Dissertação APA 5ªed..PDF 2

129
Irma Neves Tallmann Saar MANIFESTAÇÕES PSICOSSOMÁTICAS EM SUJEITOS COM TRANSTORNO MENTAL PSICÓTICO Juiz de Fora 2012

Transcript of Dissertação APA 5ªed..PDF 2

  • Irma Neves Tallmann Saar

    MANIFESTAES PSICOSSOMTICAS EM SUJEITOS COM TRANSTORNO MENTAL PSICTICO

    Juiz de Fora 2012

  • Irma Neves Tallmann Saar

    MANIFESTAES PSICOSSOMTICAS EM SUJEITOS COM TRANSTORNO MENTAL PSICTICO

    Orientador: Prof. Dr. Antenor Salzer Rodrigues

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia, rea de concentrao: Processos Psicossociais em Sade, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Psicologia por Irma Neves Tallmann Saar Orientador: Prof. Dr. Antenor Salzer Rodrigues

    Juiz de Fora 2012

  • Irma Neves Tallmann Saar

    MANIFESTAES PSICOSSOMTICAS EM SUJEITOS COM TRANSTORNO MENTAL PSICTICO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia, rea de concentrao: Processos Psicossociais em Sade, da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Psicologia.

    BANCA EXAMINADORA

    Presidente: Prof. Dr. Bianca Maria Sanches Faveret

    Orientador: Prof. Dr. Antenor Salzer Rodrigues

    Titular: Prof. Dr. Andria da Silva Stenner

  • AGRADECIMENTOS

    Cada etapa vencida fruto de um desejo tornado possvel. Ao colega e Professor Dr. Gilberto Barbosa Salgado, que me estendeu as mos para os primeiros passos deste caminho. Luciana Gouvea Leite, sua esposa, por compartilhar deste momento final e possibilitar novos caminhos. Ao Orientador Dr. Antenor Salzer Rodrigues, que me guiou, gentilmente. Elimar Jacob, pela receptividade e palavras gentis, sempre. Aos membros das bancas, Dr. Andria da Silva Stenner, Dr. Bianca Maria Sanches Faveret, Dr. Fabiane Rossi dos Santos Grincenkov e Dr. Juliana Perucchi, pela disposio em contribuir para o aprimoramento deste trabalho. Ao Gestor Municipal de Sade Mental, Jos Eduardo Amorim, pela autorizao e apoio ao desenvolvimento desta pesquisa. minha me Lucy, exemplo de dedicao e persistncia, e a meu pai Osny, com quem aprendi as metforas das histrias e das canes, nas noites da infncia. A meu esposo, Antonio Henrique, pela felicidade que compartilhamos. A meus amados filhos Filipe e Isabela, as luzes que acendem o meu olhar. A meus irmos Roberto e Vera, cunhadas e cunhados, sobrinhos e, em especial, Raquel, pela alegria do convvio familiar. Samara e Matheus, por participarem desta histria. Josiane Pinto Ribeiro, pelo carinho e cuidado. s amigas Vanessa Nolasco Ferrreira, Fernanda Deotti, Hortnsia Isabela, Daniele Antunes Rangel, Lase Jardim, Lara Brum e Andria Spndola, pelos bons momentos acadmicos. Aos colegas de trabalho, Rosemeire Costa Santos e Silva, Rosane Jacques Rodrigues, Cynthia Marotta, Cludia Mara Oliveira Richa, Isabela Reimo, Hermelinda Bencio, ngela Bitarelli, Alusio Batista Monteiro, Mrcia Rodrigues Silva, Rosana Braile, Maria do Carmo Jacob Loures, Fabola Portilho, Llian Freire, Rita Almeida, Maria Luiza Freesz, Llia Singulani e demais colegas dos servios de sade mental, pelo incentivo e por acreditarmos na clnica possvel do Sistema nico de Sade. Aos usurios dos servios de sade mental, por me ensinarem sobre a vida e sobre a clnica, vivncias inesquecveis.

    Nilcimara Bertolino, pelo apoio constante.

  • Foi ele, esse iluminado de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados, que um dia saltou

    dentro de mim e gritou basta! Num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustia. Foi ele quem amou a mulher e a colocou num pedestal e lhe ofertou uma flor. Foi ele quem

    sofreu quando jovem a emoo de um desencanto, e chorou quando menino a perda

    de um brinquedo, debatendo-se na camisa-de-fora com que tolhiam o seu protesto. Este ser

    engasgado, contido, subjugado pela ordem inqua dos racionais o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha

    condio de homem, heri e pobre diabo, pria, negro, judeu, ndio, santo, poeta,

    mendigo e dbil mental. Viramundo! Que um dia h de rebelar-se dentro de mim, enfim

    liberto, poderoso na sua fragilidade, terrvel na pureza de sua loucura.

    Fernando Sabino O Grande Mentecapto

  • RESUMO

    O presente trabalho pretendeu investigar, por meio de estudo qualitativo exploratrio, utilizando-se da metodologia Estudo de Caso, a presena ou ausncia de manifestaes psicossomticas em sujeitos com transtorno mental psictico. Para o fim proposto, discutiu-se o papel das emoes, em especial do medo e do estresse, potenciais desencadeadores das manifestaes psicossomticas. Contextualizou-se o campo da pesquisa, no qual usurios com transtorno mental tm acesso ao tratamento diferenciado do modelo hospitalocntrico, respeitados como sujeitos e cidados de direito. A pesquisa de campo foi realizada com pessoas de ambos os sexos, maiores de 18 anos, que apresentam transtorno mental psictico, usurios de um Centro de Ateno Psicossocial (CAPS), situado em Juiz de Fora, selecionadas por meio de amostragem, por variedade de tipos. Verificou-se que, junto psicose, tambm se podem evidenciar manifestaes orgnicas, de cunho psicossomtico. Impossvel evidenciar uma relao causa/efeito; contudo, afirma-se a existncia de fatos concretos, sentimentos, emoes e reaes, que facilitam, direcionam e confluem para o adoecimento do corpo. Confirmou-se que os sujeitos pesquisados sofrem da emoo do medo, do estresse, e que esses fatores podem ser desencadeadores das doenas psicossomticas.

    Palavras-chave: Manifestaes psicossomticas. Psicose. Medo. Estresse.

  • ABSTRACT

    This work intended to investigate, through exploratory qualitative study, using the methodology Case Study, the presence or absence of somatoform disorders in subjects with psychotic mental disorders. For this purpose, it was discussed the role of the emotions, such as the fear and the stress, as potential trigger of the somatoform disorders. The field of the research was contextualized, in which users with mental disorders have access to the differentiated treatment of the hospital-centered model, in which they are treated as individuals and citizens with rights. The field research was conducted among individuals of both sexes, over 18 years old, who present psychotic mental disorder and users of a Center of Psychosocial Attention situated in Juiz de Fora, selected by sampling by variation in the types. It was verified that with the psychosis we can also evidence organic manifestations with a psychosomatic character. Although impossible to evidence a cause/effect relation, it is stated the existence of facts, feelings, emotions and reactions that facilitate, direct and converge to the illness of the body. It was confirmed that the surveyed subjects suffer the emotion of fear, stress and that these may be triggers of psychosomatic illnesses.

    Key-words: Somatoform Disorders. Psychoses. Fear. Stress.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Quadro 1 Quadros psicofisiolgicos com e sem alteraes orgnicas.................... 36 Quadro 2 Diagnsticos psiquitricos....................................................................... 80 Quadro 3 Manifestaes psicossomticas antes e depois do surto.......................... 84 Quadro 4 Sintomas de estresse e outros sintomas................................................... 89 Quadro 5 Emoo de medo..................................................................................... 91 Tabela 1 Alguns transtornos psicossomticos........................................................ 37

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ACTH Hormnio adrenocorticotrpico ADH Hormnio antidiurtico CAPS Centro de Ateno Psicossocial CASM Centro de Ateno Sade Mental CFH Hormnio corticotrofina

    CID 10 Classificao Internacional de Doenas CONEP Conselho Nacional de tica em Pesquisa CRF Fator liberador da corticotrofina DMS Doenas Mentais Severas

    DMP Doenas Mentais Persistentes

    DRSME Departamento da Rede de Sade Mental

    DSM IV Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais Ent. Entrevista

    ESF Estratgia de Sade da Famlia FR Fase de Resistncia

    FSH Hormnio folculo estimulante

    HHA Hipotlamo-hipfise-adrenal

    HPA Hipotlamo-pituitria-adrenal HPS Hospital de Pronto Socorro

    HU Hospital Universitrio

    LH Hormnio luteinizante

    MS Ministrio da Sade NK Natural Killers

    OMS Organizao Mundial de Sade Pront. Pronturio

    PUC Pontifcia Universidade Catlica RA Reao de Alarma RTs Residncias Teraputicas SAG Sndrome Geral de Adaptao

  • SII Sndrome do Intestino Irritvel SNA Sistema Nervoso Autnomo

    SNC Sistema Nervoso Central SRT Servios Residenciais Teraputicos

    SUP Servio de Urgncia Psiquitrica SUS Sistema nico de Sade UAPS Unidades de Ateno Primria de Sade UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora US Usurio

  • SUMRIO

    1 INTRODUO..................................................................................... 11 2 ANGST COMO MEDO......................................................................... 19 2.1 A TEORIA DE ANGST............................................................................................ 19 2.1.1 A primeira teoria de Angst.................................................................................... 22 2.1.2 A segunda teoria de Angst..................................................................................... 30 3 MANIFESTAES PSICOSSOMTICAS....................................... 34 4 ESTRESSE............................................................................................. 42 4.1 RESPOSTA ORGNICA AO ESTRESSE............................................................. 45 4.1.1 Sistema lmbico e emoes................................................................................... 46 4.1.2 Sistema neuro-endcrino-imunolgico................................................................. 49 4.1.3 O cortisol e o estresse............................................................................................ 53 4.2 RESPOSTA ORGNICA AO MEDO.................................................................... 54 5 PSICOSE: REJEIO, FORACLUSO, SNDROMES.................... 56 5.1 NA VIA DA PSICOSE: CONSIDERAES FREUDIANAS E LACA- NIANAS....................................................................................................................

    56 5.2 PRINCIPAIS TRANSTORNOS PSICTICOS NA TICA PSIQUITRICA..... 65 5.3 PSICOSE E PSICOSSOMTICA........................................................................... 68 6 MTODO............................................................................................... 71 6.1 METODOLOGIA DE ESTUDO............................................................................. 72 6.2 AMOSTRA........................................................................................................... 73 6.3 INSTRUMENTO.................................................................................................. 75 6.4 PROCEDIMENTO.................................................................................................. 76 6.5 ANLISE DOS DADOS......................................................................................... 77 7 RESULTADOS E DISCUSSES......................................................... 78 7.1 NO CAMPO DE PESQUISA.................................................................................. 78 7.2 O DIAGNSTICO DE PSICOSE........................................................................ 79 7.3 UNIDADES DE ANLISE.................................................................................. 82 7.3.1 Unidade incorporada de anlise 1: verificar se houve ou no ocorrncia do fenmeno psicossomtico e quando e como ocorreu............................................

