Dissertação Fernanda Nunes Final Corrigida
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro Biomdico
Instituto de Medicina Social
Fernanda Cristina Ferreira Nunes
Atuao poltica de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro:
perspectivas para o campo da sade
2014
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Fernanda Cristina Ferreira Nunes
Atuao poltica de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas para o
campo da sade
Dissertao apresentada, como requisito
parcial, para obteno do ttulo de Mestre,
ao Programa de Ps-Graduao em Sade
Coletiva, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. rea de concentrao:
Cincias Humanas e Sade.
Orientador (es): Prof. Dr. Francisco Javier Guerrero Ortega
Prof. Dra. Rafaela Teixeira Zorzanelli
Rio de Janeiro
2014
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Fernanda Cristina Ferreira Nunes
Atuao poltica de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas para o
campo da sade
Dissertao apresentada, como requisito
parcial, para obteno do ttulo de Mestre,
ao Programa de Ps-Graduao em Sade
Coletiva, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. rea de concentrao:
Cincias Humanas e Sade.
Aprovada em 31 de maro de 2014.
Orientadores: Prof. Dr. Francisco Javier Guerrero Ortega
Instituto de Medicina Social - UERJ
Prof. Dra. Rafaela Teixeira Zorzanelli
Instituto de Medicina Social - UERJ
Banca Examinadora:
___________________________________
Prof. Dr. Rossano Cabral Lima
Instituto de Medicina Social - UERJ
___________________________________
Prof. Dra. Clarice Monteiro Machado Rios
Instituto de Medicina Social - UERJ
___________________________________
Prof. Dr. Octavio Andres Ramon Bonet
Instituto de Filosofia e Cincias Sociais - UFRJ
Rio de Janeiro
2014
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DEDICATRIA
Para meu irmo Henrique Nunes
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, sou extremamente grata aos informantes envolvidos no processo de pesquisa.
Este trabalho no teria sido possvel sem a confiana e generosidade de Berenice Piana, Claudia
Moraes, Denise Fonseca, Dora Kropotoff, Li Ribeiro, Maria Auxiliadora Carvalho (Dodora),
Marlice Zonzin, Maristela Senhorinho, Renato Frana, Roberta Lima, Suellen Pires, Ulisses da
Costa Batista e Vera Sekine. Muito obrigada, mesmo, pela oportunidade! Agradeo tambm
aos queridos Gabriel Moraes, Gabi, Rafael, Bianca, Yago e Vincius (in memoriam) por me
aceitarem e por me receberem sempre to bem.
Aos meus pais, Ftima e Jos Carlos Nunes, pelo apoio, por acreditarem em mim e pelos
esforos dedicados a minha formao acadmica. Agradeo, principalmente, a meu pai pela
leitura atenta deste trabalho, durante a reviso gramatical.
Ao meu companheiro, Gabriel Alcantara, agradeo pelas longas conversas interdisciplinares e,
sobretudo, pelo empenho em tornar o processo de escrita desta dissertao mais sistemtico,
mas no menos leve e divertido.
Bianca Freire-Medeiros, orientadora da graduao em Cincias Sociais e amiga, por treinar
meu olhar antropolgico, desde o trabalho de campo na Rocinha, entre 2006 e 2009.
Aos amigos que fiz no Instituto de Medicina Social: Beatriz Chagas, Paula Damasceno e Klecia
Renata. Pelos momentos mpares de companheirismo, farra, confidncia e troca intelectual,
agradeo, em especial, Anacely Costa, Aisllan Assis, Digenes Parzianello, Felipe Stephan e
Mercedes Gutierrez. Agradeo tambm Brbara Fonseca e Clara Feldman pelo incentivo e
aprendizado durante o tempo em que passamos juntas.
Ao meu orientador Francisco Ortega pela oportunidade de explorar os estudos sobre deficincia
e, principalmente, por me apresentar ao autismo como objeto de pesquisa. A minha co-
orientadora Rafaela Zorzanelli pelo suporte e pela leitura sempre atenciosa. Aos membros da
banca, Octavio Bonet, Rossano Cabral Lima e Clarice Rios, por aceitarem participar da defesa
deste trabalho. Clarice agradeo, ainda, pelas produtivas tardes de interlocuo e sugestes
de leitura.
CAPES pela bolsa de estudos concedida nestes dois anos de mestrado.
Agradeo tambm a todxs que se lembraram de mim ao encontrar algo relacionado a autismo.
Diariamente, recebi matrias de jornais e revistas, endereos de sites na internet e
recomendaes de leitura sobre o tema.
Por fim, agradeo comadre Mariana Dantas, ao afilhado Artur, a Telma, Eduardo e Joana, s
primas Sandra Moraes e Mrian Nunes e aos amigos do Espao Improviso, por compreenderem
a ausncia durante o longo perodo de escrita deste trabalho.
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Pais que lidam mal com um filho com deficincia desgastam-se pelo esforo da mesma
maneira que pais que esto lidando bem com a situao parecem ficar mais fortes, mas todos
eles tanto se desgastam como so fortalecidos. Participar de um grupo parece sempre fazer
sentido; o poder redentor de intimidades nascidas da luta imenso. (...) A recusa de um
mdico ou assistente social de reconhecer a realidade desses pais porque so mais felizes do
que o previsto uma espcie de traio.
Andrew Solomon, Longe da rvore: pais, filhos e a busca da identidade.
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RESUMO
NUNES, F.C.F. Atuao poltica de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas
para o campo da sade. Dissertao (Mestrado em Sade Coletiva) - Instituto de Medicina
Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
O perodo entre 2009 e 2012 foi considerado um marco na histria das pessoas com
autismo no Brasil, devido sano da Lei Federal n 12.764, no dia 27 de dezembro de 2012,
que reconheceu os autistas, para todos os efeitos legais, como pessoas com deficincia. A
tomada da deficincia como instrumento poltico-identitrio caracterizou, assim, novos rumos
da luta por direitos. A partir da anlise de diferentes estratgias de atuao poltica desenvolvidas por trs grupos de pais de autistas no Estado do Rio de Janeiro (APADEM,
Mundo Azul e Pelo Direito dos Autistas), este trabalho discorrer acerca de suas principais
demandas e alegaes. A escolha destes trs dispositivos associativos justificada por suas
respectivas coordenaes, exclusivamente, atribudas a pais e familiares de autistas, alm do
reconhecimento nacional de suas participaes na formulao de projetos, leis e eventos
relacionados ao espectro. Portanto, esta dissertao pretende responder s seguintes questes:
a) quais processos e motivaes permitem que uma questo privada (ter um filho autista) se
transforme em uma questo pblica? b) como se agrupam, quais so e a quem se dirigem suas
reivindicaes? c) quais expectativas, estratgias e tenses esto envolvidas no movimento dos movimentos sociais do autismo? Alm de entrevistas com informantes qualificados, a
metodologia de pesquisa envolveu observao participante em passeatas, audincias pblicas,
palestras e celebraes de datas comemorativas, como o Dia Mundial da Conscientizao do
Autismo. No entanto, a maior parte do trabalho etnogrfico se concentrou no municpio de
Volta Redonda, onde, h quinze anos, foi fundada a APADEM, caso paradigmtico de atuao
poltica de pais de autistas no Estado do Rio de Janeiro. Por meio da parceria entre sociedade civil e poder pblico, atualmente, Volta Redonda detm trs legislaes municipais
direcionadas ao autismo e uma gama de servios especializados. Por fim, ao apresentar como
os trs grupos de pais de autistas configuram a politizao da experincia da deficincia, esta
dissertao pretende contribuir academicamente com os campos dos novos movimentos sociais
e dos estudos sobre deficincia, ambos de grande potencial heurstico, mas ainda pouco
explorados no Brasil.
Palavras-chave: Autismo. Atuao poltica. Novos movimentos sociais. Deficincia. Direitos.
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ABSTRACT
NUNES, F.C.F. Political action of autistic parents groups in Rio de Janeiro: perspectives for
the field of health. Dissertao (Mestrado em Sade Coletiva) - Instituto de Medicina Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
The period between 2009 and 2012 was considered a landmark in the history of autistic
people in Brazil, due to the enactment of the Federal Law 12.764, on December 27, 2012, which
recognized autistics, for all legal purposes, such as people with disabilities. The use of disability
as a political and identity tools has defined new directions of "struggle for rights". From the
analysis of different strategies of political action undertaken by three groups of parents of
autistic in the State of Rio de Janeiro (APADEM, Mundo Azul e Pelo Direito dos Autistas), this
work will discuss about their main demands and claims. The choice of these three associative
devices is justified by their respective coordinators exclusively attributed to parents and families
of autistic, and also the national recognition of their participation in the formulation of projects,
laws and events related to the spectrum. Therefore, this master thesis aims to answer the
following questions: a) what processes and motivations allow a private matter (having an
autistic child) become a public issue? b) how they group together, what are their claims and
whom they are addressed? c) what expectations, strategies and tensions are involved in the
"movement " of autism social movements? In addition to interviews with qualified informants,
the research methodology involved participant observation in demonstrations, public hearings,
lectures and commemorative dates, such as the World Autism Awareness Day. However, most
of the ethnographic work was focused on the city of Volta Redonda, where fifteen years ago,
was founded APADEM, paradigmatic case of political action of parents of autistic in the State
of Rio de Janeiro. Through the partnership between civil society and government, Volta Redonda currently holds three municipal laws directed to autism and a range of specialized
services. Finally, when presenting how the three groups of parents of autistic configure the
politicization of the experience of disability, this dissertation aims to contribute to the academic
field of new social movements and disability studies, both of great heuristic potential, but still
little explored in Brazil.
