Disertação_Airton Farias

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ALÉM DAS ARMAS: GUERRILHEIROS DE ESQUERDA NO CEARÁ DURANTE A DITADURA MILITAR (1968-72) José Aírton de Farias Fortaleza – Ceará Março/2007

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Airton Farias

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    ALM DAS ARMAS: GUERRILHEIROS DE ESQUERDA NO CEAR

    DURANTE A DITADURA MILITAR (1968-72)

    Jos Arton de Farias

    Fortaleza Cear Maro/2007

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Jos Arton de Farias

    ALM DAS ARMAS: GUERRILHEIROS DE ESQUERDA NO CEAR

    DURANTE A DITADURA MILITAR (1968-72)

    Dissertao apresentada como exigncia para a obteno do grau

    de Mestre em Histria Social comisso julgadora da Universidade Federal do Cear, sob a orientao

    do Prof. Dr. Luigi Biondi.

    Fortaleza Cear Maro/2007

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    Jos Arton de Farias

    ALM DAS ARMAS: GUERRILHEIROS DE ESQUERDA NO CEAR

    DURANTE A DITADURA MILITAR (1968-72)

    Dissertao apresentada como exigncia para a obteno do grau de Mestre em Histria Social de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Cear, pela comisso examinadora formada pelos seguintes professores (as):

    Banca Examinadora

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Luigi Biondi UNIFESP (Orientador)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Frederico de Castro Neves UFC

    ____________________________________________________

    Prof.Dr. Mnica Dias Martins UECE

    ____________________________________________________

    Prof.Dr. Ivone Cordeiro Barbosa UFC (Suplente)

    Aprovada em ___ de____________ de 2007.

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    Para aqueles que, empunhando armas, ideais e sonhos, adentraram s trevas para combater pesadelos e semear outras manhs.

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    AGRADECIMENTOS

    Escrever e pesquisar constituem-se tarefas coletivas. Sem o apoio de vrias pessoas e instituies, no teria sido possvel elaborar esta obra. Agradeo imensamente ao meu orientador, professor Luigi Biondi, pelos agradveis momentos de discusso sobre histria (e sobre futebol tambm, torcedor apaixonado que ele do Roma!). Valeu, meu camarada! No poderia deixar de agradecer ao professor Francisco Moreira Ribeiro, dileto amigo, que me acompanhou desde a elaborao do projeto para entrar no Mestrado da Universidade Federal do Cear aos momentos finais da escrita da dissertao. Aprendi bastante com voc, companheiro. Obrigado por tudo.

    Grato igualmente aos professores Franck Ribard e Edilene Toledo, os quais ao compor a Banca de Qualificao, deram preciosa ajuda para a pesquisa.

    Obrigado especial tambm para Mrio Albuquerque, presidente da Associao 64-68 Anistia, que gentilmente abriu-me as portas daquela entidade e possibilitou vrios contatos para entrevistas e obteno de documentos, sempre solicito e atento, da mesma forma que Papito Oliveira, que franqueou o acesso aos arquivos da Comisso Estadual de Anistia Wanda Sidou. Agradeo de corao.

    A relao de pessoas importantes para a pesquisa grande. Perdo se esqueo de algum. Muito grato a Rita Farias, Vagner de Farias, Simone de Sousa, Sebastio Pontes, Claudia Freitas, Mnica Martins, Acrisio Sena, Angelique Abreu, Artur Bruno, Srgio Braga, Amanda Forte, Manuele Forte, Julie Scott, Wagner Rocha, Audifax Rios, Joo Rios, Cristina Andrade, Deives e a meus professores do Mestrado da Universidade Federal do Cear Frederico de Castro, Adelaide Gonalves, Marya Sylvia Porto Alegre e Eurpedes Funes. Agradeo ao apoio e a agradvel convivncia com meus diversos colegas de turma. Grato aos funcionrios da Biblioteca Pblica Menezes Pimentel, da Associao 64-68 Anistia, da Comisso Estadual de Anistia Wanda Sidou e da Ps-Graduao de Histria da UFC.

    Este trabalho nosso.

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    RESUMO

    O presente trabalho tem como objeto os guerrilheiros de esquerda sobretudo da ALN (Ao Libertadora Nacional) e PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionrio) no Cear durante a Ditadura Militar, precisamente entre 1968 e 1972. Interpreta suas trajetrias e experincias, bem como estas foram mudando com o aumento da represso por parte do Regime Autoritrio existente no Brasil desde 1964. Por meio da anlise de entrevistas, jornais e documentos oficiais, igualmente tenta compreender os vnculos entre os iderios de solidariedade e anseio dos militantes por uma sociedade mais justa com tradies antigas, sobremaneira da cultura judaico-crist, sem descartar as influncias diretas de familiares, amigos, espao escolar, Igreja catlica e nacionalismo. Tambm estuda o contexto em que se deu a guerrilha e as principais aes praticadas pelos revolucionrios no Estado.

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    ABSTRACT

    The present work has as object the guerrilla fighters of left mainly of the ALN (National Liberating Action) and the PCBR (Communist Revolutionary Brazilian Party) in the state of Cear during the military dictatorship, necessarily between 1968 and 1972. It interprets its trajectories and experiences, as they had been changing with the increase of the repression on the part of the existing authoritarian regimen in Brazil since 1964. By means of analysis of interviews, official periodicals and documents, it equally tries to understand the bonding between the model of solidarity and the yearning of militants for a fair society with old traditions, mostly of the Jewish-Christian culture, without discarding the direct influences of family, friends, the schools space, the Catholic Church and Nationalism. It also studies the context in which the guerrilla occurred and the main actions of the revolutionaries in the State.

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    SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................... 9

    CAPTULO 1 - REBELDES COM CAUSA ............................................ 30

    1.1 Uma Histria de Lutas .................................................................... 30 1.2 Cear 1964 ..................................................................................... 35 1.3 Assalto aos Cus ............................................................................ 45 1.4 Cear 1968 ..................................................................................... 50 1.5 Em Armas ....................................................................................... 62 1.6 A Histria em Lutas ........................................................................ 74

    CAPTULO 2 - DO CU PARA AS ARMAS ........................................ 84

    2.1 Os Companheiros ........................................................................... 84 2.2 Fazendo a Hora ............................................................................ 105 2.3 Em Nome da Revoluo ............................................................... 120

    CAPITULO 3 - COMBATES NA TERRA DA LUZ .......................... 135

    3.1 Annimos ...................................................................................... 135 3.2 As Faces da Guerrilha .................................................................. 142 3.3 So Benedito: o(o)caso ................................................................ 158 3.4 O Estrebucho da Esquerda Armada ............................................. 176

    CONCLUSO ...................................................................................... 186

    FONTES ............................................................................................... 191

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 195

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    INTRODUO

    Considerando nossa fraqueza Os senhores forjaram suas leis Para nos escravizarem. As leis no mais sero respeitadas Considerando que no queremos mais ser escravos. Considerando que os senhores nos ameaam Com fuzis e canhes Ns decidimos: de agora em diante Temeremos mais a misria que a morte.

    Resoluo - Bertolt Brecht

    Os pedaos de concreto voando ante os golpes de picaretas e martelos anunciavam o fim de uma era. A 9 de novembro de 1989, a populao da antiga Repblica Democrtica Alem punha abaixo um dos grandes smbolos da Guerra Fria o Muro de Berlim e fazia literalmente virar p mais um regime do chamado socialismo real. H semanas ocorriam manifestaes pelas ruas, mas a maioria da populao ficou incrdula quando s 19h daquele dia, o governo comunista anunciou que os postos fronteirios de Berlim estavam abertos aos habitantes interessados em emigrar para o Ocidente. Milhares de pessoas no perderam a chance, embora outras milhares, eufricas, passassem, em seguida, simplesmente a destruir os 166 km do muro o qual, construdo em 1961, circundava toda a Berlim Ocidental. Durante a madrugada, a festa tomou conta da Cidade. A queda do Muro transformou-se numa intensa e ruidosa celebrao, com fogos de artifcio, abraos, sorrisos e bebidas. Ao largo, esttuas sisudas de Marx e Lnin...

    Mal a poeira assentara, os vencedores da Guerra Fria comearam a falar de uma nova ordem mundial, onde a histria acabara1 e no havia nada alm do laissez-faire neoliberal. Os valores a reger um mundo cada vez mais integrado, globalizado, seriam os do livre comrcio, abertura econmica, individualismo, competio, fim das ideologias, indiferena com o outro, relativismo ps-moderno2, etc. Parece, contudo, que algo saiu errado no plano de se criar um tempo dourado capitalista alm da excluso social, da fome e misria companheiras malditas de milhes de pessoas e das

    1 Vide Fukuyama, Francis. O Fim da Histria e o ltimo Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 2 Uma critica ao ps-modernismo encontrado em CARDOSO, Ciro Flamarion. Histria e Paradigmas Rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domnios da Histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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    turbulncias econmicas que abalaram vrios paises nos anos 1990, provocando (mais) desemprego e falncias, basta atentar-se aos diversos incidentes e conflitos os quais sacodem a aldeia global neste incio de sculo, em que at as torres mais altas do capital financeiro desmoronam como um castelo de areia.

    A derrocada do Leste Europeu e a difuso dos valores neoliberais trouxeram aos historiadores e demais pesquisadores dificuldades e, porque no, um desapego ao estudo de acontecimentos e personagens ligados luta pela causa socialista3. Nessa nova ordem neoliberal, busca-se esquec-los, bani-los como verdadeiros hereges ou v-los apenas como defensores de uma ideologia fracassada e autoritria, quando no, heris romnticos ou mesmo tresloucados terroristas. E se tais elementos esto associados a perodos que constrangem as classes economicamente dominantes como a Ditadura Militar brasileira (1964-1985), cuja instalao e manuteno contaram com o apoio de vastos segmentos sociais, como veremos nestas pginas , o ostracismo histrico maior ainda.

    O professor e historiador Daniel Aaro menciona acertadamente a demonizao existente hoje do Regime Militar4. Poucas pessoas se dispem a defend-lo; at os personagens que cresceram a sua sombra, em geral, no mostram interesse em faz-lo. No Cear, o demnio parece mais assustador. Apesar das indenizaes aos ex-presos polticos que o governo Lcio Alcntara (mandato 2003-07) realizou5, da lei estadual determinando a reunio dos documentos relativos ao perodo autoritrio no Arquivo Pblico atravs da Comisso Especial Permanente de Acesso e da promoo de eventos6, dificultoso o estudo sobre a Ditadura no toa que o Estado um dos poucos do Pas que no abriu ainda seus arquivos disponveis, sendo vedado o

    3 NOVA, Cristiane, NVOA, Jorge. Carlos Marighela: O Homem Por Trs do Mito. So Paulo: Editora UNESP,1999, p. 22. 4 AARO, Daniel. Ditadura Militar, Esquerda e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 97. 5 Em 2003 instalou-se a Comisso Especial de Anistia Wanda Sidou visando colher provas e indenizar os presos polticos cearenses conforme a Lei 13.2002. A 20 de abril de 2005, com a presena do prprio governador, realizou-se evento na cidade de Crates para entregar a indenizao dos 37 primeiros beneficiados. Crates foi uma das cidades em que mais aconteceram perseguies e prises quando do Golpe de 64. O Povo, 21/04/ 2005, p. 7. 6 Entre 24 e 25 de novembro de 2005, com apoio do governo estadual realizou-se o evento Seminrio Nacional: Polticas de Acesso a Documentos Sigilosos na Universidade Estadual do Cear (UECE), discutindo problemticas relativas abertura dos arquivos da Ditadura.

