Dissertação sobre o Hilemorfismo em Aristóteles

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  • Universidade de So Paulo

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Filosofia

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Rodrigo Romo de Carvalho

    O Papel do Hilemorfismo nos Princpios do Exame da

    Constituio do Ser Vivo em Aristteles

    So Paulo

    2011

    adminRealce

  • Rodrigo Romo de Carvalho

    O Papel do Hilemorfismo nos Princpios do Exame da

    Constituio do Ser Vivo em Aristteles

    Dissertao apresentada ao programa de

    Ps-Graduao em Filosofia do

    Departamento de Filosofia, da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, para a obteno

    do ttulo de Mestre em Filosofia, sob a

    orientao do Prof. Dr. Maurcio de

    Carvalho Ramos.

    So Paulo

    2011

  • Agradecimentos

    Agradeo ao Prof. Dr. Maurcio de Carvalho Ramos, por ter aceitado orientar

    esta pesquisa e pela confiana depositada na sua realizao, pela constante disposio

    ao dilogo, pelas interessantes questes formuladas ao longo deste trabalho, pela

    dedicao concedida a todos os seus orientandos, e pela inestimvel contribuio

    minha formao, durante o perodo em que cursei as suas disciplinas na ps-graduao,

    e durante todos os anos em que participei, e que venho participando, do Grupo de

    Estudos em Histria e Filosofia das Cincias da Vida.

    Ao Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho, pelos diligentes comentrios e

    aconselhamentos desde os anos da graduao, quando foi meu orientador na pesquisa de

    Iniciao Cientfica, e na circunstncia do exame de qualificao.

    Ao Prof. Dr. Lucas Angioni, pelas timas sugestes oferecidas no exame de

    qualificao, e pelos excelentes trabalhos publicados em forma de tradues e

    comentrios, livros, artigos, os quais forneceram um material precioso, que serviram de

    referncia elaborao desta pesquisa.

    Ao Prof. Dr. Pablo Rubn Mariconda, por ter concedido uma bolsa auxlio-

    trabalho na secretaria da Associao Filosfica Scientiae Studia, durante o perodo em

    que estava sem bolsa de mestrado.

    Ao meu amigo Fabiano Stein Coval, por ter despertado em mim, o interesse pela

    filosofia.

    Ao meu amigo Srgio, pelas longas e descontradas conversas.

    Aos meus amigos e colegas de ps-graduao Hugo, Arthur, Dbora, Caio,

    Guilherme e Kelly.

  • A meus pais, aos quais eu dedico esta dissertao, pela presena constante, e

    minha querida av de Trs-os-Montes.

    Maria Helena, Geni, Vernica, Luciana, e a todos os funcionrios da

    secretaria do Departamento de Filosofia, pela pacincia e ateno dispensada.

    A CAPES, pelo indispensvel apoio financeiro.

  • Jos e Cleide.

  • Resumo

    CARVALHO, R. R. de. O Papel do Hilemorfismo nos Princpios do Exame da

    Constituio do Ser Vivo em Aristteles. 2011. 155 p. Dissertao (Mestrado)

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    A presente pesquisa tem o objetivo de estudar os princpios de investigao dos seres

    vivos tendo como parmetro a concepo hilemrfica dos entes naturais em Aristteles.

    Para tanto, em primeiro lugar, analisaremos o hilemorfismo tal como exposto no Livro

    II da Fsica, a fim de investigarmos a doutrina da matria e forma, no contexto em que

    ela desempenha um papel fundamental para a elaborao de uma concepo que capaz

    de mostrar os modos pelos quais os entes se constituem na natureza. Em segundo lugar,

    examinaremos os princpios de investigao dos seres vivos no Livro I das Partes dos

    Animais, de modo a identificar os fundamentos conceituais nos quais ele se sustenta.

    Assim, veremos em que medida a doutrina da matria e forma desempenha uma funo

    determinante na anlise relativa aos organismos vivos.

    Palavras-chave: hilemorfismo, causalidade natural, necessidade absoluta e hipottica,

    teleologia, organismo, constituio orgnica, composio animal, Aristteles.

  • Abstract

    CARVALHO, R. R. de. The Role of Hilemorphism in the Examination of the Principles

    of the Constitution of the Living Being in Aristotle. 2011. 155 p. Thesis (Master Degree)

    - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    The present research aims to study the principles of investigation of living beings, from

    hylemorphic conception as a parameter of explanation of natural beings in Aristotle. To

    do so, first, well analyze the hylemorphism as set out in Book II of Physics in order to

    investigate the doctrine of matter and form, in which it plays a key role in the

    development of a conception that is able to show the ways in which beings are formed

    in nature. Second, well examine the principles of living beings in Book I of the Part of

    Animals, in order to identify the conceptual foundations on which it holds. So we'll see

    how far the doctrine of matter and form plays a decisive role in the analysis relating to

    living organisms.

    Key-words: hylemorphism, natural causality, absolute and hypothetical necessity,

    teleology, organism, organic constitution, animal composition, Aristotle.

  • Sumrio

    Introduo .................................................................................................................... 09

    Captulo 1: O Hilemorfismo na Concepo de Natureza ......................................... 14

    1.1 Matria e forma: elementos para a definio de natureza .................... 15

    1.2 Matria e forma: princpios da investigao natural ............................. 24

    1.3 O nexo teleolgico entre matria e forma................................................. 34

    1.4 As causas naturais ..................................................................................... 45

    1.5 O acaso e o espontneo .............................................................................. 54

    1.6 Finalidade natural ...................................................................................... 63

    1.7 Necessidade natural ................................................................................... 73

    Captulo 2: Princpios Investigativos da Constituio do Ser Vivo ...................... 83

    2.1 Sobre o modo de proceder anlise do vivente ...................................... 84

    2.2 O primado da causalidade formal-final ................................................... 94

    2.3 Objees aos filsofos naturalistas do sculo V a.C .............................. 103

    2.4 O princpio anmico ................................................................................. 112

    2.5 Outras consideraes sobre a constituio orgnica ............................ 121

    2.6 A necessidade ex hupotheseos no exame dos seres vivos ...................... 130

    Concluso ................................................................................................................... 139

    Referncias Bibliogrficas ........................................................................................ 149

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    adminNotaSobre o hilemorfismo

  • 9

    Introduo

    De um modo geral, o propsito da presente pesquisa consiste em examinar os

    princpios explicativos do vivente em Aristteles, sendo que, para isso, procuraremos

    caracterizar a teoria da matria e forma, tambm conhecida como hilemorfismo, na

    medida em que desempenha um papel fundamental na elaborao de um arcabouo

    conceitual, que serve de alicerce construo de uma concepo de natureza, da qual os

    organismos so os principais representantes. Neste sentido, o hilemorfismo aristotlico

    apresenta-se como um padro de racionalidade cientfica, cuja anlise nos permitir

    delimitar os conceitos-chaves envolvidos na investigao da constituio orgnica. No

    entanto, veremos que, ao estabelecer certos parmetros explanatrios relativos ao

    domnio do vital, Aristteles fornecer, ao mesmo tempo, as bases ontolgicas pelas

    quais se constituem os seres que mais despertaram a sua curiosidade filosfico-

    cientfica, a saber, os seres vivos.

    Em Metafsica, Aristteles declara que os homens, tanto agora como no incio,

    comearam a filosofar devido ao admirar-se1. Desta forma, o espanto admirativo

    (thaumzein) seria o fator responsvel por despertar no homem a curiosidade ou o

    interesse pelo conhecimento, de modo a procurar cultiv-lo por si mesmo, e no

    simplesmente em vista de alguma utilidade, para, com isso, poder afastar-se da

    ignorncia2. No quinto captulo do Livro I das Partes dos Animais, Aristteles d

    mostras desta motivao ao empreendimento cientfico, relativamente aos fenmenos

    ligados aos animais:

    1 Cf. Metafsica, I.2, 982b12-13. As citaes das obras de Aristteles, nas quais no h indicao da

    edio especfica utilizada, nos valemos, principalmente, das edies Gredos, e, tambm, das edies

    Oxford (Clarendon Aristotle Series), da edio Bekker I, alm de outras edies que constam nas

    referncias bibliogrficas. 2 Cf. Metafsica, I.2, 982b19-21.