    82 7.3.2 Unidade incorporada de anlise 2: verificar se h evidncias de sintomas de estresse que venham corroborar a emergncia do fenmeno psicossomtico....

    88 7.4 A EMOO DE MEDO......................................................................................... 90 7.5 CADA CASO UM CASO................................................................................. 100 7.5.1 Estudo de caso US1............................................................................................... 100 7.5.2 Estudo de caso US12............................................................................................. 102 7.5.3 Estudo de caso US17............................................................................................. 105 7.6 OUTROS ACHADOS RELEVANTES................................................................ 109 8 CONSIDERAES FINAIS................................................................ 113 REFERNCIAS........................................................................................ 116 ANEXOS.................................................................................................... 122

  • 11

    1 INTRODUO

    Acho que eu no vou voltar a ser como eu era, queria estar no meio das pessoas normais, queria escrever um livro sobre como conviver com a loucura.

    US3.

    O fenmeno da loucura, ao longo da histria, esteve condenado ao lugar da excluso: da sociedade, da famlia, do lao social. Nos tempos hodiernos, ainda um fenmeno que no se explica em sua totalidade, apesar de todas as descobertas neurocientficas; contudo, grande avano se fez no desenclaustramento da loucura convivncia social.

    Conforme Foucault (1972), historicamente, a loucura sempre causou inquietao e repulsa. Os insanos eram banidos das cidades e perambulavam em uma nau sinistra, a fim de serem deportados. Luiz XIV, em 1656, criou o Hospital Geral em Paris, agregando os vrios estabelecimentos j existentes, entre eles a Salptrire e o Hospital Bictre; este, originalmente, fora construdo para ser uma priso; esses locais foram, ento, agrupados sob uma nica administrao. Entretanto, o Hospital Geral no era um estabelecimento mdico. Era uma estrutura semijurdica, uma instncia da ordem monrquica e burguesa, responsvel pelo recolhimento dos pobres e vagabundos, pelo encarceramento de bandidos de todas as espcies e da recluso de alguns tipos de doentes, os quais no podiam ser recebidos nem tratados no Hotel-Dieu (este sim, uma instituio mdica), tais como os portadores de doenas venreas e os loucos. Os homens eram mandados para o Bictre e as mulheres, para a Salptrire. Assim, os doentes mentais passaram a ser confinados, misturados aos epilpticos, cancerosos, sifilticos, entre outros. Acrescentavam-se ainda os ladres, os assassinos, as prostitutas e toda sorte de pria daquela sociedade. Esse modelo de recolher o doente mental em espaos reclusos espalhou-se pela Europa e tanto a Inglaterra quanto a ustria criaram os seus hospitais para os insanos.

    Assim sendo, a loucura perdeu suas feies prprias e, com isso, as demais patologias que compunham o quadro clnico do enfermo ficavam ignoradas e, durante os prximos sculos, nenhuma ateno especial foi dada s demais afeces presentes e nenhuma relao etiolgica foi feita entre elas.

    Somente no final do sculo XIX e incio do sculo XX, os quadros psiquitricos passaram a ser melhor avaliados e sintomas de outras formas mrbidas separados, os quais comearam a ser definidos como novas entidades nosolgicas propriamente ditas.

  • 12

    Portanto, os pacientes psicticos ou loucos foram, historicamente, excludos de suas famlias, asilados, e passaram a viver em condies desumanas e a serem submetidos ao poder psiquitrico como poder de disciplinarizao dos corpos. Tornaram-se o objeto da ao do saber sobre eles, mas exercido como um poder sobre o seu corpo: poder de cerceamento, de vigia, de coero, de submisso e de obedincia. Tal excluso social da loucura pode ser tambm verificada nos relatos de Foucault (2006), na obra intitulada O poder psiquitrico, e tambm no documentrio brasileiro Em nome da razo, de Helvcio Ratton, filmado em 1979, que retrata cenas reais do confinamento de loucos e no loucos no Hospital Colnia de Barbacena, Minas Gerais. Felizmente, ocorreram, nas ltimas dcadas do sculo XX, movimentos sociais que reverteram essa situao.

    No Brasil, o campo da sade mental emerge entre os anos 1978 e 1980, como um movimento contrrio ao saber psiquitrico institudo e ao tratamento dado loucura, sendo denominado Incio do movimento da reforma psiquitrica (Amarante, 1995), com antecedentes na Europa e nos Estados Unidos e exercendo influncia nas primeiras discusses no Brasil, no final dos anos 1970. Esse movimento visa, em linhas gerais, resgatar o lugar de cidadania do louco, do alienado, permitindo-lhe a incluso social e garantindo-lhe o respeito diferena, bem como a substituio do modelo asilar, hospitalocntrico, por um tratamento humanizado em servios substitutivos. Ocorreu, desse modo, uma mudana de paradigma para o tratamento da loucura, impondo que se criassem leis e polticas pblicas que pudessem sustent-lo. Atualmente, o Brasil tem uma poltica nacional de sade mental determinada pelo Ministrio da Sade (MS), alm de servios substitutivos para cuidar de doenas mentais, e ainda uma legislao que protege os doentes mentais (Kohn, Mello & Mello, 2007). No entanto, ainda possvel se deparar com a carncia de atendimentos em sade mental, inacessibilidade e no universalidade dos recursos. Mais do que nas leis ou polticas pblicas, no empenho e na fora de trabalhadores e usurios, apoiados por instncias de controle social da sade (conselhos municipais, estaduais e nacionais de sade e sade mental, conferncias que do voz a usurios e trabalhadores, organizaes no governamentais, entre outros), que a reforma psiquitrica vai acontecendo, enquanto movimento dinmico e, portanto, sempre inacabado.

    O atual modelo de tratamento de sade mental preconizado pelo Ministrio da Sade prope a criao de servios de sade mental, substitutivos ao modelo hospitalocntrico, a fim de formar uma rede de ateno sade mental no Sistema nico de Sade (SUS), sistema brasileiro vigente de ateno sade.

  • 13

    Sendo assim, torna-se poltica pblica, a partir dos anos 1990, o processo de reduo de leitos em hospitais psiquitricos e a desinstitucionalizao de pessoas com longo histrico de internaes. A implementao e o financiamento de Servios Residenciais Teraputicos (SRT) advm da necessidade de prover moradia s pessoas portadoras de transtornos mentais graves, egressas ou no dos hospitais psiquitricos. Essas residncias teraputicas, localizadas nos espaos urbanos, tornam-se os locais de moradia e reinsero dessas pessoas no mbito social (Delgado et al., 2007).

    Integrados s residncias teraputicas como servio substitutivo ao hospital psiquitrico, h os Centros de Ateno Psicossocial (CAPSs), que so servios de sade mental municipais, abertos, cujas funes so: prestar atendimento clnico multiprofissional em regime de ateno diria, evitando internaes psiquitricas; promover a insero social (acesso ao trabalho, lazer, direitos civis, fortalecimento de laos familiares e comunitrios), por meio de aes intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de sade mental na sua rea de atuao (territrio); dar suporte ateno bsica (Unidades de Ateno Primria de Sade UAPS e Estratgia de Sade da Famlia ESF), por intermdio de aes de matriciamento e superviso. Os CAPSs podem prestar suporte e atendimento diferenciado em sade mental, direcionados a faixa etria especfica ou transtorno diferenciado, como no caso dos CAPSs i (Centro de Ateno Psicossocial da Infncia, com suporte de 0 a 18 anos) e CAPS AD (Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas).

    Tambm inseridos nessa rede de servios, esto os Centros de Convivncia e Cultura, que oferecem aos portadores de transtorno mental espaos de sociabilidade, produo cultural e interveno na cidade, facilitando a construo de laos sociais e incluso social, possibilitando a gerao de renda por meio da prpria produo artstica e cultural dos usurios.

    Importante ressaltar que o trabalho em rede multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial possibilita aos usurios portadores de sofrimento mental resgatar o seu lugar no mundo, minimizando estigmas, preconceitos, esteretipos, respeitando o direito diferena.

    O advento da Reforma Psiquitrica contribuiu para o avano de pesquisas sobre os transtornos mentais, principalmente no campo social, estabelecendo aproximaes com o campo da sade coletiva, cujos princpios convergem para o mesmo objetivo: a humanizao dos servios, conferindo tratamento digno aos usurios do SUS.

    Por outro lado, os dados epidemiolgicos relacionados incidncia e prevalncia de transtornos mentais no Brasil necessitam de pesquisas mais apuradas, pois ainda esto sendo utilizadas inferncias estimativas, a partir de ndices norte-americanos; contudo, tais ndices

  • 14

    revelam que a doena mental altamente prevalente. Em estimativas da prevalncia de doena mental para um ano, encontraram-se valores de 24,2%, sendo 6% para Doenas Mentais Severas (DMS), quais sejam: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, autismo, formas de depresso maior, transtorno do pnico e transtorno obsessivo-compulsivo, e 3,1% para Doenas Mentais Persistentes (DMP). Estima-se, a partir desses dados, que 10.188.000 brasileiros sofram de uma doena mental sria, das quais 5.263.000 so persistentes; por conseguinte, mais de 10 milhes de pessoas necessitam ateno especializada em sade mental (Mari, Jorge & Kohn, 2007).

    O trabalho clnico desenvolvido com pacientes do Sistema nico de Sade a inspirao para o desenvolvimento desta pesquisa. O atendimento clnico-psicolgico no mbito do SUS desafia o profissional quanto ao entendimento das mais diversas patologias inseridas em um contexto biopsicossocial, extrapolando o foco individual e especfico. Assim, delimitar um campo de estudos torna-se tarefa rdua, uma vez que tantas so as questes suscitadas que carecem de respostas na relao sade/doena.

    O tema Manifestaes psicossomticas em sujeitos com transtorno mental psictico, que aqui se coloca em questo, torna-se relevante pelo fato de tais pacientes estarem inseridos na rotina dos servios de sade, desde a ateno primria em sade, nos cuidados requeridos s unidades bsicas de sade, at quando so referidos ateno secundria, nos cuidados conferidos pelos CAPSs e outros recursos, e demandando, inclusive, a ateno terciria, em nvel hospitalar. Acredita-se que uma melhor compreenso desses usurios, em suas caractersticas singulares, portadores de males psquicos e fsicos exacerbados em sua vivncia, colabore com o trabalho de profissionais de sade envolvidos com esses sujeitos. Alm disso, os estudos atuais no campo da psicossomtica so, em sua maioria, direcionados neurose, deixando uma carncia sobre o assunto em relao psicose.

    Para desenvolver a presente pesquisa, fez-se a opo pelo estudo da clnica no que tange aos pacientes diagnosticados como psicticos (antes por uma condio de direo de tratamento do que por marca estigmatizante), visando descobrir se os mesmos apresentam manifestaes patolgicas consideradas doenas psicossomticas.

    Pretendeu-se, neste estudo, observar se, no mbito da clnica mdica e psicolgica dos transtornos mentais, o fenmeno psicossomtico revela-se como comorbidade nesses quadros, e tambm se, de fato, as manifestaes patolgicas psicossomticas podem ser verificadas antes ou depois da configurao clnica da doena psquica, eclodindo como uma incgnita a mais no tratamento desses pacientes. A partir disso, foram propostas as seguintes questes:

  • 15

    como e por que pacientes psicticos manifestam fenmenos psicossomticos? Qual a dinmica emocional subjacente a esses fenmenos?