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    acesso de pesquisadores (esse direito facultado apenas aos ex-presos polticos e seus familiares, ainda assim sob pena de responder civil e criminalmente caso haja divulgao pblica que atinja terceiros).

    Como se no bastasse isso, especula-se que muitos dos documentos produzidos pela burocracia autoritria cearense estejam desaparecidos (permita-nos a ironia), com destino incerto ou, suspeita-se, escondidos em rgos ligados aos antigos aparatos de represso ou em posse de indivduos que colaboraram com a Ditadura, quando no destrudos. Ao longo da elaborao desta obra, no que pese a contribuio de vrias pessoas, algumas outras reagiram furiosamente ao tema, chegando a deselegncias com o autor. Sintomtico ainda o culto feito memria do militar cearense que liderou o Golpe de 1964 e implantou o regime de exceo no Pas um dos principais equipamentos da Universidade Federal do Cear, por exemplo, recebeu o nome de Auditrio Castelo Branco...

    No obstante, decidimos dar uma contribuio no exorcismo desse demnio, como fizeram igualmente outros respeitados colegas7. Ao longo das prximas pginas buscaremos estudar a trajetria dos militantes das esquerdas8 armadas no Cear durante a Ditadura Militar, precisamente entre 1968 e 1972, intervalo no qual se concentraram as aes guerrilheiras no Estado.

    7 Tem-se produo de importantes trabalhos locais com temas conexos, como as obras de MAIA JNIOR, Edmilson Alves. Memria de Luta. Fortaleza: Dissertao de Mestrado em Histria/UFC, 2002. RAMALHO, Brulio Eduardo Pessoa. Foi Assim! Fortaleza: ABC Editora, 2002. VASCONCELOS, Jos Gerardo. Memria do Silncio. Fortaleza: EUFC, 1998. SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Cidade Vermelha. Rio de Janeiro: Dissertao de Mestrado em Histria/UFRJ/IFCS, 2000. 8 Adotaremos nesta obra as categorias clssicas de direita, centro e esquerda. Por direitas entenderemos as foras conservadoras, avessas a mudanas e dispostas a manter a ordem capitalista. Por centros compreenderemos as tendncias da moderao e conciliao, que, ante as circunstncias, podem se inclinar favoravelmente s reformas, desde que dentro da lei e da ordem, ou podem apoiar as solues de fora para deter as reformas. Por esquerdas entenderemos os setores favorveis s mudanas em nome da justia e do progresso sociais, podendo mesmo defender a criao do socialismo e recorrendo ao uso da fora. As expresses sero usadas no plural, pois compreendermos que, em cada termo, agrupam-se posies, lideranas e foras diversas, das mais moderadas s mais radicais, como no caso dos grupos armados brasileiros durante a Ditadura . BOBBIO, Noberto. Direita e Esquerda. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1999. AARO REIS, Daniel. Ditadura e Sociedade: As Reconstrues da Memria. In: FICO, Carlos e outros. 1964-2002 40 Anos do Golpe, Ditadura Militar e Resistncia no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

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    Como e por que tais militantes elegeram a ao guerrilheira9 como maneiras de mudar o Brasil, visando torn-lo mais justo? Quem eram esses revolucionrios, tratados pelo governo, imprensa e setores conservadores da sociedade como subversivos e terroristas? Eram cearenses natos ou vinham de outros locais do Brasil? O discurso das direitas cearenses e foras de represso enfatizava que o terrorismo no Cear vinha de fora, do Sul, de onde os rgos de segurana estavam expulsando os subversivos, da porque estes estariam fugindo e atuado no Nordeste. Seria isso correto? Qual a origem social dos militantes, que ocupao apresentavam, quais suas faixas etrias? O que imaginavam estar realizando e quais experincias e tradies os levaram a pegar em armas? Quais suas experincias e aes nos agrupamentos armados, na vida clandestina e perante o cerco cada vez maior da Ditadura nos anos de chumbo? Como a guerrilha os moldou e mudou? Como perceberam (e sofreram) a derrota de seus projetos polticos? Enfim, como e por que ser guerrilheiro num Estado conservador, de economia predominantemente agro-exportadora, com elites autoritrias e dotadas de extremo anticomunismo10 e com uma poderosa Igreja Catlica, igualmente conservadora e aliada secular dos poderes dirigentes, uma Igreja que influenciou na organizao da sociedade local e ao mesmo tempo passou

    9 Ao mencionar guerrilha, referimos-nos forma de luta armada revolucionria cujo objetivo a conquista do poder, destruindo as instituies existentes e emancipando socialmente as populaes como desejavam os grupos armados brasileiros dos anos 1960 e 1970 , e no a uma simples ttica militar. Conforme Noberto Bobbio, essa nova acepo de guerrilha vincula-se diretamente experincia vitoriosa da revoluo Cubana de 1959. A expresso no deve ser usada da maneira pela qual faziam a Ditadura Militar, a imprensa e seus aliados, como sinnimo de terrorismo, entendendo-se por este, conforme ainda aquele pensador, a prtica poltica que recorre sistematicamente violncia contras as pessoas ou s coisas provocando o terror, isso de forma indiscriminada, ou seja, atingindo no somente o inimigo de classe, mas quaisquer pessoas prximas. O terrorismo, assim, no pode ser considerado uma forma de luta de classe, embora os grupos guerrilheiros eventualmente tambm recorram a aes terroristas contra pessoas ou grupos diretamente ligados classe que se mantm no poder no com freqncia, pois poderiam provocar vtimas inocentes e uma reao contrria da populao, da sua condenao por lderes como Lnin e Ernesto Che Guevara. Por fim, ainda seguindo o pensamento de Bobbio, compete distinguir terrorismo de terror, compreendido no sentido do instrumento de fora e violncia usado por parte de quem j detm o poder dentro do Estado para combater seus questionadores novamente o caso da Ditadura Militar brasileira, que sistematicamente recorria ao terror para reprimir as oposies de esquerdas, fossem armadas ou no. BOBBIO, Noberto. Dicionrio de Poltica. Braslia: Editora Universidade de Braslia: So Paulo: Imprensa Oficial de So Paulo, 2000. p. 152, 577, 578, 1242 e 1243. 10 So obras que mostram o autoritarismo e anticomunismo das elites cearenses: LEMENHE, Maria Auxiliadora. Famlia, Tradio e Poder. So Paulo: Annablume; Fortaleza: Edies UFC, 1995. PARENTE, Francisco Josnio Camelo. Anau: Os Camisas Verdes no Poder. Fortaleza: Edies UFC, 1986. RIBEIRO, Francisco Moreira. O PCB no Cear. Fortaleza: Edies UFC/Stylus Comunicaes, 1989.

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    mensagens e valores de solidariedade e amor ao prximo, dentro da tradio cristo-judaica11? Tais valores, como veremos, tambm estavam presentes dentro dos iderios e projetos dos guerrilheiros, da mesma forma como j estavam no imaginrio e prticas dos antigos militantes do Partido Comunista Brasileiros (PCB)12, de onde, no por coincidncia, saram vrios dos ativistas simpatizantes da luta armada.

    Deixe-se de antemo claro que no desejamos fazer apologias, canonizar heris ou encontrar bandidos e viles, porm estudar, dentro de um contexto de forte efervescncia poltica (os anos 1960), as aes, os desejos, os erros e as contradies de mulheres e homens, os quais dedicaram suas vidas ao ideal de transformar a sociedade brasileira, abdicando do convvio de familiares, de amigos, do conforto de uma existncia normal e estvel dentro da ordem capitalista, em prol de um projeto que supunham ser o nico caminho para superar os seculares problemas sociais do Pas.

    No vemos o mundo ou a histria como um palco onde se digladiam o bem e o mal. Os grupos polticos tm seus projetos. H disputas, lutas, na sociedade, de classes sociais, de projetos polticos e de memrias, como abordaremos no captulo 1. As esquerdas no lutavam pelo restabelecimento da democracia nos moldes da que existia at 1964 a valorizao da democracia como um valor fundamental poltico s deu-se na segunda metade da dcada de 1970, no contexto da campanha pela anistia e redemocratizao. Mesmo com suas grandes diferenas, os grupos armados almejavam a preparao para a instalao do socialismo no Brasil, influenciados por um contexto rico (Revoluo Cubana, Guerra do Vietn, etc.), no qual o slido parecia desmanchar-se no ar. O fato, contudo, das esquerdas terem um projeto poltico ofensivo, de conquista do poder no implica em desmerecer sua importncia na resistncia Ditadura. Tinham seu projeto, que foi derrotado, da mesma forma que tambm apresentavam projetos os segmentos das direitas, as quais igualmente no eram democrticas (apoiaram o Golpe de 64 e a Ditadura, contriburam com a represso, etc.) e que acabaram sendo

    11 Sobre a influncia da Igreja Catlica na sociedade e poltica cearense veja-se: MIRANDA, Jlia. O Poder e a F. Fortaleza: Edies UFC, 1987. MONTENEGRO, Joo Alfredo. O Integralismo no Cear. Fortaleza. Imprensa Oficial do Cear, 1986. PARENTE, Francisco Josnio Camelo. A F e a Razo na Poltica. Fortaleza: Edies UFC/ Edies UVA. 2000. 12 FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito. Niteri: EdUFF: Rio de Janeiro: MAUAD, 2002

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    vitoriosas o Brasil de hoje tem a ver com esse projeto triunfante, com suas imensas contradies sociais, com um sistema poltico viciado, com sua democracia capenga, fruto de uma transio negociada entre militares, elites e oposies conservadoras quando do esgotamento da Ditadura nos anos 80.

    As vinculaes entre as elites a Ditadura Militar explicam tanta demora e celeuma na abertura dos arquivos do perodo autoritrio no Brasil e especificamente no Cear. Figuras da alta sociedade, gente que aparece com largos sorrisos nas colunas sociais dos jornais, no passado torturaram, delataram, ascenderam em suas funes de jornalistas, mdicos, advogados, juzes, professores, burocratas, entregando outras pessoas aos pores do Regime, falsificando informaes no raras vezes. Grupos econmicos, bastante conhecidos, que deram dinheiro, combustvel, gs, comida, emprestaram veculos para que os agentes da represso obtivessem informaes visando salvar a Ptria do comunismo.

    O uso da violncia no algo novo na histria do Brasil, nem do Cear. Ao contrario, nosso passado permeado de lutas, atentados, assassnios. Violncia no s dos setores dominantes, mas tambm dos dominados. Dessa forma, numa perspectiva temporal maior, no deve ser encarada como algo aliengena a luta armada das esquerdas. O que talvez incomode mais aos conservadores o fato daquela luta visar destruio da ordem capitalista, da propriedade privada e dos privilgios das classes dominantes.