Keywords: Autism. Political action. New social movements. Disability. Rights.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 - Manifestantes soltam os bales azuis, em frente Prefeitura do Rio de Janeiro. Fonte:
Fernanda Nunes, 2012. ............................................................................................................. 29
Figura 2 - Detalhe da faixa azul carregada por pais de autistas, pedindo a aprovao da "Poltica
Nacional de Proteo dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista". A imagem
mostra a bandeira do Brasil junto ao smbolo universal do autismo, alm da silhueta de duas
crianas de mos dadas. Fonte: Fernanda Nunes, 2012. .......................................................... 30
Figura 3 - Cristo Redentor iluminado na cor azul. Fonte: Fernanda Nunes, 2013. .................. 32
Figura 4 A imagem mostra os homenageados como "parceiros" dos autistas se reunindo para
uma fotografia, em frente a um telo, no qual l-se: "Autismo. Voc conhece?" Fonte: Fernanda
Nunes, 2013. ............................................................................................................................. 33
Figura 5 - Na "porta do Cabral", Berenice Piana, vestida com a blusa tema da mobilizao,
conversa com um policial, que tambm pai de uma criana com autismo. Fonte: Facebook,
2013. ......................................................................................................................................... 35
Figura 6 - "Somos parte do mundo. No somos um mundo parte". Detalhe de um cartaz, na
mobilizao de 1 de setembro, em Volta Redonda. Fonte: Facebook, 2013. ......................... 37
Figura 7 - Acompanhada por Ulisses Batista, Berenice Piana posa para fotografias, aps
audincia pblica na ALERJ, em novembro de 2013. No canto inferior direito, a pesquisadora
atua como fotgrafa, a pedido de um pai de autista. Fonte: Fanpage da Comisso PcD ALERJ,
2013 .......................................................................................................................................... 60
Figura 8 - Imagem da III Caminhada pela Conscientizao do Autismo, realizada no dia 4 abril
de 2013, no Leblon. Fonte: Fernanda Nunes, 2013. ............................................................... 101
Figura 9 - Frente e verso da cartilha produzida por meio de "parceria" entre o Grupo Mundo
Azul e a Prefeitura, para diagnstico precoce, na rede de ateno primria. ......................... 105
Tabela 1 - Categorias nativas divididas em positivas e negativas. .................................... 40
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABA Applied Behavioral Analysis
ABRA Associao Brasileira de Autismo
ACP Ao de Tutela Antecipada
ALERJ Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
AMA Associao dos Amigos do Autista
APADEM Associao de Pais de Autistas e Deficientes Mentais
APAE Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais
APARJ Associao de Pais de Autistas do Rio de Janeiro
AVD Atividade de vida diria
CAPS Centro de Atendimento Psicossocial
CAPSi Centro de Atendimento Psicossocial Infanto-juvenil
CDC Center for Disease Control and Prevention
CDPD Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia
CID Classificao Internacional de Doenas
CIF Classificao Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Sade
CONADE Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficincia
CORDE Conselho da Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa com
Deficincia
CSN Companhia Siderrgica Nacional
CVI Centro de Vida Independente
DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
MOAB Movimento Orgulho Autista Brasil
OSCIP Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico
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ONG Organizao No-Governamental
ONU Organizao das Naes Unidas
PECS Picture Exchange Communication System
PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro
PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
PRB Partido Republicano Brasileiro
PSC Partido Social Cristo
PT Partido dos Trabalhadores
SEMEIA Stio Escola Municipal Espao Integrado do Autista Thereza Chicarino
Sosintra Sociedade de Servios Gerais para a Integrao Social pelo Trabalho
SRTs Servios Residenciais Teraputicos
SUS Sistema nico de Sade
TEACCH Treatment and Education of Autistic and related Communication Handicapped
Children
UPIAS Union of the Physically Impaired Against Segregation
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................................ 13
SE A GENTE SE ISOLAR, TUDO FICA MAIS DIFCIL: REFLEXES ETNOGRFICAS SOBRE EVENTOS
ORGANIZADOS POR PAIS E FAMILIARES DE AUTISTAS ......................................................................... 24
1.1 Desenhando o campo...................................................................................................................... 26
1.1.1 Primeiro Ato ................................................................................................................................. 27
1.1.2 Segundo Ato ................................................................................................................................. 30
1.1.3 Terceiro Ato .................................................................................................................................. 34
1.2 Do hbrido: Sobre pais, mes e ativistas ......................................................................................... 37
AUTISMO E OS SUJEITOS DA LUTA NO CENRIO BRASILEIRO ........................................................... 47
2.1 Tecendo narrativas: do diagnstico politizao da experincia .................................................. 52
2.2 Para pensar as polticas: a Lei n 12.764 e o autismo como deficincia ......................................... 57
2.2.1 Com a lei, Volta Redonda vai alm: caso paradigmtico de atuao poltica de um grupo de pais
de autistas no Estado do Rio de Janeiro. .............................................................................................. 73
2.2.2 CAPS Belvedere: tenso entre familiares e sade mental ........................................................... 78
2.3 Projetos em curso: Residncias assistidas ...................................................................................... 86
ANLISE DAS ESTRATGIAS DE ATUAO POLTICA NOS MOVIMENTOS DO AUTISMO .................. 91
3.1 APADEM: despedidas e novos caminhos ........................................................................................ 95
3.2 Mundo Azul: O Brasil precisa conhecer o autismo ...................................................................... 99
3.3 Pelo Direito dos Autistas: atuao no virtual para um campo real .............................................. 106
3.4 Reflexes em um campo minado: movimentos do autismo e modelos tericos da deficincia .. 110
CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................................... 125
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................................................... 127
APNDICE ............................................................................................................................................ 140
ANEXO 1 .............................................................................................................................................. 141
ANEXO 2 .............................................................................................................................................. 144
ANEXO 3 .............................................................................................................................................. 145
ANEXO 4 .............................................................................................................................................. 146
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ANEXO 5 .............................................................................................................................................. 149
ANEXO 6 .............................................................................................................................................. 151
ANEXO 7 .............................................................................................................................................. 153
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INTRODUO
Autismo no loucura, nem retardo mental (...) Quando so internados como
doentes mentais que como os governos no Brasil tm determinado quando eles entram em
crise saem mais agressivos. Tambm no so atendidos entre deficientes. desta forma que
o autismo introduzido aos leitores do Jornal O Globo, na segunda srie da reportagem-
denncia intitulada Os Meninos do Poro, publicada em 20 de junho de 2006. A matria
retratou o modo como vivem as famlias de autistas adultos da cidade de So Paulo. Constatou
que isolamento, agressividade e recluso compulsria em suas prprias casas so caractersticas
em comum entre autistas que no tm condies financeiras nem acesso a nenhum tipo de
tratamento ou cuidados especficos na rede pblica de sade. Em geral, cabe s mes o papel
de principais, seno nicas, cuidadoras. Para tentar reverter a situao de excluso,
invisibilidade e ausncia de recursos (temas intrinsecamente relacionados a esta dissertao de
mestrado), umas das mes retratadas na reportagem conseguiu na justia o custeio do tratamento
de seu filho pelo governo paulista, embora a liminar no tenha sido cumprida pelo Estado.
Similarmente aos casos apresentados na matria do jornal, uma das personagens
principais desta dissertao, Maria Auxiliadora Carvalho, me de Vincius, autista de 26 anos,
entrou com um processo contra o Estado do Rio de Janeiro, junto Defensoria Pblica, no ano
2000. Vincius apresenta comprometimentos, considerados severos, na interao e no
comportamento. O jovem, que no fala, apresenta dificuldades para se manter sentado, alm de
se autoagredir, batendo continuamente a cabea contra paredes e mesas, e de lesionar os pais
com chutes e cabeadas.
Anteriormente ao parecer favorvel na justia, Vincius recebia atendimento somente
uma vez por semana, de trinta minutos a uma hora, em um Centro de Atendimento Psicossocial
Infanto-juvenil (CAPSi), localizado no municpio de Volta Redonda (RJ). Somente nove anos
aps Maria Auxiliadora dar entrada no processo, o rapaz teve tratamento garantido, trs vezes
por semana, com duas horas de durao, em um Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS)
da regio. O direito ao tratamento contnuo e especializado em dispositivos distintos dos j
existentes na rede pblica de sade, no entanto, constitui umas das frentes de luta de Maria
Auxiliadora, fundadora da Associao de Pais de Autistas e Deficientes Mentais (APADEM),
e de outros pais-ativistas que recebero destaque nesta dissertao.
Neste trabalho, me interessam os processos que permitem a construo de uma
identidade poltica, a partir da ressignificao da experincia particular de se ter um autista
em casa. Portanto, no trato aqui de meros receptores passivos de servios governamentais,
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mas sim de coletivos formados, exclusivamente, por pais e familiares de autistas na luta por
direitos e por reconhecimento.
Assim, este estudo focalizar a atuao poltica de trs grupos de pais de autistas no
Estado do Rio de Janeiro, abordando as principais demandas vocalizadas por eles, por meio da
anlise de entrevistas em profundidade com informantes qualificados e de observao
participante em cursos, palestras e manifestaes pblicas. Cabe ressaltar que a escolha dos
grupos APADEM (Volta Redonda), Mundo Azul (Rio de Janeiro) e Pelo Direito dos Autistas
(rede de relacionamentos, na internet, mediada por pais que vivem no Rio de Janeiro) um
recorte do possvel, tendo em vista que existem outras associaes que tambm configuram
dispositivos de presso poltica em So Paulo, Minas Gerais, Cear e Distrito Federal.
A escolha dessas trs justifica-se por sua formao e gesto articuladas por pais ou
familiares de autistas (crianas e adultos), alm de sua evidente e reconhecida participao na
formulao de projetos, legislaes e eventos especficos, assim como na conscientizao da
causa, em nvel nacional. Neste sentido, minha inteno responder s seguintes questes: a)
quais processos e motivaes permitem que uma questo privada (ter um filho autista) se
transforme em uma questo pblica? b) como se agrupam, quais so e a quem se dirigem suas
reivindicaes? c) quais expectativas, estratgias e tenses esto envolvidas no movimento
dos movimentos sociais do autismo?