    Conforme ser discutido adiante, atualmente, as doenas psicossomticas tm sido relacionadas ao processo fisiopatolgico desencadeado pelo estresse. Assim, a hiptese que se buscar confirmar ou refutar ser a de que o aparecimento de alteraes psicossomticas em portadores de transtorno mental psictico vincula-se ao estresse e que este pode ter como fator desencadeador um estado emocional de medo. Para melhor compreender e tratar esses pacientes, prope-se uma incurso no estudo da psicose, em suas diversas formas de apresentao, e tambm das doenas psicossomticas, no menos variadas. Vale lembrar que tanto os quadros psicticos quanto os fenmenos psicossomticos atuam diretamente sobre o corpo da pessoa enferma, afetando, da mesma maneira, o psiquismo, que revela um estranhamento corpreo, possibilitando a apario de afeces potencialmente destrutivas.

    Portanto, a proposta deste estudo teve por objeto investigar, evidenciar e analisar as relaes existentes entre os transtornos mentais psicticos e o aparecimento de fenmenos psicossomticos, buscando compreender a dinmica emocional subjacente emergncia desses fenmenos.

    Assim sendo, objetivou-se realizar uma pesquisa de campo, analisando as possveis relaes existentes entre os transtornos mentais psicticos e as doenas psicossomticas, entendidas essas ltimas como consequncia de um estado de estresse, que pode ser desencadeado pelas emoes, sendo o afeto do medo a principal delas.

    Ao se proceder uma anlise de produo cientfica na base de dados PSYCINFO conceituada e relevante na rea da psicologia , detectou-se que o descritor sinnimo de Doena Psicossomtica Somatoform Disorder. Alinhando a pesquisa com o descritor Psychoses e com o descritor Stress, obteve-se o seguinte resultado:

    Psychoses and somatoform disorders nenhum resultado; Psychoses, somatoform disorders and stress nenhum resultado; Psychoses and stress: dois artigos (2003, 1956).

    Relacionando-se descritores especficos das patologias psicticas ao estresse, obteve-se o seguinte resultado (2005 a 2010):

    Schizophrenia and stress: 2 artigos (2006, 2005); Bipolar disorders and stress: 5 artigos (2010, 2008, 2007, 2006, 2005); Paranoid disorders and stress: 1 artigo (2006).

    Como se pode observar, as desordens somatoformes indicam a atual designao que engloba as manifestaes psicossomticas. Cabe esclarecer que a terminologia

  • 16

    psicossomtica ora apresentada no equivalente a somatoform disorders, sendo esta aqui descrita somente para mostrar o estado da arte do estudo em questo e cuja diferenciao terminolgica ser vista adiante. Destaca-se o fato de que, mesmo com o descritor somatoform disorders, no h evidncias de pesquisas associadas aos transtornos psicticos, dando-se mais nfase s pesquisas sobre estresse e suas correlaes, principalmente em associao ao transtorno bipolar do humor. O transtorno bipolar, com ou sem sintomas psicticos, preserva um grau maior de conscincia. Talvez essa possa ser uma justificativa para a correlao encontrada.

    A ausncia da correlao na base de dados entre doena psicossomtica e psicose tornou-se um incentivo a mais para o desenvolvimento deste trabalho, uma vez que tal correlao pode ser verificada na clnica com psicticos.

    Portanto, em acordo com Minayo (2006), no sentido de que o caminho de elaborao cientfica processa-se por balizas filosficas, entre elas, a vinculao entre o pensamento e ao:

    (...) nada pode ser intelectualmente um problema, se no tiver sido, em primeira instncia, um problema da vida prtica, pelo menos no caso das Cincias Sociais. Isso quer dizer que a escolha de um tema no emerge espontaneamente, da mesma forma que o conhecimento no espontneo. Surge de interesses e circunstncias socialmente condicionados, frutos de determinada insero no real, nele encontrando suas razes e seus objetivos (p. 173).

    Assim, a reflexo e o estudo propostos advm de uma insero no real, em que a clnica desenvolvida com pacientes portadores de transtornos mentais, em especial com psicticos, suscita questes tericas e prticas, em busca de respostas.

    Para a realizao da presente pesquisa, fez-se necessria a construo de uma ponte ligando a psicanlise aos estudiosos do estresse, ou seja, uma conexo entre os processos psquicos e os fisiolgicos, no intuito de construir um outro domnio. Conforme se ver adiante, os estudiosos do estresse defendem a tese de que as emoes so fatores desencadeantes do estresse como qualquer outro estressor, isto , de natureza fsica ou qumica. Entre as emoes humanas mais conhecidas dos pesquisadores do estresse, encontra-se o afeto do medo, que ser o responsvel pelo desencadeamento de uma cascata fisiolgica de reaes somticas conhecida como estresse.

  • 17

    Do ponto de vista psicolgico, fez-se necessrio recorrer obra monumental de Sigmund Freud para verificar que contribuies ele teria a dar ao assunto, conforme destacado por Rodrigues (2008), cuja tese de doutoramento guia o caminho terico aqui percorrido. Segundo esse ltimo, a teoria da Angst freudiana, cujo afeto destacado por Freud seria o de medo, embora esse sentido tenha se perdido em diversas e equivocadas tradues para angstia e ansiedade, revela o papel dessa emoo, contribuindo para o desenvolvimento de alteraes orgnicas. Angst um afeto, um sentimento, uma emoo1, algo que se externaliza (pela expresso facial, por exemplo) e que incita uma reao orgnica (sudorese, por exemplo). Essa emoo, capaz de provocar um estado de estresse (agudo ou crnico), afetando o equilbrio orgnico como um agente estressor, mobiliza as reaes do organismo, que, na fase de exausto do estresse, pode levar a doenas potencialmente destrutivas, entre elas as psicossomticas, ou morte.

    O suporte terico inicia-se nas contribuies psicanalticas, especificamente na Teoria de Angst, encontrando seu desfecho na psicofisiologia; esse suporte terico utilizado para analisar tais ocorrncias na psicose, a partir de uma pesquisa de campo realizada com Estudo de Caso Mltiplos, na perspectiva de Yin (2005).

    Optou-se, nesta pesquisa, pelas referncias psicanalticas clssicas, atravs de Sigmund Freud e Jacques Lacan, alm de autores contemporneos. Hans Selye, referncia psicofisiolgica fundamental, contribuiu de forma mpar para este estudo, bem como autores brasileiros que desenvolvem pesquisas sobre estresse no Laboratrio de Estudos Psicofisiolgicos do Stress, da Pontifcia Universidade Catlica (PUC Campinas/SP); Jlio de Mello Filho a referncia brasileira, nos estudos de Psicossomtica, junto a outros autores.

    Assim, o Captulo 2 contempla a Teoria de Angst em seus dois momentos tericos, evidenciando de quo variada forma a emoo de medo possa manifestar-se e associar-se a outras emoes e sintomas. Em seguida, no Captulo 3, abordam-se as doenas psicossomticas, caracterizando-as e diferenciando-as do reducionismo presente nos manuais psiquitricos. No Captulo 4, aprofunda-se o estudo do estresse e suas consequncias, relacionando todo o desequilbrio na homeostase do organismo causado a partir de um estressor orgnico ou psquico, afetando diversos sistemas. Articula-se a emoo do medo como um desencadeador do processo de estresse e, consequentemente, da doena psicossomtica. Apresenta-se, em sequncia, no Captulo 5 compreenses psicanalticas e

    1 Kaufmann (1996) descreve o termo Angstia (Angst) como Assimilada a algo sentido (etwas Empfundenes),

    da ordem do desprazer, a angstia , para Freud, um estado de afeto (Affektzustand) provocada por um acrscimo de excitao que tenderia ao alvio por uma ao de descarga (p. 36). Tomada com algo sentido extrapola-se a compreenso do termo para sentimento e emoo.

  • 18

    psiquitricas da psicose, uma vez que a pesquisa foi realizada em campo multidisciplinar, em que as clnicas coexistem. Ao final desse captulo relaciona-se, teoricamente, a psicose e a psicossomtica.

    O Captulo 6 refere-se ao mtodo adotado para a pesquisa de campo, cujo modelo de estudo foi o Estudo de Caso Mltiplos, proposto por Yin (2005), desenvolvido por meio de entrevistas semiestruturadas, observao de campo e anlise de pronturios. O mtodo mostrou-se eficaz para a pesquisa proposta.

    Com a apresentao dos dados, da anlise e discusso dos resultados obtidos, apresenta-se o Captulo 7, vinculando o suporte terico aos fenmenos encontrados no campo, tanto em relao aos objetivos da pesquisa, como com percepes para alm destes, confirmando o fato de que, ao voltar o olhar pesquisa qualitativa embasada no social, esta revela muito mais do que se espera.

    As Consideraes Finais so traadas no Captulo 8, em que so tambm articuladas as concluses possveis das relaes entre as manifestaes psicossomticas e a psicose.

  • 19

    2 ANGST COMO MEDO

    E tambm s vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silncio e do que poder sair desse silncio para me atingir....

    Eu ento bato nas paredes, no cho, para acabar com o silncio. Bato, canto, assobio com persistncia at mandar o medo embora.

    Anas Nin

    Entender os fenmenos do corpo e da mente sempre inquietou a humanidade. Assim, das antigas atribuies s causaes sobrenaturais para o adoecer humano s descobertas de atribuies naturais, longo caminho foi percorrido por filsofos e pesquisadores. Ainda hoje, as influncias recprocas exercidas pela mente em relao ao corpo , tanto no que tange ao binmio sade/doena, quanto em relao a outros fenmenos (mente/crebro, por exemplo), continuam sendo intrigantes objetos de pesquisas.

    Castro, Andrade e Muller (2006) revisaram, historicamente, a evoluo dos conceitos sade/doena e mente/corpo, percorrendo o conceito mgico de doena, o perodo grego clssico, a viso medieval e renascentista. Relevaram as razes de tais construtos na psicanlise e na psiconeuroimunologia, destacando o papel e a importncia da medicina psicossomtica para a compreenso dos fenmenos, valorizando-a como uma possibilidade de compreenso holstica.2

    A psicanlise tem, portanto, uma contribuio mpar para o estudo das relaes mente/corpo. O desenvolvimento da teoria freudiana possibilitou a compreenso de diversos fenmenos psquicos, indo alm do campo da medicina e da neurologia.

    Freud, no decorrer de sua obra, ao evidenciar a Teoria de Angst, estabeleceu o papel das emoes para o desenvolvimento de patologias significativas. Buscou-se, nesta pesquisa, evidenciar tal relao.

