Disciplina:* Funcionamento da Língua 5* Gramática,TextoeSentido * · 2017-09-08 · 3 MãosàObra...

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1 Disciplina: Funcionamento da Língua Gramática, Texto e Sentido Tópico: Um início de conversa Introdução ________________________________________________________________________________________ Professor(a), Estamos dando início à disciplina LP007 do Módulo 4. Nosso objetivo é refletir sobre o lugar da análise gramatical na disciplina de Língua Portuguesa, focalizando alguns procedimentos para que o estudo da gramática em âmbito escolar não se afaste de sua principal função: capacitar o aluno a desenvolver reflexões produtivas sobre o funcionamento da linguagem, em especial nas práticas voltadas ao trabalho com o texto. No primeiro Tema, iremos discutir algumas ideias correntes sobre linguagem, língua e gramática, enfatizando que esses três conceitos devem dar suporte a uma abordagem que permita explorar a gramática internalizada do aluno. Também daremos destaque à caracterização dos dados linguísticos quanto a sua forma gramatical e adequação a uma determinada norma, assumindo que, sob a adequada orientação do professor, o aluno é capaz de analisar as expressões da sua língua com base na sua intuição de falante nativo. Os tópicos do segundo Tema darão destaque à questão da nomenclatura gramatical. O professor não pode perder de vista que as taxonomias exploradas em análises morfológicas e sintáticas devem ajudar o aluno a estabelecer relações coerentes entre gramática e sentido, e não ser usadas apenas como um mero instrumento de avaliação para saber, sem um propósito claro, se o aluno nomeia corretamente as classes e funções dos itens da língua. No terceiro Tema, iremos nos concentrar em procedimentos de análise gramatical voltados ao trabalho com o texto. Serão abordados diferentes fatos linguísticos nos níveis morfológico e sintático, levandose em conta a necessidade de enraizar o estudo da gramática em práticas que valorizem o conhecimento intuitivo do aluno a respeito da sua própria língua. Na conclusão do Módulo, serão propostos alguns temas que você poderá explorar no desenvolvimento do seu TCC. Clique aqui 1 para ver o vídeo de introdução da disciplina e bom trabalho! 1 Fonte: http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/O86XMM11HOWW/, acesso em 01/06/2011.

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Disciplina:   Funcionamento   da   Língua   -­‐  Gramática,  Texto  e  Sentido    Tópico:  Um  início  de  conversa      

Introdução  ________________________________________________________________________________________    Professor(a),      

Estamos   dando   início   à   disciplina   LP007   do   Módulo   4.   Nosso   objetivo   é  refletir  sobre  o  lugar  da  análise  gramatical  na  disciplina  de  Língua  Portuguesa,  focalizando  alguns  procedimentos  para  que  o  estudo  da  gramática  em  âmbito  escolar  não  se  afaste  de  sua  principal  função:  capacitar  o  aluno  a  desenvolver  reflexões  produtivas   sobre  o   funcionamento  da   linguagem,  em  especial   nas  práticas  voltadas  ao  trabalho  com  o  texto.    No  primeiro  Tema,  iremos  discutir  algumas  ideias  correntes  sobre  linguagem,  língua  e  gramática,  enfatizando  que  esses  três  conceitos  devem  dar  suporte  a  uma   abordagem  que   permita   explorar   a   gramática   internalizada   do   aluno.  Também  daremos  destaque  à  caracterização  dos  dados  linguísticos  quanto  a  sua   forma   gramatical  e   adequação   a   uma   determinada   norma,  assumindo  que,  sob  a  adequada  orientação  do  professor,  o  aluno  é  capaz  de  analisar  as  expressões  da  sua  língua  com  base  na  sua  intuição  de  falante  nativo.    

 Os   tópicos   do   segundo   Tema   darão   destaque   à   questão   da   nomenclatura   gramatical.   O   professor   não  pode  perder  de  vista  que  as   taxonomias  exploradas  em  análises  morfológicas  e   sintáticas  devem  ajudar  o  aluno  a  estabelecer  relações  coerentes  entre  gramática  e  sentido,  e  não  ser  usadas  apenas  como  um  mero  instrumento  de  avaliação  para  saber,  sem  um  propósito  claro,  se  o  aluno  nomeia  corretamente  as  classes  e  funções  dos  itens  da  língua.        No   terceiro   Tema,   iremos   nos   concentrar   em  procedimentos   de   análise   gramatical   voltados   ao   trabalho  com  o  texto.  Serão  abordados  diferentes  fatos  linguísticos  nos  níveis  morfológico  e  sintático,  levando-­‐se  em  conta  a  necessidade  de  enraizar  o  estudo  da  gramática  em  práticas  que  valorizem  o  conhecimento  intuitivo  do  aluno  a  respeito  da  sua  própria  língua.      Na  conclusão  do  Módulo,  serão  propostos  alguns  temas  que  você  poderá  explorar  no  desenvolvimento  do  seu  TCC.          Clique  aqui1  para  ver  o  vídeo  de  introdução  da  disciplina  e  bom  trabalho!          

1Fonte: http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/O86XMM11HOWW/, acesso em 01/06/2011.

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Disciplina:   Funcionamento   da   Língua   -­‐  Gramática,  Texto  e  Sentido    

Tema:  1.  Gramática  em  contexto:  pressupostos  de  análise  Tópicos:  Linguagem,  língua  e  gramática:  concepções    

Ponto  de  Partida  ________________________________________________________________________________________  Nos  estudos   linguísticos   contemporâneos,  o   conceito  de  gramática   extrapola  os   sentidos   com  que  vemos  essa  palavra  ser  corriqueiramente  empregada.    Experimente   perguntar   aos   seus   alunos   ou   a   colegas   de   outras   disciplinas   o   que   eles   entendem   por  gramática.  A  resposta,  possivelmente,  ficará  circunscrita  à  ideia  de  que  gramática  é  o  nome  dado  aos  livros  que  reúnem  os  preceitos  para  o  bom  uso  do  idioma  ou,  talvez,  de  que  gramática  denomina  a  disciplina  que  nos  ensina  a  empregar  corretamente  as  regras  da  língua.    

Considerando   o   desenvolvimento   das   ciências   da   linguagem   nas  últimas   décadas,   essa   visão   em   torno   do   que   seja   a   gramática   é  extremamente   limitada.   Infelizmente,   muitos   professores   de  Português   baseiam   suas   práticas   de   abordagem   gramatical   em  acepções   e   concepções   de   gramática   que   não   respondem  produtivamente  às   reais  necessidades  do  aluno  em  suas   reflexões  sobre  a  linguagem.      Não   é   de   se   espantar   que,   ao   concluir   o   Ensino  Médio,   a   grande  maioria   dos   alunos   não   domine   nem   veja   utilidade   nas   regras   e  nomenclaturas   gramaticais   que   lhes   foram  ensinadas   por  mais   de  dez  anos.  

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Mãos  à  Obra  ________________________________________________________________________________________    Nosso  entendimento  em  torno  do  que  seja  a  gramática  depende,  em  grande  parte,  do  que  entendemos  por  língua   e   linguagem.   Antes  de   refletir   sobre   esses   conceitos,   veja  o   vídeo   indicado  abaixo,   que  mostra  um  diálogo  por  telefone  entre  uma  brasileira  e  uma  falante  nativa  de  inglês.  Mesmo  sem  compreender  a  língua  uma  da  outra,  as  duas  mulheres  conseguem  manter  a  conversação  por  quase  três  minutos.    

2    A  partir  do  conteúdo  desse  vídeo,  pense  um  pouco  sobre  as  seguintes  questões:      

• Língua  e  linguagem  são  uma  mesma  coisa?      

• Que   relação   pode   ser   estabelecida   entre  o   que  chamamos   de  língua   e  o   que   chamamos  de  linguagem?  

 • Qual  desses  dois  conceitos  nos  remete  ao  aspecto  que  dificultou  o  diálogo  entre  as  duas  mulheres?    

 • Qual   desses   dois   conceitos   nos   remete  àquilo   que,   apesar   da   dificuldade   de   compreensão,  

possibilitou  o  prosseguimento  da  conversação?        ________________________________________________________________________________________    

2Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=3gjlebXObd8, acesso em 13/04/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    Muitos   livros   didáticos   voltados   ao   ensino   de   gramática   dedicam   um   ou   mais   de   seus   capítulos   à  apresentação  dos  conceitos  de   língua  e   linguagem.  Esses  conceitos  costumam  se  reduzir  à   ideia  de  que  a  linguagem  humana  é  um  instrumento  de  comunicação  e  as   línguas  naturais  são  um  código  compartilhado  pelos   membros   de   uma   comunidade   cuja   delimitação   é   determinada   por   critérios   históricos   e/ou  geográficos.    

   À   luz  das   investigações   sobre  a   linguagem  humana  nos  últimos  cem  anos,  essas   ideias   são  extremamente  simplificadoras.   O   senso   comum   em   torno   dos   três   conceitos   (linguagem,   língua   e   gramática)   costuma  desconsiderar  ou  minimizar  o  fato  de  que  a   linguagem  humana,  para  além  de  servir  à  comunicação,  é  um  instrumento   que,   ao   moldar   nossa   percepção   da   realidade3,   entra   em   jogo   na   elaboração   daquilo   que  pensamos4.   É   inquestionável  que  a   função  de   comunicar   seja  algo   inseparável  da   linguagem;  no   caso  dos  seres   humanos,   porém,   a   comunicação   é   entremeada   pela   percepção   e   pelo   pensamento,   ambos  permeados  pela  linguagem.    Esquemas   como   os   apresentados   na   figura   acima,   que   costumam   ser   usados   pelos   livros   didáticos   na  apresentação  das  chamadas  "funções  da  linguagem",  podem  conduzir  os  alunos  ao  pressuposto  equivocado  de  que   a   comunicação   é   o   único  elemento   determinante   para   o   funcionamento   das   línguas   naturais.   O  professor  atuante  na  área  das  linguagens  deve  garantir  que  o  seu  trabalho  seja  baseado  em  concepções  que  resultem   em   práticas   produtivas   na   abordagem   de   fatos   linguísticos,   ajudando   o   aluno   a   entender   a  linguagem  em  suas  múltiplas  dimensões  e  não  apenas  no  que  tange  à  sua  função  comunicativa.      

3Fonte:http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/como_a_linguagem_modela_o_pensamento.html, acesso em

13/04/2011. 4Fonte: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/vigo.html, acesso em 13/04/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    Se  nos  limitarmos  à  ideia  de  que  a  linguagem  é  apenas  um  instrumento  de  comunicação,  o  tratamento  dos  fatos   gramaticais   em   sala   de   aula   pode   desembocar   em   um   mero   exercício   de   reconhecimento   das  estruturas  linguísticas  que  podem/devem  ou  não  podem/não  devem  ser  usadas  em  situações  específicas  de  fala  ou  escrita.    Mesmo  se  integrada  a  uma  abordagem  que  valorize  o  trabalho  com  gêneros  discursivos/textuais  diversos,  a  ideia   de   que   linguagem   é   um  mero   instrumento   de   comunicação   acaba   por   resultar   em   práticas   que   se  restringem   a   cobrar   do   aluno   o   reconhecimento   e/ou   o   uso   de   certos   padrões   frasais   tidos   como  caracterizadores  de  um  determinado  gênero.  Mais  do  que  saber  reconhecer  ou  usar  automaticamente  esses  padrões,  o   aluno  deve   ser  hábil   em  perceber  os  efeitos  de   sentido  atrelados  ao   seu  uso  e,  por  extensão,  dominar   estratégias   que   lhe   permitam   reproduzir  ou   atualizar  esses   efeitos,  de   forma   produtiva   e  inovadora,  em  diferentes  gêneros.    A   título   de   exemplo,   consideremos   as   estruturas   construídas   com  verbos   no   imperativo   que   ocorrem   com   frequência   em   textos  instrutivos   (injuntivos),   como   as   receitas   culinárias5   e   os   manuais   de  instrução6.  O  sucesso  do  aluno  no  trabalho  com  textos  desse  tipo  não  está   apenas   em   saber   reconhecer   e   usar   os   padrões   oracionais   com  formas  verbais  imperativas.  Está  antes  em  perceber  quais  são  os  efeitos  de   sentido   relacionados   ao   emprego   desses   padrões   para,   a   partir  dessa   percepção,   investir   no   uso   de   outros   padrões   frasais   para  produzir  os  mesmos  efeitos  na  elaboração  de  textos  pertencentes  aos  mais  variados  gêneros.    Para   alcançar   esse   patamar,   as   práticas   não   podem   ser   limitadas   ao   tratamento   da   linguagem   como   um  mero   instrumento   de   comunicação,   mas   como   uma   capacidade   humana   que,   antes   de   nos   ajudar   a  comunicar,  entra  em  jogo  na  forma  como  percebemos  o  mundo  e  construímos  nossas  ideias.          

5 Fonte: http://tudogostoso.uol.com.br/receita/131419-frango-gratinado-com-creme-de-milho.html, acesso em 07/05/2012. 6 Fonte: http://www.consul.com.br/SuporteeAtendimento/BuscadeManuais, acesso em 03/07/2012.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3  ________________________________________________________________________________________    As   línguas   naturais7   são   a   expressão   mais   proeminente   da   faculdade   humana   da   linguagem.   Se   as  concepções   de   linguagem   não   podem   ficar   restritas   ao   elemento   da   comunicação,   o   conceito   de   língua  também   não   deve   ficar   limitado   à   ideia   de   que   se   trata   de   um   código   com   fins   exclusivamente  comunicativos.  Tendo  em  vista  que  a  faculdade  da  linguagem  é  a  matriz  sobre  a  qual  se  assentam  as  línguas  naturais,   qualquer   concepção   relevante   deve   levar   em   conta   a   ideia   de   que   uma   língua   é   um   acervo  compartilhado   pelos   membros   de   uma   comunidade   e   formado   por   signos  e   regras   (fonológicas,  morfológicas,   sintáticas,   lexicais,   semântico-­‐discursivas)   que  definem   as   possibilidades   de  combinação   e  uso  desses  signos.      De   uma   perspectiva   sociocultural,   as   línguas   particularizam   uma   determinada   comunidade   em   relação   a  todas  as  outras,  no  que  diz   respeito  aos   recursos  de  expressão  postos  à  disposição  dos   seus  usuários.  Daí  não  ser  fácil,  muitas  vezes,  reconhecer  ou  estabelecer  os  limites  geográficos  e/ou  temporais  de  uma  língua,  dado  que  duas  comunidades  diferentes  podem  empregar  acervos  muito  semelhantes  de  signos  e  regras,  ou  pode  haver,  no  interior  de  uma  mesma  comunidade,  acervos  variados.  Um  exemplo  conhecido  é  o  da  língua  galega8,   que,   apesar   de   ser   empregada   nos   limites   territoriais   da   Espanha,   apresenta  mais   propriedades  gramaticais   em   comum   com   o   português   do   que   com   o   castelhano.   De   uma   perspectiva   estritamente  biológica,   podemos   dizer   que   as   propriedades   demonstradas   pelas   línguas   naturais   não   encontram  fronteiras   entre   comunidades,   já   que,   para   serem   colocadas   em   uso,   todas   elas   exigem   a   utilização   de  estratégias   articulatório-­‐perceptuais   e   intencional-­‐conceptuais   enraizadas,   em   última   instância,   em  propriedades  naturais  da  espécie  humana.      Nas  disciplinas  escolares  voltadas  ao  ensino  de  língua  materna,  essas  considerações  sobre  a  língua  têm  um  efeito  claro,  particularmente  quanto  à  dimensão  sociocultural:  ao  entrar  na  escola,  o  aluno  traz  uma  língua  particular,  um  acervo  de   signos  e   regras  naturalmente  adquirido,   compartilhado  com  outros  membros  de  sua   comunidade.   Esse   acervo   natural,   que   não   coincide   em   sua   totalidade   com  o   acervo  que  ele  conhecerá  no  contato  com  os  livros  didáticos,  pode  ser  explorado  pelo  professor  como  ponto  de  partida  em  inúmeras  atividades  voltadas  aos   letramentos.  Nesse  sentido,   cabe  ao  professor  explorar  o  conhecimento  natural  do  aluno  acerca  da  variedade   linguística  que   caracteriza  a   fala  de   sua   comunidade  e,   a  partir  daí,  ajudá-­‐lo  a  desenvolver  competências  e  habilidades  que  são  necessárias,  por  exemplo,  ao  pleno  domínio  da  norma-­‐padrão.            

7 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_natural, acesso em 13/04/2011. 8 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=iCOreBJXOZk, acesso em 13/04/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  4  ________________________________________________________________________________________    Quanto  à  gramática,   as   concepções  de   língua  e   linguagem  podem,  de  uma  certa   forma,   ser   associadas  às  acepções   que   se   atribuem   a   essa   palavra.   Se   tomada   como   área   de   estudo,   a   gramática   pode   ser  conceituada,   grosso  modo,   como   um   campo   de   saber   que   se   ocupa   da   descrição   e/ou   análise   de   certas  regras  no  conhecimento  e  uso  da  língua.  A  depender  da  postura  dos  que  atuam  nesse  campo,  a  abordagem  dessas  regras  pode  assumir  um  caráter  descritivo9  ou  normativo/prescritivo10.    

11  Como   um   campo   científico   de   investigação,   a   abordagem   gramatical  pode   ser   particularizada   pelos   pressupostos   estabelecidos   dentro   de  determinadas   correntes   teóricas.   Temos,   assim,   a   gramática   gerativa,   a  gramática   funcional12,   a   gramática   estruturalista13,   entre   outras  vertentes   e   denominações.   Podemos,   ainda,   estabelecer   diferenciações  no   que   diz   respeito   ao   escopo   e/ou   objetivo   da   abordagem,   quando  podemos  falar  em  gramática  histórica,  gramática  comparada,  gramática  sincrônica,  gramática  expositiva,  entre  várias  outras  possibilidades.      No  âmbito  escolar,  o  termo  gramática  tem  sido  comumente  empregado  para   dar   nome   à   disciplina   (de   caráter   predominantemente  normativo)  que  se  ocupa  desde  os  fatos  morfológicos  e  sintáticos,  tradicionalmente  considerados  o   cerne  da  matéria,  aos   fonológicos,   lexicais   e   semântico-­‐discursivos.  

       

9Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gramática_descritiva, acesso em 13/04/2011. 10Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gramática_normativa, acesso em 13/04/2011. 11A primeira Gramática da Linguagem Portuguesa, de Fernão de Oliveira, séc. XVI. Fonte:

http://www.vivercidades.org.br/publique_222/web/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1273&sid=17, acesso em 26/03/2011.

12 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gramática_funcional, acesso em 13/04/2011. 13Fonte:http://www.webartigos.com/articles/14809/1/ESTUDO-COMPARATIVO-ENTRE-ESTRUTURALISMO-

GRAMATICAL-E-O-FUNCIONALISMO-DOS-TERMOS-DA-ORACAO/pagina1.html, acesso em 13/04/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  5  ________________________________________________________________________________________    Tendo  em  vista  as  considerações  feitas  até  aqui,  devemos  nos  perguntar  sobre  qual  deve  ser  a  concepção  de  gramática  a  ser  explorada  no  âmbito  da  disciplina  escolar  de  Língua  Portuguesa.  Antes  de  mais  nada,  é  importante  ter  em  mente  que  a  sala  de  aula  não  deve  ser  um  espaço  para  a  discussão  ou  propaganda  de  modelos  teóricos  sobre  o  funcionamento  da  linguagem,  da  língua  ou  da  gramática.  Em  suas  reflexões  sobre  a   língua,   o   professor  pode   explorar  um  modelo   como   referencial   para   as   suas   tomadas   de   decisão,   mas  os  pressupostos  desse  modelo  não  devem,  sob  hipótese  alguma,  ser  colocados  como  o  objeto  do  ensino.      Considerando-­‐se  os  objetivos  estabelecidos  para  o  ensino  de  Língua  Portuguesa  nos  documentos  que  têm  orientado   oficialmente   os   programas   curriculares   do   Ensino   Fundamental   e   Médio,   a   concepção   de  gramática  explorada  em  sala  de  aula  deve   levar  em  conta  que  o  aluno  tem  um  conhecimento  natural  das  propriedades   fonológicas,   morfológicas   e   sintáticas   da   sua   língua.   Nesse   sentido,   podemos   falar   em  gramática   internalizada14,   entendida   como  um   conjunto  de   regras   naturalmente   adquirido  pelos   falantes,  que  define  a  fonologia,  a  morfologia  e  a  sintaxe  da  sua  língua.  Mais  do  que  um  ponto  de  referência  para  as  reflexões   do   professor,   essa   concepção   deve   ser   colocada   a   serviço   de   práticas   que   contribuam   para   o  sucesso   do   aluno   no   trabalho   com   a   linguagem,   em   particular  nas   atividades   de   produção   e   recepção  textual.      

   Clique  na  imagem15,  para  ver  uma  reportagem  sobre  a  exposição  "MENAS:  o  certo  do  errado  e  o  errado  do  certo"  que  aconteceu  no  Museu  da  Língua  Portuguesa,  em  2010.        

14 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gramática_impl%C3%ADcita, acesso em 13/04/2011. 15Fonte:http://mais.uol.com.br/view/xiddtuwnvlqs/metropolis--menas-o-certo-do-errado-o-errado-do-certo-

0402183868C0897326?fullimage=1&types=A, acesso em 13/04/2011.

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Atividade   Autocorrigível  1________________________________________________________________________________________    Leia   o   trecho16   extraído   do   livro  Ensino   e   aprendizado   da   língua  materna,   de   Celso   Pedro   Luft,  e  identifique  a  alternativa  que  expressa  corretamente  as  ideias  do  texto.        a)17  O  professor  de  Língua  Portuguesa  deve  se  concentrar  no  ensino  da  gramática  como  um  instrumento  de  comunicação  que   só  pode   ser  dominado  adequadamente   se  os   alunos   souberem   fazer   análise   sintática   e  classificar  corretamente  as  palavras  quanto  às  suas  propriedades  morfológicas.    b)18  O  papel  do  professor  de  Português  é  ajudar  os   falantes  do   idioma  a  desvendar  os  segredos  da   língua  mais  difícil  do  mundo,  aquela  que  "quanto  mais  se  estuda,  menos  se  sabe".    c)19  Qualquer  criança  a  partir  dos  seis  ou  sete  anos  conhece  intuitivamente  a  gramática  da  sua  língua,  ainda  que  não  tenha  consciência  desse  conhecimento.    d)20   Só  é  possível  usar  as   regras  gramaticais  da  nossa   língua  depois  que  entramos  na  escola  e  estudamos  anos  a  fundo  a  estruturação  sintática  e  morfológica  do  idioma,  ensinada  nos  livros  didáticos.    e)21  Para  saber  falar  é  necessário  dominar  um  código  verbal,  que  só  pode  ser  aprendido  por  intermédio  do  professor  de  Língua  Portuguesa,  com  a  leitura  de  clássicos  da  literatura  e  o  apoio  dos  livros  didáticos.        

16 LUFT, C. P. Ensino e aprendizado da língua materna. São Paulo: Globo, 2007. P. 97-98. 17 Incorreto. De acordo com o autor, o professor de Língua Portuguesa deve se concentrar no desenvolvimento,

aperfeiçoamento e conscientização progressiva do conhecimento natural que todo falante tem a respeito da sua língua. 18 Incorreto. A ideia de que “quanto mais se estuda, menos se sabe” a língua é equivocada, uma vez que todas as pessoas

conhecem intuitivamente o sistema de regras da língua que falam. 19 Correto. A partir dos seis ou sete anos, a criança já é capaz de construir frases que atendem satisfatoriamente à

comunicação, pois domina desde muito cedo o sistema de regras da sua língua. 20 Incorreto. As crianças empregam intuitivamente as regras gramaticais da sua língua, até mesmo aquelas que não vão à

escola, do contrário seriam incapazes de entender e produzir qualquer tipo de enunciado. 21 Incorreto. O professor de Língua Portuguesa, os livros didáticos e os clássicos da literatura não ensinam ninguém a falar

ou a dominar um código verbal. Essa capacidade é adquirida naturalmente, no processo de aquisição da linguagem.

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Atividade   Autocorrigível  2________________________________________________________________________________________    Assista  aos  vídeos   indicados  a  seguir  e,  depois,   leia  o  trecho22  do  livro  O  instinto  da  linguagem,  de  Steven  Pinker.      

VÍDEO  123                    VÍDEO  224                  VÍDEO  325    Analise   as   afirmações   abaixo   e   identifique   aquela   que   relaciona   corretamente   as   ideias   do   texto   com   o  conteúdo  dos  vídeos.      a)26  Ao  contrário  do  que  o   texto  afirma,  os  vídeos  evidenciam  que,  por  si   só,   sem  o  apoio  da  escola,  uma  criança  será  incapaz  de  aprender  a  língua  dos  seus  pais.    b)27   Os   vídeos  deixam   claro  que   os   pais   precisam   reservar   uma   determinada   quantidade   de   horas   por  semana   para   corrigir   o   modo   como   seus   filhos   adquirem   a   língua,   do   contrário   as   crianças   poderão  desenvolver  diversos  vícios  de  linguagem.    c)28  Como  destacado  pelo  autor  do  texto,  o  fato  de  nenhum  bebê  nascer  falando  mostra  que  as  regras  da  língua  não  são  aprendidas  naturalmente,  mas  precisam  ser  ensinadas  por  meio  de  exercícios  que  ajudem  as  crianças  a  falar  de  modo  correto,  evitando  balbucios  incompreensíveis  às  pessoas  adultas.    d)29  Os  vídeos  dão  sustentação  às  ideias  do  texto,  evidenciando  que,  muitos  antes  de  ingressar  na  escola,  as  crianças   recorrem   a   balbucios   que   lhes   ajudam   a   descobrir   e   usar   naturalmente   o   sistema   de   regras   da  língua  à  qual  se  encontram  expostas.    e)30  Em  oposição  às  ideias  do  texto,  os  vídeos  mostram  que  as  crianças  estão  aprendendo  a  falar  cada  vez  mais   cedo,   o   que   pode   ser   um   reflexo   positivo   do   acesso  precoce   às   tecnologias   de   informação   e  comunicação.            

22 PINKER, S. O instinto da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 333-338. Tradução de Claudia Berliner. 23 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=_JmA2ClUvUY&feature=related, acesso em 13/04/2011. 24 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=yuRZopj2GyM, acesso em 13/04/2011. 25 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=8v9KZo0rat0&feature=player_detailpage, acesso em 13/04/2011. 26 Incorreto. Os vídeos evidenciam que as crianças iniciam o aprendizado da língua de modo natural, antes mesmo de

entrar para escola e receber aulas de Língua Portuguesa. 27 Incorreto. Os vídeos são uma prova de que as crianças começam a fazer uso da língua de modo natural, sem a

necessidade de qualquer ensino ou treinamento formal por parte dos adultos. 28 Incorreto. O autor do texto destaca que o aprendizado da língua se dá naturalmente, por meio de habilidades instintivas

que são postas em prática já nos primeiros meses de vida. 29 Correto. Como afirma o texto, os balbucios são uma estratégia que ajuda as crianças a elaborarem “seu próprio manual

de instrução” sobre o funcionamento da língua, levando-as a aprender “quando devem mover que músculo em que sentido para obter que mudança de som”.

30 Incorreto. O conteúdo dos vídeos não traz qualquer evidência de que as crianças estejam aprendendo a falar precocemente, nem de que o aprendizado da fala tenha alguma relação com o acesso precoce às tecnologias de informação e comunicação.

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Finalizando  ________________________________________________________________________________________    Como   disciplina,   a   gramática   não   pode   ser   vista   apenas   como   o   lugar   reservado   ao   ensino   de   preceitos  acerca   do   que   é   certo   ou   errado,   bom   ou   ruim,   correto   ou   incorreto.   Também   não   pode   ser   o   espaço  destinado   ao  mero  ensino  de  nomenclaturas   estéreis31,   totalmente  dissociadas  de  práticas   que   ajudem  o  aluno  a  refletir  produtivamente  sobre  a  sua  língua.      

   Do   mesmo   modo,   o   trabalho   com   a   língua   portuguesa   não   pode   estar   a   reboque   de   concepções  teoricamente   limitadas   acerca   do   que   seja   a   linguagem   humana.   Cabe  à   escola  conduzir   o   aluno  na  descoberta  de  como  a  sua  gramática  internalizada  se  organiza,  ajudando-­‐o  a  reconhecer  e  analisar  as  regras  da  língua  que  ele  adquiriu.  A  função  do  professor  de  Português  não  é,  nesse  sentido,  ensinar  uma  língua  ao  aluno,   mas   capacitá-­‐lo   com   habilidades   que   lhe   permitam,  em   diferentes   atividades,  o   uso   consciente   e  criativo   dos   inúmeros   recursos  de   expressão   oferecidos   pelas   variedades   da   língua   portuguesa,   entre   as  quais   necessariamente   deverão   se   incluir   aquelas   de   maior   prestígio   social,   reunidas   no   que   se  convencionou  chamar  de  norma  culta.      Nos  próximos  temas  e  tópicos,  iremos  refletir  sobre  como  o  tratamento  da  gramática,  entendida  como  um  conjunto  de  regras  naturalmente  internalizadas  pelos  falantes  no  processo  de  aquisição  da  linguagem,  pode  contribuir  para  que  a  disciplina  de  Língua  Portuguesa  seja  bem  sucedida  em  seus  propósitos,  em  particular  no   que   diz   respeito   ao   trabalho   com   a   relação   entre   gramática   e   sentido   na   constituição   dos  enunciados/textos.            

31Fonte:http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2012/04/aula-de-portugues-carlos-drummond-de.html, acesso em 16/07/2012.

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Tópico  2  -­‐  Formas  e  normas  Ponto  de  partida  ________________________________________________________________________________________    A  abordagem  de  fatos  gramaticais  em  sala  de  aula  não  pode  prescindir  da  análise  de  dados  linguísticos.  De  nada   adianta   o   professor   dizer   que   um   adjunto   adnominal   é   um   termo   modificador   de   substantivos  se  não  orientar  o  aluno  a  refletir  sobre  dados  concretos  que   lhe  permitam  entender  adequadamente  o  papel  desempenhado  por  esses  termos  no  funcionamento  da  língua.      

