percebida no sentido de autodeterminação pela razão. O arbítrio determinado diretamente pela razão pura é o livre-arbítrio, o que implica dizer que o homem é livre por ser racional. É neste horizonte que nosso autor afirma ser a liberdade o único direito inato. Embora reconheça a existência de outros direitos inatos em À Paz Perpétua, na Metafísica dos Costumes ressalta que só há um único direito inato que é a liberdade no sentido de independência do arbítrio de outrem quando assinala que:

“A liberdade (independência do arbítrio necessitante de todo outro), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todo outro segundo uma lei universal, é o único direito originário, pertencente a todo homem em virtude de sua humanidade”[36]

Nesse sentido, complementando o conceito acima exposto, Kant assevera na Fundamentação da metafísica dos costumes que “a liberdade tem de pressupor-se como propriedade da vontade de todos os seres racionais”[37]. Conclui-se que o conceito de igualdade decorre desta idéia de liberdade como direito inato, pois todos são livres e, portanto igualmente entre si. A igualdade é “a independência que consiste em não ser obrigado por outros senão àquilo a que também reciprocamente podemos obrigar-lhes”[38]. Na verdade, a idéia de igualdade, a qualidade do homem como sui iuris, o sentido de ser íntegro e o conteúdo da formulação do imperativo categórico já se encontram no princípio da liberdade originária o seu elemento constitutivo.

2.4. A Lei Jurídica e a Sociedade Civil

No pensamento kantiano a lei jurídica não é algo inato, mas surge do acordo entre indivíduos autônomos para justamente assegurar a realização da liberdade em sociedade. Este conceito torna-se um conceito limite que direciona a conduta dos

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indivíduos para uma vida em comum. Essa circunstância nos leva a pensar que este autor nega a origem do direito como derivado da propriedade, pois o que seria a propriedade nos primórdios da sociedade senão o reconhecimento de uma posse arbitrária? O conceito de posse em Kant funda-se sobre a inata posse comum da superfície da Terra e sobre a vontade universal. Segundo afirma, só podemos nos considerar possuidores de algo quando há o reconhecimento dessa posse de forma não diretamente relacionada com a detenção física.

Assim, o direito consiste em limitar as ações ressaltando que a minha liberdade de me apoderar das coisas encontra seu limite na liberdade do outro em agir da mesma forma. E que desta forma direito se afigura como uma exigência da razão que apresenta aos homens um procedimento para solucionar conflitos.

Foi dessa forma que Kant justificou o ingresso no estado de direito: a partir do conceito de racionalidade. Trata-se de uma razão prático-jurídica e não pragmática, ou seja, uma razão direcionada a interesses particulares independentes de qualquer moralidade. A racionalidade, ao contrário, permite o reconhecimento recíproco e a unificação das vontades, logo Kant sublinha, mais uma vez, que não é a experiência da violência como pensava Hobbes que conduz o homem a uma existência coletiva, mas um princípio da razão. É a razão que nos impulsiona a abandonar o estado de natureza, embora seja concebido como estado de direito privado em favor de um estado de direito, no qual não há uma razão privada, mas um interesse comum e um tribunal capaz de assegurar e reconhecer os direitos de todos. O estado de natureza se configura como tal por não apresentar um poder político centralizado.

Isto posto, o Estado para o autor deve reconhecer em cada um a habilidade de ser seu próprio senhor, não permitindo qualquer privilégio ou interesse especial protegido. A igualdade formal que não é igualdade de posses, mas de oportunidades, é uma conseqüência necessária do único direito inato: a liberdade. Compreende-se, dessa forma, o típico egoísmo humano, o Estado pode e deve usar a coerção mediante leis para senão eliminar, pelo menos controlar os abusos, realizando por assim dizer, por meio da legislação civil, os princípios consagrados do direito natural, fundamento racional à legislação positiva.