    2.1 A TEORIA DE ANGST

    Do ponto de vista psicanaltico, Sigmund Freud inaugurou um novo campo na compreenso do psiquismo, o qual se tornou um marco para a observao dos fenmenos mente/corpo. Ao atentar para a histeria de converso, abriu caminho para a observao da

    2 Compreenso holstica refere-se compreenso do homem considerando seus aspectos biopsicossociais.

  • 20

    estreita relao entre o fsico e o psquico. Tambm introduziu conceitos importantes nos quais se fundamenta a maior parte dos conhecimentos a respeito do psiquismo humano. O conceito de inconsciente revela que parte da vida mental do ser humano regida por processos ignorados pela conscincia, mas que podem ser revelados por intermdio de anlise psquica. Os processos inconscientes so resultantes de foras pulsionais, emoes e afetos, que influenciam o funcionamento do indivduo. Freud enumerou trs fatores interatuantes na etiologia das enfermidades: as precondies, relacionadas predisposio hereditria; as causas concorrentes ou auxiliares, tais como perturbao emocional, esgotamento fsico, doenas graves, intoxicaes, acidentes traumticos, sobrecarga intelectual, entre outros; as causas especficas, necessrias ao desenvolvimento de cada patologia (Freud, 1994 [1896], v. 3). O corpo terico da psicanlise, aliado clnica psicanaltica, permite a explorao de diversos conceitos que podem embasar a compreenso dos fenmenos psicossomticos. Assim, entre os muitos conceitos empregados por Freud em sua metapsicologia, ser destacado o conceito de Angst, por se relacionar, diretamente, com o estudo em questo.

    Segundo Rodrigues (2008), o termo Angst, assim como outros vocbulos, foi traduzido de diversas formas para a lngua portuguesa. A Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, da Imago Editora, destaca, com frequncia, em notas de rodap e apndices, esclarecimentos sobre o assunto tratado em cada texto e os possveis impasses de traduo. Invariavelmente, crticas de psicanalistas e tradutores quanto maior fidedignidade teoria freudiana incitam novas e melhores tradues, o que vem sendo realizado pela prpria editora, a partir do ano de 2006.

    No apndice do texto intitulado Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma sndrome especfica denominada neurose de angstia, de Freud (1994 [1895-1894]), h o esclarecimento sobre O termo Angst e sua traduo inglesa. Relatou James Strachey, (comentador de toda edio Standard Brasileira), nesse apndice, que o termo foi invariavelmente traduzido em ingls para anxiety, nas acepes tcnicas ou semitcnicas (p. 118, v. 3) e outras palavras do ingls corriqueiro foram adotadas da forma avaliada como mais apropriadas. Com relao traduo para a lngua portuguesa (atravs do ingls), explicou, na nota:

    A traduo adotada ao longo de toda Edio Standard Brasileira, para a palavra inglesa anxiety angstia, reservando-se ansiedade para reproduzir o ingls anxiousness e, conforme o texto (e o contexto), vertendo-se fright por susto ou pavor, fear por medo etc. Essa

  • 21

    escolha, arbitrria como em qualquer traduo, respeita na lngua portuguesa as consideraes etimolgicas do Editor ingls, e sobretudo a escolha freudiana de Angst. Anxiety exprime o estado daquele ou daquilo que se acha estrangulado, estreito, sufocado. em angstia que encontramos reproduzida, em portugus, essa ideia de estreitamento e restrio. (...) So tambm essas as ideias presentes no alemo Angst em seu emprego anobjetal, o que transparece no verbo angstigen (assustar, meter medo): trata-se de dar expresso sufocante experincia vivenciada no susto, no contato imprevisto com o inesperado, o inslito, o no reconhecido pela conscincia. O termo ansiedade no traduziria convenientemente o ingls anxiety, apesar da aparente semelhana fontica, se considerarmos que, em suas origens, seu sentido prprio o de desassossego ou inquietao, e seu sentido figurado o de escrpulo ou preocupao escrupulosa (p. 118, v. 3).

    Sobre a traduo do vocbulo alemo Angst, na nova verso da Editora Imago, esclareceu Luiz Alberto Hans, na apresentao ao ensaio Alm do princpio do prazer, de Freud (2006 [1920]), que a verso correta do vocbulo medo e acrescentou:

    Seja qual for o termo que se opte por empregar na traduo, importante que o leitor tenha presente que em Angst, mesmo quando se trata de um medo vago e antecipatrio, ocorre um estado de prontido reativa, visceral e intensa. Trata-se de um afeto vinculado sensao de perigo e que pode transformar-se em fobia e em pavor. Todos, aspectos com implicaes tericas e clnicas de amplo alcance. Isto vale tanto para a primeira como para a segunda teoria freudiana de Angst (p. 133-134, v. 2).

    Trs textos de Freud estabelecem a acepo de Angst e outros vocbulos relacionados: a Conferncia XXV, de 1917-16, Alm do princpio do prazer, de 1920, e Inibies, sintomas e ansiedade, de 1926. Cada qual estabelece pontos tericos importantes e modificados no decorrer da obra.

    Cumpre ressaltar que o sentido de Angst como medo e suas possveis manifestaes diante do perigo interno ou externo ser investigado como aporte terico psicanaltico neste trabalho, por ser o afeto, o estado ou a emoo capaz de desencadear reaes fsicas e psicolgicas, cujos efeitos podem propiciar manifestaes psicossomticas.

    Trilhar todo o caminho percorrido por Freud no que concerne Teoria de Angst no o principal objetivo deste trabalho, embora seja necessrio saber sobre esse caminho, muitas vezes j percorrido por outros autores. Afora a tomada de propriedade do percurso quando trilhado em sua originalidade autor principal , ressalta-se que fontes secundrias, tais como

  • 22

    Rodrigues (2008), bem como a obra freudiana, sero utilizadas como recurso, a fim de que se alcance o objetivo proposto como tema desta pesquisa.

    2.1.1 A Primeira Teoria de Angst

    A Teoria de Angst (do medo) compreendida como aquela que pode ser dividida em dois momentos histricos da elaborao do pensamento freudiano: a primeira, que tem seus primrdios em 1895 em Sobre os critrios para destacar da neurastenia uma sndrome especfica denominada neurose de angstia, estendendo-se at 1926, quando ento elaborada a segunda teoria a partir do trabalho Inibies, Sintomas e Ansiedade (Kaufmann, 1996; Rodrigues, 2008). Nagera et al. (1970) e Kusnetzoff (1982) apontaram, respectivamente, em Projeto para uma psicologia cientfica, de 1895, e em Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, a configurao inicial da primeira teoria de Angst.

    Interessa destacar o Rascunho B, intitulado A etiologia das neuroses, em que Freud (1990 [1893]) aborda a diferena entre a neurastenia e a neurose, a qual passou a ser denominada neurose de angstia (neurose de medo), para o entendimento do ponto de partida de Angst.

    O quadro j estabelecido para a neurastenia configurava-a como sendo uma consequncia frequente da vida sexual anormal, o que causaria um esgotamento sexual precoce e geraria um empobrecimento da funo sexual, relativa impotncia e debilidade sexual inata ou adquirida na juventude , pelo excesso de masturbao. Caracterizava-se ainda uma diminuio da autoconfiana, com expectativas pessimistas e certas tendncias a ideias antitticas aflitivas.

    No homem, a neurastenia seria adquirida na puberdade, pela prtica da masturbao, manifestando-se por volta dos 20 anos. Atuando com intensidade e por tempo prolongado, transformava a pessoa em neurastnico sexual, enfraquecido em sua potncia sexual; alm da masturbao, o coito interrompido (onanismus conjugalis), visando evitar a gravidez, seria um fator nocivo predispondo para a neurastenia. Afirmou Freud (1990 [1893]) que toda neurastenia sexual (p. 223, v. 1).

    A neurastenia feminina surgiria, raramente, em mulheres casadas e mulheres no casadas de mais idade, em decorrncia da neurastenia masculina, devido limitao do

  • 23

    homem em sua potncia. A neurastenia aliada histeria originaria a neurose mista, resultando diretamente do refreamento da excitao do ato pela mulher, que sofreria, de alguma forma, uma neurastenia discreta.

    O surgimento do fator Angst, tanto na histeria quanto na neurastenia, levou Freud (1990 [1893]) ao seguinte questionamento:

    Contudo, a questo saber se o surgimento proeminente desse fator [angstia], sem estarem os outros sintomas especialmente desenvolvidos, no deveria ser destacado como uma neurose de angstia independente, particularmente tendo em conta que esta pode ser encontrada no menos frequentemente na histeria do que na neurastenia (p. 226-227, v. 1).

    Freud (1990 [1893]) estabeleceu, ento, que deveria fazer uma particularizao da ocorrncia de Angst em diversos quadros patolgicos, elucidando, ainda, como Angst faz o seu aparecimento:

    A neurose de angstia surge sob duas formas: como um estado crnico e como um ataque de angstia. As duas formas podem combinar-se facilmente; e um ataque de angstia nunca ocorre sem sintomas crnicos. Os ataques de angstia so mais comuns nas formas ligadas histeria so, portanto, mais frequentes em mulheres. Os sintomas crnicos so mais comuns em homens neurastnicos. Os sintomas crnicos so: (1) angstia relacionada com o corpo (hipocondria); (2) angstia em relao ao funcionamento do corpo (agorafobia, claustrofobia, vertigem em lugares altos); (3) angstia relacionada com as decises e a memria isto , as fantasias de algum a respeito de seu prprio funcionamento psquico (folie de doute, ruminaes obsessivas etc.). At este momento, no tive nenhuma razo para no tratar desses sintomas como sendo equivalentes (p. 227, v. 1).

    Em Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma sndrome especfica denominada neurose de angstia, Freud (1994 [1895-1894]) d maior consistncia s elaboraes sobre a neurose de angstia como uma entidade clnica, abrangendo os seguintes sintomas, que podem acompanhar ou substituir um ataque de angstia, bem como aparecer tambm sob a forma crnica:

    a) Irritabilidade geral relacionada a um estado nervoso:

  • 24

    A irritabilidade aumentada aponta sempre para um acmulo de excitao ou uma incapacidade de tolerar tal acmulo isto , para um acmulo absoluto ou relativo de excitao. Uma das manifestaes dessa irritabilidade aumentada me parece merecer meno especial; refiro-me hiperestesia auditiva, a uma hipersensibilidade ao rudo um sintoma indubitavelmente explicvel pela ntima relao inata entre as impresses auditivas e o pavor. A hiperestesia auditiva revela-se frequentemente como sendo causa de insnia, da qual mais de uma forma pertence neurose de angstia (Freud, 1994 [1895-1894], p. 94-95, v. 3).

    b) Expectativa angustiada: consiste na tendncia a adotar uma viso pessimista das coisas em geral, exagerando uma mera possibilidade de algo ruim vir a acontecer, sem nenhum fundamento especfico; , portanto, uma angstia, um medo exagerado, s vezes reconhecido pelo prprio paciente como uma espcie de compulso (impelido a agir dessa forma). A hipocondria um tpico exemplo:

    Para uma das formas da expectativa angustiada a que se relaciona com a sade do prprio sujeito podemos reservar o velho termo hipocondria. O auge alcanado pela hipocondria nem sempre paralelo expectativa angustiada geral; requer como precondio a existncia de parestesias e sensaes corporais aflitivas. Assim, a hipocondria a forma preferida pelos neurastnicos genunos quando estes caem presa da neurose de angstia, como ocorre com frequncia (Freud, 1994 [1895-1894], p. 95, v. 3).