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  • 10

    At mesmo nos animais cuja observao no agradvel sensao, a natureza que os

    fabricou propicia de igual modo inestimveis prazeres aos que so capazes de discernir

    as causas e que so, por natureza, amantes do saber3. [...] preciso no rejeitar de

    maneira infantil a inspeo dos animais menos valiosos, pois em todos os entes naturais

    h algo admirvel. [...] Assim, preciso adentrar na investigao sobre cada um dos

    animais sem repugnar, pois em todos eles h algo natural e belo. Pois que o no por

    acaso, mas sim em vista de algo se encontra, sobretudo, nas obras da natureza; e o

    acabamento em vista de que algo se encontra constitudo ou gerado ocupa o lugar do

    belo.4

    O estudioso da natureza, motivado por um espanto admirativo que o faz lanar-

    se na busca pelo saber, sobreleva a repugnncia pueril causada pela observao de

    alguns animais que, num primeiro momento, desagradvel sensao, como talvez,

    por exemplo, o gnero dos insetos (ntoma), no qual, para Aristteles, esto includos os

    vermes (lminthes)5, porque, a partir do momento em que aqueles que so, por

    natureza, amantes do saber passam a descobrir as relaes causais envolvidas na

    constituio orgnica, longe de se repugnar, so capazes de experimentar inestimveis

    prazeres, pois h algo de belo (kalon) em todos os animais6.

    Angioni explica que o termo grego kalon est longe de se restringir ao mbito

    da apreciao e/ou valorao esttica, de modo que esse adjetivo comporta tambm o

    sentido de apropriado, acertado, bem ajustado, conveniente para determinado

    3 Literalmente: filsofos (philosphois).

    4 Aristteles, As Partes dos Animais Livro I, trad. Lucas Angioni, Cadernos de Histria e Filosofia da

    Cincia, Srie 3, v. 9, n. especial, 1999, 6457 e ss. 5 Cf. Histria dos Animais, V.19.

    6 A este respeito Lennox diz que para os sentidos, o sangue , talvez, um desagradvel objeto de estudo;

    mas ao estudar o seu papel causal, em cognio, [...] como o alimento final do animal [...], eleva-o a algo

    admirvel e belo, estudo esse que deve proporcionar aos filosoficamente inclinados grandes prazeres (Cf. Lennox, J. G., in Aristotle: On the Parts of Animals, Books I-IV, Oxford: Clarendon Press, 2001, p.

    174).

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  • 11

    fim 7. Na composio orgnica, os elementos (terra, ar, gua e fogo) estabelecem certas

    misturas, formando as partes homogneas como, por exemplo, carne, ossos e tendes, as

    quais, por sua vez, so dispostas de modo a formarem as partes no homogneas, como,

    por exemplo, mos, corao, pulmes. Em Meteorolgicos IV, Aristteles diz que a

    definio de um ente natural est sempre mais clara (delon) nos resultados finais e, em

    geral, referente s coisas que so como que instrumentos, e em vistas a algo8. Com

    relao s partes homogneas no muito claro o em vista de qu (to hou heneka), e

    ainda menos claro no que diz respeito aos elementos. No entanto, o fim (to telos)

    manifesto nas operaes-prprias (erga) exercidas pelas partes no homogneas, como,

    por exemplo, a atividade de ver, desempenhada pelo olho9. Assim, uma vez que, como

    veremos ao longo desta dissertao, os movimentos casuais, provenientes da matria

    elementar, so, nos seres vivos, apropriados, ajustados, conformados, para determinado

    fim, ou fins, isto , arranjados de forma a compor uma rede complexa de partes no

    homogneas, mediante as homogneas, para capacitar o organismo realizao de um

    conjunto articulado de atividades vitais, o estudo referente esfera do orgnico ser,

    para o filsofo, uma fonte inesgotvel de beleza esttico-cognitiva.

    O texto est dividido em dois captulos. No primeiro, O Hilemorfismo na

    Concepo de Natureza, procuraremos analisar o hilemorfismo como um padro de

    racionalidade cientfica, pela qual Aristteles formula uma concepo geral de natureza

    no livro II da Fsica, onde os seres vivos desempenham o papel de protagonistas. No

    segundo captulo, Princpios Investigativos da Constituio do Ser Vivo, pretendemos

    7 Cf. Angoni, L., in Aristteles: As Partes dos Animais Livro I, Cadernos de Histria e Filosofia da

    Cincia, Srie 3, v. 9, n. especial, 1999, p.117. Balme, em seu comentrio sobre o Livro I das Partes dos

    Animais de Aristteles, declara que kalou pode significar tanto beleza, quanto bom. Dado que os animais so compostos para determinados fins, e o fim frequentemente dito bom (agathn ou kaln), fcil afirmar que isto [o em vista de fins] ocupa a posio do belo ou bom (Cf. Balme, D. M., in Aristotle - De Partibus Animalium I and De Geratione Animalium I. Oxford: Clarendon Press, 2001,

    pp.123-4). 8 Aristteles, Meteorolgica, IV.12, 389b29-30.

    9 Cf. Meteorolgicos, IV.12.

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  • 12

    examinar, de um modo direto, os princpios da constituio do ser vivo expostos no

    primeiro captulo do livro I das Partes dos Animais, sem deixar, no entanto, de recorrer

    a exemplos extrados, principalmente, dos Livros II-IV das Partes dos Animais, e do

    tratado Gerao dos Animais. O hilemorfismo apresenta-se como base conceitual para a

    formulao dos princpios da constituio do ser vivo, de modo que procuraremos,

    ento, estabelecer uma ponte entre o livro II da Fsica e o primeiro captulo do livro I

    das Partes dos Animais. A seguir, apresentaremos um resumo esquemtico dos

    objetivos particulares a serem alcanados nas subdivises dos dois captulos.

    Na seo 1.1, Matria e forma: elementos para a definio de natureza,

    analisaremos as noes de matria e forma como princpios naturais pelos quais

    Aristteles formula uma definio de natureza. Na seo 1.2, Matria e forma:

    princpios da investigao natural, pretendemos examinar a teoria da matria e forma

    no contexto onde se desenvolve um modelo de investigao natural. Na seo 1.3, O

    nexo teleolgico entre matria e forma, procuraremos verificar em que medida a

    matria e a forma relacionam-se com as explicaes da constituio dos entes naturais.

    Na seo 1.4, As causas naturais, investigaremos a teoria das quatro causas, enquanto

    condio do conhecimento cientfico. Na seo 1.5, O acaso e o espontneo, trataremos

    da noo de acaso e de espontneo em Aristteles, uma vez que elas nos permitem

    elaborar um contraste em relao aos processos naturais. Na seo 1.6, Finalidade

    natural, examinaremos a teoria hilemrfica envolvida na causalidade teleolgica da

    natureza. Na seo 1.7, Necessidade natural, pretendemos ver de que modo aquilo que

    necessrio se comporta no domnio dos seres naturais.

    Na seo 2.1, Sobre o modo de proceder anlise do vivente, procuraremos

    examinar os critrios - fundamentados no hilemorfismo como um padro de

    racionalidade cientfica - pelos quais se procede adequadamente anlise do vivente.

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  • 13

    Na seo 2.2, O primado da causalidade formal-final, abordaremos a questo de que,

    nas explicaes relativas constituio dos seres vivos, a causalidade material-eficiente,

    de um modo geral, subordina-se causalidade formal-final. Na seo 2.3, Objees aos

    filsofos naturalistas do sculo V a.C., examinaremos a crtica de Aristteles s

    concepes dos physilogoi acerca dos organismos vivos. Na seo 2.4, O princpio

    anmico, trataremos da psych como o princpio por meio do qual os seres vivos vm a

    ser caracterizados enquanto tais. Na seo 2.5, Outras consideraes sobre a

    constituio orgnica, pretendemos desenvolver alguns tpicos no que diz respeito aos

    processos de constituio do vivente: (i) os aspectos dimensionais na caracterizao de

    certas estruturas orgnicas especficas; (ii) os princpios gerativos do animal, enquanto

    fator teleolgico determinante constituio do organismo; (iii) a razo pela qual ocorre

    a gerao orgnica. Na seo 2.6, A necessidade ex hupotheseos no exame dos seres

    vivos, procuraremos verificar em que medida a forma do ser vivo administra o arranjo

    das partes pelas quais o animal vem a se constituir.