    Ainda que muitos questionem os ideais e mtodos dos revolucionrios, acreditamos que no se pode duvidar da importncia de suas trajetrias. Encarnam a histria contempornea brasileira na perspectiva dos vencidos, da experincia de pessoas cuja existncia e atuao so to freqentemente ignoradas, tacitamente aceitas ou mencionadas apenas de passagem numa viso de histria mais conservadora, preocupada, sobretudo, com os grandes homens e seus feitos vitoriosos.

    Na linha de pensamento de E. P. Thompson13, cremos que a diversidade de fatores sociais, culturais, componentes dos modos de vida e das tradies das pessoas, deve assumir um plano de destaque nas anlises do historiador, repudiando abordagens que reduzam o processo histrico a meros

    13 THOMPSON, E. P. As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

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    reflexos de generalizaes e mecanicismo econmico. Obviamente no negamos a importncia das condies materiais. Mas nos costumes, na cultura, nos modos de vida, encontramos igualmente exemplos de resistncia e luta, no apenas nos congressos partidrios, aes polticas ou nas divergncias ideolgicas. Os homens, mulheres, jovens no so marionetes de uma onipotente infra-estrutura econmica. Os sujeitos sociais vivem ardorosamente suas vidas, criam valores, prticas e tradies, elaboram o trabalho, sua produo, vivem perspectivas, sonhos, iluses, vencem, fracassam, sorriem, choram, amam e so amados.

    Para Thompson14, a experincias de classe determinada, em grande medida, pelas relaes de classe em que os homens nasceram ou entraram involuntariamente. a partir do cotidiano formador de experincias distintas que os grupos sociais de uma sociedade iniciam a construo de seus prprios padres de conduta, referendam valores, estabelecem relaes. Aquele pensador ingls rejeita a idia de classe como produto de determinadas relaes de produo e cujos interesses poderiam ser definidos de antemo. Uma classe existe quando um grupo de homens que apresentam experincias comuns apreendem tais vivncias poltica e culturalmente, isto , so capazes de concretiz-las em sistemas de valores, idias, tradies, etc. no passar de tal processo que se ergue uma identidade de interesses prprios de uma classe (conscincia de classe), diferenciados dos anseios de outras classes. S se pode entender uma classe como uma formao social e cultural, construda a partir das experincias das pessoas no processo de produo e de suas tradies intelectuais, dos modelos de relacionamento scias e dos padres de organizao poltico-social. A determinao direta feita sobre a experincia leva a novas experincias que podem, agora sim, influenciar a conscincia social por exemplo, as experincias que levaram algum a tornar-se militante armado durante a Ditadura Militar criam novas experincias que aprimoraram ou mudaram as noes de partido, luta poltica, democracia, etc.

    14 THOMPSON, E. P. A Misria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. A Formao da Classe Operria Inglesa. So Paulo: Paz e Terra, 1997. As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos.Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

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    O estudo das experincias desses homens e mulheres ensejou a anlise, ainda que panormica, pela j referida dificuldade de fontes, da fundao e estruturao dos agrupamentos armados de esquerdas os quais atuaram no Estado (o que foi feito no captulo 1 basicamente), bem como das aes subversivas praticadas por tais grupos (do que trata sobretudo o captulo 3). Obviamente que os episdios envolvendo a guerrilha no Cear durante aquele perodo foram quantitativamente menores que em outros Estados da Federao, mas isso no reduz sua significncia ou muito menos implica em brandura da Ditadura nestas terras. Em verdadeiro trabalho de investigao, conseguimos catalogar vrios episdios de guerrilha, alguns nunca descobertos pelas foras de represso e desconhecidos mesmos at pelos antigos militantes, como o seqestro de um comerciante grego em Fortaleza no ano de 1968 pela Ao Libertadora Nacional (ALN). Tambm no vimos nada de amenidades da Ditadura; ao contrrio, como os rgos de represso no Cear eram desestruturados, recorriam sistematicamente a torturas para tentar apurar os crimes terroristas e capturar os subversivos da os casos de tortura, prises arbitrrias, seqestros, ameaa s famlias dos militantes e mortes.

    Ao iniciarmos esta pesquisa para o Mestrado da Universidade Federal do Cear, tnhamos a informao de que apenas dois grupos guerrilheiros haviam atuado no Cear, a Ao Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionrio (PCBR). No obstante, ao longo da produo da obra, descobrimos que outras organizaes armadas nacionais fundaram ou buscaram fundar agrupamentos locais, os quais, muito embrionrios, foram alvos da represso, ainda que tenham praticando mesmo algumas aes, no caso, a Vanguarda Armada Revolucionria-Palmares (VAR-Palmares) e a Frente de Libertao Nordestina (FLNE). Emblemtica ainda foi a atuao do Partido Comunista do Brasil (PC do B), entidade que liderou o movimento universitrio cearense em 1968 e que instalou vrios campos de treinamento de guerrilheiros no Cear visando apoiar a futura guerrilha do Araguaia, no sul do Par: apesar de sua disposio em no realizar aes guerrilheiras no Estado (entenda-se, assalto a bancos, expropriao de armas e carros, etc.) fez proselitismo da luta armada (tanto que muitos cearenses foram para o Araguaia) e travou mesmo alguns combates contra as foras da

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    represso, como o tiroteio ocorrido num colgio de Fortaleza em agosto de 1970, quando um sargento reagiu bala contra as pregaes dos comunistas em favor do voto nulo nas eleies seguintes.

    Pela exigidade do tempo para uma pesquisa de mestrado (normal, alis), pelo tamanho menor das organizaes VAR-Palmares e FLNE (o que no significa que no tenham importncia para o historiador) e especificidades do PC do B no Cear, bem como pelas poucas aes armadas que praticaram, no abordaremos em profundidade tais agrupamentos, embora faamos algumas anlises pontuais e referncias quando necessrias, pois os grupos armados vrias vezes atuavam em conjunto e as entradas/sadas dos militantes em sucessivas dissidncias eram comuns.

    A vasta historiografia clssica nacional sobre a Ditadura Militar centrou sua ateno em generalizaes feitas a partir principalmente de So Paulo e Rio de Janeiro, no levando em conta a dinmica de outras regies do Pas. Como veremos adiante, algumas dessas generalizaes caem por terra quando se estuda casos especficos como o cearense. Assim, enquanto as aes armadas das esquerdas no Centro-Sul passaram a diminuir em 1970, ante a represso forte da Ditadura, foi exatamente no primeiro semestre desse ano que a guerrilha no Cear atingiu seu pice. A to propalada autonomia dos membros da ALN tinha limites explcitos, pois os militantes cearenses dessa organizao foram vrias vezes impedidos de fazer aes pela direo nacional, a qual tinha como campo principal para atuao o Sudeste, especialmente Rio de Janeiro, So Paulo e Belo Horizonte. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), de onde vieram vrios guerrilheiros no Cear, era sistematicamente vigiado e perseguido pelas foras da segurana locais, enquanto no Centro-Sul brasileiro tal represso deu-se sobremaneira aps 1974, quando a esquerda armada j encontrava-se derrotada. Entenderemos o porqu de tais singularidades ao longo do texto.

    Ressalte-se que, embora o foco principal esteja nos militantes atuantes no Cear, quando necessrio, citaremos episdios conexos acontecidos em outros estados e mesmo no exterior. Uma coisa logo percebida ao longo da pesquisa foi a intensa mobilidade dos militantes, fosse para escapar das aes repressivas, fosse para levar a palavra revolucionria a outros rinces ou participar de operaes armadas. Havia grande circulao de pessoas, idias,

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    experincias. Igualmente abordaremos a conjuntura do Golpe de 1964 no Estado, pois, no geral, os agrupamentos guerrilheiros eram dissidentes do PCB, entidade que at ento hegemonizava a esquerda marxista, e as manifestaes do agitado ano de 1968, no qual acontecem j as primeiras aes armadas das esquerdas no Cear em meio a grande efervescncia poltica, produzida principalmente por estudantes, muitos dos quais depois tambm guerrilheiros.

    Os leitores mais minuciosos certamente percebero que, sob novo verniz, esta uma obra de histria poltica. Tm razo. Rendemos-nos s evidncias. Antes, contudo, que nos acusem de historiador tradicional e ultrapassado, permitam o sagrado direito do contraditrio. Esta uma nova histria poltica, fundada em premissas distintas daquela tradicional de carter elitista, individualista, narrativa, factual, restrita superfcie e incapaz de vincular os acontecimentos s causas mais profundas.

    Ren Remond15 falou do renascimento da histria poltica a partir dos anos 1980, ligando esse ressurgimento importncia cada vez maior que a poltica e os Estados tm sobre a vida dos indivduos: as guerras, as relaes internacionais, a interveno na economia, etc. O poltico apresenta consistncia prpria e dispe mesmo de certa autonomia em relao a outros componentes da realidade social se os historiadores cada vez menos acreditam que infra-estruturas onipotentes determinam as superestruturas e se a cultura, o social, o econmico, influenciam determinadas conjunturas, por que seria diferente com a poltica? Ante determinadas condies, uma deciso poltica pode modificar uma realidade. Por exemplo, uma escolha poltica vinculada a questes ideolgicas, pode ter conseqncias incalculveis para a sociedade. Basta ver o que aconteceu no Brasil em 1964, quando da reao dos setores conservadores poltica reformista de Joo Goulart redundou num golpe militar...

    Onde, poder-se-ia contra-argumentar, esto as massas, o povo obscuro na histria poltica? Tal questionamento seria melhor adequado aos antigos historiadores polticos, voltados sobremaneira para a biografia dos notveis. No se aplica para uma histria que pretende integrar todos os

    15 REMOND, Ren. Por Uma Histria Poltica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 22 e seguintes.

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    atores do jogo poltico e que estar preocupada com a sociedade global. Nesse sentido, existe algo mais coletivo que a participao eleitoral ante a universalizao do voto? Ser que o povo por mais vago que seja a definio deste no estava nas manifestaes de ruas, greves, sindicatos, etc., dos anos 1960?

    Para a ressurreio do poltico, houve, por outro lado, mudanas na prpria metodologia da histria poltica uma resposta s criticas que lhe eram feitas, sem dvidas. Tivemos a rediscusso de conceitos clssicos e de prticas tradicionais. Uma das peas fundamentais para essa renovao foi a interdisciplinaridade, ou seja, o contato e a troca com outras cincias sociais, sobretudo com a sociologia, lingstica, direito, cincia poltica e antropologia; a uma, a histria poltica pediu emprestado tcnicas de pesquisa ou de tratamento, a outras, conceitos, um vocabulrio, uma problemtica, uma abordagem...

    Foi com base nesses novos pressupostos que nos lanamos pesquisa. Trabalho rduo, pela polmica do tema e dificuldade de acesso s fontes, sobretudo as oficiais. Obtivemos alguns poucos documentos do aparato repressor (relatrios confidenciais, fichas, informes, inquritos da Polcia Federal, Foras Armadas, Departamento de Ordem Poltica e Social, Justia Militar, etc., e cartas pessoais, manifestos, atas de reunies, declaraes polticas, bilhetes de namorados, rascunhos de livros, etc., anexados aos processos como prova dos crimes praticados) junto a entrevistados, Associao 64-68 Anistia (presidida por Mrio Albuquerque, ex-guerrilheiro, a qual criada para defender os interesses dos ex-presos polticos, preocupou-se tambm em recolher e tirar cpias de peas jurdicas disponveis sobre cearenses em vrios arquivos do Pas) e Comisso Estadual de Anistia Wanda Sidou (sob a presidncia do ex-ativista Papito Oliveira e qual os antigos presos polticos tinham que encaminhar pedido de indenizao com documento anexos comprobatrios de sua militncia e perseguio sofrida) apenas para constar, esclarecemos que Wanda Sidou foi uma brilhante advogada que se notabilizou pela corajosa defesa dos presos polticos cearenses durante a Ditadura.