A   escolha   dos   dados   linguísticos   a   serem   trabalhados   nas   aulas   de  gramática   deve   ser   feita   com   base   em   critérios   que   priorizem   o  reconhecimento   dos   fatos   gramaticais   como   estratégias  desencadeadoras  de  efeitos  de  sentido.  A  rigor,  qualquer  enunciado  da  língua  se  presta  a  uma  análise  gramatical,  mas  nem  todo  enunciado  se  apresenta,   para   fins   didáticos,  como   um   dado   rentável  às   reflexões  sobre  o  papel  da  gramática  na  construção  do  sentido  de  um  texto.      Não   basta   que   as   atividades   de  análise   gramatical   sejam  voltadas   à  mera  identificação  de  classes  de  palavras  ou  funções  sintáticas:  o  aluno  deve   ser   capaz   de   reconhecer   como   as   estruturas   gramaticais  contribuem   para   a  composição   do(s)   sentido(s)  de   um   enunciado   e,   a  partir   daí,   empregar   produtivamente   essa   capacidade  nas   práticas   de  produção  e  recepção  textual.    

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Mãos  à  obra  ________________________________________________________________________________________    Os   conceitos   de   frase,   oração   e   período   costumam   introduzir   a   parte   dos   livros   didáticos   destinada   ao  estudo  da   sintaxe.  Os   três   conceitos   são   correlacionados   pela   ideia   de   que   o   período   é   um   tipo   de   frase  composta  de  uma  ou  mais  orações,  então  definidas  como  estruturas  construídas  em  torno  de  um  verbo.      Nesse  modo  de  ver  as  coisas,  nem  toda  a  frase  é  um  período  (uma  vez  que  há  frases  sem  oração,  como  "Ui!"  e  "Socorro!")  e  nem  toda  oração  é  uma  frase  (por  exemplo,   o   sintagma   verbal   "comer   bolo"  é   uma   oração,  mas   não  uma   frase,  quando  complementa   o   verbo  "querer"   em   sentenças   como   "eu   quero   comer  bolo").      A   partir   da   apresentação   desses   conceitos,   os   livros   didáticos   organizam   a  sintaxe   da   língua   em   dois   eixos:   (i)   a   oração   e   seus   termos,  geralmente  analisados   à   luz   da  taxonomia   proposta   pela   Nomenclatura  Gramatical   Brasileira32,   e   (ii)   as   estratégias   de   articulação   entre  as   partes  do  enunciado,   com   destaque   para   as   noções   de   transitividade,   concordância,  regência,  coordenação  e  subordinação.      Reflita:    

• O   trabalho   com   esses   dois   eixos   pode   ajudar   o   aluno   a   desenvolver   habilidades   que   são  necessárias  às  atividades  de  produção  e  recepção  textual?    

 • As  suas  aulas  de  sintaxe  têm  resultado  no  desenvolvimento  dessas  habilidades?        

 • Que   dificuldades   você   tem   enfrentado   para   transformar   as   aulas   de   análise   gramatical   em  

práticas  vinculadas  ao  trabalho  com  diferentes  gêneros  textuais/discursivos?    

32Fonte: http://www.portaldalinguaportuguesa.org/?action=ngbras, acesso em 13/04/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    A  principal   crítica  que   tem  sido   feita  ao  modo  como  se  dá  a  abordagem  gramatical  na  disciplina  de  Língua  Portuguesa  recai  menos  sobre  o  conteúdo  e  mais  sobre  a  dissociação  entre  a  análise  linguística  e  o  estudo  dos  efeitos  de  sentido  na  construção  do  texto.      Considere,   por   exemplo,   a   letra   de   uma   das   estrofes   de   "Cotidiano"33,   famosa  música   de   Chico   Buarque,  reproduzida  a  seguir:                                  

     (Clique  na  imagem  para  ver  o  vídeo34)  

   

Todo  dia  ela  faz  tudo  sempre  igual    Me  sacode  às  seis  horas  da  manhã    Me  sorri  um  sorriso  pontual    E  me  beija  com  a  boca  de  hortelã    

 Nesse  trecho,  o  verbo  sorrir,  que  é  tipicamente  intransitivo,  deve  ser  analisado  como  transitivo,  tendo  como  complemento  o  termo  um  sorriso  pontual.  Mais  do  que  saber  classificar  esse  verbo  quanto  à  transitividade,  o   aluno   precisa   reconhecer   o   seu   uso   excepcional   como   transitivo   e,   mais   importante,   refletir   sobre   o  porquê  de  o   autor   ter   inserido  um  complemento   verbal   que,   à   primeira   vista,   soa   redundante   ("sorri   um  sorriso").      No  tratamento  de  diferentes  dados,  o  professor  pode  recorrer  a  estratégias  de  abordagem  gramatical  que  valorizem  o   conhecimento  natural   dos   alunos   a   respeito   da   língua.  O   trabalho  nessa   linha  deve   levar   em  conta   que   todo   dado   linguístico   pode   ser   caracterizado   quanto   à   forma   e   quanto   à   adequação   a   uma  determinada  norma  linguística.          

33 Fonte: http://letrasdespidas.wordpress.com/2008/01/26/chico-buarque-cotidiano/, acesso em 09/04/2011. 34 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=3ZW_keqnzD8, acesso em 09/04/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2    No  que  diz  respeito  à  forma,  um  determinado  dado  pode  ser  analisado  como  gramatical  ou  agramatical,  a  depender  de  a  sua  estrutura  seguir  ou  não  as  regras  gramaticais  internalizadas  pelos  falantes  da  língua.  Na  

avaliação  da  (a)gramaticalidade,  a  postura  do  analista  deve  ser  descritiva  e  não   normativa:   leva-­‐se   em   conta   não   o   que   as   gramáticas   normativas  preceituam  sobre  as  construções,  mas  as   regras  gramaticais   internalizadas  pelos   falantes  que   são  naturalmente  colocadas   em  uso  no   funcionamento  da  língua.    Considere   os   pares   de   sentenças   apresentados   a   seguir.   Da   perspectiva  normativa,  apenas  as  sentenças  em  (a)  seguem  o  uso  considerado  correto  do   idioma.   Contudo,   se   analisadas   com   base   nas   regras   gramaticais  internalizadas   por   pessoas   que   adquiriram   a   variedade   brasileira   do  português,   as   construções   em   (b)   não   apresentam   problemas   em   sua  estruturação  sintática  e/ou  morfológica.  Pelo  contrário:  para  a  maior  parte  

dos  brasileiros,  as  construções  em  (b)  soam  mais  naturais  do  que  as  construções  em  (a).  Quanto  à   forma,  portanto,   as   sentenças   em   (b)   são   perfeitamente   gramaticais,   pois   seguem   as   regras   naturais   de  estruturação  gramatical  que  fazem  parte  do  conhecimento  intuitivo  de  falantes  do  português  brasileiro.    

(1)    a.  Eu  a  beijei.                  b.  Eu  beijei  ela.          (2)    a.  Há  muitos  livros  na  estante.                  b.  Tem  muitos  livros  na  estante.          (3)    a.  Aquele  livro  é  para  eu  ler.                  b.  Aquele  livro  é  para  mim  ler.          (4)      a.  Tu  conheces  aquela  criança?                    b.  Tu  conhece  aquela  criança?        

               

     

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3  ________________________________________________________________________________________    Em  contraste  com  as  sentenças  apresentadas  anteriormente  de  (1)  a  (4),  a  estrutura  das  sentenças  em  (5)  e  (6)  a  seguir  causam  estranhamento.  As  construções  em  (5)  mostram  ordenações  de  palavra  que  não  estão  previstas   em   nossa   gramática   internalizada,   enquanto   as   construções   em   (6)   exibem   relações   de  concordância  e  regência  que  não  são  possíveis  em  nenhuma  variedade  do  português.      (5)  a.  A  eu  beijei.  b.  Há  livros  na  estante  muitos.  c.  É  para  ler  mim  aquele  livro.  d.  Conheces  aquela  criança  você?    (6)    a.  Eu  a  beijamos.  b.  Hei  muitos  livros  na  estante.  c.  Aquele  livro  é  para  me  ler.  d.  Você  conheces  aquela  criança?      Explorando  o  conhecimento  intuitivo  sobre  as  regras  gramaticais  de  sua  variedade  linguística,  nenhum  aluno  terá   dificuldade   para   caracterizar   os   dados   acima   como   agramaticais.   A   partir   desse   conhecimento,   é  possível   elaborar   atividades   que   motivem   o   aluno   a   desenvolver   diferentes   generalizações   sobre   a   sua  língua   e,   com   isso,   ajudá-­‐lo   a   ter   uma  maior   autonomia   na   análise   dos   mais   variados   fatos   gramaticais,  desde  os  mais  simples  aos  mais  complexos.      É   importante,   contudo,   ter   em  mente  que  os   juízos  de   (a)gramaticalidade  a   respeito  de  um  determinado  dado  linguístico  podem  variar  entre  os  falantes  de  uma  mesma  língua.  O  que  é  considerado  gramatical  em  uma  dada  localidade  pode,  em  outra,  ser  considerado  agramatical  ou  provocar,  em  certos  usos,  algum  tipo  de  estranhamento.  O  professor  de  Língua  Portuguesa  deve,  assim,  mostrar  sensibilidade  no  reconhecimento  dos   fatos   gramaticais   que   singularizam   a   comunidade   de   fala   na   qual   as   suas   práticas   de   ensino   estão  inseridas.      ________________________________________________________________________________________    

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  4  ________________________________________________________________________________________    No   que   diz   respeito   à   norma,   os   dados   linguísticos   podem   ser   avaliados   quanto   à   maior   ou   menor  adequação  a  uma  situação  comunicativa.  As  construções  podem,  assim,  ser  caracterizadas  como  adequadas  ou  inadequadas,  a  depender  da(s)  norma(s)  associada(s)  ao  uso  da  língua  em  contextos  específicos.    A  título  de  exemplo,  considere  o  pronome  "vós",  uma  forma  em  desuso  tanto  no  Brasil  quanto  em  Portugal.  Mesmo  em  desuso,  a  realização  desse  pronome  em  orações  ou  textos  proferidos  em  cerimoniais  religiosos  não  nos  causa  estranhamento,  uma  vez  que  construções  como  "Vós  entregastes  vosso  filho  para  nos  salvar"  são  previstas  pelas  normas  que  determinam  o  uso  da  língua  no  contexto  em  questão.  Em  situações  de  fala  espontânea,  ao  contrário,  o  emprego  desse  pronome  é  inadequado,  tendo  em  vista  que  a  forma  de  segunda  pessoa  do  plural  consagrada  nas  normas  coloquiais  brasileiras  e  portuguesas  é  "vocês"  e  não  "vós".        

No  trabalho  com  o  texto,  o  aluno  deve  ser  capaz  de  perceber  que  certas   construções   gramaticais   podem   ser   adequadas   a   um  determinado   gênero,  mas   não   a   outros.   Podemos   dizer   que   cada  gênero   se   vale   de   uma   norma   particular,  favorecendo   ou  desfavorecendo   determinadas   estruturas   linguísticas.   A   narração  de   jogos   de   futebol,   por   exemplo,   "autoriza"   a   ocorrência   de  construções   com   o  sujeito   em   posição   final,   posposto   ao  complemento  verbal  ("Autoriza  o  jogo  o  juiz",  "Pega  a  bola  Rogério  Ceni",   "Passa   a   bola   Ronaldo",   "Cobra   a   falta   Dentinho"),  resultando   em   estruturas   que,   na   gramática   do   português  brasileiro,  são  pouco  usuais  em  outras  situações  comunicativas.      

 (Clique   na   imagem35,   para   ouvir   um   podcast   sobre   Fiori  

Giglioti  em  que  esses  usos  da  língua  ocorrem)      É   importante   ter  em  mente  que  nem  todas  as  construções  aconselhadas  pelas  gramáticas  normativas  são  consideradas   adequadas   a   qualquer   norma.   Como   exemplo,   podemos   considerar   as   regras   de   colocação  pronominal,  tendo  em  vista  a  gramática  internalizada  pelos  brasileiros36:  muitos  casos  de  ênclise  abonados  pela   gramática   normativa   (como   "amo-­‐te",   "beijar-­‐te-­‐ei"   ou   "dê-­‐ma",   em   lugar,   respectivamente,   de   "te  amo",  "vou  beijar  você"  e  "me  dê  ela"),  não  são  usuais  nem  mesmo  na  norma  culta37,  depreendida  a  partir  da  produção  linguística  dos  falantes  com  grau  de  instrução  superior.    ________________________________________________________________________________________    

35 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=12GGMq0rZDQ, acesso em 13/04/2011. 36 Fonte: http://pensador.uol.com.br/frase/NTU4NjA3/, acesso em 13/04/2011. 37 Fonte: http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/ , acesso em 01/04/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  5  ________________________________________________________________________________________    Nas  avaliações  de  dados  quanto  à  adequação  ou  inadequação  a  uma  determinada  norma,  costuma-­‐se  levar  em   conta   oposições   do   tipo   formal   vs   informal,   controlado   vs   espontâneo,  polido   vs   coloquial,   culto   vs  popular,   entre   outras.   Em   sala   de   aula,   é   importante   que   o   professor   explore   fatos   gramaticais   que,   em  diferentes  níveis  de  análise,  evidenciem  claramente  essas  oposições  aos  alunos.      

 (Clique  na   imagem  para  ver  um  vídeo38  da  canção  e  um  

depoimento  de  Adoniran)    

No   português   brasileiro,   a   variação   observada   na   marcação  gramatical  de  número  em  padrões  de  concordância  verbal  e  nominal  está  entre  os   fatos   sobre  os  quais  a  oposição  culto   vs  popular   pode  ser  aplicada.  A  título  de  exemplo,  considere  as  construções  a  seguir,  extraídas  de  Saudosa  Maloca39,  canção  de  Adoniran  Barbosa40.    

"nóis  nem  pode  se  alembrá"  "veio  os  home  com  as  ferramenta"  "peguemo  todas  nossas  coisa"  "que  tristeza  que  nóis  sentia"  "os  home  tá  com  a  razão"  

"só  se  conformemo"  "hoje  nós  pega  a  paia  nas  grama  do  jardim"  

"pra  esquecê  nóis  cantemo  assim"    As  sentenças  acima  exemplificam  alguns  dos  fatos  gramaticais  mais  representativos  do  português  brasileiro  popular.   Para   garantir   uma   maior   expressividade   das   suas   letras,   Adoniran   Barbosa   empregava   essas  construções  para  fazer  referência  à  fala  característica  das  classes  sociais  mais  baixas.  Tomando  como  base  a  gramática   internalizada   dos   membros   dessas   classes,   os   padrões   de   concordância   verbal   e   nominal  observados   nas   músicas   de   Adoniran,   embora   inadequados   à   norma   culta,  devem   ser   analisados   como  gramaticais,  perfeitamente  compatíveis  com  as  regras  de  estruturação  sintática  e  morfológica  atestadas  em  variedades  do  português  brasileiro41.    ________________________________________________________________________________________    

38 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=idfXlzqUbIc&feature=fvwrel, acesso em 13/04/2011. 39 Fonte: http://letras.terra.com.br/adoniran-barbosa/43969/, acesso em 09/04/2011. 40Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/adoniran_barbosa.htm, acesso em 09/04/2011. 41 Fonte: http://www.fflch.usp.br/indl/, acesso em 13/04/2011.

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Finalizando  ________________________________________________________________________________________    Neste  tópico,  abordamos  dois  critérios  que  podem  entrar  em  jogo  na  avaliação  de  um  dado  linguístico:  a  sua  forma,   analisada   como   gramatical   ou   agramatical,   e   a   sua   adequação   a   uma   determinada   norma.   Se  incentivados  a  analisar  as  expressões  linguísticas  a  partir  desses  critérios,  os  alunos  poderão  refletir  sobre  a  língua   com   base   nas   regras  da   sua   gramática   internalizada,   formulando   generalizações   que   serão   úteis  tanto  à  compreensão  de  determinados  fatos  linguísticos  quanto  ao  reconhecimento  e  utilização  de  padrões  frásicos  que  são  adequados  às  diferentes  normas.      É  fundamental  que  os  alunos  conheçam  a  norma-­‐padrão  e  a  vejam  como  uma  peça  essencial  ao  domínio  das  variedades  linguísticas  de  maior  prestígio  social  e  cultural.  O  professor  não  pode,  contudo,  apresentar  essas  variedades   como   as   únicas   possibilidades   de   realização   da   língua.   Dominar   a   norma-­‐padrão   é   de   grande  valia,  por  exemplo,  na  produção  de  textos  dissertativos  que  requeiram  a  escrita  formal  ou  na  redação  de  um  perfil  para  obtenção  de  emprego.  Essa  mesma  norma,  contudo,  tem  pouca  utilidade  em  conversas  informais  pelo   MSN   ou   em   bate-­‐papos   numa   mesa   de   bar,   quando   outras   normas   linguísticas   são   requeridas   e  espontaneamente  colocadas  em  uso.      Em   sala   de   aula,   o   professor   de   Português   deve   investir   tanto   em   atividades   que   ajudem   seus   alunos   na  utilização   da  norma-­‐padrão  quanto   em   práticas   de   análise   que   os   levem   a   perceber   os   fatos   gramaticais  relativos  às  mais  diferentes  normas.      

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Tópico  3  -­‐  Gramática  descritiva  Ponto  de  Partida  ________________________________________________________________________________________    Nos   tópicos   anteriores,   exploramos   o   conceito   de   gramática   internalizada,   que   leva   em   conta   o  conhecimento   internalizado   pelos   falantes   sobre   a   sua   língua  materna.   Esse   conhecimento,   composto   de  regras   fonológicas,   morfológicas   e   sintáticas,   é   naturalmente   adquirido   no   processo   de   aquisição   da  linguagem,  sem  a  necessidade  de  intermediação  da  escola  ou  de  qualquer  outro  meio  de  ensino  formal.      

Ao   assumir   esse   conceito,   o   professor   poderá   desenvolver  práticas   que   explorem   de   um   modo   mais   produtivo   a  intuição   do   aluno   a   respeito   da   sua   própria   língua.   Para  atingir  esse  objetivo,  as  reflexões  sobre  os  fatos  gramaticais  precisam   partir   de   uma   perspectiva   descritiva   e   não  normativa.   Isso   não   significa   que   o   aprendizado   da   norma  padrão  (ou  de  qualquer  outra  norma  relevante  no  estudo  da  língua)   deva   ser   evitado,   mas   que   a   assimilação   de   regras  estranhas  à  gramática  internalizada  dos  alunos  (como  muitas  das   regras   prescritas   pela   gramática   normativa)   deve   ter  como  ponto  de  partida  as  variedades  linguísticas  em  uso  na  

comunidade  em  que  a  prática  docente  se  realiza.      Para   refletir   sobre   esse   ponto,   iremos   abordar   neste   tópico   a   oposição   entre   gramática   descritiva42   e  gramática  normativa43,  chamando  a  atenção  para  a   ideia  de  que  o  trabalho  com  a  gramática   internalizada  do  aluno  deve  explorar  uma  metodologia  descritiva  frente  aos  fatos  da  língua.    ________________________________________________________________________________________    

42 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gram%C3%A1tica_descritiva, acesso em 07/05/2012. 43 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gram%C3%A1tica_normativa, acesso em 07/05/2012.

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Mãos  à  obra  No   tópico   anterior,   apresentamos   uma   música   de   Adoniran   Barbosa,   intitulada   Saudosa   Maloca44,   para  exemplificar  fatos  gramaticais  que  são  bastante  comuns  em  variedades  populares  do  português  brasileiro.  Ouça  novamente  a  canção  e  reflita  sobre  a  seguinte  questão:    De  uma  perspectiva  gramatical,  podemos  dizer  que  as  variedades  populares  do  português  brasileiro  são  mais  simplificadas  (ou  menos  complexas)  que  as  variedades  mais  cultas?  Por  quê?      

 ________________________________________________________________________________________    

44 Fonte: http://letras.terra.com.br/adoniran-barbosa/43969/, acesso em 02/05/2012.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    Uma  das   características  mais  proeminentes  das   variedades  populares  do  português  brasileiro  está  na   sua  sintaxe   de   concordância.   No   que   diz   respeito   à   concordância   nominal,   por   exemplo,   essas   variedades  tendem   a   realizar   a   marca   morfológica   de   plural   apenas   no   determinante   (os   livro   vs   os   livros)   ou   no  primeiro   item   do   sintagma   nominal   (livros   bonito).   Quanto   à   concordância   verbal,   o   sistema   flexional   é  reduzido   (como   o   do   inglês   e   do   francês),   não   se   observando   nele   as   seis   marcas   distintivas45   que  encontramos  no  português  europeu  padrão.      Frente   a   fatos   gramaticais   desse   tipo,   muitas   pessoas  costumam  afirmar  que  o  português  falado  no  Brasil  pelas  classes  populares  não  dispõe  de  regras  de  concordância.  Esse   ponto   de   vista   é   equivocado,   uma   vez   que,   apesar  de   ser   diferente   do   que   é   prescrito   pelas   gramáticas  normativas,   toda   e   qualquer   variedade   linguística   segue  regras  bem  determinadas  no  uso  da   língua.  Essas   regras  são   estabelecidas   no   processo   natural   de   aquisição   da  língua   e   constituem   a   gramática   internalizada   dos  falantes  dessa  variedade.      Observemos,   a   título   de   exemplo,   a   sintaxe   de  concordância   que   aparece   nas   construções   de   Saudosa  Maloca,   que   procura   representar   a   fala   popular.   Um  olhar   mais   detido   sobre   os   fatos   morfossintáticos  exemplificados   na   música   nos   revela   que   Adoniran  Barbosa   não   se   valeu   de   regras   aleatórias   ou  incongruentes   de   concordância,   mas   explorou  propriedades   que   são   passíveis   de   sistematização,   da  mesma   forma   que   as   regras   de   concordância   presentes  nas  variedades  cultas  da  língua.  ________________________________________________________________________________________    

45No presente do indicativo, por exemplo, o português europeu apresenta seis marcas flexionais distintivas: eu canto, tu

cantas, ele canta, nós cantamos, vós cantais, eles cantam. Já em variedades populares do português brasileiro, essa distinção pode ficar reduzida a apenas duas marcas, distinguindo a primeira pessoa do singular das demais: eu canto, você/tu canta, ele canta, a gente/nós canta, vocês canta, eles canta. Mesmo as variedades mais cultas do português brasileiro apresentam uma redução do seu paradigma flexional em comparação com o português europeu. Na fala culta carioca, por exemplo, o padrão flexional é o seguinte: eu canto, você canta, ele canta, a gente canta / nós cantamos, vocês cantam, eles cantam.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    Quanto  à  concordância  verbal,  vemos  em  Saudosa  Maloca  a  generalização  da  forma  de  terceira  pessoa  do  singular  do  presente  e  do  pretérito  imperfeito  do  indicativo:  nós  nem  pode  (em  vez  de  nós  nem  podemos),  nós  sentia  (em  vez  de  nós  sentíamos),  nós  pega  (em  vez  de  nós  pegamos),  os  homi  tá  (em  vez  de  os  homens  estão),  nós  sentia  (em  vez  de  nós  sentíamos).  O  emprego  do  pretérito  perfeito  do  indicativo,  contudo,  leva  a  uma  diferenciação  na   flexão  do  verbo,   com  o  morfema  característico  da  primeira  pessoa  do  plural   sendo  morfologicamente  realizado:  construímos,  peguemos,  conformemos,  cantemos.  É  importante  observar  que,  quando  o   verbo  pertence  à  primeira   conjugação,   a   vogal   temática  que   se   realiza  nas   formas  do  pretérito  perfeito  passa  a  ser  -­‐e,  e  não  -­‐a:  peguemos,  conformemos,  cantemos  (em  lugar  de  pegamos,  conformamos,  cantamos).      Quanto   à   concordância   nominal,   vemos   a   realização   da   marca   de   plural   apenas   no   primeiro   item   do  sintagma   nominal   (os   homi,  nossas   coisa,  as   páia,  as   grama,  os   jardim,  dias   feliz),   o   que   também  é   uma  marca  bastante  comum  nas  variedades  populares  do  português  brasileiro.      Além  desses  fatos  relacionados  à  concordância  verbal  e  nominal,  encontramos  em  Saudosa  Maloca  outras  marcas   sintáticas   interessantes,   como   a   supressão   morfo-­‐fonológica   do   morfema   indicativo   de   infinitivo  (contá   em   vez   de   contar,   alembrá   em   vez   de   alembrar)   e   o   emprego   do   pronome   se   em   substituição   a  outras  formas  pronominais  oblíquas  (nós  nem  pode  se  alembrá,  só  se  conformemos).      Todos  esses  fatos  revelam  que  o  português  brasileiro  popular,  exemplificado  em  Saudosa  Maloca,  faz  uso  de  regras   morfossintáticas   passíveis   de   sistematização.   Tais   regras   são   tão   complexas   quanto   a   de   outras  variedades  e  línguas  e  podem  ser  estudadas  cientificamente,  à  luz  de  conceitos  da  gramática  tradicional  ou  de  outros  modelos  mais  sofisticados  de  análise  linguística.      

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3      Enquanto  as  regras  da  gramática  normativa  funcionam  muito  mais  como  um  "manual  de  etiquetas"  sobre  como   a   língua   deve   ser   usada,   a   "gramática   internalizada"   é   um   conjunto   de   regras   naturais,   construída  intuitivamente   no   processo   de   aquisição   da   língua,   daí   a   necessidade   de   o   professor   assumir   uma   visão  descritiva  (ou  seja,  científica,  objetiva,  rigorosa,  sem  emissão  de  juízos  de  valor)  ao  explorar  os  fatos  dessa  gramática.  Em  outras  palavras,  o  professor  deve  levar  em  conta  que  os  fatos  gramaticais  característicos  da  variedade  linguística  naturalmente  usada  pelos  seus  alunos  são  tão  legítimos  e  passíveis  de  sistematização  quanto  os  fatos  das  variedades  que  seguem  mais  de  perto  o  padrão  prescrito  pelas  gramáticas  normativas.      Em   um   texto   publicado   recentemente   em   seu   blog,   o   professor   Sírio  Possenti46   chamou   a   atenção  para   dois   projetos   de   lei   (um  na  Assembleia  Legislativa   do   Rio   de   Janeiro   e   outro   na   de   Minas   Gerais)   que   tentam  restringir  o  conteúdo  dos  livros  didáticos  à  norma  culta.  Um  desses  projetos  traz  o  seguinte  trecho:      Fica  proibida  a  adoção  e  distribuição  na  rede  de  ensino  pública  e  privada  do  Estado  do  Rio  de  Janeiro  de  qualquer  livro  didático,  paradidático  ou  literário  com  conteúdo  contrário  à  norma  culta  da  língua  portuguesa  ou  que  viole  de  alguma  forma  o  ensino  correto  da  gramática  de  nosso  idioma  nacional.      Uma  vez  aprovados,  projetos  de   leis  desse   tipo  baniriam  canções  como  as  de  Adoniran  Barbosa  dos  livros  didáticos.  E  não  só:  autores  como  Guimarães  Rosa,  Oswald  de  Andrade  e  Mário  de  Andrade  teriam  alguns  de  seus  textos  mais   importantes  excluídos  dos   livros  de   literatura,  uma  vez  que  exploram  fartamente  fatos  de  variedades  não  padrão  do  português.          

46 Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/blogdosirio/blog/2012/04/26/janio-nao-morreu/, acesso em 02/05/2012.

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Finalizando  ________________________________________________________________________________________    O  trabalho  com  o  conceito  de  gramática  internalizada  exige,  como  vimos,  uma  postura  descritiva  frente  aos  fatos   da   língua.   Isso   não   significa,   contudo,   que   o   ensino   da   norma   culta   deva   ser   colocado   em   segundo  plano.  Levar  o  aluno  a  refletir  sobre  a  sua  gramática   internalizada,  conduzindo-­‐o  a  perspectivas  de  análise  mais   produtivas   em   relação   à   sua   variedade   linguística,   resultará   certamente   em   um   trabalho   mais  enriquecedor  na  abordagem  da  chamada  "norma  culta".    Voltaremos  a  abordar  esse   tópico  mais   adiante,  quando   iremos   refletir  um  pouco  mais   sobre  o   lugar  dos  estudos  gramaticais  na  disciplina  de  Língua  Portuguesa.    

47        

47 Fonte: http://carlosoliveira.arteblog.com.br/549799/Norma-culta-X-variantes-linguisticas-qual-deve-ser-a-posicao-da-

escola/, acesso em 07/05/2012.