    Enfim, cumpre registrar que o termo orgnico (organikon), em Aristteles,

    reporta-se ao sentido de instrumental. As partes composicionais dos seres vivos servem

    de instrumentos ao todo orgnico, e esse, por sua vez, serve de instrumento ao princpio

    anmico, isto , a psych. Desta forma, os seres vivos so aqueles entes naturais, cujas

    constituies substanciais vm a ser desenvolvidas e organizadas sob a interveno

    causal da psych, em vista de serem capazes de realizar certas atividades vital-

    instrumentais. Tais seres compreendem tanto aqueles denominados por Aristteles de

    phyt (plantas), quanto os zia (animais).

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  • 14

    Captulo 1

    O Hilemorfismo na Concepo de Natureza

    Este captulo tem o objetivo de examinar o hilemorfismo como um tipo de

    inteligibilidade pelo qual se orienta a investigao natural em Aristteles. Com este

    exame, temos o intuito de articular os princpios gerais da cincia natural aos princpios

    concernentes constituio do vivente, os quais sero discutidos no segundo captulo da

    dissertao. Assim, veremos em que medida o hilemorfismo contribui para a

    compreenso dos entes que so, de acordo com Aristteles, o paradigma de substncias

    (ousiai) naturais, isto , os seres vivos.

    Os seres vivos so considerados o paradigma de substncias naturais no

    somente porque, na maioria das vezes, apresentam-se como exemplos de entidade,

    sendo o objeto de estudo de cerca de 30% dos tratados que perfazem o corpus, mas,

    sobretudo, pela razo de exibirem uma consistente unidade interna10

    . Consideramos que

    na medida em que exibem uma coeso intrinsecamente slida, ou seja, uma forte

    relao de interdependncia entre as suas partes, que os organismos vivos so tidos

    como, mais propriamente, substncias11

    . Por outro lado, os quatro elementos tambm

    contam entre as substncias naturais, visto que so caracterizados por determinadas

    propriedades essenciais12

    . Porm, eles se apresentam como substncias em menor grau,

    10

    Cohen, S. M., Aristotle on Nature and Incomplete Substance, NY: Cambridge University Press, 1996,

    pp. 128-135. 11

    Cf. Metafsica, VII.7, 103216-20. 12

    O fogo se caracteriza por ser quente e seco; o ar, por ser quente e mido; a gua, por ser fria e mida; e

    a terra, por ser fria e seca (cf. Gerao e Corrupo, II. 3, 330b3-5).

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    adminNotaOs quatro elemento contam nas substancias naturais pois sao caracterizados por determinadas propriedades essenciais

  • 15

    j que, por si mesmos, constituem apenas agregados13

    , servindo, freqentemente, de

    material constituinte s entidades providas de certa unidade e complexidade interna.

    Sendo o paradigma de substncias naturais, os seres vivos correspondem aos

    seres que melhor se ajustam ao esquema hilemrfico. Como veremos nas sees

    subsequentes, a teoria da matria e forma, no contexto onde Aristteles pretende

    estabelecer uma concepo geral acerca dos entes naturais, nos conduzir, ao mesmo

    tempo, a um conjunto de questes fundamentais pertinentes ao domnio do orgnico.

    1.1 Matria e forma: elementos para a definio de natureza.

    No Livro V da Metafsica, Aristteles expe os vrios sentidos do termo

    natureza (physis)14. Num desses sentidos, natureza significa aquilo a partir do qual

    algo vem a ser, isto , a matria15

    (hyle). Em Fsica II (1939-28), o filsofo apresenta o

    caso daqueles que sustentam a idia de natureza apenas neste sentido. Por exemplo, a

    natureza de uma cama seria a matria pela qual ela constituda, a saber, madeira, tal

    como o bronze seria a natureza da esttua. O argumento paradigmtico em defesa desta

    concepo aquele atribudo a Antifonte16

    . De acordo com Aristteles, Antifonte

    argumenta que se algum plantasse uma cama, de tal modo que da madeira em

    putrefao sobreviesse um broto, o que resultaria no seria uma cama, mas madeira

    (Fsica, II.1, 19313). Por conseguinte, pode-se concluir que a matria afigurar-se-ia

    13

    Cf. Metafsica, VII.16, 1040b8-10. Como Sheldon M. Cohen diz: os elementos terrestres no so substncias, ou ao menos no os mais puros exemplos de substncias, na medida em que tm a unidade de

    amontoados (Cf. Cohen, S. M., Aristotle on Nature and Incomplete Substance, NY: Cambridge University Press, 1996, p. 131). 14

    No pretendemos, aqui, tratar de todos os sentidos apresentados no livro V da Metafsica, mas aqueles

    que so investigados no primeiro captulo do livro II da Fsica. De qualquer modo, como o prprio

    Aristteles menciona no referido texto da Metafsica, o sentido de natureza enquanto princpio interno de

    movimento, o qual ser analisado mais adiante, o sentido primordial (cf. Metafsica, V.4, 101513),

    envolvendo os demais. 15

    Cf. Metafsica, V.4, 1014b26. 16

    Autor vinculado ao movimento sofista, Antifonte viveu em Atenas entre os anos 480-411 a.C.

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    adminNotaA natureza, num dos sentidos, significa aquilo a partir do qual algo vem a ser, isto , a matria.

    Por ex: a madeira (matria) a verdadeira natureza da cama.

  • 16

    como a verdadeira natureza da cama, pois o que permanece, sendo, portanto, algo

    essencial, enquanto que o arranjo pela tcnica apresentar-se-ia de modo acidental, pelo

    fato de comportar um carter transitrio.

    Seguindo o mesmo raciocnio, no caso dos seres vivos a verdadeira natureza dos

    animais estaria ligada, ento, aos materiais a partir dos quais eles se constituem, por

    exemplo, os ossos, e no a conformao do organismo como um todo. Todavia, o

    prprio osso, matria do animal, tambm apresenta uma conformao estrutural

    constituda por algo mais fundamental, a saber, o elemento terra17

    . De um modo

    bastante sinttico, Aristteles concebe a composio dos animais da seguinte maneira: o

    primeiro nvel de composio, que serve de base para os demais, consiste no devido

    arranjo proporcional dos quatro elementos18

    ; o segundo nvel de composio formado

    pelas partes homogneas como, por exemplo, carnes e ossos; e, por ltimo, as partes

    no homogneas como, por exemplo, rosto e mos, os quais constituem o organismo

    como um todo19

    . Assim, neste caso, o elemento terra, junto com outros elementos

    fundamentais que integram a composio orgnica deveria ser considerado a natureza

    autntica do animal de preferncia s partes homogneas e s partes no homogneas,

    visto que servem de base material pela qual os vrios nveis composicionais e o

    organismo como um todo vm a ser constitudos. Segundo esta viso, difundida entre os

    filsofos naturalistas (physilogoi) do sculo V a.C., a substncia (ousia) dos seres

    naturais corresponderia ao constituinte primeiro de cada coisa e, por isto:

    17

    Partes dos Animais, III.2, 663b29-30. 18

    Para Aristteles, os constituintes materiais ltimos que compe todos os seres naturais do mundo

    sublunar, sujeitos a gerao e a corrupo, so os elementos terra, ar, gua e fogo. Por sua vez, os astros

    celestes, que ocupam o mundo supralunar, esto submetidos a um movimento eterno e circular, sendo

    constitudos pelo elemento ter. 19

    Cf. Partes dos Animais, II.1, 64612-25; Gerao dos Animais, I.1, 7159-12..

    adminRealce

    adminNotaDo mesmo modo, no caso dos animais a verdadeira natureza estaria ligada aos materiais a partir dos quais eles se constituem, por exemplo, os ossos, e no a conformao (acidental) do organismo como um todo.

    No limite, o osso prprio osso, matria do animal, tambm constitudo de algo mais fundamental, o elemento terra

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    adminNotaA verdadeira natureza das coisas so os materiais que as provem; j o arranjo tcnico meramente acidental.

