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CENTRO DE COMUNICAÇÃO E ARTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO DISPOSITIVO E PROCESSO DE CRIAÇÃO: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO AUDIOVISUAL GEORGIA DA CRUZ PEREIRA RECIFE 2014

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CENTRO DE COMUNICAÇÃO E ARTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO

DISPOSITIVO E PROCESSO DE CRIAÇÃO: ESTRATÉGIAS

NARRATIVAS NO AUDIOVISUAL

GEORGIA DA CRUZ PEREIRA

RECIFE

2014

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GEORGIA DA CRUZ PEREIRA

DISPOSITIVO E PROCESSO DE CRIAÇÃO: ESTRATÉGIAS

NARRATIVAS NO AUDIOVISUAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco como

quesito para a o obtenção do título de Doutora.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho

RECIFE

2014

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439

P436d Pereira, Georgia da Cruz Dispositivo e processo de criação: estratégias narrativas no audiovisual /

Georgia da Cruz Pereira. – Recife: O Autor, 2014. 154 p.: il. Orientador: Paulo Carneiro da Cunha Filho. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de

Artes e Comunicação. Comunicação, 2014. Inclui referências.

1. Comunicação. 2. Documentário (Cinema). 3. Crítica cinematográfica. 4. Arte narrativa. 5. Criatividade. I. Cunha Filho, Paulo Carneiro da (Orientador). II.Titulo.

302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2015-1)

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GEORGIA DA CRUZ PEREIRA

DISPOSITIVO E PROCESSO DE CRIAÇÃO: ESTRATÉGIAS

NARRATIVAS NO AUDIOVISUAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Comunicação.

Aprovada em: 12/12/2014

Banca Examinadora

_________________________________________

Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho (Orientador) Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo Octávio D’Azevedo Carreiro (Membro) Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________

Profa. Dra. Cristina Teixeira Vieira de Melo (Membro) Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________

Profª. Drª Maria do Carmo de Siqueira Nino (Membro) Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________

Prof. Dr. Silas José de Paula (Membro) Universidade Federal do Ceará

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À mamãe e Germana, sempre e sempre!

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“Quase sempre, quando falamos de

filmes, não é deles que falamos, e sim

dos andaimes interpretativos que

erguemos em volta deles”,

Jean-Claude Bernardet

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AGRADECIMENTOS

A presente tese é algo ainda em curso, algo em continuum, cujo processo de elaboração contou e conta com diversos apoios e auxílios.

Em primeiro lugar, toda a minha gratidão vai para Deus por sua providência em minha vida e por me conceder força, fé e perseverança para chegar até aqui.

Agradeço à senhora minha mãe, dona Maria das Graças, que desde sempre esteve ao meu lado, me estimulou a buscar novos desafios e a desbravar novos mundos. Obrigada por sempre ser meu exemplo!

À Germana, minha irmã querida, companheira de aventuras acadêmicas, experiências de pesquisa e agruras doutorais. Nós duas, cada uma com sua cruz, digo, sua tese, atravessamos bravamente esse deserto do real! Adjuntemo-nos, pois!

A Marcos Santos, amigo-colega-companheiro-gangue, desbravador de processos criativos, de passeios pelas cidades, incursões pelas noites da Várzea e Mustangs da vida.

À Márcia Jácome pelas andanças por Recife, pelas experiências estéticas compartilhadas, pelas muitas gargalhadas juntas. Obrigada!

À Taciana Gouveia pela gentileza e amizades, pelas conversas divertidas, risadas sinceras e conselhos pertinentes. Por sua falsa rabugice fofa!

À Dona Marta, Seu Antônio e Marcos Alessandro, que durante o período em que morei em Recife me adotaram como família.

À Ritinha, estimada colega, muito importante na conclusão desta pesquisa.

Ao Prof. Eduardo Duarte e os colegas do grupo de pesquisa Narrativas Contemporâneas Raquel do Monte, Mariana Nepomuceno, Lylian Rodrigues, Mariana Andrade, Marcelo Costa, Márcia Jácome e Daniel Abaquar pela acolhida na UFPE e por todos os nossos momentos de reunião.

Aos colegas de doutorado Marcos Buccini, Amanda Mansur, Luís Celestino, Juliana Leitão, Natália Flores, Jean Cerqueira, Barbara Gollner

Aos secretários do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE: Luci, Claudinha e Zé Carlos por toda atenção e ajuda durante esses anos todos.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE pelas contribuições e debates durante as aulas.

Aos queridos amigos Fabianny Melo, Simone Faustino, Deise Pequeno, Raquel Carvalho, Guilherme Cavalcante, Lucas Leitão, Callen Leão e André Pereira por compreenderem minha ausência.

Ao professor Paulo Cunha, pelas orientações e conversas.

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Aos professores Maria do Carmo Nino e Rodrigo Carreiro por suas contribuições no momento de qualificação desta pesquisa. Pelas sugestões pertinentes e a gentileza da leitura.

Aos professores Silas de Paula, Cristina Teixeira, Maria do Carmo Nino e Rodrigo Carreiro por atenderem ao convite de participar da banca de defesa deste trabalho.

Aos professores e colegas do Instituto Universidade Virtual e do curso de Sistemas e Mídias Digitais da Universidade Federal do Ceará, com quem tenho a felicidade de trabalhar e conviver.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela concessão de bolsa para realização desta pesquisa.

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Resumo

A presente pesquisa discute o processo de criação das obras artísticas, seu

modos de estudos e análises, bem como as relações entre os dispositivos

fílmicos utilizados como estratégias narrativas e a questão do processo de

criação no cinema documentário contemporâneo. Ao observar a particularidade

dos filmes-dispositivo, que trazem em si mesmos registros de seus processos,

foi possível formular a hipótese de que para o conjunto de filmes pertencentes

a essa produção é possível sim abordar a obra também como sendo um

documento de seu processo de criação. A partir dos conceitos de dispositivo

como estratégia narrativa de Cezar Migliorin (2008) e da noção de processo de

criação de Cecília Almeida Salles (2008), dentre outros autores, é proposta

uma metodologia de análise específica para trabalhar com filmes cujo processo

de criação está explicitado na própria obra e compõe assim um paradoxo na

imagem. A essa proposição chamou-se Análise Fílmica Processual. Para a

composição do corpus foram escolhidos filmes da produção contemporânea

em que os autores se utilizam dessa instância processual para a formulação de

suas obras e nos quais o processo se faz perceptível, integrando o sentido da

obra. Os filmes analisados são Câmara Escura (2012), de Marcelo Pedroso;

Moscou(2010), de Eduardo Coutinho; Um Passaporte Húngado (2002), de

Sandra Kogut; e 33 (2003), de Kiko Goifman. Esses filmes foram analisados à

luz da proposta metodológica de Análise Fílmica Processual. Foi possível

compreender como os dispositivos fílmicos como estratégia narrativa se

articulam com os processos de criação de modo a possibilitar uma

compreensão do percursos de realização das obras.

Palavras-Chave: Processo de Criação. Documentário Brasileiro

Contemporâneo. Dispositivo Narrativo. Crítica de Processo. Análise Fílmica

Processual.

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Abstract

This research discusses the process of creating the artworks, their modes of

study and analysis, as well as the relationships between filmic apparatus used

as narrative strategies and the question of the creative process in contemporary

documentary film. By observing the particularity of the films-apparatus, bringing

on themselves records of their cases, it was possible to hypothesize that for all

group of the films belonging to this production is indeed possible to approach

the film as well as a document of their process of creation. Based on the

concepts of intern film apparatus as a narrative strategy from Cezar Migliorin

(2008) and the notion of creative process from Cecilia Almeida Salles (2008),

among other authors, a methodology specific analysis is proposed to work with

films whose creation process is explicit in the work itself and thus makes up a

paradox in the image. This proposition was called film analysis procedural. To

make up the corpus of contemporary film production in which the authors have

used this procedure for instance the formulation of his works and in which the

process becomes noticeable, integrating the meaning of the work were chosen.

The films analyzed are Câmara Escura (2012), by Marcelo Pedroso; Moscou

(2010), by Eduardo Coutinho; Um Passaporte Húngaro (2002), by Sandra

Kogut; and 33 (2003), by Kiko Goifman. These films were analyzed in light of

the proposed methodology of film analysis Procedural. It was possible to

understand how the filmic apparatus such as narrative strategy articulate with

the creative processes to enable an understanding of the pathways of execution

of works.

Keywords: Process of Creation. Contemporary Brazilian documentary. Narrative

apparatus. Critical Process. Filmic analysis procedural.

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Resumen

La presente investigación discute el proceso de creación de las obras de arte,

sus modos de estudio y análisis, así como las relaciones entre los dispositivos

fílmicos utilizados como estrategia narrativa y la cuestión del proceso de

creación en el cine documental brasileño contemporáneo. Al observar la

particularidad de las películas-dispositivo, que traen en si registros de sus

procesos, fue posible formular la hipótesis de que para el conjunto de películas

pertenecientes a esa producción es posible abordar la obra también como

siendo un documento de su proceso de creación. Partiendo de los conceptos

de dispositivo como estrategia narrativa de Cezar Migliorin (2008) y de la

noción de proceso de creación de Cecília Almeida Salles (2008), entre otros

autores, se propone una metodología de análisis específica para trabajar con

películas cuyo proceso de creación está explícito en la obra misma y por lo

tanto compone una paradoja en la imagen. Esa proposición fue nombrada

Análisis Fílmica Procesual. Para la composición del corpus fueron elegidas

películas de la producción contemporánea en la que los autores han utilizado

este procedimiento, con la formulación de sus obras y en los cuales el proceso

se hace perceptible, integrando el sentido de la obra. Las películas estudiadas

son Câmara Escura (2012), de Marcelo Pedroso; Moscou (2010), de Eduardo

Coutinho; Um Passaporte Húngaro (2002), de Sandra Kogut; y 33 (2003), de

Kiko Goifman. Estas películas fueron analizadas a la luz de la metodología

propuesta del Análisis Fílmica Procesual. Fue posible comprender como los

dispositivos fílmicos como estrategia narrativa se articulan con los procesos de

creación de modo a posibilitar una comprensión de los caminos de realización

de las obras.

Palabras-clave: Documental Brasileño Contemporáneo. Dispositivo Narrativo.

Proceso de Creación. Crítica de Proceso de Creación. Análisis Fílmico

Procesual.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

1 SOBRE PROCESSO DE CRIAÇÃO E SEUS ESTUDOS 18

1.1 Introdução ao processo de criação 18

1.2 Criatividade 20

1.3 Estudos de Criação 25

1.4 Crítica Genética 32

1.5 Análise Fílmica Processual: uma proposta metodológica 43

2. DISPOSITIVOS E DOCUMENTÁRIOS 53

2.1 Exercício de taxonomia 53

2.2 O dispositivo e o cinema 60

2.3 Dispositivos e experiência estética 70

2.4 Dispositiv o e documentário brasileiro contemporâneo 74

3 AS IMAGENS E O DEVIR 77

3.1 O olhar e as imagens 77

3.2 As imagens no cinema 79

3.3 Imagem-presente 92

3.4 Imagem-origem 108

3.5 Imagem-matriz 119

3.6 Imagem-cênica 128

CONSIDERAÇÕES FINAIS 140

REFERÊNCIAS 146

Filmografia – Ficha Técnica 154

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INTRODUÇÃO

Estudar processo de criação é lidar, acima de tudo, com o inacabado. É

trabalhar com algo que está sempre fluindo e passível de mudanças. Muitas

vezes essas possibilidades de mudanças são ignoradas por quem não se

dedica ao processo de criação devido à temporalidade que muitas das

reinvenções de obras levam para acontecer.

Quando se fala da possibilidade de continuidade da obra, do contínuo,

uma interpretação comum é o imediatismo com que isso acontece. No entanto,

como se trata de um objeto artístico e criativo, essas mudanças podem levar

anos até que aconteçam. Podem, ainda, nunca acontecer. Por isso, elas estão

colocadas na obra como uma potencialidade.

Os estudos de processo de criação tentam entender esse movimento

contínuo, tentam entender os percursos formativos da obra, tentam entender os

elementos que compõem processo e obra, tentam entender as escolhas dos

artistas. Como todo pensamento analítico, a crítica de processo de criação

tende a estabelecer certa ordem e linha de acompanhamento dos múltiplos

raciocínios que acompanham a elaboração da obra.

Os estudos de processo de criação trazem consigo um caráter

metalinguístico. Quando se fala em obras audiovisuais que se realizam a partir

da explicitação do processo de criação, a metalinguagem pode estar presente

na discussão dos elementos ou procedimentos necessários para que se faça

um filme.

Pode-se compreender a metalinguagem como uma opção por fazer uma

obra que se auto-referencia. Essa ação pode vir como tentativa de

compreender o cerne da realização ou mesmo discutir fragilidades,

problematizar etapas produtivas, discutir a ética, a estética, enfim, há diversos

modos de se trabalhar a metalinguagem na obra.

Acerca da noção do que seja metalinguagem, Chalhub (2005) pontua

que a metalinguagem tem a ver com a discussão da própria linguagem com a

qual se trabalha. É utilizar-se desse elemento de modo a fazer reflexões

internas ao seu funcionamento ou se apropriar de características que possam

ter uma relação problematizadora, conceituadora.

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A função metalinguística, em síntese, centraliza-se no código: é código "falando" sobre código. Façamos um trabalho substitutivo, uma operação tradutora: é linguagem "falando" de linguagem, é música "dizendo" sobre música, é literatura sobre literatura, é palavra da palavra, é teatro "fazendo" teatro.(p.32)

Aqui cabe o complemento à citação acima, posto que estudar

metalinguagem é também estudar o cinema expondo seus modos de fazer

cinema. Essa perspectiva que discute as nuances de sua própria realização,

que olha para si de maneira crítica e tem na sua própria natureza a obra. A

metalinguagem traz consigo uma espécie de espelhamento, em que a obra é

constituída tautologicamente.

Tautologia essa compreendida dentro da perspectiva da arte conceitual

tal como discutida por Kosuth (1975). O artista e autor trazia para dentro do

campo da arte a discussão entre a obra e suas conceituações, idealizações.

Um de seus trabalhos mais conhecidos apresenta uma cadeira, a imagem de

uma cadeira e a palavra cadeira escrita. A partir dessa repetição de formas

simbólicas que remetem à cadeira, há o cerne do reforço da ideia por trás da

obra, de sua significação para além das representações visuais.

O que estava em questão era o processo de idealização, de concepção

das obras, a noção a priori que marca bastante as realizações da arte dita

conceitual. A ideia de uma obra pode ser considerada já como a própria obra. É

possível encontrar relação entre esse pensamento tautológico da arte

conceitual e os pensamentos das obras audiovisuais formuladas a partir de

dispositivos como estratégia narrativa, cujas imagens são ao mesmo tempo

parte da obra e documentos de seu processo.

Numa prática convencional dos estudos de processo de criação, a obra

serve de espelho para a coleta de informações acerca de seu momento criador.

Essas informações serão chamadas de documentos de processo de criação e,

tal como uma flecha, apontam para a obra, mas não a tocam propriamente.

Como obra e documentos de processo são concebidos como partes de um

todo, mas instâncias separadas, a análise se volta aos momentos anteriores ao

de lançamento dessa obra à apreciação pública.

Contudo, ao buscar-se uma aplicação dessa metodologia de trabalho e

desse raciocínio epistemológico às obras audiovisuais, em particular a

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documentários cuja estratégia narrativa consiste na articulação de um

dispositivo que explicite seu processo de criação, percebe-se que essa

separação entre obra e processo nem sempre é possível. Nem sempre será

necessária também.

Na produção documentária brasileira contemporânea, observou-se uma

recorrência do uso de dispositivos fílmicos como estratégia narrativa. Esses

dispositivos fílmicos são proposições ou formulações que antecedem a

realização do filme e tem por objetivo fazer com que haja filme (COMOLLI,

2008).

Sua aplicação na prática documentária vem como um potencializador de

ações e movimentos não-naturais. O dispositivo articula uma mise-en-scène,

ou melhor, atua como um disparador, um mote para que a cena aconteça. Essa

estratégia suscita uma espécie de jogo de força que transita entre o controle da

proposição e o descontrole das ações decorrentes. (MIGLIORIN, 2008)

Muitos dos filmes que se utilizam desses dispositivos como estratégia

narrativa têm como cerne de suas imagens e como ponto central de sua

realização a explicitação do processo de criação da obra. O processo de

criação da imagem é a própria imagem. O filme passa a só ser possível, em

muitos casos, se o processo se fizer presente na obra.

Os estudos de processo de criação, como será mais bem discutido no

primeiro capítulo, se baseiam na coleta e sistematização de materiais relativos

à criação das obras e que são denominados de documentos de processo.

Esses documentos figuram como elementos de fundamental importância para a

condução desses estudos e são elementos externos à obra.

Contudo, ao observar a particularidade dos filmes-dispositivo, que

trazem em si mesmos registros de seus processos, foi possível formular a

hipótese de que para o conjunto de filmes pertencentes a essa produção é

possível sim abordar a obra também como sendo um documento de seu

processo de criação.

Com essas particularidades nos modos de produção, em que o processo

criativo não somente guia o caminho da obra, mas compõe a própria obra, é

preciso lançar um olhar diferenciado também para as formas de analisar essas

obras e pensar formas de se estudar o processo criativo.

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É dessa linha de raciocínio que surge o objeto de discussão dessa tese:

um método de análise fílmica e de estudo de processo de criação

particularmente orientado para obras que trazem a explicitação de seus

momentos criadores como aspecto inerente a suas imagens.

Assim, ao longo da tese é apresentado um percurso reflexivo e

epistemológico para a compreensão das questões abordadas acerca do

processo de criação das obras artísticas e seus estudos. Observando as

idiossincrasias dos filmes documentários dispositivos, aborda-se também a

necessidade de estudá-los de maneira diferenciada. Dessa maneira,

estabelece-se uma proposta de análise desses filmes que observe seu caráter

duplo enquanto obra e processo. A essa análise conveio chamar de Análise

Fílmica Processual.

A elaboração dessa tese se deu inicialmente com pesquisas acerca dos

estudos de processo de criação. Desse modo foi possível compreender de uma

maneira geral os modos como as obras e seus momentos criadores são

abordados pela crítica. Assim, ainda no primeiro capítulo são abordadas

questões relativas ao processo de criação na obra de arte, no cinema, as

relações entre imagem e processo. Para este capítulo e para o

desenvolvimento da tese, é preciso que se definam as noções de processo que

estão compreendidas na pesquisa, que servirão de fundamentação teórica,

além de ancoragem epistemológica para o desenvolvimento da pesquisa.

Partiremos dos estudos acerca da criatividade e da lógica da criação,

abordaremos os estudos de crítica genética àqueles que se encarregam de

uma crítica de processo, que ampliam essa percepção, como nas obras de

Cecília Almeida Salles (2004), (2008a), (2008b), (2012), Jean-Claude

Bernardet (2003), seguiremos pelos estudos que abordam os processos de

criação como Ostrower (2009), Baxandall (2005), dentre outros.

No segundo capítulo será trabalhado o conceito de dispositivo de uma

forma geral e também com o conceito aplicado ao cinema e ao corpus,

explorando ainda a noção de filmes-dispositivo. Circundar essa noção de

dispositivo e sua aplicação ao cinema documentário brasileiro contemporâneo

será de fundamental importância para o desenvolvimento de nossa tese em

torno da relação entre dispositivos, processos e narrativas.

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Estudar filmes-dispositivo, de uma maneira ampla, tem a ver com o

estudo de algo em processo, em fluxo, que está se construindo todas as vezes

que é visto pelo espectador. Mais que isso, ao se analisar a formulação desses

dispositivos, tenta-se entender os percursos trilhados em suas produções, os

conceitos adotados e as regras estabelecidas por cada um desses dispositivos,

que são únicos, formulados segundo a especificidade de cada um dos filmes

com eles elaborados.

Assim, são de relevante importância os estudos acerca do dispositivo

desenvolvidos por Migliorin (2005) e (2008), Xavier (2005) e Parente (2005).

Para uma compreensão da dimensão histórica e conceitual do dispositivo são

de relevante importância os estudos de Baudry (1983), Deleuze (1996) e

Agambem (2005). O dispositivo e sua associação com as produções não-

ficcionais contemporâneas terão como aporte os trabalhos de Comolli (2008);

Lins e Mesquita (2008); Veiga (2008).

No terceiro capítulo são expostas de maneira mais detalhada as

características da proposta metodológica da Análise Fílmica Processual.

Neste capítulo são analisados os filmes Câmara Escura (2012), de Marcelo

Pedroso; Moscou(2010), de Eduardo Coutinho; Um Passaporte Húngado

(2002), de Sandra Kogut; e 33 (2003), de Kiko Goifman.

Essa análise busca compreender na prática como se dá a relação entre

processo de criação e filmes dispositivos, seus modos de organização e a

resultante da percepção do processo de criação nas obras. Há um esforço

analítico para comprovar a hipótese de que os filmes documentários

dispositivos cujas imagens processuais são aparentes servem como

documento de seus próprios processos de criação, congregando em si mesmo

a obra e o devir.

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1 SOBRE PROCESSO DE CRIAÇÃO E SEUS ESTUDOS

1.1 Introdução ao processo de criação

No website desenvolvido por Cecília Almeida Salles para o projeto

intitulado Redes da Criação1, processo de criação é descrito como:

Percurso sensível e intelectual de construção de objetos artísticos, científicos e midiáticos que pode ser descrito, numa perspectiva semiótica, como movimento falível com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de idéias novas. Um processo contínuo sem um ponto inicial, nem final. Um percurso de construção inserido no espaço e tempo da criação, que inevitavelmente afetam o artista.

Partindo-se dessa noção de processo de criação, é possível também

traçar um percurso intelectual e sensível acerca dos estudos de processo de

modo a situar o leitor sobre os caminhos teórico-metodológicos possíveis

dentro dessa área de estudos.

Assim, busca-se com o presente capítulo tratar das concepções dos

estudos acerca do processo de criação da obra. Para tanto, trabalhou-se com

uma matriz histórico-conceitual acerca do que vem a ser a criação artística e o

modo de analisar a criação a partir da obra de arte.

Ao se estudar a criação pelo seu viés misto de trabalho criativo e

realização projetual, busca-se compreender as maneiras a que o analista tem

acesso à obra e como pode ser possível traçar um mecanismo de análise

desse processo que mais adiante permita se trabalhar com obras audiovisuais,

mais especificamente documentários.

Como no campo dos estudos de processo de criação, os estudos de

crítica genética tem um pioneirismo formal em tal abordagem, nesta

investigação optou-se por uma apresentação acerca do seu desenvolvimento

teórico-histórico nessa área a fim de se ver como, motivados pelas

multiplicidades de objetos, os pesquisadores desse campo de estudo foram

1O texto citado é parte integrante do website Redes da Criação e está disposto na área de

verbetes do site. Disponível em <http://www.redesdecriacao.org.br/?verbete=36>, acessado em 20 de junho de 2014.

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expandindo suas perspectivas e permitindo o acompanhamento cada vez mais

vasto de processos criativos.

Prova disso é a necessidade formal de se compreender as dinâmicas de

diversas modalidades de criação, como é o caso das obras coletivas, além das

mudanças de nome do ramo de estudos, que passa a se chamar de Crítica de

Processo de Criação, uma vez que, como será exposto, o termo Crítica

Genética guardava em sua raíz a noção do trabalho com fontes e manuscritos

literários.

É importante destacar o trabalho de Cecília Almeida Salles e seu grupo

de estudos de processo de criação na Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (PUC-SP). Em seu trabalho, a pesquisadora apresenta a visão da

criação não como algo linear e simplificado, mas visto como uma rede de

criação.

Essa noção será bastante pertinente para a concepção de um

pressuposto metodológico que compreenda a natureza multimodal da criação

audiovisual a que se propõe a presente tese. Enxerga-se na criação

audiovisual uma dupla natureza: procedural e criativa.

A síntese dessas naturezas é apresentada nos regimes escópicos sobre

os quais se trabalhará no capítulo analítico, a fim de tentar apresentar como

possível uma análise de processo de criação que tome as imagens como

documentos de processo.

Assim, como modo de conclusão do capítulo, aborda-se as diferenças

entre produção audiovisual e processo de criação audiovisual. Busca-se tatar

das questões relativas ao filme como documento de si mesmo.

A imagem fílmica e o seu devir. Para tanto, algumas questões desde já

são colocadas: quais caminhos podem ser utilizados quando se trata de

analisar o processo de criação de uma obra audiovisual Como funciona a

metodologia da crítica de processo de criação nos casos em que se trabalha

com a obra e seus elementos residuais, e nos casos em que se trabalha

apenas com a obra Como analisar um regime escópico em sua

simultaneidade de imagem e devir De que maneira os filmes-dispositivo

trabalham essa relação

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1.2 Criatividade

Dentro do campo de estudos dos processos de criação, existem visões

diferenciadas do que seja o processo criativo e sua percepção a partir do

marco teórico que o norteia. Temos vivido uma época em que os processos de

criação têm ganhado muita notabilidade e têm despertado um interesse

crescente em pesquisadores e curiosos de um modo geral.

Pode-se, de certa forma, falar até num certo fetiche em torno do

processo de criação e materiais oriundos dos momentos anteriores à

finalização da obra, ou seja, aqueles momentos que precedem a entrega da

obra ao público. Isso porque um verdadeiro mercado se constitui em torno de

produtos que permitem ao público ter contato com esses materiais da criação:

são dvds, catálogos, livros etc.

Dentro desse contexto, o processo de criação vira objeto de desejo dos

mais diversos públicos por trazer à tona uma dimensão da criação artística até

então pouco acessível ou mascarada. Em parte o mistério em torno dos modos

de concepção e criação da obra se dava por uma valorização da figura do

artista enquanto ser diferenciado e munido de espírito inspirado, magicamente

hábil e subitamente efetivo no seu trabalho.

A criação era tida como algo restrito a poucos eleitos que conseguiam

acessar esse universo inspiracional, seres humanos diferenciados por essa

habilidade metafísica para concretizar as ideias em obras.

Os estudos acerca da criatividade e da concepção artística não são

novidade. Uma vez que em torno da realização de uma obra sempre orbitou a

curiosidade em entender os seus modos de feitura, bem como sistematizar

seus processos, quebrando com a aura do artista divinamente inspirado. Um

dos autores que vão tratar dos elementos que compõem a relização de uma

obra é Maurice De Wulf (1914), que discute a epistemologia do processo de

criação.

Para o autor, o processo de criação de uma obra de arte traz consigo as

noções de projeto e preparação. Ao contrário do que o senso comum faz crer,

na concepção da obra de arte, o ato de inspiração é só um dos momentos do

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processo de criação da obra, não sendo condição sine quae non para a sua

realização, é, antes, uma das etapas de sua concepção.

Com os estudos sobre as obras de arte e a compreensão da atividade

artística como um ofício passível de sistematização, a crítica passou a apontar

que há, sim, um momento de inspiração do artista, mas que ele não atua

sozinho. O processo de criação de uma obra envolve tanto a fase de

concepção, quanto a fase de materialização.

A obra existe na cabeça do artista, como ideia, como ideal diante da existência da materialização sensível a que seu talento lhe direciona. Existem assim dois momentos na produção de uma obra de arte: a formação ou a concepção da ideia, e sua exteriorização ou sua execução. Sem a concepção a obra seria incoerente; sem a execução, ela não sairia do mundo das ideias, ela permaneceria estranha ao mundo real. (DE WULF, 1914)

2

Essas concepções acerca dos modos como a criação atua na dinâmica

de relação com a criatividade e sua organização de atuação é reiterada por

Paul Valéry(1990) quando aborda o processo criativo poético. Valéry (1990)

aponta que na criação artística existe uma parcela daquilo que ele chama de

deformações espontâneas, que se referem ao caráter invencionístico, ao

potencial criador das ideias do artista.

Esse potencial não atende a uma ordem de acontecimento ou se

comporta segundo regras de conduta, surge naturalmente. Ao aspecto

ordenador, o autor denomina de ato consciente, uma vez que é a partir desse

ato que o artista consegue apontar o que deseja fazer e como pretende

realizar.

Em resumo, na obra de arte estão sempre presentes duas constituintes: primeiro aquelas das quais não concebemos a geração, que não podem se expressar em atos, ainda que possam ser modificados posteriormente por meio de atos; segundo, aquelas que estão articuladas, que puderam ser pensadas. Há em toda obra certa

2 Tradução livre da seguinte citação: “L'oeuvre existe dans la tête de l'artiste, comme idée,

comme idéal, avant d'exister dans les matériaux sensibles où son talent l'incarne. Il y a donc deux moment dans la production d'une oeuvre d'art: la formation ou la conception de l'idêal, et son extériorisation ou son exécution. Sans la conception l'oeuvre serait incohérente; sans l'exécution, elle ne sortirait pas du royaume des idées, elle demeurerait étrangère ao mondo du réel.”

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proporção dessas constituintes, proporção que desempenha um papel considerável na arte. (VALÉRY, 1990, p.203)

3

René Passeron (2004), partindo dos estudos sobre a poética e a estética

de Valéry (1990), apresenta uma forma de compreender a criação nomeada de

poiética. Com uma matriz teórica nas pesquisas de filosofia da arte, ela se

coloca como um modo de pensar sobre a criação. Seu raciocínio propõe uma

problematização do conceito de obra, da noção de criador e da pertinência de

abordagem dos estudos da poiética se desenvolverem a partir da antropologia.

Segundo Passeron (2004), o raciocínio da poiética difere dos modelos

de abordagem que a história da arte ou mesmo a semiótica (partindo dos

estudos de Kristeva em relação à semântica) vão desenvolver. Essas áreas,

segundo o autor, apresentam uma análise que estaria mais na dimensão da

abordagem estética e, para ele, “no fluxo da obra, o objeto da poiética está

acima da obra, o objeto da estética, abaixo” (p.10).

Para o autor, a problematização do conceito de criação e de obra é

fundamental para se pensar nos modos de compreender o que ele chama de

condutas criativas. Isso porque Passeron (2004) enxerga a criação como um

fenômeno e a obra como um acontecimento. Para ele, a poiética “é,

simultaneamente, ciência e filosofia da criação.” (p.10).

O autor acha necessário que se estabeleça uma diferença entre

produção e criação, isso porque a criação vai pressupor um trabalho não

mecanizado.

No quadro geral da produção, afirmamos que a criação se caracteriza por três diferenças específicas: 1. Cria-se um objeto único (mesmo que seja feito como protótipo para ser multiplicado); 2. Esse objeto toma a posição de um “pseudo-sujeito” (Dufraenne). Tem-se com ele relações de pessoa para pessoa. Ficaríamos de luto com seu desaparecimento. 3. Esse objeto criado (e, a fortiori, a conduta que lhe deu existência) engaja seu autor. Existem inúmeros exemplos deste compromisso, tanto na reprovação quanto no sucesso. (PASSERON, 2004, p.12)

3 Tradução livre da seguinte citação: “En resumen, en la obra de arte están simpre presentes

dos constituyentes: primero aquellos de los cuales no concebimos la generación, que no pueden expresarse en actos, aunque puedan ser modificados a continuación por actos; segundos, aquellos que están articulados, han podido ser pensados. Hay en toda obra cierta proporción de esos constituyentes, proporción que desempeña un papel considerable en el arte.”