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Ampliando  os  conhecimentos  I  ________________________________________________________________________________________    Para  ampliar  seu  conhecimento  sobre  os  assuntos  abordados  neste  Tema,  você  pode  ler:      Nada  na   língua  é  por  acaso:  ciência  e  senso  comum  na  educação  em  língua  materna48,  de  Marcos  Bagno:  Esse  artigo  contrapõe  o  discurso  científico  e  o  discurso  do  senso  comum  no  tratamento  de  fatos  linguísticos,  chamando  a  atenção  para  incongruências  da  Gramática  Tradicional,  que  ainda  está  na  base  da  abordagem  gramatical  na  disciplina  de  Língua  Portuguesa.    Ensino  da   língua  em  contexto  de  mudança49,  de  Maria  Eugenia   Lamoglia  Duarte:  O  texto,  que   resulta  de  uma   conferência   proferida   a   estudantes   de   Letras,   aborda   fatos   de   variação   e   mudança   no   português,  discutindo,  dentre  outros  tópicos,  a  falta  de  sintonia  entre  a  disciplina  de  Língua  Portuguesa  e  a  realidade  linguística  brasileira.    Entrevista   com  Maria  Marta   Pereira   Scherre   sobre   preconceito   linguístico,   variação   linguística   e   ensino50,  por  Jussara  Abraçado:  Nessa  entrevista,  a  sociolinguista  Marta  Scherre  discorre  sobre  os  efeitos  negativos  do  preconceito   linguístico  no  ensino  de   Língua  Portuguesa  e   sobre  a  necessidade  de  abordar,   em  sala  de  aula,  a  variação  linguística.    Como   falam   os   brasileiros51,   de   Yonne   Leite   e   Dinah   Callou:   O   livro   apresenta   fatos  linguísticos   em  diferentes   falares   brasileiros   (carioca,   gaúcho,   paulista,   baiano  e   pernambucano),   à   luz   da   sociolinguística  variacionista.    Ensino  de  Gramática  -­‐  Descrição  e  Uso52,  coletânea  de  textos  organizada  por  Silvia  Rodrigues  Vieira  e  Silvia  Figueiredo   Brandão:   O   livro   reúne   artigos   sobre   diferentes   tópicos   de   análise   gramatical,   sugerindo  estratégias  para  o  desenvolvimento  de  abordagens  que  ajudem  o  aluno  a  refletir  adequadamente  sobre  a  forma  e  o  funcionamento  da  língua.    Norma   culta  brasileira:   desatando  alguns  nós53,   de  Carlos  Alberto   Faraco:  O   livro   aborda  os   conceitos  de  norma,  norma  culta,  norma  padrão  e  norma  gramatical,  destacando  confusões  e  incoerências  no  uso  que  se  costuma  fazer  desses  conceitos.    Ensino   e   aprendizado  da   língua  materna54,   de  Celso  Pedro   Luft:  O  autor  reflete   sobre  os   descaminhos  da  disciplina   de   Língua   Portuguesa   e   propõe   uma   abordagem   que   tenha   como   ponto   de   partida   o  conhecimento  natural  do  aluno  a  respeito  dos  fatos  da  sua  língua.  ________________________________________________________________________________________    

48 Fonte: http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=12, acesso em 14/04/2011. 49 Fonte: http://www.filologia.org.br/anais/anais%20iv/civ12_3.htm, acesso em 03/05/2012. 50 Fonte: http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/36/entrevista.pdf, acesso em 14/04/2011. 51 Fonte: http://www.zahar.com.br/catalogo_detalhe.asp?id=0724&ORDEM=2, acesso em 14/04/2011. 52 Fonte: http://www.editoracontexto.com.br/produtos.asp?cod=320, acesso em 14/04/2011. 53 Fonte: http://www.parabolaeditorial.com.br/releasenormaculta.htm, acesso em 14/04/2011. 54Fonte: http://globolivros.globo.com/busca_detalhesprodutos.asp?pgTipo=CATALOGO&idProduto=923, acesso em

14/04/2011.

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Ampliando  os  conhecimentos  II  ________________________________________________________________________________________    WEBGRAFIA    Para  ampliar  seu  conhecimento  sobre  os  assuntos  abordados  neste  Tema,  você  também  poderá  ver  na  WEB:      Entrevista  do  Professor  Sírio  Possenti,  linguista  da  Unicamp,  ao  jornalista  Juca  Kfouri.  Dividida  em  três  partes  (PARTE   155   PARTE   256   PARTE   357),   a   entrevista   aborda   diferentes   questões   relacionadas   ao   papel   da  Linguística  na  análise  de  propriedades  da  língua.  Clique  aqui58  para  entrar  no  blog  do  Prof.  Sírio  Possenti  e  aqui59  para  ler  o  artigo  de  sua  autoria  mencionado  na  primeira  parte  da  entrevista.      Páginas   de   projetos   voltados   à   descrição   de   variedades   do   português,   com   áudios,  transcrições   de  entrevistas  e/ou  resultados  de  estudos  sobre  o  uso  da  língua  nessas  variedades:    NURC-­‐RJ60:  Estudo  da  Norma  Urbana  Culta  no  Rio  de  Janeiro    PEUL61:  Programa  de  Estudos  do  Uso  da  Língua  (Rio  de  Janeiro)    PROJETO  ALIP62:  Amostra  Linguística  do  Interior  Paulista    VARPORT63:   Variedades   contrastivas   do   português   (dados   de   fala   e   escrita   do   português   brasileiro   e   do  português  europeu)    PROFALA64:  Variação  e  processamento  da  fala  e  do  discurso  (Ceará)    VERTENTES65:  Português  Popular  do  Estado  da  Bahia    LUAL66:  Língua  Usada  em  Alagoas    COMUNIDADES  QUILOMBOLAS67:  Levantamento  Etnolinguístico  de  Comunidades  Afro-­‐brasileiras  de  Minas  Gerais  e  Pará    CORDIAL-­‐SIN68:  Corpus  Dialectal  para  o  Estudo  da  Sintaxe  (Português  Europeu)    CRPC69:  Corpus  de  Referência  do  Português  Contemporâneo    ________________________________________________________________________________________    

55Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=L4hbZYndovM, acesso em 14/04/2011. 56Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=ydj42OqNF08&feature=related, acesso em 14/04/2011. 57Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=bHrOsn5OGYo&feature=related, acesso em 14/04/2011. 58Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/ultimas/0,,TIU-EI8425,00.html, acesso em 14/04/2011. 59Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1817886-EI8425,00-Redundantemente.html, acesso em

14/04/2011. 60 Fonte: http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/, acesso em 14/04/2011. 61 Fonte: http://www.letras.ufrj.br/peul/index.html, acesso em 14/04/2011. 62 Fonte: http://www.iboruna.ibilce.unesp.br/index.php, acesso em 14/04/2011. 63 Fonte: http://www.letras.ufrj.br/varport/, acesso em 14/04/2011. 64 Fonte: http://www.profala.ufc.br/, acesso em 14/04/2011. 65 Fonte: http://www.vertentes.ufba.br/home, acesso em 14/04/2011. 66 Fonte: http://www.fale.ufal.br/projeto/prelin/bancodedados.php, acesso em 14/04/2011. 67 Fonte: http://www.fflch.usp.br/dl/indl/index.php, acesso em 14/04/2011. 68 Fonte: http://www.clul.ul.pt/sectores/variacao/cordialsin/projecto_cordialsin_corpus.php#manuais, acesso em

14/04/2011. 69 Fonte: http://www.clul.ul.pt/sectores/linguistica_de_corpus/projecto_crpc.php, acesso em 14/04/2011.

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Ampliando  os  conhecimentos  III  ________________________________________________________________________________________    Para  concretizar  alguns  dos  assuntos  que  discutimos  no  Tópico  1,  você  pode  assistir  ao  filme  Nell70:  

   

 Título  original:  (Nell)    Lançamento:  1994  (EUA)    Direção:  Michael  Apted    Atores:  Jodie  Foster,  Liam  Neeson,  Natasha  Richardson,  Richard  Libertini.    Duração:  115  min    Gênero:  Drama      Sinopse    Uma  jovem  (Jodie  Foster)  é  encontrada  em  uma  casa  na  floresta,  onde  vivia  com  sua  mãe  eremita,  mas  o  médico  (Liam  Neeson)  que  a  encontra  após  a  morte   da   mãe   constata   que   ela   se   expressa   em   um   dialeto   próprio,  evidenciando   que   até   aquele   momento   ela   não   havia   tido   contado   com  outras  pessoas.   Intrigado  com  a  descoberta  e  ao  mesmo  tempo  encantado  com   a   inocência   e   a   pureza   da   moça,   ele   tenta   ajudá-­‐la   a   se   integrar   na  sociedade.      Para   ler   uma   resenha   do   filme,   clique   aqui71.   Você   pode   ver   o   trailer,  clicando  aqui72.  

________________________________________________________________________________________    

70 Fonte: http://sarahmoura-geo.blogspot.com/2010/10/nell.html, acesso em 09/04/2011. 71 Fonte: Fonte: http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=73, acesso em 09/04/2011. 72 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=1UZp5v2Gj04, acesso em 09/04/2011.

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Ampliando  os  conhecimentos  IV  ________________________________________________________________________________________    Assista   ao   filme  Desmundo   para   refletir   um  pouco  mais   sobre  os   assuntos   tratados   nos   Tópicos   2   e   3.   A  história  se  passa  no  Brasil  da  segunda  metade  do  século  XVI.  O  filme  procura  reproduzir  a  fala  da  época,  que  apresenta   construções   linguísticas   completamente   estranhas   aos   falantes   das   atuais   variedades   do  português.   O   material   é   uma   boa   oportunidade   para   observar   e   analisar   as   formas   linguísticas,   hoje  agramaticais,  que  eram  usuais  em  estágios  anteriores  do  português.      

 

Título  original:  (Desmundo)    Lançamento:  2003  (Brasil)    Direção:  Alain  Fresnot    Atores:  Simone  Spoladore73,  Osmar  Prado74,  Berta  Zemei,  Beatriz  Segall.    Duração:  100  min    Gênero:  Drama    

 Clique  aqui75  para  ler  a  sinopse  do  filme.    Você  também  pode  ver  o  trailer  do  filme,  clicando  aqui76.  ________________________________________________________________________________________    

73 Fonte: http://www.adorocinema.com/atores/simone-spoladore/, acesso em 14/04/2011. 74 Fonte: http://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-97290/, acesso em 07/05/2012. 75 Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/desmundo/, acesso em 14/04/2011. 76 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=i7MznCZyKhI, acesso em 16/04/2011.

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Referências  Bibliográficas  ________________________________________________________________________________________    ABRAÇADO,   J.   Entrevista   com  Marta   Pereira   Scherre   sobre   preconceito   linguístico,   variação   linguística   e  ensino.  Caderno  de  Letras  da  UFF,  36,  2008.  P.  11-­‐26.      BAGNO,  M.  Nada  na  língua  é  por  acaso:  Ciência  e  senso  comum  na  educação  em  língua  materna.  Disponível  em:  http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=37,  acesso  em  10/04/2011.      DUARTE,   M.   E.   L.   Ensino   da   língua   em   contexto   de   mudança.   Disponível   em:  http://www.filologia.org.br/anais/anais%20iv/civ12_3.htm,  acesso  em  10/04/2011.      FARACO,  C.  A.  Norma  culta  brasileira:  Desatando  alguns  nós.  São  Paulo:  Parábola  Editorial,  2008.      LEITE,  Y.;  CALLOU,  D.  Como  falam  os  brasileiros.  Rio  de  Janeiro:  Jorge  Zahar,  2002.      LUFT,  C.  P.  Ensino  e  aprendizado  da  língua  materna.  São  Paulo:  Globo,  2007.      PINKER,   S.  O   instinto   da   linguagem   -­‐   como   a  mente   cria   a   linguagem.   São   Paulo:  Martins   Fontes,   2002.  Tradução  de  Claudia  Berliner.        VIEIRA,  S.  R.;  BRANDÃO,  S.  F.  Ensino  de  gramática  -­‐  Descrição  e  uso.  São  Paulo:  Contexto,  2007.        

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Tema:  2.  Da  gramática  ao  texto:  elementos  de  análise    

Tópico  1:  Nomenclatura  gramatical    

Ponto  de  partida  ________________________________________________________________________________________    Toda  atividade  ou  campo  de  conhecimento  no  qual  é  necessário  desenvolver  categorizações   exige   o   desenvolvimento   de   uma   taxonomia78,   que   pode  resultar   na   formulação   de   nomenclaturas.   Além   de   facilitar   a   descrição   de  um   objeto   complexo,   a   adoção   de   nomenclaturas   garante   uma   base  uniforme,  comum  a  diferentes  estudos  sobre  esse  mesmo  objeto,  a  partir  da  qual  se  podem  fazer  generalizações,  consolidar  hipóteses,  testar  previsões  e  comparar  o  alcance  de  diferentes  análises.    A  gramática  se  inclui  entre  as  áreas  de  conhecimento  que,  pela  natureza  do  seu   objeto   de   observação   (a   sintaxe,   a   morfologia   e   a   fonologia   de   uma  língua),   requer   o   recurso   a   nomenclaturas.   A   Gramática   Tradicional79,   que  remonta   à   antiguidade   greco-­‐romana,   emergiu   historicamente   como   um  aparato   que,   na   intenção   de   preservar   um   determinado   estado   da   língua,  exigiu  o  esforço  da  taxonomia  para  categorizar,  dentre  outros  elementos,  as  chamadas  partes  do  discurso.  Essa  taxonomia  serviu  de  base  às  nomenclaturas  que  orientaram  a  descrição  das  línguas  no  mundo  ocidental,  com  sua  influência  se  fazendo  sentir  até  os  dias  atuais.    No   século   XX,   com   as   teorias   gramaticais   se   consolidando   como   campos   de   investigação   científica,   as  diferentes   correntes   de   estudos   linguísticos   voltados   à   gramática   das   línguas   naturais   passam   a   elaborar  nomenclaturas   cada   vez  mais   sofisticadas,   que   têm  por   objetivo   não   apenas   descrever   uma  determinada  língua,   mas   também   assegurar   o   poder   explanatório   de   seus   modelos.   Mais   do   que   operar   com   a  classificação  das  partes  do  discurso  (substantivo,  adjetivo,  verbo  etc.)  e  suas  funções  (sujeito,  complemento,  adjunto  etc.),  esses  modelos  investem  na  categorização  de  processos  e  configurações  frasais80,  no  intuito  de  explicar  o  conhecimento  e/ou  uso  da  gramática  pelos  falantes  de  uma  língua.    E  quanto  à  nomenclatura  gramatical  empregada  no  âmbito  da  disciplina  de  Língua  Portuguesa,  qual  é  a  sua  finalidade?  O  recurso  a  essa  nomenclatura  tem  tido  sucesso?  Os  conceitos  e  definições  em  sua  base  têm  acompanhado  o  avanço  dos  estudos  gramaticais  desenvolvidos  em  diferentes  correntes  da  Linguística  contemporânea?      ________________________________________________________________________________________    

77 Fonte: http://www-man.blogspot.com/2010/09/classificacao-dos-seres-vivos.html, acesso em 13/05/2011. 78 "Taxonomia" quer dizer uma "classificação", a criação de um conjunto de categorias para classificar as coisas do

mundo, inclusive os fatos da língua. 79Fonte:http://books.google.com.br/books?id=HtNkpew8OnQC&printsec=frontcover&hl=pt-

BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, acesso em 13/05/2011. 80 A gramática gerativa, por exemplo, trabalha, em seus diferentes desdobramentos, com a classificação de procedimentos

derivacionais que entram em jogo na estruturação sintática de uma sentença. Essa classificação procura captar as propriedades que garantem a gramaticalidade de uma sentença, dando base às previsões sobre o que resulta na boa ou má formação de uma expressão linguística.

(Clique na imagem77 para ampliá-la)

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Mãos  à  obra  ________________________________________________________________________________________    No  tópico  2  do  Tema  1,  analisamos  brevemente  um  verso  de  Cotidiano,  de  Chico  Buarque,  em  que  o  verbo  sorrir,   um   item   tipicamente   intransitivo,   é   empregado   com   um   complemento   (Sorri   um   sorriso   pontual).  Clique  aqui81  para  assistir  a  um  vídeo  em  que  acontece  o  oposto:  dois  verbos  tipicamente  transitivos  (roubar  e  fazer)  são  empregados  sem  complemento.  Depois  de  assistir  ao  vídeo,  reflita  sobre  as  seguintes  questões:      

• Dentro   do   contexto   de   elaboração   desse   vídeo,   por   que   os   dois   verbos   podem   dispensar   a  explicitação  de  um  complemento?  

 • Ao  tratar  da  transitividade  verbal  com  seus  alunos,  você  associa  a  necessidade  de  complementação  

ao   contexto   de   ocorrência   do   verbo   ou   se   limita   a   apresentar   frases   descontextualizadas,   em  atividades  que  funcionam  apenas  como  exercícios  de  fixação?  

 • Se,   em   lugar   de   verbo   transitivo   e   verbo   intransitivo,   recorrêssemos   às   noções   de   oração  

transitiva   e  oração   intransitiva,   você   acha  que  o   tratamento  da   transitividade   verbal   se   tornaria  mais   produtivo   em   sala   de   aula?   Qual   seria   o   conceito   de   oração   transitiva?   E   de   oração  intransitiva?    

________________________________________________________________________________________  

81 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=7ZZD-H66M1Y, acesso em 13/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    A  nomenclatura  gramatical  que  atualmente  serve  de  base  à  disciplina  de  Língua  Portuguesa  tem  sido  alvo  de  severas   críticas,   tanto   pela   finalidade   com   que   tem   sido   empregada   em   sala   de   aula   quanto   pelas  inconsistências  conceituais  em  sua  base.    No   que   diz   respeito   à   finalidade,   é   importante   ter   em   mente   que   a   adoção   de   uma   nomenclatura,   em  qualquer   campo  de   saber,   não  deve   ter   como   fim  o   seu  próprio   aprendizado,  mas   ser   um   instrumento   a  serviço  de  práticas  específicas,  facilitando  a  descrição  e  análise  de  um  objeto  em  estudo.      

Pense   nas   nomenclaturas   que   os   estudantes   de   medicina   precisam  aprender   para   exercer   a   profissão   que   escolheram.   Para   esses  estudantes,   a   nomeação   dos   diferentes   ossos   do   corpo   humano   ou  das  partes  do  cérebro,  por  exemplo,  é  um  apoio  fundamental  tanto  à  aquisição  de   conhecimentos   sobre  o   funcionamento  do  nosso   corpo  quanto  ao  aprendizado  das  técnicas  que  deverão  realizar  em  sua  vida  profissional.   Nenhum   estudante   de   medicina   aprende   o   nome   dos  ossos   ou   das   partes   do   cérebro   simplesmente   para   mostrar   que  consegue   reconhecer   esses   elementos,   mas   para   garantir   que   a  execução  de  diferentes  atividades  no  exercício  de   sua  profissão   seja  bem  sucedida.  

 Nas  aulas  de  gramática,   costumamos  ver  o   contrário:  a  nomenclatura  gramatical  apresentada  aos  alunos,  que   traz   uma   extensa   lista   de   classes   e   funções,   não   tem   tido   uma   finalidade   para   além   do   seu   próprio  aprendizado.  O  ensino  da  nomenclatura   fica  quase  sempre  restrito  à   função  de  medir  o  conhecimento  do  aluno  em  atividades  voltadas  à  simples  classificação  morfológica  ou  a  análises  sintáticas  automatizadas,  sem  qualquer   reflexão  mais   sofisticada  e  produtiva  em   torno  dos   fatos  da   língua.  Mesmo  quando  o   seu  uso  é  pretensamente  voltado  a  atividades  de  recepção  textual,  é  comum  vermos  o  texto  ser  usado  como  um  mero  instrumento  (ou,  como  se  costuma  dizer,  como  um  "pretexto")  para  treinar  o  aluno  no  reconhecimento  das  diferentes  classes  e  funções.      A   adoção   de   uma   nomenclatura   gramatical   deve   ter   um   alcance   que   vai   muito   além   do   seu   próprio  aprendizado.   Um   dos   seus   objetivos   deveria   ser   o   de   ajudar   o   aluno   a   refletir   sobre   a   sua   gramática  internalizada  para,  a  partir  daí,  analisar  a  língua  em  funcionamento  e  depreender,  com  mais  autonomia,  as  regras  que  alicerçam  o  seu  uso.          

82 Fonte: http://cistosaracnoide.org/anatomia.html, acesso em 13/05/2011.

 

(Clique  na  imagem82  para  ampliá-­‐la)  

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    Considere,  a  título  de  exemplo,  o  tratamento  da  transitividade  verbal,  sobre  a  qual  você  refletiu  na  seção  Mãos  à  obra.  Depois  de   ser  apresentado  à  divisão  dos  verbos  em  transitivos,   intransitivos  e  de   ligação,  o  aluno   passa   a   ser   cobrado   quanto   à   classificação   desses   itens   no   que   diz   respeito   à   necessidade   de  complementação  e/ou  quanto  ao  seu  papel  na  nucleação  de  um  predicado.  Pouco  ou  nada  se  diz  sobre  as  propriedades  semântico-­‐discursivas  demonstradas  pelos  diferentes  tipos  de  verbo  ou  sobre  a  possibilidade  de  um  mesmo  verbo,  a  depender  do  seu  contexto  de  ocorrência,  mostrar  comportamentos  diversos  no  que  concerne  à  transitividade  e,  por  extensão,  produzir  efeitos  de  sentido  diferenciados  na  constituição  de  uma  sentença.      Tome  como  exemplo  o  tratamento  comumente  oferecido  pelos  livros  didáticos  aos  verbos  de  ligação,  assim  chamados   por   serem   tradicionalmente   analisados   como   tendo   um   conteúdo   sem   função   predicativa   e  servirem  para  articular  o  sujeito  da  oração  com  o  núcleo  semântico  do  predicado.  Uma  vez  colocados  em  contato   com  essa  definição,  os   alunos   são   cobrados  quanto  ao   reconhecimento  de  que  verbos   como   ser,  estar,   ficar,   permanecer,   continuar   etc.   são   itens   que   pertencem   à   categoria   dos   verbos   de   ligação.   Os  exercícios  de  classificação  em  torno  desses  verbos  deveriam,  contudo,  ser  acompanhados  de  uma  reflexão  a  respeito   dos   efeitos   desencadeados   pelo   seu   emprego   na   construção   dos   enunciados.   Isso   ajudaria   os  alunos  na  percepção  de  que  os   verbos  de   ligação  não   servem  apenas  para   ligar  um  sujeito  ao  predicado,  mas  também  para  produzir  uma  série  de  efeitos  sintático-­‐discursivos  (como  a  impessoalização  da  oração)  e  morfossemânticos  (como  diferentes  nuances  tempo-­‐aspectuais)  que  determinam  o  sentido  dos  enunciados.      O  verbo  ser,  por  exemplo,  pode  dispensar  a  ocorrência  de  um  sujeito  referencialmente  definido,  passando  a  funcionar   como   um   verbo   impessoal   ou   conduzindo   a   uma   interpretação   que   sugira   incerteza   ou  indeterminação  referencial  no  tocante  ao  sujeito.  Observe,  por  exemplo,  as  várias  ocorrências  do  verbo  ser  em  Águas  de  Março83,  famosa  canção  de  Tom  Jobim,  e  reflita  sobre  as  seguintes  questões:  é  possível,  dentro  da  letra  dessa  música,  identificar  facilmente  os  sujeitos  dos  predicados  com  esse  verbo?  Na  ausência  de  um  sujeito  explícito  para  predicados  do  tipo  "É  pau,  é  pedra,  é  o  fim  do  caminho",  o  verbo  ser  pode  continuar  sendo   chamado   "de   ligação"?   Que   efeito   é   obtido   pela   sequência   de   predicados   sem   sujeito?   Questões  desse  tipo,  que  são  fundamentais  para  levar  o  aluno  a  refletir  sobre  as  construções  com  o  verbo  de  ligação  no   conhecimento   e   uso   da   língua,   costumam   ser   inteiramente   deixadas   de   lado   na   abordagem   da  transitividade  verbal.      ________________________________________________________________________________________    

83 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=xRqI5R6L7ow, acesso em 16/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3    

 No  que  diz  respeito  às  limitações  da  nomenclatura  gramatical  empregada  pelos  livros  didáticos,  a  percepção  das  inconsistências  se  deve  em  grande  medida  ao  fato  de  os  conceitos  em  sua  base  não  terem  acompanhado  o  avanço  dos  modelos  de  análise  gramatical  na  segunda  metade  do  século  XX.  Esses  modelos  são  voltados  à  observação  da  linguagem  oral  e/ou  da  intuição  dos  falantes,  o  que  levou  à  emergência  de  taxonomias  bem  mais  sofisticadas  que  as  formuladas  à  luz  da  Gramática  Tradicional.      A  nomenclatura  gramatical  empregada  atualmente  nas  escolas  brasileiras  (conhecida   como   NGB84),   que   resulta   do   final   da   década   de   50,   tinha  entre  seus  objetivos  uniformizar  as  nomenclaturas  utilizadas  em  âmbito  escolar,  para  o  quê  teve  um  evidente  sucesso.  Contudo,  frente  às  teorias  gramaticais   que   se   consolidaram   a   partir   de   diferentes   modelos   de  análise   linguística,   essa   nomenclatura   se   tornou   obsoleta   e  contraproducente,   incapaz   de   atender   satisfatoriamente   a   uma  abordagem   moderna   das   propriedades   demonstradas   pelas   línguas  naturais.      É  injustificável,  por  exemplo,  que  o  ponto  de  partida  para  o  tratamento  das  partes  da  oração  continue  a  ser  uma  divisão  dos  termos  em  essenciais,  integrantes  e  acessórios,  quando  se  sabe  que  o  comportamento  dos  constituintes  oracionais  não  confirma  os  pressupostos  que  motivam  essa  divisão.  O  sujeito,  por  exemplo,  é  um   termo   que   continua   a   ser   classificado   como   essencial,   muito   embora   as   orações   sem   sujeito   sejam  bastante  frequentes  na  língua.  O  agente  da  passiva,  classificado  como  integrante,  é  dispensado  na  maioria  das  orações  com  o  verbo  na  voz  passiva,  não  se  justificando  a  sua  inclusão  entre  os  termos  desse  tipo.  Parte  dos  sintagmas  com  interpretação   locativa   (como  na  estante  em  Pus  o   livro  na  estante)  classificados  como  adjuntos  adverbiais,  que  são  termos  acessórios,  é  necessária  à  complementação  verbal,  mas  a  nomenclatura  não  prevê  qualquer  tipo  de  função  para  tais  sintagmas  entre  os  termos  integrantes.      A  lista  de  inconsistências  é  imensa  e  a  sua  explicitação  exigiria  um  espaço  que  vai  muito  além  ao  destinado  para   esse   curso.   Na   seção   Ampliando   os   conhecimentos   I,   você   encontrará   indicações   de   trabalhos   que  tratam  desse  assunto.            

84 Fonte: http://www.portaldalinguaportuguesa.org/?action=ngbras, acesso em 13/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  4    

 Uma  vez  assimiladas,  as  nomenclaturas  passam  a  moldar  a  visão  das  pessoas  a  respeito  do  objeto  que  é  alvo  da  descrição.  No  que  diz  respeito  à  gramática,  isso  é  evidente:  a  NGB  é  a  base  sobre  a  qual  os  professores  e  alunos  constroem  suas  representações  acerca  de  como  a  gramática  da  língua  se  constitui.      Para  citar  um  exemplo,  considere  a  proposta  da  NGB  para  os  complementos  verbais.  A  simples  divisão  em  objeto   direto   e   objeto   indireto   conduz   à   crença   de   que   a   preposição   é   o   único   elemento   relevante   para  determinar   o   tipo   de   complementação.   Porém,   antes   da   consolidação   da   NGB,   os   termos   que   hoje   são  incluídos   entre   os   objetos   indiretos   eram   classificados   com  base   em   critérios   que   levavam  em   conta   não  apenas  a  preposição,  mas  outros  aspectos  de  ordem  morfossintática  e  semântico-­‐discursiva.        A  gramática85  de  Rocha  Lima86  é  uma  das  que  mantiveram  o  tratamento  conferido  à  complementação  verbal  antes  da  NGB.  Esse  autor  divide  os  complementos  verbais  em  objeto  direto,  objeto  indireto,  complemento  relativo   e   complemento   circunstancial.   O   que   ele   chama   de   objeto   indireto   se   restringe   aos   termos   com  interpretação  benefactiva87  e  outras  afins,  que  podem  ser  substituídos,  quando  envolvem  a  terceira  pessoa  gramatical,  pelo  pronome   lhe.    É  o  caso,  por  exemplo,  do  termo  ao  menino  em  Dei  o   livro  ao  menino,  que  admite,  na  norma-­‐padrão,  a  substituição  por  esse  pronome  (Dei-­‐lhe  o  livro).        Nessa   mesma   gramática,   os   complementos   relativos,   necessariamente  introduzidos   por   uma   preposição,   não   podem   ser   substituídos   por   um  pronome  oblíquo  (por  exemplo,  o  termo  de  você  em  orações  como  Preciso  de  você).   Os   complementos   circunstanciais,   por   sua   vez,   são   aqueles   exigidos  pelo   verbo,   podendo   ou   não   ser   preposicionados,   indicativos   de   uma  circunstância   locativa   (como   em   Pus   o   livro  na  mesa),   direcional   (como   em  Vou  ao  Rio),  temporal  (como  em  A  reunião  vai  até  de  madrugada),  valorativa  (O   livro   custou   cem   reais)   etc.   Pelo   menos   no   âmbito   da   complementação  circunstancial,   o   resultado   da   NGB   foi   bastante   negativo:   seguindo   essa  nomenclatura,  os  manuais  de  ensino  passaram  a   classificar   termos   como  ao  Rio   em   orações   do   tipo   Fui   ao   Rio   ou   Cheguei   ao   Rio   como   adjuntos  adverbiais,  muito  embora   tais   termos   sirvam  claramente  à   complementação  do  verbo.  A  NGB  "escondeu",  dessa  forma,  critérios  sintático-­‐semânticos  que  poderiam,   se   bem   trabalhados   pelo   professor,   ajudar   o   aluno   a   refletir   de  modo  mais  coerente  e  produtivo  sobre  as  estratégias  de  complementação  em  sua  gramática  internalizada.            

85 Fonte: http://www.record.com.br/livro_sinopse.asp?id_livro=24996, acesso em 16/05/2011. 86 Fonte: http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/homenageado.htm, acesso em 13/05/2011. 87 Benefactivo: aspecto que indica ação praticada em benefício de alguém, como por exemplo o verbo "doar" em "Doei-

lhe todo meu dinheiro".