Entendo a formao de grupos de pais de autistas como parte do processo histrico de
surgimento dos chamados novos movimentos sociais, termo cunhado pelo socilogo italiano
Alberto Melucci (1980), para descrever modelos de ao coletiva, referentes ao perodo entre
1960 e 1970, nos Estados Unidos e em pases da Europa. Como eixo de novas reflexes a
respeito do conceito de movimento social, autores como Melucci (1980), Habermas (1981) e
Touraine (1989) trataram da passagem da luta relacionada a classes e partidos polticos para
aquela segmentada no reconhecimento e nas demandas de minorias. Aps reviso terica dos
trabalhos destes autores, Alonso (2009, p.76) resumiu a mudana de paradigmas referentes s
demandas sociopolticas e culturais formuladas por e para a sociedade civil, no contexto ps-
industrial moderno:
A ruptura est no prprio nome que o fenmeno ganhou. Tratava-se seguramente de
movimentos, no sentido de aes coordenadas de mesmo sentido acontecendo fora das
instituies polticas, mas no eram, de modo algum, protagonizadas por mobs, tampouco por
proletrios. Eram jovens, mulheres, estudantes, profissionais liberais, sobretudo de classe
mdia, empunhando bandeiras em princpio tambm novas: no mais voltadas para as condies
de vida, ou para a redistribuio de recursos, mas para a qualidade de vida, e para afirmao da
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diversidade de estilos de viv-la. Essas demandas (...) se completavam com a opo por formas
diretas de ao poltica e pela demanda por mudanas paulatinas na sociabilidade e na cultura, a
serem logradas pela persuaso, isto , lguas longe da ideia de tomada do poder de Estado por
revoluo armada. Ento eram, sim, movimentos, mas movimentos sociais. (grifos da autora)
O surgimento de novos agentes de presso social e de outros tipos de reivindicaes
possveis - no mais dirigidos prioritariamente ao Estado, mas sim sociedade em geral - trouxe
luz pleitos por direitos humanos, reconhecimento de identidades, participao social e
equidade. frente, esto atores que fazem de seus respectivos corpos, prticas e saberes --
socialmente normatizados e/ou medicalizados -- o prprio campo de ao poltica. Assim, entre
as dcadas de 1960 e 1970, surgiram os primeiros movimentos sociais formados por gays,
mulheres, pessoas com deficincia, entre outros.
De acordo com Vasconcelos (2003), desde a dcada de 1980, o termo empoderamento
(empowerment) tem representado um instrumento central para referir-se atuao de grupos e
associaes nas polticas sociais, no servio social e na sade mental, na Europa e nos Estados
Unidos1. Reflexo dos novos movimentos sociais, no Brasil, as reivindicaes por direitos dos
autistas, que teve pais e familiares como principais interlocutores, acompanhou o nascimento
dos grupos geridos por pessoas com deficincia, na dcada de 1980 (LANNA JR., 2010)
A Associao Amigos do Autista (AMA), fundada em 1983, em So Paulo,
considerada a pioneira no segmento das iniciativas independentes e difusas2 na luta pelos
direitos dos autistas, no pas. Formada exclusivamente por familiares, os primeiros encontros
do grupo se deram em um consultrio psiquitrico, em So Paulo, onde seus filhos receberam
o diagnstico pela primeira vez, at que conquistassem sede prpria e subsdios governamentais
(CAVALCANTI, 2005; MELLO et al., 2013).
Embora no pretenda estabelecer comparaes entre as estratgias de atuao da AMA
e os grupos estudados por mim (APADEM, Mundo Azul e Pelo Direito dos Autistas),
interessante fazer um breve retrospecto das aes desenvolvidas pela primeira associao
formada por pais de autistas no Brasil. Desde formao da AMA, grupos de familiares de
autistas vm se consolidando pelo pas, no apenas como fonte de apoio emocional a outras
famlias, mas como meio legtimo de angariar recursos pblicos, formular projetos de lei, buscar
1 O campo do empowerment apresenta arenas de conflito dinmicas, relacionais, sem distines claras, com focos permanentes de conflito, deslocamentos, e tentativas dos diferentes atores sociais de integrar e reapropriar
as necessidades, experincias sociais bsicas, as interpelaes ideolgicas e tradies culturais relevantes para os
grupos sociais envolvidos. (VASCONCELOS, 2003, p. 58 e 59) 2 Vasconcelos considerou a AMA como uma inciativa independente e difusa na sociedade, visto que construda por pais, familiares e amigos, sem vnculos a servios pblicos de sade mental.
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novos tratamentos, pesquisas e atendimentos em sade e educao, alm da produo de
conhecimento e tentativa de eliminao dos estigmas e preconceitos associados ao autismo.
Inicialmente, as intenes da AMA se concentravam em desenvolver o conhecimento
sobre autismo no pas e abrir oportunidade de desenvolvimento para crianas com autismo de
qualquer nvel financeiro, raa e orientao poltica ou religiosa (MELLO et al, 2013, p.22)
De acordo com o site3 da associao, sua misso
(...) proporcionar pessoa com autismo uma vida digna: trabalho, sade, lazer e integrao
sociedade. Oferecer famlia da pessoa com autismo instrumentos para a convivncia no lar e
em sociedade. Promover e incentivar pesquisas sobre o autismo, difundindo o conhecimento
acumulado.
No cenrio pblico, atuando na condio de ativista dos direitos dos autistas, em 1988,
a AMA foi responsvel pela fundao da Associao Brasileira de Autismo (Abra), que tem
representao poltica junto ao Conselho Nacional de Sade (CNS), ao Conselho da
Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa com Deficincia (Corde) e ao Conselho
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficincia (Conade).
Por outro lado, no que diz respeito a aes locais, hoje, a associao conta com cento e
oitenta e sete assistidos, alm de oferecer aos pais e populao em geral cursos e palestras
ministradas por psiclogos, psiquiatras, educadores, fonoaudilogos, entre outros profissionais.
Assim, a AMA se tornou referncia em servios especializados para autismo, realizados em
suas cinco unidades, a partir do uso de tcnicas comportamentais de interveno, como o
programa denominado Treatment and Education of Autistic and Related Communication
Handcapped Children (TEACCH).
Ainda que esta dissertao no d conta da diversidade de abordagens clnicas
disponveis para o tratamento de pessoas com autismo, dado o debate que envolve a opo por
terapias comportamentais, importante ressaltar que o surgimento da metodologia TEACCH
se deu entre os anos de 1970 e 1980, pelo Dr. Eric Schopler, da Universidade da Carolina do
Norte. No mesmo perodo, difundiu-se a Applied Behavioral Analysis (ABA), a partir dos
trabalhos de Ivar Lovaas, da Universidade da Califrnia, tambm nos Estados Unidos. A
eficincia destas abordagens comportamentais foi corroborada por pesquisas, como as de
Michael Rutter, Simon Baron-Cohen e Uta Frith. Assim, comum que a justificativa de sua
ampla utilizao, principalmente, por profissionais da educao e por familiares se baseie no
3 http://www.ama.org.br/
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argumento da comprovao cientfica de seus benefcios, dos quais fazem parte o
condicionamento do autista na realizao de tarefas cotidianas e acadmicas, bem como a
reduo de estereotipias e comportamentos considerados socialmente inadequados (Cf.
RIMLAND, 1964; LOVAAS, 1977; NADESAN, 2008).
Aps cursos na Europa e nos Estados Unidos, as fundadoras da AMA/SP constataram
que a abordagem TEACCH (Treatment and Education of Autistic and related Communication
Handicapped Children) era a mais utilizada. Em 1989, um projeto de intercmbio entre
pesquisadores dinamarqueses, as mes e profissionais da AMA foi submetido ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), visando promoo de um
curso de trs dias, realizado em So Paulo, sobre contedo tcnico da abordagem TEACCH.
Posteriormente, com apoio do CNPq, da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So
Paulo (FAPESP) e da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
(CAPES), a instituio recebeu cursos e assessoria de profissionais especializados em autismo,
como Dr. Eric Schopler, criador do TEACCH e o psiclogo Bernard Rimland, um dos
fundadores da Autism Society of America (ASA). Anos mais tarde, ao final da dcada de 1990,
a AMA tambm se aproximou de profissionais estrangeiros especializados na metodologia
ABA, promovendo novos intercmbios (MELLO et. al., 2013). Baseados nestas abordagens,
atualmente, a AMA oferece cursos mensais a autistas, pais, familiares, cuidadores e
profissionais da rea, sob um custo que varia de R$198,00 (cento e noventa e oito reais) a
R$660,00 (seiscentos e sessenta reais).4 J o programa de palestras gratuitas intitulado Meu
Filho Tem Autismo oferecido a cada ltima segunda-feira do ms.
Em 2013, quando a AMA completou trinta anos de existncia, a primeira organizao
poltica formada por pais de autistas j exista h cinquenta anos, no Reino Unido. Em entrevista
concedida ao programa da BBC Womens Hour, em 1961, Helen Allison descreveu as
caractersticas de seu filho Joe. Embora o termo autismo no fosse amplamente conhecido
naquele perodo, as experincias relatadas por Helen a aproximaram de outros pais do Reino
Unido, que, juntos, se mobilizaram para fundar, no incio de 1962, a National Autistic Society
(NAS), inicialmente chamada de Society for Psychotic Children. Seus objetivos envolviam a
criao de escolas especializadas; construo de residncias teraputicas e o apoio e informao
famlia. Tambm coube NAS criar o smbolo que, hoje, universalmente atribudo ao
autismo: uma fita formada por peas de um quebra-cabea, que representa a complexidade da
deficincia.
4 Por meio da promoo de cursos sobre metodologia TEACCH, a AMA tida como uma das maiores
divulgadoras da tcnica no pas. (MELLO et. al., 2013)
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Trs anos mais tarde, em 1965, nos Estados Unidos, o psiclogo e pai de autista Dr.
Bernard Rimland, junto a outros sessenta familiares, fundou a National Society for Autistic
Children (NASC), hoje chamada de Autism Society of America (ASA). Rimland autor do
clebre livro Infantile Autism: The Syndrome and Its Implication for a Neural Theory of
Behavior, publicado em 1964. A obra considerada a primeira a abordar a origem orgnica
do autismo, de ordem neurolgica, ao invs de psicognica. Assim, afirma-se que a NSAC foi
a pioneira na promoo de programas teraputico-educacionais especializados, baseados no
trabalho do Dr. Ivar Lovaas (SILVERMAN, 2012; AUTISM ADVOCATE, 2011).