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Nessas etapas apresentadas por Passeron (2004), tem-se a dimensão

da criatividade como ponto diferencial do tipo de obra que se apresenta no

processo criativo. As condutas poiéticas, modo como ele chama as ações de

criação, vão ter ainda uma correlação com o momento histórico em que a obra

é feita, o homem e sua produção em conssonância com seu tempo. “Conforme

os séculos, conforme as artes, conforme as culturas, os temas poiéticos

variam, assim como sentido ou o valor atribuído à própria criação.”

(PASSERON, 2004, p.14). Essas ideias vão se assemelhar ao tipo de

metodologia proposta por Michael Baxandall (2006) que discutiremos mais

adiante.

Em seus trabalhos sobre criatividade e processo de criação, Fayga

Ostrower (1987) corrobora com as ideias de De Wulf. Fayga discute que a

criatividade é uma pontencialidade do ser humano e enxerga no projeto

artístico uma necessidade de realização desse potencial.

Contudo, ela aponta para uma noção menos distanciada da arte em

relação aos demais trabalhos humanos, indicando ainda para uma ampliação

da noção de criatividade como sendo algo que não se deve restringir ao

trabalho artístico.

As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos outros campos de atividade humana, e unicamente o trabalho artístico é qualificado de criativo. Não nos parece correta essa visão de criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam. (OSTROWER, 1987, p.5)

Para a autora, a criação está relacionada com dois níveis coexistentes

para a concepção da obra: o nível individual e o nível cultural. O ato criador

está envolvido naquilo que ela chamara “ser sensível-cultural-consciente”.

Nessa noção, a componente sensível diz respeito às faculdades criativas, às

ideias e idealizações. Aqui entra a dimensão sensível do artista, sua

sensorialidade.

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Articulado a isso temos o eixo cultural, que vê no artista um ser

culturalmente formado e que age dentro da cultura. Por cultura, Ostrower

(1987) pontua a seguinte definição: “são as formas materiais e espirituais com

que os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e

cuja experiência coletiva pode ser transmitida através de vias simbólicas para a

geração seguinte” (p.13).

Quanto à porção consciente de que trata a autora, ela reside na

intencionalidade do ato criador. Dada a capacidade intelectual e criativa dos

seres humanos, o ato criador vai significar um ato intencional e calculado

dentro das suas formas e possibilidades. Isso inclui ainda um nível de

consciência individual enquanto ser social.

A criação do artista está permeada de valores individuais e seu contexto

cultural, suas percepções acerca do seu tempo, e das formas de realização das

obras. A cultura em que o artista está imerso vai interferir e colaborar para a

sua formação como indivíduo, a sua experiência em sociedade, a construção

de seus afetos e elaboração de seu “padrão referencial básico”. É a partir da

elaboração desse referencial que o indivíduo se coloca no mundo, vivencia e

interfere na cultura e sua obra carrega esse valor político, mesmo que

inconsciente, de se relacionar com as formas culturais em torno de si.

Esse referencial comporta concordâncias e discordâncias com o modelo

cultural em que se está imerso, fazendo com que tudo que o artista produz

tenha uma correlação com sua visão de mundo, estímulos seguidos na obra,

técnicas empregadas, materiais utilizados, elaboração dos seus conceitos etc.

O indivíduo talvez discorde de certas aspirações formuladas pelo contexto cultural; mesmo assim, é desse contexto que ele partirá para a crítica. Podem as aspirações serem frontalmente contestadas, sobretudo quanto a metas de vida e caminhos de realização humana – e em nossa sociedade não faltam exemplos – mas é em função do contexto e com possibilidades que surgem no contexto, que a contestação se dá. E se dá a partir de formas latentes no contexto. O homem desdobra o seu ser social em formas culturais. O estilo, por exemplo. O estilo não se refere só a uma determinada terminologia. Abrange a maneira de pensar, de imaginar, de sonhar, de sentir, de se comover, abrange a maneira de agir e reagir, a própria maneira de o homem vivenciar o consciente e as incursões ao inconsciente. O estilo é forma de cultura. Seria de todo impossível preordenar as formas estilísticas, inventá-las, tão impossível quanto seria inventar formas de cultura ou modos de viver. (OSTROWER, 1987, p. 101-102)

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1.3 Estudos de Criação

Michael Baxandall (2006) trabalha numa interpretação dos percursos

gerativos da obra após sua conclusão. Em sua concepção, as obras seriam

soluções a questões colocadas no mundo, se relacionam com o contexto

histórico e cultural em que estão inseridos o artista e o problema. Com essa

abordagem, Baxandall (2006) estabelece uma perspectiva metodológica

possível para a análise das obras de arte e a abordagem dos elementos

relativos à criação dessa obra.

No método de Baxandall, é preciso levar em consideração a lógica

histórica da obra para que a crítica não caia nos problemas de representação

deslocada no momento da análise. Assim, a história serve aqui duplamente:

como um marco no trabalho do artista e um norte de fundamentação da

construção do pensamento da crítica. A execução das análises à luz dessa

contextualização sócio-histórica será chamada pelo autor de “crítica

inferencial”. Esse modelo de análise visa a criar questionamentos em torno da

obra que levem o crítico a não mais apenas inferir a esmo sobre os

significados, métodos e concepções, mas que sirvam de apoio na construção

de um argumento, e o façam deixar de lado questões como “qual a intenção do

artista?”.

O autor deixa claro que sua percepção da análise não tem por objetivo

estabelecer explicações irrefutáveis sobre os quadros/obras. O que sua crítica

inferencial apresenta é mais um caminho possível dentro das diversas formas

de se apresentar uma análise de obras artísticas. "Nós não explicamos um

quadro: explicamos observações sobre um quadro. Dito de outra forma,

somente explicamos um quadro na medida em que o consideramos à luz de

uma descrição ou especificação verbal dele." (p.31)

Essa explicação sobre a qual Baxandall (2006) trata é ancorada na

descrição dos objetos artísticos a partir da junção entre conceitos técnicos e

impressões que a obra pode causar em quem a descreve.

Toda explicação elaborada de um quadro inclui ou implica uma descrição complexa desse quadro. Isso significa que a explicação se torna parte de uma descrição maior do quadro, ou seja, uma forma de descrever coisas nele que seriam difíceis de descrever de outro

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modo. Mas, se é verdade que a "descrição" e a "explicação" se interpenetram, isso não nos deve fazer esquecer que a descrição é a mediadora da explicação. (p.32)

A explicação será feita a partir dos moldes teleológicos por entender que

questões relativas às ciências humanas precisam considerar a dimensão dos

seus realizadores, não deixando de lado o propósito presente naquela obra

identificamos os fins de uma ação e reconstruímos seu propósito com base em fatos individuais, e não em fatos gerais, mesmo que esteja claro, ainda que de modo implícito, que nos baseamos em generalizações, talvez mais moderadas que fortes, sobre a natureza humana. (BAXANDALL, 2006, p.45)

O que nos parece interessante na pesquisa de Baxandall é a sua

sistematização dos elementos envolvidos na elaboração da obra, sua análise

com aspecto reelaborativo dos caminhos da criação da obra. Para nossa

pesquisa, que visa como objeto o estudo de imagens de processo de criação

presente em obras cinematográficas e considerando as próprias obras como

documentos de seus processos, essa perspectiva de trabalhar partindo da obra

será bastante útil para a construção de nosso percurso metodológico.

Chama atenção, incluso, a abordagem inicial ser sobre a construção de

uma ponte, um elemento estrutural cotidiano. Trabalhar com um artefato não

artístico permite ampliar as premissas da análise a outros tipos de produções

criativas que não se restrinjam a produções fundadas nas belas artes. É

possível, assim, racionalizar instrumentos analíticos que sirvam de base geral

para análises de processo de criação e que ainda permitam trabalhar com os

níveis de especificidade particulares a cada obra.

Partir da obra nessa perspectiva tem a ver com trabalhar a

intencionalidade de sua criação, percebendo-a como resultante de movimentos

propositais e como resposta a determinadas questões. Para a crítica

inferencial, essa obras serão os objetos de interesse. No caso abordado pelo

autor, as obras são livros, e

partimos deles para inferir as ações humanas e o instrumento que os fizeram do jeito que são - aspectos tratados pela linguagem por conceitos como o de "projeto de desígnio"[design] -, mas isso em

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geral não é mais que uma forma de pensar sobre a natureza do objeto que vemos. (BAXANDALL, 2006, p.46)

Isso porque, na perspectiva do autor, não se pode retomar integralmente

os momentos que compõem o processo de elaboração de uma obra já dada

por finalizada. Contudo, abordando-a segundo suas características, materiais,

data em que foi dada como finalizada, dentre outras questões, é possível traçar

um raciocínio que aponte para aspectos desse processo. "Tendemos, portanto,

para uma forma de explicação que busca compreender o produto final de um

comportamento mediante a reconstrução do objetivo ou intenção nele contido"

(p.47).

Dentro dessa perspectiva, a obra ocupa um espaço de solução

encontrada como resposta a um problema que o artista se propõe a resolver.

Essa solução, a obra, é feita segundo um contexto histórico. Isso deve ser

levado em consideração no momento em que se trabalha com a explicação

descritiva da análise visando à reconstrução dos momentos e ações que

compuseram a elaboração da obra de arte.

Mas a reconstrução não refaz a experiência interna do autor; ela será sempre uma simplificação limitada ao que é conceitualizável, mesmo que opere numa estreita relação com o quadro em si, o que nos proporciona, entre outras coisas, modos de perceber e de sentir. Nossa atividade será sempre relacional - tratamos das relações entre um problema e sua solução, da relação entre o problema e a solução com o contexto que os cerca, da relação entre nossas interpretações e a descrição de um quadro, da relação entre uma descrição e um quadro. (BAXANDALL, 2006, p.48)

Dentro do enfoque que Baxandall apresenta para a análise, o primeiro

ponto a ser destacado é a descrição da obra como modo de apresentação do

objeto de análise. A essa descrição é possível fazer questionamentos acerca

dos elementos causais da obra. Essas questões serão os porquês e comos

possíveis dentro da descrição como modo de se chegar ao problema original,

ou perto do que se pensa ser esse problema. A ideia aqui é entender quais as

possíveis causas a motivar a formulação dos efeitos, ou seja, respostas que

compõem a solução.

Nessa fase é possível indagar acerca do porquê da existência da obra e

quais elementos dentro da descrição narrativa servem para apontar essa

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resposta. Outra parcela de indagação é ainda possível e necessária: por que a

obra tem a forma que tem e o porquê das escolhas de seus elementos,

técnicas, materias etc.

Em seguida, é preciso pensar nas condições gerais e nas condições

específicas de elaboração da obra. Nessa dinâmica de pensamento,

estabelece-se ainda o repertório informacional a que o artista teve acesso

naquele contexto histórico e estabelece-se quais fatores eram desconhecidos

ou ignorados. Ao correlacionar as respostas aos questionamentos, há a

possibilidade de compreensão dos acontecimentos e recursos inerentes à

criação da obra.

Para sintetizar esses procedimentos de análise, Baxandall (2006)

concentra os procedimentos em dois conceitos: o Encargo e a Diretriz. O

Encargo diz respeito à dimensão geral do problema, que demanda foi posta

para ser atendida. Já a Diretriz tem a ver com dimensões específicas da

questão geral. Quais eram as demais necessidades, restrições, contexto

histórico envolvidos no problema e no universo passível de elementos que vão

compor a solução.

Como forma de estabelecer um esquema gráfico que aponte para a

correlação de todos esses fatores como influenciadores no alcance da solução,

Baxandall estabelece o que ele chama de Triângulo das Reconstituições.

Figura 1 – Modelo visual adaptado do Triângulo das Reconstituições apresentado

por Baxandall (2006)

Termos do Problema

Cultura

Descrição Objeto

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Na base desse triângulo, tem-se o Encargo, que o autor designa como

termos do problema. Tem-se também a Diretriz, que é chamada de dimensão

da cultura. No topo do triângulo tem-se a descrição que está diretamente

relacionada com a obra e os elementos que correspondem ao encargo e à

diretriz.

De fato, o que denomino de crítica inferencial funda-se na possibilidade de descrever o objeto a partir de quaisquer dos ângulos, na medida em que se criam relações entre eles. A descrição e a explicação se interpenetram constantemente. (BAXANDALL, 2006, p.72)

Interessante observar que essa concepção da obra como solução de um

problema é muito difundida nos trabalhos com viés metodológico de artes

aplicadas e projetuais, em que são estabelecidos procedimentos a serem

adotados para se chegar à solução desejada. Autores como Bruno Munari

(2008) vão se valer de terminologias bem aproximadas para trabalhar as ideias

de requisitos necessários dentro do processo de concepção de um projeto,

como se pode observar na figura abaixo.

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Figura 2 – Reprodução do esquema visual da metodologia projetual de Bruno

Munari (2008; p.66)

Munari se utiliza de um problema trivial para exemplificar seu modelo de

concepção criativa. Esse modelo pode ser dividido em três etapas:

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problematizações e hipótese, prática, e finalização. A base do modelo surge da

direção problema que gera solução. Isso porque, para o autor, "o problema não

se resolve por si só; no entanto, contém já todos os elementos para a sua

solução, é necessário conhecê-los e utilizá-los no projeto de solução."

(MUNARI, 2008, p.41).

Assim, ele usa o problema que consiste no preparo de uma refeição. A

partir desse problema posto, ele lista o que, dentro da fase de problematização

e hipóteses, pode ser identificado. Tem-se a Definição do Problema (DP), em

que se estabelece mais precisamente o que é o problema de fato. Isso permite

que se elenquem as características do problema (CP), que no exemplo de

Munari são Arroz verde com espinafre para quatro pessoas.

Em seguida, acontece a fase de recolhimento de dados (RD), que serão

avaliados na fase seguinte, de análise de dados (AD). Nessa fase, existe um

questionamento acerca das práticas anteriores, se elas existem, como foram

feitas. Com isso em mente, tem-se a fase criativa (C), norteada pela dinâmica

de transformação e criação. Com as ideias traçadas, define-se materiais e

tecnologias (MT) com os quais trabalhar.

Na etapa prática, tem-se as dimensões da experimentação (E), criação

do modelo (M), verificação(V) e desenho construtivo (DC). Todas essas fases

vão auxiliar na materialização/realização efetiva do objeto que, se aprovado,

será apontado como a solução ao problema inicial.

Se observarmos atentamente a metodologia que Munari (2008)

apresenta para a elaboração de projetos de design é possível encontrar

algumas aproximações com os estudos de Baxandall (2006). O método de

Munari parte do problema ao qual o método de Baxandall busca chegar. E,

como veremos mais adiante, os elementos que Baxandal (2006) elenca como

necessários à concepção de uma análise possível guardam certa relação de

equivalência com o modelo de Munari (2008).

É preciso ter em mente que Munari (2008) tem uma explicação linear da

concepção criativa, como seu esquema permite ver, enquanto Baxandall (2006)

é estrutural e bem mais complexo, com múltiplas entradas a partir de cada

elemento do sistema.

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Como nosso objetivo com este estudo é estabelecer uma metodologia

possível para a análise do processo de criação a partir das imagens fílmicas

em que esse processo está explicitado, nos é de grande valia ter ambos os

percursos metodológicos. Isso porque ambas as propostas, somadas aos

demais conceitos que abordaremos no presente capítulo, nos servirão de

balizadores para a fase de análise, nos permitirão estabelecer critérios para

compreender os agenciamentos possíveis no campo das imagens de processo

de criação sobre as quais nos debruçaremos.

Todas essas questões podem parecer distanciadas dos estudos de

processo de criação e se aproximarem muito mais de uma crítica ou sociologia

da arte. Contudo, é importante perceber que o método apresentado por

Baxandall, ao adotar a modalidade teleológica de análise e juntá-la à

perspectiva histórica, constrói algo muito semelhante, ao menos

conceitualmente, com o trabalho desenvolvido pelos estudos de crítica

genética, ponto teórico que abordaremos a seguir.

1.4 Crítica Genética

Quando falamos dos estudos do processo de criação, nos referimos a

um vasto campo que abrange desde os estudos de criação das belas artes, tais

como pintura e escultura, passando pelos processos pré-projetuais de artes

aplicadas como arquitetura, design e moda, e abrangendo ainda compreensões

de trabalhos mais dinâmicos, cuja ideia de criação é pouco explorada, como é

o caso do cinema e da produção audiovisual.

Os bastidores das produções artísticas e de artes aplicadas começaram

a se tornar populares com as publicações de cadernos de artistas, de

escritores e, bem posteriormente, com a divulgação de materiais de bastidores,

os famosos making ofs.4

4 Exemplo de modos de apresentação desses materiais está nos dvds que formam a trilogia

das cores, da Krystof Kiéslowski. Os filmes A liberdade é azul (1993), A igualdade é branca (1994) e A fraternidade é vermelha (1994) trazem uma considerável quantidade de material extra com fotos, extratos de cenas, comentários e filmagens de bastidores. Outro exemplo disso é o box de dvds da série O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Nos extras o diretor, que é co-roteirista do filme, expõe como foi o seu processo de adaptação da obra homônima de Mário Puzzo para a escritura do roteiro. Com riqueza de detalhes, é explicado o

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Concebidos inicialmente como um material fruto de uma resultante dos

trabalhos realizados, esses cadernos e cenas de bastidores eram feitos a partir

do reaproveitamento dos rascunhos, escritos, cortes de cenas, modelagens,

enfim, das aparas dos projetos. A sua preservação e catalogação eram feitas

posteriormente ao término das obras.5

O levantamento desses materiais, muitas vezes, consistia num trabalho

hercúleo e numa verdadeira composição de um mosaico, em que peças

surgiam e iam sendo encaixadas da melhor maneira possível dentro dos

percursos gerativos de sentido dos artistas e processos analisados. Esse

trabalho de levantamento e sua posterior análise, principalmente no que

consiste em materiais de processo de criação de autores literários, deu corpo a

todo um campo de pesquisa acadêmica conhecida como Crítica Genética.

A crítica genética surge como campo de estudo pelos idos dos anos 60

do século XX, quando um grupo de pesquisadores germânicos do Centre

National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França, se vê diante da

necessidade de catalogar a obra do poeta alemão Heinrich Heine. Para dar

conta da catalogação desse material, foi necessário se debruçar sobre

questões metodológicas relativas aos modos de arquivamento e classificação

desses escritos.

A esse grupo, ao longo dos anos 1970 e 1980, outros grupos foram

sendo somados. Todos eles congregados em torno das questões relativas aos

trabalhos com manuscritos de alguns poetas como Proust, Zola, Valéry e

Flaubert.

É nessa fase que há uma passagem de um projeto específico para uma problemática geral, com a criação de um laboratório próprio no CNRS: Institut des Textes et Manuscrits Moderns (ITEM), dedicado exclusivamente aos estudos do manuscrito literário (SALLES, 2008a, p.12).

No Brasil, os estudos de crítica genética tem como marco o ano de

1985, com a realização do I Colóquio de Crítica Textual: o Manuscrito e a

método de recorte das páginas do livro e sua junção a folhas de caderno que permitissem uma descrição da cena a ser adaptada. 5 No livro Gesto Inacabado (1998), Cecília Almeida Salles trabalha detalhadamente sobre essas obras

compostas de registros de processo e analisa os trabalhos Ignácio de Loyola Brandão.

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Edição, realizado na Universidade de São Paulo (USP). O colóquio, organizado

por Philippe Willemart, teve como resultado a criação da Associação de

Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), e posteriormente tem-se a

criação da revista Manuscrítica, em 1990, para servir de veículo de divulgação

dos estudos na área.

A partir de meados dos anos 90, os estudos genéticos estão vivendo uma época de exploração e alargamento de horizontes. O tempo de reflexões sobre os princípios fundamentais e a legitimidade da disciplina abriu espaço para a ação transdisciplinar da crítica genética. (SALLES, 2008a, p.13)

Nesse primeiro momento, a transdisciplinaridade se dava pelas

abordagens teórico-metodológicas possíveis a partir das práticas dos

pesquisadores. Com isso, tem-se uma ampliação do espectro de autores

analisados e modos de realização das pesquisas.

Com o avanço que as pesquisas no campo do manuscrito literário vão

possibilitando, temos paulatinamente não somente um aumento na quantidade

de autores trabalhados, mas também uma ampliação dos possíveis eixos de

análise, saindo da exclusividade do texto poético e literário, e passando às

mais diversas formas de produções culturais e artísticas. Essa ampliação de

paradigma vai ser o marco de atuação dos estudos no século XXI, além de

uma perspectiva transartística, expressão cunhada por Daniel Ferrer e da qual

Salles (2008a) se apropria.

Assim, o surgimento do ramo de estudos da crítica genética baseia seu

trabalho nos materiais deixados pelo artista no processo de criação da obra.

Com isso, uma das perspectivas que marcam o início dos estudos de Crítica

Genética é o devir da obra durante o trabalho realizado pelo artista na sua

execução.

A obra de arte é resultado de um trabalho caracterizado por transformação progressiva, que exige do artista investimento de tempo, dedicação e disciplina. A obra é, portanto, precedida por um complexo processo, feito de ajustes, pesquisas, esboços, planos, etc. Os rastros deixados pelo artista de seu percurso criador são a concretização desse processo de contínua metamorfose. (SALLES, 2008a, p.25)

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O trabalho do crítico genético reside na junção, catalogação e exame

desses materiais com o objetivo de se compreender melhor os caminhos

trilhados pela criação. Atua ainda na desmistificação da obra como algo que já

é apresentado pronto. Os estudos lançam luz a esse processo de

materialização, auxiliam na dinâmica de entendimento do fazer artístico. “O

nome Crítica Genética deve-se, portanto, ao fato de que essas pesquisas se

dedicam ao acompanhamento téorico-crítico do processo da gênese das obras

de arte.” (SALLES, 2008a, p.26)

É importante perceber como essa prática dialoga com a crítica

inferencial da arte apresentada por Baxandal (2006). Se comparados, os

trabalhos de crítica genética apontados por Salles (2008a) e os de Baxandall

(2006) apresentam pontos de ligação particularmente interessantes. O que se

vê é que ambos terão como ponto de partida a obra tida como finalizada.

Contudo, seu diferencial está nos tipos de questionamentos que cada proposta

oferece.

Como abordado anteriormente, Baxandall (2006) busca com seu método

se aproximar da questão ou problemática para a qual a obra figura como

resposta. Para chegar a essa questão, o autor trabalhará com determinados

fatos e informações que remontam ao problema. Essa perspectiva visa mais a

chegada do que o caminho.

Já na crítica genética, a atenção reside muito mais nos caminhos

percorridos, seus detalhes e peculiaridades. Sua questão norteadora não é o

quê motivou a obra, mas sim o como a obra foi criada.

A crítica genética analisa os documentos dos processos criativos para compreender, no próprio movimento da criação, os procedimentos de produção e, assim, entender o processo que presidiu o desenvolvimento da obra. O crítico genético pretende tornar o percurso da criação mais claro, ao revelar o sistema responsável pela geração da obra. (SALLES, 2008a, p.28)

Para chegar a esse ponto, o estudioso recorre a manuscritos,

rascunhos, versões parciais, arquivos, fotos, gravações, enfim, tudo que possa

ser reintegrado para a compreensão do processo criativo do artista. Esses

materiais vão constituir o que é chamado de documentos de processo, pois

constituem um indício da criação artística.

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Assim, como apontado na explanação acerca da crítica inferencial, o que

difere a crítica genética em relação a outras áreas de estudo que se utilizam

desse tipo de documentação, como a história da arte por exemplo, é o tipo de

abordagem trabalhada. Os documentos não figuram em obras per si nem são

considerados de maneira isolada para a análise da obra. O que se tem é uma

perspectiva relacional que visa a entender os perscursos para os quais eles

apontam.

Durante algum tempo, os trabalhos realizados pelos críticos genéticos

tinham como objeto de estudo os processos da criação literária e seus

documentos de processo eram pautados em manuscritos, diários, cadernos,

rabiscos, listas de palavras etc. Tudo que estivesse correlacionado com a

natureza mesma da obra que estava em criação.

Um primeiro passo no sentido de uma expansão dessa crítica se deveu

à ampliação das possibilidades materiais dos documentos de processo.

Passou-se a entender que os artistas não se limitavam a um tipo de linguagem

ou material em seu trabalho criativo. O manuscrito já não seria a única fonte de

pesquisa, seriam admitidos outros tipos de materiais. “Processo e registro são

independentes da materialidade na qual a obra se manifesta e independentes,

também, das linguagens nas quais essas pegadas se apresentam.” (p.30).

Com a evolução dos estudos na área, cada vez mais linguagens e

suportes materiais foram sendo aceitos. Fotos, gravações em áudio, vídeo,

gravuras, esquemas visuais, pedaços de tecidos, recortes de jornais, croquis

etc. Gradativamente começou a haver também uma abertura para as obras

cujos processos seriam pesquisados. Isso partia da compreensão de que

outros ofícios, que não só a literatura, eram tão passíveis quanto as obras

literárias de terem seus processos estudados e detalhados.

Tendo em mãos os diferentes documentos deixados pelos artistas, ao longo do processo, o crítico estabelece nexos entre os dados neles contidos e busca, assim, refazer e compreender a rede do pensamento do artista. (...) Uma abordagem cultural em diálogo com interrogações contemporâneas, que encontra eco nas ciências que discutem verdades inseridas em seus processos de busca e, portanto, não absolutas e finais. (SALES E CARDOSO, 2007a)

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Assim, a crítica genética foi se abrindo para filmes, pinturas, esculturas,

peças teatrais, fotografias. Essas obras vão exigir, contudo, uma abordagem

específica que contemple seus modos de produção e até mesmo a

compreensão dos rastros deixados, cuja sistematização talvez possa vir a ser

mais complexa que o trato que se tinha com os trabalhos de natureza literária.

Essa faceta expandida dos estudos de processo de criação traz

mudanças não apenas nos tipos de documentos aceitos e de obras. Ela traz

consigo, inclusive, uma mudança conceitual. A denominação de crítica

genética, quando trata dessas abordagens mais ampliadas e cujos objetos não

são mais literários somente, dá lugar ao termo crítica de processo de criação.

Além da ampliação dos objetos, essa mudança de nomenclatura aponta para

uma dimensão mais voltada aos rastros criativos deixados pelo artista e ao

estudo do processo em si, tendo a obra como referencial.

Aqui, também, outra noção passa a ser mais clara dentro do

estabelecimento conceitual da área: a noção de obra entregue ao público. Essa

noção se apresenta como um desdobramento da própria ideia de que as obras

não são definitivas, imutáveis. O percurso sobre o qual os documentos de

processo auxiliaram na compreensão é visto como algo que não se encerra,

que está passível de ser retomado a qualquer momento pelo artista. Com isso,

a obra não é mais tida como versão final, antes é pensada como a versão

apresentada ao público naquele momento específico sob condições

específicas.

A mudança conceitual permite um aclaramento das perspectivas teórico-

metodológicas que vão nortear os trabalhos desenvolvidos nessa área. Não se

trata de analisar produtos, a análise é feita em torno dos movimentos criativos

dos quais a obra é resultante. A crítica de processo se interessa pela jornada

do artista e da obra até o momento em que ela é apresentada ao público.

Algumas obras, incluindo todo o potencial que as mídias digitais oferecem, parecem exigir novas abordagens. Ao mesmo tempo, muitas dessas obras exigem novas metodologias de acompanhamento de seus processos construtivs e não somente a tradicional coleta de documentos, no momento posterior à apresentação da obra publicamente, isto é, a abertura das gavetas dos artistas para conhecer os registros das histórias das obras. Muitos críticos de processo passaram a conviver com o percurso construtivo de processo em tempo real. Algumas obras

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contemporâneas (mas não só) geram, assim, novas metodologias para abordar seus processos de criação, enquanto que os resultados desses estudos mudam, de alguma maneira, os modos de abordá-las sob o ponto de vista crítico. (SALLES, 2008b, p.17)

Outra diferença mais clara que esse reposicionamento conceitual

apresenta diz respeito aos modos de organização e níveis de interferência no

processo da obra de que trata Cecilia Almeida Salles (2008b) ao abordar a

crítica de processo de criação. A autora traz a noção de processo organizado

em redes de criação.

As redes de criação são formadas pelos elementos e documentos que

atuam na realização da obra. Os componentes arranjados em forma de rede

permitem uma visão menos cartesiana e mais complexificada do trabalho

criativo. Não existe uma hierarquia ou ordem de prioridades fixas da atuação

desses elementos na composição do objeto: um emaranhado

concomitantemente ativo se estabelece.

O conceito de rede traz ainda uma visão expandida do processo de

criação, o que colabora para um aprofundamento do crítico na hora de tecer

suas análises. A autora ainda aponta que tal conceito

parece ser indispensável para abranger características marcantes dos processos de criação, tais como: simultaneidade de ações, ausência de hierarquia, não-linearidade e intenso estabelecimento de nexos. Este conceito reforça a conectividade e a proliferação de conexões, associadas ao desenvolvimento do pensamento em criação e ao modo como os artistas se relacionam com seu entorno. Contudo, não podemos deixar de mencionar a força da imagem da rede da criação artística que nos incita a explorá-la. (SALLES, 2008b, p.17-18)

O pensamento em rede acompanha não somente uma mudança de

termos, mas uma mudança paradigmática no que diz respeito à condução dos

estudos dos fenômenos de um modo geral. Ele aponta para ações menos

causais e mais relacionais, menos cartesianas e mais fluidas.

Pensar em redes de criação abre margem para uma compreensão

rizomática dos processos e demonstra como é difícil se chegar à origem de

algo. Os meandros do sistema tornam-se mais interessantes do que encontrar

as pontas de um referido pensamento original que leve a uma obra única e

finalizada.

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Isso porque a ideia de inacabamento, segundo Salles (2008b), está

intimamente ligada à ideia da rede. Ao compreender o processo como uma

rede, há inclusa a ideia de fluxo, mobilidade, de mudança.

Primeiro porque a rede pressupõe interações dinâmicas e múltiplas, que

muitas vezes não podem ser acessadas em sua totalidade ou complexidade.

Em segundo lugar, porque o caráter rizomático da rede permite a elaboração

de novos elos e a criação de novas redes.

Estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse - seja um romance, uma peça publicitária, uma escultura, um artigo científico ou jornalístico – como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado. Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe é inerente, há sempre uma diferença entre aquilo que se concretiza e o projeto do artista que está por ser realizado. Sabemos que onde há qualquer possibilidade de variação contínua, a precisão absoluta é impossível. Nesse contexto, não é possível falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca, no fluxo da continuidade, é sempre incompleta e o próprio projeto que envolve a produção das obras, em sua variação contínua, muda ao longo do tempo. O que move essa busca talvez seja a ilusão do encontro da obra que satisfaça plenamente. (SALLES, 2008b, p.20)

Esses novos elos e essas novas redes muitas vezes não são declaradas

ou sabidas pelo artista, quiçá chegam ao conhecimento do analista. Elas abrem

ainda possibilidades para futuras alterações nas obras, o lançamento de

versões reeditadas, por exemplo. Aqui cabe uma referência também ao

trabalho de Gilles Deleuze (2006) acerca dos conceitos de repetição e

diferença.

Os filmes podem ser vistos pelo público como obras estabilizadas, obras

"acabadas". Isso se dá pela sua materialidade, pela aparente finitude que seu

enredo apresenta. Contudo, os filmes também podem ser compreendidas como

obras que trazem em si esse inacabamento, ou seja, essa possibilidade de

modificação.

É possível constatar essa relação entre processo, obra e inacabamento

com o lançamento de reedições de filmes com diferentes montagens, em que

se aponta a montagem do diretor, a montagem do fotógrafo ou mesmo a

inclusão de cenas que no momento de lançamento do filme haviam sido

retiradas. O que acontece muitas vezes com essas reedições é uma mudança

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de ordem não somente material, mas também conceitual, significante, que

altera em muitos casos a percepção que se tinha do filme anteriormente.

As redes da criação propostas por Salles (2008b) pensam os elementos

envolvidos no processo de maneira interativa, integrada, atuando de maneira

cooperativa. Essas integrações são chamadas de pontos de interação e são

esses pontos de interação que, quando compreendidos, servirão de norte para

uma possível compreensão do processo. “Ao pensarmos o paradigma da rede

estamos pensando o ambiente das interações, dos laços, da

interconectividade, dos nexos e das relações que se opõem claramente àquele

apoiado em segmentações e disjunções” (p.24).

Os processos artísticos serão trabalhados de maneira integrada com os

seus contextos, com sua variedade de documentação de processo e

observando-se as diversas etapas percorridas pela obra.

Na construção de uma obra estão envolvidos outros elementos variáveis

que não são puramente artísticos, mas que acabam também por integrar a

rede tais como o repertório do artista, sua história de vida, o contexto histórico

em que está inserido, o acesso a materiais, prazos, recursos financeiros.

Sob esse prisma, é interessante pensar que a rede da criação se define em seu próprio processo de expansão: são as relações que vão sendo estabelecidas, durante o processo, que constituem a obra. O artista cria um sistema, a partir de determinadas características que vai atribuindo em um processo de apropriações, transformações e ajustes, que vai ganhando complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas. (SALLES, 2008b, p.33)

No caso dos filmes-dispositivo, pode-se observar que a própria

formulação do dispositivo traz uma associação com essa ideia da rede da

criação. Isso porque ao estabelecer um dispositivo, o artista/cineasta já define

sua metodologia de criação, já define os mecanismos que estarão em vigor

para ativação e desativação dos dispositivos nessa atuação como estratégia

narrativa.

A atividade do crítico de processo de criação tem como objetivo

estabelecer nexos entre esses pontos de interação que compõem a rede da

criação. São os sentidos atribuidos a essas interações que possibilitarão a

compreensão da lógica do pensamento criativo e como cada documento de

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processo se encaixa com os demais. O pensamento que norteia a análise se

baseia na dinâmica dos processos e interações, e considera que a “forma

nominal associada a processos é o gerúndio” (SALLES, 2008b, p.36).

Assim, dentro da possibilidade metodológica que a crítica de processo

de criação apresenta, é importante para esta pesquisa destacar duas questões:

a primeira diz respeito ao papel que os documentos de processo terão para

esses estudos. Como já se apresentou anteriormente, os arquivos, fotos,

filmes, sons, rabiscos, rascunhos, diários, anotações, enfim, a diversidade de

elementos deixados como rastro da criação da obra serão considerados como

documentos de processo. Como são rastros, aqui existe uma contiguidade com

a obra, em se perceber nos documentos percursos trilhados pela obra, mas

existe também a noção de afastamento. A obra e os documentos são facetas

distintas dentro do processo.

A segunda tem a ver com o modo de trabalhar com esses documentos,

que é pautado na reunião dos elementos, sua contextualização e numa

articulação que relaciona os elementos de maneira geral e específica pelos

seus graus de interação com a obra. Nesse modo de ação, há de se levar em

conta o potencial de transformação inerente à condição de algo que se dá de

modo contínuo, algo que não é fixo ou estanque.

Relativo ao que vem sendo feito pela crítica de processo no campo da

criação audiovisual, Cecilia Salles (2010) apresenta algumas trajetórias de

estudos realizados na área. As pesquisas que tomam as obras audiovisuais

como partida para compreensão do processo vão trabalhar com diversas

possibilidades de análise que são tomadas com base nos documentos a que se

tem acesso.

São trabalhos que vão partir do roteiro, de fotos de cenas e de

bastidores, materiais de making of ou comentários feitos pela equipe de

produção, ou ainda críticos discutindo os elementos da obra e seu processo.

Todos esses materiais deixam evidente um interesse em tornar o processo

aparente e colocá-lo em discussão. O trabalho com cada um deles terá suas

particularidades e possibilidades.

Ao se trabalhar com roteiros, por exemplo, é possível compreender a

obra do ponto de vista da tradução intersemiótica presente no processo. Para

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esse tipo de trabalho é possível um estudo comparativo entre versões do

roteiro; entre essas versões e versões do filme a cada etapa de filmagem ou

montagem.

O filme funciona como disparador de agenciamentos entre os elementos

de sua produção tais como equipe de profissionais técnicos, atores, decisões

de câmera, modificações no texto, linhas narrativas ressaltadas. “No roteiro, o

filme já está sendo feito. Trata-se de um mapa, com contornos ainda não

totalmente definidos, que carrega algumas tendências do futuro filme.”

(SALLES, 2010; p.173)

Dentro das formas de se interagir com o processo de realização

audiovisual, a autora aborda ainda a profusão de conteúdos em DVDs e

materiais disponíveis atualmente para quem se dedica a essa linha de

pesquisa. Ela realiza então um mapeamento de materiais a fim de indentificar

as formas como o processo é apresentado nessas mídias.

Como resultado desse mapeamento, destaco o encontro de trailers, cartazes dos filmes, cenas cortadas (que são chamadas, de modo atraente, cenas inéditas), erros de filmagem, efeitos especiais, fotos de filmagem, entrevistas com diretores, roteiristas e atores, filmes comentados, diferentes montagens, making ofs de boa qualidade informativa, ou seja, documentários de processo de criação. Há ainda documentários que incluem a filmagem. (SALLES, 2010, p.177)

O levantamento realizado pela autora demonstra como o conhecimento

acerca do processo de criação das obras interessa cada vez a mais pessoas, e

também a facilidade cada vez maior de se ter acesso a esse tipo de material.

Esses materiais permitem traçar algumas categorias de abordagem: diferentes

tipos de montagem, registro de making of, documentários sobre os processos

de criação, os boxes de DVDs de um artista e seus materiais de processo,

comentários sobre documentos de processos, situações em que o processo é a

obra, registros de obras processuais, documentários como espaço de

experimentação.

As categorizações de processos possíveis que Salles (2010) aponta vão

ser importantes para compreender de que forma a crítica de processo de

criação pode ser instrumentalizada para um estudo das obras audiovisuais. O

que se percebe é que em todas as formas de estudos desenvolvidos e

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apresentados pela autora reside uma perspectiva transmidiática muito

enraizada e determinante para o tipo de análise desenvolvida.

A análise do processo de criação dos filmes dependerá do acesso aos

roteiros, às entrevistas, às cenas eliminadas etc. A compreensão do processo

só é possível se houver atravessamento entre os meios e essa formulação do

processo da obra dependente desses materiais que são acessados.

Mesmo quando trabalha as situações em que o processo é a obra, a

análise é desenvolvida a partir da correlação de elementos externos ao filme.

As visões que a crítica vai oferecer para os estudos de processo de criação

audiovisuais vão ser, contudo, limitantes do ponto de vista da hipótese que a

presente pesquisa aborda.

Não se está aqui querendo atestar uma irrelevância do uso desses

materiais para compor a rede de criação do filme. Longe disso, a importância

desse tipo de análise e a sua eficiência são bastante reconhecidas, e foram o

ponto de partida para a situação aqui apresentada.

O que se pretende, no entanto, é justamente pensar um modo de análise

do processo de criação tomando a imagem fílmica como obra e processo.

Investigar, assim, o que do processo criativo está presente na imagem e como

é possível utilizar essa explicitação para compreender os caminhos trilhados

pela obra, numa perspectiva estética, incrustada na imagem.

1.5 Análise Fílmica Processual: uma proposta metodológica

A proposta metodológica aqui pretendida visa a abordar a dinâmica do

processo criativo presente nas imagens documentárias.

Em 2011, ao concluir a pesquisa de mestrado intitulada O DISPOSITIVO

E SEU PROCESSO: ANÁLISE DOS FILMES 33, FILMEFOBIA E SEUS

DIÁRIOS DE CAMPO, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal do Ceará, uma das questões

levantadas pelo trabalho dizia respeito à possibilidade hipotética de se abordar

o processo de criação dos filmes documentários a partir dos próprios filmes e

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que os tomasse como documentos desse processo. É essa questão que se

apresenta como norteadora da presente tese.

Com base nos trabalhos de Gilles Deleuze (1990), para quem o filme

deve se bastar como instrumento para sua compreensão, formulou-se a

questão inicial: é possível analisar os processos criativos dos filmes

dispositivos documentários tomando por base o próprio filme Dessa questão

para a investigação acerca dos modos de realizar essa análise, surgiu a

necessidade de se propor um instrumento teórico-metodológico. Isso porque,

após extensa pesquisa bibliográfica, observou-se que os modelos de análise

existentes não contemplavam a natureza da hipótese que se apresentava.

Os trabalhos que tratavam dos estudos de análise fílmica, por muitas

vezes, optavam pela abordagem de conteúdos ou uma unidade analítica que

se baseia apenas na superficialidade dos mecanismos fílmicos. Já os modelos

relativos aos processos de criação, eles se ancoravam na dimensão material

externa às obras, como é o caso da crítica genética e da crítica de processo de

criação apresentadas por Cecilia Salles (2008a), (2008b) e (2010), e os

trabalhos da crítica inferencial de Michael Baxandall (2006).

Uma vez que a hipótese de pesquisa desta tese aponta para uma

abordagem diferenciada dentro dos estudos de processo de criação e da

análise fílmica, tornou-se necessário estabelecer uma metodologia de análise

de processo de criação que contemple a especificidade da realização fílmica e

a possibilidade de se trabalhar com a criação audiovisual tomando a obra como

realização e devir.

Por sua própria natureza escópica, o audiovisual pode ser compreendido

esteticamente como algo em permanente elaboração. Aqui não se faz

referência apenas ao campo do documentário, mas ao audiovisual de uma

maneira geral. Isso porque a cada vez que um filme é assistido e reassistido,

há nele uma relação de retorno e reelaboração, um fluxo entre suas imagens.

Esses trânsitos entre elaboração e reelaboração apontam para uma

perspectiva de experiência mesmo com as imagens, a formação gradativa

dessas imagens na tela e a formação de seus sentidos que se completam junto

ao espectador.

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Sergei Eisenstein (2002), ao estabelecer os paradigmas acerca da sua

montagem intelectual já trabalhava com essa integração entre espectador e

obra, levando em consideração o referencial de cada espectador para que os

sentidos da narrativa apresentada nos filmes pudessem se concretizar. Aqui,

contudo, as imagens ainda escondem seu processo de feitura.

Tomando Ismail Xavier (2008) como referência, pode-se trabalhar com o

audiovisual e o cinema sob dois regimes de imagens: a opacidade e a

transparência. O cinema nasce sob o manto da opacidade da forma com os

trabalhos dos irmãos Lumière. A opacidade diz respeito à explicitação dos seus

mecanismos, à revelação da câmera e dos modos de se fazer cinema.

Num extremo, há o efeito-janela, quando se favorece a relação intensa do espectador com o mundo visado pela câmera – este é construído, mas guarda a aparência de uma existência autônoma. No outro extremo, temos as operações que reforçam a consciência da imagem como um efeito de superfície, tornam a tela opaca e chamam a atenção para o aparato técnico e textual que viabiliza a representação. (XAVIER, 2008, p.9)

Com o passar do tempo, a opacidade vai dando lugar à transparência,

ao apagamento, à sublimação dos mecanismos de realização fílmica. Ela se

aproxima mais da ideia de que o cinema é composto num processo de mágica

e mistério, ao qual faz alusão frequente Georges Mèlies.

Ele se vale da transparência como ferramenta para a criação de suas

sobreposições, efeitos visuais e efeitos especiais. A transparência é

frequentemente associada às práticas de ficção e entretenimento, contudo ela

pode ser vista como uma marca também da maior parte dos documentários, a

dissimulação da câmera é adotada.

Quando movimentos como o cinema verdade começam a incorporar a

presença da câmera como elemento estético narrativo, a opacidade é chamada

de volta à cena. Essa opacidade de que se vale o cinema verdade, inclusive,

posteriormente se tornará símbolo de uma estética documental: câmera na

mão, interferência na imagem e no áudio, som direto, olhar direcionado para a

câmera, produções sujeitas ao acaso.

Essa estética documental passa inclusive a ser utilizada em trabalhos

ficcionais que buscam se valer do estatuto do documentário e da legitimidade

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associadas a esses modos da imgem. Em outros trabalhos, por vezes, o que

se percebe é um intencional mescla dos gêneros.

A opacidade é ainda aqui um recurso mais retórico incorporado à

narrativa fílmica, mas que muitas vezes não problematiza a compreensão de

seu processo, não apresentando uma discussão metafílmica. Pode-se dizer

que os trabalhos que motivam a presente tese se diferenciam justamente pelos

seus modos de produção e por incorporarem o processo como elemento

discursivo de suas imagens.

Nos filmes a serem analisados, percebe-se essa natureza metafílmica e

também a dupla atuação da imagem como parte da composição fílmica e

apresentação da imagem em devir. Na análise perceber-se-á que essas

imagens apontam não só para o vir-a-ser do filme, mas para o vir-a-ser dos

percursos trilhados para que se tenha filme. Elas estão intrínsecamente ligadas

ao dispositivo estabelecido como estratégia narrativa.

Essas imagens constroem um duplo na imagem: o filme e seu processo.

A imagem apresentada dá conta da síntese das duas formas numa só,

porporcionando ao espectador uma dupla experiência com o filme.

Assim, dada a sutileza estética presente nessas imagens, os modelos

que se ligam a elementos externos ao filme podem até ser úteis, e o são, para

que se trabalhe parâmetros de análise, contudo não alcançam a dinâmica

processual explicitada no quadro.

Daí a iniciativa de se estabelecer um conjunto metodológico específico

de análise que aqui será chamado de Análise Fílmica Processual. Essa

proposição metodológica se baseará, grosso modo, numa composição entre os

pressupostos da análise fílmica e os estudos de processo de criação. Como

será visto mais detalhadamente no capítulo 3, nossa análise tem como objetivo

trabalhar com os elementos explicitadores do processo de criação da obra

fílmica dentro das imagens fílmicas.

A noção tomada de análise fílmica parte dos trabalhos de Aumont &

Marie (2009), Vanoyé & Goliot-Leté (2004), Bordwell (1991) e Bellour (2001).

Ambos os modelos se baseiam na visão dos filmes, compreensão de suas

imagens e uma fase posterior dedicada à descrição e à decupagem.

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Obviamente cada filme apresentará suas particularidades, mas é possível ter

generalizações nos procedimentos que permitam seu uso aqui.

Dito de uma forma simples, a análise fílmica tem como propósito a

fragmentação do objeto analisado para que, a partir desse desmembramento e

sua subsequente recomposição, possa-se extrair uma análise, uma conclusão

(Vanoyé & Goliot-Leté, 2005). Contudo, a análise fílmica não se restringe

apenas a isso, dada suas variações de acordo com os interesses de

abordagem da análise e do analista.

Na introdução ao livro A Análise do Filme, Aumont & Marie (2009)

apontam que não há uma unidade quanto ao que seria “a” análise fílmica, o

que de fato existem são análises. O que existem são análises, uma vez que, da

mesma forma que a metodologia de uma pesquisa surge a partir do objeto a

ser estudado, a análise depende do filme ou objeto audiovisual a ser analisado,

“ou seja, tal como não existe uma teoria unificada do cinema, também não

existe qualquer método universal de análise do filme” (p. 8).

Dessa maneira, o que há são possibilidades de análise com base em

trabalhos realizados anteriormente por outros analistas e que indicam pontos

de partida para outras análises que os irão adaptar a seus fins e objetos. “O

objetivo da análise é apreciar melhor a obra ao compreendê-la melhor. Pode

igualmente ser um desejo de clarificação da linguagem cinematográfica,

sempre com um pressuposto de valorização desta." (p.11).

Raymond Bellour (2001) trata a análise do filme como uma ação que

tenta apreender sentidos dentro do filme e compreendê-los. Para o autor, as

análises fílmicas não esgotam o objeto, antes permitem que se apresente

versões de leituras das imagens e enredos. Quanto mais se tenta compreender

os sentidos fílmicos, mais sentidos há por serem compreendidos.

Tal como “a teoria do cinema”, a análise fílmica parte do filme para

ampliar reflexões em torno da produção cinematográfica, seus processos e

aspectos. A teoria do cinema tende, contudo, a ser generalizante, para além

dos casos fílmicos. A análise fílmica é específica, concentra-se no casos

analisados diretamente.

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Para tanto, há diversas formas possíveis de se trabalhar a análise

fílmica. A análise pode ser baseada em aspectos estéticos, descritivos, textuais

e estruturais, temas, conteúdos, análise da narrativa, da trilha sonora.

De certo cada analista deve habituar-se à ideia de que precisará mais ou menos construir seu próprio modelo de análise, unicamente válido para o filme ou o fragmento do filme que analisa; mas ao mesmo tempo, esse modelo será sempre, tendencialmente, um possível esboço de modelo geral, ou de teoria; isso é, no fundo, uma consequência direta do que acima dissemos sobre a consubstanciabilidade da análise e da teoria. (AUMONT & MARIE, 2005, p.15).

Para David Bordwell (1991), a análise fílmica, ou interpretação fílmica,

tem possibilidades variadas que estão ligadas aos sentidos divergentes

estabelecidos para os termos interpretação e compreensão. Contudo, é difícil

para a maioria dos críticos estabelecer um limite divisor entre interpretação e

compreensão.

A maioria dos criticos faz distinção entre compreender um filme e interpretá-lo, embora eles quase sempre discordem sobre onde as linhas fronteiriças devam ser traçadas. Essa distinção segue a divisão hermenêutica clássica entre ars intelligendi, a arte do entendimento, e ars explicandi, a arte da explicação.

6 (BORDWELL, 1991, p.2)

Assim, a atividade analítica se baseia numa construção de significado,

estabelecendo uma leitura possível da obra na realidade daquele analista. As

análises fílmicas se constituem, na visão do autor, a partir de quatro

possibilidades: a concepção de um mundo em que a narrativa ganha um

sentido específico; a construção de sentidos litereais estabelecidos a partir de

elementos diegéticos do filme; a construção de sentidos figurados e

associativos do filme com base na interpretação de elementos; e interpretações

conceituais e generlistas que se baseiam em leituras ideológicas, políticas

sociais ou econômicas dos filmes (BORDWELL, 1991).

Quanto à questão do processo, tanto os estudos de Salles (2008a),

(2008b) e (2010); e de Baxandall (2006) pelo ferramental de questões

6 “Most critics distinguish between comprehending a film and interpreting it, though they would

often disagree about where the boundary line is to be drawn. This distinction follows the classic hermeneutic division between ars intelligendi, the art of understanding, and ars explicandi, the art of explaining.” (BORDWELL, 1991, p.2)

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suscitadas por seus métodos, trabalho com documentos de processos e

considerações acerca das inferências possíveis na imagem.

No estabelecimento da metodologia de análise, procura-se observar,

ainda, a natureza única de cada filme, uma vez que não são feitos seguindo

uma forma generalizada. As possibilidades categóricas analíticas que

apontamos surgem dessas variantes e modos de abordagens possíveis. Para o

estabelecimento de tais categorias, trabalhou-se a partir de duas macro-

categorias que são elencadas por Jean-Claude Bernardet (2003): o processo

como obra e a obra como processo.

Em seu texto, o autor trabalha com uma primeira forma de articulação

entre obra e processo que diz respeito ao processo como obra. Entender o

processo como obra tem a ver com uma tendência contemporânea de

produção em que o processo se perfaz da própria obra.

Como exemplo disso, Jean-Claude Bernardet (2003) cita a instalação

realizada a partir dos copiões com mais de 130 horas de material gravado para

o filme No Quarto da Wanda (2000), do diretor português Pedro Costa. A

instalação citada, por mais que contenha o registro das filmagens, bastidores,

se constitui numa obra autônoma, relacionada ao filme, mas independente do

filme para existir.

Como segunda tendência apontada por ele, tem-se a obra como

processo. Essa relação da obra como processo tem a ver com o registro do

processo de criação, recursos de metalinguagem e metadiscursividade dentro

das obras. As obras como processo vão incorporar evidências dessa criação,

vão explicitar a realização.

Pode-se, portanto, identificar nos filmes-dispositivo, mais

especificamente nos que serão analisados nesta pesquisa, uma junção de

ambas as características apontadas por Bernardet (2003). Isso fica claro uma

vez que há incorporada na própria natureza do dispositivo essa noção

processual e metalinguística.

Pode-se dizer que as obras como processo são aquelas que dão conta

muito mais das paisagens encontradas pelo meio do caminho, deixando de

lado o destino a ser alcançado, uma vez que estão sempre abertas às

possibilidades. Aqui tem-se uma compreensão mais clara da relação entre

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dispositvo e acontecimento que Cezar Migliorin (2005), a partir da noção de

acontecimento em Deleuze (1969), traça ao se referir aos eventos que ocorrem

quando da ativação de um dispositivo.

O surgimento de acontecimentos a partir de um dispositivo pressupõe um desdobramento dos corpos e subjetividades em possibilidades que ultrapassem suas próprias medidas; ultrapassam qualquer medida previamente pensável. A ideia fundamental da utilização de dispositivo está na possibilidade da arte enxergar e criar o mundo a partir de uma desprogramação. (MIGLIORIN, 2005)

Outro ponto trabalhado por Bernardet (2003) e que é bem pertinente

para a Análise Fílmica Processual diz respeito àquilo que ele denomina de

estética do esboço, uma estética baseada na evocação e na sugestão, no

laconismo de elementos processuais, uma forma de deixar que o espectador

complete os espaços, uma proposição estética reflexiva. Muitos filmes que vão

trabalhar com o processo de criação como elemento integrante de suas

imagens, trabalham com essa perspectiva.

Do que se trata? De apresentar elementos visuais e sonoros, verbais ou não. Esses elementos são justapostos sem que se estabeleçam entre eles inter-relações fixas e precisas. São materiais temáticos ou formais que permitem ao espectador construir conexões. (BERNARDET, 2003)

Há ainda uma espécie de pacto de co-criação, uma vez que o(s)

sentido(s) da obra vem em consonância com a interação que o espectador tem

com ela. Não há nem nunca houve um sentido uno e finito. O que há são

experiências, um compartilhamento sensorial e cognitivo que demanda do

espectador essa participação. É no fruir dessa obra que a obra acontece, é

pela descoberta, pela sensorialidade que o sentido se faz mostrar.

Bernardet (2003) ainda salienta o caráter de ressignificação constante

da obra, uma vez que para cada espectador a obra significará de uma maneira,

e para um mesmo espectador a relação com a obra estará em constante

atualização de sentido, uma vez que não há esse sentido fechado e estrito.

Uma estética dos possíveis.

Uma certa opacidade estimula o espectador a construir conexões, trabalho que será ainda mais estimulado/estimulante se os materiais

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apresentados forem heterogêneos, díspares. E isso sem que nunca se chegue a uma conclusão que possa parecer correta ou definitiva. Simplesmente a apresentação dos materiais propõe uma área de atuação ao espectador, cujo trabalho pode lhe proporcionar intensa emoção estética, bem como discursos, falas a respeito. E, como não há conclusão a que chegar, esse relacionamento entre espectador e obra a rigor não tem fim. (BERNARDET, 2003)

Como o próprio autor destaca, essa noção de co-criação com o

espectador e da estética do esboço acabam, no entanto, por fazer-se rever o

paradigma da arte que desde tempos longínquos trata da noção de obra

interpretada como algo finalizado, acabado. Mas, e o que fazer com as obras

da contemporaneidade que se baseiam justamente no conceito de não finitude,

de co-participação significante do espectador?

Assim como a forma de se relacionar com o mundo, as imagens, sons,

representações, identidades tem mudado, assim também há uma

reconfiguração do conceito de obra. "A obra não é o resultado de um processo

de elaboração superado por uma finalização, ela é o próprio processo de

criação" (BERNARDET, 2003).

Para a Análise Fílmica Processual aqui pretendida, e que será mais

detalhada no Capítulo 3, essas duas noções serão fundamentais por

representarem as duplas possibilidades inferidas nas imagens dos filmes

trabalhados, que se apresentam segundo o que Deleuze (2003) vai chamar de

lógica do paradoxo.

O efeito paradoxal que as obras a serem aqui estudadas permitem tem a

ver com a sua dinâmica de duplicação e um trabalho no sentido da construção

do movimento na lógica do tempo.

São imagens atravessadas por uma vontade de potência que lhes

permite agenciar regimes escópicos e narrativos diversos numa mesma tela.

Há nelas possíveis, uma virtualidade que vai se assemelhar com o que

Deleuze (1985) vai chamar de imagem-cristal. Nessas imagens há um

desdobramento do tempo e uma desconstituição entre passado e presente,

presente e devir.

Dessa forma, no nosso modo de entender, a Análise Fílmica

Processual é uma maneira que nos permite analisar a obra e compreender os

seus percursos criativos a partir da própria obra, dos próprios filmes. Essa

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análise aborda o paradoxo presente nos filmes que se utilizam de dispositivos

como estratégia narrativa e que têm na explicitação dos seus processos de

criação uma centralidade das suas discussões. A Análise Fílmica Processual

trabalha com essas obras que se constituem a um só tempo como processo

como obra e obra como processo.

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2. DISPOSITIVOS E DOCUMENTÁRIOS

Neste capítulo trabalharemos com o conceito de dispositivo de uma

forma geral e também com o conceito aplicado ao cinema e ao corpus,

explorando ainda a noção de filmes-dispositivo. Circundar essa noção de

dispositivo no cinema e sua aplicação mais específica no cinema documentário

brasileiro contemporâneo será de fundamental importância para o

desenvolvimento de nossa tese, uma vez que buscamos aqui abordar a relação

estabelecida entre os dispositivos fílmicos, os processos de criação, as

experiências, as narrativas e as imagens.

Dessa maneira, a explanação acerca do termo dispositivo a ser feita

aqui se estabelece como sustentáculo de alinhavo dos demais conceitos, uma

vez que percebemos sua dimensão e sua multiplicidade conceitual.

Iniciaremos nossa discussão com uma apresentação geral do conceito e

de alguns autores que o trabalham em sua discussão discursiva e ontológica.

De que maneira eles trabalham o conceito, como essas conceituações

interagem e no que elas diferem uma da outra.

Em seguida, procederemos a uma abordagem sobre os dispositivos no

cinema, em que falaremos sobre o que é a noção de dispositivo no cinema, sua

variação de acordo com os teóricos que tratam a respeito do tema, além de

apresentarmos algumas visões sobre o que vem a ser filme-dispositivo.

Como último tópico deste capítulo, falaremos sobre a relação entre

dispositivo e experiência fílmica. Após a revisão bibliográfica, aqui

relacionaremos os conceitos de dispositivo no cinema e a experiência fílmica.

Por experiência fílmica, a priori, compreendemos a experiência em sala, as

experiências com as imagens e as experiências com formas expandidas de

cinema.

2.1 Exercício de taxonomia

Jacques Aumont e Michel Marie (2009), em seu Dicionário Teórico e

Crítico de Cinema, partem da definição comum utilizada para o termo

dispositivo (em seu uso jurídico e militar) até chegarem à conceituação que a

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palavra adquiriu ao ser empregada nos estudos de cinema. Na Mecânica, o

termo será usado para tratar da disposição de partes de um aparato e o próprio

aparato em si. Essa relação semântica permanece no cerne do termo em seu

uso pela teoria do cinema, como veremos mais adiante.

O conceito de dispositivo tem assumido na última década um uso

inderterminado e irrestrito. Há uma livre associação do termo com temáticas

múltiplas, sejam elas de ordem técnica, tecnológica, arquitetônica, conceitual.

Traçando aqui um pensamento que beira o generalismo, mas que nos

serve como ponto de apoio para essa discussão, hoje em dia quase tudo é

associado discursivamente ao termo dispositivo. Seja uma sala de cinema, seja

uma máquina fotográfica, seja um modo de realização fílmica, todas essas

situações podem vir referidas como dispositivos.

Dessa maneira, é preciso que se pense o uso do termo quando o

utilizamos como ponto conceitual. A que, especificamente, estamos nos

referindo quando abordamos as questões fílmicas, sua explicitação de

processo de criação e experiência fílmica pelo viés do dispositivo. De que

dispositivo exatamente estamos falando?

Para iniciarmos tal abordagem, se faz necessário que reflitamos sobre

os usos que o termo vem tendo ao longo dos anos, as transformações pelas

quais a própria aplicação do conceito tem passado. Ainda pensando dispositivo

como algo múltiplo e heterogêneo, nos remetemos inicialmente ao conceito de

Foucault (2000), conceito esse que posteriormente será revisitado e

reatualizado por Gilles Deleuze (1990) e por Giorgio Agamben (2005).

O que trato com esse nome é, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. (Foucault, 2000, p. 244)

Essa noção de dispositivo, mesmo que bem expandida, é relacionada

dentro da obra de Foucault com três eixos: o saber, o poder e os modos de

produção de subjetividade. Essa definição que aqui apresentamos foi dada por

Foucault em uma entrevista concedida em 1977 a Alain Grosrichard.

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Na ocasião, as perguntas direcionavam-se para que o filósofo

apresentasse uma resposta para a tão famigerada questão “o que é um

dispositivo?”, questão essa que motiva a resposta de Foucault e também se

transforma em leitmotiv para os trabalhos que Giorgio Agamben e Gilles

Deleuze desenvolverão partindo da noção foucaultiana de dispositivo e aquilo

que vem diluído em sua obra com relação ao termo.

Dentro dessa sistematização de ideias apresentada por Foucault nessa

entrevista, o autor estabelece três níveis de compreensão do termo: o

dispositivo como uma rede, a compreensão da natureza dessa rede e a relação

entre dispositivo e acontecimento.