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  • 17

    Alguns afirmam que a natureza dos entes o fogo, outros, que terra, outros,

    que ar, outros, que gua, outros, que alguns desses elementos e outros,

    enfim, todos eles.20

    Apesar das divergncias quanto natureza e ao nmero de matrias

    elementares21

    (uma, duas, muitas ou infinitas), em todas estas referncias h a

    concordncia, entre os physilogoi, em considerar a physis como o componente basilar

    por meio do qual advm todos os seres naturais. A razo disto reside na considerao de

    que a matria o elemento que subsiste ao movimento natural e em relao a qual tudo

    o mais no passa de estados composicionais passageiros. Sendo assim, as caractersticas

    adquiridas pelos seres vivos seriam explicadas to somente pela ao de coisas

    externas22

    que, atravs de um processo absolutamente necessrio, disporia a matria de

    modo a constituir o organismo. No entanto, Aristteles certamente no admitiria tal

    posio, pois, segundo ele, a natureza no deve ser entendida somente no significado de

    princpio material originrio do qual feito ou deriva algum objeto natural, mas,

    sobretudo, no significado de forma23

    (morph/eidos).

    A analogia entre tcnica e natureza de acordo com o argumento de Antifonte

    sugere a idia de que a forma de determinado objeto apresenta-se de um modo no

    essencial, isto , acidental. O arranjo engendrado pelas disposies das partes

    constituintes de um animal (zia) seria, portanto, o trao de uma realidade transitria.

    Entretanto, Aristteles argumenta24

    que os objetos da tcnica, assim como os entes

    naturais, so caracterizados enquanto tais, na medida em que efetivamente apresentam

    20

    Aristteles, Fsica I-II, trad. Lucas Angioni, Editora Unicamp, Campinas, 2009, 19321-23. 21

    Por exemplo, para Herclito a matria elementar seria o fogo; para Anaxmenes, o ar; para Tales, a

    gua; para Empdocles, os quatro elementos: terra, ar, gua e fogo (posio adotada por Aristteles) etc.

    (Cf. Pelegrin, P., in Aristote: Physique Livre II, ditions Nathan, Paris, 1993, p. 27, nota: 15). 22

    Conforme comentrio de Charlton em Aristotle: Physics Books I and II, Oxford, 2001, p. 90. Traduo e notas de W. Charlton. 23

    Metafsica, V.4, 101511. 24

    Cf. Fsica, II.1, 19331-193b3.

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    adminNotaCada filsofo toma um matria como elementar;

    de todo modo todos consideram a physis como o componente basilar por meio do qual advem todos os seres.

    A razo disso que a matria o elemento que subsiste ao movimento natural, tudo passa menos as matrias elementares

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    adminNotaNo entanto, Aristteles no concorda com os pr-socrticos, pois a natureza deve ser entendida no apenas pelo seu material originrio, mas tambm, sobretudo, no significado de forma (morph/eidos)

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    adminNotaA forma no essencial, mas sim "acidental"

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  • 18

    determinao formal, e no a partir dos constituintes materiais considerados em si

    mesmos, que s em potncia (dynamei) - mas no em efetividade (entelecheiai,

    energeiai25

    ) - so aquilo por meio dos quais os seres vm a se constituir26

    . Por exemplo,

    quando algo cama apenas em potncia, a saber, madeira matria pela qual a cama

    constituda -, no possuindo ainda a forma da cama, ou seja, a estrutura requerida para o

    exerccio de determinada atividade ou funo (ergon), no dizemos que algo conforme

    a tcnica e que h tcnica. Do mesmo modo, carne e osso constituintes materiais do

    animal no so conforme a natureza e nem natureza27 antes de assumir a forma, isto ,

    o todo orgnico estruturado para a realizao das funes vitais28

    .

    Para que haja a gerao de um novo animal preciso que a forma especfica,

    contida no smen do macho, o sperma, atualize a matria fornecida pela fmea, o

    katamenia (sangue menstrual), no ato da concepo29

    . A fmea por si mesma seria

    incapaz de gerar o embrio30

    , mas, tal como no processo de coagulao do leite, o

    smen do macho exerceria uma funo semelhante quela do suco da figueira31

    ou o

    coalho ao atualizar a potencialidade que o leite comparado, aqui, matria que a

    25

    De um modo geral, os termos entelecheia e energeia so utilizados por Aristteles quase como

    sinnimos. No entanto, de acordo com W. D. Ross (Aristotles Metaphysics, Oxford: Clarendom Press, 1924, p. 245), h certas diferenas. Enquanto que energeia significaria atividade ou atualizao,

    entelecheia significaria atualidade ou perfeio resultante da atualizao ou efetivao de determinado

    objeto. 26

    Cf. Fsica, II.1, 193b8-9. 27

    A distino entre ser natureza e conforme a natureza pode ser explicada, por exemplo, da seguinte

    maneira: o movimento do fogo no natureza por que no se trata de uma substncia. No entanto, na

    medida em que conatural ao fogo, este movimento conforme a natureza (kata physin) ou por natureza

    (physei). 28

    Vrias passagens dos textos aristotlicos indicam que a forma no consiste na mera configurao

    sensvel ou estrutura dos objetos, mas, alm disso, e principalmente, nas disposies funcionais que eles

    comportam. Em Metafsica (1035b14-18), Aristteles diz: Uma vez que a alma dos animais (pois isso a essncia do animado) a essncia segundo a definio, a forma e o que era ser para um corpo de tal e

    tal qualidade (isto ao menos certo: cada parte se for definida acertadamente, no ser definida sem a

    funo, a qual no se dar sem sensao). 29

    Cf. Gerao dos Animais, I.20, 7299. 30

    Cf. Gerao dos Animais, I.21, 73028. 31

    Na Histria dos Animais, Aristteles assim descreve o procedimento de coagulao do leite por meio

    do sumo da figueira: Espreme-se e recolhe-se [o sumo da figueira] num pano de l. Depois de se passar por gua, coloca-se a l num pouco de leite; este, misturado com o outro leite, faz-lhe coalhar (Cf. Histria dos Animais, III.20, 522b2-5).

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    adminNotaPara aristteles, os entes viventes no devem ser considerados apenas pelas matrias que lhes provm, pois devem ser considerados nao medida em que apresentam determinaoes formais - a matria apenas "potncia"(dynamei) mas no efetividade (energeia)

    adminRealce

    adminNotaPara que haja gerao do novo necessrio que uma forma especfica atualize a matria no "ato" de feitura.

  • 19

    fmea proporciona no processo de gerao orgnica - tem de coagular-se32

    . O sperma

    seria responsvel por produzir a coagulao do katamenia no ato da fecundao, tal

    como o sumo da figueira ou o coalho promove a coagulao do leite. Deste modo, a

    forma contida no smen do macho desencadeia o processo de desenvolvimento do

    embrio, ao mesmo tempo em que promove o devido arranjo das partes materiais

    requeridas funo ou ao conjunto de funes que caracteriza o vivente. No entanto, a

    forma responsvel pela efetivao das propriedades materiais adequadas ao ser vivo,

    que permaneciam em potncia no katamenia, anteriormente fecundao. As devidas

    propriedades materiais, dispostas de tal e tal maneira, so, ento, condies necessrias

    ao efetivo exerccio - ou a capacidade para a realizao das funes que caracterizam

    os organismos vivos, servindo de suporte s atividades vitais.

    De acordo com Aristteles, a matria por si s incapaz de explicar as

    disposies dos elementos materiais e, as propriedades que possibilitam a ocorrncia

    das atividades e processos orgnicos. Para explicar as disposies e propriedades

    orgnicas, preciso lanar mo da noo de forma. Com relao ao argumento de

    Antifonte, se natureza algo essencial que subsiste ao movimento, a despeito das

    modificaes acidentais, ento a forma natureza, pois um homem provm de um

    homem 33. A forma de um homem idntica em todos os indivduos da espcie

    humana - a causa da forma engendrada na prole. Assim, pelo fato de haver reproduo

    entre indivduos de uma mesma espcie, a forma admite o estatuto daquilo que persiste

    mudana. No entanto, a concluso a que se chega pelo exemplo utilizado no

    argumento de Antifonte que a forma apresenta-se como algo passageiro, sendo a

    matria o que permanece. O que perdura a matria da cama, isto , a madeira, e no a

    32

    Cf. Gerao dos Animais, I.20, 72911-14. 33

    Cf. Fsica, II.1, 193b8.

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    adminNotaA forma responsvel pela efetivao das propriedades materiais adequadas ao ser vivo, que permaneceriam em potncia.