Segundo Norberto Bobbio (1909-2004), com a doutrina do contrato e do direito natural, o Estado assume a figura de associação voluntária com vistas a defender alguns interesses[39]. Kant partiu em defesa desse modelo de Estado, cuja meta seria assegurar a liberdade de cada um com base em uma lei universal racional, condenando o Estado eudemológico que pretendia tomar para si a tarefa de tornar seus súditos felizes, já que a verdadeira função do Estado não se confunde com esse intento, mas deve ser tão somente salvaguardar a liberdade que permita a cada um buscar a sua própria felicidade. Mais uma vez aparece aqui a prioridade das questões de justiça sobre as questões de bem. Ele acreditava que havia uma tendência natural da história humana para uma ordem jurídica universal, um ordenamento jurídico cosmopolita.

Na sua idéia do homem como cidadão do mundo ou cidadania mundial, presente no texto “Idéia de uma História universal sob o ponto de vista Cosmopolita” e que reaparece no opúsculo A Paz Perpétua e na Metafísica dos Costumes como Ius Cosmopoliticum, implica uma espécie nova de direito público em geral, distinto do

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direito privado que existia no Estado de Natureza, do direito público interno do Estado Civil e do direito público externo da ordem internacional.

2.5. A Doutrina do Direito

Kant define a doutrina do direito como um conjunto de leis que se apresentam como leis externas ou exteriores, que constituem o que se chama direito positivo, cujo interessado é o jurisperito (Iurisperitus), aquele que conhece as leis externas em sua aplicação aos casos que se apresentam na experiência, estudo denominado pelo nome técnico de jurisprudência (Iurisprudentia). Além da doutrina do direito e da jurisprudência encontramos a Ciência do Direito, que corresponde ao conhecimento sistemático da doutrina do direito natural (Ius naturae).

Para compreendermos o direito como idéia da justiça é preciso abandonar o campo empírico e dirigir-se à razão pura. Kant entende que o conceito de direito diz respeito a uma relação externa entre pessoas cujas ações implicam-se mutuamente. Não se trata de uma relação entre um arbítrio e um desejo, mas entre arbítrios, e nessa relação recíproca não interessa muito saber o fim a que se propõem, mas sim a forma da relação; em última análise, trata-se de conciliar a liberdade de um com a liberdade do outro, isto é, a liberdade em sociedade.

Assim, Kant formula pela primeira vez o seu conceito de direito como “o conjunto da condições, por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro segundo uma lei universal da liberdade”[40]. O princípio universal do direito expressa a necessidade de coexistência dos arbítrios segundo uma lei universal. Uma lei universal do direito que determina que devo agir externamente de forma tal que preciso sempre respeitar a liberdade do arbítrio do outro como uma obrigação que me determina a razão, isto, é, “age exteriormente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal”[41].

Desdobrando o conceito de direito, temos que levar em conta os seus três elementos constitutivos. O primeiro diz respeito apenas às relações externas, ou seja, é um direito intersubjetivo; o segundo estabelece a relação entre arbítrios, pois a intersubjetividade pode ocasionar lesões nos outros; o terceiro não se preocupa com a matéria do arbítrio, mas tão somente com a forma, pois o direito não concerne aos objetos particulares. O direito, aparentemente, mais do que a moral, está relacionado à coerção, pois está diretamente ligado a esse sentido de obrigar alguém a agir de uma forma e não de outra. O termo coerção pode ser entendido como a possibilidade de regular as relações humanas a partir de leis externamente válidas. Quando usamos a expressão coerção legal limitamos esse sentido para um tipo específico de controle baseado em leis positivas.

Num estágio pré-positivo, há a possibilidade de conseguir provocar no outro certa conduta, mas sem garantias de que tal fato aconteça efetivamente. A coerção em que as leis positivas se vinculam e que podemos denominar de “coerção recíproca universal implica que se desista de procurar convencer os outros do que é ou não justo, e se fique

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limitado a regular a relação entre arbítrios, isto é, sem nenhum componente ético ou intencional”[42]. À primeira vista, pode parecer contraditório relacionar o direito com a liberdade mediada pela coerção. Kant postula uma relação intrínseca entre direito e coerção. Assim, explica como funciona tal coerção capaz de salvaguardar a liberdade, lembrando que:

“A resistência que é oposta àquilo que impede um efeito serve como auxiliar para este efeito, e concorda com o mesmo. Tudo aquilo que é injusto é um impedimento para a liberdade enquanto esta está submetida a leis universais e a coerção é um obstáculo ou uma resistência à liberdade. Quando certo uso da própria liberdade é um impedimento para a liberdade segundo leis universais (ou seja, é injusto), então a coerção oposta a tal uso, enquanto serve para impedir um obstáculo posto à liberdade, está de acordo com a própria liberdade, segundo leis universais, ou seja, é justo”[43]

Esta passagem indica que há certo uso da liberdade que se configura como obstáculo a outro tipo de liberdade regrada e que a coerção, nesse sentido, é indispensável ao direito[44]. Com isso, exercer a liberdade a qualquer custo ou o mal praticado por alguém fere a liberdade de outrem. Este modo de agir se afigura como uma forma deturpada de liberdade no sentido da capacidade do homem como ser racional. A liberdade exterior compatibilizada com a liberdade dos demais é a forma universalizada da possibilidade de convivência humana, ou seja, a coexistência pública dos homens, a criação de um espaço público sem constrangimento injusto. Porém, se a razão implica liberdade, se a autodeterminação é algo indisponível e envolve necessariamente um espaço público, fica excluída qualquer possibilidade de uma liberdade irrestrita ou irracional porque iria contradizer essa relação que fundamenta a moral e o direito e que ademais confere status privilegiado ao homem em relação à natureza. Interessante que esse vínculo da liberdade com a lei foi herdado por Kant do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, que entendia a liberdade como a obediência à lei que o homem prescreve a si mesmo. Ora, o conceito de liberdade é comum à doutrina do direito (relacionada à condição formal da liberdade externa) e à doutrina da virtude (relacionada à condição formal da liberdade interna). A ética e o direito afirmam, portanto a relação da liberdade com a lei.

No momento o que importa é perceber que ao pensarmos o direito pensamos também a liberdade na idéia do arbítrio de todos unificados no conceito de vontade universal legisladora. E a justiça consiste exatamente no respeito à vontade universal.

A idéia de justiça liga-se ao sentido de um estado jurídico, ou seja, aquela relação dos homens entre si que contém as condições sob as quais unicamente cada um pode torna-se partícipe de seu direito. E o princípio formal de sua possibilidade passa a ser considerado a partir da idéia de uma vontade universalmente legisladora. Isto se chama justiça pública. Dessa forma surge o direito público da necessidade de coexistência inevitável, a partir de um ordenamento instituído mediante a publicidade de suas leis para que todos possam usufruir seus direitos, isto é, uma Constituição[45].

A relação da Constituição, que consiste na vontade unificada com o sentido de Estado civil, somente é pensável associada ao conceito de autonomia, uma vez que falar em direitos exige a existência de um “a priori originário”, a liberdade, o que, por sua vez,

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vincula Kant à concepção liberal, justificando sua definição do direito a partir do conceito de liberdade. Interessante que Kant na sua obra A Metafísica dos Costumes formulou uma teoria da justiça como liberdade e que muito pode ter influenciado na elaboração dos fundamentos teóricos do Estado Liberal[46].

3. IGUALDADE NO PENSAMENTO DE KANT

A igualdade, em Kant ,é também fundamento do Direito. Ela legitima a limitação à liberdade, sob a condição de que se limite todos, da mesma forma.

A idéia de igualdade acompanha os momentos em que aparece a idéia de liberdade. O princípio da validade do direito tem como fundamento a liberdade e a igualdade, que compõem ainda a própria estrutura da razão na medida em que é universal e legisladora.

A universalização é condição de existência legítima de um dever e implica em imparcialidade, ou seja, cada ser humano deve considerar-se igual a qualquer outro ser racional em direitos e deveres. O limite da liberdade é necessário, para que se assegure uma liberdade real. Isso reconduz ao imperativo categórico:

“Devemos buscar aquilo que universalmente pode ser reconhecido como direito de todos para fundamentar a limitação da liberdade, que só pode ser,(...), auto-limitação, pois esta limitação surge exatamente para garantir a coexistência de direitos legítimos, que só podem ser os direitos universalizáveis”[47]

A igualdade dos homens se dá pela sua racionalidade. O homem se identifica com a razão e todo ser racional é um fim em si mesmo, pois pode agir com autonomia. Sendo assim, deve-se atribuir o mesmo valor a todo ser humano pelo simples fato de ser racional.