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Atividade  autocorrigível  3a      Leia  as  afirmações  a  seguir  e  reconheça  quais  delas  trazem  informações  corretas  a  respeito  da  abordagem  oferecida  pelo  gramático  Said  Ali  (clique  aqui88  para  acesso  ao  texto)  aos  verbos  transitivos  e  intransitivos  do  português   em   sua  Gramática  Histórica   da   Língua   Portuguesa89,   que   reúne   estudos   publicados   em   1921   e  1927.    a)90  Said  Ali  classifica  como  transitivos  os  verbos  que  exigem  um  complemento  e  como  intransitivos  os  que  dispensam  um  complemento.    b)91  Parte  dos  verbos  que  Said  Ali  chama  de  intransitivos  relativos  corresponde  àqueles  que  a  NGB  classifica  como  transitivos  indiretos.    c)92  De  acordo  com  Said  Ali,  a  linha  entre  verbo  transitivo  e  verbo  intransitivo  não  é  rigorosa  porque  não  há  um  consenso  entre  os  gramáticos  sobre  qual  é  a  melhor  forma  de  classificar  os  verbos.    d)93  Said  Ali  afirma  que  os  complementos  de  verbos  intransitivos  devem  ser  chamados  de  objetos  indiretos  circunstanciais,  uma  vez  que  compartilham  propriedades  com  os  termos  de  função  adverbial.    e)94  Por  resultar  de  uma  nomenclatura  que  data  do  início  do  século  passado,  a  classificação  usada  por  Said  Ali   não   pode   ser   estendida   ao   português   contemporâneo,   já   que   a   língua   portuguesa   sofreu   várias  mudanças  ao  longo  do  século  XX  e  muitos  verbos  que  eram  intransitivos  passaram  a  ser  transitivos  e  vice-­‐versa.        

88Fonte:https://autoria.ggte.unicamp.br/tinymce/plugins/filemanager/files/lingua_portuguesa/modulo_04/funcionamento_l

ingua_gram_texto_sentido/Said_Ali_verbos.pdf, acesso em 13/05/2011. 89Fonte:http://www.iel.unicamp.br/biblioteca/gramaticaindex.php?fg=arquivos/Said_Ali_historica/paginasiniciais.pdf&m

n=gramatica1menu.php, acesso em 13/05/2011. 90 Incorreto. Na proposta de Said Ali, verbos que pedem complementos também são classificados como intransitivos. 91 Correto. Os verbos intransitivos relativos são, na classificação de Said Ali, aqueles que pedem um complemento

necessariamente introduzido por preposição, que correspondem, em grande parte, aos que NGB denomina transitivos indiretos.

92 Incorreto. De acordo com Said Ali, a linha entre verbo transitivo e verbo intransitivo não é rigorosa porque muitos verbos classificados como transitivos podem, em determinados contextos, ser usados como intransitivos.

93 Correto. De acordo com Said Ali, os complementos de verbo intransitivo, que podem ser preposicionados, mostram “alguma semelhança com as circunstâncias expressas pelos advérbios”.

94 Incorreto. Tanto a classificação usada por Said Ali quanto a proposta pela NGB são convenções, com uma podendo ser usada em lugar da outra independentemente de eventuais mudanças que tenham ocorrido na língua.

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Atividade  autocorrigível  3b      Em  resposta  a  um  artigo  publicado  na  Revista  Veja  (edição  1725)95,  Marcos  Bagno  destaca  o  seguinte:                      Leia  a  resposta96  de  Marcos  Bagno  na  íntegra  e  escolha  a  afirmativa  correta.      a)97  De  acordo  com  Marcos  Bagno,  o  recurso  a  nomenclaturas  sempre  traz  prejuízos  ao  ensino  da  língua.    b)98  O   fato   de  os   grandes   centros   de  pesquisa   linguística   do  Brasil   não   levarem  a   sério   opiniões   como  as  emitidas   por   Pasquale   Cipro   Neto   revela,   segundo   o   texto,   que   as   universidades   brasileiras   rejeitam  categoricamente  as  abordagens  científicas  contemporâneas  em  torno  da  linguagem.    c)99  Marcos  Bagno  defende  que,  em  respeito  à  diversidade  linguística  brasileira,  o  ensino  da  norma-­‐padrão  deve  ser  evitado.    d)100   O   texto   de   Marcos   Bagno   chama   a   atenção   para   o   fato   de   os   meios   de   comunicação   de   massa  mostrarem  despreparo  para  abordar  objetivamente,  de  uma  ótica  científica,  as  questões  sobre  a  língua.    e)101  Marcos  Bagno  se  aproxima  da  opinião  de  Pasquale  Cipro  Neto  no  que  diz   respeito  à  necessidade  do  ensino  da  norma-­‐padrão,  pois  ambos  acreditam  que  essa  norma  é  a  forma  de  realização  mais  completa  da  língua.        

95 Fonte: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx, acesso em 16/05/2011. 96 Fonte: http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=39, acesso em 13/05/2011. 97 Incorreto. De acordo com Marcos Bagno, é a nomeclatura gramatical tradicional, e não o recurso em si às

nomenclaturas, que tem prejudicado as reflexões sobre a língua em âmbito escolar. 98 Incorreto. Segundo o texto, os grandes centros de pesquisa linguística do Brasil não levam a sério opiniões como as

emitidas por Pasquale Cipro Neto porque tais opiniões demonstram uma “atitude anticientífica dogmática e até obscurantista no que diz respeito à língua e seu ensino”.

99 Incorreto. Marcos Bagno defende que o ensino da norma-padrão deve ser um dos objetivos da escola, citando Magda Soares, para quem as camadas populares devem conhecer o padrão “não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais”.

100 Correto. O autor destaca que os meios de comunicação de massa estão “na contramão da História quando o assunto é língua”, pois há “um absoluto despreparo de jornalistas e comunicadores para tratar do tema”.

101 Incorreto. Para Marcos Bagno, a norma-padrão “nem sequer é língua, nem dialeto, nem variedade”, e o seu ensino se justificaria em função de o padrão “ter valores que não podem ser negados – em sua estreita associação com a escrita, ele é o repositório dos conhecimentos acumulados ao longo da história”.

A   grande   diferença   entre   os   lingüistas   e   educadores   que   defendem   o  ensino   da   norma-­‐padrão   e   os   apregoadores   da   doutrina   gramatical  arcaica  está  no  fato  de  que  já  se  sabe  hoje  em  dia  que,  para  aprender  as  formas   mais   padronizadas   e   prestigiosas   da   língua,   não   é   necessário  conhecer   a   nomenclatura   gramatical   tradicional,   as   definições  tradicionais,   nem   praticar   a   velha   e   mecânica   análise   lexical   e   muito  menos  a  torturante  análise  sintática.    

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Finalizando...  ________________________________________________________________________________________    O   emprego   de   uma   nomenclatura   gramatical   em   franca   obsolescência   tem   um   efeito   evidente:   sua  contribuição  para  ajudar  os  alunos  a  desenvolver  reflexões  e  práticas  produtivas  a  partir  da  sua  gramática  internalizada   é   insatisfatória.   Isso   porque   boa   parte   dessa   nomenclatura   é   baseada   não   em   critérios   que  priorizam  a  intuição  dos  falantes  a  respeito  da  língua,  mas  em  um  modelo  que  procura  normatizar  o  idioma,  tendo  como  alvo  uma  gramática  idealizada,  muito  distante  da  realidade  linguística  vivenciada  pelos  falantes.  Resulta   daí,   em   grande   parte,   o   fracasso   da   disciplina   de   Língua   Portuguesa   na   formação   de   alunos   que  consigam  refletir  produtivamente  sobre  os  recursos  de  expressão  da  sua  língua.      

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Tópico  2  -­‐  A  normatização  gramatical  na  análise  linguística    

Ponto  de  partida  

________________________________________________________________________________________    Do  modo  com  vem  sendo  implementado,  o  ensino  de  gramática  costuma  resultar  na  formação  de  ideias  que  estão  repletas  de  equívocos  conceituais  e  inconsistências  empíricas  sobre  as  estruturas  da  língua.  Em  grande  medida,   esses   equívocos   e   inconsistências   derivam   de   uma   postura   acrítica   frente   às   limitações   da  nomenclatura  tradicional  e  às  incongruências  da  gramática  normativa.      

   Os  problemas  não  ficam  restritos  ao  âmbito  escolar  e  acabam  afetando  o  modo  como  diferentes  setores  da  sociedade  avaliam  os   fatos   linguísticos.   É   comum  vermos  pessoas  que  não   conhecem  os   fundamentos  de  uma   análise   gramatical   fazerem   observações   infundadas   sobre   determinadas   construções   linguísticas,  recorrendo   a   critérios   difusos   ou   baseando-­‐se   em   pressupostos   completamente   equivocados   sobre   o  funcionamento  da  língua.      Neste  tópico,  iremos  atentar  para  o  lugar  da  normatização  na  disciplina  de  Língua  Portuguesa  e  refletir  um  pouco  mais  sobre  os  efeitos  da  nomenclatura  tradicional  no  modo  como  as  pessoas  enxergam  a  gramática  da  língua.      

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Mãos  à  obra  ________________________________________________________________________________________    Assista  aos  dois  vídeos  abaixo,  que  mostram  reportagens  a  respeito  do  chamado  gerundismo:    

102    Após  assistir  aos  vídeos,  leia  os  dois  artigos  listados  abaixo  e  reflita  sobre  as  seguintes  questões:      (i)  Por  que  razão  o  gerundismo  causa  tanto  incômodo  entre  as  pessoas?    (ii)   Por   que   os   telejornais   afirmam  que   construções   do   tipo  vou   estar   verificando   a   sua   documentação  devem  ser  evitadas?    (iii)  Considerando-­‐se  o  que  John  Robert  Schmitz  e  Sírio  Possenti  afirmam  a  respeito  dessas  construções,  como  o  gerundismo  deveria  ser  abordado  nas  aulas  de  gramática?      Texto  1:  Vou  estar  defendendo  o  uso  do  gerúndio103,  por  John  Robert  Schmitz      Texto  2:  De  onde  menos  se  espera  -­‐  II104,  por  Sírio  Possenti          

102 Vídeos: Fonte: http://www.youtube.com/v/Bw8hzEbqqy8 ; http://www.youtube.com/v/0DTp0pnI4-I, acesso em

13/05/2011. 103Fonte:http://super.abril.com.br/cotidiano/vou-estar-defendendo-uso-gerundio-445579.shtml, acesso em 13/05/2011. 104Fonte:http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3339983-EI8425,00-De+onde+menos+se+espera+II.html, acesso

em 13/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________  

 Trabalhados  de   forma  acrítica,   os   conceitos  da  Gramática   Tradicional,  aliados  à  postura  normativa,  acabam  por  normatizar  inadequadamente  o   modo   como   é   feita   a   análise   das   estruturas   da   língua.   Em   outras  palavras,  a  fusão  da  Gramática  Tradicional  com  a  gramática  normativa  resulta   não   apenas   em   preceitos   sobre   o   que   é   "bom"   ou   "ruim",  "certo"   ou   "errado",   mas   também   na   regulação   dos   conceitos   e  critérios  que  são  explorados  nas  reflexões  sobre  a  língua.          Essa   normatização   das   reflexões   sobre   a   língua   extrapola   o   âmbito  escolar  e  chega  a  diferentes  setores  da  sociedade.  Com  isso,  as  pessoas  passam   a   tecer   considerações   sobre   os   mais   diferentes   fatos  gramaticais   sem   ter   como   referência   elementos   objetivos,   baseando-­‐se,   quase   sempre,   em   análises   sem   qualquer   ancoragem   empírica   ou  coerência   conceitual.   Essas   considerações   costumam  deixar  de   lado  o  conhecimento  gramatical  internalizado  pelos  falantes  e,  na  maioria  das  vezes,  apoiam-­‐se  em  ideias  que  não  levam  em  conta  o  funcionamento  real  da  língua.    

 É  o   caso,  por  exemplo,  da  afirmação   feita  por  Napoleão  Mendes  de  Almeida   (2005,  p.   42),   na  Gramática  Metódica   da   Língua   Portuguesa,   sobre   o   emprego   do   verbo   ter   em   lugar   de  haver.   De   acordo   com   esse  gramático,                  A  condenação  do  gramático  sobre  o  referido  uso  de  ter  não  tem  qualquer  fundamento,  tendo  em  vista  que  a   substituição   de   haver   ou   existir   por   esse   verbo   não   traz   prejuízos   ao   sentido   ou   à   construção   dos  enunciados.   Cabe   ressaltar   que  há   registros   do   emprego   existencial   de   ter   na   norma   culta   brasileira   pelo  menos  desde  o  século  XIX,  como  destacado  no  estudo  de  Callou  e  Avelar  (2002)  sobre  textos  publicados  em  jornais  daquele  período.        ________________________________________________________________________________________    

constitui   erro  grave,   e   todo  possível   devemos   fazer   para   evitá-­‐lo,  empregar  o  verbo  ter  com  a  significação  de  existir.  Não  devemos  permitir   frases  como  estas:  "Não  tem  nada  na  mala"   (em  vez  de:  "Não   há   nada...")   -­‐   "Não   tem   de   quê"   (em   vez   de:   "Não   há   de  quê")  -­‐  "Não  tem  lugar"  (em  vez  de:  "Não  há  lugar").    

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    Um  exemplo  claro  de  como  a  normatização  da  análise  gramatical  extrapola  o  âmbito  escolar  está  nos  vídeos  apresentados   na   seção  Mãos   à   obra,   que   mostram   dois   influentes  telejornais  brasileiros  abordando  o   famigerado  gerundismo,   tratado  como   "uma   doença   verbalmente   transmissível"   por   um   desses  telejornais.   As   duas   reportagens   incorrem   em   equívocos   de   ordem  empírica   e   conceitual,   a   começar   pela   ideia   de   que   a   estrutura  característica   do   gerundismo   foi   "importada"   do   inglês,   a   partir   de  supostas  traduções  mal  feitas  por  operadores  de  telemarketing.      Como  destacado  pelo  linguista  John  Robert  Schmitz,  a  ideia  de  que  o  gerundismo  resulta  de  uma  transferência  do  inglês  é  absurda,  tendo  em  vista,  entre  outros  aspectos,  que  o  gerúndio  português  apresenta  características  que  não  são  encontradas  naquela   língua.  Além  disso,  como   destaca   Sírio   Possenti,   a   estrutura   representativa   do  gerundismo  não  entrou  recentemente  no  português,  o  que  facilmente  se  comprova  pela  sua  ocorrência  em  um   famoso  manual   de   gramática   e   no   próprio   texto   da  Nomenclatura  Gramatical   Brasileira,   que   data   de  1959.      Há  ainda  outros  equívocos  nas  duas  reportagens,  como  o  dos  jornalistas  que  caracterizam  o  gerúndio  como  um   "tempo   verbal"   (quando,   na   verdade,   é   uma   forma   nominal   do   verbo   que   serve   à   expressão   de  diferentes  tempos  e  aspectos  verbais)  e  o  do  professor  de  português  que  associa  o  emprego  do  gerúndio  à  expressão   do   que   chama   de   "tempo   progressivo".   O   melhor   exemplo   da   falta   de   compreensão   sobre   o  gerundismo   é   o   decreto   pelo   qual   "fica   demitido   o  Gerúndio   de   todos   os   órgãos   do  Governo   do  Distrito  Federal",  medida  que  um  dos  telejornais  vê  com  bons  olhos.  O  autor  desse  decreto  (o  ex-­‐governador  José  Roberto  Arruda,   recentemente   flagrado   recebendo  propina   em  um   vídeo   que   circulou   em   rede   nacional)  não   se   deu   conta   da   diferença   entre   gerúndio   e   gerundismo,   mostrando   desconhecer   a   natureza   da  construção  linguística  contra  a  qual  decidiu  tomar  "medidas  profiláticas".  

 

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3  ________________________________________________________________________________________    Ao  normatizar  o  modo  com  a  gramática  da  língua  é  analisada,  a  nomenclatura  tradicional  resulta  num  efeito  extremamente   negativo   em   âmbito   escolar:   como   serve   de   base   à   normatizações   inconsistentes,   a  abordagem  gramatical  fundamentada  na  NGB  impede  que  o  aluno  (e,  por  vezes,  o  professor)  explore  a  sua  gramática  internalizada105  para  descrever  e  analisar  as  propriedades  da  língua.    Um   exemplo   interessante   de   como   a   nomenclatura   pode   conduzir   a   análises   inconsistentes   está   em   um  artigo  publicado  na  Folha  de  São  Paulo106  em  15  maio  de  2008.  Nesse  artigo,  Pasquale  Cipro  Neto  analisa  a  sentença  Lá  não  figura  no  mapa,  da  música  Subúrbio107,  de  Chico  Buarque,  como  uma  construção  que  exibe  um  caso  de  derivação  imprópria.  De  acordo  com  Pasquale,  a  palavra  lá,  nesse  trecho,  é  "desadverbializada"  e  passa  a  funcionar  como  substantivo.  É  fácil  ver  que  a  análise  de  Pasquale  está  equivocada:  toda  palavra  substantivada   pode   ser   antecedida   de   um   artigo   definido   ou   indefinido;   esse   não   é,   contudo,   o   caso   da  palavra   lá   na   sentença   em   questão,   já   que   uma   construção   do   tipo  O   lá   não   figura   no   mapa   seria,   no  contexto  remetido  pela  letra  da  música,  claramente  agramatical.      Possivelmente,  o  que  levou  Pasquale  ao  equívoco  é  a  análise  tradicional  de  palavras  como  aqui,  aí,  ali  e  lá,  geralmente   classificadas   como   advérbios   à   luz   da   NGB.   Essa   classificação   desconsidera   uma   importante  propriedade  dos  itens  em  questão  no  uso  da  língua:  aqui,  aí,  ali  e  lá  são,  na  verdade,  um  misto  de  pronome  e  advérbio,  pois  além  de  indicarem  uma  circunstância  locativa,  desempenham  uma  função  dêitica108  que  é  típica   das   categorias   pronominais   demonstrativas.   Said   Ali,   em   sua   Gramática   Histórica   da   Língua  Portuguesa   (p.  209-­‐210)109,  procura  captar  essa  propriedade  e  classifica  todos  esses   itens  como  advérbios  pronominais  e  não  apenas  como  advérbios.      O  que  Pasquale  define  como  uma  "criação  morfossintática  -­‐  única!  -­‐  de  Chico"  é  produzido  corriqueiramente  pelos   falantes   da   língua,   em   construções   como   Lá   vende   livro,  Aí   está   frio,  Aqui   ensina   inglês   e  Ali   serve  salada.  De  modo  natural,  qualquer  falante  de  português  é  capaz  de  associar   intuitivamente  as  palavras   lá,  aí,  aqui  e  ali   (que  funcionam  como  sujeito  nesses  exemplos)  a  um  referente  que  poderia  ser  expresso  por  um  sintagma  nominal.  A  criação  "simplesmente  memorável"   (nas  palavras  do  professor)  atribuída  a  Chico  Buarque  é,  como  se  vê,  um  fato  gramatical  bastante  recorrente  no   funcionamento  da   língua,  derivado  de  propriedades   dos   itens   vocabulares   que,   na   gramática   internalizada   dos   falantes,   são   um   híbrido   de  advérbio   e   pronome.   Aliás,   se   fosse   diferente,   os   falantes   jamais   conseguiriam   atribuir   um   sentido   ao  enunciado  Lá  não  figura  no  mapa.        

105 Como vimos, a gramática internalizada é aquela que o falante de uma língua sabe, mesmo sem ter consciência disso, e

usa para se comunicar espontaneamente com outros falantes da língua. 106 Publicado em 15/05/2008 na Folha de São Paulo, na seção Cotidiano. 107 Fonte: http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/suburbio.html, acesso em 13/05/2011. 108 “Dêitico é todo elemento linguístico que, num enunciado, faz referência: (1) à situação em que esse enunciado é

produzido; (2) ao momento do enunciado (tempo e aspecto do verbo); (3) ao falante (modalização). Assim, os demonstrativos, os advérbios de lugar e de tempo, em geral deles derivados, os pronomes pessoais [...] são dêiticos, constituem os aspectos indiciais da linguagem”. (DUBOIS, J. et al. Dicionário de Linguística. São Paulo: Cultrix, 2006: p. 167. 10ª reimpr. da 1ª ed. de 1978)

109Fonte:http://www.iel.unicamp.br/biblioteca/gramaticaindex.php?fg=arquivos/Said_Ali_historica/201-220.pdf&mn=gramatica1menu.php, acesso em 17/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  4    

 Qual deve ser a atitude do professor que se vê diante da necessidade de ensinar gramática, tendo de tomar como ponto de partida uma nomenclatura obsoleta e um conjunto de preceitos inconsistentes em torno do funcionamento da língua? O primeiro passo é a consciência de que, na abordagem de fatos gramaticais, a finalidade da nomenclatura não é o seu aprendizado: antes, ela deve ser um instrumento colocado a serviço de reflexões e práticas produtivas sobre a linguagem. De nada adianta o aluno conseguir, por exemplo, distinguir o sujeito do predicado se, na prática, é incapaz de perceber os efeitos das diferentes estratégias de predicação no uso da língua. Do mesmo modo, para citar outro exemplo, é improdutivo identificar uma determinada palavra como advérbio sem, contudo, ter a percepção de que a classe dos advérbios reúne itens que compartilham propriedades com várias outras classes da língua.

O segundo passo é compreender a realidade linguística do aluno, que varia de uma comunidade para outra. Levar o aluno ao reconhecimento da norma-padrão requer, antes de mais nada, ajudá-lo a reconhecer as regras que compõem a sua gramática internalizada. Isso é um procedimento necessário para que, na consciência dessas regras, ele consiga ter autonomia na busca dos melhores recursos de expressão em situações comunicativas que exijam, por exemplo, o emprego de uma linguagem mais polida. O professor não pode perder de vista que a norma-padrão não é uma língua ou mesmo uma variedade da língua, mas uma idealização que resulta histórica e culturalmente de uma série de preceitos e valores em torno de como se acredita que a língua deva ser usada. A norma-padrão não pode, por isso, ser o eixo norteador da disciplina que chamamos de Língua Portuguesa. Para que a abordagem gramatical tenha uma fundamentação objetiva, o ponto de partida dessa disciplina deve ser a língua real, o chamado vernáculo, resultado direto do conhecimento gramatical internalizado pelos falantes. É somente após tomar consciência desse conhecimento que o aluno deve ser orientado, com base em pressupostos teórica e empiricamente consistentes, ao domínio da norma-padrão.      

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Finalizando...  ________________________________________________________________________________________    Sem   uma   postura   crítica   do   professor   frente   aos   conceitos   da   Gramática   Tradicional,   a   nomenclatura  gramatical  e  o  ensino  da  norma-­‐padrão  podem  desembocar  em  práticas  que,  em  lugar  de  ajudar  o  aluno  a  refletir   produtivamente   sobre   a   sua   língua,   obscurecem   a   identificação   de   propriedades   que   realmente  interessam  no  estudo  da  gramática.      No   trabalho   com   essas   propriedades,   o   professor   deve   ter   autonomia   e   competência   para   buscar   e  implementar  as  estratégias  que  lhe  parecerem  mais  adequadas  à  realidade  linguística  dos  seus  alunos,  sem  perder  de  vista  que:      (i)  a  nomenclatura  gramatical  é  um  instrumento  e  não  uma  finalidade  e    (ii)   o   ensino   da   norma-­‐padrão   NÃO   É   O   ÚNICO,   mas   APENAS   UM   dos   vários   objetivos   relacionados   à  abordagem  gramatical  na  disciplina  de  Língua  Portuguesa.      Nos  próximos  tópicos,  vamos  refletir  sobre  alguns  procedimentos  de  análise  que  podem  ser  colocados  em  prática  para  ajudar  o  aluno  a  refletir  produtivamente  sobre  a  sua  gramática  internalizada.    

 

   

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Tópico  3  -­‐  Gramática  e  sentido    

Ponto  de  Partida  ________________________________________________________________________________________    A  análise  de   fatos  gramaticais  é   indissociável  de   reflexões   sobre  o   sentido  dos  enunciados.   Se  os  estudos  sobre  a  forma  e  a  adequação  das  expressões  linguísticas  não  contarem  com  essas  reflexões  em  paralelo,  a  abordagem  gramatical   em  sala  de  aula  não   será   capaz  de  atingir  o   seu  objetivo,  que  é   fornecer  ao  aluno  subsídios  para  trabalhar  produtivamente  com  o  conhecimento  e  funcionamento  da  sua  língua.                              Neste   tópico,   iremos   nos   ocupar   de   alguns   aspectos   situados   na   interface   entre   gramática   e   sentido,  abordando  alguns  procedimentos  que  permitem  combinar  a  avaliação  de  dados  linguísticos  quanto  à  forma  e  adequação  com  reflexões  em  torno  de  aspectos  semântico-­‐discursivos.    ___________________________________________________________________________________    

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Mãos  à  obra  ________________________________________________________________________________________    Os   enunciados   abaixo   foram   extraídos   de   um   diálogo   entre  moradores   da   cidade   de   Bom  Despacho,   em  Minas  Gerais.  Para  ouvir  a  gravação  do  diálogo  ou  ler  a  sua  transcrição  completa,  clique  aqui110.    

A  ocaia  tipurô.    Ela  caxa  o  cuxipo.      Cê  caixa  ingura  pra  ela?    Já  vai  caixar  no  cuete  ou  fica  sem  ingura.    As  cambainha  tão  lá  tipurando.    O  cuete  vai  direto  pro  conjolo.    Pega  o  cajuvira.    Leva  a  matuaba.  Vai  esquentando  ali  uma  bambôia,  né,  aí  o  imbuete  sobe...    Vai  na  cuxipa.    

 Reflita  sobre  as  seguintes  questões:      

• Que  aspecto(s)  dificulta(m)  a  compreensão  do  sentido  dos  enunciados  acima?  • Que   elementos   presentes   nesses   enunciados   nos   permitem   afirmar  que  estamos   diante   de  

construções  produzidas  por  falantes  de  alguma  variedade  do  português  e  não  de  uma  outra  língua?    • Do   ponto   vista   morfológico,   é   possível   classificar   as   palavras   que   aparecem   nesses  

enunciados  como  substantivo,  verbo,  preposição  etc.?  • Do   ponto   de   vista   sintático,   podemos   afirmar   que   a   ordem   das   palavras   dentro   de   cada  

enunciado  segue   o   padrão   típico   das   frases   do   português?   É   possível   classificar   os   seus   termos  quanto  à  função  sintática,  reconhecendo-­‐os  como  sujeito  ou  complemento  verbal,  por  exemplo?    

• Quanto  à  forma,  esses  enunciados  devem  ser  classificados  como  gramaticais  ou  agramaticais?  Por  quê?    