Curioso perceber aqui que essa compreensão do dispositivo como rede

casa com a própria dispersão do termo em meio aos textos de Foucault e à

noção de heterogeneidade apontada pelo autor como sendo uma das marcas

do dispositivo. Esse caráter relacional do dispositivo permite que

compreendamos que um dispositivo não é algo uno, bem acabado, moldável e

estático.

Há uma mutação constante e um rearranjo dos elementos, que estão

aqui postos de forma relacional. Essa noção mutabilidade do dispositivo pode

ser percebida quando se pensa nos dispositivos narrativos dos filmes-

dispositivos, que formulam situações específicas para aquele momento da

realização fílmica. Discutiremos mais sobre isso adiante neste capítulo.

Dessa forma, a própria escritura dos textos de Foucault e sua maneira

de apresentação, a valorização dada às entrevistas como peças de amarração

de pensamento (caráter que é abordado, inclusive, pelo texto de Gilles

Deleuze) e essa multiplicidade de aplicações do termo seriam, se podemos

assim falar, um dispositivo conceitual de organização do pensamento em torno

de um termo, no caso o dispositivo. Como o próprio Foucault ressalta, há aqui

um caráter de jogabilidade, de participação ativa dos elementos e algo vivo,

dinâmico, que faça o pensamento seguir.

Já na forma de apresentação fragmentária, a sua característica de

interrelação entre as estruturas para as quais a noção de dispositivo é aplicada,

enfim, tudo isso compõe a si mesmo como um dispositivo e perceber tal arranjo

nos permite uma abordagem mais holística da ideia. Isso porque tanto Deleuze

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quanto Agamben vão partir da explicação dessa abordagem como forma de

compreensão das ideias do autor e de expansão da terminologia, aplicabilidade

e conceituação.

O pensamento foucaultiano servirá como uma matriz, um pensamento

gerador, algo que instaura um movimento de reflexão acerca do conceito, mas

que também tem seu caráter criador de outros modos de trabalhar com essa

terminologia, dada sua heterogeneidade, sua multiplicidade, sua variabilidade.

Dispositivo tem uma aplicação conceitual bem ampla e, como bem

estabelece Foucault, pode se referir a objetos discursivos e não-discursivos,

aparelhos, tecnologias, instituições, enfim. A partir do dispositivo de Foucault,

Deleuze (1990) explora a ideia do conceito não somente no que diz respeito ao

termo em si, mas ao que isso significa dentro da obra de Foucault. Estabelece

alguns pontos de observação, em que o primeiro reside na percepção do

dispositivo como algo múltiplo, um conjunto de linhas que se afastam e se

aproximam, uma mescla de vetores.

Dessa forma, os dispositivos seriam “máquinas de fazer ver e de fazer

falar”. Máquinas essas que podem ser discursivas, visuais, arquitetônicas.

Como já apontamos anteriormente, os dispositivos tem uma composição

heterogênea e variável. Como pontos iniciais a apontar na constituição de um

dispositivo, pode-se inicialmente falar de suas curvas de visibilidade e suas

curvas de enunciação.

Aponta-se ainda, num terceiro momento citado por Deleuze (1990), as

linhas de força, ou seja, a questão do poder. Essa dimensão do poder seria um

espaço interior do dispositivo. E todos esses elementos se relacionam por

linhas de objetivação.

Ao destacar esses pontos de objetivação, o autor ainda enfatiza que

existem pontos de fuga, o que seriam as chamadas linhas de subjetivação.

Essas linhas seriam produtoras de subjetividade, seria uma vertente que

estabeleceria certo descontrole no dispositivo, uma escapada à faceta

controlada, correlacionada dos elementos pelas linhas de objetivação.

Esse seria um espaço da individuação, em que se inserem aqui grupos e

pessoas. Essas são “linhas de fratura” do dispositivo, atravessamentos e

pontos de fissura que interligam poderes e saberes entre dispositivos.

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Deleuze ressalta que cada dispositivo terá um arranjo próprio de seus

elementos e essas linhas compõem um “novelo” único, que responde à lógica

de arranjo daqueles elementos daquele dispositivo em si. Não existe uma

fórmula para os dispositivos e nenhum dispositivo será igual ao outro. Logo,

para que se compreenda do que se trata cada dispositivo é preciso que se

entenda sua organização, seus elementos compositivos e até se perceba seus

pontos de fratura, seus modos de operação e os agenciamentos inerentes a

cada um dos dispositivos.

Dessa forma, seguindo esse raciocínio, são estabelecidas duas

implicações para se trabalhar com os dispositivos. A primeira delas diz respeito

ao “repúdio aos universais”, que tem a ver justamente com essa irrepetibilidade

de elementos do dispositivo, uma vez que “cada dispositivo é uma

multiplicidade na qual esses processos operam em devir, distintos dos que

operam em outro dispositivo.” (DELEUZE, 1990).

O segundo ponto trata de uma implicação complementar à primeira e diz

respeito a um necessário distanciamento daquilo que seja eterno e uma

abertura para o que é novo. Assim, não é possível que se vislumbre uma

imutabilidade das situações, discursos e instituições, antes uma variação

constante em relação a cada dispositivo, onde não cabe a universalização das

características apontadas como inerentes ou não aos dispositivos.

Essa variabilidade se somaria ao que Deleuze aponta como novidade, o

que resultaria posteriormente em outras possibilidades de dispositivo, e outras

formas de subjetivação. Essa novidade diz respeito ao estado atual das coisas.

“O atual não é o que somos, mas aquilo que vamos nos tornando, o que

chegamos a ser, quer dizer, o outro, nossa diferente evolução.”

(DELEUZE,1990).

Esse atual dá conta do devir, do vir a ser, o que remete a Heráclito.

“Devemos separar em todo dispositivo as linhas do passado recente e as linhas

do futuro próximo; a parte do arquivo e a do atual, a parte da história e a do

devir, a parte da analítica e a do diagnóstico.” (DELEUZE, 1990). Dessa

maneira, é possível que se separe os componentes dos dispositivos em dois:

as linhas de estratificação ou de sedimentação, e as linhas de atualização ou

de criatividade.

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Além da abordagem de Deleuze ao questionamento “o que é um

dispositivo”, Giorgio Agamben (2005) também se deterá em responder essa

questão. Em sua leitura do termo, Agamben volta à questão etimológica da

palavra, investigando sua episteme, levando em consideração os fatores

semânticos implicados no uso do termo para mais bem compreendê-lo.

O autor reforça a importância do conceito dentro dos escritos de Michel

Foucault e amplia sua contextualização. Na percepção de Agamben acerca da

abordagem que Foucault faz do termo dispositivo, o autor italiano percebe que,

antes de qualquer sistematização ou restrição de abordagem do termo, ele se

refere à relação entre os indivíduos e a história.

Nessa característica relacional, em primeiro lugar estaria a função do

dispositivo como um elo ou rede entre elementos discursivos e não-discursivos

como proposições filosóficas, leis, instituições. Esse ponto ressaltado por

Agamben é abordado por Foucault na entrevista que citamos anteriormente.

Em segundo lugar, o dispositivo se inscreve numa relação de poder e com

função estratégica. Além disso, há o dispositivo como rede entre conceitos.

Esse dispositivo abordado estabelece uma relação entre os seres

sociais históricos, as subjetivações e as regras às quais as relações de poder

estão condicionadas. Agamben aqui traça sua abordagem do dispositivo por

seu caráter historicamente constituído e a relação com a tecnologia, atentando

para os jogos de poder envolvidos.

A perspectiva etimológica frisada por Agamben vem em sua visão de

que, de modo geral, o dispositivo se refere a práticas e mecanismos materiais e

imateriais. Essas práticas e mecanismos estão ligados a uma perspectiva

histórica, há ainda uma visão teológica à qual o termo se liga e se conecta aos

estudos de Foucault. Agamben elabora questões acerca da trindade, sua

disposição trina, mesmo correspondendo a um conjunto específico de práticas,

saberes, disposições, normalizações, controles que são supostamente úteis.

À luz desta genealogia teológica, os dispositivos foucaultianos adquirem uma importância ainda mais decisiva, em um contexto em que estes se cruzam não somente com a "positividade" do jovem Hegel, mas também com a Gestell do ultimo Heidegger, cuja etimologia é análoga àquela da dis-positio, dis-ponere (o alemão stellen corresponde ao latim ponere). Quando Heidegger, em Die technik und die kehre, escreve que Ge-stell significa comumente

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"aparato" (Gerät), mas que ele entende com este termo "o recolher-se daquele (dis)por (Stellen), que dis(poe) do homem, isto é, exige dele o desvelamento do real sobre o modo de ordenar (Bestellen)", a proximidade deste termo com a dispositio dos teólogos e com os dispositivos foucaultianos é evidente. (AGAMBEN, 2005, p. 12)

Agamben avança na explicação do termo e procede à sua

recontextualização. Dessa maneira, ele elabora sua própria definição de

dispositivo como sendo

qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEN, 2005, p. 13)

Para Agamben, desde o aparecimento do homo sapiens os seres-

humanos lidam com dispositivos. Contudo, a seu ver, na sociedade atual há

uma exacerbada interação com os dispositivos a todo instante. Ele frisa ainda a

multiplicidade de dispositivos como sendo um bom ponto de observação, além

dos sujeitos por eles resultados. (PEREIRA, 2011)

Pode-se, ainda, discutir se o que há, na verdade, não é uma maior

consciência acerca dessa interação com dispositivos, o que provocaria essa

sensação de exacerbação.

Na raiz de cada dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potência específica do dispositivo. (AGAMBEN, 2005, p. 14).

Como pontuado anteriormente, os dispositivos de Deleuze e Agamben

vão se diferenciar pelas abordagens dadas, as atenções concentradas em

pontos específicos do pensamento de Michel Foucault. Enquanto Deleuze se

aproxima da relação de jogos de poderes, compreendendo a dimensão de

mecanismos de controle, para Agamben essa abordagem aparece de maneira

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mais fluida, se focando nos agenciamentos de subjetividade só possíveis pelos

dispositivos.

O autor italiano estabelece uma relação franca com as análises de

tecnologias dos dispositivos que permeiam a vida contemporânea. São sujeitos

criados a partir da televisão, da internet, da disseminação da telefonia móvel.

São mecanismos que funcionam como ferramentais de controle, não somente

como formas de subjetivação. Constituem-se, assim, como formas de vigilância

dos sujeitos.

E aqui acrescentaríamos que essa vigilância se faz por uma adesão dos

sujeitos a esses dispositivos, nessa interação entre seres viventes e aparatos,

o que tornaria sua relação estratégica e intencionalmente formulada para

escapar das intensas programações e aprisionamentos.

Poderíamos comparar esse ponto do pensamento de Agamben com a

fala de Deleuze, que cita linha de fuga. A associação voluntária com

instrumentos de controle teria, portanto, uma função política, uma função

estratégica da vida cotidiana, dessa participação do comum. Há aqui uma

exploração da ideia de resistência, de não-aceitação do que é imposto. Em

Deleuze isso se dá já nos processos de subjetivação como forma de

consequência.

2.2 O dispositivo e o cinema

A aplicação do termo dispositivo para se referir ao cinema começou a

ser feita nos idos dos anos 70. Para a visão dos autores da época, o dispositivo

do cinema levava em consideração não apenas a característica de máquina de

imagens, mas também seu espaço arquitetônico, ambiente de recepção.

Autor conhecido como um dos primeiros a trabalhar com esse termo em

alusão ao cinema, Jean-Louis Baudry lançou suas ideias em dois textos que se

tornaram marcos dos estudos de dispositivo cinematográfico. Os textos são

“Cinema: Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base” e “Dispositivo:

Aproximações Metapsicológicas da Impressão de Realidade”. Esses textos

foram publicados entre 1970 e 1975 e se tornaram célebres por caracterizarem

aquilo que Baudry vai chamar de “o aparelho de base”, ou seja, o dispositivo.

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Em ambos os textos, o autor discorre sobre a concepção imersiva e os

efeitos psicológicos provocados pela experiência cinematográfica. O primeiro

artigo trazia a questão sob um viés psicológico, discutia a formação de

subejtividade a partir da projeção cinematográfica, além de abordar questões

de cunho ideológico que envolviam a máquina-cinema. Um dos pontos sobre o

qual se deteve foi a questão dos efeitos psicológicos que o cinema teria.

Em seu conceito de dispositivo, Baudry considerava não somente as

características da imagem projetada, mas os aspectos maquínicos do próprio

aparato cinematográfico, que, em suas palavras, somados seriam o próprio

dispositivo. Outro ponto que tem espaço nesse dispositivo estabelecido por

Baudry é a questão do sujeito, ou melhor, as questões de subjetividade e o

lugar que esses sujeitos tinham dentro desse sistema de projeção. Essa teoria

do dispositivo, segundo Ismail Xavier, vinculava o aparato técnico e as

questões ideológicas, essas relacionadas à “desmistificação do sujeito e da

consciência como entidades autônomas (Marx, Nietzsche e Freud)” (XAVIER,

2005, p.175).

Importante perceber como esse ambiente de projeção e os sujeitos que

surgem daí são uma preocupação citada por alguns teóricos que se dedicam

ao dispositivo, como é o caso de Christian Metz e também de Raymond

Bellour. Segundo André Parente (2007), essa perspectiva que trata do

espectador estaria aí “para definir a disposição particular que caracteriza a

condição do espectador de cinema, próximo do estado do sonho e da

alucinação.” (PARENTE, 2007, p. 6).

No dispositivo do cinema de Baudry, a questão do espectador assume

uma perspectiva renascentista, em que esse público tende a ser o centro da

imagem, o observador. Dessa maneira, o cinema “se converte num dispositivo

ideológico ao recalcar o aparelho de base, o trabalho técnico, na sua forma de

exibição final.” (VEIGA, 2008, p.77). Baudry fala ainda das implicações

ideológicas envolvidas no cinema enquanto “formador de saber”.

Dentro desse dispositivo de Baudry, há a constituição do sujeito a partir

do olhar, além de ser levada em consideração a “participação afetiva”, as

identificações com as personagens dos filmes (XAVIER, 1983, p. 359). Já no

começo de seu primeiro artigo “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo

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aparelho de base”, Jean-Louis Baudry toma como premissa os estudos de

Freud em “A Interpretação dos Sonhos”, além do mito da caverna de Platão e

fala do estabelecimento de um modelo ótico que sirva para compreender esse

dispositivo, o aparelho de base. Dentro dessa compreensão, ele explora um

pouco da discussão acerca da situação de espectatorialidade produzida pelo

“aparelho de base”. (PEREIRA, 2011)

Em seu livro “A Interpretação dos Sonhos”, quando fala sobre os modos

de elaboração do sonho e sua organização particular, e o conjunto do

psiquismo, Freud (2013) vai traçar um modelo ótico. Esse modelo tem uma

descrição semelhante a de um microscópio. Freud acaba não se prendendo

nesse modelo, estabelecendo uma máquina de escrita, seu dispositivo psíquico

e que se relaciona com os modos de consciência do sujeito (AUMONT &

MARIE, 2009).

Há nesse abandono do modelo ótico uma reiteração da tradição

científica ocidental, com a própria aparição da câmara-escura e regimes de

pictorialidade e visibilidade. Essa pictorialidade e visibilidade estariam incluídas

naquilo que se conhece por perspectiva artificialis.

Dentro da ideia de perspectiva artificialis, ou perspectiva renascentista,

existe um direcionamento do olhar e a impressão de tridimensionalidade, o que

faz com que o espaço do sujeito seja pré-definido diante das imagens. Há aqui

uma noção de continuidade espacial e homogeneização das imagens, com o

direcionamento do olhar e estabelecimento de um ponto de vista específico

dominante, que irá conduzir o olhar do espectador.

A câmera de cinema, oriunda da câmara-escura, segue esse princípio

de perspectiva. Assim, no cinema, o olho do sujeito é direcionado para o centro

da imagem, em que há uma priorização por parte do mecanismo da câmera

daquilo que se quer que o espectador visualize ou que tenha prioridade

narrativa.

O texto de Baudry é marcado por uma análise acerca dos efeitos e

significados cinematográficos no público, a influência do filme projetado nas

pessoas imersas no dispositivo da sala de cinema, mesmo que essas mesmas

pessoas ignorassem os “dados técnicos dos quais eles dependem e das

determinações específicas destes dados.” (BAUDRY, 1983, p. 384).

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Esse pensamento de Baudry traz ainda marcas dos estudos em cinema

desenvolvidos nos idos dos anos 1970. Segundo Ismail Xavier (2005), esses

estudos levavam em conta “não só as características próprias da imagem, mas

também as condições psíquicas de sua recepção” (XAVIER, 2005, p. 175).

Jean-Louis Baudry se questionava do porquê de os meios técnicos

usados na projeção de cinema não serem levados em consideração para a

compreensão dos modos de funcionamento desse cinema. Havia uma

preocupação acerca dos efeitos que a projeção, e o dispositivo do cinema

como um todo, pudessem ter nas audiências, os sujeitos oriundos desses

processos de subjetivação proporcionados pelo dispositivo-cinema.

Dessa maneira, como proposição de abordagem, ele lança a ideia de

algo mais empírico e que considere os meios técnicos envolvidos, não apenas

as questões ideológicas conjecturadas nos estudos da época, mas uma

avaliação em que os aparatos e os modos em que os sujeitos se inseriam na

dinâmica fossem considerados como peças importantes para a compreensão

da articulação do modelo ótico cinema-sujeito como um todo.

Em outras palavras, o que Baudry propõe, ao questionar a ausência dos

meios técnicos nos estudos de cinema, é que não se façam estudos em que o

cinema e sua lógica de projeção-significação sejam meros suportes para a

análise da trama ou conteúdo dos filmes. (PEREIRA, 2011)

Há aqui uma preocupação que esses estudos percebam que a

experiência de contato com a projeção, os modos de recepção do filme, a

situação em que o sujeito é colocado diante do filme na sala de projeção, seja

considerada. Essa dinâmica arquitetônica não passa incólume ao espectador,

uma vez que é a partir de sua inserção nesse ambiente da sala escura que

suas percepções serão direcionadas.

É esse dispositivo imersivo, impositivo de ponto de visão e direção, com

som ao redor, escuro, que vai também, juntamente das imagens, compor a

experiência fílmica da sala.

Pode-se perguntar, pois, se o caráter técnico das máquinas óticas, diretamente relacionado à prática científica, não serve para mascarar não só seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar. (BAUDRY, 1983, p. 384).

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Dessa maneira, ao ressaltar a necessidade de se considerar os

elementos do “aparelho de base” como necessários para uma compreensão do

cinema, o autor estabelece uma constituição desse aparelho, que seria

integrado por processos que são eles mesmos bases constitutivas do cinema.

Assim, integram o aparelho de base a câmera, a imagem, a montagem, o

projetor e a sala escura. Com um esquema visual que esclarece esses

processos, o autor demonstra que alguns desses processos tendem a se

sobressair em relação a outros.

Dentro desse modelo de visualidade apresentado por Jean-Louis

Baudry, o aparato figura num lugar de transição entre a "realidade objetiva",

nome dado pelo autor para os objetos a serem filmados, e o resultado dessa

realidade, no caso o próprio filme. A inscrição de elementos de som e imagem

na película resulta nas imagens cinematográficas, que são o real apreendido e

convertido. Essa ação é chamada pelo autor de trabalho, ação de

transformação do material. Percebe-se uma relação de tradução intersemiótica

no modelo descrito por Baudry.

Como modo de compreender o lugar do espectador na sala de projeção,

o autor fala da centralidade do sujeito nesse esquema. É um estado imersivo e

que mostra a impossibilidade do espectador perante as imagens projetadas, o

alheamento proporcionado por essa situação.

Há uma espécie de hipnose, em que o pacto tácito estabelecido por

essa situação faz com que o espectador esteja imerso nessa situação de

projeção, só sendo “acordado” com a presença de falhas ou defeitos, situações

que o fazem desacreditar daquilo que vê na tela e que foge ao pacto de leitura

outrora estabelecido. É nesse momento de ruptura que o espectador toma

ciência da situação na qual se encontra e o ambiente imersivo é quebrado.7

7 O dispositivo de Baudry não discute isso, mas é importante ressaltar que esse tipo de ruptura

com a imersão pode ainda ser acionado em nível diegético, com elementos colocados em cena para manter o espectador acordado, consciente das situações cênicas. Uma estratégia bem comum é a quebra da quarta parede. Para Brecht (1978), essa quarta parede dá conta da mediação da história feita pelo narrador. Ao romper com essa narração, o ator interage de maneira direta com a plateia, tendo na audiência seu interlocutor direto. Esse recurso é amplamente utilizado em obras audiovisuais quando as personagens subvertem a ordem de não olhar para a câmera.

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O movimento da câmera é apontado pelo autor como sendo favorável às

manifestações de um sujeito da transcendência. Seu olho explora todas as

possíveis dimensões da imagem e não tem sua continuidade somente atrlada à

percepção corporal. É o que o autor chama de olho-sujeito. “Assim, a relação

entre continuidade necessária à constituição de sentido e o “sujeito” constitutivo

deste sentido se encontra articulada: a continuidade é um atributo do sujeito.”

(BAUDRY, 1983, p. 393).

A continuidade é definidora do espaço ocupado por esse sujeito e ocorre

de duas formas que se complementam: continuidade formal, que advém do

sistema de diferenças negadas, e continuidade narrativa no espaço fílmico. O

cinema conjuga um sistema de escrita constituído por uma base imaterial e a

negação desse próprio sistema ideológico e idealista.

Qualquer tipo de descontinuidade, seja ela formal, seja ela narrativa,

pode acarretar numa perturbação das sensações de continuidade que o

espectador tem, nos estímulo de correlação entre elementos que ele

estabelece, causando perturbações. Essas perturbações podem resultar no

rompimento com a situação imersiva em que o sujeito se encontra.

O mecanismo ideológico em ação no cinema parece, pois, se concentrar na relação entre a câmera e o sujeito. O que se trata de saber é se a câmera permitirá ao sujeito se constituir e se apreender num modo particular de reflexão especular. (BAUDRY, 1983, p. 397).

Como parte da constituição do dispositivo do cinema, esse aparato deve

ser oculto, não visualizado pelo espectador, fazendo com que sua ação se

torne imperceptível ao espectador, de modos a que não haja perturbações na

situação imersiva do processo de projeção das imagens.

No caso dos filmes que compõem o corpus desta pesquisa, o que

acontece é exatamente o oposto. A ruptura com a imersão é condicionante da

realização fílmica e por conseguinte da experiência que o espectador

estabelece com as imagens e seu processo de realização a um só tempo.

Baudry não foi o único a discutir essas questões acerca do dispositivo

cinematográfico. Seus estudos fizeram com que outras discussões fossem

travadas. Dentre elas, a discussão acerca do papel do espectador no cinema,

as questões entre cinema e psicologia, etc. Destaque aqui para os trabalhos de

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Christian Metz (XAVIER, 2003) com suas formulações acerca da relação entre

a câmera e o espectador.

Metz já inicia seu texto abordando a questão da experiência de

visualidade contida no dispositivo da sala de cinema, bem como o dispositivo-

cinema como algo amplo, que está inserido em uma indústria e cujas

produções e os modos de significação respondem às lógicas de ativação e

desativação desse sistema.

Para o autor, a compreensão do cinema passa, contudo, por perceber

que o cinema vai além desse sistema comercial. O primeiro ponto que Metz

traz para abordar isso é a voluntariedade de presença do público. Os

espectadores vão à sala por vontade própria, querem estar ali.

O outro ponto ressaltado diz respeito aos aspectos discursivos desse

cinema. Mesmo que haja uma ênfase no conteúdo, na história que o filme

conta, não se pode esquecer de seus aspectos discursivos, ou seja, como o

filme conta, quais elementos estão envolvidos nessa produção.

Dentre os elementos destacados por Metz está o fato de que os filmes e

o espaço cinematográfico da sala de exibição são pensados para que se

esqueça da situação fílmica. O espectador sabe que olha um filme e o filme

sabe que tem um espectador olhando, mas ambos firmam um pacto de

voyeurismo velado, em que se olham, se percebem, mas fingem não se

enxergarem.

Nessa modalidade de voyeurismo (regime econômico hoje estável e bem regulamentado), o mecanismo de satisfação repousa no conhecimento que tenho da ignorância de estar sendo olhado em que se acha o objeto olhado. "Ver" já não é devolver, mas surpreender algo. Este algo que é feito para ser surpreendido foi pouco a pouco se instalando e se organizando em sua função até se tornar, como por uma especialização institucional (a exemplo destas casas das quais também se diz serem "especializadas"), a história, a história do filme: aquilo que se vai ver quando se diz "vou ao cinema". (XAVIER, 2003, p. 408)

Além dos de Christian Metz, tem-se ainda os estudos que se

encarregavam de aspectos, digamos, mais discursivos do dispositivo

cinematográfico. André Parente (2005), ao tratar de uma conceituação ampla

do dispositivo, apresenta três dimensões do dispositivo cinematográfico: uma

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de nivel arquitetural; uma da ordem do discurso; e uma relativa à tecnologia,

mais especificamente na relação entre a câmera e a projeção.

Outro autor que vai discutir sobre o dispositivo no cinema, ou melhor, os

dispositivos no cinema, suas transformações e a relação de experiência que se

tem com os modos de espectatorialidade diversos e os modos de composição

da imagem audiovisual é Raymond Bellour (2012). O autor disute as várias

acepções do termo dispositivo como sendo uma implicação para se discutir o

próprio cinema. Seja na sala escura, seja visto num museu ou na tela de um

telefone móvel: a relação entre dispositivo arquitetônico/estrutural, dispositivo

narrativo e as experiências que emanam de suas conjugações vão interferir

naquilo que se conhece e se entende por cinema.

Nas produções contemporâneas e no cenário de novas possibilidades

midiáticas, ao se referir ao dispositivo no cinema, pelo menos duas noções

podem ser apontadas: a de dispositivo arquitetônico-estrutural, que demanda

uma condição física relacionada com a projeção para o seu funcionamento; e a

dimensão narrativa, que possibilita a produção dos acontecimentos no espaço

da narrativa e do mundo pelo recorte do dispositivo (PEREIRA, 2011).

A dimensão que vê no dispositivo uma estratégia narrativa é a que

interessa a esta tese. Essa noção é a apresentada por Cezar Migliorin (2005),

que aponta na formulação dos dispositivos a própria força motriz dentro da

narrativa, da condução de ações fílmicas, produtora de acontecimentos, o

leitmotiv da realização cinematográfica.

O dispositivo do ponto de vista arquitetônico vem acompanhado da

noção de “dispositivo modelo”, que está ligado a uma configuração do espaço e

do tempo, tal como define Dubois, “que valem e significam tanto ou mais por

elas mesmas quanto pelas imagens que nelas aparecem” (DUBOIS, 2004,

p.101). O dispositivo aqui é externo à narrativa, é um dispositivo da ordem da

fruição cinematográfica, do espaço da sala de cinema.

A concepção e a ativação do dispositivo é aquilo que dá início à

narrativa fílmica, estabelecida por meio de uma estrutura criada que permite

que os personagens estejam nela inseridos e por meio de suas dinâmicas de

funcionamento atuem. (PEREIRA, 2011)

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Visto por esse prisma, o dispositivo não é algo externo à narrativa, não é

algo que não interfere na realização fílmica. Antes se constitui em parte

integrante da narrativa, em agenciador dessa narrativa que acontece dentro

dos seus modos de ativação numa temporalidade e espacialidade específica.

Migliorin (2005) explica que

o artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou pré-existente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita entre um extremo domínio - do dispositivo - e uma larga falta de controle - dos efeitos e eventuais acontecimentos. (MIGLIORIN, 2005)

Nessa perspectiva de uso do dispositivo como ponto de fundamentação

da narrativa fílmica, é possível dizer que o realizador procede uma cisão na

temporalidade e espacialidade fílmica. Isso acontece porque o dispositivo

existe em uma instância de isolamento do mundo, numa estrutura de

comportamento e temporalização própria, um “presente absoluto que dá

quando o dispositivo está em ação” (MIGLIORIN, 2005).

Essa narrativa só existe enquanto o dispositivo está ativado, este

presente absoluto se desfaz quando o acontecimento é terminado e o

dispositivo desmontado.

Para Migliorin, o usos dos dispositivos se baseia no desejo das obras

que se utilizam deles de estabelecer com o real uma referência. Isso faz com

que as situações formuladas só existam na equivalência do dispositivo, num

processo de "ativação do real". Aqui há uma aproximação do conceito trazido

por Jean-Louis Comolli (2008) de realização fílmica "sob o risco do real". Aqui

não há mais questionamento sobre os padrões técnicos elementares da

produção cinematográfica.

A questão se modifica e tem como foco o que é preciso fazer para que

se tenha filme. E é neste ponto que estão os filmes-dispositivo: fazer com que

haja filme e criar condições para isso. “O dispositivo estabelece encontros da

realidade com a intervenção, supondo sempre uma relação com o real que

desconhece suas possibilidades, apontando para uma virtualidade do próprio

real” (MIGLIORIN, 2008, p.22).

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Ao falarem sobre o dispositivo nos documentários brasileiros

contemporâneos, Consuelo Lins & Cláudia Mesquita (2008) afirmam que,

assim como Cezar Migliorin apresenta,

a noção remete à criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo produtor de situações a serem filmadas – o que nega diretamente a ideia de documentário como obra que “apreende” a essência de uma temática ou de uma realidade fixa e preexistente (p.56)

Essa definição apontada por Consuelo Lins & Cláudia Mesquita (2008)

pode parecer bastante generalista e aplicável a qualquer tipo de filme.

Contudo, dentro da práxis documentária, a proposição de um modelo que crie

regras básicas para aquele projeto traz uma inovação e uma quebra dos

modos tradicionais baseados nas entrevistas e condução roteirizada dos filmes.

O termo "maquinação" será ainda utilizado pelas autoras para se

referirem ao dispositivo. Isso porque elas enxergam o estabelecimento de

bases norteadoras para a realização fílmica, regras de condução. Contudo, não

se trata de uma normatização generalizante e que estabelece uma espécie de

"receita de bolo" para a realização fílmica documentária. O que acontece é que

cada filme terá suas particularidades de atuação e necessidades. (PEREIRA,

2011)

As autoras apontam na identificação e estabelecimentos dessas

necessidades a questão da maquinação, que se adapta a cada proposição.

Assim,

a simples adoção de um dispositivo não garante, em suma, o sucesso de um filme, tudo depende de sua adequação ao assunto eleito, mas, sobretudo, ao trabalho concreto de filmagem, que a maquinação anterior dispensa (LINS&MESQUITA, 2008, p.57).

Filmes-dispositivo são “filmes propositivos que criam protocolos, regras

e parâmetros restritivos para lidar com a realidade.” (Lins & Mesquita, 2008,

p.58). Esta proposição desenvolvida pelo realizador é a própria motriz da

narrativa, do movimento, sendo dotado de capacidade para produzir os

acontecimentos, e permite que percebamos o filme articulado entre duas

vertentes: a do controle e do descontrole.