    A angstia moral, o escrpulo e o pedantismo so tambm expresses da expectativa angustiada, presentes em pessoas com uma dose de sensibilidade moral maior do que a apresentada de costume, variando do normal mania de duvidar. Nos casos de expectativa angustiada, Freud pensou a ocorrncia de um quantum de angstia em estado de livre flutuao.

    c) Ataque de angstia: um ataque de ansiedade que irrompe, subitamente, na conscincia, conforme descrito a seguir:

    Esse tipo de ataque de angstia pode consistir apenas no sentimento de angstia, sem nenhuma representao associada, ou ser acompanhado da interpretao que estiver mais mo, tal como representaes de extino da vida, ou de um acesso, ou de uma ameaa de loucura; ou ento algum tipo de parestesia (similar aura histrica) pode combinar-se com o

  • 25

    sentimento de angstia, ou, finalmente, o sentimento de angstia pode estar ligado ao distrbio de uma ou mais funes corporais tais como a respirao, a atividade cardaca, a inervao vasomotora, ou a atividade glandular (Freud, 1994 [1895-1894], p. 96, v. 3).

    d) Ataques de angstia rudimentares e equivalentes a ataques de angstia: consiste em ataques de angstia com grande variao sintomtica. Assim, tm-se:

    (a) Ataques de angstia acompanhados por distrbios da atividade cardaca, tais como palpitao, seja com arritmia transitria ou com taquicardia de durao mais longa, que pode terminar num grave enfraquecimento do corao e que nem sempre facilmente diferencivel da afeco cardaca orgnica; e ainda a pseudoangina do peito um assunto delicado em termos de diagnstico! (b) Ataques de angstia acompanhados por distrbios respiratrios, vrias formas de dispneia nervosa, acessos semelhando asma e similares. Gostaria de enfatizar que mesmo esses ataques nem sempre vm acompanhados de angstia reconhecvel. (c) Acessos de suor, geralmente noite. (d) Acessos de tremores e calafrios, muito facilmente confundidos com ataques histricos. (e) Acessos de fome devoradora, frequentemente acompanhados de vertigem. (f) Diarreia sobrevindo em acessos. (g) Acessos de vertigem locomotora. (h) Acessos do que se conhece como congestes, incluindo praticamente tudo o que tem sido denominado de neurastenia vasomotora. (i) Acessos de parestesias (Estes, porm, raramente ocorrem sem angstia ou uma sensao semelhante de mal-estar.) (Freud, 1994 [1895-1894], p. 97, v. 3).

    e) Acordar em pnico noite, associado com angstia, dispneia, suores, etc. f) A vertigem, mais branda como tonteira ou mais intensa como acessos de

    vertigem, combinada com distrbios cardacos e respiratrios. g) Fobias tpicas, a partir de um fato real, e atpicas, baseadas nas obsesses. h) Perturbao das atividades digestivas, tais como diarreia, constipao, bem como

    aumento da mico. i) Parestesias, atpicas e mutveis, tais como um aumento da sensibilidade dor e

    tendncia s alucinaes. j) Sintomas crnicos de diarreia, vertigens e parestesias, difceis de reconhecer devido

    sensao ansiosa que os acompanha ser menos clara que em um ataque de angstia.

  • 26

    No decorrer desse texto, Freud (1994 [1895-1894]) vai formando a ideia de que, por trs de todos esses modos de apario de Angst, encontram-se, tambm, a excitao somtica, uma baixa da libido sexual e uma mudana de curso, afastando-se essa de sua satisfao normal, fato que o levou seguinte construo:

    Todas essas indicaes de que estamos diante de um acmulo de excitao; de que a angstia, provavelmente correspondente a essa excitao acumulada, de origem somtica, de modo que o que se est acumulando uma excitao somtica; e ainda, de que essa excitao somtica de natureza sexual (sic) acompanhada por um decrscimo da participao psquica nos processos sexuais-, todas essas indicaes, dizia eu, levam-nos a esperar que o mecanismo da neurose de angstia deva ser buscado numa deflexo da excitao sexual somtica da esfera psquica e no consequente emprego anormal dessa excitao (p. 108-109, v. 3).

    Segundo Rodrigues (2008), Freud apontou em A interpretao dos sonhos, de 1900, uma explicao mais complexa do surgimento de Angst:

    Ela passa a ser resultante de dois processos: um, fisiolgico, no qual a libido no ligada psicologicamente seria descarregada pelas vias neurnicas e motoras na forma de medo; o outro seria proveniente do recalque da libido j ligada psiquicamente. Ao separar a ideia do afeto, esse ltimo sofreria uma vicissitude dupla: de um lado formaria o sintoma, de outro, manifestar-se-ia na forma de medo (p. 39-40).

    Na Conferncia XXV, traduzida como A ansiedade, Freud (1976 [1917-1916]) sintetizou sua viso de Angst at esse momento. Ora usado o termo ansiedade, ora utilizado o termo angstia. Em nota explicativa do comentador, o termo ansiedade refere-se vivncia do sofrimento psquico determinado pela presena de um conflito interno e angstia designa o aspecto global, abrangendo o componente psquico, ansiedade, mais as manifestaes somticas decorrentes do estado de tenso e sofrimento internos (p. 457-458, v. 16).

  • 27

    O psicanalista, na Conferncia XXV, fez a distino entre os usos de Angst, Furcht e Schreck, como:

    Evitarei aprofundar-me na questo de saber se nosso uso idiomtico quer significar a mesma coisa, ou algo nitidamente diferente, com a palavra Angst [ansiedade], Furcht [medo] e Schreck [susto]. Apenas direi que julgo Angst referir-se ao estado e no considera o objeto, ao passo que Furcht chama a ateno precisamente para o objeto. Parece que Schreck, por outro lado, tem sentido especial; isto , pe nfase no efeito produzido por um perigo com o qual a pessoa se defronta sem qualquer estado de preparao para a ansiedade. Portanto, poderamos dizer que uma pessoa se protege do medo por meio da ansiedade (Freud, 1976 [1917-1916] p. 461, v. 16).

    Rodrigues (2008) ressaltou o erro de traduo do fragmento acima: em vez de (...) uma pessoa se protege do medo por meio da ansiedade deveria ser (...) uma pessoa se protege do susto mediante o medo (p. 43), sendo susto e medo, respectivamente, Schreck e Angst, de acordo com a ideia de medo como defesa contra o susto, teorizada na Conferncia XXV.

    Freud (1976 [1917-1916]) tomou como referncia a neurose, mas ressaltou que Angst se faz presente na vida cotidiana, no se restringindo aos quadros psicopatolgicos. Descreveu a existncia de uma ansiedade realstica (medo realstico Realangst) em contraste com ansiedade neurtica (medo neurtico Neurotische Angst). Esclareceu:

    A ansiedade realstica atrai nossa ateno como algo muito racional e inteligvel. Podemos dizer que ela uma reao percepo de um perigo externo isto , de um dano que esperado e previsto. Est relacionada ao reflexo de fuga e pode ser visualizada como manifestao do instinto de autopreservao (p. 459, v. 16).

    O medo realstico refere-se, portanto, a um temor Furcht advindo do real, que desencadeia a ao de luta ou fuga diante da ameaa externa, despertando o impulso de autopreservao. Diante da situao ameaadora, a reao consiste em uma mistura de afeto de ansiedade e de ao defensiva. A ansiedade excessiva paralisa a ao, mas a gerao de ansiedade pode limitar-se a um sinal, transformando a preparao para a ansiedade em ao.

  • 28

    Esse (...) estado de preparao expectante para o perigo se manifesta por meio de um aumento da ateno sensria e da tenso motora (Freud, 1976 [1917-1916], p. 460, v. 16). Ao estado subjetivo de percepo da ansiedade, Freud denomina afeto, ressaltando que a enumerao de suas caractersticas no o atinge em sua essncia. O afeto inclui determinadas inervaes ou descargas motoras e certos sentimentos; estes so de dois tipos: percepes das aes motoras que ocorreram e sensaes diretas de prazer e desprazer que, conforme dizemos, do ao afeto seu trao predominante (Freud, 1976 [1917-1916], p. 461, v. 16).

    Sobre a ansiedade neurtica ou medo neurtico, o psicanalista descreveu trs tipos de manifestao:

    a) Ansiedade expectante ou expectativa ansiosa a qual Rodrigues (2008) denomina expectativa medrosa ou temerosa:

    (...) encontramos uma apreenso generalizada, uma espcie de ansiedade livremente flutuante, que est pronta a se ligar a alguma ideia que seja de algum modo apropriado a esse fim, que influencia o julgamento, seleciona aquilo que de se esperar, e est aguardando qualquer oportunidade que lhe permita justificar-se (Freud, 1976 [1917-1916], p. 464, v. 16)

    b) A ansiedade das fobias, que psiquicamente ligada e vinculada a determinados objetos e situaes, (...) extremamente multiformes e frequentemente muito estranhas (Freud, 1976 [1917-1916], p. 464, v. 16).

    c) Os ataques espontneos de ansiedade, no havendo nenhum sinal de perigo ou qualquer causa verificada como perigo: O ataque total pode ser representado por um nico sintoma, intensamente desenvolvido por um temor, uma vertigem, por palpitao ou dispneia; e a sensao geral, pela qual reconhecemos a ansiedade, pode estar ausente ou haver-se tornado indistinta (Freud, 1976 [1917-1916], p. 467, v. 16).

    Rodrigues (2008) considera que esse ltimo tipo de manifestao pode ser denominado ataques de medo, devido s consideraes feitas sobre a traduo do termo Angst.

    Na Conferncia XXV, Freud acreditava que qualquer interferncia na descarga da tenso sexual faria com que a excitao acumulada encontrasse uma sada na forma de ansiedade, aqui compreendida como medo. Assim, evidenciou o medo real, motivado por um estmulo externo que oferea perigo, e o medo neurtico, como decorrente do recalque da pulso libidinal, transformando-se em energia livre, a qual se liga a objetos ou situaes reais

  • 29

    e se transforma em fobias, ou ainda, manifesta-se junto a sintomas neurticos ou na forma de ataques de medo, atualmente reconhecidos como ataques de pnico.

    Kusnetzoff (1982), embora tomando Angst por angstia, apresentou o entendimento fundamental de que:

    (...) a angstia real tem um desencadeamento objetivo, concreto e exterior, mas tambm tem um desenvolvimento patolgico incontrolado, irracional, podendo culminar num ataque ou numa reao de pnico. Isto leva-nos a procurar motivaes inconscientes que atuem como desencadeantes destes afetos: portanto, subjacente a uma angstia real, na imensa maioria dos casos, encontra-se uma angstia neurtica (p. 155).

    Encontra-se, em Alm do princpio do prazer, novamente, a demarcao dos conceitos Schreck, Furcht e Angst, retomados por Freud (tendo-se aqui, como referncia, a traduo de 2006 Imago Editora que difere de tradues anteriores):

    Susto [Schreck], receio [Furcht], medo [Angst] so usados injustamente como expresses sinnimas; podemos distingui-las de fato em sua relao com o perigo. Medo [Angst] denomina um certo estado, como o de expectativa diante do perigo e preparao para ele, mesmo que ele seja desconhecido; receio [Furcht] requer um objeto determinado do qual se tem medo [Angst]; susto [Schreck], porm nomeia o estado em que se entra quando se corre perigo sem se estar preparado para ele, e acentua o valor surpresa. No acredito que o medo [Angst] possa provocar uma neurose traumtica; no medo [Angst] h algo que protege contra o susto [Schreck] e, portanto, tambm contra a neurose traumtica (Freud, 2006 [1920], p. 139-140, v. 2).