________________________________________________________________________________________    

110 Fonte: http://www.fflch.usp.br/dl/indl/transcricao_detalhe.php?id=37&idc=142, acesso em 13/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    Nos  tópicos  do  Tema  1,  vimos  que  uma  expressão  linguística  pode  ser  analisada  quanto  à  forma  gramatical  e  à  adequação  a  uma  determinada  norma  de  uso.  Além  desses  critérios,  um  terceiro  elemento  que  pode  entrar  em  jogo  na  avaliação  gramatical  de  uma  expressão  é  o  seu  sentido.      Na   avaliação   de   um   dado   linguístico   quanto   ao   sentido,   o   que   deve   ser   levado   em   consideração   é   se   o  significado   da   expressão   linguística,   independentemente   do   seu   estatuto   de   gramaticalidade,   pode   ser  compreendido   pelos   participantes   de   uma   situação   comunicativa.   Isso   significa   que   o   sentido   deve   ser  avaliado   em   termos   interlocutivos:   uma   expressão   linguística   precisa   "fazer  sentido"   não   apenas   da  perspectiva  de  quem  o  produziu,  mas  também  da  perspectiva  daquele(s)  a  quem  a  expressão  se  destina.      Você   já   deve   ter   observado  que   construções   gramaticalmente  perfeitas   podem  causar   estranhamento  no  plano  do  sentido,  enquanto  muitas  estruturas  agramaticais  podem  ter  seu  sentido  facilmente  depreendido  em   determinadas   situações   comunicativas.   Uma   construção   do   tipo  A   cadeira   se   sentou,   por   exemplo,   é  perfeita  quanto  à  estrutura  gramatical,  mas  provoca  um  evidente  estranhamento  no  que  diz  respeito  ao  seu  significado.  Já  uma  construção  como  Eu  não  saber  falar  português,  que  é   claramente   agramatical,   pode   ter   seu   sentido   facilmente  depreendido:  qualquer  falante  de  português  pode  associá-­‐la  ao  mesmo  significado  de  uma  construção  como  Eu  não  sei  falar  português.      O  desconhecimento  do  significado  veiculado  por  itens  lexicais  também  pode  dificultar  ou  impedir  a  depreensão  do  sentido  de  um  enunciado.  Esse   é   o   caso   das   construções   que   você   observou   na   seção  Mãos   à  obra,  extraídas  de  um  diálogo  entre  moradores  de  Bom  Despacho,  em  Minas  Gerais.  Essas  construções   trazem  palavras  de  uma  "língua"  que  ficou   conhecida   como   Língua   do   Negro   da   Costa111,   cujo   léxico   é  composto   por   palavras   que   parecem   ser   de   origem   banta,   provenientes   dos   escravos   que   chegaram   à  região.  É  fácil  reconhecer  que  a  gramática  da  Língua  do  Negro  da  Costa  é  a  mesma  que  a  de  inúmeras  outras  variedades   do   português   brasileiro.   O   estranhamento   provocado   pelas   construções   listadas   não   é   de  natureza   gramatical,  mas   lexical112,   pois   palavras   como   ocaia113,   cuete114,   ingura115,   conjolo116   e   tipurar117  não  compõem  o  léxico  comum  dos  brasileiros.    ________________________________________________________________________________________    

111 Fonte: http://www.fflch.usp.br/dl/indl/Extra/Bom_Despacho.htm, acesso em 13/05/2011. 112 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Léxico, acesso em 13/05/2011. 113 mulher 114 homem 115 dinheiro 116 casa 117 olhar, ver, pegar, saber, flertar

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    De   uma   perspectiva   gramatical,   a   avaliação   das   expressões   linguísticas   quanto   ao   sentido   pode   se   dar   a  partir   de   pelo   menos   dois   eixos:   um   voltado   aos   papéis   semânticos   dos   termos   da   oração   e   outro  relacionado  ao  estatuto  informacional  desses  termos.      Quanto  ao  papel  semântico,  os  termos  nominais  podem  ser  analisados  como  agente,  paciente,  beneficiário,  alvo,  experenciador,   instrumento  etc.,  a  depender  do  seu  regente  ou  do  predicador  da  construção.  Tendo  em  mente  a  noção  de  papel   semântico,  o  estranhamento  provocado  pela  construção  A  cadeira   se   sentou  pode  ser  explicado  pelo  fato  de  que  o  predicador  verbal  sentar  requer  um  sujeito  animado  necessariamente  interpretado  como  agente,  condição  que  não  é  satisfeita  pelo  termo  a  cadeira.      No  que  concerne  ao  estatuto  informacional,  a  caracterização  de  um  termo  como  sendo  ou  não  o  tópico  do  que  se  diz  em  um  enunciado  pode  ser  relevante  para  analisar,  entre  outros  aspectos,  a  posição  dos  termos  na  oração.  A  noção  de  tópico  coincide,  grosso  modo,  com  a  de  "informação  dada"  (ou  seja,   já  referida  no  contexto  da  enunciação),  definida  em  oposição  à  de   "informação  nova"   (ou   seja,  que  está   sendo   referida  pela  primeira  vez  no  contexto  da  enunciação).  Essa  oposição  pode  se  refletir  na  organização  dos  enunciados.  A  título  de  exemplo,  observe  a  quarta  estrofe  de  E  agora  José?118,  poema  de  Carlos  Drummond  de  Andrade:      Com  a  chave  na  mão,  /  quer  abrir  a  porta,  /    não  existe  porta;  /  quer  morrer  no  mar,  /  mas  o  mar  secou;  /  quer  ir  para  Minas,  /  Minas  não  há  mais.      Em  um  dos  versos  negritados,  o  complemento  de  haver  (Minas)  ocorre  no  início  da  oração  e  não  depois  do  verbo,   que   seria   a   sua   posição   natural.   O   que   propicia   essa   colocação   é   o   fato   de  Minas   consistir   numa  informação   dada,   uma   vez   que   esse   termo   foi   referido   no   verso   anterior.   Desse   modo,  Minas   passa   a  funcionar   como   o   tópico   da   oração   com   haver,   o   que   "autoriza"   ou   facilita   o   seu   deslocamento   para   a  posição   inicial.   Construções   desse   tipo  podem   ser   usadas   para   instigar   o   aluno   a   refletir   sobre   efeitos   de  sentido  atrelados  a  alternâncias  na  posição  dos  termos.  No  poema  em  questão,  podemos  indagar  sobre  qual  deve   ter   sido  a   intenção  do  autor  ao   colocar  o   termo  Minas   no   início  da  oração,  bem  como  se  o  mesmo  efeito  seria  obtido  se  o  termo  fosse  realizado  não  antes,  mas  após  o  verbo.  ________________________________________________________________________________________  

118 Fonte: http://www.eeagorajose.kit.net/estilos/eagorajose.htm, acesso em 13/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3  ________________________________________________________________________________________    Embora  não  haja  uma  relação  direta  e  necessária  entre  gramaticalidade  e  sentido,  o  estudo  da  sintaxe  da  língua   pode   ser   extremamente   enriquecido   se,   para   além   das   tradicionais   funções   sintáticas,   o   professor  levar  em  conta  aspectos  de  ordem  semântico-­‐discursiva.      Do   ponto   de   vista   estritamente   sintático,   a   distinção   entre   termos   essenciais,  integrantes   e   acessórios   pode   dar   lugar   a   uma   divisão   intuitivamente   mais  consistente,   pela   qual   se   explicite   a   diferença   entre   relações   de   predicação,  relações  de  complementação  e  relações  de  adjunção.  As  relações  de  predicação  envolvem   (quase   sempre)   um   verbo   e   um   termo   com  o   qual   ele   concorda   ou  pode   concordar.   As   relações   de   complementação   recaem   sobre   um   item  qualquer   (verbo,   substantivo,   adjetivo   ou   advérbio)   e   um   termo   explícito   ou  implícito  requerido  por  esse  item  para  garantir  a  boa  formação  do  enunciado.  As  relações  de  adjunção  dizem  respeito  à  associação  de  um  item  ou  de  uma  parte  da  construção  a  um  termo  cuja  presença  é  discursivamente  relevante,  mas  não  garante  a  boa  formação  gramatical  do  enunciado.      Cada  um  desses  níveis  pode  ser   trabalhado  sem  que  seja  preciso   jogar   fora  a  nomenclatura   tradicional.  A  predicação,   por   exemplo,   envolve   o   que   chamamos   tradicionalmente   de   sujeito   e   predicado.   A  complementação  abarca  os  complementos  verbais  (objeto  direto,  objeto  indireto,  complemento  relativo,  complemento  circunstancial)  e  nominais.  A  adjunção  reporta  aos  adjuntos  nominais  e  adverbiais,  além  do  chamado  aposto.      O  professor  deve  ter  em  mente  que,  em  lugar  de  obrigar  o  aluno  a  decorar  a  lista  das  funções  sintáticas,  o  mais   importante   é   ajudá-­‐lo   a   perceber,   no   plano   semântico-­‐discursivo,   o   papel   que   cada   termo  desempenha  na  organização  dos  enunciados.  Nas  relações  de  predicação,  por  exemplo,  o  aluno  deve  ser  capaz   de   entender,   entre   outros   aspectos,   as   estratégias   de   impessoalização   da   oração,   que   permite   ao  falante,   para   propósitos   diversos,   tornar   indefinido   o   referente   de   um   sujeito.   Nas   relações   de  complementação,   o   aluno   deve   ter   sensibilidade   para   identificar   diferenças   de   significado   relacionadas   a  alternâncias  nas  propriedades  regenciais  de  um  determinado  item.  Nas  relações  de  adjunção,  a  flexibilidade  na   colocação   dos   adjuntos   adverbiais   dentro   de   um   enunciado   pode   ajudar   o   aluno   a   formular  generalizações  sobre  como  a  posição  dos  termos  da  oração  interfere  na  composição  de  sentido.  ________________________________________________________________________________________  

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  4  ________________________________________________________________________________________    Aliada  à  avaliação  quanto  à  forma  e  à  adequação,  a  análise  quanto  ao  sentido  também  pode  ajudar  o  aluno  a   estabelecer   generalizações   necessárias   à   identificação   das   classes   de   palavra.   Considere   a   classe   dos  substantivos,  tradicionalmente  caracterizada  como  o  acervo  das  palavras  que  servem  para  nomear  os  seres.  Essa  definição  é  claramente  problemática,  pois  nem  todos  os  substantivos  designam  o  que,  para  os  alunos,  pode  ser  chamado  de  "ser".  Palavras  como  curtição,  reflorestamento,  assalto  e  paz,  que  são  substantivos,  dificilmente  vão  ser  entendidas  como  se   referindo  a  seres.  Se   for  "treinado"  para   refletir  adequadamente  sobre   a   forma,   a   adequação   e   o   sentido,   o   aluno   poderá   depreender   naturalmente   as   principais  propriedades  dessa  e  de  outras  classes.      Quanto   à   forma,   qualquer   falante   da   língua   é   capaz   de   perceber   que   algumas   palavras,  mas   não   outras,  podem   ser   antecedidas   de   um   artigo   (mesmo   que   não   tenha   consciência   do   que   seja   um   artigo).   Assim,  expressões  como  a  comida,  um  assalto  e  o  beijo  são  gramaticais,  uma  vez  que  comida,  assalto  e  beijo  são  substantivos,  mas  não  *o  para,  *um  comemos  e  *o  infelizmente,    pois  para,  comemos  e  infelizmente  não  são  substantivos.   Com   base   em   observações   desse   tipo,   o   aluno   pode   chegar   facilmente   à   conclusão   de   que  substantivos  são  palavras  que  podem  ser  antecedidas  de  um  artigo      Nas   considerações   sobre   o   sentido,   a   caracterização   dos   substantivos   passa   por   entender   qual   é   o   papel  dessas   palavras   na   composição   dos   enunciados.   Uma   estratégia   interessante   está   em  motivar   o   aluno   a  refletir   sobre   o   conteúdo   das   categorias   gramaticais   de   número   e   gênero,   que   podem   se   manifestar  morfologicamente  no   substantivo.  Qualquer  aluno  é   capaz  de  notar   facilmente  que  essas  duas   categorias  trazem  certas   informações  sobre  "coisas"  à  nossa  volta   (aí   incluídos  não  apenas  os  seres,  mas  também  os  acontecimentos,  sensações,  emoções  etc.)  e  que  as  palavras  para  designar  essas  coisas,  associadas  às  duas  categorias  em  questão,  compõem  (ou  são  candidatas  a  compor)  a  classe  do  substantivo.      Quanto   à   adequação,   a   variação   na   marca   morfológica   de   plural   pode   ser   explorada   para   trabalhar   as  propriedades  morfossintáticas   dos   itens   substantivos.   Por  meio   da   análise   de   dados   como  os   livros   vs  os  livro,  bem  como  pela  observação  de  que  expressões  como  o  livros  são  agramaticais,  o  aluno  deve  chegar  à  generalização  de  que,  em  variedades  do  português  brasileiro  popular,  a  indicação  de  plural  é  obrigatória  no  determinante,  mas  não  no  substantivo.  Ao  mesmo  tempo,  o  professor  deve  destacar  que  expressões  do  tipo  os   livro   não   são,   apesar   de   gramaticais   em   certas   variedades,   adequadas   à   norma-­‐padrão,   que   requer   a  marcação  redundante  de  plural  nos  itens  do  sintagma  nominal.  ________________________________________________________________________________________  

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Atividade   autocorrigível  4a________________________________________________________________________________________    Clique  aqui119  para  assistir  a  uma  reportagem  com  moradores  de  Luanda,  capital  de  Angola,  a   respeito  da  Gripe   A.   No   vídeo,   podemos   ouvir   construções   que   são   típicas   do   português   popular   emergente   no   país  africano.  Eis  algumas:      

Tá  a  falar  com  pessoa.  Não  vamo  fugir  doença.  Vamo  se  provenir.  A  nova  doença  que  tá  a  bater  bué.  Eu  ando  a  escutar  essa  doença.    

 Avalie  as  construções  listadas  quanto  à  gramaticalidade  e  ao  sentido  e  assinale  as  afirmações  corretas:      a)120  Se  avaliadas  com  base  no  conhecimento  linguístico  internalizado  pelos  falantes  de  português  brasileiro  (ou,  pelo  menos,  pela  quase  totalidade  desses  falantes),  todas  as  construções  listadas  devem  ser  analisadas  como  gramaticais,  pois  é  fácil  depreender  o  sentido  de  cada  uma  delas.    b)121   Se   a   avaliação   quanto   à   forma   tiver   como   referencial   as   variedades   de   prestígio   do   português,   as  construções  listadas  devem  ser  consideradas  agramaticais,  mesmo  sendo  possível  depreender  o  sentido  de  cada  uma  delas.    c)122   O   sentido   desses   enunciados   causa   estranhamento,   evidenciando   que   os   falantes   de   português  angolano  são  incapazes  de  se  expressar  adequadamente.    d)123  A  ausência  de  preposição  após   fugir  e  escutar  entre  as  construções   listadas  mostra  que  a  sintaxe  de  regência  no  português  angolano  popular  é,  pelo  menos  no  tocante  a  esses  verbos,  diferente  da  sintaxe  de  regência  normalmente  associada  a  esses  mesmos  verbos.    e)124   A   ausência   de   preposição   após   fugir   mostra   que   o   sentido   desse   verbo   no   português   angolano   é  diferente  do  assumido  pelo  mesmo  verbo  no  português  brasileiro.    f)125   No   português   brasileiro,   a   ausência   de   preposição   na   introdução   do   complemento   do   verbo   assistir  (como  Assistimos  o   filme   em   lugar  de  Assistimos  ao   filme)   gera,   como  nos  dados  do  português  angolano,  problemas  para  interpretar  adequadamente  o  sentido  das  construções.      

119 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=sy-xN5qkOoQ, acesso em 13/05/2011. 120 Incorreto. Essas construções são agramaticais se avaliadas com base no conhecimento linguístico internalizado por

falantes de português brasileiro (ou pela quase totalidade desses falantes), ainda que seja fácil depreender o sentido de cada uma delas.

121 Correto. Embora seja possível depreender o sentido das construções, elas são agramaticais se avaliadas com base nas variedades de prestígio do português.

122 Incorreto. Para falantes de outras variedades do português, o que causa estranhamento nos enunciados em questão não é o sentido, mas a forma. A ideia de que tais enunciados evidenciam uma incapacidade de se expressar adequadamente é incorreta, pois são construções típicas das variedades do português que vêm emergindo em Angola.

123 Correto. Na maioria das variedades do português, esses verbos requerem, com o sentido observado nas construções listadas, complementos introduzidos por preposição ("fugir da doença" e "escutar (algo) sobre essa doença").

124 Incorreto. Pelo menos no enunciado em questão, o verbo “fugir” mostra o mesmo sentido com que é empregado no português brasileiro.

125 Incorreto. No plano do sentido, a ausência da preposição não traz prejuízos à interpretação das construções com “assistir”, no português brasileiro, ou com “fugir” e “escutar”, no português angolano.

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Finalizando________________________________________________________________________________________    O  professor  não  pode  perder  de  vista  que  a  abordagem  gramatical  em  âmbito  escolar  deve  ser  destinada  ao  desenvolvimento   de   reflexões   produtivas   sobre   o   uso   da   língua,   o   que   pode   ser   feito,   como   vimos,  explorando-­‐se  a  gramática  internalizada  do  aluno  como  ponto  de  partida.  Refletir  produtivamente  sobre  o  uso  da  língua  requer,  como  não  poderia  ser  diferente,  observar  a  língua  em  uso,  sem  o  quê  o  trabalho  em  torno  das  relações  entre  gramática  e  construção  de  sentido  não  tem  uma  razão  de  ser.          Frases   descontextualizadas   podem   até   ser   úteis   para   instigar   os   alunos   a   fazer   indagações   sobre   o   seu  conhecimento   linguístico   (por   exemplo,   na   busca   de   generalizações   em   torno   do   que   seja   gramatical   ou  agramatical)   ou,   para   fins   de   didatização,   ajudá-­‐los   a   fixar   conceitos   que   precisam   ser   perfeitamente  compreendidos  para  facilitar  a  compreensão  de  análises  linguísticas  mais  complexas.  O  aluno  deve,  contudo,  ter   o   seu   olhar   treinado   para   entender   a   língua   em   uso,   o   que   exige   colocar   o   trabalho   com   diferentes  gêneros  textuais  e  discursivos,  falados  ou  escritos,  como  o  norte  das  reflexões  desenvolvidas  no  estudo  da  gramática.          Nos  tópicos  do  próximo  Tema,  iremos  abordar  alguns  fatos  gramaticais,  nos  níveis  morfológico  e  sintático,  que  podem  ser  rentáveis  ao  desenvolvimento  de  trabalhos  em  torno  do  texto.      

(Clique na imagem126 para ampliá-la)

________________________________________________________________________________________  

126 Taquigrafia (Fonte: http://www.taquigrafia.emfoco.nom.br/depoimentosquatro.htm, acesso em 13/05/2011).

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 Ampliando  os  conhecimentos  1  ________________________________________________________________________________________    Para  ampliar  seu  conhecimento  sobre  os  assuntos  abordados  neste  Tema,  você  pode  ler:    Nomenclatura   gramatical   brasileira   -­‐   50   anos   depois127,  de   Claudio   Cezar   Henriques:   Esse   livro   aborda   a  emergência   da  NGB   e   o   seu   papel   na   organização   de   conceitos   em   âmbito   escolar,   bem   como   discute   a  necessidade   de   sua   reformulação   para   convertê-­‐la   num   instrumento   facilitador   da   análise   de   fatos  linguísticos.    Linguística   da   norma128,   organizado   por   Marcos   Bagno:   Coletânea   de   trabalhos   que   abordam   questões  sobre   a   norma   linguística,   em   torno   de   tópicos   que   tangenciam,   dentre   outros   aspectos,   o   ensino   da  gramática.    Contradições  no  ensino  de  português129,  de  Rosa  Virgínia  Mattos  e  Silva:  Dentre  outros   tópicos,  a  autora  aborda  o  papel  da  escola  na  sustentação  da  "norma  normativo-­‐prescritiva",  bem  como  perspectivas  atuais  e  futuras  para  o  tratamento  da  heterogeneidade  dialetal  brasileira  em  âmbito  escolar.    Doa-­‐se  lindos  filhotes  de  poodle130,  de  Maria  Marta  Pereira  Scherre:  A  autora  discute  o  papel  da  mídia  na  veiculação  de  preconceitos  linguísticos  e  na  perpetuação  da  ideia  equivocada  de  que  a  gramática  normativa  se  iguala  à  língua  ou  à  identidade  de  um  povo.    Introdução   à   Semântica   -­‐   brincando   com   a   gramática131,   de   Rodolfo   Ilari:   O   livro   propõe   uma   série   de  atividades   que   podem   ser   desenvolvidas   em   sala   de   aula   no   trabalho   com   a   interface   entre   sintaxe   e  semântica.    ________________________________________________________________________________________    

127 Fonte: http://www.parabolaeditorial.com.br/releasenomenclatura.htm, acesso em 13/05/2011. 128 Fonte: http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=163, acesso em 03/05/2012. 129 Fonte: http://www.editoracontexto.com.br/produtos.asp?cod=46, acesso em 13/05/2011. 130 Fonte: http://www.parabolaeditorial.com.br/informativo6.htm, acesso em 13/05/2011. 131 Fonte: http://www.editoracontexto.com.br/produtos.asp?cod=119, acesso em 13/05/2011.

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Ampliando  o  conhecimento  2  ________________________________________________________________________________________    WEBGRAFIA    Para  ampliar  seu  conhecimento  sobre  os  assuntos  abordados  neste  Tema,  você  também  poderá  ver  na  WEB:      Texto   da  Nomenclatura  Gramatical   Portuguesa132,   fixada   em  1967,   que   apresenta   algumas   diferenças   em  relação  à  Nomenclatura  Gramatical  Brasileira133.    Páginas   que   disponibilizam   fac-­‐símiles   de   gramáticas   do   português   publicadas   desde   o   século   XVI.  Comparando   essas   gramáticas,   você   poderá   observar   a   evolução   da   nomenclatura   empregada   no  tratamento   descritivo-­‐normativo   de   fatos   do   português   ao   longo   do   tempo.   Para   acessar   essas   páginas,  clique  nos  títulos  abaixo:      Biblioteca  Virtual  das  Ciências  da  Linguagem  no  Brasil134    Coleção  de  Gramáticas  da  Biblioteca  do  IEL/Unicamp135  ________________________________________________________________________________________    

132 Fonte: http://www.portaldalinguaportuguesa.org/?action=nomenclatura, acesso em 13/05/2011. 133 Fonte: http://www.portaldalinguaportuguesa.org/?action=ngbras, acesso em 13/05/2011. 134 Fonte: http://www.labeurb.unicamp.br/bvclb/pages/home/obrasLista.bv, acesso em 13/05/2011. 135 Fonte: http://www.iel.unicamp.br/biblioteca/gramatica.php, acesso em 13/05/2011.

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Ampliando  o  conhecimento  3  ________________________________________________________________________________________    Assista  ao  filme  A  Guerra  do  Fogo136  para  refletir  um  pouco  mais  sobre  o  lugar  do  sentido  na  constituição  da  faculdade  humana  da  linguagem.  O  filme  especula  sobre  como  teria  sido,  há  80.000  anos,  o  encontro  entre  duas   espécies   de   hominídeos   -­‐   uma   cognitivamente  mais   evoluída,   detentora   de   uma   capacidade   para   a  linguagem  tal  qual  a  conhecemos  hoje,  e  outra  menos  evoluída,  sem  a  mesma  capacidade.  O  filme  pode  dar  espaço   a   reflexões   e   debates   sobre   o   conhecimento   e   uso   da   linguagem,   em   particular   no   que   tange   à  questão  sobre  como  a  construção  de  sentido(s)  poderia  se  efetivar  em  situações  de  interlocução  nas  quais  os   indivíduos  envolvidos  não  compartilham,  tanto  do  ponto  de  vista  biológico  quanto  cultural,  as  mesmas  condições  de  geração  da  linguagem.  Clique  aqui137  para  ler  uma  resenha  sobre  o  filme.      

   Direção:  Jean-­‐Jacques  Annaud    Elenco:  Everett  McGill,  Rae  Dayn  Chong,  Ron  Perlman    Duração:  97  minutos    Lançamento:  1981    País:  França,  Canadá      Clicando  aqui138,  você  pode  assistir  ao  filme  na  íntegra.      

136 Fonte: http://www.sinopsedofilme.com.br/mostrar.php?q=82, acesso em 13/05/2011. 137 Fonte: http://www.comciencia.br/resenhas/guerradofogo.htm, acesso em 13/05/2011. 138 Fonte: http://www.ustream.tv/recorded/5564454, acesso em 13/05/2011.

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Referências  bibliográficas    ________________________________________________________________________________________    ALMEIDA,  N.  M.  Gramática  metódica  da  língua  portuguesa.  São  Paulo:  Saraiva,  2005.  45a.  ed.      BAGNO,   M.   Carta   de   Marcos   Bagno   para   a   revista   Veja.   Disponível   em:  http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=39,  acesso  em  06/05/2011.    BAGNO,  M.  (Org.).  Linguística  da  norma.  São  Paulo:  Loyola,  2004.      CALLOU,  D.;  AVELAR,   J.   Estruturas   com  "ter"  e   "haver"  em  anúncios  do   século  XIX.   In:  ALKMIM,  T.   (Org.).  Para  a  História  do  Português  Brasileiro  -­‐  Vol.  3.  São  Paulo:  Humanitas,  2002.      HENRIQUES,  C.  C.  Nomenclatura  gramatical  brasileira:  50  anos  depois.  São  Paulo:  Parábola,  2009.      ILARI,  R.  Introdução  à  semântica.  São  Paulo:  Contexto,  2004.      MATTOS  E  SILVA,  R.  V.  Contradições  no  ensino  de  português.  São  Paulo:  Contexto,  2005.      ROCHA  LIMA,  C.  H.  da.  Gramática  normativa  da  língua  portuguesa.  Rio  de  Janeiro:  José  Olympio,  1998  (nova  edição).      SAID  ALI,  M.  Gramática  histórica  da  língua  portuguesa.  São  Paulo:  Melhoramentos,  2001  (nova  edição).        SCHERRE,  M.  M.  P.  Doa-­‐se  lindos  filhotes  de  poodle.  São  Paulo:  Parábola  Editorial,  2005.        

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Tema:   3.   A   gramática   no   texto:  procedimentos  de  análise      

Tópico  1  -­‐  Abordagens  no  nível  morfológico    

Um  início  de  conversa...  ________________________________________________________________________________________    

 139  ________________________________________________________________________________________    

139Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=n91IeujsAnU, acesso em 23/05/2011.

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Ponto   de  partida________________________________________________________________________________________    A  organização  interna  das  palavras  está  no  cerne  dos  estudos  morfológicos.  No  meio  escolar,  a  morfologia  deve   ocupar   um   lugar   de   destaque   no   estudo   da   língua,   não   apenas   por   focalizar   a   constituição   dos  vocábulos,  mas  principalmente  pela   transparência  de   sua   interface   com   todos  os  outros  níveis   de   análise  linguística  (o  fonológico,  o  lexical,  o  sintático  e  o  semântico).      O   plano   morfológico   talvez   seja   aquele   em   que   os   alunos   mais   facilmente  conseguem   formular   generalizações   (se   bem   orientados   pelos   professores)  com   base   no   conhecimento   que   compõe   a   sua   gramática   internalizada.   O  trabalho  com  esse  conhecimento  é   importante,  por  exemplo,  para  analisar  o  papel  da  criação  vocabular  na  construção  de  sentido  dos  textos140,  a  partir  do  reconhecimento   de   diferentes   processos   de   formação   de   palavras141   e   da  análise  dos  paradigmas  flexionais  existentes  na  língua.      Neste   tópico,   iremos  sugerir  alguns  procedimentos  de  abordagem  gramatical  que  podem  ser   rentáveis  no  trabalho   com   fatos  morfológicos   em   sala   de   aula.  Nosso   objetivo   não   é   fornecer   um  manual   ou   um  guia  sobre  como  dar  aulas  de  morfologia,  mas  propor  estratégias  que  podem  ser   interessantes  na  tentativa  de  didatizar  a  apresentação  de  conceitos  pertencentes  a  esse  domínio  de  análise.      

140 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=OxbHH8HZrKk, acesso em 23/05/2011. 141 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Eu4jS2bT4uk, acesso em 23/05/2011.

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Mãos  à  obra  ________________________________________________________________________________________    Odorico   Paraguaçu142,   personagem  principal   de  O   Bem  Amado143   (Rede  Globo,   1973/1980-­‐1984),   de  Dias  Gomes144,  entrou  para  a  história  da  teledramaturgia  brasileira  não  apenas  por  ser  uma  caricatura  do  político  ardiloso,   corrupto  e  populista,  mas   também  pela  produtiva  criação   lexical  que  marcava  os   seus  discursos.  Assista  ao  vídeo  abaixo  e  reflita  sobre  as  seguintes  questões:      (i)  Quanto  à  forma,  as  criações  vocabulares  de  Odorico  (como  cabrestismo,  democradura,  pratrasmentes  e  acarajeizar)  são  gramaticais  ou  agramaticais?  Essas  palavras  são  criadas  em  conformidade  com  as  regras  da  língua  portuguesa  ou  os  processos  em  sua  base  são  completamente  estranhos  à  gramática  dos  falantes  de  português?   Uma   vez   que   não   existem   em   nosso   acervo   vocabular,   como   conseguimos   entender   o   seu  significado?      (ii)  Como  essas  criações  lexicais  ajudam  a  compor  a  imagem  de  Odorico  Paraguaçu?      

145    

142 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Odorico_Paraguaçu, acesso em 23/05/2011. 143 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=31-6l5CkXhM, acesso em 23/05/2011. 144 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dias_Gomes, acesso em 23/05/2011. 145 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=9SNMIo-1_lo, acesso em 23/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    A   morfologia   recobre   os   fatos   relativos   à   constituição   interna   dos   vocábulos,   com   destaque   para   os  mecanismos  de   articulação  entre  diferentes  morfemas146   na   estruturação  das  palavras.  Dentre  os   tópicos  comumente   tratados   no   plano   morfológico,   estão   os   processos   de   formação   de   palavras,   que   são  estabelecidos  na  interface  com  os  estudos  sobre  o  léxico,  e  os  paradigmas  flexionais,  que  são  determinados  na  interface  com  o  nível  sintático.      Além   de   aspectos   relativos   à   constituição   interna   dos   vocábulos,   os  livros  didáticos  geralmente  incluem  na  morfologia  o  estudo  das  classes  de   palavras.   A   rigor,   o   estabelecimento   dessas   classes   leva   em   conta  não  apenas  critérios  que  dizem  respeito  à  forma  dos  itens  vocabulares,  mas  também  suas  propriedades  sintáticas  e  semântico-­‐discursivas.  Isso  costuma  gerar,  entre  os  alunos,  algumas  dificuldades147  para  o  preciso  reconhecimento   das   classes,   uma   vez   que,   nos   livros   didáticos,   as  propriedades  morfológicas  quase  sempre  são  apresentadas  dissociadas  da  sintaxe  e  da  semântica.      Outro   problema   que   surge   no   estudo   da   morfologia   diz   respeito   à   base   de   dados   empregada   para  exemplificar  certos  fatos  léxico-­‐gramaticais  nesse  nível  de  análise.  No  tratamento  da  formação  de  palavras,  por  exemplo,  muitos  livros  didáticos  dão  destaque  a  exemplos  que,  de  uma  perspectiva  sincrônica,  não  são  intuitivamente  transparentes  quanto  aos  processos  que  permitem  criar  novos  vocábulos.  Como  curiosidade,  é   interessante   o   aluno   saber   que   palavras   como   vinagre,   fidalgo   e   embora   se   originaram   do   processo  tradicionalmente   chamado   de   composição;   entretanto,   como   não   são   naturalmente   percebidas   como  palavras  compostas,  tais  exemplos  não  são  um  bom  ponto  de  partida  para  levá-­‐lo  a  refletir  autonomamente  sobre  as  causas  e  efeitos  da  formação  de  novas  palavras.      Antes   de  mais   nada,   os   alunos   precisam   ser   capazes   de   reconhecer   o   papel   dos   diferentes  morfemas   na  constituição  do  significado  global  das  palavras  formadas.  Daí  ser  necessário  que  os  exemplos  selecionados  para   o   estudo   da   criação   lexical   evidenciem   intuitivamente   a   articulação   dos  morfemas   na   formação   das  palavras,  bem  como  a  composição  de  sentido  resultante  dessa  articulação.    

146 Morfema é uma unidade lexical mínima dotada de sentido. As palavras podem ser formadas de um ou mais morfemas.

A forma verbal “beijávamos”, por exemplo, apresenta três morfemas: o radical “beij(a)-”, o sufixo modo-temporal “-va” e o sufixo número-pessoal “-mos”. Já palavras como “pé” e “sol” são compostas de um único morfema.