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A vertente de controle se refere à forma e às regras estabelecidas pelos

realizadores/autores/diretores como maneiras de permitir a existência do filme,

como Jean-Louis Comolli (2008) bem fala, em que é preciso se colocar “sob o

risco do real” diante de todas as roteirizações cotidianas.

Os filmes-dispositivo se colocam como uma estratégia ao mundo

roteirizado e cheio de amarrações. Esses filmes trabalham, sim, com uma

instância da roteirização, da maquinação, a ponta que fica amarrada e

evidencia perfeito controle das estruturas geradoras de acontecimentos.

Contudo, há outra dimensão, a do descontrole, a que é responsável pelo

imponderável nessa dimensão maquínica de uma estrutura pensada para fazer

com que haja filme, a dimensão da ordem do próprio acontecimento

(PEREIRA, 2011).

2.3 Dispositivos e experiência estética

Outra relação presente nesses filmes-dispositivo é a relação de

experiência que temos com as imagens. A respeito do que venha a ser uma

experiência, John Dewey (2010) nos fala que o próprio viver se constitui como

uma fonte contínua de experiências.

De um modo geral, as experiências se constituiriam nesse contato entre

os seres vivos e as condições ambientais. E que existem gradações sobre o

que venha a ser uma experiência.

Ao longo da vida, cada pessoa terá suas próprias percepções acerca

das experiências vividas, que serão próprias da forma como cada um percebe

o mundo, como se conectam com os acontecimentos. Assim, a percepção da

experiência é algo subjetivo, mas a experiência em si é objetiva. Aquilo que

afeta ou estimula uma pessoa de maneira positiva, pode ser algo que outra

pessoa tomará como um aspecto negativo ou mesmo indiferente. Daí advém a

noção de percepção.

Henri Bergson (1999) trata em Matéria e Memória de uma relação entre

o que ele chama de percepção e de afecção. A percepção aqui estaria

relacionada com a nossa ação sobre as coisas e como essas coisas agem

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sobre nós. Assim, do ponto de vista da experiência, poderíamos ver a

percepção como o contato entre os seres e o mundo.

A duração dessa percepção está relacionada com uma ação externa a

nós. Quando essa percepção é internalizada, temos o que Bergson vai chamar

de afecção. Logo, a diferença entre percepção e afecção para Bergson diz

respeito à intensidade.

Encontramos ressonância dessa diferença de grau quando pensamos a

experiência a partir de seu caráter objetivo e impessoal, como nos fala Quéré

(2010), em que a experiência se torna pessoal a partir do momento em que me

aproprio dela, intensifico a minha relação com o fato.

A experiência é impessoal e objetiva, portanto a-subjetiva, e sua personalização e subjetivação se fazem através de uma apropriação: o processo impessoal que é a experiência se torna "minha" experiência por uma interpretação ou um ato retrospectivo de apropriação, geralmente no contexto de interações sociais em que se coloca a possibilidade de reivindicar ou atribuir uma responsabilidade. (QUÉRÉ, 2010, p.19)

Isso é possível graças às diferentes condições de interações entre o

mundo circundante e essas pessoas, além de todo o referencial que cada ser

traz consigo. Logo, as experiências não devem ser consideradas isoladamente.

O que vem antes e depois, bem como o contexto do durante, tem um peso

nessa experiência.

Em uma experiência, o fluxo vai de algo para algo. À medida que uma parte leva à outra e que uma parte dá continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que dão ênfases de suas cores variadas. (DEWEY, 2010, p.111)

A experiência singular é aquela que tem uma unidade, ou seja, seus

aspectos enquanto experiência estão entrelaçados e, por mais que seja

possível determinar a prevalência de um aspecto em relação a outro, não se

podem dissociar. Assim, uma experiência pode ser mais emocional, contudo

seu caráter intelectual não pode ser esquecido.

Para Dewey, a experiência se constitui como experiência estética

quando seu impacto emocional é sentido de imediato. “A experiência estética

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não pode ser distinguida da intelectual, uma vez que esta última precisa exibir

uma chancela estética para ser completa.” (DEWEY, 2010, p.114). E mais, é

preciso haver consciência da experiência e um interesse de que ela chegue a

uma consumação.

Assim, ao relacionarmos os dispositivos cinematográficos com a noção

de experiência e de experiência estética, podemos traçar pelo menos duas

relações inerentes entre esses conceitos. A primeira relação que podemos

apresentar diz respeito às experiências-cinema. Experiências-cinema são o

que aqui chamamos das experiências proporcionadas pelo “aparelho de base”,

as experiências na sala escura do cinema, as experiências de

espectatorialidade com a projeção, com o ambiente cinema de uma forma

geral.

A segunda relação que se pode traçar é a experiência com relação às

imagens, a forma como aquelas imagens interagem com o espectador, de que

modos as imagens trazem o filme, como se dá a relação do espectador com o

filme por meio das imagens.

No caso específico de nosso corpus, em que trabalharemos filmes-

dispositivo que tem como base de seus dispositivos a explicitação do processo

de criação como parte integrante da narrativa constituída, podemos pensar a

experiência com a imagem em relação à própria experimentação do processo

de realização fílmica. Nessa imagem é possível ver a força do dispositivo

foucaultiano, a produção de subjetividades fruto dessa experiência com as

imagens.

O apagamento ou mascaramento das marcas de produção desse

cinema é substituído por um desejo de inscrever esse inacabamento como

parte da obra. Dessa forma, com essa explicitação das marcas de realização

fílmica, a imagem tende a ir se construindo diante dos olhos do espectador, à

medida que o filme avança. É uma imagem fragilizada, uma imagem movediça.

Uma imagem que nos dá a conhecer os caminhos percorridos para se chegar

àquela obra.

Dessa forma, essa imagem se torna ela mesma constituinte de uma

experiência fílmica e documento de seu próprio processo de criação. Os filmes-

dispositivo, assim, são meta-narrativas e por meio da experiência das imagens

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apresentam seu processo, sua discussão em torno do fazer cinematográfico.

Está em pauta não somente o plot, mas o próprio modo de fazer com que haja

filme.

Vemos isso em Um Passaporte Húngaro (2002, Sandra Kogut), por

exemplo, quando por vezes consecutivas a diretora-personagem entra em

contato com o consulado húngaro na França para obter informações a respeito

de seu pedido de expedição de passaporte.

A cada tentativa ou avanço dentro do processo, o filme é composto por

uma imagem titubeante, uma imagem que se apoia não só em suas próprias

características para expor esse aspecto “in progress” da obra, mas que se

reforça de elementos de montagem para tanto. Os elementos aqui utilizados

são as cartelas com as seções do formulário a ser preenchido.

A marcação visual das etapas a serem seguidas pela personagem e,

consequentemente, pelo espectador vão guiando a estruturação desse

dispositivo e apresentando o seu processo, as discussões em torno daquela

própria imagem.

Quando apresenta os itens do formulário a serem preenchidos, Sandra

Kogut traz para dentro do processo fílmico o espectador, que agora preenche

com ela essas etapas, acompanhando pela visão subjetiva da câmera de Kogut

cada cena.

Já em Moscou (2010, Eduardo Coutinho), acompanha-se o processo de

montagem de uma peça pelos atores do Grupo Galpão, grupo de teatro de

Minas Gerais. A peça em questão é “As Três Irmãs”, de Anton Tchecov, e no

decorrer do filme o dispositivo vai apresentando essa montagem da peça e a

própria construção do filme.

Interessante observar que o filme de Coutinho é uma obra de processo

sobre um processo de criação de uma obra, uma vez que não só o filme vai se

construindo como investigação da imagem, mas também a formulação das

cenas da peça.

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2.4 Dispositivo e documentário brasileiro contemporâneo

Período de consolidação da chamada Retomada do cinema brasileiro,

os anos 2000 viram surgir um aumento geral de produções, mas

especificamente um maior número de filmes-dispositivo. “A interseção com

referências e trajetórias vindas da videoarte e das artes plásticas parece

estimular a aposta em filmes propositivos que criam protocolos, regras e

parâmetros restritivos para lidar com a realidade.” (Lins & Mesquita, 2008,

p.58).

Esses filmes trazem consigo a dimensão de jogo, de interação entre

partes, propor modos de agir e cenários, explorando um caráter mais

experimental nas produções, observando diferentes modos de se articular com

o real na imagem.

Essa interação com as artes visuais e contemporâneas proporcionam

meios de surgimento para outros modelos visuais e diferentes abordagens dos

assuntos sobre os quais os filmes vão tratar. Acontece uma transformação nos

modos de ver e entender as construções de imagem e narrativa dentro do

audiovisual.

Muitas dessas produções têm como objetivo discutir a produção

documentária como um todo, seus objetivos, motivações, modos, éticas,

personagens, imagens. Assim, há um forte viés metafílmico presente nesses

filmes, um apreço pela explicitação das operações de produção do cinema,

declarando seus acordos e funcionamentos.

Outro ponto forte de discussão apresentado por esses filmes está na

participação do espectador, qual seu papel perante essas produções. O

receptor imerso em meio a um dispositivo de sala com atitude passiva deixa de

ser a visão prevista do público.

Muitos trabalhos buscarão em seus públicos a figura do que chamarão

de "interatores", nomenclatura emprestada das artes visuais instalativas. Esse

tipo de espectador vai ser buscado principalmente com os trabalhos

denomidados de "cinema expandido", que vão ocupar as salas de galerias e

espaços de arte. (PEREIRA, 2011)

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75

No que concerne à relação de dispositivo-fílmico e cinema brasileiro

documentário contemporâneo, Lins & Mesquita (2008) apontam que essa

estratégia é adotada pelos realizados quando eles têm a necessidade de

construir um modelo produtor de situações fílmicas.

Os filmes que usam dispositivos como estratégia narrativa tem como

ponto de partida o estabelecimento de concepções metodológicas, limitações e

regulações de sua ação. Essa dimensão maquinal, controlada, vai se contrapor

ao descontrole que só se evidencia quando os pontos de controle estão

ativados. Controle e descontrole agem como jogos de forças que permitem às

vontades de potência das imagens emergirem. (PEREIRA, 2011)

Cezar Migliorin (2008) apresenta o dispositivo como estratégia

fundadora do filme e de sua narração, o filme-dispositivo deriva dessa

formulação e de suas visibilidades possíveis.

O dispositivo funda o filme e não desaparece. O dispositivo é o próprio produtor do que é narrado, não deixando margem para que nada se naturalize. O olho que cria e desaparece no cinema clássico já estava novamente presente no moderno, às vezes ambíguo, chamando o espectador, às vezes incompleto, às vezes silencioso. No filme-dispositivo ele não é mais olhar; é máquina de ver compartilhada com o espectador, é máquina de habitar compartilhada com o personagem. No lugar da invisibilidade ou da visibilidade do aparato, nos filmes-dispositivo todas as relações se dão pelo dispositivo, que não cessa de apontar para as ligações potenciais. (MIGLIORIN, 2008, p. 29)

Essa noção de dispositivo relacionado ao cinema, em especial aos

filmes documentários, se articula diretamente com os conceitos de não-

roteirização apresentados por Jean-Louis Comolli (2008). Eles permitem o

estabelecimento de linhas de fuga às previsibilidades cotidianas da vida e do

próprio audiovisual.

É preciso ter em mente que a proposição de um dispositivo fílmico está

sujeita a falhas, não figurando num modo mágico e infalível de se fazer filmes.

Dispositivos não são receitas de filmes de sucesso ou de produções que de

fato vão acontecer. (PEREIRA, 2011)

A simples adoção de um dispositivo não garante, em suma, o sucesso de um filme, tudo depende de sua adequação ao assunto

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eleito, mas sobretudo do trabalho concreto de filmagem, que a maquinação anterior não dispensa. (LINS & MESQUITA, 2008, p.57).

Esses dispositivos vão se fundar naquilo que o autor chama de risco do

real. Essa condição de risco, de possibilidade, de virtualidade vai atuar como

movimento de enfrentamento aos scripts presentes no mundo que condicionam

ações, comportamentos e produzem uma ficcionalização da vida comum.

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77

3 AS IMAGENS E O DEVIR

3.1 O olhar e as imagens

O que as imagens têm a dizer O que elas demandam de seus

espectadores De que maneira elas se relacionam com o olhar e o ver É

tomando por base perguntas como essas que George Didi-Huberman (1998)

inicia seu trabalho acerca das imagens e das relações possíveis de se

estabelecer com elas.

Costuma-se pensar a imagem apenas como algo estático, como algo

concluído, uma representação cujo sentido consiste em si mesma. Ignora-se

sua potência, sua expressividade para além do quadro, sua capacidade de

realização a partir do olhar daquele que interage com ela.

A imagem está intrisecamente relacionada com o ato de ser vista, ela só

acontece enquanto relação. Há uma construção em ação e reação que permite

que se estabeleça um conhecimento da imagem por parte de quem a vê, mas

também uma demanda por visão advinda da imagem.

O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.29)

O sentido das imagens discutido por Didi-Huberman, assim, se constroi

do que de paradoxal essas imagens apresentam quando em contato com a

visão. As imagens, trabalhadas dessa maneira, incluem dentro do seu cerne

outro paradoxo, que se articula à questão da aura e da quebra da aura,

conceitos discutidos por Walter Benjamin (1985) e que são retomados por Didi-

Huberman (1998).

A noção de aura da obra de arte apresentada por Benjamin (1985) diz

respeito ao “valor de culto” que as obras carregam consigo, aos valores

imaculados dados às imagens pictóricas num momento pré-fotográfico.

As imagens eram valoradas pela sua própria existência enquanto

imagem, não pelo que podem suscitar ao existirem. Quando fala quebra dessa

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aura, o autor se remete ao próprio poder de inquietação que as imagens

adquirem, cujo caráter indicial não passa mais incólume ao espectador. Isso

marcará a relação humana com as imagens.

Ao abordar as imagens fílmicas documentárias e seus elementos de

processo de criação explicitados em quadro, essas noções apresentadas por

Didi-Huberman (1998) e Benjamin (1985) permitem que se perceba nessas

imagens outra forma de se construir um paradigma visual cinematográfico. Isso

porque, como artefato em criação, as imagens e seus processos trazem a

solicitação de participação do espectador para construção de sentido perante

as obras.

As imagens são continuamente reinstaladas, dependem do olhar do

espectador, de seu repertório para acontecerem. Esse interator, se se pode

chamar assim, integra ele também a rede de criação do filme, porque é nele

que sentidos e caminhos possíveis aparecem. Seu repertório se articula com

os do realizador, os da obra, os do processo.

Essas imagens discutem ainda a própria natureza do cinema, as

mudanças nos regimes escópicos ao longo do curso da história. Nesse sentido,

é possível ver uma correlação entre a aura e a opacidade, e a quebra da aura e

a exposição da transparência. Ao apresentar os modos de funcionamento

cinematográficos e de composição imagética, a mágica cinematográfica se

destitui. O modo de funcionamento do filme se modifica.

Para compreender essa mudança paradigmática da imagem fílmica, é

necessário que se discuta os modos de articulação da imagem no cinema. Isso

porque os filmes-dispositivo não acontecem de maneira isolada na história do

cinema, eles vão responder a uma lógica de transformação dos modos de

narrar cinematográficos identificados a partir do cinema pós-II Guerra Mundial.

Essa compreensão sobre as transformações ocorridas no cinema

permite que se realize de maneira mais clara uma análise dessas imagens-

processo aqui trabalhadas. Ao se perceber o tipo de cinema com que se está

trabalhando, torna-se possível identificar quais imagens surgem desse cinema,

a sua lógica formal e de sentido.

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3.2 As imagens no cinema

Quando Deluze (1990) trabalha as questões acerca da imagem fílmica,

ele desenvolve uma espécie de taxonomia do cinema para trabalhar as

variantes de imagens a partir de suas características e modulações narrativas.

Para ele, as imagens podem atender a dois grandes regimes visuais: orgânico

e cristalino. As imagens orgânicas serão aquelas que o autor denominará de

imagem-movimento. Já as imagens cristalinas serão conceituadas como

imagem-tempo.

Chamaremos de orgânica uma descrição que supõe a independência de seu objeto. (...) o meio descrito seja posto como independente da descrição que a câmera dele faz, e valha por uma realidade supostamente preexistente. Chamaremos, ao contrário, “cristalina” a descrição que vale por seu objeto, que o substitui, cria-o e apaga-o a um só tempo, como diz Robbe-Grillet, e sempre está dando lugar a outras descrições que contradizem, deslocam ou modificam as precedentes. (DELEUZE, 1990, p.155)

A imagem-movimento tem em si um dos princípios formuladores do

próprio cinema, o movimento. “Quando a imagem é um movimento, as

imagens, ao mesmo tempo em que se encadeiam entre elas, se interiorizam

em um todo que se exterioriza a si mesmo nas imagens encadeadas”

(DELEUZE, 1990, p.105).

A imagem-movimento se relaciona a processos narrativos inseridos num

mecanismo de diferenciação que atende a um constante processo de

diferenciação. Isso permite a formação de distintas imagens e um processo de

integração entre elas.

Essa imagem está associada ao esquema sensório-motor próprio do

dispositivo do cinema, esse esquema funciona por ação e reação. Esses

movimentos de diferenciação darão origem a outros tipos de imagem-

movimento que, por suas especificidades, recebem nomes como imagem-ação,

imagem-percepção, etc.

o cinema de ação expressa situações sensório-motoras: há personagens que se encontram nessa ou naquela situação, e que atuam, se é preciso com uma violência, de acordo com o que

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percebem. As ações se vinculam às percepções, as percepções se

prolongam em ações”. 8 (DELEUZE, 1990, p. 85-86)

Ao traçar um percurso cronológico de aparição dessas imagens,

Deleuze as relaciona com os regimes imagéticos dos cinemas produzidos num

período anterior à II Guerra Mundial. Nesses cinemas, movimento ainda estava

atrelado à ação do tempo. Nos cinemas do pós-guerra, contudo, essa relação

começa a se alterar. O movimento deixa de subordinar o tempo, e a relação se

inverte com o tempo passando a subordinar a imagem. Deleuze (1990) nos diz

que

o cinema é, a princípio, a imagem-movimento. Nem sequer se trata de uma “relação” entre a imagem e o movimento, apesar de que o cinema cria o automovimento da imagem. Depois, quando o cinema faz sua revolução “kantiana”, quer dizer, quando deixa de subordinar o tempo ao movimento, quando põe o movimento na dependência do tempo (o falso movimento como apresentação das relações temporais), então a imagem cinematográfica se converte em imagem-tempo, em autotemporalização da imagem. (DELEUZE, 1990, p.

108)9

Ao descrever o que seja a imagem-movimento, André Parente (2000) se

refere a ela como sendo o tipo de imagem “que exprime um devir no mundo”

(p.43), daí seus processos narrativos e imagéticos formularem narrativas tidas

como verídicas. Esse tipo de narrativa pressupõe um acontecimento anterior à

própria narrativa. “O acontecimento é tomado no curso empírico do tempo”

(PARENTE, 2000, p.41) e sua verossimilhança advém justamente do fato de

representar algo já passado.

Essas narrativas advindas das imagens-movimento, orgânicas, segundo

Deleuze (1990), recebem o nome de verídicas porque buscam o verdadeiro até

mesmo quando se trata de fiçção. Nessas imagens, pode-se dizer que “o

tempo é objeto de uma representação indireta na medida em que resulta da

ação, depende do movimento, é concluído no espaço. Também, por mais

8 “El cine de acción expresa situaciones sensomotoras: hay personajes que se encuentran en

tal o cual situación, y que actúan, si es preciso con una violencia, según lo que perciben. Las acciones se vinculan a las percepciones, las percepciones se prolongan en acciones.” 9 “El cine es, en principio, la imagen–movimiento. Ni siquiera se trata de una “relación” entre la

imagen y el movimiento, sino que el cine crea el automovimiento de la imagen. Después, cuando el cine hace su revolución “kantiana”, es decir, cuando deja de subordinar el tiempo al movimiento, cuando pone al movimiento en dependencia del tiempo (el falso movimiento como presentación de relaciones temporales), entonces la imagen cinematográfica se convierte en imagen–tiempo, en auto–temporalización de la imagen.”

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revolvido que esteja, ele continua em princípio a ser um tempo cronológico”

(DELEUZE, 1990, p.155).

A noção de imagem cristalina, para Deleuze, tem a ver com aquelas

imagens que vão romper com o esquema sensório-motor do imagem-

movimento. Essas imagens serão chamadas de imagem-tempo, pois passam a

apresentar situações sonoras e óticas puras “desligadas de seu prolongamento

motor: um cinema de vidente, não mais de actante” (DELEUZE, 1990, p.156).

Dentro desse regime de imagens, as personagens deixam de agir, imagem-

ação, e passam a querer “enxergar” aquilo que existe na situação a qual está

inserida.

O cinema da imagem-tempo é, para Deleuze (1996), o cinema moderno.

Isso porque elas vão responder a outros regimes de formulação, conjugação.

Essas imagens-tempo

não se definem em relação à integração, diferenciação e especificação das imagens, como para a imagem-movimento, mas pela qualidade intrínseca do que se torna imagem (seriação) e pela coexistência das relações de tempo na imagem (ordenação) (PARENTE, 2000, p.47).

Apesar de serem mais perceptíveis e presentes na produção

cinematográfica a partir do cinema moderno pós-II Guerra Mundial, Deleuze

(1990) aponta o cinema de Ozu, nos anos 30 do século XX, como um dos

precursores possíveis dessas variações. Essas mudanças, contudo, vão ser

mais visíveis realmente em filmes como os do neo-realismo italiano e da

nouvelle vague. Há nesses cinemas uma alteração mesmo nos modos como as

imagens se encadeiam e as necessidades são despertadas.

A necessidade de ação é substituída pela necessidade de visão, o que

ocasiona uma mudança no movimento, fazendo com que haja

redimensionamento de movimentos, seja pela sua fixação, seja pelo

desordenamento, exagero, multiplicidade, falta ou variação de escalas de

movimento. “O que conta é que as anomalias de movimento se tornam o

essencial, ao invés de serem acidentais ou eventuais” (DELEUZE, 1990,

p.158).

As modificações nas imagens e em seus regimes fazem com que o

tempo das narrativas também seja alterado. O tempo deixa de ser

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condicionado indiretamente como resultado do movimento, passando a se ter

uma imagem-tempo que condiciona o movimento.

Não temos mais um tempo cronológico que pode ser perturbado por movimentos eventualmente anormais, temos um tempo crônico, não cronológico, que produz movimentos necessariamente anormais, essencialmente falsos. (DELEUZE, 1990, p.159)

As imagens-tempo formulam narrativas não-verídicas. Segundo André

Parente (2000), a narrativa não-verídica, dysnarrativa10 ou falsificante, seria

aquela cujos processos narrativos/imagéticos são condicionados por regimes

de temporalização, a potência falsificadora do tempo.

Na narrativa não-verídica, o acontecimento preexiste à narrativa, esta não consiste em reportar, relatar ou comunicar uma situação presente, passada ou por vir. A narrativa não-verídica implica um ato de narração ou de presentificação, que abre a imagem e a narrativa a um presente vivo (= a qualidade do tempo), narração que introduz o tempo e a duração no acontecimento e o narrador. (PARENTE, 2000, p. 48).

Um regime de imagem que se pode perceber na imagem-tempo é a

imagem-cristal, em que o atual da imagem e o virtual coexistem segundo o

regime do tempo. O virtual dessa imagem tem a ver com a percepção dessa

imagem como possibilidade, como o que pode vir a ser. A dimensão atual

apresentada em conjunto com o virtual manifesta a natureza múltipla dessa

imagem.

Deleuze se pergunta sobre como essa imagem virtual se coloca diante

da imagem atual. O que é essa imagem “A imagem-cristal não é o tempo, mas

vemos o tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não

cronológico dentro do cristal, Cronos e não Chronos.” (DELEUZE, 1990, p.102).

Esse paradoxo presente na imagem-cristal é bastante caro a esta

pesquisa por serem os regimes imagéticos aqui analisados utilizadores dessa

mesma dinâmica entre imagem atual e imagem virtual. Imagem fílmica e

imagem em processo, imagem em devir. É possível ver nessas imagens a

relação entre o passado e o presente, o objetivo e o subjetivo. Essa

10

Conceito formulado por Robbe-Grillet

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composição dialética da imagem que se manifesta em forma de afectos e

perceptos.

O que o cristal revela ou faz ver é o fundamento oculto do tempo, quer dizer, sua diferenciação em dois jorros, o dos presentes que passam e o dos passados que se conservam. De uma só vez o tempo faz passar o presente e conserva em si o passado. Há portanto duas imagens-tempo possíveis,uma fundada no passado, outra no presente. Ambas são complexas e valem para o conjunto do tempo. (DELEUZE, 1990, p.121)

Dos modos de composição da imagem-cristal, pode-se destacar a

situação em que se tem o filme dentro do filme. Quando se tem essa relação

metafílmica, existem necessidades que justifiquem o emprego desse

procedimento. Não é apenas uma questão estética, um recurso discursivo

aplicado no regime da imagem. Essas imagens que falam dos próprios

procedimentos fílmicos, discutem sua própria natureza, tem um propósito que é

especificado pelo próprio curso das imagens.

Quando se aborda as imagem-cristal dos filmes-dispositivo aqui

trabalhados, é essa dimensão do filme dentro do filme que se busca destacar.

Nesses filmes, o uso dos recursos metafílmicos e processuais acontecem não

apenas por uma questão estética. Antes, há uma aposta que passa por uma

discussão política e por uma ética, além de seu potencial estético.

Os filmes-dispositivo tem na explicitação dos processos criativos uma

condição de existência, uma dimensão do possível. O dispositivo acontece

entre controle e descontrole, e é esse paradoxo que permite que as imagens

processuais aconteçam.

Elas não podem ser desconsideradas do filme, uma vez que elas são

também o filme, nesse exercício duplo de existência que remete à própria

relação do processo criativo, que transita entre a liberdade da criatividade e os

condicionamentos dos projetos artísticos. E na imagem isso aparece pela

relação entre a imagem-fílmica e a imagem-processo, que são o duplo de uma

mesma imagem, como que num movimento de espelhamento que permite uma

ação de reflexão ao longo do tempo.

Os modos como dispositivo fílmico, processo de criação e imagem se

articulam guardam uma relação de semelhança com as explicações

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apresentadas por Deleuze (1990) acerca dos modos de interação que a

imagem-cristal apresenta.

A imagem-cristal tem estes dois aspectos: limite interior de todos os circuitos relativos, mas também invólucro último, variável, deformável, nos confins do mundo, para além dos movimentos do mundo. O pequeno germe cristalino e o imenso universo cristalizável: tudo está compreendido na capacidade de amplificação do conjunto constituído pelo germe e pelo universo. As memórias, os sonhos, até mesmo os mundos são apenas circuitos relativos aparentes que dependem das variações desse Todo. São graus ou modos de atualização que se repartem entre esses dois extremos, o atual e o virtual: o atual e seu virtual no pequeno circuito, as virtualidades em expansão nos circuitos profundos. E é de dentro que o pequeno circuito interior comunica com os profundos, diretamente, através dos circuitos apenas relativos. (DELEUZE, 1990, p.102)

Particularmente, é possível perceber em sua descrição uma

aproximação do modelo relacional dos elementos da rede de criação

apresentada por Cecília Salles (2008b), em que a obra é estabelecida como

um todo complexo composto de partes articuladas e que funcionam em

condição relacional. Percebe-se também uma aproximação com os modos de

articulação do próprio dispositivo fílmico como estratégia narrativa descrito por

Migliorin (2008).

A análise desses regimes de imagem, observando a sua natureza mútua

de imagem e documento de processo, só é possível quando se compreende os

modos particulares de funcionamento dos dispositivos e os caminhos trilhados

pelos seus processos criativos.

Ao analisar um filme, em geral, costuma-se se debruçar sobre todas as

informações disponíveis e recorrer à pesquisa de fontes externas que

complementem as lacunas que se julga haver na construção de um texto.

Busca-se informações sobre sua produção, orçamento, vida pregressa do

diretor, enfim, faz-se um levantamento a lá IMDB11.

11

Internet Movie Database, é um site reconhecido por listar informações acerca de produções audiovisuais tais como filmes, séries, propagandas, etc. Suas listagens incluem as fichas técnicas e de produção dos filmes, fotografias de bastidores, fotografias de lançamentos, bem como sinópses e críticas, além de lista de premiações. Além do banco de dados das produções audiovisuais, existem informações para cada profissional da área do audiovisual e seus currículos. Atualmente o IMDB figura como um dos maiores bancos de dados sobre as produções audiovisuais e tem notável credibilidade entre o meio. O endereço de acesso do site é http://www.imdb.com/.

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Quando se trabalha com a análise de processo de criação audiovisual, a

essas informações são adicionados materiais que remontem aos percursos da

obra, os chamados documentos de processo de criação.

Como já mencionados, esses documentos de processo não tem uma

forma específica, já que variam de produção para produção, acompanhamento

do modus operandi dos realizadores e de suas equipes. Nos estudos de

processo de criação no cinema, duas vertentes de recolhimento desses

materiais tem se estabelecido como padrão.

A primeira forma tradicionalmente utilizada para trabalhar com os

processos audiovisuais é a que remete ao modelo padronizado pela crítica

genética. O acesso aos documentos de processo da obra só são permitidos ao

pesquisador após o momento em que ela é entregue ao público, após seu

lançamento.

Dessa maneira, o pesquisador realiza um trabalho minucioso de

descoberta de materiais, de investigação em arquivos do realizador e

catalogação de dados que possam de fato ser considerados como documentos

de processo válidos para a pesquisa.

Nesse tipo de trabalho, o analista vai se debruçar diante de um mosaico

de elementos, cujos encaixes de peças ele vai inferir a partir da análise

individual dos materiais. Após essa análise inicial, ele pode começar a

composição da rede de criação (SALLES, 2008) e proceder à crítica de

processo de criação.

A segunda maneira que se pode citar é o trabalho de acompanhamento

da obra em curso, com o analista participando do set de filmagens. Esse tipo

de coleta de dados pode ser associado a uma prática etnográfica, à primeira

vista, se se pensar que o pesquisador vai ao campo e registra as atividades de

produção no momento de seu acontecimento.

Além de seus registros in loco, ele pode ter à sua disposição materiais

cujo processo de elaboração ele acompanhou seja nas reuniões com a equipe

de produção, seja nos momentos de gravação, tais como as ordens do dia12,

12

Ordens do dia são documentos de planejamento diários elaborados pela equipe de produção de um filme ou produto audiovisual. Nelas estão determinadas a agenda do dia, com horários e programações pré-determinadas, os profissionais envolvidos naquele dia de trabalho, as sequências a serem realizadas, as locações, equipamentos a serem utilizados, figurinos, enfim,

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relatórios de continuidade13, boletins de som14, sequências de roteiro com

anotações dos atores ou do diretor, storyboards, versões do roteiro,

decupagem técnica das cenas, versões brutas e cortes do filme.