    Segundo consideraes de Luiz Alberto Hanns, nos Comentrios do Editor Brasileiro, que antecipa o texto de Freud (2006 [1920], v. 2) intitulado Alm do princpio do prazer, Angst um sentimento de medo, diante de uma ameaa real ou imaginria, especfica ou inespecfica, de aniquilao ou dano, variando de receio ou temor at o pnico ou pavor, podendo ocorrer uma reao imediata, visceral e intensa, diante da ameaa. Hanns, nessa obra de Freud, comenta que: Angst evoca algo que se externaliza claramente (expresso facial, suor, voz, etc.) e desencadeia uma ao (de ataque ou fuga), ou, mais raramente, algo que causa tanto pavor que paralisa o sujeito (p. 128, v. 2). A diferena para

  • 30

    Furcht que esse significa medo, mas no sentido de receio e temor, referindo-se a objetos especficos e preocupao. Furcht possui um carter antecipatrio e, conforme Hanns, esse

    termo permite antecipar, simular e planejar utilizando-se uma carga de afeto controlvel (p.128, v. 2).

    Em Alm do princpio do prazer, Freud (2006 [1920]) acrescentou s teorizaes sobre Angst, como um estado fsico e psquico, mas que prepara para a ao diante do perigo, deixando transparecer a ideia inicial da nova construo que faria posteriormente, em 1926.

    Nessa primeira teoria, a Angst seria um afeto decorrente da deflexo da energia sexual livre, isto , da energia no ligada psiquicamente (Rodrigues, 2008, p. 39), ou seja, proveniente de um excesso de energia libidinal no eliminada, sendo, ento, uma descarga direta de uma quantidade de libido no utilizada pelo eu (Kaufmann, 1996, p. 36). Contudo, conforme postulara na Interpretao dos sonhos, Freud reafirmou, em 1917 e manteve sua posio em 1920, que diante do recalque da libido que o afeto a ela vinculado se transformaria em medo: Tenho afirmado que a transformao em ansiedade seria melhor dizer, descarga sob a forma de ansiedade o destino imediato da libido quando sujeita represso. Devo acrescentar que esse destino no o nico nem o definitivo (Freud, 1976 [1917-1916], p. 477, v. 16). O psicanalista ainda faria uma nova teorizao, que ser apresentada no subitem a seguir, como a Segunda Teoria de Angst.

    2.1.2 A Segunda Teoria de Angst

    A segunda Teoria de Angst permanece inalterada at o final das formulaes freudianas. Em 1926, Freud apresentou, em Inibies, sintomas e ansiedade, as novas consideraes sobre Angst. Reconheceu, nesse texto, o eu como o nico lugar da angstia (Angst), postulao feita aps o desenvolvimento da segunda tpica, na qual o psiquismo est subordinado s instncias Id (Isso), Ego (Eu) e Superego (Supereu). Assim sendo, abandona a ideia de que o afeto de medo advm do recalque da libido, por ser incoerente com suas novas descobertas. Apresentou novo entendimento de Angst do seguinte modo:

    O problema de como surge a ansiedade em relao com a represso pode no ser simples, mas podemos legitimamente apegar-nos com firmeza ideia de

  • 31

    que o ego a sede real da ansiedade, e abandonar nosso ponto de vista anterior de que a energia catexial do impulso reprimido automaticamente transformada em ansiedade (Freud, 1976 [1926-1925], p. 114, v. 20).

    Freud (1976 [1926-1925]) continuou a argumentao, atribuindo uma anterioridade inconsciente ao processo de Angst, precipitado por vivncias anteriores:

    A ansiedade no criada novamente na represso; reproduzida como um estado afetivo de conformidade com uma imagem mnmica j existente. Se formos adiante e indagarmos da origem dessa ansiedade e dos afetos em geral estaremos deixando o domnio da psicologia pura e penetrando na fronteira da fisiologia. Os estados afetivos tm-se incorporado na mente como precipitados de experincias traumticas primevas, e quando ocorre uma situao semelhante so revividos como smbolos mnmicos (p. 114-115, v. 20).

    A imagem mnmica qual Freud (1976 [1926-1925]) se reportou seria o nascimento, como modelo de todas as situaes de perigo vividas posteriormente: A ansiedade sentida ao nascer tornou-se o prottipo de um estado afetivo que teve que sofrer as mesmas vicissitudes que os outros afetos (p. 186, v. 20). Conforme salientou Kusnetzoff (1982): Os afetos ligados a essa situao inicial se reproduzem automaticamente em situaes anlogas. Mas, sendo automtica, essa reproduo vem a ser uma forma inadequada de reao (p. 160).

    Nessa segunda teoria, Freud abandonou a viso econmica e postulou Angst como um sinal de defesa, um aspecto de preparao para o perigo. O ego a sede de Angst e dos afetos e h um aspecto biolgico, reaes orgnicas desencadeadas diante da ameaa ao eu. O autor elaborou a teoria da seguinte forma:

    Ou o estado de ansiedade se reproduzia automaticamente em situaes anlogas situao original e era assim uma forma inadequada de reao em vez de apropriada, como o fora na primeira situao de perigo, ou o ego adquiria poder sobre essa emoo, reproduzia-a por sua prpria iniciativa e a empregava como uma advertncia de perigo e como um meio de pr o mecanismo de prazer-desprazer em movimento. Demos assim ao aspecto biolgico do afeto de ansiedade sua devida importncia, reconhecendo a ansiedade como a reao geral a situaes de perigo, enquanto endossvamos o papel desempenhado pelo ego como a sede da ansiedade, atribuindo-lhe a funo de produzir afeto de ansiedade de acordo com suas necessidades. Assim atribumos duas modalidades de origem ansiedade na

  • 32

    vida posterior. Uma era involuntria, automtica e sempre justificada sob fundamentos econmicos, e ocorria sempre que uma situao de perigo anloga ao nascimento se havia estabelecido. A outra era produzida pelo ego logo que uma situao dessa espcie simplesmente ameaava ocorrer, a fim de exigir sua evitao. No segundo caso o ego sujeita-se ansiedade como uma espcie de inoculao, submetendo-se a um ligeiro ataque da doena a fim de escapar a toda sua fora. Ele vividamente imagina a situao de perigo, por assim dizer, com a finalidade inegvel de restringir aquela experincia aflitiva a uma mera indicao, a um sinal (Freud, 1976 [1926-1925], p. 186, v. 20).

    O psicanalista retomou o tema em questo na Conferncia XXXII, das Novas Conferncias Introdutrias sobre Psicanlise, intitulada Ansiedade e vida instintual. Manteve a estncia egoica como o receptculo da trs principais formas de Angst, expressando-se assim:

    (...) temos verificado de bom grado um desejvel elemento de correspondncia no fato de que as trs principais espcies de ansiedade, a realstica, a neurtica e a moral, podem com tanta facilidade ser correlacionadas com as trs relaes dependentes que o ego mantm com o mundo externo, com o id e com o superego. Ao mesmo tempo que essa nova viso, em especial a funo da ansiedade como sinal que anuncia uma situao de perigo (uma noo, alis, no desconhecida nossa), assume proeminncia, perde interesse a questo de saber qual o material de que feita a ansiedade, e as relaes entre ansiedade realstica e neurtica se tornaram surpreendentemente claras e simples (Freud, 1994 [1933-1932], p. 89, v. 22).

    Ao manter o medo realstico, neurtico e moral, correlacionando-os ao id, ego e superego, Freud manteve tambm Furcht, o temor real e reao de luta ou fuga diante da ameaa integridade, bem como a expectativa temerosa, as fobias e os ataques de pnico, como manifestaes de Angst. A ao do superego, revelada sob a forma de Angst moral, no desconsiderada nessa nova formulao.

    Freud (1994 [1933-1932]) ainda aprofundou discusses no que concerne relao entre Angst, o desenvolvimento do ego e os estdios de desenvolvimento psicossexual, momentos de sua apario no curso da vida:

  • 33

    Se nos detivermos um pouco nessas situaes de perigo, podemos dizer que, de fato, para cada estdio do desenvolvimento est reservado, como sendo adequado para esse desenvolvimento, um especial fator determinante de ansiedade. O perigo de desamparo psquico ajusta-se ao estdio da imaturidade inicial do ego; o perigo de perda de um objeto (ou perda do amor) ajusta-se falta de autossuficincia dos primeiros anos da infncia; o perigo de ser castrado ajusta-se fase flica; e, finalmente, o temor ao superego, que assume uma posio especial, ajusta-se ao perodo de latncia. No decorrer do desenvolvimento, os antigos fatores determinantes de ansiedade deveriam sumir, pois as situaes de perigo correspondentes a eles perderam sua importncia devido ao fortalecimento do ego. Isto, contudo, s ocorre de forma muito incompleta. Muitas pessoas so incapazes de superar o temor da perda do amor; nunca se tornam suficientemente independentes do amor de outras pessoas e, nesse aspecto, comportam-se como crianas. O temor ao superego normalmente jamais deve cessar, pois, sob a forma de ansiedade moral, indispensvel nas relaes sociais, e somente em casos muito raros pode um indivduo tornar-se independente da sociedade humana (p. 91-92, v. 22).

    Sendo Angst fundada no momento do primevo desamparo psquico o nascimento , perpetua-se como uma repetio dessa vivncia, nos diversos momentos em que o ego experimentar situaes aflitivas, cabendo a esse ltimo transform-la em um sinal. Assim, conforme demonstrou Freud, as marcas mnmicas, uma vez impressas no psiquismo, sero constantemente revividas.

    Na assertiva de Kaufmann (1996) sobre Angst, Freud vai consider-la cada vez mais como a marca histrica das tendncias atravs das quais se manifestam o impacto do traumatismo, os avatares da relao de objeto e o mal-estar de um eu atormentado pelas vacilaes de sua integridade (p. 36).

    Explorar a Teoria de Angst na Psicanlise permite verificar o quanto afetos e emoes interferem no corpo. As postulaes freudianas, aliadas ao desenvolvimento das cincias humanas para alm das cincias puramente mdicas, delimitaram o caminho na compreenso do ser humano, ora sujeito, ora assujeitado diante de seus afetos e emoes, sejam esses advindos de processos reais ou fictcios, conscientes ou inconscientes, orgnicos ou psquicos. Afetos e emoes so to potentes no curso de um desenvolvimento patolgico quanto o so os vrus e as bactrias.

    Apoiada, inicialmente, em constructos psicanalticos e evidenciando o enlace soma (corpo) e psych (alma), nasce a psicossomtica, buscando compreender e cuidar dessa via de mo dupla, na qual todos os sujeitos transitam.

  • 34

    3 MANIFESTAES PSICOSSOMTICAS

    Nas mos cabe gesto Cabe sol

    Nas mos cabe Ternura e uma cano

    No olhar distrado Cabe procura

    Na alma intranquila A solido...