    Tivemos o zelo de sempre buscar em outras fontes a confirmao ou no do relatado, ou seja, realizar o cruzamento de fontes, a fim de se

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    estabelecer o que provvel ou no de ter acontecido, afinal, poderiam os agentes da represso ao redigir tais peas oficiais omitir o que no lhes interessava, falsificar informaes visando prejudicar os desafetos de esquerda ou ainda realizar glorificaes visando promoes pessoais e justificar a existncia da mquina estatal de represso. Nos casos em que no existem provas concretas que permitam chegar mais perto do que aconteceu, parcial ou completamente, mas apenas indcios, depoimentos, declaraes, etc. que envolvem aspectos emocionais e imaginrios relevantes, o historiador, por prudncia, no pode tomar por certa nenhuma das verses, porm analisar todos os indcios e considerar, a partir deles, todas as possibilidades como hipteses a serem refletidas. Foi o que tentamos ao analisar o polmico episdio de justiamento de um comerciante feito pela ALN no municpio de So Benedito, e que marcou o incio da derrocada da esquerda armada no Cear.

    Note-se que os documentos dos rgos de segurana das Foras Armadas, talvez os mais importantes, no foram abertos at hoje no Brasil. Alguns estados abriram os arquivos dos DOPS (que eram rgos de segurana estaduais, extintos com a redemocratizao do Pas), facultando aos pesquisadores a consulta. Os arquivos do DOPS cearense e de outros rgos de segurana, como o SEI e DOI-CODI, entretanto, nunca foram abertos, embora, pelo menos, tenha sido criado uma lei estadual que obriga que toda documentao da poca da Ditadura seja recolhida ao Arquivo Pblico. No de deve, contudo, criar muitas expectativas sobre a documentao existente ali. Por exemplo, conforme informaes de ex-presos polticos que buscavam provas para justificar o pedido de indenizao, os pronturios sobre assuntos do DOPS-CE no se encontram arquivados, havendo apenas algumas fichas individuais sobre os subversivos, e mesmo assim incompletas, das letras A M, faltando, pois, o nome de vrios das pessoas detidas naquele rgo de represso. Outros documentos possivelmente foram destrudos por agentes da Ditadura ou at a mando de ex-presos polticos, na inteno de apagar o passado e obter um emprego, uma bolsa de estudo, etc. provvel, contudo, que documentos do DOPS-CE e demais rgos locais da burocracia autoritria estejam nos arquivos de outros estados, visto que os agentes da Ditadura trocavam entre si informaes sobre os subversivos que se deslocavam pelo

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    Brasil afora escapando da represso ou em aes revolucionrias. Somente uma pesquisa de maior durao e financiamento poderia fazer o levantamento desses documentos.

    Os jornais O Povo e Correio do Cear foram fontes importantes na produo da pesquisa. Sabemos que a forma pela qual a imprensa transmite um fato (isto , a maneira como seleciona as informaes que iro compor a notcia e atribui importncia a um aspecto da realidade em detrimento de outros) determina a apreenso do pblico. No raras vezes a partir da perspectiva veiculada pelos meios de comunicao que o leitor/espectador levado a perceber a realidade e se posicionar diante dos acontecimentos. A imprensa vai alm, podendo-se mesmo dizer que apresenta capacidade de encaminhar o debate sobre determinado tema, de formular e impor uma agenda e, dessa forma, interferir no rumo dos acontecimentos, obrigando outros autores e instituies a se posicionar. Em determinado casos, sem a participao da imprensa, o desfecho de um determinado processo ou acontecimento poderia ser completamente distinto16.

    Com tantos poderes, a imprensa no passou despercebida pela Ditadura. O trabalho de Beatriz Kushnir17 chamou-nos a ateno para o colaboracionismo de grande parte dos meios de comunicao com a Ditadura, afinal, vrios censores eram jornalistas e muitos jornalistas eram militares sem falar nos interesses dos proprietrios dos meios de comunicao em ter as boas graas dos governantes, de modo que era comum haver autocensura, ou seja, censura dentro dos prprios jornais em abordar temas delicados para a Ditadura (como a poltica econmica, denncias de torturas, etc.) e uma postura constante de abominao as esquerdas, especialmente a que praticava a luta armada. Ironicamente, mesmo condenando a guerrilha, a imprensa podia trombar com o governo apenas por noticiar as aes dos movimentos de contestao, o que poderia soar como propaganda da subverso. Da Haver momentos em que no se podia acreditar em nada que

    16 ABREU, Alzira Alves de. A Participao da Imprensa na Queda do Governo Goulart. In: FICO, Carlos e outros. 40 anos do Golpe: Ditadura Militar e Resistncia no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004, p. 15. Vide tambm LUCA, Tnia Regina. Histria Dos, Nos e Por meios dos Peridicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (organizadora). Fontes Histricas. So Paulo: Contexto, 2005. 17 KUSHNIR, Beatriz. Ces de Guarda: Jornalistas e Censores. In AARO, Daniel e outros. O Golpe e a Ditadura Militar. So Paulo: EUSC, 2004.

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    era impresso: o jornal noticiava que um guerrilheiro tinha morrido atropelado, quando na verdade fora vtima de tortura... Com o AI-5, muitos dos jornalistas mais combativos foram demitidos. No raras vezes, os peridicos reproduziam informes do governo como se fossem matrias feitas pelo prprio jornal. Assim, alm de no fazer frente ao Regime, a maior parte da imprensa apoiou e justificou o que se passava no Pas, tornando-se porta voz do arbtrio. Apenas com a decadncia do Regime Militar, na segunda metade dos anos 1970, que passou a condenar o autoritarismo vigente desde 1964.

    No por acaso, as aes das esquerdas eram noticiadas na pgina de polcia (quando eram noticiadas!), da vindo uma armadilha letal para o pesquisador: como saber se um fato era crime comum ou poltico? O desarme dessa arapuca variou, indo da consulta aos ex-presos polticos (e alguns se recusavam a responder, no raras vezes) ou prestando ateno s entrelinhas da notcia, buscando pistas por exemplo, no geral as operaes de expropriao (assaltos) das esquerdas envolviam vrias pessoas, evitavam-se ameaas aos populares, devolviam-se aos donos os carros roubados para realizar a ao, etc. Verdadeiro trabalho de detetive...

    A escolha de O Povo e Correio do Cear, os mais lidos no perodo ora em estudo, baseou-se em razes pragmticas: a existncia (quase) completa de suas edies dirias na Biblioteca Menezes Pimentel, visto que outros peridicos ali mantidos, apresentam, apesar da boa vontade e esforo dos funcionrios, colees incompletas ou em mau estado de conservao o que no nos impediu de consult-los quando necessrio, obviamente, como no caso do Unitrio, jornal matutino que reproduzia no dia seguinte quase sempre as notcias do dia anterior do vespertino Correio do Cear. Tambm usamos como fontes os jornais Dirio do Nordeste e O Povo dos anos de 2004 e 2005, quando foram publicadas vrias e interessantes reportagens sobre os 40 anos do Golpe e a Ditadura no Cear, embora os referidos jornais no tenham mencionado o apoio que deram ao Regime da Farda...

    O Povo, fundado em 1928, pertencia famlia Sarasate, cujo patriarca, Paulo Sarasate, fora governador do Estado entre 1955-58, ardoroso defensor do Golpe de 64 e apoiador entusistico da Ditadura Militar. Mesmo com a morte daquele jornalista em 1968, o vespertino continuou a apoiar o Regime

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    h, sobre isso, inclusive, o interessante trabalho de Mrcia Vidal18 mostrando como O Povo conseguiu se modernizar e sobreviver em virtude do apoio dos Coronis Cearense (Virgilio Tvora, Csar Cals e Adauto Bezerra), que representavam a Ditadura no Estado e dominavam a poltica local19.

    J o Correio do Cear tivera sua fundao no ano de 1915, passando em 1957 a pertencer aos Dirios Associados de Assis Chateaubriand, a mais poderosa rede de comunicao do Pas e igualmente aliada da Ditadura no Estado faziam parte tambm do grupo a TV Cear, o matutino Unitrio e a Cear Rdio Clube, todos sob a direo de Eduardo Campos, um dos mais influentes homens locais nos anos 1960/70. Segundo alguns jornalistas que trabalhavam no Correio do Cear poca da Ditadura e cujos nomes manteremos annimos, o chefe de redao era militar, notrio colaborador do Regime e que chegou mesmo a perseguir colegas de profisso sob o pretexto da subverso. Essa proximidade do peridico com os militares ficou explcita quando se observa o anticomunismo exaltado de suas pginas e os furos de reportagem que dava no concorrente O Povo, como se tivesse acesso a informaes privilegiadas.

    Vale ressaltar que ao longo do perodo em estudo os jornais sofreram mudanas, se no na linha editorial, pelo menos da estrutura grfica. Isso fica mais evidente a partir de 1970, sobretudo no O Povo, pois Correio do Cear entra em crise com a decadncia dos Dirios Associados. Os peridicos modernizaram-se, usando novas mquinas off-set, melhorando a impresso, a qualidade das fotos, diversificando seus cadernos (embora prevalea a ateno para a parte policial, esportiva e internacional, pelas dificuldades de falar da poltica nacional e desagradar aos Generais de Braslia).

    A consulta a jornais foi importante para realizar um contraponto s entrevistas feitas com os ex-presos polticos e s informaes dos documentos oficiais, j que os depoimentos orais, como bem afirma o professor Michael

    18 VIDAL, Mrcia. Imprensa e Poder. Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Cear. 1994. 19 Do final dos anos 1960 ao incio dos 80, o Cear foi dominado politicamente pelos Coronis do Exrcito Virgilio Tvora, Adauto Bezerra e Csar Cals, os quais se alternaram no governo e dividiram entre si os cargos administrativos conforme maior ou menor respaldo que detivessem dos Generais de Braslia. Vide PARENTE, Francisco Josnio Camelo. Op. Cit.

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    Hall20, apresentam vrias problemticas, como a fragilidade da memria quanto aos acontecimentos especficos e sua seqncia. No muito realista, por parte do historiador, esperar informaes confiveis ou fidedignas sobre a ordem de lembranas dos entrevistados em relao a sentimentos, opinies ou imaginrios da poca, afinal j se passaram quase quatro dcadas dos acontecidos. Sem falar que as memrias esto sujeitas a alteraes pelas experincias posteriores de vida do depoente e por uma variedade de outras modificaes conscientes ou no.

