Dissertação Ana Cláudia Anibal Ribeiro

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA ANA CLÁUDIA ANIBAL RIBEIRO A MORTE PEDE PASSAGEM: RESSUSCITANDO LEMBRANÇAS DOS RITOS FÚNEBRES EM RUSSAS - CE (1930-1962) FORTALEZA – CEARÁ 2013

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Tema de cemitérios no Brasil

Transcript of Dissertação Ana Cláudia Anibal Ribeiro

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    MESTRADO ACADMICO EM HISTRIA

    ANA CLUDIA ANIBAL RIBEIRO

    A MORTE PEDE PASSAGEM: RESSUSCITANDO LEMBRANAS DOS RITOS

    FNEBRES EM RUSSAS - CE (1930-1962)

    FORTALEZA CEAR

    2013

  • ANA CLUDIA ANIBAL RIBEIRO

    A MORTE PEDE PASSAGEM: RESSUSCITANDO LEMBRANAS DOS RITOS

    FNEBRES EM RUSSAS - CE (1930-1962)

    Dissertao submetida ao Mestrado Acadmico em Histria MAHIS, rea de concentrao em Histria e Culturas, do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Cear UECE, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Histria. Orientador: Prof. Dr. Gisafran Nazareno Mota Juc.

    FORTALEZA CEAR

    2013

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

    Universidade Estadual do Cear

    Biblioteca Central Prof. Antnio Martins Filho

    Bibliotecrio Responsvel Doris Day Eliano Frana CRB-3/726

    R484m Ribeiro, Ana Cludia Anbal. A morte pede passagem: ressuscitando lembranas dos ritos

    fnebres em RussasCe. (1930-1962) / Ana Cludia Anbal Ribeiro. 2013.

    CD-ROM. 155 f. ; il. (algumas color.) : 4 pol. CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho

    acadmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).

    Dissertao (mestrado) Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades, Mestrado Acadmico em Histria, Fortaleza, 2013.

    rea de Concentrao: Histria e Culturas. Orientao: Prof. Dr. Gisafran Nazareno Mota Juc. 1. Memria social. 2. Ritos fnebres. 3. Sepultamentos. I. Ttulo.

    CDD: 981.3104

  • Dedico este trabalho ao meu pai, Edir Anibal [in memoriam], e minha me, Maria Tereza, pelos exemplos de coragem e dedicao.

  • AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao a soma dos esforos empreendidos por muitos, com o intuito de

    realizar uma pesquisa histrica para a compreenso de um tema to atual e inquietante quanto

    a morte. Sei que tal feito no teria sido realizado sem a cooperao de vrias pessoas que

    colaboraram da melhor forma possvel. Como devedora incondicional da considerao e do

    afeto que por mim tiveram, dedico-lhes este trabalho.

    Agradeo a Deus, inteligncia soberana e causa principal de todas as coisas.

    minha famlia, por sempre me dar suporte e equilbrio para seguir os caminhos

    que almejo. De forma bem especial, sou grata pela fora recebida dos meus irmos, Cludio

    Anibal, Robert Anibal.

    minha me, Maria Tereza Ribeiro, cerne de minha vida, agradeo pelo apoio

    constante. Obrigada querida, pelo carinho, cuidado e incentivo que voc me dedicou. Que o

    amor familiar nos possa unir cada vez mais. Serei sempre grata pela compreenso e

    dedicao.

    minha querida prima, Lecina Lima, que abriu as portas de seu lar em Fortaleza

    e me acolheu como filha, durante o perodo do curso de mestrado. Tambm sou grata pelas

    inmeras possibilidades de enriquecimento intelectual que me proporcionou.

    Aos meus colegas de Mestrado da turma de 2011 do MAHIS, pela convivncia

    alegre que sempre marcou nossos encontros. Vocs contriburam significativamente para meu

    amadurecimento intelectual. E, como inevitvel, quero ressaltar que, certamente, vocs

    ficaro em minhas lembranas no apenas como companheiros de Mestrado: Mayara Lemos,

    Ariane Bastos, Amanda Queiroz, Roberta Kelly Maia, Williane Barros, Vanessa Souza,

    Janilson Rodrigues, Renato Rios, Getlio Cavalcante, Bruna Demes e Wendell Guedes, vocs

    preenchem uma importante lacuna em minha vida, so amigos que certamente me

    acompanharo alm dos muros da academia.

    Agradeo, em especial, amiga Mayara Lemos, ser humano capaz de iluminar

    qualquer mundo.

  • Aos meus queridos amigos, Carlos Rochester e Juclio Regis, desde os tempos de

    graduao na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), pelo apoio e

    incentivo.

    Ao meu amigo e primo, Leandro Ribeiro, pela dedicao nossa amizade e pela

    ajuda sempre presente, que se tornaram fundamentais para a realizao desta pesquisa.

    Agradeo ainda Roberta pela reviso atenciosa do presente trabalho.

    Aos professores do Mestrado Acadmico em Histria da Universidade Estadual

    do Cear UECE, em especial ao meu orientador, Prof. Dr. Gisafran Nazareno Mota Juc,

    que, com seu conhecimento historiogrfico e sua aguada sensibilidade de pesquisador, muito

    contribuiu para o desenvolvimento desta dissertao. Agradeo-lhe pela compreenso e pelo

    apoio. Sua calma me deu a tranquilidade necessria para a produo da pesquisa, enquanto

    sua sobriedade me fez refletir sobre a necessidade de um rigor metdico e disciplinado no

    fazer constante do ofcio do historiador.

    Aos membros da banca de qualificao, Prof. Dr. Joo Rameres Regis e Profa.

    Dra. Zilda Maria Menezes Lima, pela disponibilidade e pelas valiosas contribuies para a

    escrita deste trabalho. Para mim, a simplicidade e a generosidade, que caracterizam a

    personalidade de ambos, representam motivao e nos do a certeza de que podemos fazer da

    academia um lugar, tambm, de produo de valores humanos.

    Ao Prof. Dr. Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho, Prof. Dr. Jos Olivenor

    Souza Chaves e ao Prof. Dr. Erasmo Ruiz, pela ateno e gentileza em aceitar participar da

    banca de defesa.

    Retornando aos tempos de graduao, agradeo aos professores do Departamento

    de Histria da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos FAFIDAM, em especial ao

    Prof. Dr. Joo Rameres Regis, um amigo querido desde o perodo da graduao e que me

    incentivou a prestar seleo de mestrado. A ele, muito obrigado.

    No tenho palavras para agradecer a irrepreensvel ateno e ajuda dos amigos

    Adauto Neto e Rosilda Martins. Sempre solcitos na secretaria do mestrado, tentando ajudar a

    todos os mestrandos, sem distino alguma.

  • Ao grupo de estudo e pesquisa, Oralidade, Cultura e Sociedade, coordenado pelos

    professores Dr. Gisafran Nazareno Mota Juc e Dra. Zilda Maria Menezes Lima, vinculado ao

    Mestrado Acadmico em Histria, pelas trocas de experincias e inspirao durante as

    reunies e eventos acadmicos.

    A todos os narradores da pesquisa, que gentilmente me cederam momentos em

    sua companhia, alm de compartilharem comigo suas lembranas e histrias e me doaram

    pistas que ajudaram a compor tramas de suas vidas.

    Sinceros agradecimentos a todos os que, direta ou indiretamente, contriburam

    para a concretizao das palavras escritas.

    Agradeo ao Mestrado Acadmico em Histria e Culturas da Universidade

    Estadual do Cear (MAHIS), pelo suporte e pelo cabedal de conhecimento que ali adquiri. Da

    mesma forma, agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior -

    CAPES pela bolsa concedida, que proporcionou tranquilidade para me dedicar ao tema.

  • a sorte comum: espera-se a morte e depois o

    juzo. O nico remdio ainda lavar-se

    completamente, sem tardar, arrependendo-se

    do que causa remorsos. Quem no o faz antes

    da morte, lamentar-se- muito tarde e sem

    razo, quando vier o castigo.

    Hlinand de Froidmont. Os versos da

    Morte.1194.

  • RESUMO

    Nesta pesquisa procuramos estabelecer reflexes sobre as representaes e atitudes diante da

    morte de catlicos e protestantes no municpio de Russas, cidade do interior cearense, entre os

    anos de 1930 e 1962. A partir das narrativas destes cristos, percebemos como ocorriam as

    sentinelas, como eram realizados os enterros em redes, as oraes entoadas no momento

    do velrio, o luto assumido pela famlia, a realizao dos cultos fnebres, a utilizao das

    vestes morturias e quais os cuidados com o corpo do morto e os sepultamentos. Nesse

    recorte, a problemtica foi direcionada representao dos ritos fnebres para os narradores.

    Para sua construo, foram utilizados os procedimentos metodolgicos da histria oral,

    entrecruzando as memrias dos narradores.

    Palavras-chave: Memria Social. Ritos fnebres. Sepultamentos.

  • ABSTRACT

    In this research we sought to establish reflections about the representations and attitudes

    toward death of Catholics and Protestants in the city of Russas, country town of Cear, in

    chronological cut (1930-1962). From the narratives of these Christians, we perceive as

    occurred the sentinel, as they were performed burials hammocks, chanted prayers at the

    time of the funeral, mourning assumed by the family, the realization of the funeral cults, the

    utilization of clothes mortuary and the cares with the dead body and burials. In this clipping,

    the problematic was directed to the representation of the funeral rites for the narrators. For its

    construction, were utilized the methodological procedures of oral history, crisscrossing

    memories of the narrators.

    Keywords: Social Memory. Funeral rites. Burials.