Consolidando uma nova rede de expertise (EYAL et. al., 2010), a NSAC valorizou as
perspectivas de pais de autistas, autorizados a falar em nome de seus filhos, a partir de
observaes e experincias cotidianas, ao invs de relegar esta funo exclusivamente aos
especialistas do campo biomdico. A instituio foi responsvel pela divulgao do diagnstico
entre professores, profissionais de sade e legisladores, assim como constituiu o lobby pela
incluso do autismo no Developmental Disabilities Act, em 1963, e no Education for All
Handicapped Act5, em 1975, garantindo acesso a servios e suportes pblicos adequados e de
qualidade.
Ao longo da dissertao, dispensarei conceitos mdicos, descries e classificaes de
manuais diagnsticos para referir-me ao autismo. Por este motivo, predicados como severo,
clssico, moderado, alto funcionamento, entre outras, aparecero entre aspas para
destac-los como categoria nativa. De modo geral, estes termos carregam como significado o
grau de funcionalidade cognitivo-comportamental do indivduo. Embora isto levante
reflexes acerca do que pode ser considerado funcional, tambm relevante para se pensar o
tipo de poltica pblica que pais e familiares demandam. De acordo com os pais e familiares
entrevistados, estes termos classificatrios nativos envolvem o nvel de dificuldades na trade
interao, socializao e comunicao. A ttulo de exemplos, a palavra severo tem sido
atribuda queles indivduos cujos comportamentos auto e heteroagressivos, necessitam, em
casos extremos, do uso de tcnicas de conteno, enquanto a categoria alto funcionamento
ou Asperger engloba aqueles que apresentam alto rendimento acadmico ou habilidades e
interesses especficos. Uma vez que estes termos se referem a concepes socialmente
partilhadas sobre o diagnstico, darei breve destaque construo nosolgica do autismo, a fim
de situar os leitores acerca do processo envolvido na escolha de certos ttulos identitrios, em
detrimento de outros.
5 Renomeado como Individuals with Disabilities Education Act (IDEA), em 1990.
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O Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders DSM), publicado desde 1952 pela Associao Americana de
Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA), o principal sistema de classificao de
transtornos mentais adotado por profissionais da sade mental. A partir de sua terceira edio,
em 1980, o autismo deixou de ser tratado como psicose, tornando-se reconhecido como
entidade nosolgica prpria, includa dentre os Transtornos Globais do Desenvolvimento (em
ingls, Pervasive Development Disorders PDD)6, que afetam a cognio, o comportamento e
a comunicao.
Somente em 1994, na quarta edio do DSM, conceituou-se a Sndrome de Asperger
como categoria nosolgica, que junto com o Autismo, a Sndrome de Rett, as Desordens
Desintegrativas da Infncia e o PDD-NOS (usado quando os sintomas no se enquadram
exatamente no diagnstico de autismo) integrava o termo guarda-chuva do espectro autista
(Cf. WING, 1993; NADESAN, 2005; MURRAY, 2008). Em relao s caractersticas
apresentadas pelo restante do espectro, a Sndrome de Asperger considerada, no campo
biomdico, a forma mais branda de autismo. Assim, at o DSM-IV, o diagnstico da Sndrome
baseava-se nos seguintes critrios: a) prejuzo qualitativo na interao social; b) padres de
comportamento e interesses restritos, repetitivos e estereotipados; c) prejuzo clinicamente
significativo nas reas social e ocupacional ou outras reas importantes de funcionamento; d)
ausncia de atraso significativo no desenvolvimento motor e da linguagem, bem como na
cognio (APA, 1994).
Aps recente deciso da APA, na quinta edio do DSM, publicado em 2013, a
Sndrome de Asperger e o restante do espectro foram eliminados da categoria dos Transtornos
Globais do Desenvolvimento e realocados no diagnstico genrico de Transtorno do Espectro
Autista (TEA). O argumento da APA 7 que a incorporao em uma nica categoria
favoreceria um processo diagnstico mais consistente e preciso das crianas com autismo,
contribuindo para a definio de tratamentos e intervenes mais eficazes. Segundo a entidade,
inmeras pesquisas realizadas por cientistas de diversos pases, apontaram para a existncia de
um continuum, do grave ao leve (ou do baixo ao alto funcionamento), entre as diversas
manifestaes autsticas e no somente de um sim ou no para cada transtorno especfico.
(SINGH, 2011)
6 Cf. http://www.autism-society.org/about-autism/diagnosis/diagnostic-classifications.html 7 Disponvel em http://www.dsm5.org/Documents/12-03%20Autism%20Spectrum%20Disorders%20-
%20DSM5.pdf
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Outro sistema utilizado no diagnstico do autismo a Classificao Internacional de
Doenas (CID-10), publicada pela Organizao Mundial de Sade (OMS). No Captulo V da
CID-10, intitulado Transtornos mentais e comportamentais, fazem parte da categoria
Transtornos Globais do Desenvolvimento: autismo infantil (F84.0); autismo atpico (F84.1);
Sndrome de Rett (F84.2); outro transtorno desintegrativo da infncia (F84.3); transtorno com
hipercinesia associada a retardo mental e a movimentos estereotipados (F84.4); sndrome de
Asperger (F84.5); outros transtornos globais do desenvolvimento (F84.8) e transtornos globais
no especificados do desenvolvimento (F84.9)
Como alternativa aos modelos classificatrios estritamente focalizados nas limitaes
fsicas e mentais dos indivduos, acadmicos, pesquisadores e pessoas com deficincia
trabalharam, em conjunto, para propor a Classificao Internacional da Funcionalidade,
Incapacidade e Sade (CIF), publicada, desde 1980 (quando foi formulada sua verso
experimental), pela Organizao Mundial de Sade (OMS). Desde ento, a CIF foi aceita por
191 pases como a nova norma internacional para descrever e avaliar a sade e a deficincia. A
CID-10 e a CIF so instrumentos complementares. Enquanto a primeira fornece cdigos para
doenas, enfermidades, leses e outras questes de sade, o segundo aparato classificatrio, de
acordo com o Relatrio Mundial Sobre a Deficincia (OMS, 2011), compreende funcionalidade
e deficincia como partes da interao dinmica entre problemas de sade e fatores contextuais
(ambientais e pessoais).
Observar-se- nesta dissertao que a resposta questo O que autismo? no
redutvel s definies biomdicas de sistemas classificatrios, como o DSM-5 e o CID-10.
Pensar no entrelaamento entre autismo e atuao poltica, a partir de categorias nativas,
redesenha categorias diagnsticas e conhecimentos cientficos e acadmicos a respeito de
determinado grupo. Portanto, interessante notar o modo como meus informantes descreveram
a si mesmo e a seus filhos, assim como narraram a construo de uma histria, que , a um s
tempo, singular e coletiva. Alm da etnografia, que receber destaque no primeiro captulo, a
metodologia desta pesquisa envolveu entrevistas em profundidade com nove informantes
qualificados (sendo cinco da APADEM, duas do Mundo Azul e duas do Pelo Direito dos
Autistas).
Ainda que, anteriormente pesquisa de campo, no tivesse convido com pessoas
autistas e seus familiares, questes acerca das corporalidades deficientes sempre fizeram parte
da minha vida e da minha identidade, por ser irm de uma pessoa com deficincia fsica.
Portanto, frequentemente, trajetrias e narrativas verbalizadas por meus nativos soavam-me
familiares. O que nos afastava, contudo, era a participao como ativistas do autismo e,
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tambm, o tipo de descoberta de tais deficincias: sendo uma de ordem congnita,
diagnosticada no momento do nascimento e outra que se percebe somente durante o
desenvolvimento da criana, visto que ainda no h exames que permitam o diagnstico de
maneira to precoce.
Durante o trabalho etnogrfico, fui convocada a lanar mo de inmeros papis que se
misturavam ao de pesquisadora. No raro, atuei como fotgrafa em eventos; ajudei a distribuir
panfletos na rua, a prender faixas e a segurar bales, durante manifestaes e passeatas;
trabalhei como voluntria em uma feijoada beneficente e contribu na arrumao dos espaos
em festividades e demais e atividades. Ao final de alguns eventos, como audincias pblicas,
fui interlocutora dos meus informantes. Alguns queriam saber como tinham se sado, se tinham
exposto o assunto de forma clara ou, muitas vezes, simplesmente recorriam a mim a fim de
desabafar sobre suas frustraes. Contudo, nos lembra Romanelli (1998, p.123), engano
supor que a convivncia com um grupo de pessoas e a participao em seu cotidiano sejam
suficientes para se efetuar uma coleta de dados adequada. imprescindvel, na prtica do
trabalho de campo, orientar-se pelo olhar antropolgico, que compatibiliza o estranhamento
daquilo que nos parece familiar e o conhecimento terico que permitir a anlise dos dados
coletados sob o mtodo da observao participante (DAMATTA, 1981; DURHAM, 1986;
VELHO, 1989; ROMANELLI, 1998; FOOTE WHYTE, 2005)
Conforme detalharei no primeiro captulo desta dissertao, meu primeiro encontro
face-a-face com militantes da causa do autismo, no Rio de Janeiro, se deu em uma manifestao
organizada em setembro de 2012, em frente Prefeitura, em apoio aprovao do Projeto de
Lei Federal (PL n 1698/2011) que, poca, tramitava no Senado. Aps este evento, Roberta
Lima, uma das mes integrantes do grupo Pelo Direito dos Autistas e moradora da favela Rio
das Pedras, teve suma importncia na minha familiarizao com o tema, com os autistas e com
a rede pblica de sade mental (como o CAPSi), na qual eu jamais havia estado, anteriormente
pesquisa. Assim, a convite de minha informante privilegiada, tive a oportunidade de
frequentar algumas reunies e eventos no Centro de Atendimento Psicossocial Infanto-juvenil
Eliza Santa Roza, em Jacarepagu, onde seu filho recebeu tratamento at 2013, quando
completou 21 anos de idade.
No entanto, a maior parte do trabalho etnogrfico se desenvolveu no municpio de Volta
Redonda, onde est localizada a Associao de Pais de Autistas e Deficientes Mentais
(APADEM). Aps idas quinzenais APADEM, passei a ser diretamente convidada a participar
dos eventos realizados pela associao, sem que houvesse a necessidade de pedir autorizao
para estar presente ou de apresentar minha condio de pesquisadora. Tambm passei a ser
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chamada para conhecer a casa de alguns informantes, alm de compartilhar narrativas pessoais
durante conversas informais (sem o uso do gravador), durante um caf-da-manh ou lanche.