    Recorremos igualmente tcnica da Histria Oral na produo destas mal traadas linhas. Obtivemos vrios depoimentos de pessoas ligadas Ditadura (no s de militantes), dentre os quais alguns manteremos annimos. Conservaremos no anonimato mesmo alguns trechos de depoimentos cujos entrevistados aceitaram falar abertamente. Pedimos a compreenso dos leitores para tal artifcio. necessrio mais uma vez chamar a ateno para a delicadeza dos assuntos tratados. Se normalmente no fcil tornar pblico temas de foro ntimo, imagine-se quando se aborda questes traumticas como torturas, assassinatos de amigos, atentados, homicdios, estupros, traies, delaes, perseguies e afins! Memrias dolorosas. Sentimentos so mexidos, toca-se em lembranas que incomodam e as quais muitos no desejariam rememorar. De certa maneira, sofrer novamente. No por acaso, vrios dos entrevistados foram s lagrimas nos depoimentos pessoas que seguraram no mximo o choro quando agonizavam nos pores do Regime! Confessamos aqui nossa fraqueza de historiador, de termos tambm ficado abalados por algumas confisses. Acreditamos que num tema como esse no h como reagir de forma distinta. Desculpem-nos, ainda somos humanos...

    Afora esses bices, no trabalho com memria deve-se atentar a alguns aspectos. A memria uma reconstruo psquica e intelectual que acarreta uma representao seletiva do passado, um passado que nunca aquele do indivduo somente, mas de um indivduo inserido num contexto familiar, social, cultural, nacional a memria , pois, nesse sentido, coletiva. A memria uma atualizao do passado ou a presentificao do passado, registrando no

    20 HALL, Michael M. Histria Oral: Os Riscos da Inocncia. In: O Direito Memria: Patrimnio Histrico e Cidadania. So Paulo: DPH, 1992.

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    s o que ocorreu no passado, mas no tempo presente tambm e seus conflitos. Em outras palavras, a elaborao da memria faz-se no presente, do presente e para responder s solicitaes feitas no momento atual que a rememorao recebe incentivos. A memria parte do real em movimento, est em evoluo permanente, aberta lembrana e ao esquecimento e esses lapsos, esses silncios, intencionais ou no, so importantes para o pesquisador. , por excelncia, seletiva: guarda-se aquilo que tem ou teve significado em nossas vidas. Pode-se mesmo dizer que a memria constitui um suporte fundamental da identidade individual e coletiva21.

    Como lembra Alistair Thomson22, as reminiscncias tambm variam conforme as alteraes sofridas por nossa identidade pessoal, o que leva necessidade de se compor um passado com o qual possamos conviver. Esse sentido supe uma relao dialtica entre memria e identidade. Nossa identidade (ou identidades, expresso mais adequada para expressar o carter multifacetado e contraditrio da subjetividade) a conscincia do eu que, com o passar do tempo, construmos atravs da interao com outras pessoas e com nossa prpria vivncia. Construmos nossa identidade atravs do processo de contar histrias para ns mesmos como histrias secretas ou fantasias ou para outras pessoas, no convvio social. Ao narrar uma histria, identificamos o pensamos que ramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaramos de ser. As histrias que relembramos no so representaes exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem s nossas identidades e aspiraes atuais. Dessa maneira, nossa identidade tambm molda nossas memrias reminiscncias so passados importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatrio nossa vida, medida que o tempo passa, e para que exista maior consonncia entre identidades passadas e presentes. No obstante, tal composio nunca inteiramente bem-sucedida, da as frustraes, os silncios, os esquecimentos, as ansiedades, os bloqueios, etc., os quais

    21 Vide FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janana. Uso e Abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundao Getlio Vargas, 1998. THOMSON, Alistair. Recompondo a Memria. In: Projeto Histria. So Paulo: EDUC, N. 15, p. 51-71, 1997. POLLAK, Michel. Memria, Esquecimento e Silncio. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro, vol.2, n. 3, p. 3-15, 1989. 22 THOMSON, Alistair. Op. Cit., p. 51-71.

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    podem, por outro lado, extravasarem no inconsciente, nos sonhos, em atos falhos, sintomas fsicos, etc. Isso no pode ser descuidado pelo historiador.

    Vale salientar que memria no histria. As memrias so documentos como outros, a serem interpretados; no constituem a histria pronta. Como afirma Pierre Nora:

    A memria se relaciona a uma experincia vivenciada, tendo como agentes grupos que passaram por diferentes experincias, mas mantendo traos comuns, frutos da experincia coletiva, sujeita a mudanas e permanncias. A histria, por sua vez, relaciona-se a um distanciamento e a uma preocupao constante com a crtica a ser apresentada. Por isso, a histria, enquanto operao intelectual, dessacraliza a memria (...)23.

    A histria no se ope memria, pois a redime, fazendo-a figurar como fornecedora de novas vozes, antes menosprezadas ou esquecidas na redeno do passado.

    Dessa maneira, as fontes orais, como outras fontes, no devem ser vistas como a verdade, a nica verso do passado; so a representao que as pessoas tm do passado; no podem ser idealizadas como uma coisa autntica, verdadeira, longe das relaes de poder, poltica e cultura, estabelecidas no contexto social. Elas representam pistas do passado, as quais somadas a outras pistas materiais, sero submetidas a uma intensa investigao e avaliao, at chegar a uma interpretao aproximada do que tenha ocorrido no passado.

    H uma fronteira entre compreender que h verses e afirmar que s existem verses. A busca do pesquisador, menos que afirmar o relativismo total da verdade, compreender a formao das verdades dentro dos relatos, para poder refletir, em um segundo momento, sobre o passado. Interessa menos do que postular os fatos verdadeiros ou falsos do passado, entender os mecanismos que criaram esse passado construdo, para a partir da pensar na viso do entrevistado e buscar o entendimento analtico-histrico dos fatos acontecidos.

    23 NORA, Pierre. Entre Memria e Histria. In: Projeto Histria, n 10. So Paulo: PUC, 1993, p. 7-24.

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    As memrias no podem ser descartadas por suas subjetividades, uma vez que constituem uma representao do passado, enriquecidas pelas emoes que a acompanham. Logo a subjetividade do narrador um bem precioso, pois conta-nos muito mais do que um povo fez. Fala-nos de seus anseios, sonhos, o que acreditavam fazer e acabaram fazendo, informa-nos dos seus custos psicolgicos, e esses no encontramos nos registros tradicionais24.

    Foi com bases nesses pressupostos que buscamos os depoimentos orais, diversificando, dentro do possvel, os entrevistados. Tentamos ouvir no apenas os militantes das cpulas diretivas, mas tambm aqueles de base. Preocupamo-nos igualmente com fatores como gnero, faixa etria e condio social, visando estabelecer uma maior representatividade do universo de militantes cearenses. Tambm colhemos depoimentos de outras pessoas, que embora no fossem militantes de esquerda, vivenciaram de perto a Ditadura no Cear, como jornalistas, representantes de rgo de represso e estudiosos do assunto.

    Tudo isso est contido nos trs captulos da obra. No primeiro, Rebeldes Com Causa, buscamos realizar uma abordagem sobre o contexto nacional e internacional em que se travou a luta armada no Pas durante a Ditadura Militar, dando ateno s supracitadas questes controversas da qualificao da guerrilha como resistncia ou no, da tendncia autoritria das esquerdas e do resto da sociedade, e dos projetos polticos das organizaes. Falamos ainda especificamente do Cear, dando nfase conjuntura poltica de 1964 e 1968, de como se originaram e se estruturaram os agrupamentos guerrilheiros locais. Fizemos isso porque os revolucionrios cearenses apresentavam, grosso modo, duas origens. Os mais velhos (no to velhos assim!) eram dissidentes do Partido Comunista Brasileiro, que monopolizava a esquerda marxista at o Golpe Militar de 1964 e perdera prestigio da em diante, dando origem a vrias dissidncias. Os mais jovens militantes, curiosamente, no tinham muito contato com os mais veteranos (em geral, iriam se conhecem somente nas prises da Ditadura), e no contexto das agitaes de 1968, adentraram em agrupamentos polticos voltados para a

    24 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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    ao armada. Todos os guerrilheiros, contudo, queriam realizar o assalto aos cus e tomar o poder para, no que pese diferenas de programa ou etapas, implantar o socialismo.

    Conhecidas as origens dos grupos armados cearenses, tratamos no segundo captulo, Do Cu Para As Armas, de analisar mais detalhadamente os ativistas, muitos deles estudantes freqentadores do Clube do Estudante Universitrio (CU) da o ttulo. Quem eram (no que toque a origem social, faixa etria, gnero, instruo e profisso), de onde vinham (no sentido geogrfico), o que os motivou a pegar em armas e quais as experincias (pessoais, familiares, polticas) e tradies que os levaram a empunhar revlveres e metralhadoras e abandonar familiares, estudos, empregos no intuito de mudar o Pas? Como e por que agiram na guerrilha? Quais dilemas viveram em oposio a seus ideais? Como perceberam ou no a derrota iminente? Neste captulo, merece destaque para nossa anlise, para tentarmos entender o que motivava a ao dos ativistas da esquerda armada, a obra de Jorge Ferreira25, que mostrou como a influncia das tradies mticas, sacras e nostlgicas provenientes de sociedades antigas, especialmente da cultura judaico-crist, est presente ainda nas sociedades ditas modernas, expressa em manifestaes discursivas e comportamentais, moldando mesmo pessoas de orientao materialista, como no caso de vrios dos guerrilheiros.

    Por fim, no ltimo captulo, Combates Na Terra Da Luz, abordamos as principais operaes da guerrilha no Estado, das primeiras aes annimas ainda em 1968 ao pice da atuao, no primeiro semestre de 1970. Tratamos ainda sobre como os rgos de represso locais buscaram combater o terror, recorrendo sistematicamente tortura e de como receberam apoio de setores da sociedade, fossem delaes por parte de cidados, fosse contribuies materiais de grandes empresas e polticos. Fica evidente aqui que no existiu brandura da Ditadura no Cear. Se o Regime era to bom (?) assim, por que dezenas de cearenses fugiram, acabaram presos, outros, exilados e alguns, mortos? Falamos ainda dos discursos construdos pelas autoridades e imprensa para desqualificar os guerrilheiros, os quais buscavam sempre ressaltar o comportamento ordeiro nato cearense e de como o terror era

    25 FERREIRA, Jorge. Op. Cit.

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    praticado por jovens ingnuos ou por agentes vindos de outros locais do Brasil, expulsos que foram pela represso nacional. Tratamos das vtimas das esquerdas, sobremaneira do fatdico caso do justiamento de um comerciante em So Benedito, tentando interpretar suas vrias verses, e de como contribuiu para desmantelar os agrupamentos armados cearenses. Por fim, mostramos as ltimas aes da guerrilha, no quase desespero de acesso a um sonho que se apagava ante os sopros da represso reinante.

    At que ponto o autor escolhe o tema ou o tema escolhe o autor? Esse dilema permeia muitas discusses acadmicas e atormenta historiadores vidos por esmiuar o passado. No escapamos a tal encruzilhada. Por honestidade intelectual, no negamos aos leitores nossos posicionamentos polticos de esquerda e (pequena) militncia socialista. A proximidade temporal da Ditadura ainda torna acalorado o tema em estudo. No que acreditemos em neutralidade, mas buscamos nesta obra realizar anlises que permitissem um amplo e diversificado painel sobre um perodo to, paradoxalmente, apaixonante e terrvel. Os sonhos socialistas levaram homens e mulheres a darem parte de suas vidas, a conhecerem horrores e tombarem diante de carrascos impiedosos. As motivaes desses revolucionrios no podem ser esquecidas, sobretudo nesta poca carente de projetos polticos alternativos ao pensamento neoliberal. Entre os sonhos e os pesadelos, h tnues limites. E dentro de nossos limites, fizemos o possvel. Se no saiu melhor, perdoem-nos nosso alcance de pesquisador. Eis nossa contribuio. Boa leitura.