  • LISTA DE FOTOGRAFIAS

    Fotografia01: Defunto no caixo........................................................................................... 38

    Fotografia 02: Famlia e amigos circundando o caixo da morta..........................................51

    Fotografia 03: Defunto com as vestes de So Francisco de Assis..........................................52

    Fotografia 04: Morta com os trajes da Virgem Maria.............................................................53

    Fotografia 05: Defunta no caixo, contrastando com a foto de So Francisco de Assis.........54

    Fotografia 06: Anjinho no momento do seu velrio...............................................................55

    Fotografia 07: A presena de uma criana observando o anjinho morto............................56

    Fotografia 08: Retrato de caixo, sem a presena de familiares............................................58

    Fotografia 09: Retrato do morto ainda em vida.....................................................................61

    Fotografia 10: Igreja Presbiteriana de Russas........................................................................73

    Fotografia 11: Planta baixa do Cemitrio Bom Jesus dos Aflitos - Russas..........................122

    Fotografia 12: Fachada do Cemitrio Pblico de Russas, Bom Jesus dos Aflitos................131

    Fotografia 13: Cemitrio Pblico de Russas, Bom Jesus dos Aflitos...................................136

  • 13

    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................................... 14

    1. OS RITOS FNEBRES QUE SALVAM A ALMA: O ATO DE VELAR EM

    RUSSAS.................................................................................................................................. 28

    1.1 Com as Bnos dos Santos leos.................................................................................29

    1.2 Que se digam por minha alma.......................................................................................35

    1.3 Entre ns para sempre: Prticas de eternizar memrias sobre o ente

    querido................................................................................................................................48

    2. DIANTE DA MORTE: O CRER E O MORRER, ENTRE OS

    PROTESTANTES...................................................................................................................64

    2.1 Divulgando o Evangelho de porta em porta..................................................................65

    2.2 Crenas Protestantes sobre o Morrer.................................................................................83

    2.3 No fazia nem encomendao de corpo nem missa.......................................................94

    3. HOUVE TEMPO EM QUE OS PADRES NO DEIXAVAM SEPULTAR OS

    CADVERES DOS PROTESTANTES............................................................................. 108

    3.1Era costume arraigado enterrar-se os mortos dentro das igrejas ou em seus trios e

    arredores.............................................................................................................................. 109

    3.2 inteiramente prohibido............................................................................................. 117

    3.3 Quem era Protestante tinha o terreno que no era abenoado.................................. 126

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................. 140

    FONTES................................................................................................................................ 143

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................. 145

  • 14

    INTRODUO

    Os enterros atuais puxados mquina, passando velozes, os convidados vestidos de todas as cores, no infundem aquele respeito, que impunham antigamente. Tal a fora dos costumes que hoje no causa o mnimo reparo um homem acompanhar um enterro ou assistir a uma missa de stimo dia, vestido de qualquer cor, mas ai daquele que no se apresentar de branco de rigor ou de smoking em um sarau dos nossos clubes elegantes. Tratamos a Morte com pouca cerimnia e a Dana com o maior respeito. (NOGUEIRA, 2006:84/85).

    Em maio de 1934, o escritor Joo Nogueira estabelecia uma relao entre a

    velocidade que caracterizava os novos tempos em Fortaleza e a mudana de atitudes frente ao

    trespasse. No tocante aos cortejos fnebres, ele apontou o transporte do fretro e os trajes dos

    acompanhantes como indcios dessa mudana.

    A cidade de Fortaleza no mudava apenas em suas pedras e topnimos:

    transformao material e onomstica somava-se o desaparecimento de costumes antigos,

    como mostram o desencadear de lembranas dos memorialistas em apreo. As descries

    pormenorizadas de Joo Nogueira, acerca da grande movimentao que envolvia os enterros

    de outrora, confirmam que eles eram grandes eventos pblicos, que concentravam a ateno

    da populao e mobilizavam considervel soma de recursos simblicos. com

    embevecimento que o engenheiro e escritor recorda os funerais de h meio sculo.

    Em sua obra Nas Memrias (2000), Gustavo Barroso percebeu a mudana nos

    sentimentos em relao aos mortos, suscitada pelo automvel. Conforme j foi assinalado, sua

    introduo no ambiente urbano inaugurou novos ritmos e expectativas, afetando vrias

    dimenses da vida cotidiana. Os ritos fnebres estavam inclusos nessa transformao,

    conforme possvel inferir atravs da passagem em que a velocidade dos cortejos

    motorizados contraposta solenidade dos enterros a p, com o caixo conduzido pelos

    referidos empregados, em um andar ritmado e lento.

    Como que ainda estou vendo os enterros. Todos a p. Muito solenes. Na minha meninice, os mortos no usavam automvel para a derradeira viagem. Nem se sabia o que era automvel. Os vivos parecem que no tinham pressa em se verem livres dos mortos, nem estes pressa em se verem livres dos vivos. frente dos enterros, uma cruz alada, de saiote preto, o padre paramentado e dois coroinhas. O caixo

  • 15

    levado mo pelos parentes e amigos ou por quatro gatos pingados de andar ritmado e lento, de sobrecasacas negras e cartolas de oleado. No acompanhamento, somente homens, todos de luto, silenciosos e compungidos. (BARROSO, 2000:62).

    Com efeito, essas linhas podem expressar, de maneira bastante clara, que no h

    mudana cultural que no se faa perceber no surgimento de novos objetos e no

    desaparecimento de outros. As procisses noturnas em Fortaleza, iluminadas com tochas,

    provavelmente no fizessem mais sentido em uma cidade iluminada pela energia eltrica e

    abastecida de veculos. Sua estranheza foi evocada por Gustavo Barroso, em outra passagem

    do texto.

    Lembro-me vagamente de ter visto, quando muito pequenino, um dos ltimos enterros noite, luz de tochas e archotes, costume antigo e lgubre. Se no vi, ouvi descrev-los tantas vezes em casa que a descrio se mistura l nos recessos do meu crebro s cousas reais e acaba feita realidade pelo contato. (BARROSO, 2000:63).

    Segundo Carlos Nogueira (2006), esse um marco essencial da memria: muitas

    vezes no possvel distinguir entre nossas prprias lembranas e o que nos foi contado por

    outrem. Tais operaes geralmente so inconscientes, mas no caso de Gustavo Barroso,

    arteso da memria, a possibilidade vislumbrada. Ao lado de outros relatos, a imagem

    confirmava: os mortos j no se enterravam como antes.

    A necessidade de relatar como eram os enterros de antigamente revelava um

    presente marcado pela supresso de referncias morte: do mesmo modo que o passado, os

    mortos eram banidos do cotidiano da cidade. O primeiro desaparecia nas contnuas reformas

    que depuravam o espao urbano de seus traos indesejveis; os ltimos eram abolidos das

    vistas pblicas atravs dos automveis, que, velozes, os despachavam mais rapidamente para

    o outro mundo. (NOGUEIRA, 2006:80).

    Assim, o presente trabalho, intitulado A morte pede passagem: ressuscitando

    lembranas dos ritos fnebres em Russas-CE, 1930-1962, tem como problema central de

    anlise, estabelecer alguns nveis de compreenso acerca das atitudes e representaes em

    torno da morte para cristos catlicos e protestantes, no municpio de Russas, entre os anos de

    1930 e 1962. A relevncia da presente pesquisa de contribuir para uma anlise

    historiogrfica sobre os ritos fnebres no interior do Cear, bem como para o debate das

    concepes a respeito da morte.

  • 16

    Descreveram, certa vez, que a morte havia ocupado os socilogos,

    antroplogos, poetas e agentes funerrios, mas no os historiadores. (PEREIRA, 2007:16).

    Hoje, esta afirmao no mais verdadeira, haja vista o interesse cada vez maior pelo tema

    por parte da historiografia. Isso se deu, sobretudo, por causa de um movimento que caminha

    na direo de analisar momentos do cotidiano, outra faceta da histria de pessoas simples, que

    trazem nos atos mais corriqueiros demonstraes de comportamento, que nos ajudam a

    entender como os homens se relacionam entre si. Estes momentos podem tratar da lida diria,

    da fadiga, das alegrias e frustraes, dos desencontros e contradies, das esperanas e

    iluses, dos imponderveis da vida, do nascimento e, por que no dizer, da morte.

    Os trabalhos sobre a morte compem o campo de referncia desta dissertao. A

    partir deles construmos o cenrio no qual os atores sociais desempenham seus papis e se

    movimentam. Esta interdisciplinaridade nos proporcionou maior abrangncia do cotidiano do

    homem. Portanto, para a realizao do presente estudo utilizamos discusses de historiadores,

    socilogos e antroplogos. O dilogo entre as reas de conhecimentos apontadas j vem sendo

    construdo entre os pesquisadores que acreditam que, embora possuam suas peculiaridades,

    essas reas tambm esto ancoradas em pontos comuns, por abordarem o homem como

    elemento de compreenso. No caso dos historiadores, suas experincias em tempos e espaos

    especficos.

    Para circunscrevermos da melhor forma possvel nosso campo, procuramos o

    referencial terico de recentes estudos sobre a morte, empreendidos pela histria cultural,

    social e das mentalidades, centrados na produo francesa a respeito das diversas atitudes e

    sensibilidades coletivas diante da morte. Os principais deles foram realizados por Philippe

    Aris (2003), Michel Vovelle (1991) e Edgar Morin (1976). Ao lado destes, outros

    historiadores, tais como Marieta de Moraes Ferreira, Janana Amado e Gisafran Nazareno

    Mota Juc, todos no campo da Histria Oral, tambm realizaram estudos fundamentais para o

    tipo de abordagem e o tratamento dispensado s fontes.

    Nos ltimos anos, a Nova Histria Cultural tem procurado compreender quais os

    significados da morte nas mais distintas culturas. Estudiosos como Philippe Aris (2003)

    reconstroem as atitudes que as populaes europeias tinham diante do fim da vida. Nossa

    pesquisa evidencia que as atitudes das populaes da Idade Mdia perante o ato de bem

    morrer esto presentes nas representaes acerca da morte da populao russana, que tambm

    buscava a salvao de sua alma por meio dos rituais de absolvio das faltas terrenas. O

  • 17

    entendimento dessas prticas ligadas boa morte foi motivado por significaes culturais

    condicionadas pelo catolicismo, processadas por meio de uma construo social e reforadas

    pelo processo da circularidade cultural. (BURKE, 1989:56).

    Quanto historiografia brasileira, esta pesquisa foi influenciada pelas obras: A

    morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo XIX, de Joo Jos Reis

    (1991) e Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradies e transformaes fnebres no Rio

    de Janeiro, de Cludia Rodrigues (1997). Os estudos citados foram importantssimos para a

    criao de um dilogo sobre o tema da morte e dos ritos fnebres no Brasil. Joo Reis (1991)

    contribuiu para o entendimento das atitudes do homem perante a morte no Brasil durante o

    sculo XIX. Ao se debruar sobre a Cemiterada, que ocorreu na Bahia, o autor demonstrou

    que a revolta que abalou as bases de Salvador, em 1836, foi um episdio que teve como

    motivao central a defesa das concepes religiosas sobre a morte, os mortos e os ritos

    fnebres. (REIS, 1991: 04). Ou seja, a partir da, abriu-se o campo para uma nova

    interpretao das aes do homem fora da concepo estritamente econmica, tal como era

    entendido aquele episdio.

    No Rio de Janeiro, Claudia Rodrigues (1997) seguiu o mesmo caminho. Baseada

    em uma variedade de fontes impressas e manuscritas, constitudas por crnicas, relatos de

    viagem, correspondncias eclesisticas e administrativas, assim como por registros

    paroquiais, ela procurou reconstruir como as questes da morte eram enfrentadas pelos

    cariocas. (RODRIGUES, 1997:12). Sua preocupao central foi a de perceber as mudanas

    ocorridas durante o sculo XIX no tocante forma dos sepultamentos, bem como o

    empobrecimento e esvaziamento dos cortejos fnebres. Desta forma, ela conseguiu mapear os

    lugares da morte no Rio de Janeiro oitocentista, e o seu processo de transformao a partir

    da proibio dos sepultamentos em igrejas.