Solcitos, meus informantes de Volta Redonda sempre se dispuseram a me oferecer carona at
a rodoviria, momento este que, quase sempre, me eram apresentados os pensamentos
indizveis na entrevista, diante do gravador ligado. Alguns tambm passaram a se referir a mim
como amiga dos autistas, rendendo, inclusive, um agradecimento pblico na fanpage da
APADEM, no Facebook, aps minha participao como voluntria na feijoada beneficente,
ocorrida em julho de 2013.
A constante presena em campo, especialmente em Volta Redonda, consolidou formas
variadas de interao entre mim e os autistas, filhos/irmos de meus informantes, que
frequentavam a sede e eventos promovidos pela APADEM. No primeiro momento que marca
a minha chegada associao, apenas dirigia-me a eles em sua maioria, adultos, pouco ou
no-verbais com um breve cumprimento: oi, tudo bem, [nome da pessoa]?. Em alguns
casos, a resposta vinha sob a forma de ecolalia8; em outros, como silncio. Apenas com o passar
do tempo, outras formas de interao se estabeleceram entre ns. Aps o trabalho como
voluntria da feijoada beneficente que pretendia arrecadar fundos para a APADEM e marcava
o incio de uma nova gesto, um dos rapazes, pela primeira vez, despediu-se de mim,
espontaneamente, com um beijo no rosto. Para mim, este representou um momento de surpresa
e emoo, visto que o rapaz, raramente, respondia, quando me dirigia a ele. J outra autista
adulta, de 38 anos, que demonstrava no gostar do contato fsico com pessoas de fora, passou
a me dar a mo e a falar frases curtas voltadas a mim. Por sua vez, um autista de trinta anos
contou-me, espontaneamente, sobre suas novelas preferidas e sobre as atividades realizadas por
ele (como prticas esportivas em uma associao para pessoas com deficincia e o trabalho na
Prefeitura de Resende).
Vistas as principais consideraes iniciais a respeito da temtica dos movimentos
sociais do autismo e da minha entrada neste campo de estudo, segue-se a estrutura dos captulos
desta dissertao.
O primeiro captulo, de carter metodolgico, apresentar, em trs atos, parte do
trabalho etnogrfico que marca a minha entrada na zona pblica de representao dos grupos
de pais de autistas estudados. Baseado nas noes de Goffmanianas de regies de significao
e papis sociais, este captulo introduzir o leitor s principais dinmicas de carter mobilizador
8 Comum entre autistas, a ecolalia a repetio de frases ou palavras ouvidas.
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organizadas por sujeitos coletivos em nome dos autistas do Brasil, como passeatas,
manifestaes e comemoraes do Dia Mundial de Conscientizao do Autismo.
O segundo captulo iniciar a discusso analtica dos dados produzidos ao longo de um
ano junto aos informantes qualificados, luz de concepes tericas sobre os chamados
novos movimentos sociais e dos estudos sobre deficincia. Neste captulo, as narrativas dos
que denominei como pais-ativistas nos levaro s trajetrias da descoberta do diagnstico
politizao da experincia. Focalizarei, sobretudo, as atividades desenvolvidas pela APADEM
(Volta Redonda), caso paradigmtico de atuao poltica de pais e familiares de autistas no
Estado do Rio de Janeiro. Esta parte da dissertao ter como vetor de anlise os
desdobramentos da sano da Lei Federal n 12.764/2012, que reconheceu os autistas como
pessoas com deficincia, para todos os efeitos legais. A legislao nacional fruto do
reconhecimento pblico da mobilizao de pais-ativistas de todo o pas e interpretada como
uma espcie de trofu entre os grupos estudados, neste trabalho.
No terceiro captulo, me interessar o carter mutvel do sentido de associao, tendo
como pano de fundo a mudana de gesto da APADEM, que despertou tenses e disputas
internas ao grupo. Tambm apresentarei, mais detalhadamente, as estratgias de atuao
poltica e de visibilidade dos grupos Mundo Azul e Pelo Direito dos Autistas, alm de suscitar
breves reflexes a respeito da importncia da ampliao de fronteira dos modelos tericos da
deficincia, a partir dos dados coletados para esta pesquisa junto aos trs grupos de pais e
familiares de autistas. Portanto, no ltimo captulo, pretendo responder s seguintes questes:
a) ao compararmos os trs grupos estudados, em que medida as abordagens do autismo e as
estratgias polticas se afastam e se aproximam? b) qual lugar de fala legitima suas aes,
construindo nuances e tenses internas e externas ao grupo? c) quais posies tericas e
filosficas assumem, ou no, ao contemplar perspectivas biomdicas em discursos com nfase
na teraputica e em pesquisas?
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CAPTULO 1
SE A GENTE SE ISOLAR, TUDO FICA MAIS DIFCIL: REFLEXES
ETNOGRFICAS SOBRE EVENTOS ORGANIZADOS POR PAIS E
FAMILIARES DE AUTISTAS
O etngrafo enfrenta uma multiplicidade de estruturas
conceptuais complexas, que so simultaneamente
estranhas, irregulares e inexplcitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro aprender e depois apresentar. -
Clifford Geertz
O que configura um agrupamento de pessoas como poltico? Quem poder dizer, se no
somente os sujeitos da ao, quais e tais reivindicaes so legtimas? A quem cabe julgar o
uso de predicados que definem autistas como anjos, azuis e especiais? Estas so algumas
questes que permearam o trabalho etnogrfico, que assume sua dimenso intersubjetiva para
examinar, a partir das concepes nativas, como pais de autistas que fazem parte de movimentos
sociais no Rio de Janeiro compreendem, configuram e denominam a sua atuao na sociedade.
Antes de tudo, nos lembra Grinker (2010), o autismo no existe fora da cultura.
Portanto, conceitos como deficincia, doena mental, ativismo, bem como o prprio
termo autismo no podem ser pensados isoladamente, sem que se considere o carter
desigual, contraditrio e poltico do sistema sociocultural ao qual se referem (VELHO, 1985).
Silverman (2008; 2012) nos alerta que as pesquisas em cincias sociais tendem a
classificar o autismo nos termos da biossociabilidade ou da biocidadania, sem antes
determinarem as especificidades das organizaes disponveis em determinado contexto
sociocultural e sem se questionarem se a concepo biolgica do autismo , de fato, a que
caracteriza a identidade do grupo observado. Instigada pela provocao da autora, pretendo
desenvolver esta questo durante a dissertao, vistas as diferenas e semelhanas entre as trs
associaes estudadas e suas concepes em torno do autismo e do agir poltico.
A abordagem metodolgica desta dissertao envolveu entrevistas em profundidade
realizadas com pais e familiares de pessoas com autismo que assumem a condio de
participantes e/ou fundadores de grupos que visam conscientizao da sociedade e luta
por direitos. As entrevistas gravadas foram agendadas de acordo com a possibilidade dos
informantes e um questionrio semiestruturado foi aplicado, visando compreender os
agenciamentos entre autismo, sade e poltica desenvolvidos por trs grupos: APADEM,
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Mundo Azul e Pelo Direito dos Autistas. Ao todo, foram realizadas nove entrevistas,
respeitando as atribuies do Comit de tica em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEP-IMS), em cumprimento Resoluo n 196/96,
do Conselho Nacional de Sade (CNS), que estabelece as diretrizes e normas de pesquisas
envolvendo seres humanos, por meio da Comisso Nacional de tica em Pesquisa (CONEP).
As entrevistas gravadas, cuja durao mdia foi de uma hora e meia, tiveram como
eixo a biografia do entrevistado. A metodologia desta pesquisa tambm envolveu, ao longo de
um ano, observao participante em eventos pblicos de carter mobilizador organizados pelos
grupos de pais: passeatas, audincias pblicas, palestras e celebraes de datas comemorativas,
como o Dia Mundial da Conscientizao do Autismo. Precursor da Antropologia Social,
Bronisaw Malinowski (1976 [1922]) em seus escritos j se referia importncia de deixar de
lado o lpis e o dirio de campo para participar pessoalmente dos fatos. Assim, o registro
fotoetnogrfico foi utilizado de forma complementar aos demais mtodos de pesquisa. Guran
(2000) nos alerta que a fotografia pode ser produzida para descobrir algo em relao ao que se
estuda ou, medida que uma investigao cientfica avana, pode ser utilizada para enunciar
ou explicitar concluses. Ainda que haja articulao entre o discurso cientfico e a linguagem
visual, esta ltima pela sua prpria natureza, (...) obriga a uma percepo do mundo diferente
daquela exigida pelos outros mtodos de pesquisa, dando assim acesso a informaes que
dificilmente poderiam ser obtidos. (idem, p. 157).
Apesar de acompanhar eventos e manifestaes promovidos pelos grupos Mundo Azul
e Pelo Direito dos Autistas na cidade do Rio de Janeiro, a maior parte do trabalho etnogrfico
se concentrou no municpio de Volta Redonda, dada a conquista de servios e legislao
pioneiros, direcionados especificamente para autistas, fruto das demandas da APADEM junto
Prefeitura, conforme ser desenvolvido no captulo 2. A APADEM, fundada em 1999, a
mais antiga do Estado, sendo considerada, hoje, referncia para outros grupos e associaes do
Estado - como o Mundo Azul (Rio de Janeiro), criado em 2011, e a AMAR (Resende), que
completou seu primeiro ano em 2013 no pleito por diretos e na assistncia s famlias de
pessoas com autismo. Somada construo da carreira no campo das demandas e
reivindicaes polticas, em sua sede, a instituio oferece cursos, atividades pedaggicas e
palestras que se dividem em grupo das mes, grupo de famlia, grupo de familiares de
autistas, grupos dos pais. Ministradas por profissionais das reas de educao, direito e
sade, estas ltimas tambm recebem destaque pelo protagonismo dos associados, que podem
compartilhar experincias, sugerir atividades e tirar dvidas. Mensalmente, as palestras foram
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acompanhadas por mim, como forma de apreender que tipo de informao vem sendo
compartilhada e como interagem pais, familiares, autistas e profissionais nestes espaos.