Com essa forma de se obter materiais sobre o processo de criação, ao

acompanhar a realização do filme, o pesquisador se torna ele mesmo um

produtor de documentos acerca daquela produção. Ele constrói uma noção em

torno dos documentos e da própria obra que só é possível porque ele esteve

presente nos momentos de realização.

Essa proposta de trabalho se aproxima do que é preconizado pelos

estudos de Etnomedologia (COULON, 1995), em que a construção dos

sentidos se apresenta pela vivência dos fenômenos.

Esses modos de se pesquisar e analisar os processos de criação,

contudo, vão se valer sempre de elementos que são externos ao filme, de

informações que, em muitos casos, não estão dadas na obra.

Eles são aplicáveis e extremamente válidos para modelos de produção

ancorados numa perspectiva mais clássica da realização fílmica, audiovisual.

Seja ela ficção ou documentária, a obra não apresentará em si essas

referências e despertará o interesse por se descobrir mais a respeito da sua

realização. São modelos de criação ancorados pelo já citado regime escópico

da transparência.

Contudo, notou-se na produção audiovisual documentária

contemporânea a utilização de uma maneira mais preponderante de recursos

estéticos que permitem um visionamento que vá além da mimese com o

mundo, da representação que conduz a uma interpretação de sentidos em que

tudo que sirva de direcionamento para a atividade da equipe naquele dia específico. A ordem do dia é um instrumento fundamental na produção de um filme por servir de mensurador econômico, do ponto de vista da distribuição dos recursos, e também criativo, por organizar e distribuir as partes da produção pela quantidade de tempo que se tem para executar. 13

Produzidos pela equipe de continuidade do filme, como o próprio nome diz, tem por função registrar os momentos de pausa das cenas, detalhes técnicos. Registra ainda quais cenas gravadas foram aprovadas e quais foram descartadas e os motivos. Ele é de fundamental importância nos momentos de edição e montagem do material, uma vez que ao se guiar por esse relatório, pode-se ir para momentos específicos das gravações, sem ter de assistir ao total completo de horas brutas filmadas. 14

Elaborados pela equipe de direção de som, tem função semelhante à do relatório de continuidade ao demarcar quais pistas de áudio são as desejadas e a quais trechos e personagens se referem.

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87

a forma fílmica não está mais tão diluída em favor dos conteúdos e temas

sobre os quais os filmes se debruçam.

Assim, percebe-se uma ruptura declarada com o modelo de cinema

clássico, uma reconstrução do moderno com outros estabelecimentos de

paradigmas que vão se basear na exposição das texturas, nas camadas

opacas.

No clássico, os procedimentos e os olhares se subordinam ao drama; é um cinema “orientado para a personagem” (expressão de David Bordwell) que procura prender o olhar a motivos que têm o drama como centro e impedem que o espectador perceba que “as folhas se movem”. No cinema moderno (versão europeia), há um movimento de reposição daquela dimensão da imagem pouco ou nada explorada pelo clássico. Renova-se a atenção ao dispositivo e pergunta-se de

novo “o que é o cinema”. Vem ao centro o “o que lhe é próprio”, seja a ambigidade do real (Bazin e os fenomenólogos), o lírico-poético (Pasolini), a imagem-tempo (Deleuze) ou a imagem-figura (Jacques Aumont). (XAVIER, 2008, p.194)

Como um dos modos possíveis de articular essa opacidade da imagem,

de fazer surgir em cena elementos que articulam sensos estéticos, éticos,

políticos, o cinema dos dispositivos internos aos filmes se apresenta. É por

meio do estabelecimento de dispositivos fílmicos como uma estratégia narrativa

que muitos realizadores vão trabalhar as discussões entre suas camadas

imagéticas. Como trabalhado no capítulo anterior, o cinema do dispositivo

permite estabelecer outras articulações entre movimento e tempo. Ele não

reproduz mais imagens, ele é essas imagens.

Ao se perceber que tais obras trazem consigo características peculiares

quanto aos modos de feitura fílmica, observou-se quais os resultados dessas

estratégias. Que tipo de filmes resultam desse cinema Quais discussões

essas imagens trazem O que é esse cinema

Todas essas perguntas se articulavam com compreender o dispositivo

particular de cada filme e enxergar nas imagens os elementos declarados de

seus percursos de realização.

No entanto, estudar essa articulação de imagens fílmicas e do que aqui

se chamará de imagens-processo à luz das práticas estabelecidas

tradicionalmente pelos estudos de processo de criação não se mostrava como

uma perspectiva viável. Isso porque tais imagens são inundadas por um

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dinamismo construtivo que está pleno de potência. Ao trabalhar essas obras

apenas como um elemento norteador do mosaico a ser construído com base

em seus documentos, era visível a ruptura que se estabelecia na apreensão

dos sentidos do filme em devir.

Para o caso particular desses filmes, eles mesmos precisavam estar

presentes nas análises, uma vez que essas imagens-processo também estão

contidas na imagem fílmica. Entender os meandros da criação audiovisual aqui

passa por entender o filme. Há neste trabalho uma percepção de que três tipos

de análises simultâneas se procedem: análise das imagens, análise dos

encadeamentos narrativo-dramáticos e análises de processo.

Assim, pensando nessa dinâmica de trabalho, a dimensão de coleta de

dados passa a se realizar no visionamento do próprio filme. É nessas imagens

com seus múltiplos que a análise fílmica processual vai encontrar os seus

documentos investigativos.

É pela força do que resiste de processual à montagem que se descobre

as possibilidades do filme e se entende que os caminhos ali apresentados

estão ali por uma necessidade, uma vez que o filme se faz deles, por eles, com

eles.

Para isso, dentro do que aqui se chama de análise fílmica processual,

levar-se-á em conta os seguintes critérios: utilizar apenas o filme como objeto

de análise; analisar processo e obra a um só tempo; identificar os dispositivos

fílmicos e os modos como o processo se articula na obra; levar em

consideração as particularidades dos dispositivos fílmicos na análise. Esses

critérios foram estabelecidos a partir da hipótese seguida por esta pesquisa.

Quantos ao procedimentos, o primeiro momento da análise se dá pelo

uso da descrição dos dispositivos, do processo e das cenas. Assim é possível

apresentar um panorama do objeto em análise para que o leitor se familiarize

com os aspectos mais básicos do filme em questão e possa assim acompanhar

os movimentos da análise.

Posteriormente a essa atividade de descrição, o passo seguinte está em

identificar quais elementos internos ao filme podem ser considerados

documentos de processo e apresentar como esses elementos se articulam com

os dispositivos construídos pelos realizadores. Trata-se aqui de trabalhar os

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modos como os tipos de dispositivo estabelecidos propiciam a explicitação do

processo criativo e atuam no cerne da construção das imagens.

Para essa etapa é fundamental um entendimento sobre o próprio

funcionamento da produção cinematográfica, particularmente os modos de

criação documentária contemporânea, uma vez que há uma peculiaridade nos

modos criativos dessa prática fílmica no que concerne às variantes abordagens

de personagens, os modos de narrar, a ética documentária, os recursos

próprios de imagens utilizados.

É importante pensar nessa particularidade porque assim como cada

dispositivo tem seu caráter único, os processos criativos disparados por esses

dispositivos respondem a essa unicidade.

A análise que se sucede a esses procedimentos se faz ao relacionar-se

a descrição e a identificação de todos esses elementos, percebendo os

comportamentos das imagens e a possibilidade de se acessar o processo

fílmico tomando o filme como esse duplo concomitante: obra e documento.

Com as análises a seguir, o que se apresenta é justamente esse modelo

em funcionamento, essa perspectiva que enxerga esse duplo, esse múltiplo na

obra fílmica que também é documento de si mesma, sem que se necessite

recorrer a informações outras além daquelas que os filmes já apresentam.

O corpus desta pesquisa é composto pelos filmes Câmara Escura

(2012), de Marcelo Pedroso; Moscou (2010), de Eduardo Coutinho; 33 (2003),

de Kiko Goifman; e Um Passaporte Húngaro (2002), de Sandra Kogut.

A escolha desses filmes para integrarem o corpus da tese se dá porque

ambos apresentam sua articulação via dispositivo e se utilizam da explicitação

do processo como modo de existência. As imagens desses filmes só existem

enquanto processo, enquanto composições visuais e sonoras atravessadas

pelo devir.

O fato de suas datas de realização se extenderem desde o começo dos

anos 2000 até o momento atual também serve como demonstrativo de que

essas produções não ocorrem num momento isolado da cinematografia

nacional, antes têm se consolidado como formato narrativo e recorrente.

Outro fator de escolha do corpus foi a participação do diretor diretamente

ligado ao sujeito da câmera (RAMOS, 2008). Assim, esses filmes têm como

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fundamento a sua natureza processual e também se aproximam daquilo que

Nichols (2005) nomeia de documentários performáticos. Essa participação do

realizador, de sua narração em primeira pessoa, traz um caráter mais pessoal

da instância do ato criador.

Nos modos documentários, referir-se ao documentarista é uma prática

comum desde seus primórdios. O documentário, por sua dimensão geralmente

crítica, apresenta a visão de uma pessoa, é credenciada à voz de um

realizador.

Com o cinema verdade, essa presença do diretor nos filmes se tornou

ainda mais perceptível. Em Crônicas de Um Verão (1961), Edgar Morin e Jean

Rouch instituem definitivamente essa prática, essa postura mais participativa

dentro da obra, essa postura performativa. Jean Rouch é um formulador, um

teórico. Seus textos sobre etnografia e sobre cinema etnográfico já trazem

parte de sua discussão acerca da postura do realizador e sua relação com a

câmera.

Então para mim, a única maneira de filmar é andar com a câmera, levando-a aonde ela é mais efetiva e improvisando outro tipo de ballet com ela, tentando fazer isso enquanto as pessoas são filmadas. Eu considero essa dinâmica de improvisação como uma primeira síntese do cine-olho de Vertov e da cãmera participativa de Flaherty. Eu costumo comparar isso com a improvisação de um toureiro diante do touro. Aqui, como lá, nada é previamente conhecido; a suavidade da tourada é bem semelhante à harmonia de uma tomada em traveling que articula perfeitamente os movimentos que estão sendo filmados. Em ambos os canos, é uma questão de treinamento, dominando os reflexos como um ginasta. Assim, ao invés de usar o zoom, o cameram-diretor pode realmente chegar ao sujeito. Conduzindo ou seguindo um dançarino, padre, ou artesão, ele não é mais ele mesmo, mas um olho mecânico acompanhado de um ouvido eletrônico. Esse é o estado de estranha transformação que toma conta do realizador que eu chamei, analogamente do fenômeno de possessão, de "cine-transe". (ROUCH, 2003, p.38-39)

15

15 For me then, the only way to film is to walk with the camera, taking it where it is most effective

and improvising another type of ballet with it, trying to make it as the people it is filming. I consider this dynamic improvisation to be a first synthesis of Vertov's ciné-eye and Flaherty's participating camera. I often compare it to the improvisation of the bullfighter in front of the bull. Here, as there, nothing is known in advance; the smoothness of a faena is just like the harmony of a traveling shot that articulates perfectly with the movements of those being filmed. In both cases as well, it is a matter of training, mastering reflexes as would a gymnast. Thus instead of using the zoom, the cameraman-director can really get into the subject. Leading or following a dancer, priest, or craftsman, he is no longer himself, but a mechanical eye accompained by an electronic ear. It is this strange state of transformation that takes place in the filmmaker that I have called, analogously to possession phenomena, "ciné-trance". (ROUCH, 2003, p.38-39)

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No cinema brasileiro, um exemplo desse tipo de participação do

realizador na obra são os filmes de Eduardo Coutinho (1933-2014). Seus filmes

se tornaram referência a um modo de filmar específico, principalmente pela

habilidade com as entrevistas. Acerca do seu modo particular de realização

fílmica, numa entrevista concedida à revista Contracampo (EDUARDO et al.,

2002) Coutinho fala de sua predileção pelas histórias e expressões individuais

das personagens e de como procede em seus filmes.

Para mim, documentário é escavar. E esse limite te inibe os vôos ideológicos e idéias pré-concebidas. Quando você tipifica uma pessoa, quando você a objetiva, você mata a singularidade da pessoa. É a destruição moral e cívica do indíviduo e do personagem. Ela não pode ilustrar uma idéia generalizada minha. Tenho de criar uma prisão para encontrar os personagens no escuro. Precisa ter esse risco porque cria um sentimento de urgência. Tenho de filmar aqui e nesse prazo. (EDUARDO et al.,2002)

Eduardo Coutinho trabalha suas cenas dentro de uma lógica que ele

auto-intitulou de aprisionamento, em que ele constroi uma circunscrição à

figura da personagem onde a profusão da fala e das histórias ganha destaque.

Ele, como realizador inserido na cena, tem papel de condutor e estimulador

dessas narrativas, a sua performance é mais gerencial do que ativa.

É o que acontece em Moscou (2010), filme que apresenta o processo de

montagem da peça As Três Irmãs (1900), de Anton Tchekhov, pelo grupo de

teatro Galpão, de Minas Gerais. O filme tem o processo de criação da peça

como mote para a sua realização. As cenas são conduzidas de modo a terem o

tom de ensaio, mas ao mesmo tempo já se concretizam pela performance dos

atores diante das câmeras.

Ao trabalhar nas cenas fílmicas a construção das cenas teatrais,

Eduardo Coutinho atua nas imagens como um coordenador, sua participação

nunca é a de sujeito da câmera. Existe certo distanciamento do centro da ação,

em que sua figura só se mostra nos momentos de reunião com a equipe.

Já nos demais filmes adotados para o corpus, e em diversos outros

filmes documentários brasileiros contemporâneos cujas estratégias narrativas

se baseiam em dispositivos fílmicos, a postura do realizador em relação ao

processo é uma postura dinâmica, ativa. Muitos desses trabalhos, inclusive, se

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baseiam em propostas auto-biográficas, como é o caso de dois dos três filmes

aqui trabalhados.

O ato de trazer a narração para a primeira-pessoa também interfere

diretamente no tipo de performance apresentada. Não existe uma terceirização

do olhar tão imponente, antes uma aproximação com quem vê, até como um

requisito de atenção às imagens. As imagens se tornam, dessa maneira, elas

próprias extensões dos corpos dos realizadores-personagens, esses sujeitos

das câmeras.

Cada obra analisada apresenta particularidades quanto à construção

dos seus dispositivos e tipos de imagem-processo que apresentam. Analisar

essa diversidade serve, ainda, como uma amostragem de confirmação da

incidência de nossa hipótese: os filmes podem servir como documentos de

processo deles mesmos e é possível estabelecer uma análise desse processo

apenas baseada nas imagens fornecidas pelas obras, sem a necessidade de

se recorrer a documentos externos.

3.3 Imagem-presente

A câmara escura é um aparato de natureza ótica. Consiste numa

estrutura que pode ser uma caixa completamente vedada. Possui em uma de

suas faces um pequeno orifício que permite a entrada de luz. Na parede

diametralmente oposta à do orifício, é colocada uma suprfície sensível à luz. A

luz que entra pelo orifício projeta uma imagem que é inscrita nessa superfície

sensibilizada.

A qualidade da imagem obtida por meio desse aparato dependerá do

tempo de exposição, o tamanho do buraco feito e do tipo de superfície

sensível. O princípio da câmara escura é precursor do funcionamento das

câmeras fotográficas. Nos modelos ópticos analógicos, as imagens obtidas por

esses aparatos se configuravam numa surpresa, num presente, sua obtenção

já significava um ganho. Havia um mistério quanto à sensibilização das

películas e os resultados visuais alcançados.

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Esse risco das imagens se apresentava como uma característica da

prática. Essas imagens estavam sempre em questão quanto à sua existência,

ao seu valor estético e de registro até o momento de sua revelação.

A imagem-presente.

[Ação]

Uma imagem levemente trêmula faz surgir em cena um conjunto de altos

edifícios apresentados numa perspectiva de vista em plongée. Por entre o

emaranhado de fios, é possível contar quatro prédios relativamente próximos

uns dos outros. Uma árvore figura à direita do quadro, permitindo que se tenha

um referencial de altura das torres. Elas ultrapassam e muito o comprimento da

planta. Em um movimento panorâmico descendente diagonal, a câmera conduz

o olhar do espectador para o lado esquerdo da tela.

Telhados, caixas d'água, cercas elétricas, pedaços de muros e até

mesmo um poste de luz vão entrando em cena. As imagens seguem em plano-

sequência. Uma casa com cerca elétrica, muro rosado que permite que se veja

um pé de boungaville em flor. As paredes revestidas de cerâmica remetendo a

um mosaico também tem um tom de rosa. Essas cores se contrastam com o

tom amarronzado do portão, da caixa de correios e do intercomunicador da

campainha. Numa composição em azulejo pode-se ler a seguinte inscrição: R.

Ir. Maria David, 136.

A câmera e quem a opera estão defronte para essa casa. Seguem com

o panorama em sentido horizontal. O titubear da imagem traz um ar subjetivo à

cena, uma vez que impedido pela lógica motriz corporal de seguir com o plano-

sequência horizontal em direção à esquerda do quadro e que permitia ver mais

um portão e o prologamento do muro contemplado, a câmera passeia de volta

para a direita da tela.

Procura-se uma estabilidade da imagem, um quadro que se experimenta

na mostração dessa fachada. À essa tentativa de estabilidade, novos

movimentos de instabilidade da imagem se inscrevem na cena. Um ir e vir de

lado a lado que parece acompanhar passos. A imagem da fachada da casa vai

sendo aproximada nesse claro movimento da câmera rumo a ela.

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À aparente sutileza dos panoramas iniciais da cena, segue uma rápida

movimentação dentro do quadro e uma aproximação dos elementos

anteriormente mostrados à distância. A imagem chega muito perto da parede,

do portão, apresenta os detalhes do olho mágico e da campainha. Passeia por

esses objetos num fluxo de idas e vindas, provocando um contraste entre os

movimentos horizontais e as formas verticais dos detalhes do portão.

Nessa sequência de movimentos rápidos, ainda em plano-sequência,

uma virada no eixo na imagem acontece e entra em quadro um close up de um

homem. É ele quem opera a câmera. É a sua perspectiva e subjetividade do

olhar que conduz o olhar de quem assiste.

Ao aparecer em quadro, numa proximidade que ocupa quase toda a tela,

ele parece investigar a câmera, observar seu funcionamento. Move um

anteparo em direção ao aparato e o quadro é mergulhado em escuridão.

Apesar da ausência de imagem, é possível ouvir o som da campainha tocar. Ao

ser atendida, recebe a seguinte mensagem: opa, bom dia! Tem uma

encomenda aqui na frente.

[Corta]

Figura 3 – Still de Câmara Escura

Fonte: DVD de Câmara Escura

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95

A cena descrita acima se trata do minuto inicial do filme Câmara Escura

(2012), de Marcelo Pedroso. Algumas famílias são sorteadas pelo realizador e

sua equipe para receberem câmeras de presente. Envoltas em caixas, as

câmeras são deixadas nas portas das casas após um aviso feito pelo

intercomunicador das campainhas das portas. No aviso, nada de

apresentações ou de explicações, restando somente um prenúncio e uma

expectativa gerada pela mensagem: “tem uma encomenda aqui para vocês, é

um presente”. No filme, quatro casas distintas aparecem recebendo os

presentes.

Vê-se em Câmara Escura (2012) a formulação daquilo que

anteriormente foi apontado como dispositivo como estratégia narrativa. No filme

é possível ver toda a formulação da proposta e a ativação do processo de

realização fílmico. O que leva a outro ponto dentro dessa observação dos

dispositivos como estratégia narrativa: o uso de imagens de processo nos

filmes. Melhor dito, as imagens de processo tornam-se elas próprias os filmes,

já que imagem fílmica e seus momentos de realização se tornam aqui

indicissociáveis.

Nessa sequência de ações apresentadas acima tem-se a faceta de

controle do dispositivo construído pelo realizador mostrado em seu

funcionamento. Essa apresentação do dispositivo e a sua forma de articulação

com o processo de criação é feita a partir da análise fílmica processual. O

espaço de ação pensado e a busca por reação. Com o tocar da campainha, há

a ativação da instância do outro em quadro, o convite ao jogo proposto pelo

realizador e seu filme.

Um dos objetivos é registrar as reações das pessoas ao aparato e

depois receber as imagens de volta, para que elas componham o filme.

Câmara Escura (2012) discute em seu dispositivo/argumento a relação das

pessoas com o medo, com a cidade, com o outro, consigo. Discute a dinâmica

de realização fílmica, seus caminhos, suas fragilidades.

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Figura 4 – Still de Câmara Escura

Fonte: DVD de Câmara Escura

[Ação]

Ao corte do plano inicial, se segue, ainda com a tela escura, um som de

manipulação de um objeto. Repentinamente, a tela é mergulhada em luz e

paulatinamente uma imagem começa a se construir em cena. É um rosto.

Dessa vez, não mais do realizador, agora tem-se um outro homem, cujo olhar

investiga o objeto encontrado. A imagem conduzida por esse homem é trêmula,

descoordenada, composta de recortes muito rápidos de sua imagem, do céu,

pedaços das paredes.

[Corta]

Ao deixar a caixa, o realizador (que também é personagem de seu filme)

e sua equipe, que filmavam tudo até ali, deixam o local, não registrando

surpresa, espanto, desconfiança ou qualquer que seja a reação dos

personagens-moradores das casas acionadas. Essas reações são registradas

pela câmera presenteada, que já havia sido deixada à porta ligada e com seu

modo de gravação ativado. São essas imagens que o realizador busca, é esse

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encontro dos homens e mulheres com o objeto invasor de suas casas por eles

não identificado.

Aqui as imagens são cruas e estão ali para registrar um processo. Seu

sentido plástico advém desse próprio estágio de imagem inacabada, frágil, em

construção, experimental. São imagens titubeantes, imagens vacilantes muitas

vezes, mas que dão conta dessa realização. O argumento aqui tem o objetivo

de estabelecer um movimento não previsto no tempo e no espaço,

proporcionando com que haja filme.

Filme de curta-metragem, Câmara Escura se lança numa longa

discussão permeada de questões que unem a prática cinematográfica

contemporânea e a vida em sociedade na contemporaneidade como motor que

alimenta essa prática. Como a presença de câmeras e gadgets tem se tornado

cada vez mais frequente nas rotinas e como esses objetos são fruto de

estranhamento uma vez que são tirados de seu contexto, que são colocados

em uma situação aparentemente nova para quem entra em contato com eles.

É o que acontece no filme.

[Ação]

O quadro apresenta uma superfície cinza. Em seguida, uma mão e uma

régua entram em cena. Pela textura da superfície cinza, percebe-se que se

trata de um material espumoso. Os elementos são mostrados em detalhe.

Outra mão entra em quadro conduzindo uma caneta marcadora preta, que

traça na espuma cinza uma linha com o auxílio da régua.

A cena é cortada para outro ângulo de visão da ação. Um contraste com

o plano-sequência inicial apresentado. A imagem é visualmente trabalhada.

Não existe nela a fragilidade da cena anterior. Planos com mãos traçando

linhas em superfícies com auxílio de régua vão se sucedendo num arranjo de

montagem que não as coloca em continuidade, mas em movimento

descontínuo.

Um estilete agora corta a espuma marcada com linhas retas. A partir dos

cortes, mãos promovem as separações dos pedações da espuma cinza em

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blocos. Um novo corte ocorre. Um tecido de tom esverdeado é entrecortado por

uma tesoura.

A imagem corta para um dos blocos cinzas de espuma que apresenta

um recorte retangular estreito em seu centro. Essa espuma é coberta com um

pedaço do tecido que foi cortado. Ele apresenta um corte que se encaixa com o

da espuma. A vista dessas cenas é em plano-detalhe.

O tecido e o recorte da espuma são cuidadosamente encaixados, com o

objetivo de revestimento. Novo corte. Uma caixa de madeira aparece em

quadro e mãos conduzem uma lixa sobre a tampa. A caixa é lixada. O plano

seguinte apresenta a caixa sendo pintada. O detalhe do pincel cuidadosamente

envernizando a caixa é apresentado.

Em seguida uma vista superior da tampa da caixa e seu pequeno fecho

frontal são mostrados. Ela é aberta e o conjunto formado pela espuma

revestida de tecido vai sendo cuidadosamente encaixado em seu interior. No

recorte no centro do forro da caixa, uma cãmera branca é encaixada. A caixa é

fechada e travada.

[Corta]

Figura 5 – Still de Câmara Escura

Fonte: DVD de Câmara Escura

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As opções estéticas de imagem utilizadas servem para identificar as

vertentes de controle e descontrole do dispositivo. De um lado, quando se trata

das imagens externas, da ação do realizador-personagem na entrega das

caixas, as imagens são trêmulas, desenquadradas, vacilantes, descontroladas.

Por outro, quando se dá a ver a formulação da caixa-presente, as composições

de cena são milimetricamente articuladas e fotografadas.

[Ação]

Com uma vista superior de cena, aparece em quadro uma máquina de

escrever com uma folha branca de papel em que palavras vão sendo

datilografadas.

“Imagine um olho não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, um olho

livre aos preconceitos da lógica da composição, um olho que não responde aos

nomes que a tudo se dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na

vida através da aventura da percepção.”

É possível ver que mais de uma cópia do escrito foi feita. As folhas são

recortadas cuidadosamente com auxílio de régua e estilete.

A cena seguinte mostra o diretor, Marcelo Pedroso, juntamente com um

rapaz. Os dois estão na rua vista na primeira sequência do filme. Andam pela

calçada e se dirigem à primeira casa apresentada, a de calçada e muros cor de

rosa. O acompanhante de Marcelo traz em suas mãos um conjunto de caixas

que parecem ser de DVDs.

Eles tocam a campainha. O quadro é composto em duas partes: por

uma parte do portão e muro da casa, mostrando interfone e caixa de correios; e

pela figura do diretor-personagem exposto em plano médio com uma parte da

rua aparecendo.

No interfone, uma voz de mulher responde. Marcelo se identifica como

"o rapaz que esteve aqui ontem". A mulher do lado de dentro da casa adverte

que está sozinha e que não vai abrir a porta para ninguém, pois seu esposo e

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filho estão ausentes, ela está sozinha. Ela prefere que marido e filho resolvam

a situação com o realizador.

Ela pergunta se Marcelo deseja deixar o endereço para que ela envie o

material pelos correios. Questiona se ele mora em Recife. Quando ele

responde afirmativamente à pergunta, seu rosto expõe preocupação e toma-se

conhecimento de que houve uma situação prévia, não registrada pelo filme, de

mal estar com a família da casa.

Marcelo argumenta que levou alguns materiais para apresentar à

mulher, mas ela reafirma que não abrirá a porta de casa para ele. Ela prefere

que ele forneça o endereço dele para que ela remeta a "fita". Quer saber onde

ele mora. Ele responde: é aqui perto, em Parnamirim. Nesse momento, a

mulher questiona: e qual é a finalidade de vocês fazerem esse filme?

Marcelo responde: olhe, é um filme, justamente, que a gente está

descobrindo aos poucos, sabe? É um filme que a gente está fazendo essa

experiência de deixar a câmera com as pessoas e conversar sobre o processo,

sabe, conhecer as pessoas, as pessoas também nos conhecerem.

Mulher: Mas assim você está é amendrontando a gente, que a gente já

vive apavorado, vocês estão invadindo uma privacidade.

Marcelo: Mas o sentimento de ontem, desse apavoramento já passou

mais, a senhora já está mais tranquila?

Mulher: Olhe, pra sincera eu não estou não, mas agora eu vou anotar

seu endereço. Você diga seu nome, seu endereço pra mandar pelo sedex...

você mora em casa ou edifício?

Marcelo: É num apartamento.

Mulher: Espere aí que eu vou buscar um papel, só um minuto. Volte a

tocar que eu vou deixar o interfone desligado.

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Enquanto a mulher desliga o interfone, o acompanhante de Marcelo

interage com ele. Não se vê sua imagem em quadro, apenas sua voz que

questiona se eles deixarão o material lá, se a mulher abrirá a porta. Ao que

Marcelo responde não saber, o colega sugere que coloquem os DVDs pela

caixa dos correios.

Marcelo concorda, acha que é uma boa ideia. O colega pede que ele

avise que vai deixar o material na caixa dos correios. Durante todo esse tempo

de cena, o enquadramento se mantém inalterado.

Após esse diálogo, a cena é cortada e há uma variação no

enquadramento, que agora apresenta uma vista frontal do portão e do muro,

com Marcelo dizendo seu nome completo e seus dados pessoais para a dona

da casa pelo interfone.

O diálogo se dá por pausas e esperas. Outro corte acontece e a câmera

agora está postada do outro lado da rua. Em quadro os muros da casa, o

portão, um operador de áudio, o colega que carrega os DVDs e Marcelo

Pedroso.

A mulher explica o porquê de sua reação ao equipamento: Você sabe,

no mundo em que a gente está vivendo, aparece um negócio desse totalmente

esquisito. Você vai pegar uma câmera, um equipamento desse pra botar dentro

duma casa, vocês estão correndo até perigo.

Marcelo diz entender os argumentos da mulher e ela questiona quem

está falando com ela, se referindo a ele como "o moreno que estava no portão".

A mulher segue falando dos tipos de perigo a que a equipe se expôs com tal

projeto, alerta que eles podem sofrer alguma represália em outra casa, se

encontrarem um "doidão" no caminho.

Durante a fala da mulher, pequenos cortes acontecem, mostrando a

duração da conversa com ela. A cena é encerrada com um plano médio

mostrando Marcelo depositar os DVDs de seus filmes na caixa dos correios da

casa e interagindo com os colegas: vamos lá?!

[Corta]

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Figura 6 – Still de Câmara Escura

Fonte: DVD de Câmara Escura

As imagens que apresentam os momentos de encontro das casas e

entrega das caixinhas parecem vasculhar o entorno da ação, tentam se

apropriar do espaço que compõe o entorno das casas. É interessante observar

que há três perspectivas de condução das cenas no filme que correspondem a

três câmeras em ação: a câmera das caixinhas, a câmera da equipe e a

câmera estéril que registra a montagem da caixa e a escritura do manifesto.

Manifesto esse que depois se saberá, quando aparecem os créditos,

tratar-se de um trecho do texto Metáforas da Visão, de Stan Brakhage. O texto

fala sobre um olhar que não atua segundo as lógicas da percepção pré-

estabelecida, que deve agir de maneira experimental, construindo suas

próprias dinâmicas de visão.

O texto verbaliza, assim, os intentos do dispositivo, esse choque de

visualidade e interpretação objetiva proporcionados pela entrega das caixas. A

reação à entrega das câmeras demonstra exatamente isso. As atitudes dos

recebedores não se encaixam no comportamento esperado diante de uma

câmera no momento histórico em que o filme foi feito, em 2012.