Segundo Kant,

“cada membro desse corpo deve poder chegar a todo o grau de uma condição (que pode advir a um súdito) a que o possam levar o seu talento, a sua atividade e a sua sorte; e é preciso que seus co-súditos não surjam como um obstáculo no seu caminho, em virtude de uma prerrogativa hereditária (...) não pode haver nenhum privilégio inato de um membro do corpo comum, enquanto co-súdito, sobre os outros e ninguém pode transmitir o privilégio do estado que ele possui no interior da comunidade aos seus dependentes”[48]

Neste sentido, a igualdade para Kant é inclusiva pois é estendida a todos os homens pela universalização. Funda-se o conceito inclusivo de igualdade, através da igualdade

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aritmética, onde todo o homem tem o mesmo valor na sociedade, podendo dela participar, influindo na construção da norma que regulará sua vida.

3.1. O Direito à Igualdade e à Liberdade e os Direitos Humanos

A liberdade e a igualdade encontram-se enraizadas na consideração do homem como pessoa. Partindo-se para a conceituação da primeira, pode-se afirmar tratar-se de um estado, enquanto a segunda, remete a uma relação. Tanto a liberdade quanto a igualdade servem de fundamento à democracia e é certo dizer que um regime é mais ou menos democrático pela maior ou menor liberdade que têm os cidadãos e pela maior ou menos igualdade existente entre eles.

Ao tratar desses valores, podemos afirmar que “a igualdade pressupõe a liberdade”, o que não significa dizer que um princípio seja mais importante que o outro. A liberdade vem primeiro, então, com base na simples consideração de que a igualdade sem liberdade é algo que não pode sequer ser reivindicado. Existe, claro está, uma igualdade que precede a liberdade e não tem relação com ela; é a igualdade que existe entre escravos, entre indivíduos que são iguais por nada possuírem ou por nada valerem, ou por ambos, iguais em sua completa sujeição. No entanto, a igualdade dos escravos ou dos súditos escravizados não é uma vitória da igualdade e não tem nada a ver, assim espero, com as igualdades que prezamos. É difícil não reconhecer, então, que a liberdade vem primeiro no sentido de que quem não é livre nem seque tem voz na questão.

Contudo, quando um estado de liberdade abre espaço para a igualdade, o primeiro princípio passa à desvantagem, eis que o apelo de igualdade torna-se mais forte. Interessante, que em primeiro lugar, a idéia de igualdade é mais acessível, pois é possível atribuir a ela um significado mais tangível (mesmo que seja enganoso), ao passo que à liberdade, não. Em segundo lugar, a igualdade resulta na concessão de benefícios tangíveis, benefícios materiais, ao passo que os benefícios da liberdade são, enquanto são desfrutados, intangíveis.

Porém há uma indagação quando a igualdade realiza a liberdade. Pois a fórmula a ser adotada é aquela que concede “oportunidades iguais para se tornar desigual”, pois para aquele que busca a liberdade, há tanta injustiça em impor uniformidade àquilo que é diferente, quanto em aceitar desigualdades hereditárias. Equalizar ‘todos em tudo’ é criar um situação tão saturada de privilégios quanto a que aceita desigualdade em tudo. Seu critério é que é preciso opor-se tanto às igualdades injustificadas quanto às desigualdades injustificadas, e exatamente pela mesma razão.

4. A CIDADANIA NUMA VISÃO KANTIANA

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A origem do Estado para Kant é idéia da razão humana. Diferentemente de Aristóteles, para quem o homem é um animal político por natureza, em Kant o homem é político através do exercício de sua liberdade com a qual cria a sociedade civil.

O ato pelo qual o povo se constitui como Estado é o contrato originário, segundo o qual todos do povo renunciam a sua liberdade exterior, para recobrá-la, em seguida, como membros do povo enquanto Estado.