    Por meio da interpretao da pesquisa emprica desenvolvida sobre os elementos

    presentes nos momentos finais da vida, pudemos perceber, a exemplo de Cludia Rodrigues

    (1997), que em Russas os usos e cores das mortalhas dos adultos se assemelhavam quelas

    pesquisadas pela referida autora. Em torno da preocupao com as indumentrias lgubres,

    portanto, existia a crena de que, na passagem para o alm, o morto deveria estar

    convenientemente vestido.

  • 18

    Analisamos os sepultamentos dos cristos protestantes em Russas na perspectiva

    apontada nos estudos de Cludia Rodrigues (2007) em seu artigo intitulado Cidadania e

    morte nos Oitocentos: as disputas pelo direito de sepultura aos no catlicos na crise do

    Imprio (1869-1891). O estudo demonstra que em fins da dcada de 1860, na conjuntura das

    acirradas disputas entre regalismo e ultramontanismo e da intensa campanha de parte da elite

    poltica e intelectual em defesa da causa protestante, a hierarquia eclesistica promoveu uma

    srie de interdies ao sepultamento dos chamados no catlicos nos cemitrios pblicos de

    vrias localidades, sob o argumento de que eram destinados aos cidados do Imprio. Fatos

    que evidenciaram o quo restritos eram os direitos de cidadania na poca. A autora almejou,

    assim, identificar de que modo a morte e o morrer foram significativos aspectos atravs dos

    quais se expressaram as disputas em torno da ampliao dos direitos de cidadania no Imprio

    escravista e catlico aos imigrantes protestantes, na segunda metade do sculo XIX.

    Alm destes, para refletir sobre os funerais infantis, nos atentamos ao estudo A

    morte menina: Prticas e representaes da morte infantil dos oitocentos (Rio de Janeiro e

    So Paulo), de Luiz Lima Vailate (2005), fundamentalmente importante para nossa pesquisa,

    pois o autor teve como proposta de estudo os ritos da morte infantil no Rio de Janeiro e em

    So Paulo no sculo XIX.

    Outra obra acadmica de grande valia para esta dissertao o livro ltimas

    lembranas: Retratos da morte, no Cariri, regio do Nordeste Brasileiro, de Titus Riedl

    (2002). Nessa obra o autor apresenta um levantamento de fotografias e de coletas de

    depoimentos em relao aos ltimos momentos da morte, no Cariri Cearense, no decorrer do

    sculo XX. As fotografias, tambm utilizadas como suporte da memria que, revelaram, em

    sua maioria, imagens dos defuntos, bem como de seus velrios e dos instantes finais de sua

    permanncia sobre a terra, antes de seu sepultamento. Desta maneira, atravs da referida obra,

    possvel realizar um contraponto das fotografias fnebres coletadas em Russas com as

    questes apontadas por Riedl (2002), no que se refere aos retratos fnebres do Cariri

    Cearense. Sendo assim, sua produo nos auxilia nos cuidados metodolgicos no que tange ao

    tratamento e anlise das fotografias morturias.

    Outro caminho traado foi o de tentar decifrar as crenas protestantes relativas ao

    morrer em Russas. Tal anlise s foi possvel mediante estudo do historiador Jean

    Delumeau (1989), em sua obra clssica intitulada Nascimento e afirmao da Reforma, na

  • 19

    qual ele realiza uma crtica completa relacionada Reforma protestante, analisando suas

    causas, a crise da Igreja romana, o ambiente histrico em que tudo aconteceu, no sculo XVI,

    as lutas religiosas que se seguiram na Europa e a vida e doutrina de reformadores como

    Martinho Lutero e Joo Calvino. Delumeau (1989) refutou as teorias que ligam o movimento

    ascenso da burguesia e crise da Igreja, e prope que se procurem os motivos

    essencialmente religiosos que deram origem Reforma. Jean Delumeau (1989) atentou para

    as causas espirituais e materiais da Reforma e a influncia das mudanas da modernidade no

    processo, ao realizar um estudo de caso para cada um dos cismas protestantes na Europa, alm

    das mudanas empreendidas pela Igreja Catlica por meio da Contra Reforma.

    Os estudos sobre o protestantismo no Brasil e especificamente no Cear formam

    outro referencial desta pesquisa, como o estudo O Cear na trilha da nova f: o

    presbiterianismo no Cear (1883-1930), de Francisco Agileu Gadelha (2005). Nessa obra, o

    autor prope analisar a implantao e o crescimento do protestantismo no Brasil, com nfase

    na propagao da igreja presbiteriana no Estado do Cear. Ele procurou examinar este

    fenmeno no contexto das transformaes polticas, econmicas e sociais que se processavam

    no pas ao longo da segunda metade do sculo XIX e das dcadas iniciais do sculo XX.

    Ainda sobre o assunto, Robrio Amrico do Carmo Souza (2008), em sua

    investigao intitulada Vaqueiros de Deus: a expanso do protestantismo pelo serto

    cearense, nas primeiras dcadas do sculo XX, realizou uma reflexo sobre os sentidos do

    serto para os missionrios estadunidenses e pastores presbiterianos, que atuavam no Cear,

    no inicio do sculo XX e sobre como esses sentidos motivavam e atribuam limites e

    possibilidades para suas atuaes proselitistas, subsidiando a elaborao de um plano de

    cristianizao protestante da populao sertaneja. Para tanto foi elaborado um dilogo entre as

    impresses deixadas por eles e obras clssicas sobre aspectos mais relevantes do universo

    sertanejo.

    O nosso recorte temporal, 1930 a 1962, corresponde ao perodo em que as igrejas

    protestantes comearam a se instalar no municpio de Russas at o advento do Conclio de

    Vaticano II (1962-1965), no qual muitas das mudanas ali aprovadas tiveram o objetivo de

    responder ao avano das religies protestantes no sculo XX, sobretudo as pentecostais, na

    tentativa de reaproximar a Igreja dos fiis que encontravam na f concorrente mais espao

    para participao nos rituais e mesmo um acesso mais claro ao que os cristos consideram a

    palavra de Deus, antes restrita apenas aos sacerdotes catlicos. Entre as mudanas aprovadas

  • 20

    pelo Conclio esto a realizao das missas na lngua nacional ao invs do Latim; o fim da

    obrigatoriedade do uso da batina em tempo integral pelos sacerdotes; a abertura da celebrao

    da missa para a participao dos leigos; entre outras.

    Na fase inicial da pesquisa nos confrontamos com problemas intrnsecos a um

    tema que toca na intimidade das pessoas. Percebemos que teramos de lidar com um objeto de

    pouca visibilidade, devido ao seu carter privado e recluso, e no espervamos que fosse fcil

    lidar com algo que evoca lembranas dolorosas, cheias de forte carga emocional e que

    envolve o luto e a dor da perda de uma pessoa.

    Logo, o tema apresentado, por sinal, foi tido como algo bastante extico, seno

    esquisito pela maioria dos interlocutores. O nosso interesse foi percebido como inusitado e

    curioso1. O interesse pela temtica surgiu durante a graduao em Histria, na Faculdade de

    Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), em Limoeiro do Norte-CE, campus da

    Universidade Estadual do Cear (UECE), entre 2007 e 2010, ao ler uma obra sobre as

    religies e crenas: O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, de autoria do historiador Joo

    Jos Reis (1997); o mesmo nos trouxe um interessante ponto de vista sobre os costumes

    ligados a morte.

    A partir da anlise de testamentos, Reis (1997) tentou demonstrar as preocupaes

    que a morte representava e o imaginrio das crenas ps-morte que deveriam possibilitar,

    antes de tudo, um enterro digno, com garantia quase de salvao. A presena no s de

    pessoas prximas, mas se possvel ilustres, ao lado de carpideiras em grande nmero eram de

    bom gosto e significavam que a pessoa era bem quista. As carpideiras eram profissionais do

    choro, suas presenas demonstravam o carter cnico e festivo dos rituais de enterro. A partir

    dessas leituras, percebemos que era pertinente prosseguir com a temtica que ora nos

    encantava, bem como possibilitar esclarecimentos sobre o cotidiano e os costumes fnebres

    em Russas, nos anos de 1930 a 1962.

    Essa pesquisa est ligada ao mbito da histria cultural, que se coloca como de

    fundamental importncia na reflexo deste objeto de estudo, na compreenso das

    1 A esquisitice tornou-se, em alguns momentos, atributo meu. Pesquisadora que percorreu as seguintes comunidades rurais do municpio de Russas; Jardim So Jos, Peixe, Miguel Pereira e Flores. Munida com uma pasta de fotografias e santinhos de defunto, para desenvolver uma pesquisa justamente sobre os ritos fnebres.

  • 21

    representaes, do entendimento do imaginrio, possibilitando-nos analisar indivduo e

    sociedade, suas sensibilidades e subjetividades, assim como as sociabilidades criadas e as

    apreenses da memria e do sujeito numa construo social e cultural. (PESAVENTO, 2003:

    25). Dentro da perspectiva de que as prticas e aes sociais de um indivduo podem

    repercutir dentro de uma sociedade, criando, dessa maneira, elos entre esse sujeito e a

    sociedade da qual ele faz parte, a cultura pode ser compreendida por ns a partir das

    manifestaes que existem entre essas relaes sociais que o indivduo produz e nelas se

    insere.

    A autora Thereza de Mello (2008) assinala que os diversos suportes empricos da

    histria cultural se oferecem ao pesquisador atento como exuberante variedade de escolhas,

    no sentido mesmo de vitrine, pois indcios do representacional afloram dos motivos

    iconogrficos, das biografias, dos discursos em circulao na encenao cotidiana, dos textos

    oficiais, da documentao obtida em arquivos, das obras romanescas, do repertrio das

    canes com suas letras, das narrativas orais, enfim de mltiplos stios de representao.

    (MELLO, 2008: 21).

    Dialogo com autores da nova histria cultural, uma vez que ela se prope a buscar

    nas representaes os caminhos alternativos para novas abordagens de cunho histrico,

    tambm essencial para a nossa pesquisa. assim que este trabalho tem dvida com

    historiadores como Roger Chartier (1990) e Carlos Ginzburg (1987). Ao primeiro, porque

    prope o conceito de cultura como prtica e seu enfoque se baseia na representao e

    apropriao. (CHARTIER, 1990: 6/79). Ao segundo, devemos o conceito de cultura como o

    conjunto de atitudes, crenas, cdigos de comportamentos prprios das classes subalternas

    em certo perodo histrico. Logo, a morte passa a ser um objeto de estudo, no mais

    somente como nmeros, tabelas e quantificaes, mas como uma prtica em si. Conforme

    assegura Vainfas (2002), a nova histria cultural no nega a aproximao com as outras

    Cincias Humanas, admite o conceito de longa durao e os temas do cotidiano, tal como as

    mentalidades. (VAINFAS, 2002: 16).