    ...Na alma cabe desejo Cabe mgoa

    Na alma cabe Cantatas e paixes No corpo trmulo Cabem charadas

    Na falsa indiferena Razes

    Carla Dias

    O termo psicossomtica surgiu no sculo XX, sendo utilizado pela primeira vez pelo psiquiatra alemo Heinroth, que criou as expresses psicossomtica (1918) e somatopsquica (1928), distinguindo os dois tipos de influncias e as duas diferentes direes (Mello Filho et al., 2010). O movimento se consolidou em meados desse sculo com Franz Alexander e a Escola de Chicago.

    Conforme Mello Filho et al. (2010), a psicossomtica evoluiu em trs fases: uma inicial ou psicanaltica, com a preponderncia dos estudos sobre a gnese inconsciente das enfermidades, sobre as teorias da regresso e sobre os benefcios secundrios do adoecer; a intermediria, ou behaviorista, cuja nfase era dada pesquisa com homens e animais, com o aporte das cincias exatas e tambm valorizando e avanando nos estudos sobre estresse; e, finalmente, a fase atual ou multidisciplinar, na qual a dimenso social ganha importncia conectada viso da psicossomtica como um campo de interao, agregando diversos profissionais de sade.

    Advinda de uma toro da compreenso mdica positivista sobre os fenmenos do adoecer, a medicina psicossomtica destacou-se desta ao integrar trs perspectivas: a doena com sua dimenso psicolgica; a relao mdico-paciente com seus mltiplos desdobramentos; a ao teraputica voltada para a pessoa do doente, este entendido como um todo biopsicossocial (Eksterman, 2010, p. 39).

    Devido ao seu avano na compreenso do processo sade/doena, ocorreu a extrapolao do campo medicina psicossomtica para o campo psicossomtica, no deixando

  • 35

    de existir sempre uma vinculao histrica, assim como ocorreu com a psicanlise em relao medicina. Portanto, a psicossomtica permeia diversos campos de conhecimento, no se restringindo apenas medicina psicossomtica.

    Com o intuito de entender os quadros ditos psicossomticos, a abordagem mdica positivista no suficiente, embora no se possa prescindir desta. Uma crtica que se faz a esse modelo de que, para alm de delimitar sintomas e sndromes, descritas nos manuais, faz-se necessrio compreender o sujeito que sofre e permitir a expresso de sua subjetividade e de sua emoo. Se a cincia psicolgica constitui-se, em um primeiro momento, pela via da organizao e adaptao do homem s normas (nas fbricas), compactuando com estratgias de dominao e explorao, no decorrer do sculo XX, afirmou-se como cincia do homem biopsicossocial, compreenso mais complexa, ainda que sempre insuficiente, dos aspectos que entrelaam a vida da espcie humana.

    Assim, debruando-se sobre os processos subjetivos inerentes ao ser humano, na urgncia do corpo que adoece, firmou-se a pesquisa psicossomtica, orientada para pensar sempre numa possvel influncia psicolgica na gnese de qualquer doena, tal a importncia da mente em nossos processos biolgicos (Mello Filho, 2002, p. 20-21).

    Retomando o pressuposto afirmado por autores contemporneos, a psicossomtica objetiva tratar doentes e no doenas, concebendo o ser humano com essa natureza biopsicossocial, atendo-se ao princpio de que toda doena psicossomtica, contestando a ciso mente/corpo, entendendo que os fenmenos psicossomticos instauram uma atitude e um campo de pesquisas, sobre o qual se acumulam diversos conhecimentos.

    Muitos autores envidaram esforos no sentido de constituir um arcabouo terico consistente, capaz de explicar e tornar compreensvel o fenmeno psicossomtico. As escolas Americana e Francesa contriburam com conceitos que fazem parte das discusses atuais no campo da psicossomtica, contudo, no sero abordados neste trabalho, cuja nfase recair sobre os objetivos expostos anteriormente.

    Embora alguns autores como Mello Filho (2002) e Fortes, Tfoli e Baptista (2010) tenham optado pela ideia de que toda doena psicossomtica, outros autores contemporneos, tais como Ballone, Pereira Neto e Ortolani (2002), Sadock e Sadock (2007), demarcaram alguns fenmenos, nomeando-os psicossomticos. Segundo Ballone et al. (2002), nos fenmenos psicossomticos (ou psicofisiolgicos com alterao orgnica), h sempre uma correspondncia fsica do quadro (ou queixa) apresentado pela pessoa, existindo, de fato, alterao orgnica, embora esta seja desencadeada, determinada ou agravada por razes emocionais. No fenmeno psicossomtico, o Sistema Nervoso Autnomo (SNA)

  • 36

    sempre mobilizado. Para melhor elucidar o exposto, apresenta-se um quadro retirado de Ballone et al. (2002, p. 176), no qual apresentaram alguns fenmenos denominados psicossomticos, ou seja, aqueles em que possvel verificar alteraes fsicas:

    Quadro 1: Quadros psicofisiolgicos com e sem alteraes orgnicas. Sistema Sem alteraes fsicas Com alteraes fsicas

    Cardiovascular Palpitaes, dor, opresso no peito, sensao de (falsa) presso baixa, tontura.

    Enfermidade coronariana, hipertenso arterial, arritmia.

    Respiratrio Falta de ar, suspiro, tosse emocional, bolo na garganta.

    Asma brnquica, sndrome de hiperventilao, rinite alrgica.

    Endcrino Sintomas (falsos) de hipoglicemia. Hiper ou hipotiroidismo, hipo ou hiperfuno das paratireoides, hipo ou hiperfuno suprarrenal, hipoglicemia, diabetes.

    Ginecolgico Alteraes no ritmo e fluxo menstruais, dor pr-menstrual, clicas menstruais, vaginismo, dor na relao sexual, dor plvica feminina.

    Displasia mamria, vaginites, herpes genital, endometriose.

    Gastrintestinal Enjoo, m digesto, clicas abdominais, queimao, boca amarga, acidez.

    Transtornos esofgicos, dispepsia, lcera digestiva, sndrome do clon irritvel, retocolite ulcerativa, Doena de Crohn.

    Dermatolgico Prurido (coceira) essencial, queimao e formigamentos.

    Hiperhidrose, urticria, dermatite Atpica, alopecia, herpes, vitiligo, caspa.

    Reumatolgico Dores nas costas, mos, pernas... Artrites.

    Imunolgico Lpus, depresso imunolgica inespecfica, psorase.

    Otorrino Zumbido, tonturas, pigarro. Labirintites.

    Dor crnica Dores generalizadas. Fibromialgia, enxaqueca.

    Fonte: Ballone et al. (2002, p. 176).

    Corroborando as ideias de Ballone et al. (2002), Sadock e Sadock (2007) apresentaram alguns transtornos psicossomticos, relacionados na Tabela 13, a seguir:

    3 Embora seja um Quadro, optou-se, nesta pesquisa, por manter a nomenclatura utilizada pelos autores Sadock e

    Sadock (2007), ou seja, Tabela, visto que se trata de uma citao textual.

  • 37

    Tabela 1: Alguns transtornos psicossomticos.

    Acne Angina pectoris Arritmia Artrite reumatoide Asma brnquica Cardioespasmo Cefaleia Cefaleia tensional Colite espstica Colite mucosa Colite ulcerativa Colo irritvel Diabete melito Doena cardaca coronariana Doenas de pele, como psorase Doenas imunolgicas Dor sacroilaca Edema angioneurtico Enterite regional Enxaqueca Herpes

    Hiperinsulinismo Hipertenso essencial Hipertireoidismo Hipoglicemia Menstruao dolorosa Nusea Neurodermatite Obesidade Piloroespasmo Prurido anal Reaes alrgicas Sibilo asmtico Sndromes de dor crnica Taquicardia Tuberculose lcera duodenal lcera gstrica Urticria Verrugas Vmitos

    Fonte: Sadock e Sadock (2007, p. 880).

    Como se pode observar, comparando as duas referncias, a Tabela 1 considera sintomas, tais como arritmia, nusea, taquicardia e vmitos como transtornos psicossomticos, mesmo que no haja um correspondente de alterao orgnica, como no Quadro 1.

    Esses so apenas alguns exemplos das diversas configuraes que podem adquirir os efeitos da gnese psicolgica, desencadeando um desequilbrio do funcionamento global. Considerando as organizaes psquicas (ou estruturas) configuradas como neurticas, psicticas e perversas, tem-se a presena de fenmenos psicossomticos em todas elas (Santos Filho, 2010).

    Alm dos autores citados, pesquisadores da rea mdica e psicolgica amplamente reconhecidos por seus pares, cabe introduzir outras referncias, de cunho psiquitrico, que tambm discorrem sobre o tema da doena psicossomtica, contudo sob a influncia positivista, a qual valoriza sintomas, sndromes e medicamentos. No entanto, tais referncias devem ser aqui acrescentadas pelo carter interdisciplinar presente no campo da sade e da sade mental.

    Como referncias atuais reconhecidas e aceitas internacionalmente no diagnstico e na avaliao de transtornos mentais e de comportamento, tem-se o Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais (DSM IV) e a Classificao Internacional de Doenas (CID 10). Tais referncias atentam para os transtornos psicossomticos, de somatizao e

  • 38

    conversivos. No entanto, no consideram os transtornos psicossomticos como entidade clnica isolada, mas associa-os aos diversos quadros descritos nesses manuais. A CID 10 (OMS4, 1993) justifica o no uso dos termos psicognico e psicossomtico como categorias diagnsticas, mas reconhece as evidncias de ocorrncia dos mesmos e a importncia de sua incluso para uma avaliao completa do paciente:

    O termo psicognico no tem sido usado nos ttulos das categorias, em vista de seus diferentes significados em diferentes lnguas e tradies psiquitricas. Ele ainda encontrado ocasionalmente no texto e deve ser tomado como indicando o que o clnico considera eventos de vida ou dificuldades bvios (sic) como tendo um papel importante na gnese do transtorno. Psicossomtico no usado por razes similares e porque o uso deste termo poderia ser tomado para implicar que fatores psicolgicos no exercem um papel na ocorrncia, curso e evoluo de outras doenas, as quais no so assim chamadas. Transtornos chamados de psicossomticos em outras classificaes podem ser encontrados em F45 (transtornos somatoformes), F50 (transtornos alimentares), F52 (disfuno sexual) e F54 (fatores psicolgicos ou de comportamento associados a transtornos ou doena classificados em outros blocos). particularmente importante notar a categoria F54 (...) e lembrar de us-la para especificar a associao de transtornos fsicos, codificados em outros blocos na CID 10, causao emocional (OMS, 1993, p. 5).

    Distintos como categoria diagnstica, os Transtornos Somatoformes so classificados pelo DSM-IV (American Psychiatric Association, 2003) e subdivididos em transtorno de somatizao, transtorno somatoforme indifirenciado, transtorno conversivo, transtorno doloroso, hipocondria, transtorno dismrfico corporal, transtorno somatoforme sem outra especificao. Descrevem-se os transtornos somatoformes como:

    A caracterstica comum dos Transtornos Somatoformes a presena de sintomas fsicos que sugerem uma condio mdica geral (da, o termo somatoforme), porm, no so completamente explicados por uma condio mdica geral, pelos efeitos diretos de uma substncia ou por outro transtorno mental (por ex., Transtorno de Pnico). Os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuzo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras reas importantes. Em comparao com os Transtornos Factcios e a Simulao, os sintomas fsicos no so intencionais (i. , no esto sob controle voluntrio). Os Transtornos Somatoformes diferem dos Fatores Psicolgicos que Afetam a Condio Clnica, na medida

    4 Organizao Mundial de Sade.

  • 39

    em que no existe uma condio mdica geral diagnosticvel que explique plenamente os sintomas fsicos (American Psychiatric Association, 2003, p. 469).