147 Fonte: http://ferrao.org/2007/03/o-que-palavra-homem.html, acesso em 23/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    Uma  atividade  que  costuma  ser  didaticamente  rentável  é  a  análise  de  palavras  que,  apesar  de  transparentes  quanto  a  sua  formação,  não  fazem  parte  do  nosso  acervo  vocabular.  No  vídeo  introduzido  na  seção  Mãos  à  obra,  vimos  Odorico  Paraguaçu  recorrer  a  palavras  que  não  compõem  o  léxico  português,  mas  são  criadas  de   acordo   com   regras   da   língua:   renovista,   cabrestismo,   democradura,   acarajeizar,   vatapazar,   verde-­‐amarelecido,  retarguadistas,  retrogradistas,  corujistas,  milagristas,  fraudicantes.        Quando  apresentado  a  palavras  desse  tipo,  o  aluno  pode  ser  motivado  a  refletir  sobre  o  seu  conhecimento  linguístico   internalizado   e   chegar   a   conclusões   interessantes.   No   caso   dos   itens   produzidos   por   Odorico,  podemos  entender  o  seu  significado148  porque,  além  de  conhecer  as  partes  que  os  integram,  somos  usuários  proficientes   (qualquer   falante   nativo   da   língua   o   é,   mesmo   sem   ter   consciência   disso)   das   regras   de  formação  vocabular.  Podemos,  por  exemplo,  depreender  o  significado  de  acarajeizar  se  soubermos  o  que  é  acarajé,   bem   como   concluir   facilmente   que   se   trata   de   um   verbo,   uma   vez   que   -­‐(a)r   é   o   morfema  característico  do  infinitivo  português.      Os  livros  didáticos  costumam  tratar  da  formação  vocabular  antes  de  introduzir  as  classes  de  palavras,  o  que  dificulta   a   didatização   da   abordagem   sobre   processos   de   formação   que   alteram   as   classes149   e   impede   o  professor  de  explorar  pressupostos  que  ajudam  na  análise  de  certas   criações   lexicais.  Na   fala  de  Odorico,  por   exemplo,   vemos   formas   que   se   articulam   com   o   sufixo   -­‐mente   e,   em   alguns   casos,   sofrem  substantivação   (como   em   pratrasmentes).   Embora   possa   entender   que   pratrasmentes   significa   "fatos  passados",  o  aluno  terá  dificuldade  para  compreender  o  processo  de  criação  desse   item  se  não  conseguir  distinguir  as  classes  de  palavras.  Uma  palavra  como  pratrasmentes  tem  na  sua  base  uma  locução  locativo-­‐adverbial  (pra  trás),  que  é  transformada  num  advérbio  de  modo  (pela  combinação  com  o  sufixo  -­‐mente)  e,  então,   substantivada,   o   que   permite   sua   articulação   com  o  morfema   -­‐s,   indicativo   de   plural.   O   professor  deve  ter  em  mente  que  o  aluno  precisa  saber,  quando  cobrado  sobre  a  compreensão  desse  processo,  o  que  é  uma  locução,  em  que  consiste  um  advérbio  de  modo  e  quais  são  as  propriedades  dos  substantivos.      Cabe  ao  professor  decidir   se  é  ou  não   conveniente,  dadas  as  especificidades  da   sua   turma  e  os  objetivos  previstos  no  projeto  pedagógico  de  sua  escola,  investir  em  reflexões  formalmente  mais  aprofundadas  sobre  os  processos  de  criação   lexical.  Não  podemos,  contudo,  perder  de  vista  que  determinados  conhecimentos  só  podem  ser  formalizados  após  um  estudo  sistemático  das  classes  e  funções  dos  itens  da  língua.        

148 Algumas palavras exigem que o aluno tenha um conhecimento mais “especializado” para entender o seu significado

global. É o caso, por exemplo, de “cabrestismo”, que exige saber em que consistiu o chamado "voto do cabresto", ou “democradura”, que requer conhecer o sentido do prefixo “-ura” em palavras como “ditadura”, uma antonímia possível para “democracia”.

149 A derivação sufixal, por exemplo, pode resultar na formação de uma palavra que pertence a uma classe diferente da palavra que lhe serviu de base, como em “bobeira” (substantivo), formada a partir de “bobo” (adjetivo).

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3  ________________________________________________________________________________________    Outra estratégia que costuma ser rentável no estudo da morfologia é chamar a atenção para o modo como um mesmo morfema é empregado em diferentes situações de interlocução. A partir de atividades desse tipo, os alunos podem ser orientados a fazer generalizações, bem como a formular e testar hipóteses simples (procedimentos que são relevantes em qualquer campo de estudo) sobre as propriedades dos diferentes morfemas. Considere o morfema -inho, tradicionalmente analisado como um sufixo indicativo de diminutivo. Se os alunos forem indagados a respeito do seu significado, é provável que a maioria responda que -inho é sinônimo de pequeno, daí carrinho, casinha e livrinho significarem carro pequeno, casa pequena e livro pequeno. Depois de ouvir o que têm a dizer sobre esse morfema, apresente-lhes um texto (oral ou escrito) que evidencie ser este sufixo não apenas empregado para indicar "tamanho pequeno", mas para ajudar o falante a expressar relações de afetividade (desde carinho à depreciação) sobre o que enuncia. Observe, por exemplo, o diálogo150 entre Tina Pepper151 e Lili Bolero152, personagens da novela Cambalacho (Rede Globo, 1986), de Sílvio de Abreu. Atente para as ocorrências do sufixo -inho(a) no desenvolvimento do diálogo, em palavras como comidinha, arrozinho, feijãozinho, ovinho, bifinho, farofinha etc. É fácil concluir que, em tais palavras, o emprego do sufixo não é indicativo de "tamanho pequeno", e sim um índice da afetividade que as personagens estabelecem com o conteúdo do que enunciam. Na fala da mãe, o sufixo tem uma conotação apreciativa, servindo para valorizar a simplicidade da alimentação que ela pretende ver servida; na fala de Tina, em contraste, o mesmo morfema é usado para depreciar o cardápio, como em bifinho batidinho na tábua, que a personagem caracteriza como um bifinho sem-vergonha. No mesmo vídeo, vemos a ocorrência de morfemas que, em oposição a -inho(a), tem uma função intensificadora, como -ão em bifão, -íssima em riquíssima e fofíssima e -érrimo(a) em chiquérrimo, riquérrima e foférrima. Observando dados desse tipo, os alunos concluirão intuitivamente que a generalização segundo a qual -inho é um morfema indicativo de "tamanho pequeno" deve ser aperfeiçoada. Ao mesmo tempo, deverão re-elaborar a generalização, procurando captar o fato de que o mesmo morfema se presta à expressão do modo como os falantes se relacionam afetivamente com elementos referidos em seus enunciados. ________________________________________________________________________________________    

150 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=ni6xct733eE, acesso em 23/06/2011. 151 Tina Pepper, apelido (em referência à cantora Tina Tuner) de Albertina Pimenta, era interpretada por Regina Casé. A

comicidade da personagem era marcada pelo horror à sua condição de pobre. No decorrer da história, Tina Pepper tem seus quinze minutos de fama como cantora pop e se muda para uma mansão, onde tentará experimentar tudo o que acredita ser próprio das pessoas ricas.

152 Lili Bolero, mãe de Tina Pepper, era interpretada pela atriz Consuelo Leandro em Cambalacho. Na cena em questão, a personagem entra em conflito com a filha por causa das instruções dadas à “criadagem” para preparar as refeições do dia.

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Nota
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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  4  ________________________________________________________________________________________    

Para que atividades como as delineadas na página anterior sejam bem sucedidas, é importante que o aluno esteja em posse de conceitos que o ajudem a organizar suas reflexões. Não se trata, como já dissemos, de fazê-lo decorar a nomenclatura gramatical, mas de orientá-lo na compreensão de definições que são necessárias ao estudo de diferentes fatos linguísticos. O professor deve investir na elaboração de estratégias que permitam ao aluno adquirir autonomia na realização das mais diferentes atividades. Obviamente, as aulas de gramática não têm como objetivo formar linguistas ou gramáticos, mas indivíduos capazes de utilizar, de modo eficiente, os recursos de expressão disponibilizados pela língua na realização das mais diferentes atividades cotidianas.

No plano da morfologia, entre os conceitos que costumam ser negligenciados pelos livros didáticos (e, muitas vezes, pelos professores) estão os de morfema lexical e morfema gramatical153. A intuição por trás desses conceitos está na base, por exemplo, da oposição entre palavras morfologicamente variáveis (como os substantivos, verbos e pronomes) e palavras morfologicamente invariáveis (como as preposições e conjunções), bem como no estabelecimento dos paradigmas flexionais que determinam as formas possíveis para os elementos nominais e verbais.

Uma estratégia que, se bem trabalhada, pode ser rentável para apresentar os conceitos de morfema lexical e morfema gramatical está no trabalho com textos cuja construção de sentido seja dependente do emprego de um mesmo morfema lexical associado a diferentes morfemas gramaticais. O samba-enredo Sonho de um Sonho154 (Martinho da Vila, Rodolpho, Graúna) é um bom exemplo: na letra do samba, o morfema lexical sonh- se articula com diferentes morfemas gramaticais, resultando na realização de formas como sonhei, sonhando, sonhado, sonhava, sonho (Sonhei que estava sonhando um sonho sonhado / Eu sonhava que sonhava). Com textos que reúnem exemplos desse tipo, o professor pode desenvolver a apresentação de diferentes conceitos com reflexões sobre efeitos de sentido desencadeados pelos mais variados tipos de itens (radicais, flexionais, derivacionais, conectivos etc.) na construção de um texto.

   

153 O morfema lexical é aquele que serve à indicação de algo (seres, ideias, estados, eventos etc.) localizado no universo

extralinguístico (como os substantivos “pé” e “sol”), enquanto o gramatical é aquele que codifica informações necessárias à composição interna dos enunciados ou à articulação de suas partes nos planos morfológico, sintático e semântico-discursivo (como os artigos definidos “o” e “a” e as conjunções integrantes “que” e “se”). Grande parte das palavras do português combina morfemas lexicais e morfemas gramaticais em sua constituição. A forma verbal “cantávamos”, por exemplo, é formada pela combinação de um morfema lexical (a raiz “cant-”) com dois morfemas gramaticais (o sufixo modo-temporal “-va” e o sufixo número-pessoal “-mos”). Os morfemas gramaticais do português codificam informações relacionadas, quase sempre, a uma ou mais das seguintes categorias: gênero, número, pessoa, grau, tempo, modo, aspecto, voz, lugar, definitude e caso.

154 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=R3GIM5vAXz4, acesso em 17/05/2012.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  5  ________________________________________________________________________________________    A  avaliação  de  dados  quanto  à  forma  para  classificá-­‐los  como  gramaticais  ou  agramaticais  é  uma  estratégia  que  também  pode  ser  empregada  no  estudo  da  constituição  interna  das  palavras.  Quando  adequadamente  orientados  a  fazer  essa  avaliação,  os  alunos  conseguem  depreender  com  facilidade  as  regras  que  dão  base  aos  processos  flexionais,  derivacionais  e  composicionais  mais  importantes  da  língua.      A  título  de  exemplo,  considere  o  poema  Ao  Deus  Kom  Unik  Assão155,  de  Carlos  Drummond   de   Andrade.   Como   os   seus   alunos   reagiriam   frente   a   palavras  como   peses   (plural   de   pés,   que   já   se   encontra   flexionado   no   plural)   e  morrendos?  Que  morfema  determina  a  agramaticalidade  dessas  formas?  Qual  terá   sido  a   intenção  do  autor  ao  produzir  essas  palavras?  Do  ponto  de  vista  estritamente   gramatical,   o   esperado   é   que   os   alunos   associem   o  estranhamento  causado  pelas  duas  palavras  ao  morfema  indicativo  de  plural,  cujo   emprego   nas   formas   em   questão   não   obedece   às   regras   flexionais   do  português.  O  aluno  é  capaz  de  reconhecer  essa  propriedade  com  base  em  sua  gramática  internalizada,  sem  a  necessidade  de  recorrer  a  qualquer  informação  constante  dos  livros  didáticos.      No   mesmo   poema,   vemos   palavras   que,   apesar   de   não   comporem   o   acervo   vocabular   dos   falantes   de  português,  soam  perfeitamente  gramaticais,  como  as  encontradas  na   fala  de  Odorico  Paraguaçu.  Algumas  dessas  palavras   são  auriquilate,  genucircunflexado,  desexprimo,   lugarfalar,  belibalentes,  plurimelodia,  pré-­‐alfabeto,   interpatetal   e   centimultiplico.   Por   que   essas   palavras   podem   ser   analisadas   como   gramaticais,  diferentemente   de   peses   e  morrendos?   Qual   terá   sido   a   intenção   do   autor   ao   criá-­‐las,   considerando   o  sentido  global  do  poema?  Qual  é,  dentro  do  texto,  o  significado  assumido  por  cada  uma  delas?      Os  alunos  devem  ser  capazes  de  perceber  que  a  gramaticalidade  desse  conjunto  de  palavras  é  determinada  pelo  fato  de  terem  sido  criadas  em  conformidade  com  as  regras  de  combinação  de  morfemas  previstas  na  gramática  dos  falantes  de  português.  A  composição,  um  dos  mecanismos  mais  produtivos  para  criar  novas  palavras,  aparece,  por  exemplo,  em  vocábulos  como  auriquilate,  belibalentes,  genucircunflexado,  lugarfalar,  plurimelodia  e  centimultiplico.  A  derivação  prefixal,  outro  mecanismo  bastante  produtivo,  está  na  base  da  formação  de  desexprimo,  interpatetal  e  pré-­‐alfabeto.    ________________________________________________________________________________________  

155 Fonte: http://www.eca.usp.br/comueduc/antigos/poesia/poesia6.htm, acesso em 23/06/2011.

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Finalizando________________________________________________________________________________________    

As   atividades   desenvolvidas   em   torno   de   fatos   morfológicos  devem,   em   última   instância,   desembocar   em   práticas   de   análise  que   ajudem   os   alunos   a   entenderem   o   sentido   dos   textos   e   a  empregarem   diferentes   recursos   expressivos   em   suas   próprias  produções.      Em   lugar  de   ficar  preso  à  nomenclatura  gramatical   tradicional  ou  se  limitar  à  veiculação  de  preceitos  da  norma-­‐padrão,  o  professor  pode   transformar   as   suas   aulas   de   morfologia   num   verdadeiro  laboratório   de   experimentos   sobre   o   conhecimento   e   uso   da  língua,  orientando  os  alunos  em  reflexões   sobre  o  modo  como  a  constituição   das   palavras,   entre   outros   aspectos,   interfere   na  construção  de  sentido  dos  textos.  

   Nos   tópicos   seguintes,   iremos   abordar   procedimentos   de   análise   no   nível  sintático  e  veremos  como  alguns  fatos  característicos  desse  nível  podem  ser  trabalhados  no  meio  escolar.      

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Tópico  2   -­‐  Abordagens  no  nível  sintático:  o  conhecimento  intuitivo  da  gramática    

Ponto   de  partida________________________________________________________________________________________      No  meio  escolar,  o  estudo  da  sintaxe  deve  ser  permeado  por  práticas  que  ajudem  ao  aluno  a  depreender  os  mecanismos  de  articulação   sintagmática  necessários   à  produção  de  enunciados   formalmente   gramaticais.  Em  posse  de  elementos  que  o  auxiliem  nessa  depreensão,  ele  deve  ser  orientado  a  refletir  produtivamente  sobre  a  adequação  das  estruturas  sintáticas  às  diferentes  normas  de  uso  da  língua  (com  destaque  à  norma-­‐padrão)  e  a  empregar  eficientemente  os  mais  variados  recursos  de  expressão  na  produção  dos  seus  textos.        Para   que   a   análise   sintática   atinja   esses   objetivos,   a   abordagem  gramatical   deve   se   libertar   das   conhecidas   incongruências  atreladas   à   nomenclatura   tradicional   e   se   basear,   como   já  dissemos,   em   procedimentos   que   permitam   explorar   o  conhecimento  intuitivo  do  aluno  a  respeito  dos  fatos  da  sua  língua.  Neste  tópico,  iremos  discutir  algumas  ideias  que  podem,  na  esfera  da   sintaxe,   auxiliar   o   desenvolvimento   de   estratégias  didaticamente  produtivas  na  abordagem  dos  fatos  linguísticos.          

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Mãos   à  obra________________________________________________________________________________________  Na  crônica   intitulada  Vende  frango-­‐se156,  Martha  Medeiros  aborda,  em  tom  poético  e  bem  humorado,  um  dos  padrões  oracionais  mais  problemáticos  no  estudo  da  gramática  do  português.  No  vídeo  indicado  abaixo,  você  pode  assistir  à  leitura  dessa  crônica  pela  atriz  Cássia  Kiss.      

157    Após  assistir   ao   vídeo,   reflita   sobre  a   seguinte  questão,  que   será   central  para  um  dos  pontos  que   iremos  discutir   neste   tópico:   o   que   levou   o   Guimarães   Rosa   do   morro   (nas   palavras   de   Martha   Medeiros)   a  produzir  uma  construção  agramatical  com  o  pronome  se?    ________________________________________________________________________________________    

156 Fonte: http://bianella.blogspot.com/2009/02/vende-frango-se.html, acesso em 30/05/2011. 157 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=AHR1qir0XpU , acesso em 30/05/2011

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    Nos  livros  didáticos,  a  sintaxe  costuma  ser  apresentada  dentro  de  uma  divisão  que  reconhece,  por  um  lado,  dois   níveis   de   complexidade   no   que   tange   à   organização   das   orações   (daí   se   falar   em  período   simples   e  período  composto)  e  dois  mecanismos  de  articulação  gramatical  (a  regência  e  a  concordância).  Esses  dois  mecanismos   estão  presentes   nos   períodos   simples   e   compostos,   não   se   justificando,  a  priori,   adiar   o   seu  estudo  (como  o  fazem  os  livros  de  gramática)  para  depois  da  exaustiva  série  de  análises  sintáticas  sobre  as  estruturas   da   língua.   Além   de   impedir   que   o   aluno   relacione   o   estabelecimento   das   diferentes   funções  sintáticas   com  propriedades   de   regência   e   concordância,   essa   divisão   impede   a   adequada   didatização   de  conceitos  no  plano  da  sintaxe.      Outro   fato   que   dificulta   a   didatização   de   conceitos   envolve   as   noções   de   coordenação   e   subordinação:  embora  presentes  nos  períodos  simples  e  compostos,  esses  dois  tipos  de  conexão   sintática   são   tratadas   apenas   no   estudo   dos   períodos  compostos.   Em   função  disso,   a  maioria  dos   alunos  é   levada  a   acreditar,  equivocadamente,   que   períodos   simples   não   apresentam   relações  coordenativas   e   subordinativas.   Além   de   não   ajudar   a   entender   as  diferenças   entre   coordenação   e   subordinação,   a   abordagem   acaba   se  concentrando   na   tipologia   das   orações,   sem   resultar   em   qualquer  aplicação  rentável  ao  trabalho  de  produção  textual.      O  quadro  se  agrava  com  a  atitude  de  muitos  professores  que,  em  vez  de  explorar  a  análise  sintática  para  trabalhar  com  a  interface  entre  gramática  e  sentido  e/ou  para  motivar  a  elaboração  de  generalizações  interessantes  sobre  o  conhecimento  e  uso  da  língua,  se  limitam  a  cobrar  dos  alunos  que  decorem  a  nomenclatura  da  NGB   (que,   além  de  obsoleta,   é   repleta  de   inconsistências)  para   classificar  os  termos  da  oração.      O  resultado  é  conhecido:  dada  a  dificuldade  em  entender  estruturas  simples  da  língua,  a  grande  maioria  dos  alunos  desenvolve  ojeriza  pela   análise   sintática,   já   que  não   veem  utilidade   (para   além  da  necessidade  de  fazerem  uma  prova)  na   realização  dos  enfadonhos  exercícios  a  que  são  submetidos.  O  que  os  alunos  não  sabem   é   que   conhecem   intuitivamente   as   estruturas   sintáticas   da   sua   língua   (das   mais   simples   às   mais  complexas),  e  que  esse  conhecimento  intuitivo  pode  ser  explorado  no  estudo  das  expressões  oracionais.      

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    Grosso  modo,  os  termos  de  um  enunciado  podem,  no  plano  gramatical,  se  combinar  por  meio  de  uma  das  três  relações  seguintes:  a  predicação  (que  determina,  na  nomenclatura  tradicional,  as  funções  de  sujeito  e  predicado),   a   complementação   (que   determina   as   relações   entre   um   núcleo   e   seus   complementos)   e   a  adjunção   (que   diz   respeito   à   ocorrência   de   termos   dispensáveis   à   boa   formação  gramatical  dos  enunciados,  mas  necessários  à  composição  do  sentido).      Se  bem  orientados  pelo  professor,  os  alunos  conseguem  apreender  facilmente  esses  três   tipos  de  articulação  com  base  na  sua   intuição  de   falante  nativo.  No  estudo  da  predicação,  por  exemplo,  o  ponto  de  partida  pode  ser  a  noção  de  concordância158,  que  é  a  relação  mais  básica,  além  de  intuitivamente  fácil  de  ser  captada,  na  conexão  do   sujeito   com   o   verbo.   As   noções   de   regência   verbal   e   nominal159   podem   ser  introduzidas   na   abordagem   da   complementação,   juntamente   com   o   conceito   de  transitividade  e  a  caracterização  de  verbos,  nomes,  adjetivos  e  advérbios  quanto  a  essa   propriedade.   Na   abordagem   da   adjunção160,   podem   ser   formalmente  

158 Em línguas como o português, as relações de predicação (ou seja, aquelas que se estabelecem entre os termos

tradicionalmente chamados de “sujeito” e “predicado”) tem como consequência morfológica a concordância da flexão verbal, em número e pessoa, com o sujeito da oração. As relações de concordância são de fácil percepção intuitiva porque qualquer falante, mesmo os iletrados, são capazes de perceber a agramaticalidade de frases como “eu fomos”, “nós cantei” e “eles falamos”. Qualquer aluno pode explicar seu estranhamento frente a essas frases pela ideia de que “eu”, por exemplo, deve se combinar com “fui”, e não com “fomos”. Dessa perspectiva, em lugar de serem apresentadas num capítulo a parte (como se fossem algo excepcional na gramática da língua), as regras de concordância verbal podem ser abordadas juntamente com as noções de “sujeito” e “predicado”, como sendo o resultado (ou o reflexo morfológico) de uma relação predicativa. Além de proporcionar economia didática, a apresentação da concordância verbal juntamente com a predicação facilita sistematizar a abordagem das variedades linguísticas que se afastam da chamada norma culta no tocante a essa propriedade, quando o aluno deve refletir sobre a ocorrência de construções como “nós foi” e “tu canta”, que são gramaticais em variedades do português brasileiro, embora em desacordo com a norma-padrão.

159 Da perspectiva sintática, a “regência” é o resultado da relação estabelecida entre um núcleo e um termo (o “complemento”) que é requerido por esse núcleo. Costuma-se afirmar, nesse sentido, que um núcleo “rege” o seu complemento, “fazendo exigências” quanto às suas propriedades morfossintáticas e semânticas. O verbo “gostar”, por exemplo, requer como complemento um sintagma nominal que seja preposicionado (daí dizermos “Gosto de café”, e não “Gosto café”). Esse verbo, portanto, “rege” um sintagma nominal preposicionado, o que implica a sua classificação como “transitivo indireto”. Não apenas os verbos podem ser caracterizados quanto à regência, mas também os substantivos, adjetivos e advérbios, pois palavras pertencentes a essas classes podem requerer um sintagma nominal preposicionado como complemento (por exemplo, em “construção da casa”, “orgulhoso do filho” e “contrariamente ao esperado”, os termos “da casa”, “do filho” e “ao esperado” são complementos de - e, portanto, regidos por - “construção”, “orgulhoso” e “contrariamente”, respectivamente). As preposições também podem ser tratadas como "regentes", uma vez que condicionam alterações na forma assumida pelos itens pronominais que introduz. Tendo em vista esses aspectos, a noção de “regência” pode ser apresentada juntamente com a de “transitividade”, pois a classificação de verbos e nomes quanto a essa propriedade é, em parte, inferida a partir das suas propriedades de regência. Por esse motivo, não há por que abrir um capítulo a parte (como o faz a maioria dos livros didáticos) para introduzir as regras de regência, pois tais regras, que são relevantes para determinar o sentido dos verbos e o modo como são usados, podem ser estudadas no mesmo ponto em que a transitividade verbal é abordada.

160 A “adjunção” é o nome que damos à relação entre um termo acessório e o elemento que ele modifica (no caso de adjuntos adnominais e adverbiais) ou a que ele se refere (no caso de apostos). Como a adjunção é, do ponto de vista sintático, relativamente menos complexa do que as relações que envolvem o sujeito, o predicado e os complementos, a sua abordagem pode ser o momento ideal para introduzir noções e exemplificar fenômenos semântico-gramaticais cujo tratamento seria de difícil didatização no estudo da predicação e da complementação. As noções de coordenação e subordinação no período simples, por exemplo, podem ser introduzidas no estudo dos adjuntos e, depois, estendidas aos termos do enunciado que participam de outros tipos de relação. Na análise de um sintagma como “aquele rapaz alto e magro”, por exemplo, é relativamente simples explicar ao aluno que os adjuntos “alto” e “magro” são coordenados entre si (por meio do conectivo “e”), mas subordinados a “rapaz”, que é o núcleo do sintagma. Nesse mesmo ponto, é possível abordar os itens conectivos, mostrando ao aluno que as preposições são sempre subordinativas (ou seja, elas sempre introduzem um termo que sintaticamente se subordina a outro), enquanto as conjunções podem ser subordinativas ou

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explicitados   os   dois   tipos   de   conexão   sintática   (coordenação   e   subordinação),   que   também   ocorrem   nas  relações  de  predicação  e  complementação,  bem  como  é  possível  efetivar  um  estudo  mais  sistemático  sobre  o   comportamento  dos   itens   conectivos   (preposições  e   conjunções)  mais  produtivos  no   funcionamento  da  língua.      É   importante   o(a)   professor(a)   ter   em  mente   que   a   análise   dos   fatos   sintáticos   deve   ser   intuitivamente  transparente   aos   alunos   (ou   seja,   a   análise   não   pode   resultar   num   estudo   inconsistente   em   relação   à  gramática  internalizada  dos  falantes)  e  resultar  no  desenvolvimento  de  generalizações  que  contribuam  para  o   estudo  produtivo   sobre   o   papel   da   gramática   na   construção  de   sentido  dos   textos.  No  que   concerne   à  necessidade   de   a   análise   sintática   ser   intuitivamente   transparente,   pense   um   pouco   a   respeito   da  construção  que  motivou  a  crônica  de  Martha  Medeiros   -­‐  Vende  frango-­‐se.  Como  explicar  a  produção,  por  um   falante   nativo   da   língua,   de   uma   construção   que   é   agramatical   tanto   da   perspectiva   das   variedades  populares  do  português  brasileiro  quanto  das  que  se  aproximam  da  norma-­‐padrão?        

coordenativas. Uma das melhores formas de abordar essas propriedades é levar o aluno a analisar os seus próprios textos: muitos problemas de coesão são desencadeados pelo uso inadequado dos conectivos ou pela estruturação incorreta de períodos compostos por subordinação e/ou coordenação. Portanto, por ser o último tópico abordado na definição dos termos da oração e por se tratar do tipo mais simples de articulação sintática, a adjunção pode ser o lugar ideal para que a abordagem de conceitos relativamente complexos no estudo da sintaxe seja mais facilmente didatizada.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  3  ________________________________________________________________________________________    Uma possível explicação para a produção de uma estrutura agramatical como Vende frango-se está no fato de os falantes de português brasileiro não terem, com base em sua gramática internalizada, qualquer intuição para interpretar o significado que as gramáticas normativas imputam às construções com o chamado se apassivador. Em Dificuldades da Língua Portuguesa161 (p. 101-119), coletânea de trabalhos publicada na primeira década do século XX, o gramático Said Ali destaca que construções similares a Vende-se frango, ao contrário do que os manuais de gramática costumam ensinar, não são percebidas pelos falantes como orações passivas (ou seja, como construções do tipo Frango é vendido, em que o complemento semântico do verbo assume a função de sujeito). Qualquer construção desse tipo é interpretada como tendo um sujeito indeterminado, de modo que o se deve ser analisado como um índice de indeterminação referencial, e não como um apassivador. Mais de cem anos após Said Ali propor essa análise, os livros didáticos continuam a ensinar que, quando ocorrem com verbos transitivos diretos, o se é uma partícula apassivadora, e não um índice de indeterminação. Essa análise é inconsistente tanto do ponto de vista empírico quanto conceitual, uma vez que não reflete o conhecimento internalizado que subjaz ao uso real da língua pelos seus falantes nativos. Dizer que o se pode funcionar como uma partícula apassivadora é, do ponto de vista científico, tão absurdo quanto afirmar, em pleno século XXI, que o sol gira em torno da Terra ou que São Jorge mora na lua. Soma-se a essa incongruência o fato de as variedades vernáculas do português brasileiro tenderem à supressão do se até mesmo na expressão do sujeito indeterminado. Na gramática internalizada de quem produziu a frase Vende frango-se, é muito provável que o se sequer sirva à indeterminação do agente. O que deve tê-lo levado a empregar o se é o fato de esse pronome aparecer correntemente em anúncios comerciais (aluga-se, vende-se, compra-se, contrata-se, troca-se, lava-se, conserta-se etc.) com os quais nos deparamos cotidianamente. Em tais anúncios, o emprego de se parece se dar em obediência a uma fórmula que consagrou a sua ocorrência nesse gênero, e não a propriedades intrínsecas à sintaxe da língua.  