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    CAPTULO 1 REBELDES COM CAUSA

    1.1 Uma Histria de Lutas

    Fortaleza, segunda-feira, 16 de maro de 1970. O carro pagador do London Bank deixa rapidamente os terminais da Norte Gs Butano, nas proximidades da enseada do Mucuripe. No interior da camioneta rural cor verde oliva, dois bancrios, cansados aps longa jornada de trabalho aquela tarefa, recolher a fortuna de 200 mil Cruzeiros Novos de companhias petrolferas do Porto do Mucuripe e lev-la para a sede do Banco, no centro da Capital Cearense, era a ltima do dia. Estavam tranqilos e despreocupados tanto que sequer usavam armas e realizavam o transporte num carro comum. Costumeiramente, duas vezes por semana, faziam esse percurso. O dinheiro, colocado na parte de trs do veculo, encontrava-se armazenado em vrias sacolas de lona trancadas com cadeados. A velha rotina. Tudo em paz. O que de anormal poderia acontecer no final do expediente?

    Mas acontece. Por volta das 17h40min, um corcel verde sem placa abruptamente fecha o carro do Banco. De seu interior, saem trs rapazes, com revlveres em punho. Um assalto. Tudo rpido. Dura menos de cinco minutos. Os rapazes mandam os bancrios saltarem do carro. Estes, atnitos, assustados, obedecem sem titubear com as mos na nuca, so encostados num muro prximo. Os rapazes tomam a camioneta e zarpam tresloucadamente, seguidos pelo corcel, agora dirigido por outros trs homens que aparentavam ser apenas transeuntes (na verdade, davam cobertura ao numa esquina prxima). Adrenalina a mil. Misto de medo e euforia. Tudo estava dando certo. Pouco depois, os carros seriam abandonados, passando os rapazes para um outro automvel e sumindo pelas ruas de Fortaleza. Enquanto isso, os bancrios permaneceriam um bom tempo parados, embasbacados, surpresos com o sucedido, antes de comunicarem ao Banco e polcia o que se dera. Aquele no era um assalto comum. Haviam sido alvo de uma ao de expropriao do Partido Comunista Brasileiro Revolucionrio (PCBR), grupo terrorista que atuava no Pas objetivando derrubar o governo

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    comandado por militares desde 1964. Para fria das autoridades constitudas, era mais uma ao dos subversivos no Cear...26

    As elites economicamente dominantes locais, at como forma de evitar o questionamento a seus interesses e privilgios, buscam ressaltar constantemente o esprito honesto, pacfico e ordeiro do cearense. Criou-se o mito do povo trabalhador, respeitador, que no toca no alheio e no gosta de baderna e confuso. Afinal, o Cear a Terra da Luz27, bero da liberdade, local onde vaqueiros, pescadores, agricultores e operrios, apesar da falta de recursos e das dificuldades e misria provocadas pelas secas, laboram honestamente esperando dias melhores. Parafraseando um grande autor nacional, o cearense seria, antes de tudo, um forte28.

    Essa viso pacfica e de concrdia sobre o Cear, sem atritos, conflitos, lutas e movimentos sociais, obviamente que no se sustenta quando se analisa amide a histria local. Estas mal traadas linhas vo nesse sentido. Em meio ao caldeiro poltico e cultural dos anos 60, vrios cearenses tiveram a ousadia de empunhar armas num sonho audacioso visando derrubar o sistema capitalista vigente e possibilitar a criao de uma sociedade diferente, mais justa, digna com os mais pobres e excludos, e que fosse uma etapa para a implantao do socialismo no Brasil. Os militantes desses grupos realizaram treinamentos militares, praticaram assaltos (melhor dizendo, aes de expropriao da burguesia ou aes de resgate da riqueza que a burguesia explorava do povo), travaram combates contra as foras do Estado, cometeram erros e assassnios, sonharam, viveram perigosamente, foram derrotados, torturados, mortos, achincalhado e por fim, esquecidos pelas correntes historiogrficas mais conservadoras.

    Apesar da diversidade de agrupamentos de esquerda no Pas durante a Ditadura Militar, a rigor dois grupos destacaram-se na pratica de aes armadas no Cear, a Ao Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista

    26 Depoimentos e O Povo, 17/03/1970, p. 1 e 9; 18/03/1970, p.1 e 8; Correio do Cear: 17/03/1970, p. 1, 9 e 11; 18/03/1970, p. 1 e 9. 27 Expresso associada ao fato do Cear ter oficialmente abolido a escravido negra em 1884, antes da Lei urea de 1888 h, contudo, indcios que mesmo aps aquela data a escravido continuou a existir na ento Provncia. Vide CONRAD, Robert. Os ltimos Anos da Escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1975. 28 Um estudo sobre a idealizao do nordestino (e que pode ser aplicada ao cearense), bem como da criao do Nordeste feito por ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. A Inveno do Nordeste e Outras Artes. Recife: FJN/ Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 1999.

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    Brasileiro Revolucionrio (PCBR). Ao longo da pesquisa, e ao contrrio do que pensvamos de inicio (e do que era propagado at por alguns dos prprios ex-guerrilheiros), descobrimos indcios que outras organizaes buscaram tambm fundar agrupamentos locais, os quais muito embrionrios, foram alvos da represso, ainda que tenham praticando mesmo algumas aes, como no caso da Vanguarda Armada Revolucionria-Palmares (VAR-Palmares) e Frente de Libertao Nordestina (FLNE). Emblemtica ainda foi a atuao do Partido Comunista do Brasil (PC do B), entidade que liderou o movimento universitrio cearense em 1968 e que instalou vrios campos de treinamento de guerrilheiros no Cear visando apoiar a futura guerrilha do Araguaia, no sul do Par: apesar de sua disposio em no realizar aes guerrilheiras no Estado, acabou entrando em choque com as foras da represso. No obstante, pela exigidade do tempo para uma pesquisa de mestrado (normal, alis), pelo tamanho menor dessas organizaes (o que no significa que no tenham importncia para o historiador) e pelas poucas aes armadas que praticaram, no abordaremos em profundidade aquelas organizaes, embora faamos algumas anlises pontuais, pois os grupos armados vrias vezes atuavam em conjunto e as entradas/sadas dos militantes em sucessivas dissidncias eram comuns.

    Neste trabalho, tentamos compreender as motivaes e trajetrias da esquerda armada cearense. Afinal, quem eram aqueles rapazes e moas? Quais suas origens sociais? O que pensavam estar fazendo e que experincias os levaram a pegar em arma? Quais suas vivncias nas organizaes revolucionrias, na clandestinidade e diante do cerco repressor, e como perceberam (e sofreram) a derrota de seus projetos polticos? Como a experincia revolucionria os moldou e os mudou? Como ser guerrilheiro num estado conservador, de elites autoritrias e anticomunistas como o Cear? Mesmo os que discordam das idias e objetivos desses revolucionrios (chamados pelos conservadores de terroristas), ho de reconhecer sua coragem. Suas experincias no podem ser ignoradas.

    Os princpios subversivos de esquerda grassavam na Terra da Luz desde pelo menos o incio do sculo XX. Das viagens de cearenses ou do contato destes com viajantes, sindicalistas e mesmo jornais e livros vindos do Centro-Sul brasileiro e Europa, comearam a circular entre os segmentos

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    mdios urbanos intelectualizados e o reduzido operariado local, idias radicais e exticas como o anarquismo e depois o comunismo, apesar da vigilncia da influente Igreja Catlica local e das autoridades constitudas29.

    Em 1927, era instalada a seco local do Partido Comunista Brasileiro (PCB)30, atravs de uma organizao de fachada denominada Bloco Operrio Campons (BOC). Conforme o professor Francisco Moreira Ribeiro, naquele ano, o sindicalista Jos Joaquim de Lima, mais conhecido como Joaquim Pernambuco, foi ao Rio de Janeiro a fim de participar do congresso da Confederao Geral do Trabalho entidade concebida pelo PCB , de onde voltaria com a misso de organizar em Fortaleza o BOC e, conseqentemente, a seco cearense do Partido. Tambm foram criados a seguir ncleos comunistas nas cidades cearenses de Camocim, Aquiraz, Aracati e Quixad, entre outras31.

    A represso no tardou. Rotineiramente a polcia surrava socialistas, enquanto patres os demitiam e negavam-lhes emprego. Jornais esquerdistas eram apreendidos. Em 1931, j na denominada Era Vargas (1930-45), o PCB preparou em Fortaleza a Passeata da Fome visando denunciar a misria do povo e as incoerncias da "Revoluo" de 30. O executivo cearense mobilizou os aparatos estatais para impedir a realizao do evento: nomeou um delegado especial para realizar diligncias no Capital e no interior, proibiu a distribuio de folhetos de convocao da passeata e prendeu a liderana do movimento, deportando 16 comunistas para o Rio de Janeiro32.

    A 4 de maro de 1935, ltimo dia de carnaval, um tiroteio promovido por membros da Ao Integralista Brasileira (cuja seco local fora instalada dois anos antes) contra simpatizante da Aliana Nacional Libertadora (ANL, criada no Cear em 1935) deixou mortos 3 populares e feridos vrios outros.

    29 Vide GONALVES, Adelaide e Silva, Jorge e. A Imprensa Libertria no Cear (1908-1922). So Paulo: Imaginrio, 2000. 30 A rigor, a Organizao surgiu como Partido Comunista do Brasil em 1922, s mudando o nome para Partido Comunista Brasileiro em 1962, quando tentou na Justia sua legalizao, clandestina que estava desde 1947. Foram dissidentes stalinistas que, ao sarem da Organizao naquele ano e fundarem novo partido, passaram a usar a sigla PC do B, dizendo-se os verdadeiros continuadores da agremiao fundada nos anos 20. 31 RIBEIRO, Francisco Moreira. O PCB no Cear. Fortaleza: Edies UFC/Stylus Comunicaes, 1989. 32 Vide RODRIGUES, F. Theodoro. Os 16 Deportados Cearenses. Rio de Janeiro: Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, 2000. um dirio escrito por um dos presos, apreendido pela represso getulista e encontrado por acaso no Arquivo Pblico do Rio de janeiro nos anos 1990.

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    Em julho de 1936, a polcia, na pretenso de combater "subversivos", cercou uma residncia em Camocim e fuzilou os comunistas Miguel Pereira Lima (o "Amaral") e Luis Miguel dos Santos ("Luis Pretinho"), torturando e abusando de um terceiro, Raimundo Ferreira de Souza (o "Raimundo Vermelho"), que tambm em conseqncia das agresses, faleceu meses depois33. Mais comunistas acabaram presos, quando no mortos, em virtude da represso ocorrida aps o fracasso da Intentona Comunista em Natal-RN34 e com a instalao do Estado Novo (1937-45).