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    adminNotaCom efeito, as propriedades materiais, dispostas de tal e tal maneira, so condies necessrias ao efetivo exercicio - ou capacidade para a realziao - das funes que caracterizam os organismos vivos

    adminRealce

    adminNotaCom efeito, para Aristteles a matria por s s incapaz de explicar as disposies dos elementos materiais e as propriedades que possibilitam a ocorrncia das atividades e processos orgnicos. Para explicar as disposies e propriedades orgnicas, preciso lanar mo da noo de forma.

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    adminNotaA forma passageira, a matria o que permanece

  • 20

    forma da cama. Porm, o fato de a forma da cama no subsistir, por si mesma, ao

    processo do devir indica que a cama, em si mesma, no natureza, mas sim tcnica.

    Aqui, trata-se de uma diferena fundamental entre tcnica e natureza. Aquilo que

    sobrevm cama a madeira. Ora, por ser natureza, a madeira enquanto tal o que

    permanece; j a cama, pelo fato de ser um artefato, no. Se devemos usar corretamente a

    analogia entre tcnica e natureza, preciso, antes, considerar a cama em sua efetividade.

    Assim como no caracterizamos um ser natural levando-se em conta apenas o seu

    aspecto material, da mesma forma ocorre com os produtos da tcnica. Por exemplo, no

    definimos homem como sendo um conjunto de ossos e carne, assim como no

    definimos cama como sendo um conjunto de madeira. Ossos e carne so, na melhor das

    hipteses, ditos homem apenas potencialmente, tanto quanto madeira dito cama.

    Para definirmos tanto o ente natural como o produto da tcnica, devemos levar em

    conta, alm das devidas propriedades materiais, sobretudo a forma, que explica por que

    necessrio haver tais propriedades dispostas de tal modo a fim de que haja

    determinada atividade ou funo.

    Alm do mais, Aristteles recorre ao termo physis, entendido no seu sentido

    primitivo, o de nascimento, crescimento, para corroborar a tese de que a forma, ao

    lado da matria, deve ser considerada como um princpio imanente responsvel por

    mudanas que contribuem para a constituio do ente natural. Este sentido de physis

    implica na idia de um dinamismo em funo de seu prprio fim. Para exemplificar,

    Aristteles diz que, no caso da cura, o processo envolvido tem como ponto de partida o

    conhecimento do mdico, isto , a medicina (iatrike), e como escopo a produo da

    sade (hygieia)34

    . Pelo fato de aqui tratar-se de um processo tcnico, o fim para o qual

    se dirige a cura (a produo da sade) no se destina a produzir o princpio pelo qual ela

    34

    Fsica, II.1, 193b13-15.

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    adminNotaDistino entre tcnica e natureza =

    o que sobrevm da cama a madeira (natureza da cama) j a cama, ele mesma (artefato), provisria (tcnica providria)

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    adminNotaOssos e carna s so homens em potncia

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  • 21

    se d, a saber, o conhecimento mdico. Sendo x o conhecimento medicinal, y o

    procedimento a partir do qual advm cura e z a produo da sade, y, em funo de x,

    tem como fim z, e no a replicao de x. No entanto, a natureza enquanto processo, ao

    contrrio da tcnica, tem como fim a replicao do princpio por meio do qual ela se

    origina. O processo de desenvolvimento de um animal, por exemplo, tem como

    princpio (i) a forma do progenitor, que corresponde espcie da qual ele pertence,

    como meio (ii) a forma reproduzida no animal, pela qual ele vem a se desenvolver e,

    como fim (iii) a prpria forma que se realiza como acabamento (estrutura apta a realizar

    funes)Assim, para Aristteles, os entes naturais so determinados pelo movimento de

    replicao ou manuteno da forma, tendo como suporte constitutivo a matria, de

    modo a haver uma tendncia natural das coisas de se preservarem no seu estado atual - o

    que permite a natureza apresenta-se sob certa ordem, proporo e regularidade35

    . Esse

    movimento, evolvendo a matria e a forma, fornecer os elementos para a definio de

    natureza. Trata-se de um movimento que possui em si mesmo o princpio de sua prpria

    produo. No incio do Livro II da Fsica, Aristteles declara:

    Natureza certo princpio ou causa pela qual aquilo em que primeiramente se encontra

    se move ou repousa em si mesmo e no por concomitncia.36

    Esta formulao apresenta-se como o principal significado de natureza no Livro

    V da Metafsica37

    . Como vimos, natureza num sentido significa (i) matria, noutro (ii)

    forma, e, de acordo com o que acabamos de constatar, (iii) aquilo que possui um

    35

    Em consonncia com isto, John Cooper afirma: Ele [Aristteles] pensa que o conhecimento, ainda que bastante superficial acerca dos fatos bsicos sobre a vida animal e vegetal, deve convencer qualquer um

    de que nosso mundo um sistema auto-sustentvel, com uma tendncia a preservar fundamentalmente a

    mesma distribuio de terra, ar e gua, e o mesmo equilbrio das populaes animais e vegetais de acordo

    com seu prprio tempo. (John M. Cooper, Hypothetical necessity and natural teleology, in Philosophical issues in Aristotles biology, Cambridge University Press, Cambridge, 2000, p. 247). 36

    Aristteles, Fsica I-II, trad. Lucas Angioni, Editora Unicamp, Campinas, 2009, 192b20-23. 37

    Metafsica, V.4, 101513-15.

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    adminNotaNatureza enquanto movimento que envolve matria e forma

    adminRealce

  • 22

    princpio interno de movimento e repouso. A anlise deste terceiro sentido de natureza

    permitir verificar - no decorrer dos captulos que perfazem o Livro II da Fsica - que

    no somente os dois primeiros sentidos esto includos, mas tambm, estreitamente

    relacionados entre si como itens subjacentes ao seu significado geral. A forma,

    assumida como telos, responsvel pela organizao dos movimentos e pelo

    acabamento de cada ser natural, envolvendo o conjunto de suas atividades prprias, e o

    conjunto das propriedades materiais necessrias para tanto.

    Por outro lado, a matria serve como suporte constituinte, cujos movimentos

    prprios so, na compleio orgnica, redirecionados pela forma de modo a configurar a

    disposio dos arranjos estruturais, que possibilitam a efetivao das atividades

    caractersticas de cada organismo. Deste modo, a partir de uma inter-relao causal

    entre matria e forma ocorre o movimento (kinsis) ou mudana (metabol) natural,

    que, segundo Aristteles, desdobra-se em quatro tipos ou classes: (i) alterao

    (alloisis) - movimento qualitativo; (ii) crescimento (auxsis) e definhamento (phthisis)

    movimento quantitativo; (iii) locomoo (phora) movimento de translao; (iv)

    gerao (genesis) e corrupo (phthora) movimento substancial 38.

    No caso dos resultados provenientes de procedimentos tcnicos39

    , os artefatos

    no possuem um princpio interno de movimento envolvendo a sua prpria produo,

    nem um impulso intrnseco para a efetivao das atividades que lhes so

    correspondentes. Na medida em que so resultados da tcnica, os artefatos dependem de

    um princpio externo de mudana, tanto para serem produzidos, quanto para o exerccio

    das atividades ou funes que lhes compete e em vista das quais eles vieram a ser

    38

    No Livro II da Fsica (192b14-5), Aristteles no menciona o movimento de gerao e corrupo. No

    entanto, no Livro III (20111-5), este quarto tipo de movimento mencionado junto dos outros trs. Em

    Metafsica, Aristteles diz que os trs primeiros acompanham este ltimo, de modo a serem

    caracterizados como tipos de mudanas acidentais ou no essenciais (Cf. 104234-b3). 39

    importante ressaltar que, para Aristteles, a produo tcnica no envolve apenas objetos fabricados,

    mas tambm outras coisas provenientes de procedimentos tcnicos ou artsticos tais como a sade por

    meio do conhecimento medicinal, a composio de melodias atravs da instruo ou habilidade do

    msico etc. Ver, por exemplo: Fsica, I.1, 182b23-27.

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    adminNotaOs artefatos no possuem um princpio interno de movimento envolvendo sua prpria produo

  • 23

    produzidos. Por exemplo, a produo de um machado depende do movimento externo

    imprimido na matria (ferro, madeira) proveniente do artfice que o fabrica. Para ser

    produzidos, a madeira e o ferro devem ser dispostos de tal e tal modo a fim de se

    adequar forma do machado presente na mente do artfice. O usurio quem determina

    a necessidade de que haja tais e tais materiais, com tais e tais propriedades adequadas,

    em vista da utilidade para a qual o machado foi originalmente concebido, dependendo

    dele para ser usado.