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103

Isso porque há uma popularização tremenda dos aparatos visuais, a

começar pela sua presença dupla na maior parte dos aparelhos celulares

disponíveis no mercado. Há ainda o fato para o próprio filme atenta em uma de

suas cenas, que é a presença de câmeras de vigilância por todos os lugares.

Isso traz uma verdadeira dimensão panóptica da visão.

Assim, o dispositivo do filme pode ser considerado um dispositivo

biopolítico (FELDMAN, 2010). Isso acontece

quando a privacidade se torna publicidade, quando a experiência se torna jogo e a vida se torna performance, estamos diante de um investimento biopolítico na vida, em sua força plástica, modulável e inesgotável, continuamente destinada a ser capturada e escapar, a se adequar e resistir, a ser otimizada e fracassar. (FELDMAN, 2010, p.122)

A ação de entrega das câmeras acontece da seguinte maneira: o carro

da equipe estaciona e dele salta Marcelo Pedroso segurando a caixa numa

mão e a câmera na outra.

Existe a preocupação de com a câmera que vai ser entregue no

momento, fazer imagens locativas da casa e de sua fachada. Isso, supõe-se,

servirá para futura identificação sobre a origem das imagens, a que casa elas

correspondem. Após essas tomadas e os testes de funcionamento das

câmeras, o diretor-personagem se aproxima da casa, toca a campainha e

guarda a câmera na caixa.

No filme as situações de controle pedem pelo descontrole da ação das

personagens. A ação é alimentada por esse contato entre os personagens e as

câmeras, pelo seu desconforto e até mesmo por suas reações totalmente

inesperadas.

Outro recurso imagético que o filme apresenta se realiza no trabalho dos

elementos sonoros. Seu som, basicamente composto por captação direta, é de

fundamental importância para evocar as imagens em criação, o curso das

cenas que são provocadas pelas caixas-presente quando abertas pelos

personagens-moradores.

Como as câmeras são deixadas com o modo de gravação ativado, antes

mesmo de ver os receptores, é possível ouvir o que se passa no ambiente

interno das casas. As reações provocadas pelo recebimento das câmeras, as

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elucubrações acerca do conteúdo do presente. O som também é o instrumento

de corporificação das personagens que existem a despeito do muro de

separação entre as casas e as ruas. É pela voz captada dos interfones que

essas pessoas existem, que penetram o espaço da diegese.

O som entra como elemento fundamental para a construção da dupla

natureza dessas imagens, para sua apresentação enquanto filme e processo,

uma vez que as imagens obtidas pelas câmeras deixadas nas casas, muitas

vezes se direcionam a elementos fixos e sem representação específica. Isso

porque os personagens-moradores, em sua maioria, apresentam uma relação

de rejeição ao artefato, até mesmo de manipular o equipamento.

Não pela sua natureza de câmera, mas por temerem se tratar de um

golpe, como em uma das cenas, em que um homem conversa com o outro

sobre o modo de manipular o aparato. Dentro de um contexto social marcado

por desconfiança e violência, uma das famílias “presenteadas” pelo realizador

encara o artefato como se se tratasse de uma bomba, explosivo, ou mesmo um

elemento de espionagem visando ao sequestro da família. Assim, câmera,

família e realizador (e com eles o próprio filme) vão parar na delegacia de

polícia, a fim de esclarecer os acontecimentos.

Após a cena de esclarecimento com a mulher da casa rosa, a cena que

se segue é de um dos trechos presentes na abertura do filme. Essa imagem

aparece aqui repetida, mas com a continuação da ação, a percepção dela se

torna diferente. Ao abrir a caixa, sem saber que o som está sendo captado, o

primeiro elemento em que o homem que abre a caixa repara é a marca da

câmera.

Ouve-se a voz masculina ler: sony. Há uma preocupação em não se

deixar capturar. Visualmente, nessas cenas, o filme existe enquanto devir, na

perspectiva não aurática da imagem, que intriga quem a enxerga, que provoca

uma curiosidade de apreensão de todos os possíveis elementos em quadro. É

a imagem-cristal mesma em funcionamento, com seus elementos óticos e

sonoros puros, aplicados à compreensão dos meandros da realização do

projeto artístico.

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A discussão da realização fílmica só é possível pela discussão da

relação entre os personagens-moradores e os artefatos. As imagens são as

mesmas, mas permitem acessar ambos os níveis discursivos.

Uma das casas escolhidas para compor o filme dá esse tom à narrativa,

uma vez que a proprietária do imóvel ao receber a câmara escura em sua porta

pensa se tratar de um objeto criminoso ou algo ameaçador. Denuncia a ação

na polícia e o espaço do filme é transportado para a delegacia, fazendo com

que o próprio dispositivo do filme reconduza o espaço e o tempo da realização.

Figura 7 – Still de Câmara Escura

Fonte: DVD de Câmara Escura

Incorporado ao filme, a abertura do inquérito e o diálogo com o policial

fazem eles também parte desse processo de criação fílmica, são mais uma das

peças do mosaico montado pelo realizador para nos apresentar o filme dentro

desse dispositivo. Os filmes-dispositivo são já pela sua natureza produções

baseadas no processo, na explicitação dos caminhos trilhados pelo filme, além

de logo de cara apresentarem as regras do jogo, deixando clara essa dimensão

meta-fílmica.

A questão policialesca e da vigilância é recorrente na fala das

personagens-moradoras e do policial. Existe uma questão que passa pelo uso

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que se faz das imagens, o que os aparatos captam de imagem, uma discussão

sobre a privacidade e a revelação de identidades.

O filme mostra pouco ou quase nada de imagens concretas de figuras

humanas. Contudo, na abstração visual apresentada em muitos momentos da

imagem existe uma força que questiona o processo de realização de um filme.

Ou melhor, o processo de realização daquele filme e a validade ou não do uso

dessas estratégias.

[Ação]

A imagem em close mostra a campainha de uma casa sendo tocada.

Quando o quadro é ampliado, percebe-se se tratar da casa rosa. Marcelo se

apresenta ao interfone como “o rapaz da câmera”.

A mulher responde ao interfone dizendo que já vai. A cena corta para

uma vista do chão e do pé de Marcelo, num claro movimento de câmera que

indica que eles não podem ser pegos filmando nada ali. Uma linha de tensão

atravessa toda a imagem. Quando se ouve a porta abrir, a voz presente em

cena é de um homem, não mais a da mulher que atendeu a campainha.

Marcelo: Estou aqui com o pessoal...

Homem: Está com a quadrilha todinha aí A troupe

Marcelo: É, o pessoal todo. A gente esteve ontem aqui, mas o senhor

não estava.

Homem: Fui resolver uns negócios lá da firma, fui também ver uma

pessoa que entendesse do aparelho. O cara botou no notebook e não tem

nada.

Uma voz de mulher chega e convida Marcelo para entrar. Mas apenas

ele, não o restante da equipe, como faz questão de ressaltar. Segue-se

acompanhando a conversa pelo áudio do microfone que Marcelo carrega. A

câmera que fica do lado de fora segue filmando o portão, o muro, cada

elemento da fachada.

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107

O casal, homem e mulher, explicam a Marcelo suas reações ao abrirem

a caixa e virem que se tratava de uma câmera. A todo tempo na fala da mulher

é retomada a questão da segurança e da ameaça que a câmera significou.

O homem reafirma ter checado que na câmera não havia “nada”, apenas

som. E diz: se tiver imagem, eu não quero imagem minha em filme seu nem

nada. Eu não autorizo, porque isso aí é um crime, o que vocês fizeram.

Enquanto o homem fala sobre a atitude do diretor ser crime, ao “tirar a

privacidade das pessoas”, a câmera que ficou do lado de fora encontra a

câmera do sistema interno de vigilância da casa rosa. Ali está ela, cercada por

uma caixinha de ferro. Protegida. Ladeada pelos fios da cerca elétrica.

Apontada para a fachada da casa, em direção à campainha.

[Corta]

As imagens que compõem o filme são imagens bem fotografadas e

roteirizadas da elaboração da caixa de presente, imagens obtidas pelo resgate

das câmeras das caixas, imagens de registro das ações de entrega e

devoluções das caixas, e a entrevista com o policial na delegacia acerca do

inquérito instaurado contra a equipe do filme.

As imagens-processo do filme podem ser apontadas como uma cama

mais superficial e à mostra na obra. A imagem-processo em Câmara Escura é

o contato permanente do espectador com a obra em curso, é preciso

naturalizar o potencial questionador dessas imagens para que se acesse a

camada narrativo-dramática do filme.

Aqui se fala em percepções de camadas da imagem como forma de

direcionamento do olhar. Contudo, esses regimes são simultâneos, são o duplo

mesmo dessas imagens atuando. É o caráter paradoxal que dá o aspecto de

presentificação desses acontecimentos. Assim, o título dado a este tópico

figura como um jogo semântico entre o sentido de surpresa e o sentido de

imagens que acontecem no momento atual.

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3.4 Imagem-origem

[Ação]

Em uma tela escura o filme começa com o som da chamada de um

telefone. O telefone toca três vezes até que alguém o atenda. Nesse momento

a imagem de um telefone aparece na tela. A voz que atende é feminina e fala

francês.

- Alô, Consulado da Hungria, bom dia!

Do lado de cá do som, outra voz feminina responde a saudação e

pergunta se uma pessoa cujo avô é húngaro tem direito a um passaporte

húngaro.

A cena corta para a imagem de um outro aparelho, agora um aparelho

de fax, e a voz da resposta agora é masculina.

- Essa pessoa é húngara, pergunta a voz masculina

- Não, meu avô é húngaro, responde a voz feminina

- Você é francesa?

- Não, eu sou brasileira.

- É... Acho que não.

A imagem corta para um terceiro telefone, distinto dos outros dois

anteriores, em que se houve mais uma vez uma voz feminina.

- O avô é húngaro?

- É.

- Pai e mãe?

- Brasileiros.

- E a mãe?

- Brasileira.

- E o pai?

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109

- Também.

- Não... um momento.

A linha fica em espera enquanto a atendente checa a informação. Uma

música de fundo vai surgindo aos poucos. A imagem fecha em fade out

enquanto a música segue tocando. Na tela escura aparecem o nome da

diretora do filme, Sandra Kogut, e do produtor, Michel David. A música segue

tocando até que a imagem retorna para o plano do telefone anterior. A

atendente então pergunta:

- Você tem os documentos que provam que seus avós eram húngaros?

- Talvez, se você me der a lista.

- Não precisa de lista. Tudo que você tiver de origem húngara. Tudo que

for húngaro e permitir reencontrar as suas origens.

[Corta]

Registrar o processo de solicitação e obtenção de um passaporte

húngaro na França por uma brasileira neta de húngaros. Essa pode ser a linha

geral que identifica o leitmotiv de Um Passaporte Húngaro (2002), da diretora

Sandra Kogut.

A realizadora-personagem é filha de brasileiros, e tem avós húngaros.

Mathilde e Nathán Lajta. Eles vieram para o Brasil em 1938, fugindo do regime

nazista que intensificava as perseguições aos judeus em todo território

europeu. A avó de Sandra, senhora Mathilde, era austríaca e, ao se casar com

Nathán, perde o direito à cidadania da Áustria e assume a cidadania húngara.

Para as necessidades do projeto, seus documentos não ajudam tanto,

mas suas lembranças e memórias são de fundamental importância. Suas

vivências aprofundam as questões sobre casa, identidade, pertencimento que o

filme evoca em seu processo de realização/busca de documentos.

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Figura 8 – A avó apresenta os passaportes húngaros

Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro

É pelo passaporte do avô, senhor Nathán, que Sandra pode ter

viabilizada a obtenção do seu próprio passaporte. É por meio do documento

desse avô que ela vai descobrindo os traços da sua família no velho

continente, os familiares, a língua, as cidades, a história do país, as origens. O

filme toca em momentos particularmente sombrios da história mundial,

períodos e ações que queriam ser esquecidas, mas acabam por ser lembradas.

É o caso do desaparecimento de registros civis na Hungria por causa da

origem judaica do governante na época do nazismo. Nesse período, era muito

comum a troca de nomes judeus por nomes mais ocidentalizados,

europeizados. Contudo, se houvesse uma consulta aos livros de registro, logo

se saberia quem havia trocado de nome e qual havia assumido. Daí, a solução

achada para quem precisava ocultar suas origens e dispunha de meios para

tanto era dar fim aos documentos.

Ainda no campo das documentações acessadas e que apresentam

consigo momentos da história, há a visita ao Arquivo Nacional Brasileiro, no

Rio de Janeiro. Nesses momentos do filme, são apresentados os documentos

referentes à entrada de imigrantes no país no ano de 1938. Por meio da visão

dos papéis e das conversas com os funcionários, toma-se conhecimento dos

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111

funcionamentos das fronteiras e aduanas brasileiras, bem como seu

posicionamento no cenário da II Guerra Mundial.

Figura 9 – Avó relatando a saída da Hungria

Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro

Uma das barreiras a ser enfrentada por Sandra diz respeito justamente

ao momento histórico e o tipo de tratamento designado aos judeus. Seus avós

possuíam passaportes que exibiam uma enorme letra K, um carimbo dado no

momento de saída da Hungria.

Esse carimbo diz respeito a uma ida permanente, a quem foi para nunca

mais voltar. Isso fez com que, teoricamente, eles perdessem a sua cidadania

húngara a partir daquele momento. Essa informação entra como elemento de

discussão narrativo-dramática, contudo, vai interferir nos percursos do projeto e

nas relações de experiência das situações pela realizadora.

[Ação]

Olhando para a realizadora, que está no canto direito do quadro, fora de

campo, a avó fala sobre o que significam os termos escritos nos passaportes.

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Mathilde: Você sabe o que é esse k? É que quando a gente foi tirar o

visto de saída da Hungria, eles botam esse K. E quando o vovô foi saindo da

sala ele ouviu ainda: "um judeu sujo a menos".

Sandra: E K quer dizer o quê?

Mathilde: Kivándorlás. Quer dizer que vai de vez.

[Corta]

Figura 10 – Busca de documentos no Arquivo Nacional

Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro

O filme tem como perspectiva visual a composição de imagens

subjetivas. Praticamente durante todo o filme, acompanha-se imagens em

primeira pessoa, com uma inserção inferida da realizadora através de

pequenos traços seus que entram em quadro e por sua voz, que é o elemento

que de fato a corporifica em cena.

Um Passaporte Húngaro constrói seu processo de criação a partir dos

seguintes procedimentos:

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1. Buscar informações e sondar fontes acerca da possibilidade de

solicitar e obter um passaporte húngaro no consulado da Hungria em

Paris.

2. Garatir a possibilidade de se obter o documento mesmo sendo

brasileira e comprovando a cidadania húngara dos avós.

3. Levantar os documentos prévios necessários que garantam a

entrada do protocolo do Passaporte.

4. Preencher os formulários do consulado em húngaro.

5. Driblar os entraves burocráticos necessários para as comprovações

de cidadania.

Esses procedimentos não estão listados em ordem de ocorrência no

filme. Eles vão sendo apresentados de maneira alternada na montagem.

Contudo, o procedimento listado no item 4, sobre preenchimento de

formulários, é escolhido como espinha dorsal narrativa e visual da

apresentação dos processos de realização do filme e de obtenção do

passaporte húngaro. Isso porque são as necessidades desse formulário que

vão guiar as ações da realizadora do filme.

As imagens são, então, montadas em sequências que atendam ao

preenchimento de uma espécie de check-list de passos a serem dados para se

conseguir o documento. Dessa maneira, para a construção do filme, há dois

tipos de imagens: as imagens que dão conta dos encontros com diversas

pessoas e fontes que ajudarão Sandra a conseguir seu passaporte húngaro, e

imagens de tom poético, que evocam certo lirismo em torno da abordagem

dada ao filme, que lida com as memórias da realizadora.

Esse tom poético, lírico, vai marcar toda a condução da história. O modo

como o processo da obra aparece explicitado também vai atender a essa

sutileza evocada pelo filme. Há uma busca por plasticidade que passa longe

das afetações, que tenta dar corpo às memórias e percursos evocados pelas

falas das personagens, necessidades do filme.

Como modo de demarcar essa diferença entre os regimes de imagens,

há a adoção de suportes e linguagens diferentes para cada um dos tipos. Para

as imagens acerca das tentativas de conseguir o passaporte, utilizou-se de

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uma câmera de vídeo, com enquadramentos em perspectiva subjetiva. A

informalidade das ações atravessa todas as imagens. São conversas,

reencontros, pesquisas, jantares, visitas ao consulado e repartições públicas

húngaras.

Figura 11 – Imagem em vídeo

Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro

Essas imagens poderiam configurar um documentário executado ao

modo clássico pelo seu conteúdo. No entanto, a estratégia de personificação

da câmera na figura da diretora, de conjugação entre sua visão e as ações

acaba conferindo outra dinâmica ao filme. Esse sujeito da câmera, como diria

Ramos (2005), se inscreve na imagem, se aproxima da cena, participa dela,

interfere no conjunto da obra.

Na figura 11, por exemplo, é possível ver a perspectiva de olhar da

realizadora ao conversar com sua avó enquanto esta examina documentos e

passaportes. Um exemplo dos modos de visão e percepção das situações que

o dispositivo proporciona. O olhar é levado na curiosidade do detalhamento dos

objetos manuseados em quadro.

A isso se somam as posições que essa câmera ocupa e o modo como o

quadro é composto. Ela acompanha a naturalidade de um diálogo. Não há um

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115

desejo de totalidade, de apresentar tudo que está no entorno. Antes, essas

imagens fixam-se em elementos e situações que correspondem a um

comportamento curioso, mas atento. As imagens vão servindo de registro para

as conversas, buscas por processos e documentos. Servem, também, para a

construção do próprio filme, que se faz enquanto devir, na obtenção dos

requisitos de que a diretora-personagem necessita.

Para as imagens mais poéticas, o recurso técnico escolhido foi o uso de

imagens em super-8. Essas imagens ganham uma textura inteiramente

diferenciada e contrastante com as imagens apresentadas em vídeo. Há

também o contraste no que diz respeito aos tipos de imagens obtidas. Essas

imagens apresentam a cidade de Budapeste com seus prédios, sua vida

cotidiana, pessoas caminhando na rua. Um exercício de visualização dos

espaços, de apresentação.

Elas guardam ainda uma referência direta com os caminhos trilhados

pelos avós da diretora quando tiveram de deixar a Hungria e ir para o Brasil,

quando estavam fugindo do nazismo. Elas acabam por dar sentido visual às

falas que aludem às memórias dos personagens.

Figura 12 – Imagem em super8

Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro

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Passam a sensação de found-footages, seja pela granulação, seja pelo

ritmo de encadeamento dessas imagens, que se assemelham às imagens das

cidades dos filmes realizados nas primeiras décadas do século XX, com a

visão dos prédios, das modernizações dos transportes e as pessoas que

circulam nesses ambientes.

São imagens que passeiam por estradas de ferro, por trêns, plataformas

de embarque e composições. Planam sobre as águas do oceano. Tentam

trazer na sua luz, na sua textura, esses espaços habitados e tão modificados,

bem como os caminhos que convergem para os sentidos aludidos pelas

memórias, registros históricos e documentos que vão sendo encaixados no

mosaico de elementos que a realizadora monta para chegar ao seu objetivo.

Em termos de operação e funcionamento, esse dispositivo como

estratégia narrativa tem como instância de controle as premissas de sua

ativação: dar entrada no pedido de passaporte húngaro e obtê-lo mesmo sendo

brasileira, neta de húngaros. A essa questão, outra faceta de controle que

surge pela apreensão do processo no filme se dá no saber que esse projeto

tinha estabelecido uma janela de tempo para acontecer. Um ano. Esse era o

tempo suposto na formulação do dispositivo como sendo suficiente para a

conclusão das ações.

Contudo, como jogo de forças que é, o dispositivo apresenta como eixo

de descontrole situações que vem como respostas a essa fixidez inicial. As

burocracias necessárias de serem atendidas são bem mais numerosas do que

o previsto. Há um tráfego frequente entre Brasil, Hungria e Paris para

responder aos imprevistos de documentação, autenticações e até mesmo de

avaliações de idioma. E por precisar atender a tantos pré-requisitos, o tempo

do projeto acaba sendo duplicado, só havendo uma obtenção do documento

após 2 anos do pedido. O filme se inicia em maio de 1999 e termina em maio

de 2001.

Com a análise fílmica processual, pode-se perceber que as imagens-

processo em Um Passaporte Húngaro guardam na sua simplicidade a chave

para a compreensão e o entendimento dos modos de apresentação da criação

na imagem. São imagens com um forte senso de presença. No filme não se

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recorre à composição com imagens de arquivo, o que é comum em filmes

dessa natureza mais memorialística.

As imagens do filme são atravessadas por um conjunto de

agenciamentos do momento em que o filme é feito. As opções por uma câmera

mais leve, pela informalidade das conversas, por registrar todos os momentos

de busca de documentos e por haver uma inferida naturalização da relação da

câmera com as personagens filmadas é responsável por isso.

As personagens sabem que estão sendo filmadas, elas não guardam

nenhuma ilusão ou disfarçam sua relação com a câmera. A presença

subjetivada da realizadora e a revelação dos usos de aparatos também dão a

saber esse processo.

A condição paradoxal em que as personagens estão inseridas em

relação ao tempo do filme e ao movimento também são um ponto a se

perceber. Principalmente em relação aos regimes de tempo do filme, às

temporalidades evocadas nas falas e aos ritmos de condução das imagens,

noção de tempo apresentada na narrativa.

O tempo é construído de maneira linear e progressiva, num ritmo sem

dilatações ou encurtamentos. A forma de perceber a passagem do tempo,

inclusive, vai se dando de maneira sutil na imagem. E só é concretizada a

percepção total de tempo decorrido ao final, quando se sabe da duração de

dois anos do projeto.

Um Passaporte Húngaro trabalha com um processo fílmico num filme

sobre processo. E não só isso: tudo que é apresentado no filme se configura

em construção, nada está estabelecido e fixo.

Seja a ideia do filme, que vai se alterando à medida que outras

necessidades vão surgindo, seja a identidade da realizadora, que se vê imersa

num mosaico de descobertas acerca de suas próprias origens, seja o processo

de obtenção do passaporte.

Outro ponto em processo está na própria dinâmica de continuidade que

a obra traz consigo. Esse inacabamento é também evocado pelo uso do som,

que passa de um bloco sonoro a outro sem que necessarimente haja uma

mudança na imagem.

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Há a criação de blocos autônomos, mas complementares de imagens e

som. Eles permitem uma ressignificação do visto e do ouvido a partir desse

entrecruzamento. Existe uma dimensão do inacabamento que é inerente a

essas imagens e a todo o tempo é convocada à cena.

Exemplo disso está na necessidade constante de novos documentos e

atendimento de novas demandas que surgem e exigem contatos distintos

dentro da rede de criação da obra. A cada novo elemento solicitado, novos

percursos são desbravados, mais pontos de interação entre os elementos que

compõem a rede vão acontecendo.

Essa ação é contínua e, mesmo com a obtenção do passaporte, não

deixa de ser uma possibilidade. Isso porque a certidão de nascimento obtida

pela realizadora possui um prazo de validade, que pode significar que num

futuro, quando tenha de solicitar uma renovação do documento, ela precise

passar por toda a odisséia registrada no filme.

Figura 13 – Oficial de passaporte

Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro

A outra questão está na aceitação do próprio passaporte, como mostra a

cena final. Sandra está no trem e o fiscal de imigração passando solicitando os

passaportes dos passageiros. Quando ela entrega seu passaporte, ele lhe

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questiona para onde ela vai. Ele fala em húngaro. Ela não responde. Ele insiste

e pergunta novamente. Ela sugere que se fale em inglês. Ele, com um tom

irônico e conferindo as páginas do documento, reformula a pergunta em inglês.

Ao que ela responde que está indo para Paris. Olha para ela checando a

fotografia do documento e se pergunta como ela pode não falar húngaro.

Ironiza o fato e questiona por mais documentos, pergunta se ela traz consigo

uma identidade. Ao que ela não responde, ele sai da cabine levando consigo o

passaporte, intrigado com a situação. Depois de um tempo, o homem volta e

devolve o passaporte. Despede-se e deixa que ela siga viagem.

Nos minutos em que o guarda se ausentou, colocando em xeque a

validade do passaporte, é como se se estivesse reativando o processo de

obtenção que se acreditava anteriormente encerrado. Com isso, se reativa o

dispositivo fílmico, cujo processo de construção da obra fílmica existe enquanto

existir a incompletude da obtenção do documento.

3.5 Imagem-matriz

No ano em que completa 33 anos um homem resolve que vai buscar

por sua mãe biológica. Essa busca terá a duração de 33 dias. Para encontrá-la,

ele entrará em contato com investigadores de São Paulo, cidade em que mora,

e Belo Horizonte, cidade em que nasceu. Conversará também com sua família

adotiva composta por mãe, irmã, tia e a babá que lhe criou. Findo o prazo

estipulado, encontrando ou não sua mãe biológica, o projeto se encerra. Esse é

o dispositivo formulado como estratégia narrativa para o filme 33 (2003), de

Kiko Goifman.

Na composição visual do filme de Goifman, o primeiro ponto a

chamar atenção reside na aposta estética pelo uso de uma fotografia em preto

e branco. Essa fotografia nos remete a filmes com uma estética noir, o que traz

para a camada estética o aspecto detetivesco que o dispositivo assume. O

processo de obtenção de informações, e que vai refletir nos tipos de imagens

obtidas, é revelado pela narração: nas manhãs e tardes, investigação; nas

noites, captura de imagens com pouca luz e espaços vazios.

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Figura 14 – Estética noir referenciada em 33

Fonte: DVD de 33

Há um trabalho dos contrastes de claro e escuro nas imagens que

apresentam um sentido visual que conversa, e muito, com as artes plásticas.

Dispositivo com uma característica temporal declarada desde o início, 33

apresenta uma forte ligação direta, dentre todos os filmes abordados no

corpus, com a definição em si da imagem-cristal, nesse regime da imagem-

tempo. Isso porque no filme, as imagens são extremamente subordinadas ao

tempo de que se dispõe e os processos criativos ativados na realização fílmica

e apresentados nos dão pistas de uma tentativa de lidar com esse ato de

esculpir o tempo a que o realizador se propõe.

O limite temporal imposto pelo realizador funciona como barreira

intransponível e também no sentido de limitação do potencial que o projeto

pode desenvolver. O tempo é seu viés de controle. Ele sabe onde o filme

começa e onde o filme termina. O que ele não sabe determinar é como se dá

esse término. Essa relação com o tempo aparece na sua primeira fala em off,

quando diz: “Tenho 33 anos e fui adotado por Berta, que nasceu em 1933.”

As imagens são de uma grande variação. Transitam entre planos de

detalhe, entre imagens plásticas, imagens-câmera, planos gerais. Feitas em

perspectiva subjetiva, as imagens suscitam do olho um comportamento

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investigativo que vasculhe a cena, passeando pelos contornos e formas

apresentados em escuro e claro.

Figura 15 – Claros e escuros

Fonte: DVD de 33

Os blocos imagético-sonoros do filme são apresentados em capítulos

cujos títulos são números múltiplos de três. À medida que o filme vai

acontecendo, a contagem dos dias também acontece e isso é indicado pelos

números que aparecem em forma de cartelas entre os capítulos.

No filme, as imagens apresentam a viagem até Belo Horizonte para

realização das filmagens, imagens da cidade, entrevistas. O modo de compor o

quadro é variável, mas aqui também há a mímese com o interrogatório dos

filmes detetivescos. As personagens mostradas em alto contraste de luz e

sombra, questionadas sobre detalhes do passado do realizador.

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Figura 16 – Exemplo de enquadramento nos depoimentos de 33

Fonte: DVD de 33

Juntamente com a contagem dos dias realizada em forma de

capítulos na tela, a espinha dorsal da narrativa é dada pela narração em

primeira pessoa com um tom bem pessoal do diretor. Na narração em off, ele

detalha aspectos da sua busca, apresenta detalhes que podem ou não estar

relacionados com as imagens. Existe essa dupla dimensão que é acessada em

que várias informações caminham concomitantemente nas cenas.

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Figura 17 – Cena dentro do carro: caminho

Fonte: DVD de 33

Interessante perceber que a voz de Kiko Goifman funciona de duas

formas diferentes no filme. Quando atua como narrador, o diretor assume uma

postura de onisciência sobre as imagens, ele as conhece, ele as montou, ele

as antecipa, complementa fatos. Assim, sua voz está numa dimensão da

diegese que é externa às imagens em curso. Ela funciona mesmo como uma

espécie de relatório, de documentação dos percursos do filme. Ela tem

controle, ela é o dispositivo.

Quando suas falas se apresentam na dimensão interna à diegese do

filme, sua voz em formulando questões, desejando respostas, em construção.

Tudo é descoberta, tudo é caminho, não há nada acabado, nada finalizado.

Elas personificam o sujeito da câmera em quadro. Traz para a cena esse fora

de campo que se torna tão interno. Ela sinaliza uma situação de deriva.

Situação essa que é a do próprio filme, com sua busca pela mãe biológica

através de pistas de seu passado. Essa voz reage às instâncias da memória

dos entrevistados, se posiciona de acordo com o que acontece. Ela é o

descontrole, ela é processo.

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Figura 18 – Primeiro frame do filme

Fonte: DVD de 33

Aos capítulos e à narração, somam-se para compor a estrutura linear

do filme um recurso de cartelas com informações sobre os passos que a busca

dá. O filme se utiliza muito da palavra escrita. Dentre os motivos possíveis pra

isso, pode-se apontar a escritura de um diário concomitante à realização do

filme.

Esse diário tem sua versão disponível online, e no momento da sua

escritura serviu de ponte de contato com pessoas, que forneciam pistas que

pudessem ajudar Kiko. Uma dessas pistas acaba até sendo mencionada por

ele no filme, demonstrando que ele recorreu a tudo quanto possível para

encontrar os rastros que viabilizassem sua busca.

A forma de abordar o tema da adoção e busca por uma mãe

biológica escolhida pelo realizador passa ainda pelo uso do humor e da ironia.

Há uma faceta de galhofa presente nas cenas que tratam do universo

detetivesco. Isso é antecipado na primeira cena do filme, que traz uma citação

de Dashiel Hammet. Já na primeira fala do narrador, ele revela que acha

engraçado o modo como as pessoas reagem ao tema de sua adoção, de que

elas se sentem especiais quando ficam sabendo disso.

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As imagens-processo em 33 tem a característica da busca incrustada

em si mesmas. É uma câmera voyeur, é uma câmera que investiga em

primeira-pessoa o mundo ao seu redor. O mundo que é observado

minuciosamente. Essas imagens apresentam momentos que em muitos filmes

poderiam ser consideradas como tempos mortos. Contudo, essas imagens

ganham vivacidade dentro da proposta do projeto artístico. Esse projeto cuja

busca final reside no encontro da própria identidade do investigador.