    Com a queda da ditadura getulista em 1945 e com a destacada participao sovitica na derrota do Nazismo na Europa, o Partido Comunista ganhou a legalidade como no resto do Brasil, o PCB crescera localmente bastante nos anos posteriores Segunda Guerra Mundial, sobretudo na Capital Cearense. Apesar das pregaes anticomunistas da Igreja Catlica e setores direitistas, o Partido conseguiu nas eleies legislativas de 1946, eleger dois deputados estaduais (o mdico Jos Pontes Neto e o pedreiro Jos Marinho de Vasconcelos) e obter, em termos de legenda, 23% dos votos vlidos em Fortaleza, um resultado expressivo e indicador da influncia vermelha35.

    Os comunistas procuravam conscientizar as camadas mais humildes da populao sobre os direitos fundamentais que lhes assistiam e organiz-las no intuito de reivindicar melhorias como luz, calamento, gua, segurana, etc. Combatiam tambm a carestia, promoviam campanhas de alfabetizao e desenvolviam atividades recreativas. O PCB adquiriria ainda em 1946, do oligarca recm-eleito senador Olavo Oliveira, o jornal O Democrata, visando veicular diariamente sua ideologia e denunciar a explorao de que eram vitimas os operrios e os camponeses.

    Com o avanar da Guerra Fria, o PCB acabou tendo seu registro cassado pela Justia Eleitoral e novamente posto na ilegalidade. Apesar disso, os comunistas elegeram em 1947, sete dos onze vereadores de Fortaleza,

    33 Esse episdio ficou conhecido como o massacre do Salgadinho, regio onde aconteceram as mortes. Vide: SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Cidade Vermelha. Rio de Janeiro: Dissertao de Mestrado em Histria/UFRJ/IFCS, 2000. 34 Mais de duas mil pessoas foram presas nesse perodo, s em Fortaleza e tropas do 23 BC (Batalho de Caadores) foram enviadas para dominar o levante comunista em Natal. RIBEIRO, Francisco Ribeiro. Op. Cit., p. 32. 35 Id. Ibidem., p. 47.

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    usando como fachada o Partido Republicano36. Nos anos seguintes, contudo, a influncia do partido reduziu-se, alvo da represso, das pregaes anticomunistas, dificuldades econmicas (que levaram ao fechamento de O Democrata em 1958) e crises internas, advindas, sobretudo com as denncias dos crimes do stalinismo e invaso da Hungria em 1956 por tropas da Unio Sovitica. Como em outros locais, as denncias dos crimes de Stalin provocaram imenso impacto no Cear, frustraes e discusses entre aqueles que acreditavam ser tudo uma inveno do imperialismo dos Estados Unidos e os que aceitaram as denncias de Krucheav ainda que alguns militantes tenham se afastado do Partido, no houve maiores dissidncias, tanto que o Partido Comunista do Brasil (fundado nacionalmente em 1962 por stalinistas dissidentes e apontando a China de Mao Tse Tung como o modelo de sociedade a atingir por meio da violncia revolucionria) seria instalado no Cear apenas em 1965 e mesmo assim no bojo da acusao segundo a qual o Golpe Civil-Militar do ano anterior se dera pela passividade do PCB.

    1.2 Cear 1964

    Da mesma maneira que no resto do pas, o PCB viveu nova fase no inicio dos anos 60. Pelo depoimento de antigos militantes do Partido37 e pela documentao apreendida pelas Foras Armadas e anexada ao Inqurito Policial-Militar (IPM) instalado aps o Golpe de 6438, h vrios indcios evidenciando a atuao comunista na defesa das reformas de base propostas ento nacionalmente pelo Governo Joo Goulart (1961-64) e seu engajamento nos movimentos de massas, penetrando mesmo no interior do Estado, onde historicamente o anticomunismo foi mais forte em virtude das pregaes da Igreja Catlica, aliada das oligarquias locais, via plpito. Tal postura, de aproximao com o campo, vincula-se s decises do V Congresso Nacional do PCB (no qual, entre outras coisas, deliberou-se pela necessidade de

    36 Id. Ibidem., p. 50. 37 Informaes colhidas junto a Luciano Barreira (jornalista, ex-vereador de Fortaleza, cassado com o Golpe de 1964 e entrevistado a 11/03/2003) e Francisco Moreira Ribeiro (professor universitrio e destacado estudioso dos comunistas cearenses, entrevistado a 23/05/06). 38 Inqurito Policial Militar sobre a subverso no Cear em 1964. Acervo da Associao 64-68 Anistia.

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    trabalho com as massas) e ao impacto da Revoluo Cubana de 1959, que teria provado o carter revolucionrio dos camponeses39.

    O Partido tinha ento na direo Anbal Bonavides, um intelectual (depois do Golpe, chegou a montar a conhecida livraria Cincia e Cultura no centro de Fortaleza), advogado e Deputado Estadual pelo Partido Social Trabalhista (PST). Moderado, leal ao Comit Central do Partido e a Luis Carlos Prestes, era acusado por alguns militantes mais radicais da Agremiao de mole, passivo e de estar por demais a reboque da burguesia local em 1962, por exemplo, Bonavides articulou o apoio do PCB campanha vitoriosa ao senado de Carlos Jereissati, rico comerciante local (pai do depois governador cearense Tasso Jereissati).

    Na realidade, a seco local comunista reproduzia a orientao nacional do Partido, definida pela Declarao Poltica de Maro de 1958 e basicamente ratificada pelo V Congresso do Partido em 1960. Concebia a revoluo brasileira em duas etapas, sendo a primeira, de libertao nacional e democrtica, de contedo antifeudal (havia a crena que existiam resqucios do feudalismo no Brasil) e antiimperialista (contra a dominao dos EUA), congregando uma somatria de classes sociais progressistas (proletrios, camponeses, pequena burguesia e burguesia nacional) visando pela via legal e pacifica (embora no descartando a opo armada) promover o desenvolvimento do Pas, visto que embora o capitalismo no Brasil tivesse j algum incremento, ainda no amadurecera o suficiente para revoluo socialista da a necessidade de unio com aqueles setores progressistas da sociedade visando ampliar as liberdades democrticas e promover as reformas de estruturas (o que ajuda a entender a aproximao dos comunistas em relao s denominadas reformas de base que Joo Goulart proporia), contra a elite latifundirio-feudal e o aliado desta, o imperialismo dos EUA40.

    A segunda fase da revoluo seria, a sim, socialista (vrias das organizaes que pegaram em armas conservaram, com algumas alteraes, muito desse esquema analtico, como foi o caso da ALN e PCBR). Lgico que nem todos dentro do PCB aceitavam a viso de transio pacfica para o

    39 AARO, Daniel. A Revoluo Faltou ao Encontro. So Paulo: Brasiliense, 1990, p. 25. 40 GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. So Paulo: tica, 1999, p. 28-36. AARO, Daniel. Op. Cit., p, 23-28.

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    socialismo, constatao que serviria depois (sobremaneira aps o Golpe de 64) para o surgimento de diversas dissidncias as quais deram origem a novos partidos.

    O Partido Comunista Brasileiro vivia no Cear uma semi-legalidade, apresentando mesmo uma sede conhecida publicamente, cognominada Escritrio Eleitoral 25 de Maro, situado na Rua General Sampaio n. 1131 (no centro de Fortaleza) e que servia para debates e reunies comunistas. As esquerdas locais em 1964 englobavam tambm nacionalistas, em geral acomodados no pequeno Partido Social Trabalhistas (PST, liderado nacionalmente por Miguel Arraes e que abria espao para as candidaturas comunistas, j que o PCB no podia concorrer a eleies), a Frente de Mobilizao Popular e os Grupos dos 11, ligados ao ex-governador gacho e ento Deputado Federal pelo Rio de Janeiro Leonel Brizola.

    Poder-se-ia citar ainda a Federao das Associaes de Lavradores e Trabalhadores Agrcolas do Cear (FALTAC, comandada por comunistas como Jos Leandro Bezerra, lder campons que desde o inicio da dcada estimulava a organizao dos trabalhadores rurais no Estado) e o Pacto Sindical (entidade local que reunia vrios sindicatos, como dos ferrovirios, bancrios, txteis, estivadores, construo civil, grficos, pescadores, agricultores, alfaiates, garons, rodovirios, msicos, metalrgicos, porturios e outros41), liderado pelo bancrio Moura Beleza. Destaque tambm para o movimento estudantil e suas entidades, como o CLEC (Centro Liceal de Educao e Cultura, do Colgio Estadual Liceu, cujos estudantes estavam entre os mais ativos da poca), a UEE (Unio Estadual dos Estudantes) e o Centro dos Estudantes Secundaristas do Cear (CESC), afora os rgos representativos universitrios da UC (Universidade do Cear, atual UFC Universidade Federal do Cear), cujas lideranas ligavam-se ao PCB (que organizara a chamada Juventude Comunista e contava com vrias Organizaes de Bases, as antigas clulas comunistas, em diversos colgios e faculdades) e Ao Popular (AP, grupo ligado esquerda catlica e sobre o qual falaremos mais depois), apresentando como um dos principais locais de encontros e articulaes o CU (Clube dos Estudantes Universitrios), situado

    41 LEANDRO, Jos. Depoimento. Fortaleza: Edio do Autor, 1988, p. 76.

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    na Avenida da Universidade, onde hoje se encontra o prdio da faculdade de Histria da UFC42.

    O Golpe Civil-Militar de 64 teve efeitos dramticos sobre o Cear. Da mesma forma que no resto do Pas, os meios polticos cearenses conheciam as tramas conspiratrias em andamento, embora no soubessem quando o levante militar eclodiria precisamente. Por outro lado, elementos de esquerdas e nacionalistas acreditavam piamente num esquema militar do presidente Joo Goulart, o qual, como se sabe, revelou-se pfio, tal a facilidade do triunfo do Golpe.

    As primeiras notcias sobre o levante militar chegaram a Fortaleza ainda na noite de 31 de maro, pelo rdio, ento o principal meio de comunicao de massa. Pelos depoimentos colhidos junto a nossos entrevistados, eram informaes confusas, contraditrias, sem detalhes precisos. A nica certeza era que o to propalado golpe de estado estava finalmente acontecendo, o que no significava que o episdio fosse recebido sem surpresas na manh seguinte, 1 de abril, dia da mentira, existiram pessoas achando que tudo era uma brincadeira. Mas no era. As esquerdas locais, ento, tentaram articular uma resistncia, incua e tardiamente.

    Estudantes realizaram passeatas e concentraes na Praa Jos de Alencar, dissolvidas pelo Exrcito43 as sedes das entidades estudantis seriam invadidas pelos golpistas, seus dirigentes destitudos e substitudos por estudantes democratas44, trabalhadores do porto do Mucuripe, da Rede Ferroviria e do Departamento de Telgrafos e Correios iniciaram greves, logo desmobilizadas pelos militares com a priso dos principais lderes e interveno nos sindicatos45, a Rdio Drago do Mar, pertencente ao Deputado Federal e aliado de Jango, Moiss Pimentel, foi fechada por estar conclamando

    42 O CU (Clube dos Estudantes Universitrios) era tido como um centro de fermentao poltica do movimento estudantil nos anos 1960. Era um prdio de dois andares, onde funcionava o restaurante universitrio e o Diretrio Central dos Estudantes (DCE), servindo de espao para realizao de palestras e congressos apresentava ainda uma quadra para prticas esportivas na parte de trs. Outro local de reunio para as passeatas estudantis era a Faculdade de Direito da UFC. 43 Correio do Cear, 2/04/64, p. 7. O Povo, 3/04/1964, p. 1. 44 Correio do Cear, 6/04/1964, p. 6. 44 Correio do Cear, 6/04/1964, p. 4. 44 Correio do Cear, 9/04/1964, p. 6. O Povo, 7/04/1964, p. 2; 9/04/1964, p. 2. 45 Correio do Cear, 2/04/1964, p. 1, 2 e 8; 3/04/1964, p. 3. O Povo, 2/04/1964, p. 1, 2 e 5.