O Estado é, portanto, um conjunto de homens sob leis jurídicas. Estas leis emanam do legislador, soberano, que representa e ao mesmo tempo se identifica com o próprio povo. Só a vontade unida e concordante de todos, uma vez que decidem o mesmo, cada um sobre todos e todos sobre cada um, através do uso da razão. Só a vontade popular universalmente unida pode ser legisladora[49].

O conceito de cidadão para Kant se compõe de 3 elementos: 1) liberdade legal de não obedecer nenhuma outra lei além daquelas a que tenham dado o seu sufrágio; 2) a igualdade civil que tem por objeto o não reconhecer entre o povo nenhum superior além daquele que tem faculdade moral de obrigar juridicamente da mesma maneira, que por sua vez pode ser obrigado; e 3) o atributo da independência civil que consiste em ser devedor de sua existência e de sua conservação, como membro da república, não ao arbítrio de outro povo, mas sim aos próprios direitos e faculdades[50] Kant retoma a análise destes atributos em outros escritos. A liberdade é assim explicada:

“Ninguém me pode constranger a ser feliz a sua maneira (como ele concebe o bem estar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa, contanto que não cause dano à Liberdade dos outros (isto é, ao direito de outrem) aspirarem a um fim semelhante, e que pode coexistir com a Liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível”[51]

Finalmente, quanto ao atributo da independência, ele analisa que é a capacidade de um membro da sociedade de ser “cidadão, isto é, colegislador”[52].

Kant distingue ainda a cidadania ativa da passiva. A cidadania ativa se relaciona com o direito de organizar o Estado ou formar as leis. Estas jamais poderão contrariar a liberdade e a igualdade, direitos inerentes aos cidadãos. A passagem de cidadão passivo para ativo, se dá pelo exercício da liberdade e da igualdade.

A liberdade é, como já afirmado anteriormente, autonomia de participação do cidadão na elaboração das leis que vão reger suas condutas. A igualdade é o reconhecimento de todos como racionais e participantes do processo de formação da norma.

“Para que uma máxima da Razão seja também uma lei moral é preciso que ela seja universalizável. Isso significa que a máxima deve poder ser reconhecida como legítima por qualquer ser racional, uma vez que o que caracteriza as leis é o fato de elas valerem incondicionalmente em qualquer lugar e para qualquer pessoa”[53]

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Com isto Kant desenvolve um modelo participativo e consolida o homem como fim e não meio. É o marco inicial do desenvolvimento de teorias participativas que tornam o cidadão co-responsável, no Estado, pela elaboração das normas, que passam a ter validade apenas quando admitidas pelos cidadãos, que passam de meros destinatários a elaboradores das leis.

É o despertar do povo, sempre formalmente titular do poder soberano, mas que só no paradigma do Estado Democrático de Direito, passa a efetivamente exercê-lo, tornando-se dono de seu próprio destino.

CONCLUSÃO

Neste novo paradigma de Estado Democrático de Direito, a legitimidade do Estado está cada vez mais próxima do exercício efetivo da cidadania participativa.

Os cidadãos agora, mais que nunca, fazem parte da vontade do Estado, participando da elaboração das normas jurídicas e da execução das decisões políticas.

Neste contexto, os fundamentos da democracia: a liberdade vincula-se ao conteúdo da ordem jurídico-positiva, e o direito só será justo se nela for fundado.

A contribuição de Kant para o desenvolvimento deste modelo participativo é fundamental, na medida em que consolidou o homem como fim em si mesmo e fim do próprio Estado.

Enfim, acentuando e definindo a liberdade como valor máximo da vida moderna, Kant aponta o direito como construtor de uma ordem justa em que a lei teria por fim estabelecer os limites entre os indivíduos, assim como os do Estado para com os indivíduos livres. Que o direito constitui, pensado dessa maneira, um progresso, não resta a menor dúvida, todavia tornou-se limitado quando se descobriu que nem todos os homens são livres por uma dada ordem natural, mas sim em razão de suas condições materiais de existência, o que deixaremos para uma outra oportunidade, pois não cabe aqui a discussão deste problema.