    Consideremos o caso do olho humano como um instrumento do organismo. De

    um modo distinto do machado40

    , este instrumento orgnico no produzido por um

    princpio externo de movimento, pois ele gerado a partir de um desenvolvimento

    intrnseco ao organismo do qual faz parte e em funo do qual ele o que o olho (a

    parte) exige o corpo humano (o todo) para ser. A sua re-produo ocorre por meio de

    mecanismos internos espcie a qual ele pertence. Ademais, o prprio organismo

    quem determina a necessidade de que os componentes materiais do olho estejam

    dispostos sob determinado arranjo, apresentem tais e tais propriedades, para o exerccio

    de sua funo caracterstica, a saber, a viso, no dependendo de nada alm de si mesmo

    para ser usado, na medida em que h, entre o olho e o organismo como um todo, uma

    relao de interdependncia.

    Mas, sob certo aspecto, os produtos da tcnica apresentam um princpio interno

    de movimento e repouso. Neste caso, tal princpio deve ser considerado sob a

    designao por concomitncia (kata symbebekos) em contraste com a designao por

    si mesmo (kathhauto). Na medida em que os artefatos so constitudos por entes

    naturais (ex. a cama constituda por madeira, a esttua por bronze etc.), pode-se dizer

    que eles possuem um impulso inato para o movimento. No entanto, este impulso no

    40

    Para o machado e o olho referidos como exemplos, ver: De Anima, II.1, 412b10-4132.

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    adminNotaExemplo: produo do machado (instrumento tcnico) -> depende do movimento externo imprimido na matria proveniente do artfice que o fabrica

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    adminNotaO exemplo do olho (instrumento orgnico)

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  • 24

    pertence ao artefato enquanto tal, mas, por ser composto de entes naturais, lhe sucede

    concomitantemente possu-lo41

    . Considerado em si mesmo, o artefato apresenta como

    vimos mais acima - um princpio externo e no interno de movimento ou mudana.

    Por outro lado, os entes naturais possuem por si mesmos, e no por

    concomitncia, um impulso inato para a mudana. Este impulso, de acordo com

    argumentos sustentados ao longo do Livro II da Fsica, caracteriza-se por uma

    articulao causal entre matria e forma, na qual os componentes materiais so

    inerentemente subordinados determinao formal no processo envolvido. Em outros

    termos, as propriedades e movimentos essenciais da matria so inerentemente

    reordenados pela forma no processo constitutivo dos seres naturais.

    1.2 Matria e forma: princpios da investigao natural.

    Tendo definido a natureza como aquilo que possui em si mesmo um impulso

    inato para a mudana, e tendo reconhecido dois princpios subjacentes a essa definio,

    a saber, a matria e a forma, Aristteles procurar delimitar com maior preciso a

    relao entre eles, pois por meio deles que se pautar a investigao natural. Com isto

    em vista, Aristteles examina a diferena entre o mtodo apropriado ao matemtico e o

    mtodo adequado ao estudioso da natureza. O exame comparativo entre as duas

    disciplinas tem como objetivo demarcar a distino entre os princpios prprios a cada

    cincia, inserindo os princpios relativos aos entes naturais sob a perspectiva de um

    padro de racionalidade, que ficou conhecido pela expresso hilemorfismo (de hyle

    (matria) + morphe (forma)).

    41

    Fsica, II.1, 192b16-20.

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    adminNotaHilemorfismo = padro de racionalidade aristotlico

  • 25

    A matemtica estuda pontos, comprimentos, superfcies e slidos, sendo que os

    corpos naturais possuem tais propriedades42

    . No entanto, seria um equvoco considerar

    os corpos naturais como efetivamente constitudo de pontos, comprimentos etc. Estes

    elementos encontram-se presentes em potncia no corpo natural. Em efetividade, o

    corpo natural apresenta quantidade contnua e, por isso, constitudo, em potncia, por

    pontos, comprimentos etc., pois a quantidade contnua em geral in abstracto composta

    por tais entidades, que, apenas no pensamento do gemetra, so concebidas como sendo

    partes efetivamente separadas em si mesmas. Desta forma, as propriedades estudadas na

    matemtica, de certo modo, so compartilhadas pelos corpos naturais e, nesta exata

    medida, seria possvel dizer que a matemtica estuda os corpos naturais.

    Contudo, no interessa ao matemtico estudar a figura (schma) dos corpos, nem

    a esfericidade (sphairoeids) dos astros, enquanto limites da entidade fsica ou concreta,

    mas enquanto tomados em si mesmos, na medida em que eles so subtrados dos corpos

    naturais. De fato, a figura ou a esfericidade so atributos dos corpos naturais.

    Entretanto, o gemetra no trata destes atributos enquanto naturais, pois eles so

    separados, pelo pensamento, da matria e do movimento43

    . Ora, a matria e o

    movimento so caractersticas que fazem um copo natural ser o que , e, portanto,

    devem ser levados em conta pela cincia natural, ao contrrio do que faz o estudo

    matemtico44

    .

    A noo de movimento em Aristteles no se restringe locomoo, mas

    envolve uma relao de tipos ou classes de movimentos (alterao, crescimento e

    definhamento, locomoo, gerao e corrupo), exprime a suscetibilidade intrnseca do

    ser natural mudana. A matria um dos princpios pelos quais ocorre esta mudana

    nos corpos naturais, servindo como subjacente (hypokeimenon) quantidade que

    42

    Cf. Fsica, II.1, 193b23-25. 43

    Cf. Fsica, II.2, 193b28-34. 44

    Cf. As Partes dos Animais, I.1, 641b10-1.

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    adminNotaOs elemento se apresentam como "potncia" dos corpos naturais

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    adminNotaDiferente da matemtica, o estudo dos corpos naturais exige a ateno matria ao movimento como caracteristicas dos corpos naturais

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  • 26

    naturalmente encontra-se neles. No entanto, o que a matemtica faz obter o seu objeto

    prprio de estudo ao considerar a quantidade isoladamente em si mesma, no enquanto

    atributo natural, submetendo-a a anlise atravs da abstrao. Com isto, o gemetra leva

    em conta apenas forma - sob seu aspecto quantitativo - abstrada de um subjacente

    material, e que, por isso, no tem uma existncia realmente independente. Deste modo,

    os entes matemticos definem-se sem a matria, excluindo, portanto, a caracterstica de

    serem suscetveis mudana45

    . J os seres naturais, ao contrrio, no devem excluir de

    suas definies o movimento46

    , isto , a suscetibilidade intrnseca mudana. Segundo

    Aristteles, o investigador da natureza deve mencionar a forma, mas tambm a matria,

    visto que a partir da relao entre matria e forma que se explica a ocorrncia do

    movimento natural: as propriedades e disposies materiais sofrem transmutaes - que

    envolvem os quatro tipos de movimentos mencionados - em funo da determinao

    formal.

    H, tambm, o caso das disciplinas que, embora tenham por objeto de estudo

    algo pertencente ao domnio dos entes naturais, enquanto naturais47

    , utilizam-se de

    princpios matemticos em suas explicaes e demonstraes. Conforme Aristteles,

    tais disciplinas so a ptica, a harmnica e a astronomia48

    . Consideremos, a seguir, a

    ptica como exemplo.

    Esta disciplina delimita certas propriedades que os corpos naturais apresentam -

    a saber, a capacidade de refletir a luz - como objeto de estudo. Ao explicar estas

    propriedades, a ptica recorre a princpios matemticos. Para explicar por que um corpo

    natural, na medida em que apresenta quantidade contnua, tem a capacidade de refletir a

    luz de tal e tal modo, a disciplina em questo vale-se de concluses provadas pela

    45

    Cf. Metafsica, VI.1, 10267-15. 46

    Cf. Fsica, II.2, 1943-5. 47

    Distintamente do caso da matemtica que estuda a quantidade natural, mas no enquanto natural. 48

    Cf. Fsica, II.2, 1948.

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    adminNotaO geometra leva em conta apenas a forma- deste modo, os entes matemticos se definem sem apelar matria, excluindo, portanto, a caracterstica de serem sucetveis mudana.