Kiko Goifman busca sua mãe. Ela pode estar em qualquer parte, em

qualquer espaço da cidade, na rua, na calçada, perto de uma praça, num

hospital. Cada ponto de direcionamento e condução do olhar dessas imagens é

uma construção dessa busca. Na montagem, essas imagens são colocadas de

maneira intercalada quanto ao seu ritmo, quanto às suas composições de

plano e iluminação.

Como forma de ampliar sua busca, Kiko Goifman torna o projeto

numa busca pública. Em forma de episódios, parte do material resultante da

sua procura pela mãe biológica é exibido em rede nacional no programa

Fantástico, da Rede Globo de Televisão.

Figura 19 – Kiko vendo as imagens de 33 no Fantástico

Fonte: DVD de 33

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Nesse ponto do filme, cabe atentar para o movimento de mise-en-

abyme que essas imagens provocam. Isso porque são agregadas ao filme as

imagens do próprio filme que foram exibidas na televisão. E mais que isso. O

filme apresenta o realizador assistindo essas imagens.

É o registro do processo do processo. E esse registro é a imagem

incorporada à narrativa fílmica. A visualização dessas imagens pela televisão,

essa segunda tela dentro da tela. Essas imagens só existem como uma

possibilidade, como esse curso dos acontecimentos da investigação captados

como imagem de processo.

Outro ponto do filme em que o processo de construção fílmica fica

bem evidente e tem-se mais um exemplo claro das imagens-processo, é

quando Kiko Goifman planeja a realização da cena final do filme.

Figura 20 – Último plano

Fonte: DVD de 33

[Ação]

Na imagem, com um foco retangular no meio do quadro, aparece

Kiko Goifman. Ele empunha um cigarro e conversa com a câmera num dos

raros momentos de imagem sua direta, de frente para a câmera. Ele parece

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feliz, conta que naquele dia descobriu o dia em que nasceu. Dia 2 de agosto de

1968. Essa é a data de seu nascimento, que se deu na Santa Casa de

Misericórdia de Belo Horizonte, às 22h.

Há um corte para cenas superiores da rua. Carros e pessoas

trafegandos pela noite escura. Parcos pontos de iluminação tornam o ato de

ver em investigar.

A imagem retorna à figura de kiko que diz:

- E eu pensei como último plano desse documentário o seguinte: eu

sentado, aí a Cláudinha (esposa de Kiko) vai lá e fala com a mãe. Mas fala 'ah,

não sei quê não sei quê lá" e dá um jeito que ela vem em minha direção. Só

que aí eu paro. Eu paro e ela passa direto. Isso, é fundamental ela passar

direto. O encontro ia ser o extremo do melodrama, o extremo do...Pra quê o

encontro? Tá nítido ali que eu vou encontrar ela. Depois, o que eu vou fazer é

problema meu. Não interessa mais pra quem tá assistindo.

[Corta]

O ato de planejar essa cena apresenta o curso das investigações e

do projeto. Há nessa cena uma perspectiva de desfecho, de finalização, uma

tentativa de assumir as rédeas das ações e roteirizar previamente as cenas.

Contudo, o jogo de forças que o dispositivo provoca se alimenta dessas

situações. Quanto mais controlada uma situação tenta ser, mais ela caminha

para o descontrole. É o que acontece aqui. Essa cena sintetiza os elementos

da obra e do devir de que trata a análise fílmica processual.

A busca de Kiko Goifman acaba não obtendo o resultado esperado. Sua

busca se encerra no trigésimo terceiro dia sem que ele saiba quem é sua mãe

biológica. As pistas obtidas resultaram num beco sem saída. Sua busca, a

partir dali, seguiria não-publicizada. A imagem-matriz que ele pretendia, a da

cena que diante da câmera ele roteirizava, não é apresentada.

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3.6 Imagem-cênica

[Ação]

Num fundo preto, com uma iluminação que o destaca, um homem de

barba e cabelos grisalhos aparece. Ele está sentado numa espécie de banco,

veste uma camiseta azul e um calção cinza. Despojado. Está sentado mais à

direita do quadro e interage com algo ou alguém à esquerda. Segura nas mãos

um envelope de onde saca uma imagem e explica para seu interlocutor:

- Isso aqui não é uma foto minha, é uma foto de moscou.

Ao finalizar essa fala, o homem sacode o envelope e quem opera a

câmera aplica um zoom in, de modo a mostrar de modo mais próximo a

imagem apresentada. Aproxima-se também da imagem do homem. Ele torna a

falar, agora apontando com o dedo detalhes na imagem.

- Quando eu tinha 16, 17 anos a gente ia à missa das seis e depois

descia da missa numa rua que saía aqui nessa praça e aqui está o prédio do

cinema, que uma vez quando eu visitei Moscou numas férias, cheguei lá e o

cinema estava sendo demolido. E eu sofri muito mais do que quando eu vi

minha casa sendo demolida.

[Corta]

Moscou (2010) é um filme dirigido por Eduardo Coutinho e trata da

adaptação da peça As Três Irmãs, de Anton Tchekov, pelo grupo de teatro

Galpão. O filme foi realizado entre os meses de fevereiro e março de 2008, na

cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais.

O modo de composição do filme apresenta uma lógica que busca jogar

com a dinâmica teatral e traz a câmera para dentro do quadro como uma

personagem, em diversos momentos. Os cinco primeiros minutos do filme

servem como uma apresentação daquilo que vai acontecer ao longo do filme,

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uma imersão nos modos singulares de apropriação da história de Tchekov pelo

grupo de teatro e pelo próprio filme.

Ele não é um filme dispositivo semelhante aos demais filmes que

constituem o corpus desta pesquisa. Principalmente se forem levadas em

consideração questões como a narração em primeira pessoa e a própria

situação de protagonismo dos sujeitos-da-câmera que foram relatadas nas

outras obras. Contudo, é justamente por isso que sua presença nesta pesquisa

se faz importante. Ele serve ao propósito de discutir a compatibilidade do

método da análise fílmica processual com filmes de dispositivos diferenciados

em relação ao inicialmente pensado para a análise.

Isso porque o tipo de dispositivo articulado por Eduardo Coutinho traz

em si uma peculiaridade em relação aos demais dispositivos analisados nesta

tese e aparece aqui como uma espécie de análise de controle, cujo objetivo

reside na testagem do método. O filme apresenta já no primeiro momento de

seu visionamento uma tensão com relação aos dispositivos fílmicos narrativos,

suas articulações de ação e modos de apropriação do processo de criação pela

obra apresentada ao público.

Figura 21 – Cena tomada da posição da plateia com detalhes de processo

aparentes

Fonte: DVD de Moscou

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130

Moscou permite compreender que existem gradações do que se pode

acessar visualmente do processo para uma análise cujo objetivo reside na

compreensão dos caminhos de realização da obra. Mas em que medida

Moscou se configura como documento de seu próprio processo De todos os

filmes analisados nesta pesquisa, talvez Moscou tenha sido o que mais

sutilezas e ambiguidades apresentou.

Estão em cena três níveis de percepção: a obra, o processo fílmico e o

processo teatral. Assim como os outros trabalhos aqui analisados, por diversas

vezes tais percepções se alinham de modo a agruparem as três possibilidades

de abordagem e análise, nesse tensionamento paradoxal que é a marca das

imagens aqui trabalhadas.

Num primeiro momento, até, a inclusão de Moscou no corpus foi

questionada, uma vez que suas imagens dão conta diretamente do processo

de montagem da peça As Três Irmãs pelo grupo de teatro Galpão. Havia uma

dimensão de processo clara no filme, não restava dúvida. Mas era o processo

fílmico ou o processo teatral, do qual o filme surgia como mero registro

O filme poderia muito bem ser compreendido apenas como uma obra de

registro documental sobre a criação da peça. Contudo, com um olhar mais

detido e atencioso, olhar esse próprio da condição do analista, é possível

observar detalhadamente que a peça faz parte do dispositivo como estratégia

narrativa formulado por Eduardo Coutinho.

A mise-en-scène teatral atende ao filme. E mesmo que não atendesse,

ainda caberia um exercício lógico de compreensão que admite no processo de

montagem e ensaios da peça o próprio processo de construção da imagem

fílmica, uma vez que esta só existe alimentada da realização teatral sobre a

qual se detém.

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Figura 22 – Eduardo Coutinho apresentando o dispositivo para o elenco Fonte:

DVD de Moscou

[Ação]

Uma mesa retangular com 16 lugares. Sobre a mesa blocos de papel,

jarras de vidro com água e copos de vidro. Em uma das cabeceiras da mesa,

ao fundo, três pessoas aparecem. Uma mulher e dois homens. Eles conversam

entre si algo não muito compreensível. Uma voz cujo dono não está no quadro

fala:

- Ok, Coutinho.

O Coutinho a que se refere é o diretor de cinema Eduardo Coutinho, um

dos homens na cabeceira da mesa. Ao receber o sinal afirmativo, ele confirma

que está tudo certo, chama por alguém de nome Neco para ter certeza. O

homem que está do seu lado começa a chamar pelo elenco, pelo grupo

Galpão. Uma voz de fora do quadro repete seu chamado pelo elenco e pelo

galpão. As pessoas começam a entrar em quadro e vão ocupando lugares na

mesa. Coutinho vai explicando a organização da mesa.

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- Já não tem volta, viu? Tem nome pra pessoa, tem a peça, tem lugares

aleatórios que foram escolhidos. Espero que não falte nenhum. Aqui tem um.

As pessoas vão procurando suas identificações e se assentam. Do plano

geral que mostra toda a extensão da sala e da mesa, passa-se a um plano

fechado na figura de Eduardo Coutinho, que pergunta se os atores sabem de

que peça se trata. Uma das atrizes confirma saber que se trata da peça do

Tchekov, As Três Irmãs. A intenção da montagem proposta não é fazer uma

adaptação integral do texto de Tchekov, o que se pretende é fazer algo

diferente. Dentre os que estão ali, nenhum deles aceitou dirigir o trabalho e

pediram que viesse alguém de fora. Coutinho então chamou Henrique Dias por

sugestão do grupo.

A proposta é usar alguns trechos do texto de Tchekov e uni-los com

algumas outras seleções de materiais que são externos à peça. O tempo

disponível para a execução do projeto é de três semanas. A ideia é mesmo ter

uma coisa inacabada, fragmentada que, segundo Coutinho, tem bastante

relação com Tchekov.

A imagem corta para um primeiro plano de Henrique Dias que reforça o

quão curto é o prazo de três semanas para montar uma peça. Contudo, é

preciso que as pessoas envolvidas no projeto se engajem. A ideia é ver até

onde é possível chegar em três semanas descontruindo o texto original, mas

também construindo uma visão particular dentro do material trabalhado. A

proposta de trabalhar dessa maneira vem do próprio Coutinho. As proposições

de trabalho orbitam em torno das capacidades de sentimento humano. A

junção de todos ali naquela ocasião é para ler o roteiro de maneira coletiva.

Em off, a voz de Eduardo Coutinho anuncia:

- As Três Irmãs, peça de Anton Tchekov escrita em 1900. Cenário: a

casa da família Prosorov. Lugar: Uma cidade de província a centenas de

quilômetros de Moscou. Olga, a mais velha, uma espécie de mãe substituta.

Masha, casada com um professor de ginásio. Irina, que festeja o aniversário de

20 anos. Andrei é o único irmão. Todos sonham em voltar para Moscou, onde

nasceram e passaram a infância. A família só se relaciona socialmente com os

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oficiais da brigada militar estacionada na cidade. O novo comandante da

brigada, coronel Vegine, encanta as irmãs, sobretudo Masha, que acaba se

tornando sua amante. Andrei se casa com Natasha, moça de classe inferior,

que pouco a pouco se torna dona da casa, praticamente expulsando as irmãs.

Enquanto a narração em off acontece, os atores que interpretam cada

um dos papéis citados vão sendo mostrados realizando a leitura do texto.

[Corta]

É interessante observar o uso da imagem fotográfica no filme como

modo de representação visual verossímel das histórias oralmente contadas

pelos atores. A participação dessas imagens tem muito a ver com a discussão

de memória e repetição das histórias narradas, e da própria peça ensaiada. As

fotografias estão presentes desde o começo do filme, na referência aos

espaços ditos habitados pelas personagens em seus monólogos, ou mesmo

numa das cenas de ensaio no camarim, em que as atrizes que fazem as três

irmãs passam o texto enquanto se arrumam.

Figura 23 – Fotografias no camarim

Fonte: DVD de Moscou

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As explicitações do processo de criação em Moscou são bastante sutis.

Em diversos momentos do filme elas só são perceptíveis com um olhar mais

atento que dá conta da cisão entre imagem e texto declamado, por exemplo. É

o caso da cena em que as atrizes estão se arrumando no camarim enquanto

passam seus textos.

Suas ações desconectadas de suas falas e o ambiente diverso ao

descrito pelo off de Eduardo Coutinho nas definições da peça no começo do

filme apontam para que se compreenda que esse é um momento de ensaio,

não um momento de apresentação, não um momento de palco. Isso fica ainda

mais evidente quando a atriz que interpreta Olga pega seu roteiro e checa as

falas para seguir com o ensaio.

Figura 24 – Ensaio no camarim

Fonte: DVD de Moscou

Essas cenas de ensaios, falas, improvisos são constantes e são

apresentadas na montagem do filme de modo intercalado aos momentos de

orientação dos atores pelo diretor da peça Henrique Dias. É possível fazer uma

comparação, até, do grau de explicitação do processo presente nos dois casos.

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É como se quando as cenas se concentram nos atores e em suas

interpretações o que estivesse em quadro fosse a peça em si, mesmo que

ainda em elaboração. Já quando as orientações são apresentadas é quando se

tem mais claramente a apresentação do percurso criativo da peça-filme. Assim

se compreende melhor os movimentos das ações dos atores nas cenas

anteriores e posteriores a esses momentos de orientação, em que o processo

está mais claramente exposto.

Há uma preocupação na montagem das cenas em suscitar uma

dubiedade das ações, uma vez que se trata de um filme documental de ações

ficcionais. Seu processo de criação passa mesmo pelo tensionamento do

gênero fílmico trabalhado.

Essa hibridização entra como mais um paradoxo a ser destacado nessas

imagens, uma vez que o registro em si é documental, mas o objeto do registro

é da ordem do ficcional. Ambos os regimes habitam a mesma imagem,

juntamente com os modos de obra e processo que também estão presentes

nas cenas.

Esse caráter híbrido permite uma problematização dessas imagens, uma

discussão acerca de seus conteúdos, modos de posicionamento de câmera,

elementos explicitadores de processo e composição narrativa da obra.

Enquanto objeto de uma análise fílmica processual, Moscou se apresenta

como algo extremamente desafiador.

O que inicialmente aparentava ser um filme cujas explicitações do

processo de realização fílmica pareciam inexistir, sendo apenas uma obra de

registro de uma peça, se mostra, no entanto, como um filme inteiramente

construído para discutir a criação imagética audiovisual.

A começar pelas performances dos atores, que tem na câmera uma

interlocução e não ignoram a sua presença em cena, passando pela forma

como o som é captado, deixando ruídos perceptíveis de uma captação

rudimentar. Há ainda a noção de que tudo que está posto em cena foi realizado

dentro da janela temporal de três semanas imposta por um dos mecanismos de

controle do dispositivo articulado por Eduardo Coutinho.

Uma das temáticas bastante abordadas no filme diz respeito aos modos

de criação teatrais, como os atores são estimulados a buscarem referências

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para a composição de suas personagens. É recorrente ao longo do filme o

trabalho com as memórias e sentimentos dos atores, numa busca de

correlações com o próprio texto de As Três Irmãs em que se baseia a peça.

Com isso, novamente há o uso de imagens e de memórias numa relação

de causa e efeito. Um grande álbum de família se forma a partir das descrições

apresentadas pelos atores e por suas personagens. Novamente há a mescla

do real e ficcional dentro das cenas fílmicas.

Figura 25 – Filmagem por detrás da porta.

Fonte: DVD de Moscou

Outro evidenciador do caráter inacabado, processual das imagens

apresentadas no filme, está nas escolhas dos pontos de filmagem das ações

em quadro. Há momentos em que a câmera se coloca atrás de uma porta e a

imagem é apresentada através do vidro, como na imagem acima.

Esses momentos evidenciam uma observação externa ao espaço das

ações da peça e podem ser considerados como momentos fílmicos mais

declarados, em que a peça e o filme se desmembram e suas diferenças de

espaço de cena são mais claramente perceptíveis.

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Em outras cenas, a câmera é colocada na posição da plateia, com a

visão da cena em curso de maneira afastada e permitindo que sejam vistos

microfones, detalhes de iluminação, condicionadores de ar, o diretor sentado

na ponta do palco observando as ações e até mesmo um bebedouro no canto

esquerdo do quadro.

O paradoxal das imagens de Moscou e seu modo de condução está no

fato de que quanto mais os atores encenam a peça, mais fílmica a imagem se

torna. Isso porque a câmera passeia por entre os personagens, conduz a visão

do espectador, seus enquadramentos abstraem o palco e focam nas ações

específicas, fechando mais o quadro, num esforço de síntese dos assuntos

mostrados.

Outro ponto que reforça isso são os locais inusitados das ações, que

remetem aos bastidores do teatro, às salas de elenco, às escadas e

almoxarifados. Esses espaços são tomados de cenário nessa metáfora de

progressão da montagem da peça.

Por muitos momentos ao observar o filme, sua relação com o processo e

os tipos de imagens apresentados, é possível sim ter certeza da explicitação do

processo de criação e da possibilidade de tomar essa obra como um

documento de si mesma. No filme, a estética do inacabamento é bastante

evidenciada e é preciso uma atenção para perceber que o devir, a imagem

fílmica de fato, está na forma como a narrativa é montada. Está ainda na

progressão com que os trechos adaptados da história de Tchekov vão tendo ao

longo do filme.

Se a imagem, os figurinos, os cenários dão conta do inacabamento e da

processualidade, é nas falas, gestos e ações dos atores que reside o que virá a

ser da peça. Perceber essa articulação entre os elementos que compõem o

filme faz com que simultaneamente se acompanhe ensaio, filme e encenação.

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Figura 26 – O último diálogo das irmãs

Fonte: DVD de Moscou

[Ação]

A imagem mostra em quadro duas das três irmãs. Irina e Olga. Elas

estão em imagem fechada ocupando todo o quadro.

- Olga, você ouviu?

- O quê?

- O batalhão vai ser transferido daqui, parece que pra bem longe daqui.

- Isso é boato.

- Nós vamos ficar tão sozinhas. Eu aceito, eu acho que vou aceitar casar

com o barão. Afinal de contas ele é um bom homem, eu o admiro. Aceito me

casar com o barão. Vamos pra Moscou, Olga? Vamos?! Olga! Olga! Olga!

À medida em que o diálogo ia acontecendo, o quadro ia se abrindo,

mostrando o espaço do palco ocupado pelos atores sentados em volta da

mesa e assistindo a interpretação das atrizes. Ao fim da cena, a luz que

iluminava as duas irmãs é reduzida e a voz de Eduardo Coutinho em off

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retorna. Ele vai falando e a imagem vai se dissolvendo em fade, até que o

quadro inteiro esteja preto.

- Últimas palavras da peça: Olga: o tempo passará e nós partiremos

para sempre. Vão esquecer nosso nome, nosso rosto, nossa voz. Vão

esquecer que nós éramos três. Mas o nosso sofrimento se transformará em

alegria para aqueles que virão depois de nós. A paz reinará sobre a terra e

aqueles que vivem agora serão lembrados com boas palavras e abençoados.

Minhas queridas irmãs, nossa vida ainda não terminou. Vamos viver, vamos

trabalhar.

[Corta]

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta inicial desta pesquisa se baseava numa análise das obras

fílmicas cujo processo de criação está explicitado nas imagens. Para tanto, no

começo da pesquisa, o modelo de análise a ser seguido seria o da crítica de

processo de criação, mais especificamente o modelo baseado nas redes da

criação de Cecilia Salles (2008).

Contudo, uma vez que a hipótese norteadora desta tese residia na

afirmação de que era possível acessar e compreender o processo de criação

dessas obras tomando por base apenas a imagem fílmica, sem se valer de

documentos externos à obra, o uso da crítica de processo de criação tornava-

se inviável para alcançar a completude da análise proposta.

É a partir do levantamento do estado da arte sobre estudos de processo

de criação, bem como dos estudos de análise fílmica que a análise fílmica

processual começa a se apresentar como uma necessidade. Para uma melhor

compreensão do fenômeno abordado, era preciso o delineamento de uma

abordagem metodológica que levasse em consideração as particularidades

dessas obras.

Os dispositivos e processos criativos analisados nesta pesquisa estão

incluídos dentro do que se trata por documentário contemporâneo brasileiro.

São filmes cujas proposições abrangem não somente a realização de uma

obra, mas que almejam discutir a própria capacidade do gênero, suas

vocações estéticas e seus paradoxos.

Aliás, as suas naturezas são paradoxais em diversos aspectos. A

começar pelo paradoxo mais evocado por essa pesquisa relativo à

apresentação das imagens de obra e devir num mesmo momento, processo e

seu vir a ser. Essa imagem cristalina, para citar um termo de Gilles Deleuze

(1990). Além disso, é possível apontar para outras tensões do gênero tais

como a questão da hibridização entre documentário e ficção, o fora de quadro

e o enquadrado, a ética documentária e a participação do realizador nas obras

como personagens-sujeitos da câmera.

A aposta fílmica na explicitação do processo e nessa evocação

paradoxal traz consigo uma grande discussão metalinguística que já se inicia

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com a formulação dos dispositivos, com o tracejar de elementos que vão guiar

a experiência da realização fílmica. Quando do momento da sua realização, há

o jogo constante entre as forças do controle e do descontrole, das quais o

processo, essa imagem inacabada é não somente aposta, mas se torna fruto.

Esse processo de criação cuja percepção muitas vezes é sutil e requer

do analista uma atenção para que se perceba na síntese das imagens as

potências de suas explicitações. Em diversos momentos da verificação do

método e do questionamento do corpus de análise foi preciso que se fizesse

um verdadeiro escaneamento das imagens, um visionamento que trabalha com

as perspectivas de compreensão e entendimento dos regimes visuais

(BORDWELL, 1991).

Nesta proposição de análise o ponto fundamental reside na percepção

das relações entre dispositivo como estratégia narrativa e o processo criativo

explicitado. Isso porque as imagens em processo são originárias das

formulações do dispositivo, o que faz com que seja necessária uma postura de

singularização de abordagem em cada obra.

Antes de analisar o filme ou o que se compreende acerca do seu

processo, é necessário que se compreenda os modos de funcionamento dos

dispositivos internos ao filme. Só de posse dessa compreensão dos leitmotifs é

possível que se proceda a uma análise direcionada a entender a relação ali

existente.

Dentro da compreensão dessa relação e da admissão dos filmes para o

corpus é preciso problematizar, ainda, a validade de suas imagens enquanto

documentos de processo. É mesmo possível compreender o processo de

criação dessas obras tendo como base estritamente o que elas apresentam em

si, sem recorrer a documentos outros que não os fornecidos pelo próprio filme

O que se percebe dessas obras e o acesso aos seus processos de

criação acabam por constituir uma experiência fílmica singular. É com base na

compreensão dessa experiência estética que se pode suscitar a obra como

documento dela mesma. O entendimento dessas explicitações de processo

que fazem parte mesmo da obra como sendo documentos, registros de sua

criação, é possível e válido, o que permite um aprofundamento das

experiências com os filmes.

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Ambos os filmes que compõem o corpus se mostraram de extrema

validade para um entendimento maior do método proposto, sua validação.

Além disso, permitiram uma compreensão mais ampla acerca dos modos de

criação audiovisual e as formas de levar o conhecimento desse momento

criador à obra entregue ao público.

O método da análise fílmica processual figurou, assim, como um

caminho propiciador de estudo desses filmes, parâmetros para traçar um

raciocínio cujo objetivo, dentre outros, residia no entendimento da inclusão do

processo nessas obras.

Assim, num primeiro momento foi preciso traçar uma discussão acerca

do estado da arte dos estudos de criatividade e processo de criação. Isso se

mostrou necessário como modo de entender de maneira mais conceitual os

meandros da criação artística, bem como seus instrumentos de análise.

Outro ponto de bastante relevância estava na compreensão acerca do

conceito de dispositivo como estratégia narrativa. Era de extrema necessidade

caracterizar o tipo de dispositivo a que se faz referência nesta pesquisa, uma

vez que o termo possui uma aplicação ampla e em campos diversos. Dessa

forma, dentro de diversos trabalhos que abordam conceitualmente o

dispositivo, sua relação com as imagens e o cinema, delineou-se um percurso

em que se chega à noção trazida por Migliorin (2008) de dispositivo como

estratégia narrativa, um dispositivo interno ao filme, pelo qual o filme acontece.

As correlações entre dispositivo e processo de criação, sua

problematização dentro do campo do documentário brasileiro contemporâneo

permitiram compreender melhor o fenômeno abordado. Isso porque é possível

observar nestes tipos de produções uma particularidade e uma

interdependência em relação à articulação de dispositivos fílmicos e a presença

do processo de criação nas imagens. Há ainda outro ponto a ser destacado

que diz respeito à ampliação das discussões e interesses sobre os processos

criativos das obras que estão presentes nestes filmes e são estimulados por

eles.

Com isso, outro ponto de importante discussão para a construção desse

método residia na compreensão das características dessas imagens e as

peculiaridades apresentadas nesses filmes. Afinal, o que eles tinham de

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diferente a ponto de suscitarem uma nova proposição de método Suas

particularidades residem no tipo de imagem apresentada, na posição ocupada

por seus realizadores dentro do filme, sua condução narrativa e a própria

articulação entre obra e devir.

Nesses filmes, observa-se na análise, a força das imagens em fluxo, o

poder dessas imagens inacabadas é o que faz com que haja filme, uma vez

que eles se apresentam dentro da não-roteirização de que fala Comolli (2008).

Assim, percebe-se que um dos pontos fundamentais da relação entre

dispositivos e processos de criação está na obtenção dessas imagens, no

aproveitamento desses descontroles, nessa opacidade declarada.

A obtenção das imagens que compõem os filmes acontece durante a

ativação dos dispositivos. É nesse momento que todos os pensamentos e

conceitos estabelecidos anteriores ao filme são colocados em prática. Como

característica do próprio dispositivo, essas situações de controle suscitam

respostas descontroladas. São falas, gestos, olhares, ações das personagens

e dos temas trabalhados que fogem ao determinado, são as forças do acaso da

realização fílmica que aparecem.

A exposição da opacidade da criação fílmica se apresenta, assim, como

a maneira de integrar esse acaso, esse descontrole, as evidências dos

momentos de criação, da realização fílmica para dentro do filme. Essa camada

opaca é vista quando Kiko Goifman planeja a cena de seu reecontro com a

mãe que jamais acontece. Quando Sandra Kogut tem seu passaporte húngaro

testado pelo oficial da imigração no trem. Quando Marcelo Pedroso tem seu

material de trabalho transformado em assunto de polícia. Quando Eduardo

Coutinho adota posições não-convencionais para realizar suas imagens,

mostrando os detalhes das coxias do teatro, dos condicionadores de ar, do

bebedouros.

Ao trabalhar cada um desses filmes sob a ótica da análise fílmica

processual, foi possível perceber que havia em cada um deles uma referência

conceitual que sintetizava a lógica de seus dispositivos. Mais do que nomear as

seções de análise, os termos imagem-presente, imagem-origem, imagem-

matriz, imagem-cênica trazem consigo uma lógica de sentido.

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Em Câmara Escura (2012), essa síntese se faz por meio daquilo que se

chamou de imagem-presente numa referência direta às caixas de presente que

continham as câmeras, mas também num sentido mais direto da imagem, sua

busca pelos momentos de interação das personagens com as câmeras.

Em Um Passaporte Húngaro (2002), as escolhas técnicas de imagem, a

opção por usar imagem em 8mm, são uma tradução visual formal e estética do

sentido de busca por origens que o filme aponta. Assim, essa síntese deu-se o

nome de imagem-origem.

Em 33 (2003), o termo imagem-matriz tem uma primeira relação com o

processo de criação do filme, que toma por mote a procura de uma mãe.

Contudo, há também nas imagens do filme, na forma como realizador se insere

no filme como sujeito-da-câmera e personagens, seus auto-frames, uma noção

geradora, de composição de um sujeito.

Já em Moscou (2010), o que se denomina de imagem-cênica parte da

síntese do dispositivo voltado à mise-en-scéne formulado por Eduardo

Coutinho. Suas imagens apontam para essa relação direta entre cena e

encenação, numa discussão metadiscursiva.

Cada dispositivo vai formular sua situação específica. Cada obra vai ser

única. Cada forma de conduzir essa obra vai ser particular. Cada ação vai ser

característica dentro desse conjunto de realização.

Cabe ao analista fílmico processual encontrar essas evidências nas

imagens, essas marcas, desvendar seus modos de articulação para cada filme

analisado, traçar suas linhas de acompanhamento e perceber de que modo o

processo funciona dentro da obra, na formação desse duplo, dessa obra e

desse vir a ser.

Cabe ao analista também vislumbrar as obras como um todo,

percebendo suas narrativas, suas potências estéticas, sua condução enquanto

obra fílmica. Os elementos da produção audiovisual e sua análise não podem

passar despercebidos. A proposta é justamente mesclar, fundir os modos de

observação de uma obra e de seu processo, traçando um pensamento analítico

que auxilie na compreensão desses outros modos de realização audiovisual.

Dessa maneira, observou-se ao longo de todo o período de realização

da tese que existe uma carência metodológica nas abordagens das obras

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fílmica de uma maneira geral. Ao problematizar uma necessidade de outro

modo de analisar o processo de criação em obras audiovisuais, esta pesquisa

buscou ainda discutir a própria emergência desse campo de estudo.

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Filmografia – Ficha Técnica

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Gênero: Documentário Direção: Kiko Goifman Roteiro: Claudia Priscilla, Kiko Goifman Produção: Jurandir Müller Trilha Sonora: Tetine Duração: 75 min. Ano: 2003 País: Brasil Cor: P&B Estúdio: Paleo Tv

Um Passaporte Húngaro

Gênero: Documentário Direção: Sandra Kogut Roteiro: Sandra Kogut Produção: Marcello Maia Trilha Sonora: Papir Iz Dorkh Vais, Yah Riboh Duração: 71 min. Ano: 2002 País: França, Hungria, Bélgica e Brasil Cor: Colorido Moscou Gênero: Documentário Direção: Eduardo Coutinho Produção: Beth Pessoa Fotografia: Jacques Cheuiche Ano: 2010 País: Brasil Cor: Colorido Câmera Escura

Gênero: Documentário Direção: Marcelo Pedroso Produção: Simio Produções Ano: 2012 País: Brasil Cor: Colorido