BIBLIOGRAFIA

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TERRA, Ricardo. A Política tensa: idéia e realidade na Filosofia da História de Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995.

[1] Immanuel Kant (1724-1804) um dos grandes nomes da Filosofia, é um pensador decisivo da modernidade. Filósofo dos: direitos humanos; da igualdade perante a lei; da cidadania universal e da paz universal.

[2] BOOBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de janeiro: Editora Campus, 1992, p. 86.

[3] Ibid., 1992, p. 86.

[4] Ibidem.

[5] Ibid., 1992, p. 87.

[6] Norberto Bobbio (1909-2004) nascido em Turim, filho de uma família burguesa do norte da Itália, praticamente viveu o século XX por inteiro, vindo a falecer na mesma cidade aos 94 anos. Ele tornou-se, nos últimos anos, o pensador político italiano mais famoso do mundo, tornou-se um diligente ativista dos direitos individuais e não um apologista dos poderes do estado. Bobbio, emérito professor de Direito e Política em Turim, um filósofo da democracia, foi insuperável combatente a favor dos direitos humanos.

[7] Thomas Paine (1737-1809) foi um político britânico, republicano, jornalista, era herege (por ir contra os dogmas da igreja) e foi um dos foi um dos defensores e signatários da Declaração de Independência Americana, participando ativamente de várias reuniões com os demais membros idealizadores.

[8] Ibid., 1992, p. 88.

[9] BOOBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de janeiro: Editora Campus, 1992, p. 132.

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[10] Ibid.,1992, p. 139.

[11] Cogito ergo sum cartesiano.

[12] Transcendental é uma categoria kantiana que pode ser tomado por duas condições: a primeira diz respeito o que antecede a experiência; a segunda, ao que concerne o que é independente da experiência ou de princípios empíricos.

[13] Faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não ser praticado em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão.

[14] Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar idéias universais; raciocínio, juízo.

[15] KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 638.

[16] Ibid., 2001, p. 637.

[17] Idem., Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1948, p. 95-96.

[18] GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento da validade do Direito Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 66.

[19] GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 80.

[20] Ibid., 2002, p. 81.

[21] Ibid., 2002, p. 84.

[22] GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento da validade do Direito Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 66.

[23] Ibid., 2000, p. 83-84.

[24] GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 84.

[25] Idem.,O fundamento da validade do Direito Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 80-81.

[26] Ibid., 2000, p. 73-74.

[27] GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 80.

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[28] KANT, I. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 218-219.

[29] Ibid., 2003, p. 219.

[30] Ibid., 2003, p. 225.

[31] Ibidem.

[32] TERRA, R. A Política tensa: idéia e realidade na Filosofia da História de Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 79.

[33] GALEFFI, R. A Filosofia de Immanuel Kant. Brasília: Unb, 1986, p. 194.

[34] KANT, I. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 224.

[35] Ibid., 2003, p. 225.

[36] Ibid., 2003, p. 237.

[37] Idem., Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa: Edições 70, 1974, p. 106.

[38] Idem., 2003, p. 237-238.

[39] BOBBIO, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ednub, 1992, p. 50.

[40] KANT, I. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 230.

[41] Ibid., 2003, p. 231.

[42] Ibidem.

[43] Ibidem.

[44] Cf. a definição Romana: “Liberdade é a faculdade natural de fazer o que se quer, desde que o não impeça a força ou a lei”( Institutas, I, 3,2). Cf ainda Aristóteles: “Livre é o homem que tem a si mesmo como fim e não o outro” (Metafísica, 892b) e “o que não é senhor de si mesmo é capaz de desejar, mas não de agir por livre escolha” (Ética à Nicômaco, 1111b).

[45] KANT, I. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 311.

[46] BOBBIO, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ednub, 1992, p. 73-74.

[47] GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 95.

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[48] Ibid., 2002, p. 97.

[49] Ibid., 2002, p. 90-91.

[50] KANT, I. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 153.

[51] Idem., A Paz Perpétua e outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 75.

[52] Ibid., 1988, p. 80.

[53] GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 83.

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