    Os Transtornos Somatoformes so caracterizados pela presena tanto de fatores psicolgicos quanto de sintomas fsicos, mas no existe uma condio mdica geral que possa explicar completamente os sintomas fsicos (American Psychiatric Association, 2003, p. 685).

    Em termos gerais, as seguintes caractersticas so atribudas a cada subtipo do transtorno somatoforme:

    O Transtorno de Somatizao (historicamente chamado de histeria ou sndrome de Briquet) um transtorno polissintomtico que inicia antes dos 30 anos, estende-se por um perodo de anos e caracterizado por uma combinao de dor, sintomas gastrintestinais, sexuais e pseudoneurolgicos. O transtorno Somatoforme Indiferenciado caracteriza-se por queixas fsicas inexplicveis, com durao mnima de 6 meses, abaixo do limiar para um diagnstico de Transtorno de Somatizao. O Transtorno Conversivo envolve sintomas ou dficits inexplicveis que afetam a funo motora ou sensorial voluntria, sugerindo uma condio neurolgica ou outra condio mdica geral. Presume-se uma associao de fatores psicolgicos com os sintomas e dficits. O Transtorno Doloroso caracteriza-se por dor como foco predominante de ateno clnica. Alm disso, presume-se que fatores psicolgicos tenham um importante papel em seu incio, gravidade, exacerbao ou manuteno. A Hipocondria a preocupao com o medo ou a ideia de ter uma doena grave, com base em uma interpretao errnea de sintomas ou funes corporais. O Transtorno Dismrfico Corporal a preocupao com um defeito imaginado ou exagerado na aparncia fsica. O Transtorno de Somatizao Sem Outra Especificao includo para a codificao de transtornos com sintomas somatoformes que no satisfazem os critrios para qualquer um dos Transtornos Somatoformes (American Psychiatric Association, 2003, p. 469).

    Como se pode perceber, as descries da CID 10 (OMS, 1993) e do DSM IV (American Psychiatric Association, 2003) no contemplam os transtornos psicossomticos, conforme o Quadro 1 e a Tabela 1, pois estes esto englobados aos transtornos somatoformes e orienta-se inferir a presena dos mesmos em outros quadros patolgicos. Os fenmenos psicossomticos, conforme caracterizados anteriormente, extrapolam a configurao dos transtornos somatoformes, pressupondo sempre, segundo Ballone et al. (2002), uma alterao orgnica, sendo, portanto uma condio mdica geral (eixo III do DSM IV, conforme ser

  • 40

    visto adiante). J Sadock e Sadock (2007), na Tabela 1, enumeram a grande variedade de condies que foram estudadas por terem implicaes psicossomticas. Nemiah (2000) criticou o atual posicionamento do DSM IV (cuja primeira publicao data de 1994), contestando o fato de que a importncia dos fatores psicolgicos na etiologia e produo de doenas foi relegada ao segundo plano, como elementos meramente auxiliares, complicando o curso de uma doena somtica, patofisiologicamente determinada. Segundo o autor, ao restringir os fatores psicolgicos categoria fatores psicolgicos afetando condies mdicas e aderindo-se s linhas biolgicas e fenomenolgicas, as categorias diagnsticas do DSM IV e CID 10 resultam insuficientes e desconsideram toda a construo da pesquisa psicossomtica.

    Na presente pesquisa, consideram-se as doenas psicossomticas conforme descritas por Ballone et al. (2002) e Sadock e Sadock (2007), em detrimento da forma como so apresentadas nos manuais psiquitricos.

    Ballone et al. (2002) salientaram que, em pouco tempo, a pesquisa psicossomtica no se restringir a determinado grupo de enfermidades, mas integrar globalidade das alteraes orgnicas que so precipitadas, agravadas, beneficiadas ou aliviadas por fatores psicolgicos (p. 117), o que pode ser verificado na atual tendncia psicossomtica, ao enfatizar os aspectos biopsicossociais interligando a complexidade do adoecer.

    Tal previso mostra-se pertinente na medida em que, na primeira dcada do sculo XXI, as pesquisas sobre o estresse ganham relevncia nos meios acadmicos. Vincula-se o estresse emocional ao desencadeamento das mais diversas patologias, fsicas ou psquicas, cujo mecanismo de ao no organismo humano e animal comprovam a estreita relao soma e psiqu.

    Como j enfatizado anteriormente, na presente pesquisa, pretendeu-se averiguar a presena de doena psicossomtica em pacientes psicticos e buscar determinar a sua ligao com o estado emocional dos pacientes na poca da ecloso ou do recrudescimento dos sintomas. Para isso, prope-se uma abordagem nova, qual busca possibilitar uma interlocuo com a psicanlise freudiana e com as teorias fisiopatolgicas sobre o estresse.

    Segundo Rodrigues (2008), a teoria da Angst, conforme Freud a compreendia, isto , como uma manifestao evidente do afeto do medo, seria a responsvel pelo desencadeamento do processo defensivo. Assim, seja na forma de ataques de medo ou de pnico, seja na forma do que Freud denominava expectativa medrosa, isto , um sentimento persistente de medo, o resultado seria o acionamento das defesas psquicas. Ambos esses estados seriam decorrentes de uma ameaa interna e inconsciente. Conforme foi

  • 41

    bastante salientado pelos pesquisadores do estresse, entre os estressores emocionais, o afeto do medo importante estressor emocional, isto , o afeto do medo, seja de que origem for, o responsvel pelo desencadeamento e pela manuteno da resposta fisiolgica conhecida como estresse.

  • 42

    4 ESTRESSE

    Estamos, assim, num estado de estresse permanente. Este o fundo presente nas narrativas sobre mal estar. Em ltima instncia, o estresse designado como o maior

    mal-estar permanente na contemporaneidade, que pode manifestar-se de infinitas maneiras. Das dores difusas a tonteiras, passando pela elevao da presso arterial e da

    acelerao cardaca, tudo passvel de lhe ser atribudo. Joel Birman

    Uma vez que os quadros clnicos psicossomticos considerados por esta pesquisa tm como etiologia comum o alarme fisiolgico decorrente do processo de estresse, empreende-se aqui o estudo dessas alteraes fisiolgicas.

    Hans Selye (1965, 1998), nas dcadas de 1930 a 1940, inquietou-se com a percepo de que havia sintomas comuns s diversas doenas, que se sobrepunham ao sintoma especfico daquela doena em questo. Percebeu a existncia de uma sndrome de estar apenas doente e iniciou pesquisas com animais de laboratrio, inoculando neles as mais diversas substncias e verificando as reaes do animal, tanto em vida como dissecado. E descobriu, passo a passo, que diferentes agentes (frio, calor, dor, fome, inoculao de drogas e hormnios, conteno forada, entre outros fatores) provocavam uma reao em cadeia no organismo, afetando vrios sistemas. Tais agentes foram denominados de estressores (agente do estresse: aquele que produz estresse) e Selye (1965) verificou, experimentalmente, que o ser vivo responde, de forma uniforme e especfica, aos diversos agentes estressores aos quais submetido, apresentando, fisiologicamente, sintomas gerais, fruto das mais diversas condies. Assim, tudo aquilo que ameaa a integridade orgnica requer respostas adaptativas do organismo. Esse processo de reao adaptativa foi descrito por Selye, em 1936, como Sndrome Geral de Adaptao (SAG) e representa a expresso corporal de uma mobilizao total das foras de defesa (Selye, 1965, p. 35). O SAG (Selye, 1965, 1998; Mello Filho, 2002; Lipp, 2005) ocorre em trs fases sucessivas:

    a) Reao de Alarma (RA): a primeira defesa contra a agresso ao organismo, e a reao pode ser avanar e atacar o adversrio ou retirar-se, colocando-se fora de seu alcance (luta ou fuga); ocorre descarga adrenrgica, surgindo taquicardia, diminuio do tnus muscular e da temperatura, hemoconcentrao, oligria, hiperglicemia, leucopenia e, aps, leucocitose.

    b) Fase de Resistncia (FR): estgio de adaptao ou resistncia, com respostas antagnicas primeira fase: modificam-se as reaes humorais e neurovegetativas devido hiperatividade do crtex suprarrenal. A dissecao de animais, realizada por Selye, revelou

  • 43

    hipertrofia crtico-suprarrenal, atrofia do tecido timo-linftico e formao de lceras gstricas e duodenais. H sensao de desgaste e cansao, alm da queda da resistncia, caso o sujeito no consiga vencer o estressor.

    c) Fase de Exausto ou esgotamento: o organismo exaure as reservas de energia adaptativa e apresenta sintomas semelhantes fase de alarme, como consequncia da falha dos mecanismos adaptativos a estmulos constantes e excessivos, causando, eventualmente, a morte.

    Segundo Selye (1965), registra-se stress em qualquer momento, durante essas trs fases, embora as manifestaes sejam diversas medida que o tempo decorre. Alm disso, no necessrio que as trs fases se desenvolvam para que possamos registrar a SAG. Somente o mais grave stress leva, eventualmente, fase de exausto e morte (p. 75).

    Aps fazer uma definio negativa do estresse, ou seja, daquilo que ele no , Selye (1965) optou por uma definio operacional: Stress o estado manifestado por um sndrome especfico, constitudo por todas as alteraes no especficas produzidas num sistema biolgico (p. 64). Adverte que o estresse no possui somente conotao negativa, sendo condio da vida humana, podendo ocorrer tanto em situaes que causam prazer, quanto desprazer, mas sempre forando o organismo a um processo adaptativo, na medida em que desencadeia reaes orgnicas para tal.

    Lipp (2005) define estresse como uma reao psicofisiolgica muito complexa que tem em sua gnese a necessidade do organismo fazer face a algo que ameace sua homeostase interna (p. 18). Essa reao surge tanto em situaes negativas (algo que irrite, amedronte, excite ou confunda, cause desconforto fsico), ou positivas (algo que faa feliz). Prope o modelo quadrifsico do estresse, acrescentando a fase de quase-exausto entre a fase de resistncia e a de exausto. Nessa fase, as defesas do organismo oscilam, no conseguindo resistir tenso e restituir a homeostase. Alternam-se momentos de bem-estar e tranquilidade com momentos de desconforto, cansao e ansiedade, propiciando o aparecimento de doenas que denunciam o abalo na resistncia.

    O estresse pode ocorrer em razo de diversos estmulos, sejam eles de origem fsica, qumica ou psquica, provenientes do ambiente interno ou externo do indivduo, incitando-o a buscar mecanismos de adaptao para o equilbrio do organismo. O estresse de origem psquica, conhecido como estresse emocional, possui vrias etiologias, tornando-se evidente pela necessidade de a pessoa enfrentar fatores externos ao or