Nesta dissertao, visando contribuir com os esforos de visibilizao da causa, assim
como para a formulao de polticas pblicas, optei por manter os nomes verdadeiros dos
grupos e associaes estudados, assim como a identidade dos meus informantes. Os conceitos
de identidade e de poltica assumidos ao longo deste trabalho, bem como a predileo por
servios e terapias especficas, refletem posies destacadas e vivenciadas pelos
grupos/participantes observados/entrevistados. Sem pretender dar conta das especificidades que
marcam o trabalho de associaes e grupos formados por pais e familiares de autistas pelo
Brasil afora, frente ausncia de trabalhos sobre este tema, entendo, desde j, o movimento
social do autismo como heterogneo, flexvel e multifacetado.
1.1 Desenhando o campo
Nesta seo, descreverei, em trs atos, parte do trabalho etnogrfico desenvolvido para
esta dissertao de mestrado. O rigor metodolgico idealizado pelas cincias sociais, h tempos,
exige uma postura de distanciamento e escritos objetivos. Contudo, em campo, o etngrafo
, inevitavelmente, tomado de assalto pelas emoes ou, pelo anthropological blues, como
denomina DaMatta. O autor (1978, p. 34) explica que tudo fundado na alteridade em
Antropologia: pois s existe antroplogo quando h um nativo transformado em informante. E
s h dados quando h um processo de empatia correndo de lado a lado. Entretanto, a noo
de ato nos subttulos abaixo se refere no apenas a minha atuao como pesquisadora e a de
pais de autistas como informantes qualificados. Trata-se tambm de pensar os cenrios do
trabalho de campo como regies de significao, com regras definidas que circunscrevem as
interaes entre os atores (GOFFMAN, 2005).
A ideia, nesta seo, desenhar as atividades de carter mobilizador formuladas por
sujeitos coletivos, que foram realizadas, durante o perodo que se desenvolveu a pesquisa, em
conjunto ou autonomamente, pela APADEM, pelo Mundo Azul e por pais do grupo Pelo Direito
dos Autistas. Estes eventos indicam tanto a minha entrada no campo, quanto um processo de
construo do agir poltico e da visibilidade das demandas e reivindicaes em nome dos
autistas brasileiros. Embora tenha tido a oportunidade de acompanhar uma diversidade de
atos organizados pelos trs grupos, como abordagem metodolgica focalizarei, a seguir,
aqueles que tiveram dimenso nacional, sendo realizados simultaneamente em outras cidades e
estados do pas.
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1.1.1 Primeiro Ato
Cidade Nova, Prefeitura do Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2012.
O momento elucidava expectativas. quela altura, o Projeto de Lei n 1698/2011 j
havia sido aprovado na Cmara dos Deputados e aguardava apreciao no Senado Federal.
Tratava-se do primeiro projeto formulado por pais e familiares de autistas a ser aplicado em
mbito nacional. Portanto, intituladas pr-direitos dos autistas, manifestaes surgiram em
diversas cidades brasileiras, para dar visibilidade luta e pedir urgncia na aprovao do
projeto, que reconhecia o autista como pessoa com deficincia. Na cidade do Rio de Janeiro, o
local escolhido foi a sede da Prefeitura, no bairro do Centro, logo na sada da estao
metroviria Cidade Nova.
Soube da manifestao poucos dias antes e decidi acompanh-la como estratgia de
aproximao dos militantes do autismo no Rio de Janeiro. Ao sair do metr, avistei quatro
pessoas conversando e segurando dois banners ainda fechados. Imaginei que estavam ali para
a manifestao intitulada pr-direito dos autistas e, ao mesmo tempo, notei a quantidade
nfima de participantes. Antes de me aproximar, era minha inteno observar a interao entre
aquele pequeno grupo, ao todo, formado por seis mes, um pai e uma tia de autista. No havia
autistas presentes.
No entanto, a cor azul da minha blusa chamou a ateno daquele pequeno pblico, que
me identificou como uma manifestante em potencial. Uma das mes caminhou em minha
direo e disse: voc est aqui para a manifestao? Fique com a gente!. Dada a inverso de
papis pela abordagem da mulher, de observadora passei a observada e, em seguida,
participante do evento: carreguei faixas, segurei bales azuis e distribu folhetos explicativos
para os transeuntes. Apresentei-me, desde o incio, como pesquisadora e, resumidamente, falei
sobre meu projeto de mestrado. Na tentativa de legitimar minha presena no local, disse que j
havia conversado com Berenice Piana. Ao contrrio do que imaginei, todos pareceram muito
vontade com a situao e, espontaneamente, iniciamos uma conversa.
Dora Kropotoff, uma mulher alta, sorridente e falante, prontamente pediu meu email e
Facebook, com a inteno de me passar muitas informaes. Foi por meio da internet,
inclusive, que os participantes da mobilizao se conheceram e programaram o evento. Entre
eles, somente dois j mantinham contato pessoalmente. Aps question-los se tinham vnculo
formal com algum grupo ou instituio, os pais presentes negaram, embora Roberta e sua irm
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estivessem usando uma camisa do Grupo Mundo Azul9. Por outro lado, ainda que marcassem
a ausncia de vnculo com um dispositivo associativo mais amplo, so membros, no Facebook,
dos mesmos fruns de discusso sobre autismo, onde trocam informaes entre si.
Dias aps a manifestao, foi criada a pgina Pelos Direitos dos Autistas, por Renato
Franca e Dora Kropotoff, onde, ainda hoje, pais e familiares trocam informaes a respeito de
questes como incluso escolar e tratamentos, dividem notcias de jornais e revistas sobre o
tema, discutem polticas pblicas e pressionam autoridades. A atuao do grupo tem se
concentrado, todavia, na esfera virtual, ainda que muitos dos participantes do grupo
acompanhem os eventos organizados por instituies que promovem atividades mais amplas,
como o Mundo Azul.
Para a manifestao do dia 19 de setembro, foram impressos alguns folhetos intitulados
Voc conhece o autismo?, nos quais se encontravam descritas as principais caractersticas da
deficincia, alm de duas cartas, sendo uma redigida por Renato e outra por Ulisses da Costa
Batista, acerca da importncia da aprovao daquela legislao. A organizao da mobilizao
foi totalmente autnoma, contando com a contribuio financeira de pais que tm condies
de ajudar, segundo uma das mes presentes.
Com bales azuis em mos, o grupo atraiu a ateno das pessoas que passavam pelo
local. Um senhor, de aproximadamente setenta anos, parou-me para perguntar o que era
autismo. Dei uma explicao bastante superficial, tal como uma dificuldade na interao, na
comunicao e socializao. Ainda sem compreender, indagou-me: autismo um problema
de viso? Interessada em saber qual seria a resposta de um dos pais, pedi a Dora que falasse
com o homem. Dora gaguejou inicialmente e tambm resumiu o autismo a um problema de
comunicao e de comportamento. Por outro lado, tentou explicar que h pessoas bastante
comprometidas cognitivamente e outras com altas habilidades. Sem dar maiores detalhes, disse
que estavam ali para pedir a aprovao da lei dos autistas. O senhor saiu satisfeito com a
resposta, pediu um folheto e voltou ao seu posto de trabalho, uma carrocinha de pipoca.
Aps duas horas e meia em frente Prefeitura, os bales de gs foram soltos pelos pais,
formando nuvens azuis. Tive permisso para fotografar o momento e, para as mes que
portavam suas prprias cmeras, tambm atuei como fotgrafa.
9 Alguns participantes confirmaram a participao em encontros e eventos promovidos pelo Mundo Azul, o que
tornou claro, pela primeira vez, para mim, a troca de informao e o dilogo entre os grupos. No captulo 3,
mostrarei como esta primeira evidncia se descortina tambm em tenso entre os grupos.
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Figura 1 - Manifestantes soltam os bales azuis, em frente Prefeitura do Rio de Janeiro. Fonte:
Fernanda Nunes, 2012.
Durante a conversa com um dos pais que organizaram o movimento, percebi que o
argumento central referente ao Projeto de Lei girava em torno do ineditismo de uma legislao
federal especfica para autistas. Segundo Renato, pai de uma menina autista no-verbal, sem
o respaldo da legislao, os acessos a diagnsticos precoces, a tratamentos e educao
ficariam prejudicados. Renato, sua esposa e a filha de trs anos saram de Manaus para o Rio
de Janeiro em busca de tratamento para o autismo recm-diagnosticado. Moradores da Barra da
Tijuca, encontraram apoio especializado (e particular) no trabalho do professor de educao
fsica Rodrigo Brvio, reconhecido por estimular crianas com autismo a partir de tcnicas
corporais. Para a dissertao, no foi possvel entrevistar Renato. Meses aps a mobilizao,
chegamos a agendar uma entrevista na academia da Barra da Tijuca, onde sua filha desenvolvia
a terapia, mas, alegando que a criana estava resfriada, Renato no compareceu. Ademais, seu
retorno definitivo para Manaus, na semana seguinte, inviabilizou o nosso encontro. Atualmente,
Renato segue com as publicaes na fanpage Pelo Direito dos Autistas, onde divide espao
com Dora e outra me de autista que no tive a oportunidade de conhecer.
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Figura 2 - Detalhe da faixa azul carregada por pais de autistas, pedindo a aprovao da "Poltica Nacional
de Proteo dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista". A imagem mostra a bandeira do
Brasil junto ao smbolo universal do autismo, alm da silhueta de duas crianas de mos dadas. Fonte:
Fernanda Nunes, 2012.
Aps a manifestao, mantive contato, principalmente, com Roberta Lima, me de
Yago, 21 anos, autista. Em conversa informal, dias aps a mobilizao pr-direitos dos
autistas, Roberta revelou que se sentiu triste ao comparar, via rede social, a quantidade de
participantes na cidade do Rio de Janeiro com a de outras cidades. Para Roberta, o esvaziamento
da manifestao carioca se deu pela ausncia de adeso de alguma associao representativa
dos autistas, como o Mundo Azul. Destacou que, no caso de Volta Redonda, a mobilizao
contou com a estrutura e a organizao da APADEM. No Rio de Janeiro, porm, apenas pais
que se conheceram pela internet estavam reunidos em frente Prefeitura. Com a expresso
entristecida no rosto, Roberta afirmou que at em Nova Iorque onde a mobilizao tambm
teve adeso de brasileiros- compareceram mais pessoas do que na nossa cidade. Naquele
perodo, circularam no Facebook montagens com fotos da manifestao em diferentes estados
e pases. Nelas, evidenciou-se, ainda mais, o esvaziamento da mobilizao ocorrida no Rio de
Janeiro.