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    os civis a resistirem ao Golpe46, a sede da FALTAC, situada no ento distante Jardim Iracema (rea agrcola, hoje um bairro de Fortaleza) foi saqueada pelo Exrcito47, a sede do PCB, o Escritrio 25 de Maro, foi arrombada e praticamente destruda, sendo apreendida farta documentao subversiva48, homens da Polcia Militar passaram a patrulhar as principais ruas e praas da Capital visando manter a ordem49.

    O governador conservador cearense Virglio Tvora, que contava com vrios auxiliares tidos como esquerdistas (sobretudo na pasta da Educao) e por isso mesmo visto com certa desconfiana por setores das direitas, por pouco no foi derrubado ante a presso de militares linha dura50, apenas escapando pela amizade pessoal que gozava junto a Castelo Branco e ao prestgio de seu tio, o velho marechal Juarez Tvora perante os golpistas. Teve, entretanto, de fazer sacrifcios aos deuses revolucionrios, para mostrar sua sincera f aos ideais da redentora, atravs da demisso dos tcnicos comunistas da Secretaria de Educao51 (ainda que Virgilio, exemplo de poltico tradicional, pautado na lealdade e considerao, tenha protegido seus ex-auxiliares, facultando-lhes meios at para sair do Estado52) e da cassao do mandato de vrios deputados estaduais subversivos53 (a

    46 O Povo, 1/04/1964, p. 1. 47 OCHOA, Maria Glria. As Origens do Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais no Cear (1954-64). Fortaleza: Universidade Federal do Cear/Stylus Comunicaes, 1989. 48 Correio do Cear, 4/04/1964, p. 1. O Povo, 4 e 5/04/1964, p. 1. 49 Correio do Cear, 2/04/64, p. 7. 50 A maior presso para a destituio de Virglio Tvora vinha dos oficiais do 10 Grupo de Obuses (10GO), a mais bem equipada unidade de artilharia do Exrcito no Cear. O comandante da unidade, Major Egmont Bastos Gonalves, integrava uma grupo de militares linhas duras, os quais viam com desconfiana Virgilio Tvora, pelas proximidades deste com Goulart (ambos eram amigos pessoais e Jango enviou muitos recursos para a administrao cearense) e com as esquerdas. O Povo, 1/04/2004, Caderno Especial Sobre os 40 anos do Golpe de 64, p. 28. 51 Correio do Cear, 6/04/1964, p. 3. 52 O Povo, 1/04/2004, Caderno Especial Sobre os 40 anos do Golpe de 64, p. 33. A professora Luiza Teodora, da equipe da Secretaria de Educao de Tvora, conta que este articulou nos bastidores para que embarcasse rumo ao Rio de Janeiro enquanto as coisas se acalmavam. Diz ainda que VT agiu da mesma forma com outra pessoas acusadas de subverso. 53 Numa sesso extra que varou a noite do dia 9 para 10 de abril de 1964, os deputados cearenses cassaram os mandatos de seis colegas por falta de decoro parlamentar: Anbal Bonavides (o j citado secretrio estadual do PCB-CE), Blanchard Giro, Jos Pontes Neto, Raimundo Ivan Barroso, Amadeus Arrais e Fiza Gomes. Correio do Cear, 10/04/1964, p. 3. Na Cmara Municipal de Fortaleza, foram igualmente cassados por falta de decoro no dia 9 de abril (antes, portanto, da Assemblia) os vereadores Luciano Barreira, Tarcsio Leito (ambos comunistas) e Manuel Aguiar. O Povo, 10/04/1964, p. 1. Com o AI-1, teriam cassados os mandatos e os direitos polticos os Deputados Federais Adhail Barreto e Moiss Pimentel.

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    Assemblia Legislativa foi a pioneira nas cassaes no Brasil, antes mesmo do primeiro Ato Institucional da Ditadura).

    Houve apoio ao Golpe por segmentos empresariais, jornalsticos, eclesisticos, da classe mdia e mesmo populares cearenses. Ainda no dia 2 de abril, quando existiam dvidas sobre o xito pleno da conspirao, uma comisso de empresrios (chamados ento de classes produtoras), tendo frente Jos Afonso Sancho compareceu residncia do governador Virgilio Tvora e ao Quartel da 10 RM para discutir a necessidade de reprimir os baderneiros altura e prestar solidariedade ao movimento revolucionrio54. Depois, empresrios enviaram Assemblia (e Cmara Municipal de Fortaleza55) um memorando pedindo a cassao dos parlamentares subversivos:

    O que as Classes Produtoras esperam que essa (sic) Assemblia, compreendendo a verdadeira significao do movimento revolucionrio, empreste seu apoio urgente e vigoroso s Foras Armadas, tomando as medidas legais necessrias ao afastamento do convvio democrtico aqueles brasileiros indignos que no se pejavam de trair a ptria a servio do imperialismo bolchevista. Chegou a hora de extinguir-se o embuste promovendo a cassao dos mandatos dos deputados comunistas a fim de que o saneamento seja integral (...).56

    Nos dias seguintes quartelada, os jornais O Povo e Correio do Cear publicam editoriais e artigos exaltando a ao das Foras Armadas contra a balbrdia do comunismo ateu que ameaava o Pas. Passa-se a idia que a falta de maior resistncia ao movimento golpista evidenciava como a sociedade desejara a interveno dos militares para acabar com a baderna reinante. Em editorial de capa, afirma O Povo:

    (...) Que se queria com a clarinada revolucionria que partiu de Minas Gerais e ecoou Brasil afora? Levantaram-se os militares, com a solidariedade de prestigiosos lderes civis, para acabar com os

    54 Correio do Cear, 2/04/1964, p. 8. O Povo, 2/04/1964, p. 5. 55 O Povo, 10/04/1964, p. 1. 56 Correio do Cear, 8/04/1964, p. 3. O memorando assinado por Franklim Monteiro Gondin (Presidente da FACIC Federao da Agricultura, Indstria e Comrcio do Cear), Jos Afonso Sancho (Unio das Classes Produtoras), Clvis Arrais Maia (Federao do Comrcio), Orlando Silva (Federao das Indstrias), Odorico Patrcio (Centro dos Retalhistas), Giovanni Gomes (Sindicato dos Lojistas) e Luis Crescncio Pereira (Associao dos Proprietrios de Imveis).

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    desatinos de uma caudilho incorrigvel, que ia nos levando, em sucesso de aventuras perigosas, aos brao de uma minoria totalitria que pretendia empolgar o poder. No houve choque armado, no ocorreu derramamento de sangue, graas a Deus. Mas o Pas quase era cenrio de uma luta fratricida e por pouco a Nao no estar a deplorar o sacrifcio de vidas preciosas e a destruio de valorosos bens materiais (...).57

    No dia 6 de abril, realizou-se uma Missa de Ao de Graas na Catedral de Fortaleza em homenagem s Foras Armadas pela vitria do movimento revolucionrio. O ato litrgico foi celebrado pelo prprio Arcebispo Metropolitano de Fortaleza, Dom Jos de Medeiros Delgado, numa evidncia do apoio de setores da Igreja Catlica cearense aos golpistas, como ocorrera, alis, no resto do Pas no sermo, o religioso teria elogiado o trabalho patritico das Foras Armadas em defesa da Constituio, banindo para sempre os comunistas do Brasil58. As manifestaes de apoio ao Golpe atingiram o apogeu numa quinta-feira, dia 16 de Abril de 1964, quando se realizou em Fortaleza a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, que partindo da Praa Corao de Jesus, aps a execuo do Hino Nacional, seguiu para a Igreja da S, onde houve um Te Deum e dali para o Quartel da 10 RM, local em que se promoveu uma homenagem s Foras Armadas pela firme atuao em defesa dos postulados da democracia contra a comunizao do Pas59. O jornal Correio do Cear saudou a Marcha como a maior concentrao popular j registrada em Fortaleza, estimando em pelo menos 70 mil pessoas os participantes60 um nmero exagerado possivelmente, para demonstrar como a Revoluo estava no gosto dos fortalezenses, pois a populao da Cidade pouco ultrapassava os 500 mil habitantes, conforme o censo de 196061. De qualquer forma, pelos depoimentos colhidos junto a entrevistados e pelas diversas fotos publicadas nos jornais (apesar de sabermos como fotografias podem ser manipuladas na captura de ngulos mais favorveis), havia muita gente no evento, denotando o apoio que o Golpe teve entre setores da sociedade cearense.

    57 O Povo, 7/04/1964, p.1. 58 Correio do Cear, 6/04/1964, p. 6. 59 Correio do Cear, 17/04/1964, p. 2. 60 Correio do Cear, 17/04/1964, p. 2. 61 SILVA, Jos Borzachiello da. Quando Os Incomodados No Se Retiram. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992, p. 36.

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    O apoio ao Governo Militar iria continuar nos anos seguintes a cada aniversrio da Revoluo de 64, os peridicos publicavam editoriais, manifestos, notas, etc. de celebrao pelo evento que salvou o Brasil do comunismo, da subverso e da corrupo, da mesma forma que condenavam a luta armada das esquerdas, tida terrorista, como falaremos adiante. No por acaso, vrios cearenses, destacadamente empresrios e polticos, contribuiriam local e nacionalmente com os rgos de represso da Ditadura, fornecendo carros, dinheiro, gasolina, alimentao, etc. aos agentes que combatiam, torturavam, matavam os terroristas. Os nomes de tais pessoas, no revelaremos, pois no temos como comprovar materialmente tais doaes (e elas, obviamente, no assinaram nenhum recido atestando suas contribuies). Possumos o depoimento apenas dos ex-presos polticos, de jornalistas, de estudiosos da Ditadura e, sobretudo, de um agente de determinado rgo de segurana e de um importante funcionrio de grande empresa cearense daquele perodo, cujos nomes, obviamente, manteremos tambm annimos.

    Enquanto os setores conservadores exaltavam a revoluo, os nacionalistas, as esquerdas e os aliados do deposto Joo Goulart encontravam-se em apuros. O Governo Revolucionrio Militar Instaurou a denominada Comisso Geral de Investigao para atuar nas reparties pblicas e apurar subverses. Vrios funcionrios pblicos perderiam seus empregos. Outras pessoas, mais visadas pela represso, puseram-se em fuga. Para os Comunistas, era a constatao de como se iludiram quanto ao to propalado esquema de defesa da legalidade falado por Jango e pelo lder mximo pecebista Luis Carlos Prestes.

    No se sabe exatamente quantos cearenses foram detidos com o Golpe. O IPM instaurado pelo Exrcito e sob