    Procuramos apoiar nosso estudo nas perspectivas da Nova Histria Cultural, que

    nos apresenta o conceito de circularidade cultural e o mtodo indicirio. A obra O queijo e os

    vermes, por exemplo, nos dar suporte para pensarmos a cultura funerria russana da segunda

    metade do sculo XX, atravs da circularidade cultural, que entende a cultura como um

  • 22

    conjunto de reelaboraes culturais constantes. Carlo Ginzburg (1987) reconstri a histria de

    Domenico Scandella, moleiro friulano conhecido como Menocchio, condenado como herege

    pela Inquisio papal no sculo XVI e que foi queimado por ordem do Santo Ofcio. Assim, a

    abertura de dois processos instaurados contra o moleiro d suporte a uma valiosa averiguao

    da cultura das classes subalternas na Idade Mdia. Nessa obra, Ginzburg observou que o

    conceito de cultura como o conjunto de atitudes, crenas, cdigos de comportamento

    prprios das classes subalternas em um certo perodo histrico relativamente tardio e foi

    emprestado da Antropologia cultural. Nesse sentido, ele analisa at que ponto acontece o

    processo de alternncia cultural entre as classes subalternas e as hegemnicas, numa

    influncia recproca entre essas duas camadas sociais.

    Tais dispositivos nos permitem pensar a circularidade cultural tambm nas

    representaes em torno da morte, pois temos certo que o imaginrio dos Russanos em torno

    da morte uma herana da cultura crist europeia que nos colonizou, embora se possam

    encontrar outros elementos culturais fusionados. Desse modo, buscamos examinar essa noo

    de cultura, e sua difuso, entendendo-a como inserida nesse processo de reelaborao dos

    saberes e valores pelas sociedades.

    Em relao s representaes, Sandra Jatahy Pesavento (2008), na obra Histria e

    histria cultural, defende que estas carregam sentidos ocultos que:

    Construdos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexo. H, no caso do fazer ver por uma imagem simblica, a necessidade da decifrao e do conhecimento de cdigos de interpretao, mas estes revelam coerncia de sentido pela sua construo histrica e datada, dentro de um contexto dado no tempo. (PESAVENTO, 2008: 41).

    Assim, entendemos as crenas protestantes e catlicas concernentes morte como

    representaes porque so formas de apreenso do real. As representaes podem mostrar os

    meandros de uma sociedade, so portadores do simblico, falando mais do que denunciam

    primeira vista. Indivduos e grupos do sentido ao mundo por meio das representaes que

    constroem a partir do real. Nesse sentido, as representaes denunciam prticas, evidenciando

    uma sensibilidade coletiva perante tais aspectos, que traz tona sentimentos, temores e

    desejos, revelados por atos, ritos e imagens.

  • 23

    Desta maneira, os ritos fnebres de cada sociedade refletem a concepo que o

    grupo social tem sobre morte, sendo, portanto, a anlise dos smbolos, formas, dimenses,

    temas e elementos incorporados na performance importantes para a compreenso sobre o

    momento cultural em que foram criados e a construo da memria coletiva. A elaborao

    dos ritos ps-morte e a recordao dos mortos permanecem na memria dos vivos, assim,

    suas aes e importncia social representam um meio de prolongar sua existncia, atravs da

    influncia que mantm sobre os que permanecem vivos.

    No que tange s fontes, analisamos os Cdigos de Posturas aprovados para o

    municpio de Russas, que possibilitou perceber aspectos do cotidiano da cidade, a partir da

    dcada de 1930, desde suas regras para o comrcio, as preocupaes incipientes com a

    salubridade, higienizao, aformoseamento, at aspectos de organizao e civilizao, que

    pretendiam disciplinar os costumes. Nos Cdigos percebemos inclusive o cumprimento de

    regras relacionadas aos ritos fnebres, situaes de grande acuidade, para o cotidiano da

    populao russana.

    Outra documentao que foi de grande valia para esta pesquisa, refere-se ao

    manuseio dos Livros de Tombo da Parquia de Nossa Senhora do Rosrio, localizada em

    Russas, datados dos anos de 1930 a 1965, que foram selecionados e fotografados, para

    posterior anlise. Assim, os documentos escritos, neste caso os eclesisticos, me serviram de

    suporte para demonstrar, alm da posio e do papel da instituio catlica naquela pequena

    cidade, como tambm a preciso de datas, nmeros e relatos de fatos ocorridos no perodo em

    estudo. importante ressaltar que a transcrio dos documentos, mesmo os manuscritos,

    citados ao longo do texto, respeitou a grafia original, de acordo com as normas tcnicas para

    transcrio e edio de documentos manuscritos.

    Utilizaremos ainda as narrativas orais, com a anlise de entrevistas com pessoas

    que participaram dos ritos fnebres no municpio de Russas. No podemos deixar de

    mencionar que a oralidade possibilitou a aproximao do prprio agente/personagem com a

    pesquisa, dando a oportunidade de expor suas lembranas e vises dos acontecimentos,

    fazendo parte mais uma vez dos fatos, apesar do novo contexto influenciar em suas memrias

    e opinies, importante ressaltar essa participao social. (JUC, 2011, p.76).

    O uso da Histria Oral foi uma das ferramentas para a construo das ideias

    propostas na pesquisa. Dando voz aos personagens que esto por trs das cortinas deste

  • 24

    grande teatro da Histria. A deciso de recorrer histria oral no resultou de um simples

    propsito de aumentar as informaes procuradas, com o intuito de complementar as

    abordagens relativas a determinados assuntos, tratados de forma parcial por outras fontes,

    mas, sobretudo, da descoberta do significado substancial do seu contedo, expresso por

    intermdio dos depoimentos orais. A escolha de pessoas idosas a serem entrevistadas decorreu

    a partir da leitura da obra de Ecla Bosi (1994), levando-nos a uma conscientizao do valor

    das informaes prestadas por pessoas de idade avanada, no trato de temticas histricas,

    pois o enredo obtido ultrapassou o estreito apanhado de dados e informes escritos.

    Os depoimentos nos trazem narrativas do cotidiano, do modo de agir e muitas

    vezes com riquezas de detalhes. Segundo Alessandro Portelli (1997), o respeito pelo valor e

    pela importncia de cada indivduo constitui-se numa das primeiras lies de tica para os

    historiadores que trabalham com a oralidade:

    Embora, possamos ser doutores em qualquer matria entrevistando analfabetos, na situao de campos so eles que tm as informaes e, gentilmente, compartilham-nas conosco. Manter em mente esse fator significa lembrar que estamos falando, no com fontes, nem que estamos por elas sendo ajudados, mas com pessoas. A questo no que tipo de expresses j consagradas pelo uso empregamos em nossa abordagem; as boas maneiras so meramente a manifestao externa de respeito genuno, podemos repetir, aprender, em vez de estudar, o quanto quisemos, mas nossos interlocutores com certeza no se deixaro enganar. (PORTELLI, 1997: 25).

    Contudo, estamos conscientes de que no poderemos contar mais do que uma

    pequena frao do que ocorreu no passado pessoal e coletivo de cada um dos entrevistados,

    uma vez que impossvel se percorrer toda a imensido do passado. Desta forma, por haver

    uma diferena entre os acontecimentos passados e os relatos colhidos sobre esses

    acontecimentos, no se torna possvel recuperar e recontar precisamente o verdadeiro passado.

    (CHAVES, 2002:29).

    Conforme Jos Olivenor Chaves apontou (2002), embora intimamente conhecido,

    o passado inacessvel na sua totalidade. Nesse sentido, seu carter depende de como ele

    apreendido. A memria, por sua vez, representa a base sobre a qual est fundada toda a

    conscincia do passado. Assim, atravs das lembranas, torna-se possvel recuperar a

    conscincia de acontecimentos anteriores, distinguir as temporalidades do ontem e do hoje,

    bem como confirmar que j se viveu um passado. (CHAVES, 2002:29). Todavia, assim como

    a histria, a memria residual.

  • 25

    Por mais volumosas que sejam nossas recordaes, sabemos que so meros lampejos do que j foi um todo vivido. No importa quo vividamente relembrado ou reproduzido, o passado se torna progressivamente envolto em sombras, privado de sensaes, apagado pelo esquecimento. (LOWENTHAL, 1998: 65/66).

    Deste modo, a vida est carregada de memria. Assim, dedicamos grande parte do

    nosso presente a rememorao de algum momento do passado. Segundo Lowenthal (1998)

    apenas a concentrao numa ocupao imediata pode impedir o passado de vir

    espontaneamente. Desta forma, durante o tempo que passamos espertos so poucas as horas

    que so livres de recordaes ou lembranas. Conquanto o passado relembrado seja tanto

    individual quanto coletivo, a memria como forma de conscincia absolutamente pessoal.

    Lowenthal (1998) adverte que precisamos das lembranas de outras pessoas tanto para

    confirmar as nossas prprias quanto para lhes dar continuidade. (CHAVES, 2002:30).

    Nas questes relativas memria coletiva apoiamo-nos em Maurice Halbwachs

    (1990), a partir da investigao dos diferentes pontos de referncia que compem nossa

    memria e que a incluem na memria da coletividade da qual fazemos parte. Os pontos de

    referncia seriam elementos da cultura de um determinado grupo que o diferenciam de outra

    coletividade e que fundamentam e reforam os sentimentos de pertencimento.

    Assim, ao cruzar os muitos tempos da memria atravs de suas recordaes, os

    depoentes pesquisados pareciam trazer o passado de volta vida. Desse modo, por existir

    simultaneamente com o presente, o passado, muitas vezes, parecia mais presente que o

    prprio presente. Na verdade, o contedo destas recordaes no representa a traduo literal

    do passado recordado; uma vez que o ato de recordar implica na ampliao de determinados

    acontecimentos, bem como na interpretao destes luz da experincia subsequente e da

    necessidade do presente. Cabe lembrar, ainda, que as histrias de vida, por serem infindveis,

    caracterizam a fonte oral como uma fonte incompleta, porm viva. Nesse sentido, o dilogo

    nunca ser exaurido. As histrias recordadas so carregadas de subjetividade, no sendo, por

    isso mesmo, a traduo literal do passado, pois so adaptadas s representaes atuais.

    (CHAVES, 2002: 30/31).

    Destarte, no processo de interpretao dos fragmentos de memria e de

    sintetizao dos relatos colhidos, foi necessrio estarmos atentos para no considerar as

    memrias um discurso mais verdadeiro, mais prximo do que teria sido, supostamente, a

    verdade histrica. Os depoimentos coletados representaram apenas um ponto de vista

  • 26

    sobre o real, uma singularidade num dado campo discursivo e no uma realidade individual,

    uma totalidade em si mesma. Assim, por estar sujeita a constantes deslocamentos, as

    memrias no podem ser tomadas como a conservao pura do passado. (CHAVES, 2002:

    31).