    J os seres naturais so sucetveis ao movimento e, por isso, mudana

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    adminNotaNo esquema hilemrfico de Aristteles o investigador da natureza deve mencionar a forma mas tambm a matria, pois a partir da relaao entre matria e forma que se explica a ocorrncia do movimento natural

  • 27

    geometria. Desta forma, como diz Aristteles, a ptica estuda a linha matemtica, no

    enquanto linha matemtica, mas enquanto linha natural49. Ou seja, a ptica no

    considera a linha matemtica, enquanto linha matemtica, mas ela utiliza-se de

    princpios geomtricos, aplicando-os ao estudo das linhas de corpos naturais, enquanto

    naturais, com o intuito de compreender o modo pelo qual ocorre a reflexo da luz.

    Em relao s disciplinas como a ptica, a astronomia e a harmnica, seria

    incorreto denomin-las como sendo ou, por um lado, matemticas, ou, por outro,

    naturais. Trata-se de disciplinas hbridas, que, ao mesmo tempo, lanam mo de

    princpios matemticos em suas explicaes e demonstraes e, tomam por objeto de

    estudo propriedades pertencentes ao domnio dos objetos que constituem a natureza.

    Estas consideraes envolvem diversas questes50

    , mas, para os nossos propsitos, basta

    mencionar que o mtodo prprio cincia natural no admite princpios relativos a

    outra cincia como acontece no caso das disciplinas hbridas -, pois o que est em

    jogo, aqui, no a investigao de certos aspectos da realidade natural, mas o que

    essencialmente define os seres naturais enquanto tais51

    .

    Acompanhando o movimento argumentativo do segundo captulo do livro II da

    Fsica, aps examinar a diferena entre os mtodos de anlise apropriados matemtica

    e cincia natural, e em que medida as cincias hbridas procedem na investigao de

    propriedades concernentes aos corpos naturais, Aristteles passa, ento, a tratar

    diretamente do que j fora mais ou menos delineado: o mtodo adequado ou o padro de

    racionalidade tpico cincia da natureza.

    49

    Cf. Fsica, II.2, 1949-12. 50

    Para um exame detalhado a respeito destas questes, ver, por exemplo: Porchat, O., Cincia e Dialtica

    em Aristteles, Ed. Unesp, So Paulo, 2001, pp. 211-225. 51

    Como cincia distinta, os princpios da cincia natural no provm de outra cincia. Em Segundos

    Analticos (8739-87b2), Aristteles diz: Uma cincia distinta de outra se seus princpios no provm dos mesmos princpios, ou se os princpios de uma no provm dos princpios da outra.

  • 28

    Visto que so duas as naturezas: matria e forma, isto , dois princpios

    imanentes de mudana, compete ao estudioso da natureza estudar ambas52

    . De acordo

    com Aristteles, por um lado, os platnicos estavam enganados ao defender a tese de

    que era necessrio estudar apenas a forma53

    e, por outro, a proposta materialista dos

    antigos fsicos incorria em erro ao sustentar que a matria por si s seria suficiente para

    explicar a essncia e os atributos dos seres naturais54

    . A cincia natural no deve

    considerar, unilateralmente, apenas a forma, ou apenas a matria, ao definir e explicar o

    comportamento dos seres naturais, pois esses seres no so sem matria, mas tambm

    no se reduzem a ela. Em uma passagem do De Anima, Aristteles afirma:

    Por isso concebem acertadamente aqueles a quem parece que a alma nem sem corpo,

    nem tampouco um corpo: pois ela no um corpo, mas sim algo de um corpo, e por

    isso ela ocorre no corpo.55

    A alma (psych), sendo a forma do organismo vivo, no sem o corpo (sma),

    ou seja, sem a matria56

    . Contudo, ela no se reduz ao corpo em si. Portanto, torna-se

    52

    Cf. Fsica, II.2, 19412-13. 53

    Cf. Fsica, II.2, 193b35-194a1. O erro dos platnicos consiste em considerar a forma ontologicamente

    separada da matria e, no somente por abstrao, como fazem os matemticos. A este respeito, Pierre

    Pellegrin diz: Embora a separao do matemtico aristotlico uma operao do esprito (abstrao), que separa mentalmente a esfera geomtrica dos objetos fsicos esfricos, a separao dos platnicos

    ontolgica: eles situam as Idias separadas dos objetos, e no apenas para as realidades matemticas

    (Esfera em si), mas para os objetos fsicos (Animal em si) (Cf. Pellegrin, P., in Aristote: Physique Livre II, ditions Nathan, Paris, 1993, p. 29, nota 6. 54

    As Partes dos Animais, I.1, 640b4-15. Aristteles admite que, em certa medida, Empdocles e

    Demcrito se aproximaram da noo de forma, ainda que em pequena parte (Fsica, II.2, 19420-21). De

    acordo com Pierre Pellegrin, Demcrito se aproximou da noo de forma porque ele no somente definiu as coisas por sua matria atmica, mas tambm pela figura, a ordem e a posio dos tomos, e Empdocles porque ele caracteriza cada coisa por certa proporo entre os elementos (Fogo, Ar, gua, Terra) que as constituem (Cf. Pellegrin, P., in Aristote: Physique Livre II, ditions Nathan, Paris, 1993, p. 30, nota 10). 55

    Aristteles, De anima, II.2, 41419-22. 56

    Cumpre notar que o termo matria no possui uma referncia fixa. Como Aristteles diz: a matria se encontra entre os relativos: para uma forma diversa, a matria diversa (194b8-9). Relativamente ao ser vivo, a matria corresponde ao conjunto articulado das partes no homogneas (rosto, mo, corao

    etc.), o qual perfaz o corpo do organismo como um todo. Mas, por exemplo, a mo, considerada em si

    mesma, algo determinado, composto de matria e forma. Do mesmo modo, as partes homogneas

    adminRealce

    adminNotaMP!!!!!!

    visto que so duas as naturezas, matria e forma, isto , dois principios imanente de mudana, compete ao estudioso da natureza estudar ambas. Para Aristteles, por um lado, os platnico estavam enganados por defendes a tese de que era necessrio estudas apenas as formas, e, por outro, os antigos fsicos materialistas incorriam no erro de sustentar que a matria por si s seria suficiente para explicar a essncia e os atributos dos seres naturais. J para Aristteles, a cincia natural no deve estudar apenas a forma ou apenas a matria para definir e explicar o comprtamento dos seres naturais, pois esses seres nao sao nem matria mas tambm no se reduzem a ela.

    adminRealce

  • 29

    imprescindvel ao estudioso da natureza recorrer tanto matria quanto forma na

    investigao dos entes naturais.

    Sendo assim, resta saber em que medida o cientista natural deve proceder na

    obteno do conhecimento de um e outro princpio. A este respeito, Aristteles

    questionaria se (i) compete a uma mesma cincia, ou (ii) a cincias respectivamente

    diversas, conhecer cada uma das duas naturezas, isto , a matria e a forma57

    . No

    segundo caso, trata-se de saber se, no mbito da cincia natural, haveria uma subdiviso

    na qual dois ramos particulares de conhecimento, ou procedimentos investigativos,

    seriam responsveis um pelo estudo da matria e outro pelo estudo da forma. Como

    veremos, a resposta a esta questo conduzir a uma caracterizao da especificidade do

    hilemorfismo aristotlico.

    O problema levantado por Aristteles envolve dificuldades concernentes tarefa

    de saber se, num nico e mesmo processo de discernimento, a matria e a forma

    conjuntamente serviriam como elementos a partir dos quais se obtm definies sobre

    os seres naturais. Ademais, em consonncia com esta problemtica, surge como ponto a

    ser discutido se a forma, por um lado, poderia fornecer explicaes a respeito das

    propriedades materiais e se a matria, por outro, poderia fornecer explicaes a respeito

    das propriedades formais. Em contrapartida, haveria a perspectiva que, embora

    admitisse tanto a matria quanto a forma no exame do ente natural, sustentaria uma

    disjuno referente ao conhecimento de um e outro princpio, no mbito de um mesmo

    procedimento investigativo. Nesta perspectiva, o conhecimento dos aspectos formais de

    um ente natural seria logicamente independente do conhecimento de seus aspectos

    materiais. De uma parte, poder-se-ia pensar que, em relao a certo ente natural, as suas

    (carne, ossos etc.), sendo matria relativamente s partes no homogneas, em si mesmas, apresentam

    propriedades formais e uma matria respectiva: certa composio dos quatro elementos. 57

    Cf. Fsica, II.2, 19415-18; Angioni L., Aristteles: Fsica I-II (prefcio, introduo, traduo e

    comentrios). Editora Unicamp, Campinas, 2009, pp. 233-6.