161Fonte:http://www.academia.org.br/abl/media/Dificuldades%20da%20Lingua%20Portuguesa%20-%20CAMS%20-

%20PARA%20INTERNET.pdf, acesso em 30/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  4  ________________________________________________________________________________________    Em   variedades   do   português   brasileiro,   o   se   está   em   franco   processo   de   desuso   para   expressar  indeterminação.  A  título  de  exemplo,  observe  o  trecho  de  fala  transcrito  a  seguir,  extraído  de  uma  amostra  do  projeto  PEUL162  (Censo/2000  -­‐  falante  17),  que  desenvolve  estudos  sobre  o  português  falado  na  cidade  do  Rio  de  Janeiro.  No  trecho  em  questão,  que  é  parte  de  uma  conversa  informal,  um  dos  falantes  solicita  ao  outro  que  explique  como  o  feijão  é  preparado.      FALANTE  A:  Me  diz  passo  a  passo  como  é  que  faz  um  feijão.      FALANTE  B:  É...  escolhe  ele,  lava,  deixa  de  molho,  deixa  uma  hora  de  molho,  aí  depois  -­‐  de  um  dia  pra  outro,  né?  -­‐  aí  de  manhã  você  pega  uma  panela  de  pressão,  um  pouquinho  d'água,  um  dente  de  alho,  um  louro,  cebola  e  o  feijão  e  água,  carne  seca...  e  deixa  cozinhá      O   sujeito   de   todos   os   verbos   sublinhados   no   trecho   é   referencialmente   indeterminado.   Vemos   duas  estratégias   de   indeterminação   que   são   bastante   recorrentes   na   fala   coloquial,   ambas   com   o   verbo   na  terceira  pessoa  do  singular:  (1)  o  emprego  do  pronome  você  para  expressar  referência  genérica,  e  não  para  indicar  a   segunda  pessoa  do  discurso   (...aí  de  manhã  você   pega  a  panela  de  pressão...)   e   (2)   ausência  de  qualquer  elemento  na  posição  do  sujeito  (...que  faz  um  feijão...  /   ...escolhe  ele,   lava,  deixa  de  molho...)  Se  traduzirmos  essas  construções  para  a  norma-­‐padrão,  devemos  empregar  o  se,  que  a  gramática  normativa  analisa  inconsistentemente  como  um  pronome  apassivador:  faz-­‐se  um  feijão  /  pega-­‐se  a  panela  de  pressão  /  lava-­‐se  /  escolhe-­‐se.      Retornando  ao  caso  do  Guimarães  Rosa  do  morro,  tanto  faz  para  ele  que  o  se  seja  colocado  depois  do  verbo  vender  ou  do  seu  complemento  frango:  essa  partícula  não  tem  qualquer  função  gramatical  ou  semântica  em  sua  gramática  internalizada163.  A  inserção  do  se  visa  apenas  a  garantir  que  o  seu  anúncio  obedeça  à  fórmula  de   escrita   verificada   em   tantos   outros   anúncios.   O   mesmo   deve   ocorrer   na   gramática   internalizada   da  maioria   dos   alunos   (e   dos   professores)   em   nossas   classes:   o   se   não   é   uma   estratégia   usual   de  indeterminação,  muito  menos  uma  partícula  apassivadora.  Para  que  o  aluno  aprenda  a  usar  a  expressão  da  indeterminação  referencial  nas  situações  em  que  o  emprego  da  norma-­‐padrão  se  faz  necessário,  você  deve  ajudá-­‐lo   a   tomar   consciência   das   estratégias   de   indeterminação   presentes   sua   gramática   internalizada.   A  partir  dessa  consciência,  ele  será  capaz  de  entender  as  regras  artificiais   (ou  seja,  que  não  são  naturais  em  sua  gramática  internalizada)  relativas  ao  emprego  de  pronomes  indeterminadores.      

162 Fonte: http://www.letras.ufrj.br/peul/amostras%201.html, acesso em 30/05/2011. 163 A gramáticas normativas do português preveem duas estratégias de indeterminação do sujeito: a flexão do verbo na

terceira pessoa do plural, sem um sujeito expresso (como em “Entraram na casa e levaram tudo”) e o uso do pronome “se” com o verbo na terceira do singular (como em “Vive-se bem na Europa”). Nas variedades vernáculas do português brasileiro, contudo, encontramos outras estratégias de indeterminação para além das abordadas nas gramáticas normativas. Algumas dessas estratégias são as seguintes: (a) uso do verbo na terceira pessoa do singular sem o pronome “se”, acompanhado muitas vezes de um termo locativo (“Naquela loja vende livro” / “Nesse restaurante serve salada” / “Aqui trabalha pouco”); (b) uso do pronome “você” com referencia genérica, equivalente a “alguém” ou a “qualquer pessoa” (“Sempre que você vai ao banco, você acaba enfrentando fila”); (c) emprego de pronomes pessoais sem referência bem delineada (por exemplo, podemos empregar o pronome pessoal “eu” para indicar uma referência genérica, e não apenas fazer referência a nós mesmos, como em “Se eu estou doente, eu preciso me tratar”, significando “Quando uma pessoa está doente, é necessário que essa pessoa se trate”); (d) emprego de formas como “o cara”, “neguinho”, “o mané” etc., significando “qualquer um”, “qualquer pessoa”, como em “Se o cara não se cuida, se prejudica”. Ao tratar da indeterminação referencial do sujeito em sala de aula, o professor deve ficar atento às estratégias mais frequentes na fala de seus alunos para entender os efeitos que elas desencadeiam e apresentar à sua turma alternativas que estão em conformidade com a norma-padrão, mas não fazem parte de sua variedade linguística.

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Finalizando  ________________________________________________________________________________________    No  tratamento  da  sintaxe,  é  importante  fornecer  ao  aluno  subsídios  para  que  ele  possa  refletir  produtivamente  sobre  o  sentido  dos  enunciados  e  explorar  diferentes  recursos  de  expressão  nas  mais  diversificadas  situações  de   interlocução.  Abordagens   calcadas   na   observação   de   propriedades   sintáticas   que   são   irreais   do   ponto   de   vista   empírico   (como   o  estatuto   apassivador   do   se   no   português   contemporâneo)   ou   na   rejeição   de   fatos   gramaticais   do   vernáculo   (como   a  variação  na   realização  da  marca   indicativa  de  plural   (os   livro   -­‐  os   livros))  não  contribuem  para  o   sucesso  do  aluno  no  emprego  dos  mais  variados  recursos  que  a  língua,  em  suas  diferentes  normas,  põe  a  sua  disposição.    Em  maio  do  ano  passado,  pudemos   constatar  um  exemplo  de   rejeição,   pela   grande   imprensa,   de   fatos  do   vernáculo  abordados  no   livro  de  EJA  Viver,  Aprender164.  Clique  nas   imagens  abaixo   para   ler  ou   reler  algumas  manifestações  de  jornalistas  e  professores  a  respeito  do  conteúdo  de  uma  das   lições  que  tratava  da  concordância  verbal.  Você  também  pode  clicar  aqui165  para  ler  o  Dossiê  Especial  que  a  ONG  Ação  Educativa  organizou  a  este  respeito,  com  manifestações  de  educadores  e  linguistas.    

 

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Não  seria  mais  interessante  preparar  nossos  alunos  para  não  cometerem  as  mesmas  discriminações  e  os  mesmos  erros  de  análise  que  muitos  jornalistas  (e  até  um  respeitado  gramático170!)  cometeram  na  ocasião?  Não  seria  mais  produtivo  formar   cidadãos   capazes  de  analisar,   contrastar   e   empregar   as   inúmeras   ferramentas  de  expressão  propiciadas  pelas  diferentes  normas  linguísticas  no  uso  concreto  e  efetivo  da  língua?    ________________________________________________________________________________________  

164Fonte:http://www.viveraprender.org.br/a-colecao/viver-aprender-–-2º-segmento-do-ensino-fundamental-eja/volume-2-

por-uma-vida-melhor/, acesso em 06/07/2011. 165Fonte:http://www.acaoeducativa.org/index.php?option=com_content&task=view&id=2620&Itemid=2, acesso em

09/05/2012. 166 Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/direto-ao-ponto/os-livro-mais-interessante-estao-emprestado/,

acesso em 31/05/2011. 167 Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI235334-15230,00.html, acesso em 31/05/2011. 168 Fonte: http://colunas.epoca.globo.com/guilhermefiuza/2011/05/17/os-‘livro’-do-mec/, acesso em 31/05/2011. 169 Fonte: http://apeoesp.wordpress.com/2011/05/15/ao-criticar-livro-didatico-clovis-rossi-ataca-os-professores/, acesso

em 31/05/2011. 170Fonte:http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/o+aluno+nao+vai+para+a+escola+para+aprender+nos+pega+o+peixe/n

1596951472448.html, acesso em 06/07/2011.

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Tópico   3   -­‐   Sintaxe,   sentido   e   variação   linguística   no  trabalho  com  o  texto    Ponto   de  partida________________________________________________________________________________________    O  estudo  da   sintaxe  em  meio  escolar  não  pode   ser   reduzido  ao  ensino  da  nomenclatura  para   as   funções  sintáticas.  Como  ressaltamos  anteriormente,  o  trabalho  com  essas  funções  deve  se  entrelaçar  com  práticas  que  capacitem  o  aluno  a  analisar  as  estruturas  linguísticas  quanto  à  forma,  à  adequação  e  ao  sentido,  tendo  como  ponto  de  partida  a  sua  gramática  internalizada  e  mirando,  dentre  outros  objetivos,  o  aprendizado  da  norma-­‐padrão.      Para   isso,   é   necessário  motivar   o   aluno   a   refletir   sobre   o   papel   desempenhado   por   essas   estruturas   em  diferentes  práticas   com  a   linguagem,   seja  no   reconhecimento  do  modo   como   se  organizam  os  diferentes  gêneros  discursivos  e  textuais,  seja  no  emprego  de  estratégias  que  propiciem  o  uso  criativo  dos  recursos  de  expressão  em  trabalhos  voltados  à  produção  textual.      

 Isso  só  será  possível  se  o  professor  de  português  investir  em  práticas  que   explorem   as   marcas   gramaticais   e   as   formas   sintáticas  singularizadoras  de  variedades  do  português  brasileiro  (em  contraste,  por  exemplo,  com  o  português  europeu)  e  levar  o  aluno  a  caracterizar  essas  marcas  quanto,  dentre  outros  aspectos,  à  sua  maior  ou  menor  adequação   às   diferentes   normas   linguísticas.   É   necessário,   antes   de  tudo,  que  o  aluno  entenda  qual  é  o  papel  da  sintaxe  (e  da  gramática,  de  um  modo  geral)  na  constituição  da  sua  língua  e  das  variedades  que  a  compõem.  

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Mãos   à  obra________________________________________________________________________________________    A   sintaxe   da   língua   desempenha,   como   já   sabemos,   um   importante   papel   na   construção   de   sentido   dos  enunciados.  Recursos  relacionados  à  ordem  de  palavras,  à  concordância  e  à  regência,  por  exemplo,  podem  desencadear  efeitos  de  sentido  que  afetam  a  interpretação  global  de  um  texto.      A   sintaxe  não  é,   contudo,  essencial   para  que  um   texto  em   linguagem  verbal   faça   sentido.  Atente  para  as  estrofes  de  Pulso171,   conhecida  música  do  Titãs   lançada  no   final   dos   anos  80,   e   reflita   sobre  os   seguintes  pontos:  o  encadeamento  sucessivo  de  substantivos  que  servem  para  designar  doenças,  sem  qualquer  elo  sintático  entre  eles,  prejudicou  o  sentido  de  algumas  estrofes  da  letra?  O  que  nos  permite  atribuir  sentido  a  uma  estrofe  como  a  que  se  segue?      

Reumatismo,  raquitismo,    cistite,  disritmia,    hérnia,  pediculose,    tétano,  hipocrisia,    brucelose,  febre  tifoide,    arteriosclerose,  miopia,    catapora,  culpa,  cárie,    câimbra,  lepra,  afasia    

   

171 Fonte: http://letras.terra.com.br/titas/48989/ , acesso em 30/06/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  1  ________________________________________________________________________________________    Uma  das  questões  que  têm  orientado  os  estudos  gramaticais  no  campo  da  linguística  moderna  diz  respeito  a  saber   por   que   as   línguas   naturais   precisam  de   sintaxe   ou,   em  outras   palavras,   por   que   não   aprendemos,  quando  adquirimos  uma   língua,  apenas  os   seus   itens   lexicais,  mas   também  o  modo  como  esses   itens   são  combinados  para  formar  enunciados.  Linguistas  de  diferentes  orientações  teóricas  se  perguntam  por  que  as  línguas  naturais   requerem,  em  sua  constituição,  mecanismos  como  concordância,  ordem,   regência,   flexão  etc.,  se  as  palavras  são,  por  si  sós,  excelentes  veículos  de  significado.      À   primeira   vista,   a   sintaxe   pode   ser   encarada   como   uma   condição   para   garantir   o   sentido   das   frases.   A  relação  entre   sintaxe  e   sentido,   contudo,  não  é   tão  direta  quanto  parece:  por  meio  da   linguagem  verbal,  podemos  produzir  sentido  sem  recorrer  a  mecanismos  sintáticos  (como  nas  estrofes  da  música  dos  Titãs  em  que   várias   palavras   são   combinadas   sem   qualquer   conexão   sintática   entre   elas)   e,   da   mesma   forma,  podemos  atribuir  sentido(s)  a  frases  que  não  são  sintaticamente  gramaticais.  Quando  conversamos  com  um  estrangeiro   que   está   aprendendo   português,   conseguimos   entender   o   significado   de   construções  agramaticais,   como   "Eu   querer   comer   comida,   mas   eu   estar   sem   dinheiro",   da   mesma   forma   como  entendemos  o  significado  de  sintagmas  nominais  em  que  o  gênero  dos  substantivos  é  trocado  ("o  árvore",  "o  nuvem",  "a  clima",  "a  minha  dente"  etc.).  Não  é  necessariamente  para  garantir  o  sentido  dos  enunciados,  portanto,  que  usamos  de  mecanismos   sintáticos  para   ligar  os   termos  de  um  enunciado,  do   contrário  não  entenderíamos  frases  agramaticais  ou  as  estrofes  da  canção  dos  Titãs.      De   um  modo   que   ainda   não   nos   é   claro,   é   possível   que   a   sintaxe   seja   o   resultado   do   acúmulo   de   vários  eventos   biológicos172   que   culminaram   na   emergência   do  Homo   sapiens.   As   investigações   no   campo   dos  estudos   sintáticos  dentro  do  que   ficou   conhecido   como   "gramática   gerativa",  que   tem  no   linguista  Noam  Chomsky173   o   seu   maior   expoente,   têm   evidenciado   que,   apesar   das   diferenças,   as   diversas   línguas   do  mundo   compartilham   recursos   gramaticais   radicados   em   propriedades   do   cérebro/mente   humano;   daí   a  ideia  de  haver  uma  Gramática  Universal174,  com  a  qual  todas  as  crianças  nascem  e  sobre  a  qual  se  constrói  a  gramática   internalizada   de   cada   uma   delas.   Não   há   aqui   espaço   para   abordar   os   avanços   obtidos   por  pesquisas  nesse  campo,  mas  é  importante  ressaltar  que  muitos  estudos  têm  apontado  para  a  ideia  de  que  o  desenvolvimento  da  sintaxe  como  uma  propriedade  das  línguas  naturais,  em  confluência  com  o  surgimento  de  outras  capacidades  cognitivas,  pode  estar  na  base  do  salto  evolutivo  que  determinou  o  sucesso  do  Homo  sapiens  frente  a  todas  as  outras  espécies  de  hominídeos.    

172 Fonte: http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/somos_unicos__biologia_cultura_e_humanidade_7.html, acesso em

31/05/2011. 173 Fonte: http://www.chomsky.info/, acesso em 31/05/2011. 174 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u356184.shtml, acesso em 31/05/2011.

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Colocando  os  conhecimentos  em  jogo  2  ________________________________________________________________________________________    Considerando   essas   ideias,   devemos   nos   perguntar   o   seguinte:   se   não   existe   uma   relação   imediata   e  necessária  entre  sintaxe  e  sentido,  qual  é  a  utilidade  de  abordar  os  fatos  sintáticos  em  âmbito  escolar?  Se  a  sintaxe   de   qualquer   língua   natural   está,   como   defendem   os   gerativistas,   radicada   em   propriedades  mais  gerais  da  mente/cérebro  humano  (sendo,  portanto,  um  conhecimento  naturalmente  adquirido),  por  que  a  introduzir   como   objeto   de   ensino,   uma   vez   que   todas   as   crianças   aprendem   sozinhas   (ou   seja,   sem   a  necessidade  de  um  professor)  a  sintaxe  da  sua  língua?      Para  situar  apropriadamente  essas  questões,  o  primeiro  ponto  a  ser  considerado  é  que,  concebendo  a  gramática  como  um  conhecimento  que   se   internaliza   naturalmente,   a   ação   da   escola   não   deve   ser  pautada   pela   tentativa   de   ensinar   gramática   aos   alunos,   já   que   o  aprendizado  da   língua  materna  (incluindo  a  sua  gramática)  se  dá  de  modo  natural,  pela  exposição  da  criança,  desde  o  seu  nascimento,  a  dados  linguísticos  produzidos  pelos  membros  da  sua  comunidade  de  fala.   O   papel   da   escola   é,   dessa   perspectiva,   levar   o   aluno   ao  entendimento   do   que   é   a   linguagem,   orientando-­‐o   a   refletir  produtivamente   sobre   a   sua   língua   e   fornecendo-­‐lhe   instrumentos  que   os   habilitem   a   empregar   conscientemente   os   mais   variados  recursos   de   expressão   em  diferentes   níveis   gramaticais   (fonológico,  morfológico,  sintático,  morfossintático,  morfolexical  etc.).      No  que  concerne  à  sintaxe,  a  sua  abordagem  em  sala  de  aula  não  deve  ter  como  objetivo  último  ensinar  os  alunos   a   concatenar   palavras   ou   a   fazer   concordâncias   (já   vimos   que   a   ausência   de   concordância,   por  exemplo,   não   impede   a   construção   de   sentido),   mas   o   de   orientá-­‐los   à   plena   autonomia   no  desenvolvimento   de   atividades   (como   a   escrita)   em   que   o   uso   consciente   e   monitorado   de   recursos  linguísticos  se  faz  necessário.  Pensemos,  por  exemplo,  no  papel  que  o  estudo  da  sintaxe  pode  desempenhar  no  trabalho  com  diferentes  gêneros  discursivos/extuais.  Como  já  destacado  no  Tema  1,  a  caracterização  dos  dados   linguísticos  quanto  à   sua   forma  e  adequação  a  uma  norma  deve   levar  em  conta  o  contexto  de  sua  produção.  Dessa  perspectiva,  recursos   linguísticos  que  são  adequados  a  determinados  gêneros  em  esferas  específicas   podem   ser   inadequados   (ou   até   provocar   estranhamentos   quanto   à   gramaticalidade)   nos  domínios  de  outras  esferas.      

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Colocando   os   conhecimentos   em   jogo  3________________________________________________________________________________________    Para   exemplificar   como   um   fenômeno   sintático   interfere   em   marcas   que   atuam   na   particularização   de  gêneros   textuais/discursivos,   consideremos  o  que  as   gramáticas   tradicionais   chamam  de   sujeito  oculto175.  Muitos  estudos  têm  mostrado  que  os  brasileiros  recorrem  a  esse  tipo  de  sujeito  com  menos  frequência  do  que   os   portugueses,   o   que   possivelmente   se   deve   à   redução   do   paradigma   flexional   dos   verbos176   no  português  do  Brasil.      Considerações   sobre   o   sujeito   oculto   podem   ser   interessantes,   por   exemplo,   para   evidenciar   aos   alunos  algumas  marcas   constitutivas   do   gênero   relato,   que   privilegia   o   sujeito   de   1ª   pessoa,   uma   vez   que   esse  gênero  costuma  ser  empregado  para  reconstruir  acontecimentos  dos  quais  o  enunciador  tenha  participado.  Clique  nas  imagens  abaixo  para  ler  dois  excertos  que  podem  ser  considerados  representativos  desse  gênero:  no  Texto  1,  temos  um  relato  escrito,  extraído  de  uma  crônica;  no  Texto  2,  temos  a  transcrição  de  um  relato  produzido  oralmente,   como  parte  de  uma  entrevista   informal.  Atente  para  as   formas  verbais  em  negrito,  flexionadas  na  1ª  pessoa  do  singular,  e  procure  observar  em  qual  dos  dois  textos  predominam  as  orações  em  que  essas  formas  trazem  o  sujeito  oculto.                                                    

     Texto  1177  

       Texto  2178  

 Você   deve   ter   percebido  que  quase   todos   os   verbos   destacados   no  Texto   1   têm  o   sujeito   oculto:   das   16  formas   verbais   na   1a.   pessoa   do   singular,   apenas   3   aparecem   combinadas   com   o   pronome   eu  fonologicamente  realizado  na  posição  do  sujeito.  No  Texto  2,  vemos  o  oposto:  15  dos  16  verbos  flexionados  na   1a.   pessoa   do   singular   ocorrem   com   o   pronome,   havendo   apenas   um   caso   de   sujeito   oculto.   Como  analisar   esse   contraste   entre   os   dois   textos,   tendo   em   vista   que   o   português   brasileiro   se   afastou   do  português  europeu  no  tocante  à  frequência  de  sujeitos  ocultos?  Por  que  o  Texto  1,  ao  contrário  do  Texto  2,  não  reflete  esse  afastamento  entre  as  duas  variedades  do  português?        

175 Da perspectiva gramatical, o sujeito oculto é aquele que não é fonologicamente realizado, mas pode ter o seu referente

identificado por elementos presentes na própria oração (como a flexão verbal) ou pelo contexto em que o enunciado é produzido.

176Fonte:https://autoria.ggte.unicamp.br/tinymce/plugins/filemanager/files/lingua_portuguesa/modulo_04/funcionamento_lingua_gram_texto_sentido/paradigma_flexional_TEMA_3_TOPICO_3.pdf, acesso em 30/06/2011.

177 Fonte: http://vejasp.abril.com.br/revista/edicao-2223/um-livro-uma-vida, acesso em 09/05/2012. 178 Fonte: http://www.irreverendos.com/?author=22, acesso em 30/06/2011.

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Colocando   os   conhecimentos   em   jogo  4________________________________________________________________________________________    Quando  motivados   a   relacionar   questões   sintáticas   dessa   ordem   com   reflexões   sobre  marcas   linguísticas  que  permitam  contrastar  textos  relacionados  a  um  mesmo  gênero,  os  alunos  têm  a  oportunidade  de  atrelar  essas  marcas  às  condições  de  produção  em  diferentes  esferas  (jornalística,  comercial,  literária  etc.).      O  Texto   1   foi   extraído   da   Revista   Veja   São   Paulo,   que,   como   as   demais   produções   da   esfera   jornalística,  procura   atender   às   expectativas   da   norma-­‐padrão,   mirando   como   modelo,   ainda   que   idealmente,   a  gramática  do  português  europeu.  O  Texto  2,  por  sua  vez,  é   parte   de   uma   entrevista   informal,   sem   maior  preocupação   com   o   monitoramento   da   língua.   Em  situações  desse  segundo  tipo,  não  há  filtro  para  bloquear  as   marcas   do   vernáculo,   contrariamente   ao   que  costumamos  ver  na  produção  de  um  texto  escrito.      Esse   contraste   entre   as   condições   de   produção   explica,  pelo   menos   em   parte,   as   diferenças   na   frequência   de  sujeitos  nulos:  embora  o  relato  privilegie  a  ocorrência  de  verbos  flexionados  na  1ª  pessoa  (uma  propriedade  que  é  comum   aos   dois   textos),   a   produção   de   textos  pertencentes   a   esse   gênero   em   esferas   normativamente  mais   conservadoras   tende   a   valorizar   os   sujeitos   ocultos,   enquanto   a   produção   em   esferas   nas   quais   o  monitoramento  da  língua  é  afrouxado  não  encontra  restrições  para  que  o  sujeito  seja  realizado.  Fatos  desse  tipo  abrem  espaço  para  que  as  práticas  de  análise  sintática  se  sustentem  na  tentativa  de  ajudar  o  aluno  a  reconhecer   aquilo   que   é   adequado   ou   inadequado   em   produções   representativas   de   um   determinado  gênero,  em  esferas  diversas,  tendo  como  norte  o  contexto  em  que  tais  produções  se  realizam.      Mesmo  não  tendo  uma  relação  necessária  com  a  construção  de  sentido  dos  enunciados,  a  sintaxe  da  língua  tem   um   papel   ativo   na   produção   de   significados.   Em   outras   palavras,   embora   sentidos   possam   ser  produzidos   sem   a   ação   de   elementos   sintáticos,   a   sintaxe   colabora   ativamente   na   determinação   dos  sentidos   possíveis   para   um   enunciado.   Isso   pode   ser   observado,   por   exemplo,   em   contrastes   bastante  simples  que  envolvem  a  colocação  dos  termos  da  oração,  como  em  oposições  do  tipo  boa  mulher  -­‐  mulher  boa,  pobre  homem  -­‐  homem  pobre  e  último  objetivo  -­‐  objetivo  último,  que  são  determinadas,  dentro  do  sintagma  nominal,  pela  alternância  na  posição  do  adjetivo  em  relação  ao  substantivo.    

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Colocando   os   conhecimentos   em   jogo  5________________________________________________________________________________________    O  produtivo  trabalho  com  fatos  sintáticos  em  sala  de  aula  tem  sido,  contudo,  prejudicado  pelo   fato  de  os  manuais  de  gramática  mirarem  uma  norma  que,  não  sendo  condizente  com  as  propriedades  mais  gerais  do  português  brasileiro,  não  capta  a  intuição  dos  nossos  alunos  a  respeito  da  língua  que  adquiriram.      A   abordagem   gramatical   reproduzida   pela   grande   maioria   dos  livros   didáticos   fecha   os   olhos   até   mesmo   para   as   variedades  cultas   do   português   falado   no   Brasil,   o   que   esbarra   na  necessidade  de  apresentar  aos  alunos  padrões   linguísticos  mais  realistas,   os   quais   realmente   interessam   ao   trabalho   com  recursos   de   expressão   que   atendam   eficientemente   às   mais  diferentes   expectativas   nas   práticas   de   linguagem.   Diferentes  estudos  têm  mostrado  que  o  português  culto  falado  no  Brasil  se  afasta,  em  muitos  aspectos,  do  que  é  falado  em  Portugal,  o  que,  por   si   só,   justificaria  uma  postura  diferenciada  da  escola   frente  ao  que  chama  de  norma  culta.      São   poucos   os   livros   didáticos   que   se   detêm,   de   forma   sistemática,   nas   propriedades   sintáticas   que  particularizam   o   português   brasileiro   em   relação   ao   português   europeu.   Quando   o   fazem,   o   objetivo   é,  quase   sempre,   o   de   caracterizar   tais   particularidades   como   algo   que   se   desvia   do   que   acreditam   ser   a  "verdadeira"   língua   ou   de   alertar   o   aluno   quanto   aos   "perigos"   advindos   do   uso   de   certas   construções.  Muitas   dessas   particularidades   são   frequentes   em   amostras   representativas   de   normas   cultas179,  depreendidas   a   partir   da   fala   de   pessoas   com   alto   grau   de   instrução.   A   título   de   exemplo,   vale   citar   as  seguintes:   emprego   do   pronome   reto   de   3ª   pessoa   do   singular   em   lugar   da   forma   oblíqua   (Eu   vi   ele   na  praia);  a  alta  frequência  de  a  gente  em  lugar  de  nós  (A  gente  estuda  muito);  uso  do  "tu"  com  a  flexão  verbal  na  3ª  pessoa  (Tu  estuda  muito);  substituição  de  haver  por  ter  como  verbo  existencial  canônico  (Tem  livro  na  estante);  emprego  do  pronome   lhe  como  objeto  direto   (Vou   lhe  beijar);   substituição  da  preposição  a  pela  preposição  em  na  introdução  de  complementos  locativos  (Vou  na  escola)  ou,  ainda,  pela  preposição  para  na  introdução  de  objetos  indiretos  (Dei  o  livro  para  a  criança)  etc.      

179 Fonte: http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/ , acesso em 30/6/2011.

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Colocando   os   conhecimentos   em   jogo  6________________________________________________________________________________________    Entre  as   inovações  sintáticas  atestadas  no  português  brasileiro,  estão  as   relacionadas  ao  que  os   linguistas  chamam  de  "orientação  ao  discurso"180:  em  termos  gramaticais,  os  falantes  de  português  brasileiro  podem  fazer   com   o   tópico   de   um   enunciado   o   que   falantes   de   outras   línguas   românicas   (incluindo   o   português  europeu)  não  podem  fazer.      Considere  os  exemplos181  a  seguir.  Nos  casos  em  (1a)  e  (2a),  o  termo  que  concorda  com  o  verbo  (as  ruas  do  centro   e   as   crianças,   respectivamente)   não   é   o   sujeito   lógico182   da   oração.   Isso   é   fácil   de   ser   percebido  quando  comparamos  (a)  com  (b):  os  termos  que  concordam  com  o  verbo  em  (a)  equivalem  a  um  adjunto  adverbial  em  (1b)  e  a  um  adjunto  adnominal  em  (2b).  Observe  que  o  sujeito  lógico  das  construções  em  (a)  é  o  mesmo  que  o  das  construções  em  (b)  -­‐  respectivamente,  ônibus  (sujeito  de  passar)  e  o  dentinho  (sujeito  de  nascer).      (1)    a.  As  ruas  do  centro  não  tão  passando  ônibus.    b.  Não  tá  passando  ônibus  nas  ruas  do  centro.      (2)    a.  As  crianças  estão  nascendo  o  dentinho.    b.  O  dentinho  das  crianças  está  nascendo.      O   que   mais   chama   a   nossa   atenção   é   o   fato   de   essas   construções   serem   raras   entre   as   línguas   indo-­‐europeias.  Ainda  não  são  claros  os  motivos  que   levaram  à  sua  emergência  no  português  brasileiro,  mas  é  possível   que   resultem   das   dinâmicas   de   contato   que   o   português   estabeleceu   com   outras   línguas   (por  exemplo,  as  línguas  africanas183)  no  processo  de  formação  da  sociedade  brasileira.  Independentemente  das  

180 O trabalho de Eunice Pontes, intitulado “O Tópico no Português do Brasil” (1987), é o primeiro a propor que a

gramática do português brasileiro compartilha propriedades tipológicas com a gramática de línguas como o chinês e o japonês. Nessas línguas, o termo interpretado como tópico, independentemente de qual seja a sua função sintática, pode ocupar posições dentro da oração que, em outras línguas (como as românicas e anglo-saxônicas em geral), são geralmente destinadas ao sujeito lógico ou semântico do verbo. Na esteira do estudo de Pontes, há trabalhos como os de Galves (1998) e Negrão (1999), que argumentam em favor de o português brasileiro se singularizar no conjunto das línguas românicas por ter uma sintaxe “orientada ao discurso”. Cabe ressaltar que as línguas do grupo Bantu, faladas pela maioria dos africanos que foram trazidos como escravos para o Brasil, também apresentam propriedades de orientação ao discurso.

181 Chamamos de "tópico" o termo que se refere ao tema principal do que se diz na oração. O termo topicalizado nem sempre desempenha a função de sujeito. Em "Na rua, é difícil de viver", por exemplo, o termo "na rua" pode ser interpretado como tópico e equivale a um adjunto adverbial (ou, dependendo da análise, a um complemento circunstancial) ligado ao predicado com o verbo "viver".