    O trecho do ttulo do presente trabalho A morte pede passagem foi extrado das

    entrevistas realizadas, nas quais os depoentes situam a morte como uma passagem. Tal ttulo

    foi selecionado por apontar o caminho que seguiremos no desenvolvimento da dissertao: as

    representaes dos entrevistados acerca das atitudes e ritos diante da morte na cidade de

    Russas. Os subttulos tambm se iniciam por trechos extrados das fontes analisadas, em

    especial das narrativas orais, no intuito de possibilitar uma compreenso prvia de como os

    temas da morte eram abordados pelos cristos catlicos e protestantes em Russas.

    Com o objetivo de ordenar e disciplinar a reflexo e a escrita, facilitando assim a

    tarefa do leitor, esta dissertao foi estruturada em trs captulos:

    No primeiro captulo, intitulado Os ritos fnebres que salvam a alma: o ato de

    velar em Russas, buscamos apresentar o cenrio de como a morte e os costumes fnebres

    foram vivenciadas pelos narradores entrevistados, no perodo de 1930 a 1962. Observou-se

    que ocorreram transformaes no ritual fnebre catlico. Modificou-se a preocupao em

    promover missas para com a alma do morto, bem como a administrao do sacramento da

    extrema-uno, a ideia da tristeza, do luto demorado, da assistncia dos familiares e amigos,

    carregando o caixo, servindo comes e bebes, velando o corpo, as vestimentas da despedida,

    dentre outros.

    Com base nas interpretaes sobre os ritos fnebres protestantes, passamos ao

    segundo captulo: Atitudes diante da morte: o crer e o morrer, entre os protestantes. Nele

    realizamos uma discusso mais especfica sobre as crenas protestantes relativas morte e aos

    ritos fnebres no municpio de Russas-CE. Para estas reflexes analisamos os trabalhos

    realizados no Brasil que tiveram como objeto de estudo as concepes protestantes sobre o

    morrer e os que trataram sobre o advento dos primeiros missionrios europeus a chegarem ao

    Brasil e Cear, por volta do sculo XIX, com o objetivo de divulgar a f protestante. As fontes

    utilizadas neste captulo consistiram nos relatos de memrias de protestantes, pertencentes s

    Igrejas Assembleia de Deus, Presbiteriana e Batista.

  • 27

    Para o terceiro captulo, intitulado Houve tempo em que os padres no deixavam

    sepultar os cadveres dos protestantes, temos como foco os sepultamentos de protestantes e

    catlicos que aconteciam no cemitrio pblico Bom Jesus dos Aflitos, em Russas-CE,

    procurando perceber como o controle da Igreja Catlica local sobre os enterramentos no

    referido cemitrio ainda era reafirmado. Em seguida, realizamos uma discusso sobre as

    novas prticas higienistas que surgiram a partir da segunda metade do sculo XIX, que

    culminaram na transferncia dos sepultamentos das igrejas para os cemitrios. E por fim,

    apresentamos reflexes sobre a regulamentao dos ritos fnebres em Russas, a partir da

    implementao do Cdigo de Posturas de 1936. Neste cdigo todas as atividades eram

    reguladas, mas passveis de multas, desta forma, nos atentamos especificamente aos artigos

    que trataram sobre os cemitrios e sepultamentos da cidade.

  • 28

    1. OS RITOS FNEBRES QUE SALVAM A ALMA: O ATO DE VELAR EM RUSSAS

    Podem rezar latim sobre o meu caixo, se quiserem. Se quiserem, podem danar e

    cantar roda dele. No tenho preferncias para quando j no puder ter preferncias. O que

    for, quando for, que ser o que . (PESSOA, 1983: 171). A poesia de Fernando Pessoa

    (1983), Alberto Caeiro, no especifica nenhuma determinao para quando estiver morto.

    Caso queiram, o seu velrio ser um momento de msica e dana. Nesse sentido, o presente

    captulo traz uma anlise geral, de como a morte e os costumes fnebres foram pensados e

    vividos em Russas, no recorte temporal de 1930 a 1962.

    Nesta perspectiva, recorreremos aos relatos de memria, nos quais os depoentes

    narraram e descreveram suas experincias vividas ao participarem dos ritos fnebres. Em

    meados do sculo XX, a configurao espacial do municpio de Russas2 compreendia a de um

    pequeno arraial, cuja populao estava aglutinada entorno da Matriz de Nossa Senhora do

    Rosrio. A principal problemtica nesse primeiro momento tentarmos perceber como havia

    sido formado e construdo o imaginrio religioso local em torno da morte, que era marcado

    pelo Catolicismo. Segundo a depoente Maria Gerardina de Arajo:

    Muita gente passava a noite todinha nos velrios, tinha aquelas pessoas, quando no tinha gente era s quase o defunto, tem de todo jeito. Tinha muita gente mais era pra rezar, rezava tero, rezava ofcio de nossa senhora, rezava a ladainha dos ps defuntos 3.

    A aposentada, de 83 anos, descreveu o cenrio em que aconteciam os velrios em

    Russas. Eis como o defunto atravessava a noite na companhia de parentes e conhecidos,

    acompanhados por chs e cafs para os visitantes. Em detrimento de uma imagem de morte

    unicamente trgica, o velrio era pretexto para a formao de um espao de sociabilidade

    onde a presena da comunidade tornava-se quesito que expressava o valor social daquele que

    se encontrava velado. Significava o gesto de apoio e a construo do luto, quando a morte era

    simbolizada em um processo no qual se ia tecendo um anedotrio sobre a vida do velado.

    2 O nome Russas foi adotado em 20 de Dezembro de 1938, anteriormente a cidade chamava-se So Bernardo das Russas e abrangia os distritos de Quixer e Palhano. 3 Maria Gerardina Maia Arajo, 81 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 19 de outubro de 2009.

  • 29

    No contexto morturio descrito que aconteciam os ritos fnebres catlicos em

    Russas. Assim, o espao do velrio estava vinculado presena do falecido, e participava na

    trama de significados que sustentavam a ao dos sujeitos, sugerindo um modo prprio de

    agir na simbologia constituda pelo rito. Em certos momentos, o morto deitado em seu caixo

    era preparado com cuidado para as longas horas que o velrio deveria tomar, assim, aps o

    bito, o corpo era convenientemente vestido com as mortalhas fnebres e depois seguia para

    ser velado.

    1.1 Com as Bnos dos Santos leos

    De acordo com Joo Jos Reis (1991), a partir de meados do sculo XIX no

    Brasil, as atitudes diante da morte e dos mortos tomaram novos formatos e novos

    significados, tornando-se uma grande inquietao, para os homens e mulheres daquele tempo,

    a preocupao com a boa morte. Ter uma boa morte significava que o fim no chegaria

    de surpresa para o indivduo sem que ele prestasse contas aos que ficavam e tambm os

    instrussem sobre como dispor de seu cadver, de sua alma e de seus bens terrenos. Havia um

    grande medo de se morrer acidentalmente, sem os ritos devidos e sem tomar as providncias

    para o momento final.

    Na passagem para o outro mundo, os ritos fnebres eram tidos como essenciais,

    protegendo a alma do morto do mal e ajudando-a na sua travessia simblica para a vida

    eterna. Nesse processo, Reis (1991) citou a diviso estabelecida entre os ritos de separao,

    que representavam prticas de expulso da alma do morto da terra, e os de incorporao,

    necessrios para sua incluso no mundo celestial. Os cuidados com o corpo do morto, o luto,

    a desfeita dos objetos pessoais e todo um conjunto de cerimnias e rituais compunham os

    ritos de separao, por outro lado, a extrema-uno recobria o significado da incorporao ao

    paraso.

    Em Russas, no cotidiano de outrora, as pessoas tambm se preparavam

    materialmente e espiritualmente para a passagem vida eterna. A preparao representava

    que o fim carnal seguiria o que na cultura fnebre era entendido como necessrio para o

    descanso no outro mundo de quem partiu e o alvio de quem na terra ajudou a seguir,

    cumprindo os ritos paulatinamente. (SANTOS, 2009: 50).

  • 30

    No caso dos ritos fnebres em Russas, observamos que tambm existia a

    preocupao dos cristos catlicos em administrar o sacramento da extrema-uno, que era

    oferecido para aqueles que estavam na eminncia da morte. A narrativa da Dona Ana Felcia

    Chaves, obtida durante alguns momentos de conversa em sua residncia na comunidade

    Jardim So Jos4, reconstri o enredo que vivenciou:

    Eu j recebi a extrema-uno, est com cinquenta e oito anos. Foi o padre Pedro de Alcntara de Russas. Pois , nesse tempo era nos ps, nas mos, na testa e aqui nas costa [A entrevistada se abaixa e gesticula dizendo que era nas mos, nos ps e nas costas que se recebia a extrema-uno]. um sinal, um leo que d pra quem est pra morrer5.

    Na narrativa alguns aspectos da boa morte emergiram, como o simbolismo do

    sacramento fnebre catlico. A uno serve como preparao para a morte. O sacerdote ora e

    unge os enfermos para estimular-lhes a cura mediante a f, ouve deles os arrependimentos e

    promove-lhes o perdo de Deus. Eis as consideraes da Dona Maria Gerardina de Arajo:

    [...] O sacramento da extrema-uno s pode dar o padre, o ltimo sacramento da morte. O Miguel [Filho da depoente, j falecido], aqui, quando ele estava muito doente, mandei chamar e veio o padre, ele rezou umas oraes e disse que no dava o sacramento da extrema-uno porque no tinha trazido os santos olhos 6.

    A reflexo, que a narradora teceu, nos traz subsdios importantes no momento

    desse ritual, principalmente quando a depoente cita os santos leos. Entre os smbolos

    sacramentais usados pela Liturgia da Igreja Catlica, o leo simbolizava a alegria e o perfume

    do Esprito Santo nos cristos, o rito da bno do leo dos enfermos oficiado pelo bispo e

    por vrios sacerdotes que com ele concelebram. Os enfermos eram ungidos na cabea, no

    peito, nas mos e nos ps, desta forma o leo seria a imagem da misericrdia, do amor e da

    compaixo divina, os smbolos da beno.

    Tal aluso pode ser percebida na narrativa da Dona Maria Tereza Ribeiro: a

    extrema-uno, a santa uno de hora de morte. que tem o batismo, que mostrando

    4 Comunidade que se localiza na zona rural do municpio de Russas-CE. 5 Ana Felcia de Arajo Chaves, 80 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 20 de outubro de 2009. 6 Maria Gerardina Maia Arajo, 81 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, no dia 20 de outubro de 2009.