1.1.2 Segundo Ato
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Cristo Redentor, 2 de abril de 2013.
Desde 2011, ocorre a cerimnia de iluminao do Cristo Redentor com a cor azul, no
Dia Mundial de Conscientizao do Autismo, decretado pela Organizao das Naes Unidas
(ONU), em 2008. A data foi criada com a finalidade de conscientizar a sociedade civil e os
Estados membros de que o autismo, segundo a ONU (2007)
(...) uma deficincia que se manifesta durante os trs primeiros anos de vida e resulta
de uma desordem neurolgica que afeta o funcionamento do crebro, em crianas de
vrios pases independente do gnero, raa ou condio socioeconmica, e caracteriza-
se pelo dano na interao social, problemas nas comunicaes verbal e no-verbal, bem
como comportamentos e interesses restritos e repetitivos.
Como aes principais, diante do alto ndice de diagnstico de autismo, o documento
oficial prope que os Estados membros invistam em diagnstico precoce, pesquisas e
intervenes vitais para o crescimento e desenvolvimento do indivduo.
No Brasil, alm do Cristo Redentor, receberam a iluminao azul monumentos como a
Ponte Estaiada em So Paulo e os prdios do Senado Federal e do Ministrio da
Sade em Braslia. Outros eventos, como palestras sobre o tema, caminhadas e distribuio de
material informativo, foram promovidos por diversas associaes brasileiras. Na cidade do Rio
de Janeiro, o Grupo Mundo Azul foi responsvel tanto pela iluminao do Cristo quanto pela
realizao da III Caminhada pela Conscientizao do Autismo, na praia do Leblon, contando
com a presena da apresentadora Xuxa, como forma de alcanar maior visibilidade para a
causa10. Esta caminhada foi considerada a maior das trs, reunindo cerca de duas mil pessoas
que, juntas, gritavam palavras de ordem, como Autistas tm direitos, abaixo ao preconceito.
Ulisses da Costa Batista, pai de Rafael, foi responsvel por conseguir autorizao para
a iluminao do monumento que recebeu, em julho de 2007, o ttulo de Stima Maravilha do
Mundo Moderno. Inspirado pelo movimento americano Autism Speaks, Ulisses justificou a
escolha do Cristo como monumento a ser iluminado de azul:
Eu tinha conseguido iluminar o Cristo de azul a partir do movimento americano Autism Speak,
porque eles viviam iluminando o Empire State [Building] e vrios monumentos de azul. Ento,
uma me me sugeriu: Vamos iluminar alguma coisa de azul, alguma coisa grande, que chame
10 Gohn (1997, p. 238) considera que os Novos Movimentos Sociais (...) usam a mdia e as atividades de protesto para mobilizar a opinio pblica a seu favor. (...) Criar fatos novos que gerem impactos e virem notcias
na mdia uma preocupao permanente da maioria dos movimentos sociais.
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ateno. A, eu pensei: Uma coisa grande que chame ateno s pode ser o Cristo Redentor!
A, eu fui tentar o caminho [com a administrao do Cristo] e consegui manter um processo,
falei que o objetivo era ajudar pessoas que no tinham tratamento. Eles entenderam, no me
cobraram nada e iluminamos o Cristo Redentor de azul. (Entrevista concedida em agosto de
2013)
Figura 3 - Cristo Redentor iluminado na cor azul. Fonte: Fernanda Nunes, 2013.
No dia 2 de abril de 2013, cerca de quinhentas pessoas se encontraram sob os braos do
Cristo Redentor, entre autistas, representantes de associaes, pais, familiares, profissionais da
sade e da educao, alm de figuras polticas. A imprensa tambm esteve presente para cobrir
o evento.
Ao chegar, identifiquei a presena de figuras conhecidas no campo dos movimentos
sociais do autismo no Rio de Janeiro, que interagiam entre si. Havia cadeiras disponveis em
fileiras no local, mas a maioria das pessoas estava em p. Marcado para comear s 18 horas, o
evento promovido pelo Grupo Mundo Azul, do qual fazem parte Ulisses da Costa e Berenice
Piana, com patrocnio do Bradesco e apoio de diversas empresas, teve cerca de duas horas de
durao e constituiu um dos primeiros locais de discurso pblico sobre a conquista da recm
aprovada Lei n 12.764/2012, a chamada lei do autista ou lei Berenice Piana, que ser tema
do segundo captulo desta dissertao.
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Durante a cerimnia, foram entregues medalhas do mrito autista, criadas para
homenagear, segundo um dos fundadores do grupo, homens e mulheres que se destacaram na
luta incansvel em favor da causa do autista. Esta luta se refere, principalmente, ao processo
de construo de uma identidade coletiva e de aprendizagem poltica (SANTOS, 2005;
GOLDMAN, 2007) pelos quais passaram grande parte dos participantes daquele evento,
culminando na sano da legislao que ganhou status de trofu de alguns movimentos de
pais de autistas no Brasil. O xito da legislao especfica para o espectro do autismo,
afirmaram os fundadores do Grupo Mundo Azul na ocasio, foi alcanado por meio da
construo de parcerias. Assim, como forma de agradecimento aos parceiros que estiveram
presentes no percurso at a sano da Lei, a entrega das medalhas foi dirigida a empresrios,
polticos, pessoas da mdia, presidentes de outras instituies de pais de autistas, profissionais
de sade, alm do padre Omar Raposo, reitor do santurio do Cristo Redentor.
Figura 4 A imagem mostra os homenageados como "parceiros" dos autistas se reunindo para uma
fotografia, em frente a um telo, no qual l-se: "Autismo. Voc conhece?" Fonte: Fernanda Nunes, 2013.
Tambm foram nomeadas madrinhas azuis a Presidente da Repblica Dilma Rouseff,
a Ministra da Casa Civil Gleise Hoffmann e a Vereadora do Muncipio do Rio de Janeiro Tnia
Bastos (PRB/RJ). Entre os padrinhos azuis, foram homenageados o Senador Paulo Paim
(PT/RS), presidente da Comisso dos Direitos Humanos do Senado e o Deputado estadual
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Xandrinho (PV/RJ). Estas homenagens e nomeaes simblicas deixam claro que as
parcerias principalmente por meio do apoio de figuras polticas -- indispensvel na
trajetria de luta por direitos e por reconhecimento.
Um telo disposto prximo ao monumento exibiu o trailer do filme ficcional Arthur e
o infinito Um olhar sobre o autismo, que retrata a relao e os dilemas cotidianos de uma
me de criana autista. E, fechando a cerimnia, houve a apresentao da msica Con te partiro
por Saulo Laucas, tenor de trinta anos, que autista e cego.
O dia 2 de abril de 2013 tambm marcou meu primeiro contato com membros da
APADEM e do Mundo Azul, os quais eu j acompanhava virtualmente, por meio de suas
respectivas pginas na internet. Assim como no evento ocorrido em frente Prefeitura, houve
excelente receptividade pesquisa. Claudia Moraes, presidente da APADEM na poca,
ratificou que poderamos nos encontrar, dias depois, em Volta Redonda, para que eu conhecesse
a sede da associao e participasse da 4 Semana do Autismo. Contando com o apoio da
Prefeitura, a conscientizao do autismo no sul fluminense apresentou os seguintes eventos,
baseados no tema Com a lei, Volta Redonda vai alm: iluminao da Prefeitura; atividades
ldicas no Zoolgico Municipal; exibio do filme Temple Grandim e debate com uma
fonoaudiloga; dois dias de palestras e mesa redonda compostas por pais, profissionais e por
Berenice Piana, no auditrio da Universidade Federal Fluminense (UFF/VR); caminhada em
comemorao da aprovao da Lei n 12.764/2012, na Praa Brasil.
1.1.3 Terceiro Ato
Leblon (RJ) e Bairro Santa Ceclia (VR), 1 de setembro de 2013.
Indubitavelmente, as manifestaes pblicas de carter mobilizador constituem uma das
estratgias de visibilidade e de presso poltica privilegiada por grupos de pais no pas. Contudo,
a partir de junho de 2013, observaram-se pleitos e crticas direcionados ao Cabral e ao Paes,
marcando um perodo especfico da histria poltica do pas11. Como parte desta conjuntura
11 Desde de junho de 2013, pouco antes da Copa das Confederaes, manifestaes Brasil afora surgiram contra
o aumento das tarifas do transporte pblico, sob o argumento de que no pelo valor das passagens. por direitos. Marcadas por violentos confrontos entre policiais e manifestantes e pela priso contestvel de participantes, as manifestaes seguintes tiveram diversas reivindicaes em pauta, marcando a configurao
heterognea do pblico e das demandas: contra a corrupo, contra o valor das passagens, contra a falta de investimento em sade e educao, contra o superfaturamento das obras realizadas para a Copa do Mundo, contra a violncia policial, em especial o caso Cad o Amarildo? e contra a aprovao da PEC 37.
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nacional, manifestaes com faixas, camisetas e bales, ganharam contornos de protesto e no
apenas de mobilizao por reivindicaes.
Mais uma vez, a internet agiu como ferramenta privilegiada na circulao de ideias e
como arena de ressignificao de aes. Nas redes sociais e listas de email, organizadores do
evento, que tinha Berenice Piana frente, convocaram profissionais, familiares e amigos de
autistas para participar da Mobilizao Nacional em favor do cumprimento da Lei n12.764,
realizada no dia 1 de setembro de 2013, domingo, s 9 horas. Toda a mobilizao foi dirigida
ao poder pblico, tendo como vis a presso para implantao de Centros de Tratamento
Integral para Deficientes Mentais e Autistas no Rio de Janeiro, sob as diretrizes da Lei Estadual
n 6.169/2012, de autoria do Deputado Estadual Xandrinho (PV/RJ), em conjunto com o Grupo
Mundo Azul.