182 Sujeito lógico (também chamado de “sujeito semântico”) é o termo cujo referente é interpretado como um participante necessário à existência do estado de coisas (uma ação, um processo, um fenômeno, um estado propriamente dito) expresso pelo verbo. Nem sempre o sujeito gramatical (ou seja, aquele que concorda com o verbo) equivale a um sujeito lógico. Em construções do inglês como “It rains”, o pronome “it” é um sujeito (expletivo) gramatical, mas não pode ser caracterizado como um sujeito lógico. Nas construções exemplificadas em (1a) e (2a), os termos “as ruas do centro” e “as crianças” são sujeitos gramaticais, uma vez que concordam com o verbo, mas não são sujeitos lógicos. Do ponto de vista semântico, esses termos equivalem a um adjunto interpretado como uma circunstância de lugar em (1a) e um possuidor em (1b).

183 Em línguas do grupo Bantu, por exemplo, que eram faladas pela maioria dos africanos trazidos para o Brasil entre os séculos XVI e XIX, a flexão verbal pode concordar com termos locativos em função adverbial sempre que tais termos forem realizados antes do verbo e o sujeito lógico for pós-verbal. Estudos como os de Avelar e Cyrino (2008) sugerem que, na gênese do português brasileiro, esses padrões oracionais das línguas Bantu podem ter sido transferidos para o

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razões  que  desencadearam  essas  estruturas,  o  que  é  relevante  no  âmbito  da  disciplina  de  Língua  Portuguesa  é   o   fato   de   já   não   estarem   restritas   à   oralidade,   mas   serem   também   encontradas   em   textos   escritos,  principalmente   entre   aqueles   marcadamente   informais.   Em   blogs,   por   exemplo,   é   comum   encontrar  postagens  de  internautas  que,  ao  redigirem  perguntas  ou  opiniões  sobre  algo,  produzem  construções  como  as  relacionadas  acima.  Clicando  aqui184,  você  encontra  uma  lista  com  exemplos  dessas  construções  extraídos  de  blogs  brasileiros.      Essa   é   apenas   uma   das   muitas   inovações   atestadas   no   português   brasileiro   de   que   a   escola   deveria   se  ocupar.  Levar  o  aluno  à  consciência  dessas  inovações  (não  para  tratá-­‐las  como  desvios,  mas  para  apresentá-­‐las  como  resultado  de  propriedades  do  português  brasileiro)  é  fundamental  para  garantir  que  ele  aprenda  a  refletir  sobre  a  adequação  de  certas  marcas  da  oralidade  na  produção  e  recepção  de  textos  representativos  dos  mais  diferentes  gêneros.      

português adquirido como L1 por descendentes diretos dos africanos e, a partir daí, se difundido para diferentes variedades do português em formação no Brasil. Trabalhos como os de Lucchesi, Baxter e Ribeiro (2010) e Petter (2009) também apresentam argumentos favoráveis à ideia de que o contato do português com línguas africanas foi determinante na formação de variedades populares do português brasileiro. Já estudos como os Naro e Scherre (2007) são contrários a essa ideia, defendendo que muitas das marcas identificadas no português brasileiro ocorrem, ainda que de forma latente, em variedades do português europeu.

184 AVELAR, Juanito. Convergências e contrastes entre o português brasileiro e as línguas Bantu: posição de sujeito e padrões de concordância. Comunicação apresentada como parte da mesa “História(s) da Língua: Contatos e Mudanças”, durante o I Simpósio “Dinâmicas Afro-Latinas: Língua(s) e História(s)”, realizado nos dias 27 e 28 de abril de 2011 no IEL/Unicamp.

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Atividade  autocorrigível  5a  ________________________________________________________________________________________    Leia  o  texto   intitulado  As  praca185,  publicado  na  coluna  de  Sírio  Possenti186  no  Terra  Magazine,  e  verifique  quais  das  afirmações  a  seguir  abordam  corretamente  as  ideias  do  texto.      a)187   O   texto   deixa   implícito   que   as   regras   de   concordância   abonadas   pela  norma-­‐padrão   são   indispensáveis   para   que   as   pessoas   possam   depreender   o  sentido   exato   de   um   enunciado,   já   que   dificilmente   alguém   conseguirá  entender  que  as  praca  tem  o  mesmo  significado  que  as  placas.    b)188   Pessoas   que   falam   ou   escrevem   as   praca   em   lugar   de   as   placas   não  tiveram  oportunidade  de  ir  à  escola  para  aprender  a  falar.      c)189   Formas   como   barbie   kill,   inelgético   e   desvil   (em   lugar   de   barbecue,  energético   e   desvio)   podem   revelar   o   modo   como   os   falantes   analisam   as  propriedades  da  língua.    d)190   Ao   comentar   a   notícia   veiculada   pelo   Jornal   Nacional   a   respeito   das  dificuldades  enfrentadas  por  candidatos  a  empregos  em  provas  de  português,  Sírio  Possenti  destaca  que  palavras  como  obsessiva  e  exequível  são  "boas  para  errar"  porque  até  mesmo  profissionais  da  escrita  têm  dificuldade  para  entender  determinadas  regras  de  grafia  (como  o  uso  de  x  em  vez  de  z  ou  s)  necessárias  ao  domínio  da  língua  escrita.    e)191  Ao  reproduzir,  no  último  parágrafo,  a  fala  da  responsável  por  uma  empresa  e  afirmar  que,  pelo  critério  análogo  ao  do  ditado,  ela  seria  demitida,  a  intenção  de  Sírio  Possenti  é  chamar  a  atenção  para  o  fato  de  que  violar  a  norma-­‐padrão,  em  qualquer  nível  de  análise  linguística,  não  implica  a  priori  qualquer  tipo  de  incapacidade  no  domínio  da  língua.    f)192  Frases  do  tipo  "Tem  uma  vaga  que  a  gente  tá  com  ela  aberta  há  mais  de  quatro  anos"  revelam  incapacidade  para  lidar   com   raciocínio   lógico,   o   que   reforça   a   necessidade   de   as   empresas   abandonarem   os   testes   de   ortografia   e  investirem  em  provas  que  avaliem  conhecimentos  de  análise  sintática  à  luz  da  gramática  normativa.    ________________________________________________________________________________________      

185 Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5213302-EI8425,00-As+praca.html , acesso em 30/06/2011. 186 Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/ultimas/0,,EI8425,00.html, acesso em 06/07/2011. 187 Incorreto. De acordo com texto, “as praca” é outra maneira de dizer (ou escrever) “as placas”. 188 Incorreto. O texto não faz nenhuma sugestão acerca de como terá sido a vida escolar de quem produz “as praca” em

lugar de “as placas”, bem como não faz qualquer alusão à ideia de que só aprendem a falar aqueles que vão à escola. 189 Correto. O texto tece considerações a respeito do que pode levar as pessoas a se desviarem da ortografia convencional

em casos como os mencionados, destacando, nesse sentido, que "'as praca’ são verdadeira mina para pesquisadores”, pois podem fornecer indícios relevantes sobre determinados aspectos da língua.

190 Incorreto. De fato, Sírio Possenti afirma que as palavras em questão são “boas para errar”, mas critica a cobrança feita pela prova e ressalta que não se pode confundir “grafia com escrita e escrita de palavras soltas com domínio de língua escrita”.

191 Correto. A fala da responsável pela empresa se desvia da norma-padrão em dois pontos: (i) emprego de “ter” em lugar de “haver” e (ii) construção de uma oração adjetiva dentro da qual se realiza um termo (o sintagma preposicionado “com ela”) que é referencialmente idêntico ao antecedente do pronome relativo (o sintagma “uma vaga”). Isso não significa, de acordo com o texto, que a responsável não esteja apta ao exercício de suas funções dentro da empresa, da mesma forma que o erro na escrita de palavras como “obsessiva” e “exequível” não indica falta de aptidão ao emprego.

192 Incorreto. O texto não estabelece qualquer relação entre a inobservância da norma-padrão e a incapacidade de lidar com raciocínio lógico, bem como não sugere qualquer necessidade de as empresas investirem em provas que permitam avaliar o conhecimento normativo da sintaxe.

mmarcionilo
Nota
ver se continua aqui, senão pedir a Sírio e replicar.
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Atividade  autocorrigível  5b  ________________________________________________________________________________________    Clique   aqui193   para   visualizar   a   redação   escrita   por   uma   aluna   nas   primeiras   séries   do   Ensino   Básico   e  assinale   a   alternativa   que,   à   luz   da   concepção   de   gramática   explorada   ao   longo   do   nosso   curso,   traz   a  afirmação  correta  a  respeito  do  que  vemos  no  texto.    a)194  A  incapacidade  de  fazer  a  concordância  verbal  mostra  que  a  aluna  não  tem  domínio  nem  da  língua  escrita  nem  da  língua  falada.    b)195   A   redação   indicia   que,   no   processo   de   aquisição   da   linguagem,   a   aluna   internalizou   um   paradigma   flexional  reduzido,  que  é  uma  das  características  das  variedades  do  português  brasileiro,  em  contraste  com  o  português  europeu.    c)196   É   impossível   depreender   o   significado   da   construção   o   produto   que   nós   colhia   nós   tinha   de   dar   a   metade   pro  comissário,   pois  além  de  os  verbos  colher   e   ter   não  concordarem  com  o  pronome  de  1ª  pessoa  do  plural,  o   termo  o  produto  que  nós  colhia  não  é  realizado  junto  ao  substantivo/numeral  metade,  ao  qual  está  sintaticamente  subordinado.    d)197  A  aluna  está  muito  perto  de  conseguir  dominar  plenamente  a  sintaxe  da  língua,  apesar  de  não  saber  ligar  o  verbo,  por  meio  da  concordância,  ao  sujeito  da  oração.    e)198  A  observação  feita  pela  professora  na  parte  inferior  da  redação  revela  que  suas  práticas  de  ensino  são  orientadas  pela  noção  de  adequação  linguística  e  não  por  preceitos  acerca  do  que  seja  certo  ou  errado  na  língua.    f)199  As  marcas  de  correção  (na  cor  vermelha)  sobre  os  verbos  visam  a  chamar  a  atenção  da  aluna  para  um  mesmo  fato  gramatical,  o  que  dispensa  a  professora  de  informar  qual  é  o  tipo  de  "erro"  que  está  sendo  cometido  no  que  concerne  às  formas  verbais.    ________________________________________________________________________________________    

193Fonte:https://autoria.ggte.unicamp.br/tinymce/plugins/filemanager/files/lingua_portuguesa/modulo_04/funcionamento_

lingua_gram_texto_sentido/texto_I_atividade_autocorrigivel_I_Tema_3.pdf 194 Incorreto. Qualquer falante domina as regras da língua que fala (se não as dominar, não pode, por definição, ser tratado

como um falante dessa língua). No que tange à escrita, a aluna demonstra saber usar importantes estratégias de articulação entre as partes do enunciado, apesar de não dominar o uso da pontuação convencional para delimitar períodos ou fronteiras intra e interoracionais. O fato de não fazer a concordância verbal conforme os preceitos da norma-padrão não tem qualquer efeito sobre o sentido global do seu texto, que é bastante claro para qualquer pessoa que o leia.

195 Correto. Nas variedades do português brasileiro, mesmo nas que são representativas da chamada norma culta, o paradigma flexional da conjugação verbal é reduzido em comparação com o do português europeu. Uma vez que, no processo de aquisição da linguagem, foi exposta a dados produzidos por falantes dessas variedades, a aluna internalizou um paradigma que a impede de seguir, sem instrução formal, as regras de concordância abonadas pela norma-padrão.

196 Incorreto. É evidente que o fato de a construção mostrar propriedades em violação às regras da escrita considerada padrão não prejudica o seu significado. No que diz respeito ao termo “o produto que nós colhia”, sua realização fora da posição canônica (que seria em sequência ao substantivo/numeral “metade”, como em “...dar a metade do produto que nós colhía...”) indica que ele é o tópico daquilo que será apresentado nos enunciados subsequentes. Essa propriedade revela que a aluna consegue reproduzir eficientemente na escrita uma estratégia comumente empregada na fala, que é frontear (ou seja, trazer para o início da oração) o tópico do que será dito adiante.

197 Incorreto. Como qualquer outro falante, a aluna domina plenamente a sintaxe da sua língua, independentemente do seu maior ou menor desempenho no que diz respeito ao uso da norma-padrão. A ideia de que a aluna não sabe ligar o verbo ao sujeito da oração por meio da concordância é equivocada, dado que ela emprega regras em conformidade com o paradigma flexional reduzido que caracteriza as variedades populares do português brasileiro. O que se pode afirmar é que a aluna não domina as regras de concordância abonadas pela norma-padrão.

198 Incorreto. A afirmação de que a aluna “só errou nos verbos”, complementada com a previsão de que logo ela “estará escrevendo sem nenhum erro” caso “faça um esforço”, evidencia que a professora adota uma visão normativa no tratamento dos fatos gramaticais.

199 Incorreto. As marcas de correção sobre os verbos referem-se a diferentes fatos, nem todos de natureza gramatical, o que exigiria da professora explicitar mais claramente para a aluna quais são os tipos de “erro” em questão. Além dos fatos de concordância, encontramos a realização de “fiquemos” em vez de “ficamos” na expressão do pretérito perfeito do indicativo, supressão inicial da sílaba do verbo “estar” (em “..agora já tamos...”), escrita de “tirra” em vez de “tira” (com o mesmo acontecendo no substantivo “cer(r)eal”) e a introdução inapropriada do sufixo de negação “des-” no gerúndio “acostumando”.

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Finalizando________________________________________________________________________________________    Se,   por   um   lado,   a   linguagem   verbal   pode   construir   sentidos   sem  recorrer   a   estratégias   sintáticas,   é   inquestionável   que   a   sintaxe   da  língua,  assim  como  os  outros  níveis  gramaticais,  desempenha  um  papel  fundamental  no  modo  como  as  partes  do  enunciado  se  combinam  para  afetar   o   significado   global   de   um   texto.   As   aulas   de   sintaxe   devem,  dessa   perspectiva,   fomentar   no   aluno   o   gosto   pela   busca   de   padrões  frásicos  que  sirvam  aos  mais  variados  propósitos  no  uso  da  linguagem.  Essa   busca   passa,   necessariamente,   por   reconhecer   as   estruturas   que  compõem   a   sua   gramática   internalizada   e,   ao   mesmo   tempo,   pela  avaliação   dessas   mesmas   estruturas   quanto   a   sua   maior   ou   menor  adequação  aos  diferentes  contextos  de  uso  linguístico.      Se  ficarem  limitadas  aos  padrões  frásicos  previstos  pela  Gramática  Tradicional  e  concentrarem  o  estudo  da  sintaxe  na  mera  classificação  dos  termos  da  oração  ou  em  preceitos  infundados  sobre  o  que  é  certo  e  errado  na   norma-­‐padrão,   as   aulas   de   gramática   continuarão   fadadas   ao   fracasso.   O   professor   deve   investir   em  práticas  que  valorizem  o  emprego  dos  mais  variados  recursos  de  expressão,  o  que  passa,  necessariamente,  por   reconhecer   a   gramática   da   língua   não   como   um   objeto   pronto,   terminado,   entijolado   em  manuais   e  livros  didáticos,  mas  como  uma  parte  constitutiva  do  indivíduo,  construída  de  modo  natural  no  processo  de  aquisição  da  linguagem.        ________________________________________________________________________________________  

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Finalizando  a  disciplina  1  ________________________________________________________________________________________    A   concepção   de   gramática   com   a   qual   trabalhamos   ao   longo   desta   disciplina   exige   do   professor   de  Português  habilidades  que  requerem  uma  percepção  ativa  e  acurada  sobre  o  conhecimento  e  uso  da  língua.  Não  falamos  aqui  da  língua  limitada,  estática,  artificial  e  disfuncional  apresentada  pelos  manuais  tradicionais  de  gramática  e  pelos   livros  didáticos  que  os   seguem,  mas  da   língua  que   resulta  do  conhecimento   (lexical,  fonológico,  morfológico,  sintático,  semântico,  discursivo  etc.)  internalizado  de  modo  natural  pelos  falantes  e  colocado  em  uso  nas  mais  diversificadas  situações  do  cotidiano.  

 Essas  habilidades  do  professor  devem  se  traduzir  em  práticas  didáticas  voltadas  à  formação  de   indivíduos   capazes  de  usar   conscientemente  a   linguagem  a   favor  da  sua   qualidade   de   vida,   que   envolve   desde   o   sucesso   na   vida   profissional   até   o  respeito   pelo   patrimônio   cultural   do   seu   país,   passando   pelo   reconhecimento   de  que   todas   as   variedades   linguísticas   são   legítimas   e   devem   ser   respeitadas.   O  ensino  da  norma-­‐padrão  precisa   figurar  entre  os  principais  objetivos  da  disciplina  de  Língua  Portuguesa,  mas  as  práticas  que  sustentarão  esse  ensino  só  serão  bem-­‐sucedidas   se   os   alunos   forem   apresentados   a   instrumentos   de   reflexão   que   os  capacitem  a   analisar   e   entender   os   variados   recursos   de   expressão   possibilitados  pelas  mais  diferentes  normas  linguísticas.      

É  apenas  no  processo  de  reconhecimento  e/ou  domínio  desses  recursos  que  fará  sentido  apresentar-­‐lhes  o  que  chamamos  de  norma-­‐padrão,  que,  como  sabemos,  não  é  uma  língua,  nem  uma  variedade  linguística  e  sequer  uma  das  múltiplas  possibilidades  de   realização  da   língua,  mas  um  conjunto  de  preceitos  e   valores  histórica,  cultural  e  socialmente  determinados.  Não  existem  falantes  de  norma-­‐padrão,  o  que  significa  que  as  pessoas  não  podem  ser  divididas  entre  as  que  falam  e  as  que  não  falam  essa  norma,  mas  entre  as  que  conhecem   e   as   que   não   conhecem   as   regras   que   determinam   o   seu   uso   e,   entre   aquelas   que   não   as  conhecem,  as  que  sabem  e  as  que  não  sabem  empregá-­‐las.    ________________________________________________________________________________________  

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Finalizando  a  disciplina  2  ________________________________________________________________________________________    Como  não  é  uma  língua  nem  uma  variedade  linguística,  a  norma-­‐padrão  não  pode  ser  o  ponto  de  partida  de  práticas  e  reflexões  desenvolvidas  em  meio  escolar.  O  único  objeto  gramatical  que  se  presta  à  abordagem  científica  e  é  passível  de  uma  descrição  e  sistematização  coerente  são  as  regras  internalizadas  pelos  falantes  no  processo  natural  de  aquisição  da  linguagem.  Se  o  professor  tiver  isso  em  mente,  o  espaço  destinado  às  aulas   de   gramática   pode   ser   transformado   em   um   verdadeiro   laboratório   de   experimentos   sobre   o  conhecimento  e  uso  da  língua.        

200    Por   meio   desses   experimentos,   os   alunos   poderão   reconhecer   como   o   seu   conhecimento   linguístico   se  constitui   e,   por   extensão,   que   critérios   relacionadas   à   forma,   à   adequação   e   ao   sentido   das   expressões  linguísticas   devem   entrar   em   jogo   na   escolha   das   estruturas   que   são   ou   não   apropriadas   às   diferentes  situações   de   interlocução.   É   só   a   partir   daí   que   o   ensino   da   norma-­‐padrão   deve   entrar   em   jogo,   com  os  alunos  tendo  uma  consciência  produtiva  do  que  seja  a  gramática  de  uma  língua  e  do  papel  desempenhado  pelas  diversas  normas  no  uso  efetivo  da  linguagem.      ________________________________________________________________________________________  

200 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=s5MCZ8BB_Ts, acesso em 30/05/2011.

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Ampliando  o  conhecimento  1  ________________________________________________________________________________________    Para  ampliar  seus  conhecimentos  sobre  os  assuntos  abordados  neste  Tema,  você  pode  ler:      Parâmetros   sociolinguísticos  do  português  brasileiro201,   de  Dante   Lucchesi:  O   autor   aborda  o   conceito  de  norma   à   luz   da   sociolinguística   variacionista   e   focaliza   regras   de   concordância   verbal   para  mostrar   o   que  chama   de  polarização   sociolinguística.   Clique   aqui202   para   ler   uma   entrevista   do   autor   à   Folha   Dirigida   e  aqui203  para   ler  um  texto  de  sua  autoria,   intitulado  Racismo   linguístico  ou  ensino  pluralista  e   cidadão,   em  defesa  do  livro  de  EJA  Por  uma  vida  melhor.    Sujeitos   indeterminados   em   PE   (português   europeu)   e   PB   (português   brasileiro)204,   de   Maria   Eugenia  Duarte,  Mary  Kato  e  Pilar  Barbosa:  Esse  artigo  contrasta  qualitativa  e  quantitativamente  as  estratégias  de  indeterminação  referencial  do  sujeito  no  português  brasileiro  e  no  português  europeu,  com  base  em  dados  da  língua  escrita.    O   papel   das   línguas   Bantu   na   gênese   do   português   de   Moçambique:   O   comportamento   sintático   de  constituintes  locativos  e  direcionais205,  de  Perpétua  Gonçalves  e  Feliciano  Chimbutane:  Esse  texto  aborda  o  uso   de   preposições   em   variedades   do   português   emergentes   em  Maputo.   Os   dados   apresentados   pelos  autores  mostram  que  o  português  falado  pelos  moçambicanos  apresenta  pontos  em  comum  com  o  falado  pelos  brasileiros.    Conceitos   de   Gramática206,   de   Maria   Eugenia   Duarte:   Neste   breve   texto,   a   autora   aborda   diferentes  conceitos   de   gramática,   destacando,   dentre   outras,   as   noções   de   norma,   gramática   internalizada   e  adequação  linguística.    O  Português  Afro-­‐Brasileiro207,  de  Dante  Lucchesi,  Alan  Baxter  &  Ilza  Ribeiro:  Esse  livro  traz  uma  coletânea  de   trabalhos   sobre  marcas  morfossintáticas   na   fala   de   habitantes   de   comunidades   rurais   afro-­‐brasileiras  isoladas    O  português  brasileiro:  formação  e  contrastes208,  de  Volker  Noll:  Esse  trabalho  descreve  comparativamente  o   português   brasileiro,   em   contraste   com  o   português   europeu,   destacando,   entre   outros   aspectos,   uma  proposta  de  periodização  para  o  primeiro.    Malcomportadas  línguas  e  Língua  na  mídia209,  de  Sírio  Possenti:  Esses  dois  livros  reúnem  artigos  publicados  pelo   autor,   motivados,   dentre   outras   razões,   por   observações   equivocadas   sobre   a   língua   feitas   em  diferentes  setores  da  mídia.      ________________________________________________________________________________________  

201 Fonte: http://www.abralin.org/revista/RV5N1_2/RV5N1_2_art4.pdf, acesso em 06/07/2011. 202 Fonte: http://www.pglingua.org/foros/viewtopic.php?f=1&t=1913, acesso em 06/07/2011. 203 Fonte: http://www.abralin.org/noticia/Dante.pdf, acesso em 06/07/2011. 204 Fonte: http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/6490/3/DuarteKatoBarbosaAbralin.pdf, acesso em

06/07/2011. 205 Fonte: http://abecs.net/ojs/index.php/papia/article/viewFile/2/pdf, acesso em 06/07/2011. 206 Fonte: http://pt.scribd.com/vin%C3%ADcius_neto_2/d/54180176-Duarte-Conceitos-de-Gramatica, acesso em

03/05/2012. 207 Fonte: http://www.letraviva.net/arquivos/2011/O_Portugues_Afro_Brasileiro_Dante_Lucchesi.pdf, acesso em

06/07/2011. 208 Fonte: http://www.usp.br/gmhp/liv2.html, acesso em 06/07/2011. 209 Fonte: http://www.parabolaeditorial.com.br/releasemalcomportadas.htm, acesso em 06/07/2011.

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Ampliando  o  conhecimento  2  ________________________________________________________________________________________    Para  ampliar  seu  conhecimento  sobre  os  assuntos  abordados  neste  Tema,  você  também  poderá  ver  na  WEB:    Vídeos  de  diversos  documentários  conduzidos  por  Regina  Casé  sobre  os  mais  variados  temas:  Esses  vídeos  podem  ser  usados  em  sala  de  aula  para  apresentar  aos  alunos  exemplos  de  variedades  do  português  faladas  no  Brasil   e   na  África,   em  diferentes   estratos   sociolinguísticos.   Clique  nos   links   abaixo  para   acessar   alguns  deles:      Um   Pé   de   Quê?210:   Programa   em   que   Regina   Casé   relaciona   diferentes   espécies   de   árvores   a     variados  aspectos  (culturais,  sociais,  históricos,  econômicos  etc.)  atrelados  ao  cotidiano  de  comunidades  localizadas  em  diferentes  regiões  do  país.    Programa   da   série  Central   da   Periferia   sobre   aspectos   do   cotidiano   luandense211:   Regina   Casé   entrevista  vários  angolanos  para  abordar  a  situação  socioeconômica  de  Angola.  Ao  longo  do  programa,  aparecem  falas  representativas  de  diferentes  normas  linguísticas  emergentes  naquele  país.    Programa   sobre   a   periferia   de   Maputo,   capital   de   Moçambique212:   Regina   Casé   conversa   com  moçambicanos,  enquanto  viaja  por  diferentes  bairros  no  entorno  da  capital.      Vídeos   do   grupo   humorístico   português  Gato   Fedorento213:   Muitas   piadas   apresentadas   por   esse   grupo  costumam   se   valer   de   recursos   linguísticos   calcados   em   fatos   gramaticais   do   português   europeu.   Clique  aqui214  para  assistir  a  um  quadro  em  que  os  humoristas  tentam  imitar  o  sotaque  brasileiro  para  fazer  uma  piada.    Vídeos   sobre   o  Museu   da   Língua   Portuguesa:   Na   página   seguinte,   você   encontra   links   para   vídeos   que  contam  um  pouco  da  história  e  do   funcionamento  do  primeiro  museu  do  mundo  dedicado  a  uma   língua.  Clique  aqui215  para  acessar  textos  publicados  na  página  do  Museu  sobre  vários  temas  relativos  à  história  do  português.        ________________________________________________________________________________________  

210 Fonte: http://www.umpedeque.com.br/, acesso em 06/07/2011. 211 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=beT86qq82N4, acesso em 06/07/2011. 212 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Vy6kiUwWatM, acesso em 06/07/2011. 213 Fonte: http://www.videosfedorentos.com, acesso em 06/07/2011. 214 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=1DtuO3Y_eYc, acesso em 03/05/2012. 215 Fonte: http://www.museulinguaportuguesa.org.br/colunas.php, acesso em 06/07/2011.

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Ampliando  o  conhecimento  3  ________________________________________________________________________________________    

 

 "Eu   acho   que   o   Museu   da   Língua   Portuguesa,   ele   traz  também   uma   maneira   revolucionária   de   ensinar   a   língua  portuguesa.   Aqui   nós   não   trabalhamos   com   o   conceito   de  certo  e  errado,  nós   trabalhamos  com  o  conceito  de  padrões  diferenciados  da  língua  portuguesa."        Trecho216  da  entrevista  com  Antônio  Carlos  de  Moraes  Sartini.    

 

 

"Quem   sai   do   Museu   conclui   que   faz   parte   de   todo   esse  processo  de  evolução  da  língua."      Trecho217  da  reportagem  sobre  o  funcionamento  do  Museu  da  Língua  Portuguesa.    

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216 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=DwjfnQuE_Mc, acesso em 30/06/2011. 217 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=kA2UxRaurlk, acesso em 30/06/2011.

Page 93: Disciplina:* Funcionamento da Língua 5* Gramática,TextoeSentido * · 2017-09-08 · 3 MãosàObra * _____!! Nosso!entendimento!em!torno!do!que!seja!a!gramática!depende,!em!grande!parte,!do!que!entendemos!por!

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Referências  Bibliográficas  ________________________________________________________________________________________    AVELAR,   J.;   CYRINO,   S.   Locativos   preposicionados   em   posição   de   sujeito:   Uma   possível   contribuição   das  línguas   Bantu   à   sintaxe   do   português   brasileiro.   Linguística,   vol.   3   -­‐   Revista   de   Estudos   Linguísticos   da  Universidade  do  Porto,  2008.  P.  55-­‐75.    DUARTE,   M.   E.   L.   A   perda   do   Princípio   ‘Evite   Pronome'   no   português   brasileiro.   Tese   (Doutoramento).  Universidade  Estadual  de  Campinas  (IEL/Unicamp),  1995.    GALVES,   C.   Tópicos,   sujeitos,   pronomes   e   concordância   no   português   brasileiro.   Cadernos   de   Estudos  Linguísticos  34º,  1998.  P.  7-­‐21.    LUCCHESI,  D.;  BAXTER,  A.;  RIBEIRO,  I.  O  Português  Afro-­‐Brasileiro.  Salvador:  EDUFBA,  2009.    MEDEIROS,  M.  Vende  frango-­‐se.  In:_____.  Doidas  e  santas.  Porto  Alegre:  L&PM,  2008.    NARO,  A.;  SCHERRE,  M.  Origens  do  português  brasileiro.  São  Paulo:  Parábola,  2007.    NEGRÃO,  E.  Português  brasileiro:  Uma   língua  voltada  para  o  discurso.  Tese  (Livre-­‐Docência).  Universidade  de  São  Paulo  (FFLCH/USP),  1999.    PETTER,  M.  O  continuum  afro-­‐brasileiro  do  português.   In:  GALVES,  C.;  GARMES,  H.;  RIBEIRO,  F.  R.     (Orgs.).  África-­‐Brasil:  Caminhos  da  língua  portuguesa.  Campinas:  Editora  da  Unicamp,  2009.  P.  159-­‐17.    PONTES,  E.  O  tópico  no  português  do  Brasil.  Campinas:  Pontes,  1987.    SAID  ALI,  M.  Dificuldades  da  língua  portuguesa.  Rio  de  Janeiro:  ABL/Biblioteca  Nacional,  2008.  7a  ed.