  • 31

    abrindo o olho para o mundo, e a santa uno fechando o olho do mundo para nascer na

    outra vida, o que eu percebo que seja7.

    A extrema-uno um sacramento que se fundamenta no Evangelho de Mateus,

    que diz: A ordem do Senhor... os apstolos expeliam muitos demnios e ungiam com leo a

    muitos enfermos, e os curavam (Mc: 6,13). Para o catolicismo, o sacramento da extrema-

    uno era ministrado para aqueles cristos que esto em perigo de morte. O propsito do

    sacramento consiste em restaurar a sade da pessoa e absolver o indivduo de qualquer pecado

    remanescente.

    A Igreja Catlica aconselha a extrema-uno s pessoas que estejam padecendo de

    alguma enfermidade fsica, pois alm de possibilitar a cura corporal, a extrema-uno,

    tambm denominada uno dos enfermos, restaura com o perdo divino a alma de todo o

    pecado, j que o rito prescreve que se faa a confisso antes da bno do enfermo. Com

    relao a essa perspectiva Elisgardnia Chaves (2009) enfatizou:

    De posse dos objetos necessrios realizao da extrema-uno: sobrepeliz e estola roxa e os santos leos, alm da cruz caldeira de gua benta e livro do ritual romano, com muito cuidado e boa postura, o proco e demais assistentes deixavam a Igreja rumo casa do enfermo em procisso do vitico, assim chamada por levar a comunho eucarstica. Ao chegar casa do enfermo, dava-se incio ao ritual. (CHAVES, 2009: 163).

    O ltimo sacramento era realizado em trs momentos consecutivos que envolviam

    a penitncia, a eucaristia e a extrema-uno ou uno dos enfermos. No ato da penitncia, na

    ltima confisso, o moribundo confessava e pedia perdo de seus pecados. A eucaristia era o

    momento no qual o moribundo entrava em comunho com Deus e recebia o alimento

    necessrio para a ltima viagem, pois a extrema-uno visava dar foras ao moribundo para

    vencer no apenas as tentaes da alma, mas tambm as dores corporais da hora derradeira.

    A assistncia espiritual da extrema-uno era menos frequente na zona rural de

    Russas, localidades como Jardim So Jos, Timbaba Nossa Senhora das Dores, So Joo de

    Deus, Flores, entre outras. Isso nos remeteu ao relato da Dona Ana Felcia Chaves:

    7 Maria Tereza Ribeiro, 56 anos, aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, no dia 09 de agosto de 2009.

  • 32

    Nesse tempo ia para Quixer ou Russas8. A minha menina foi enterrada em Timbaba, porque aqui no tinha cemitrio, nem em Jardim So Jos9 e nem em So Joo de Deus. Nesse tempo morria, era em ms de abril, o rio Jaguaribe tava cheio, e assim ia para Timbaba, que era mais perto10.

    Logo, os indivduos necessitavam percorrer grandes distncias para realizarem o

    enterro de seus familiares, aqueles que residiam na zona rural de Russas eram os mais

    prejudicados com essa situao. Assim, as pessoas se dirigiam at a localidade de Timbaba

    Nossa Senhora das Dores, que era situada do outro lado do Rio Jaguaribe, ou caminhariam em

    direo ao cemitrio do centro urbano de Russas, para realizar o sepultamento.

    A falta de padre para socorrer os moribundos deveria estar relacionada s

    distncias entre os povoados, como tambm prpria ausncia de padres nessas localidades.

    Alm disso, a Parquia Nossa Senhora do Rosrio em Russas se localizava no centro urbano

    da cidade. De acordo com Glubia Cristiane Arruda (2007), devido ao surto epidmico da

    malria que assolou o Baixo Jaguaribe11 no perodo de 1937 a 1940, os padres da regio

    tiveram seus trabalhos redobrados nos anos da epidemia, principalmente em relao

    execuo dos cerimoniais que, segundo o discurso proferido pela Igreja Catlica, deveriam

    ser cumpridos risca para que as pessoas se tornassem verdadeiras crists. (ARRUDA,

    2007: 81).

    Assim, o cumprimento dos ritos sacramentais, batismo, casamento e cerimonial

    fnebre, dava ao indivduo a convico da proteo divina, tanto durante sua morada no reino

    terrestre, como garantia tambm que Deus o concedesse a graa de um bom lugar no alm-

    mundo, quando viesse a falecer. Portanto, todos os rituais deveriam ser fielmente realizados

    dentro de uma ordem preestabelecida.

    Nesse sentido, quando a famlia e os amigos sentiam a aproximao da morte de

    um enfermo, era solicitada a presena do padre. A narrativa da Dona Ana Felcia Chaves

    bastante reveladora: 8 As distncias entre o Distrito de Quixer para o municpio de Russas de aproximadamente 15.42 km, ressaltamos para o fato de que no perodo abordado pela narradora, por volta da dcada de 1940, Quixer, ainda pertencia a Russas. 9 A extenso entre as comunidades Jardim So Jos e o Distrito So Joo de Deus, equivale a 8 km, j a distncia entre Timbaba Nossa Senhora das Dores e So Joo de Deus equivale a 4 km. Ambas as localidades localizam-se na zona rural do municpio de Russas-CE. 10 Ana Felcia de Arajo Chaves, 80 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 20 de outubro de 2009. 11 As cinco cidades que, na poca, compunham a regio Jaguaribana e que foram atingidas pela epidemia da malria eram Aracati, Unio, So Bernardo das Russas, Limoeiro do Norte e Morada Nova.

  • 33

    Tem vez que sendo rico o padre era quem fazia, sendo filho de pobre era a mulher mesmo [pessoa que seria o ministro extraordinrio da comunho]. A primeira vez que eu vi uma encomendao foi a de tia Raimunda Ribeiro, com Monsenhor Oliveira, no Quixer. A dizia at assim: vamos ouvir aos pedidos de nossa amiga Raimunda Ribeira, adeus Raimunda Ribeiro, at nosso encontro l12.

    Certamente, dentre as distines sociais entre ricos e pobres, referentes aos rituais

    fnebres em Russas, se encontrava a solicitao dos padres, que se faziam mais presentes

    quando uma pessoa de posses da comunidade solicitava sua vinda. J a administrao do

    sacramento da extrema-uno para as pessoas mais humildes era feita por uma pessoa

    comum, que tinha ligao com a Igreja Catlica.

    Ao tratar do sacramento da extrema-uno e dos benefcios que este produz na

    pessoa que o recebe, o Catolicismo ressaltava que no se devia administrar esse sacramento

    criana menor de sete anos, a no ser que ela possusse malcia. Com respeito aos

    cuidados espirituais da criana agenciados antes da morte, Vailate (2005) explicou que:

    Com a finalidade de lhe assegurar um lugar no paraso celeste, certo que a criana no estava totalmente desamparada: havia o batismo. Acontecimento social de importncia singular, ele marcava o ingresso do indivduo na religio e comunidade catlica, conforme do conta de explicar as nossas primeiras constituies eclesisticas. (VAILATE, 2005: 86).

    No rol dos que no podiam receber o sacramento da extrema-uno estavam as

    crianas menores de sete anos, consideradas inocentes pela Igreja, isto , sem capacidade de

    ter noo ainda de seus atos. Do batismo dependia a salvao individual para as crianas: Os

    pais deviam providenciar sua administrao num prazo de at oito dias aps o nascimento do

    rebento, no mximo, a fim de se precaver contra uma morte prematura. Para os pequenos, o

    batismo surgiu, primeiramente, como um sacramento fnebre que lhes era excepcionalmente

    indispensvel. O que importava, acima de tudo, era que o beb no morresse sem antes estar

    consagrado.

    A esse respeito, Glubia Cristiane Arruda (2007) sublinhou que, devido ao estado

    calamitoso e ao prprio carter virulento da epidemia da malria, que atingiu os lares

    Jaguaribanos, os vigrios tinham uma pressa maior para dar conta da efetivao de todos os

    rituais litrgicos catlicos. As crianas, por exemplo, s garantiam a bno e a purificao

    12 Ana Felcia de Arajo Chaves, 80 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 20 de outubro de 2009.

  • 34

    dos seus pecados, atravs do cerimonial do batizado, considerado o primeiro sacramento e a

    porta de entrada para tornar-se um cristo catlico. Havia a convico, portanto, que um

    infante no poderia morrer pago. No entanto, as primeiras vtimas da doena eram,

    justamente, os recm-nascidos, pois seus organismos, ainda em desenvolvimento, no tinham

    como resistir, por muito tempo, aos acessos da febre intermitente. (ARRUDA, 2007: 82).

    Os procos precisavam, ento, estar diariamente se deslocando para as

    comunidades do interior, no intuito de levar o conforto espiritual, atravs do batismo. A

    realizao da cerimnia trazia alvio, principalmente, para os pais das crianas, que embora

    estivessem sofrendo a dor da morte do filho, estavam convictos de que o destino do

    pequenino, em sua nova morada celestial, fora abenoado pela gua do batismo.

    De acordo com Joo Jos Reis (1991), a despedida planejada correspondia a boa

    morte. Para os narradores entrevistados, ela significava que a partida terrena no chegava de

    surpresa, antes que os sujeitos prestassem conta e corrigissem seus atos perante os vivos e

    ainda indicassem as instrues sobre os ritos aps a morte. Para que tais posturas se

    concretizassem, era necessrio, em contrapartida, que a morte fosse de alguma forma

    anunciada e comumente isso ocorria por meio das doenas (REIS, 1991: 92). Alm disso, o

    perodo de convalescena do enfermo servia para que aos poucos a famlia se acostumasse

    com a ideia de perder seu ente.

    A desventura decorrente de uma morte repentina diz respeito ao fato do fiel no

    ter tempo de fazer suas penitncias e demonstrar o arrependimento dos pecados cometidos,

    objetivando obter o perdo para os mesmos. Os indivduos passariam desta para outra vida

    sem possibilidades de receber os sacramentos da Igreja, justamente por terem falecido de

    morte repentina ou sbita. A narradora Ana Felcia Chaves relatou, com tristeza, a morte

    inesperada de sua irm, provocada, segunda ela, por uma espinha na face.

    A depoente contou que a irm morreu no dia 24 de Abril de 1946. O pai j

    advertia: Lourdes no esprema essa espinha, mas ela continuou a afligir o ferimento. Tal

    ao resultou em uma grande infeco, que se alastrou rapidamente pelo seu rosto e,

    posteriormente, causou sua morte abrupta. A morte inesperada da irm, mesmo sendo natural,

    no lhe propiciou o recebimento do ltimo sacramento e assim ela no teve tempo para

    preparar sua passagem para o alm-tmulo.

  • 35

    A f numa esfera divina propiciava a certeza da continuidade. O falecido poderia

    no se preparar, mas a famlia no deixava de fazer a obrigao e recomendava sua alma.