Figura 5 - Na "porta do Cabral", Berenice Piana, vestida com a blusa tema da mobilizao, conversa com
um policial, que tambm pai de uma criana com autismo. Fonte: Facebook, 2013.
O ato ocorreu na Avenida Vieira Souto, Leblon, bairro com um dos IPTUs mais
elevados do Rio de Janeiro, onde mora o Governador Srgio Cabral. Embora parte da rua
estivesse fechada e cerceada por policiais militares, como medida de segurana, duas mil
pessoas, em mdia, estiveram presentes portando faixas que denunciavam a situao de
excluso em que vivem alguns autistas, assim como cartazes irnicos onde lia-se Desculpe o
transtorno, nossos filhos no tm tratamento, alm de blusas azuis com a frase que remetia ao
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momento de sada da suposta letargia poltica dos cidados brasileiros: O gigante acordou.
Cumpra-se a Lei do Autista.
Nesta ocasio, porm, optei por acompanhar de perto a mobilizao organizada pela
APADEM, em Volta Redonda, que acabava de entrar em uma nova gesto. Em menor
proporo, comparada ao municpio do Rio de Janeiro, a mobilizao ocorreu na Praa Brasil,
onde, segundo os organizadores do evento, daria maior visibilidade causa, por ser uma rea
de grande movimento, mesmo nos fins de semana. Anteriormente escolha do local, houve
votao, via rede social, para saber se os moradores de Volta Redonda estavam dispostos a
participar da manifestao mais ampla (em geral, o Prefeito disponibiliza vans ou nibus para
o traslado dos moradores), na cidade do Rio de Janeiro, ou se preferiam realizar um evento
independente em Volta Redonda. A segunda opo foi a mais votada.
No dia do evento, contudo, apenas cerca de cem pessoas, entre autistas, familiares e
profissionais, se reuniram em torno da praa. Vestidos de azul e munidos com bales, faixas e
cartazes gritaram palavras que evidenciavam a importncia da sano da Lei n 12.764/2012,
como Com a Lei [12.764], Volta Redonda vai alm!, e pediram ateno do poder pblico ao
tema dos autistas adultos, da implantao dos centros de atendimento especficos para autistas
e das residncias assistidas. Ao contrrio do evento maior, os membros da APADEM optaram
por realizar uma manifestao que contasse com a participao de figuras polticas, como dois
vereadores que apoiam a causa. Ambos fizeram novas promessas de atendimento urgncia
na implantao de servios especializados em autismo, como os Centros de Atendimento
Integral para Autistas, mediante a legislao j sancionada, e dividiram o microfone disponvel
com a nova presidente da associao e outros pais e familiares. Pessoas com autismo tambm
puderam expor seus pensamento de forma livre: algumas crianas cantaram e um autista adulto
contou ao pblico sobre seu cotidiano, que envolve a prtica de esportes em uma Organizao
No-Governamental, curso de teatro e trabalho assalariado na Prefeitura de Resende. A durao
da mobilizao foi de, no mximo, duas horas e contou com a participao de pessoas e
instituies de cidades vizinhas, como Resende.
A ideia inicial contava com a presena do Prefeito da cidade, intitulado amigo dos
autistas. No entanto, naquele momento, o Prefeito havia sido afastado por motivo de crime
eleitoral, tendo retornado ao cargo dois dias depois.
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Figura 6 - "Somos parte do mundo. No somos um mundo parte". Detalhe de um cartaz, na mobilizao
de 1 de setembro, em Volta Redonda. Fonte: Facebook, 2013.
1.2 Do hbrido: Sobre pais, mes e ativistas
A receptividade com a qual pais, mes, irmos narraram suas histrias de vida,
apresentaram seu cotidiano e convidaram-me a conhecer suas casas, somada aos convites que
recebi para participar de eventos na condio de amiga e pesquisadora, evidenciaram a
necessidade em visibilizar as situaes de preconceito, desinformao, desassistncias
governamentais e familiares, despreparo nos ambientes mdico e educacional. Estes fatores
facilitaram, neste sentido, a minha entrada em campo, mas tambm chamaram a ateno para a
multiplicidade de questes que envolvem transformar um assunto de interesse privado, afetivo
e familiar em algo pblico e politizado.
Cabe notar que a separao entre os espaos da casa e da rua, conforme denominou
DaMatta (1985), demarca a diversidade de papis sociais encarnada pelos pais-ativistas, de
acordo com cada contexto. Ser pai ou me de autista, nos termos dos meus informantes,
enfrentar situaes de preconceito, isolamento social e dificuldades relacionados ao prprio
cuidado do filho 12 . Contudo, ser pai ou me-ativista implica prestgio e reconhecimento
12 Entre os entrevistados, foi-me relatado que muitas pessoas com autismo tm comorbidades associadas ao
espectro, como distrbio do sono (alguns passam mais de uma noite sem dormir) e epilepsia. Outros podem
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pblico, por outros pais, grupos e polticos. Ao apontar para a necessidade de uma agenda de
pesquisa que contemple questes da vida privada dos familiares de autistas, Ulisses da Costa
Batista criou a categoria pais-problemas, em referncia disruptiva dos laos afetivos e
sociais vivenciada por esta parte da populao:
Fica aqui s a dica para as suas entrevistas e sua pesquisa de campo. Quando um pai e uma me
recebem um filho com autismo, tem aquela vertente que reage, vai para as terapias e
tratamentos; e tem aquela outra vertente dos pais que quer recusar e diminuir o problema. Mas,
dentro desse universo os pais se sentem, de certa forma, tachados como pais-problema. Isso
seria objeto de uma pesquisa muito grande, porque os pais se sentem excludos do prprio
convvio familiar, no sentido de que quando aquele pai chega [nos lugares], [tambm] chega
aquela criana que derruba tudo, que fala alto e que no fica quieto. Ento, para festas de criana
ns no somos mais chamados. Isso notrio. Se voc perguntar aos outros pais: Como a vida
social de vocs? Mudou alguma coisa? Os amigos que vocs tinham antes, como o depois?
Vocs continuam saindo, indo ao teatro? (...) Ento, isso um verdadeiro impacto. como se
uma bomba de nutron, aquela que mata tudo em volta, mas no destri nada, tivesse explodido
nos nossos relacionamentos. Ento, as pessoas j no nos convidam no porque elas no
querem, mas elas no sabem lidar com aquela situao. Algumas no sabem lidar, outras no
querem e outras ainda fazem at avaliaes preconceituosas de ns: no educam direito, no
tratam, no educam.
Segundo meu informante, no so apenas o preconceito ou a falta de informao acerca
do comportamento diferenciado do filho autista que os faz serem rotulados como pais-
problema, mas tambm a adeso destes sujeitos ao movimento social, que passa a ser um
propsito de vida. Assim, o seguinte trecho da entrevista reflete parte de sua dupla experincia
do autismo, como pai do Rafael e militante:
Com quinze anos [de experincia] ouvindo pais, eu arrisco dizer, com quase certeza, que setenta,
oitenta por cento dos pais tm uma perda de vida social tremenda. A vida social vai embora. A
vida conjugal sofre um impacto tambm, tremendo. (...) Na sociedade familiar, avs, tios, so
raros aqueles que se organizam para nos ajudar, quer seja, no s financeiramente, mas se
revezando para levar [a pessoa com autismo] para tratamento. Ento, isso seria um objeto de
questionamento tambm: qual seria o impacto do autismo na vida familiar? (...) Ns acabamos
criando um grupo seleto de pessoas que falam s sobre os mesmos problemas. Isso bom e
ruim. bom porque potencializa o nosso campo de atuao, mas ruim porque ns comeamos
a nos fechar tambm. (...) E eu acabo falando s sobre isso, no trabalho, no ponto de nibus.
apresentar crises desencadeadas por mudana repentina de rotina e/ou comportamentos auto e heteroagressivos
prejudiciais a sua prpria vida e a de pessoas prximas.
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Virou meu tema. Infelizmente, entre aspas, eu respiro isso. (...) E, se ns tivssemos uma
sociedade mais apta para os autistas, talvez eu no fosse viver isso, mas eu precisei viver isso, o
que, para mim, se tornou um estigma: eu sou conhecido como o cara que fala de autismo. Mas
ao mesmo tempo, quando algum tem um problema, eles sabem a quem recorrer.
com a entrada no ativismo que pais e autistas diferem das demais famlias, tornam-se
referncias dinmicas a quem se pode recorrer. Por outro lado, na militncia que
constroem seu crculo de amizade, embora fechado. Como previu Ulisses, percepes
semelhantes s dele apareceram nas demais entrevistas concedidas a mim. No caso de pais de
autistas ainda crianas, deu-se ateno especial questo das festas infantis, para as quais seus
filhos so raramente chamados. O preconceito, a desinformao e o isolamento (vide tabela 1
abaixo), no entanto, so apenas uma parte da situao vivida pela qual preciso lutar contra.
O entendimento do autismo positivado por substantivos e predicados que remetem ao que
Claudia Moraes chama de tomada de posio dentro da sociedade. Em consonncia com a
fala de Ulisses, afirmou:
Na minha concepo, o autismo aquilo que mudou a minha vida. (...) O autismo mudou a minha
vida radicalmente. Eu acho que hoje eu sou uma pessoa completamente diferente. Os amigos
que eu tenho esto nesse meio. Eu me descobri como uma pessoa dinmica nesse meio, uma
pessoa criativa (...). O meu filho mesmo uma pessoa que determinou uma mudana geral em
tudo. O autismo para mim isso: essa tomada de posio dentro da sociedade. Hoje, eu sou
uma pessoa atuante dentro dessa sociedade. As pessoas, s vezes, falam assim para mim: Ah,
eu tenho uma pena de voc. uma cruz [ter um filho autista], no ? Gente, completamente
diferente! Hoje em dia, a minha vida, o que eu fao. Se no tivesse o autismo na minha vida,
eu no seria eu. E eu sinto, assim, que eu consigo ajudar outras pessoas com uma palavra, com
um gesto. (Entrevista concedida em junho de 2013)
Do momento que se e identificado / rotulado negativamente (pessoa chata que s fala
de um assunto, por exemplo) construo da carreira de desviante, que se d pela politizao
e coletivizao de uma experincia