    Vale ressaltar que o sacramento fnebre no deveria ser ministrado pela segunda vez ao

    enfermo que j o tivesse recebido durante a mesma doena, a no ser que essa se prolongasse

    e o doente tornasse a cair em perigo de morte.

    Assim, para ter direito a esse sacramento, o moribundo deveria enquadrar-se nos

    princpios da Igreja Catlica. Vailate (2005) tambm afirmou que havia as pessoas em s

    conscincia que, por algum motivo, recusavam esse ritual. Para os adeptos do credo cristo,

    depois de uma vida em comunho com Deus, iniciada no ritual do batismo, o ltimo

    sacramento expressava o desfecho de uma simbologia, que envolvia a comunicao entre

    Deus e os homens, garantia ltima de uma boa passagem para a outra vida.

    1.2 Que se digam por minha alma

    Durante o decorrer do sculo XX, a morte, enquanto um evento, tambm possuiu

    pertinncia nas memrias. Tudo isso nos alertou para mais uma funo presente no ato de

    narrar: lembrar aos devotos a finitude da vida terrena, ou seja, rememorar a existncia da

    morte, o destino final de todos, alertando-os de cumprirem os devidos ritos fnebres,

    entendidos como necessrios para a passagem da alma ao alm, pois eles tambm iro um dia

    precisar.

    Numa abordagem acerca da memria, tomemos por base a interpretao de

    Gisafran Juc (2011), na qual a memria considerada de acordo com a dimenso social que

    representa, numa realidade onde se mesclam o individual e o coletivo, possibilitando uma

    compreenso diferenciada daquela transmitida pela documentao tradicional. Alm do mais,

    ela permite revelar aspectos ou espaos sociais outrora esquecidos e relegados, fazendo brotar

    a lembrana dos que se consideravam excludos do processo histrico. (JUC, 2011: 19).

    Como afirma Elias (1998), a construo do tempo como regulador social, na

    concepo do homem, assume aspectos individuais desde a sua infncia, e vai se

    consolidando como parte da sua conscincia pessoal. Essa compreenso do tempo faz que

  • 36

    esses homens apreendam todas as transformaes e acontecimentos ao seu redor, a partir dos

    reguladores temporais que instituram como smbolo. (ELIAS, 1998: 22).

    Esses reguladores temporais estavam presentes nas narrativas dos entrevistados, a

    partir das referncias que fazem sobre a passagem do tempo: no meu tempo, o tempo de

    hoje diferente do meu tempo, naquele tempo, dentre outras. Esses reguladores temporais

    representaram uma sintetizao da noo de tempo, afinal relacionam posies que se

    situavam associadas a acontecimentos fsicos, modificaes sociais e at mesmo

    acontecimentos de cunho individual.

    A abordagem apresentada por Elias (1998) para o estudo acerca do tempo

    inovadora e carregada de lgica. Consideramos que o tempo fundamental para o

    entendimento das criaes simblicas humanas, para a orientao dos homens no mundo e,

    entre muitas outras coisas, para a prpria (auto) disciplina dos homens, o que garante a sua

    sobrevivncia. Assim, o conhecimento do tempo a conscincia que se tem dele.

    Nas palavras abaixo, do Senhor Antenor Bezerra Dias, de 83 anos, reconstrudas

    na sala de visitas da sua residncia na zona urbana de Russas, ele descreveu como ocorria o

    funeral em rede:

    Naquele tempo, dificilmente se conduzia o corpo no caixo, geralmente era numa rede. Quem morava distante, no interior, vinha na rede, fazia uma trava, dois assim e dois assim [o depoente gesticula os braos, dizendo como se colocava os paus], armava a rede daqui pra c [gesticula novamente], amarrava nos paus e quatro homens pegavam, era muita gente ali, trocava. Eu tive de carregar defunto em rede, j tive de carregar. Agora, quem morava perto da cidade usava o caixo, mas no interior era na rede, descia na cova ali com rede e tudo13.

    A reflexo que o narrador teceu, ao caracterizar os enterros em redes, nos instigou

    a pensar que antes da fabricao dos caixes, as esteiras que eram feitas das palhas de

    carnaba serviam para colocar o morto. Quando era solicitada a confeco de um caixo, os

    prprios carpinteiros de Russas passavam a noite trabalhando para que no amanhecer do dia, o

    esquife ficasse pronto.

    13 Antenor Bezerra Dias, 83 anos, comerciante e pastor da Igreja Assembleia de Deus. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 18 de setembro de 2011.

  • 37

    Conforme aponta Cascudo (2003), em vrios locais no interior do nordeste, era

    comum transportar defuntos em rede. A rede era colocada numa grade feita de quatro paus

    fortes, s testas da grade eram amarrados os punhos da rede onde o defunto era colocado, sem

    que cessasse a cantoria no decorrer do percurso.

    Como vimos na narrativa, eram colocados dois paus de madeira resistentes, de um

    lado para o outro e neles armava-se a rede com o defunto. Alm disso, ainda se colocava um

    travesseiro embaixo da cabea do morto e um cobertor envolvendo o falecido. Na igreja, era

    feita a encomendao da alma e, em seguida, o corpo era conduzido at o cemitrio para o

    sepultamento. Depois, quatro pessoas transportavam o morto at o local do enterro. A

    trajetria a ser percorrida era longa e, para tanto, era necessrio um grande nmero de pessoas

    para realizarem o percurso.

    A depoente Maria Tereza Ribeiro, de 56 anos, declarou que fabricado em casa

    durante o velrio, o povo velando o corpo e outros fabricando o caixo de madeira, prego e

    pano cobrindo de alguns tecidos pretos, outros roxos, outros azul, dessa forma os caixes

    eram cobertos 14.

    Enquanto o velrio estava acontecendo, o defunto era posto no cho e passava a

    noite sendo velado, em casa, espera da urna. Os marceneiros s terminavam a atividade no

    outro dia, no perodo da manh, uma vez que a fabricao era realizada manualmente e

    demandava um determinado tempo, pois no se tinha o caixo feito. Vejamos na fotografia

    abaixo, a esttica dos caixes:

    14 Maria Tereza Ribeiro, 56 anos, aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, no dia 09 de agosto de 2009.

  • 38

    Fotografia 01: Defunto no caixo15.

    Os materiais utilizados para a confeco das urnas eram pregos, tecidos pretos e

    roxos (para os caixes de adultos), e azuis para caixes infantis, nesse caso havia distines

    entre as cores. Tal aluso, ao fato do corpo do morto esperar a produo do fretro, pode ser

    corroborada no relato da Dona Ana Felcia Chaves, que apresentou detalhes:

    Era feito de cumaru e pano preto, nesse tempo tinha uns biquim ao redor do caixo e em cima era a cruz do calvrio que Jesus morreu. Os carpinteiros passavam a noite acordado e o defunto ficava no cho, botava numa esteira, o defunto, e cobria com um panim, assim passava a noite no cho o defunto16.

    Na narrativa da Dona Ana Felcia, alguns elementos foram recordados

    demonstrando o sentimento de intimidade fnebre, que denunciava a sensibilidade coletiva

    para com o momento da morte. Isso ficou inteligvel, entre outras circunstncias, na passagem

    em que ela abordou a produo do caixo pelos prprios moradores da regio.

    Na narrativa acima, as ocasies so confrontadas com momentos de sensibilidade

    emotiva, que se revelaram a ns, concomitante ao que observou Alessandro Portelli (1997),

    Fontes orais contam-nos no apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez. Fontes orais podem no adicionar muito ao que sabemos, por exemplo, o custo material de uma greve para

    15 Arquivo Pessoal de Lairton Arajo, 60 anos, agricultor, agricultor, residente no Distrito do Peixe, zona rural do municpio de Russas-CE. Fotografia datada do ano de 1942. 16 Ana Felcia de Arajo Chaves, 80 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 20 de outubro de 2009.

  • 39

    os trabalhadores envolvidos; mas conta-nos bastante sobre seus custos psicolgicos. (PORTELI, 1997: 30).

    a subjetividade presente nesses custos psicolgicos que se torna o bem mais

    valioso da fonte oral. no processo de construo da narrativa que silncios, lgrimas,

    sorrisos vo se revelando durante a entrevista e nos fazem repensar a histria a partir da

    perspectiva do individuo para com a sociedade.

    Tambm tomamos como referncia o som do processo manual de produo do

    caixo, o que nos faz lembrar o trabalho de construo da memria morturia, reelaborada

    nesse caso a partir das sensibilidades despertadas no corpo: dos cheiros, sons e imagens

    trazidos na memria. Tal particularidade dos enterros em redes foi observada na narrativa do

    Senhor Antenor Bezerra Dias,

    Se enfrentava muita dificuldade, porque a urna era comprada e muita gente no podia comprar, ento arranjavam pelos menos tbuas, para um determinado carpinteiro confeccionar um caixo. Alm disso, tinha que realizar uma coleta entre a famlia para comprar aquele pano preto para cobrir o caixo. Em determinado cemitrio tinha l, numa casinha do cemitrio, um caixo, j guardado. Quem no podia comprar de jeito nenhum, ento ia buscar o caixo da prefeitura, fazia seu sepultamento e guardava o caixo novamente17.

    Percebemos na narrativa a prtica de coletar dinheiro entre os familiares do morto,

    com o intuito de comprar tecidos para cobrir a urna funerria. Consoante os estudos de Reis

    (1991) e as descries de Cascudo (2002), enquanto o cadver estivesse presente nos recintos

    domsticos, os familiares no recusavam esmolas. Conforme a narrativa do seu Antenor

    Bezerra, as doaes eram importantes para suprir os gastos com o evento fnebre, em especial

    dos mais carentes.

    Segundo Ccero Joaquim dos Santos (2009), em sua dissertao de mestrado, ao

    estudar sobre a morte da Rufina no municpio de Porteiras, ressaltou que naquela cidade o

    banho e a limpeza do morto eram logo providenciados. Tais modos revelavam experincias

    sociais intimamente estabelecidas. Havia, assim, um conjunto de comportamentos que

    correspondiam de algum modo aos limites humanos perante o corpo. O cadver deveria ficar

    limpo das impurezas do mundo terreno: preceito para adentrar o mundo celestial. Assim

    17 Antenor Bezerra Dias, 83 anos, comerciante e pastor da Igreja Assembleia de Deus. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 18 de setembro de 2011.

  • 40

    sendo, eram retiradas as impurezas das unhas, alm de serem cortadas, como tambm era feito

    com os cabelos e barbas. Nessa cerimnia, como elucidou o registro de Cascudo (2002),

    Nem todos tm o direito de tocar o cadver. Somente aqueles que sabem vestir defuntos, pessoas de boa vida, especializadas, com a serenidade e compostura de uma exposio do oficio religioso. Trabalham depois para rezar e vo vestindo pea por pea de roupa falando com o morto, chamando-o pelo nome: dobre o brao, fulano, levante a perna, deixa ver o p. (CASCUDO, 2002: 21).

    Logo, notamos nas descries acima peculiaridades que eram definidas perante o

    trato com o corpo do morto. Assim sendo, nem todos poderiam cuidar do ritual da limpeza.

    Havia, portanto, pessoas adequadas para faz-lo. Em Russas, a tarefa cabia aos prprios

    moradores mais velhos, recobertos de serenidade religiosa para fazer esse tipo de servio.

    No esteio das descries de Cmara Cascudo (2002), a folclorista Cndida Galeno

    (1977), ao estudar os ritos fnebres no interior do Cear, apontou que:

    Em Limoeiro do Norte e Tau, cidades do interior cearense, segundo depoimento das educadoras Carmosina Arraes Freire e Lili Feitosa, depois de morto, fecham-se os olhos do defunto, amarram-se-lhe os ps, cruzam as mos sobre o peito, penteiam-se os cabelos e faz-se uma limpeza nas partes do corpo que ficam expostas, descobertas, para dar ao morto boa aparncia. (GALENO, 1977: 17).

    Em muitos casos, ainda na sentinela, antes da morte, imagens de santos e

    crucifixos eram colocadas para o enfermo. Alm disso, sobre as mos do morto, deitadas

    acima do peito uma sobre a outra, eram enrolados os rosrios e colocados crucifixos, objetos

    religiosos utilizados nas oraes, que tambm representavam proteo. A depoente Dona

    Maria Gerardina de Arajo comentou sobre os adornos sobrepostos no morto:

    Quem tinha seu terim, levava o tero no pescoo, quem tinha uma irmandade, por exemplo, a pessoa tem a irmandade do Corao de Jesus, tem a irmandade de Santa Terezinha, que eu tinha todas essas irmandades, por exemplo. Eu morro e tenho minha fita do corao de Jesus. A pessoa bota no defunto, eu quero me enterrar com minha fita18.

    A narrativa nos chamou ateno quando Dona Maria Gerardina apontou para o

    uso da medalha aps seu falecimento, observamos que a narradora mantinha alguma ligao

    religiosa com as referidas Irmandades que ela citou: Santa Terezinha e Sagrado Corao de 18 Maria Gerardina Maia Arajo, 81 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, no dia 20 de outubro de 2009.

  • 41

    Jesus. A Igreja Catlica Romana fomentou prticas devocionais, como os teros, novenas

    (nove dias de orao por alguma inteno especial), peregrinaes aos santurios e a

    devocional importncia atribuda aos Santos (especialmente Virgem Maria).

    Trao sensvel, presente nas sentinelas em Russas, era o comparecimento das

    rezadeiras, que sempre se encarregavam das preces, cnticos e ladainhas. Eram elas ainda que

    amparavam a famlia e deveriam fazer da reza um momento de unio do morto com os vivos.

    Marco Teixeira (2009) descreveu que as rezas eram entrecortadas por momentos de relativa

    inatividade por parte das rezadeiras. Essas ocasies serviam para restabelecer a calma e o

    equilbrio e eram aproveitados para consolar os familiares e se contar gracejos. (TEIXEIRA,

    2009: 8).

    As rezadeiras tambm exerciam a funo de fazer as preces finais, colocando uma

    vela na mo do moribundo, para que a luz eterna pudesse ilumin-lo, e, ainda, um crucifixo,

    para que ele estivesse protegido no ltimo combate pela salvao de sua alma. Nesse

    momento, eram evocadas oraes que faziam meno Virgem Maria, me de Jesus Cristo.

    Com relao a isso, a depoente Maria Tereza Ribeiro elencou que: Era com muitas rezas,

    com o ofcio de Nossa Senhora, e outras rezas, que a pessoa era preparada para morrer 19.

    Nesse contexto, os ltimos suspiros do moribundo eram seguidos de oraes e

    ladainhas. Dona Maria Gerardina, na continuidade da sua narrativa, mencionava as prelees

    invocadas no momento da morte:

    De primeiro, aqui, todo mundo que se aproximava morrer vinham me chamar para eu botar a vela na mo, alumiar o nome de Jesus, rezar aquelas oraes que eu rezava pelo pequeno missionrio e o exerccio de alcanar a graa de uma morte, essas coisas eu rezava. [...] Falava, Jesus Maria e Jos, Maria me de graa, me de misericrdia, defendei-me do inimigo amparai-me nesta hora! Essas oraes eu fazia pelos livros, no era coisas que eu sabia decorado no20.

    As oraes entoadas no acompanhamento do morto eram significativas na cultura

    fnebre do serto cearense. Em Russas, da mesma forma, as canes religiosas assumiam

    relevncia nos cenrios fnebres de ento.

    19 Maria Tereza Ribeiro, 56 anos, aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, no dia 09 de agosto de 2009. 20 Maria Gerardina Maia Arajo, 81 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, no dia 20 de outubro de 2009.

  • 42

    O oficio das almas, alm de outras preces e oraes, possua relevncia simblica

    para o moribundo. Segundo Riedl (2002), era realizado no Cariri, nas sentinelas e nas missas

    dedicadas aos mortos e a sua alma. De acordo com suas reflexes, a entonao do Oficio das

    Almas diz respeito ao entendimento de que os moribundos, mesmo engendrados em pecados,

    ainda que estes no fossem de grande relevncia, eram pegos de surpresa perante a morte. Por

    isso, sua entrada no reino do cu somente seria plausvel aps uma rpida passagem pelo

    purgatrio. A folclorista Cndida Galeno (1977) em seus registros descreveu a letra da

    inselncia de despedida tambm presente nos ritos fnebres em Russas:

    Bendito louvado seja meu Jesus da Piedade vamos rezar aos doze apstolos e a Santssima Trindade. um irmo apstolo que ganhou o paraso, adeus, irmo, adeus, At o dia de juzo. Quando eu falo em Deus, me alegro no meio da Cristandade, me lembro das trs pessoas, irmo, da Santssima Trindade. (GALENO, 1977: 35).

    Nesse processo, cabia aos vivos a entonao da orao para aliviar os pecados do

    falecido. Tais atitudes ocorriam nos ltimos momentos na terra ou mesmo aps sua partida.

    Esse entendimento era visvel nesse trecho da orao do oficio da agonia, registrado em uma

    publicao do livreto pequeno missionrio21, em Fortaleza, no ano de 1958:

    Meu Deus, Deus da misericrdia, eu vos peo perdo de ter ofendido vossa infinita bondade. Fui um filho ingrato, mas vs sois o melhor dos pais e por isso tenho confiana que me perdoeis. No dissestes, no quero a morte do pecador, mas que se converta e viva eternamente no cu? Perdoai Senhor, como eu perdo por amor vosso aos que me tem ofendido. Jesus, tende piedade de mim! Corao de Jesus tende confiana em vs, sede minha salvao. Corao Imaculado de Maria, sede meu refgio! So Jos Padroeiro da boa morte, todos os santos anjos do cu [...]22.

    Como vemos no registro acima, o desejo da glria eterna revelava o mago das

    oraes lgubres. Notamos tambm o despertar das sensibilidades emotivas atravs das

    oraes promulgadas perante o morto, como o verso citado por Dona Maria do Carmo de

    Arajo: Que repouso eterno da-me senhor, a luz perptua o resplendor23.

    21 No livro Pequeno Missionrio, identificamos as oraes da hora da morte contidas nele: O ofcio da agonia, a orao da misericrdia, a ladainha dos agonizantes, o Pai Nosso, a Ave Maria, as jaculatrias, a indulgncia plenria na hora da morte, as splicas, orao a Virgem Maria e So Jos e a ladainha de Nossa Senhora. 22 Pequeno Missionrio, 1958, 115-116. 23 Maria do Carmo de Arajo, 65 anos, agricultora aposentada. Entrevista realizada pela autora deste trabalho, em Russas, no dia 08 de agosto de 2009.

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    Em formato de brochura, a publicao era apenas um pouco maior do que um

    folheto da literatura de cordel e continha uma breve dissertao sobre os assuntos do

    purgatrio e da morte, alm da indicao de rezas para o salvamento das almas dos fiis. O

    texto reunia e sistematizava conhecimentos j comumente praticados e aceitos pela

    comunidade catlica da poca, sem, no entanto, inovar nas doutrinas ou acrescentar

    novidades. (SANTOS, 2009: 150).

    O Pequeno Missionrio possua resumidamente a doutrina crist do Catolicismo

    Romano. Ele continha as principais devoes consagradas pela Igreja Catlica. Alm da hora

    da morte, ele remetia a outros temas, como: consagrao sagrada famlia, explicaes sobre

    a confisso, o valor da Santa Missa, a Santa Comunho, as novenas, as ladainhas aos Santos,

    etc. Deste modo, o livrinho sintetizou e reforou algo j amplamente conhecido e

    correspondeu a uma prtica litrgica recorrente, na tentativa de fortalecer crenas.

    A atividade missionria, para a qual foi escrito o livreto de oraes o Pequeno

    Missionrio, de posse comum entre os habitantes de Russas, pareceu estar associado

    tentativa de romanizao das prticas do catolicismo popular que surgiram no Conclio

    Vaticano I. Por meio de ladainhas e rezas de modo geral, este se tornou a principal referncia

    das oraes que se ajustaram a diversos momentos da vida dos membros da cidade, junto com

    a proliferao das Irmandades Leigas.

    Tais posturas estavam de acordo com os rumos do processo de romanizao.

    Segundo o autor Rgis Lopes Ramos (2004), em linhas gerais, os historiadores usavam o

    termo romanizao para caracterizar as diretrizes adotadas pelos dirigentes da Igreja

    Catlica na segunda metade do sculo XIX. Sobretudo depois do Conclio Vaticano I (1869-

    1870), as polticas da Santa S desenvolveram vrias aes no sentido de fortalecer a

    hierarquia no funcionamento da estrutura clerical. (RAMOS, 2004: 350).

    Nesse projeto, havia uma profunda valorizao da obedincia. Os leigos tinham a

    obrigao de se pautar pelos padres e demais membros da ordem eclesistica. Os padres

    deviam obedincia aos bispos, a outros superiores, assim como os bispos eram subordinados a

    membros do corpo clerical que ocupavam cargos de maior poder. Obviamente, o topo dessa

    complexa estrutura era ocupado pelo papa.

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    Desse modo, o cu seria o lugar dos submissos (dos que obedeciam) e o inferno, a

    priso daqueles que no seguiam as determinaes da doutrina catlica. Com a romanizao,

    a Igreja tornava-se mais repressiva, procurando desenvolver, com mais intensidade, uma

    pedagogia do medo, ou melhor, reafirmando, com mais nfase, que os desobedientes agiam

    porque estavam dominados pelo demnio. Todos deveriam redobrar os cuidados em