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  • 30

    propriedades poderiam ser explicadas seja, num caso, pela forma, seja, noutro, pela

    matria, sem, no entanto, haver uma articulao recproca entre ambas. A explicao

    pela forma e a explicao pela matria corresponderiam, uma e outra, a distintos

    aspectos a partir dos quais poderia ser considerado um mesmo ente natural. De outra

    parte, poder-se-ia pensar que, em relao a um determinado tipo de ente natural, a forma

    seria responsvel por certas propriedades, enquanto que a matria por outras, de modo a

    no haver uma convergncia entre matria e forma na explicao correspondente a um

    mesmo fato58

    .

    Segundo Angioni59

    , este ltimo ponto de vista parece ser aquele adotado por

    Empdocles e Demcrito que, apesar de terem alcanado a forma e aquilo que o ser

    (to ti n einai), em pequena parte ou de um modo insatisfatrio60

    , conceberam as

    explicaes em termos materiais independentes das explicaes em termos formais, de

    modo que cada uma dessas explicaes resolveria problemas distintos e desarticulados

    entre si. H, nesta conjetura, uma relao por concomitncia (kata symbebekos) e no

    por si mesma (kathhauto) entre matria - considerada, aqui, o princpio explanatrio

    basilar - e forma. A matria relaciona-se forma ao mesmo tempo em que, na

    constituio de um ente natural, os componentes so espontaneamente concatenados sob

    determinado modo, no envolvendo, nesse processo, um conjunto de causas inter-

    relacionadas 61

    .

    58

    Sobre estas consideraes, ver: Angioni, O Hilemorfismo como Modelo de Explicao Cientfica na Filosofia da Natureza em Aristteles, Belo Horizonte, Kriterion, vol. XLI, n. 102, 2000, p. 145. 59

    Cf. Angioni, L., O Hilemorfismo como Modelo de Explicao Cientfica na Filosofia da Natureza em Aristteles, Belo Horizonte, Kriterion, vol. XLI, n. 102, 2000, p. 146. 60

    Cf. Fsica, II.2, 19420-21; Metafsica, I.10, 99314-15. 61

    Como Sarah Waterlow observou: Empdocles e os outros physikoi so retratados por Aristteles como sustentando que organismos e suas partes orgnicas complexas surgiram por meio de sries de processos

    causais independentes, envolvendo distintos fatores materiais que se comportam e sofrem transformaes

    pela necessidade de suas prprias naturezas [...], e que simplesmente acontecem ocorrer juntos, uma vez

    que um ocorre porque um dos outros tambm, ou atravs de uma mesma causa. (Cf. Waterlow, S., Nature, Change, and Agency in Aristotles Physics, Clarendon Press, Oxford, 1982, p. 76).

    adminRealce

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  • 31

    Aristteles ir recusar este tipo de explicao, e, de um modo geral, a

    perspectiva segundo a qual a cincia da natureza admitiria uma bifurcao relativa aos

    conhecimentos formal e material de determinado ente natural. Em oposio a esta

    formulao, ele adotar a idia de uma cooperao entre forma e matria nas

    explicaes referentes a um mesmo procedimento de anlise. Nas prximas linhas,

    procuraremos examinar o seu argumento.

    Tomando como pressuposto o fato de que a arte imita a natureza, de modo que o

    conhecimento tcnico estaria submetido a padres de investigao similares ao

    conhecimento natural, e reconhecendo que o conhecimento da forma pela tcnica

    envolve o conhecimento de certas propriedades da matria, Aristteles conclui que deve

    haver, na cincia da natureza, uma relao de implicao entre ambas as naturezas, a

    forma e a matria:

    Visto que a tcnica imita a natureza, e que compete a uma mesma cincia conhecer a

    forma e a matria, at certo ponto62

    (por exemplo: compete ao mdico conhecer a sade

    e tambm a bile e a fleuma, das quais depende a sade; semelhantemente, compete ao

    construtor conhecer a forma da casa e saber que a matria so tijolos e madeiras; do

    mesmo modo nos demais casos), tambm cincia natural compete tomar

    conhecimento de ambas as naturezas.63

    De acordo com os exemplos utilizados por Aristteles em outras obras, (i) cabe

    ao mdico conhecer o fim de sua interveno tcnica, isto , a sade, a qual se apresenta

    como forma e aquilo que o ser 64. A partir do conhecimento da sade, o mdico

    passa, ento, a perscrutar as condies necessrias produo da sade, atinando acerca

    62

    At certo ponto indica que no preciso que o artfice conhea todas as propriedades materiais envolvidas no processo tcnico, mas aquelas que, sendo produzidas, so relevantes para a efetividade da

    forma (cf. Fsica, II.2, 19436-194b6). 63

    Aristteles, Fsica I-II, trad. Lucas Angioni, Editora Unicamp, Campinas, 2009, 19421-27. 64

    Cf. Metafsica, VII.7, 1032b1-2.

    adminRealce

    adminNotaMP!!!

    Contra o primado da forma, contra o primado da matria, Aristteles aciona o esquema hilemrfico

    adminRealce

  • 32

    das propriedades presentes na matria capazes de gerar o bom estado do organismo65

    .

    Do mesmo modo, (ii) o construtor conhece a forma da casa o que inclui o

    conhecimento de certas disposies funcionais (por exemplo: a disposio funcional de

    abrigar) e, por meio deste conhecimento, ele capaz de determinar os materiais

    adequados e as propriedades requisitadas realizao efetiva de uma casa66

    . Assim,

    nota-se que compete a um mesmo conhecimento tcnico conhecer conjuntamente a

    forma e a matria.

    A articulao entre forma e matria conduzida, no conhecimento tcnico,

    atravs de um nexo teleolgico. A forma apresenta-se como fim para o qual ocorre a

    produo tcnica, de modo que, por meio de sua concepo, possvel remontar s

    condies necessrias a sua realizao, ou seja, s propriedades materiais requeridas

    efetivao de disposies funcionais que definem aquilo que produzido67

    . Seguindo

    um modelo de anlise investigativa semelhante ao conhecimento tcnico, o

    conhecimento natural tambm se pautar por um nexo teleolgico envolvendo matria e

    forma.

    A forma do animal consiste na disposio ao exerccio de certas funes ou

    atividades vitais, como, por exemplo, a nutrio, a respirao, o crescimento, a

    sensao, a locomoo etc. Para que haja a efetivao destas funes ou atividades,

    exigida a existncia de partes materiais tais como carne, ossos, pulmes, rins etc. Deste

    modo, a forma do animal deve dispor de tais e tais materiais, providos de certas

    propriedades, sem as quais no se realizariam as funes vitais que caracterizam e

    definem o animal.

    Ento, segundo o hilemorfismo aristotlico, a forma serve de princpio para

    deduzir concluses a respeito das propriedades materiais de um ser natural. Mas e o

    65

    Cf. As Partes dos Animais, I.1, 6404-6. 66

    Cf. As Partes dos Animais, I.1, 639b16-9. 67

    Cf. Fsica II.9, 200b5-8; As Partes dos Animais, I.1, 6429-11.

    adminRealce

    adminRealce

    adminRealce

    adminNotaA forma se apresenta como fim para o qual ocorre a produo tcnica, de modo que, por meio de sua concepo, possvel remontar s condies necessrias a sua realizao, ou seja, s propriedades materiais requeridas efetivao de disposies funcionais que definem aquilo que produzido.

    adminRealce

    adminNotaMP!!!

    Com efeito, segundo o hilemorfismo aristotlico, a forma serve de princpio para deduzir concluses a respeito das propriedades materiais de um ser natural

    O contrrio, isto , a matria como princpio de deduo de concluses a respeito das propriedades formais, ocorre mas Aristteles concebe a forma como responsvel pelas propriedades da matria e no o inverso. Entretanto s possvel reduzir as propruedades das formas a partir das propriedades da matria se a matria selecionada for "apropriada"

    adminRealce

  • 33

    inverso? Isto , a matria poderia servir de princpio para deduzir concluses a respeito

    de propriedades formais? De certo modo sim. Embora Aristteles conceba a forma

    como responsvel pelas propriedades da matria e no o inverso68

    , possvel deduzir

    propriedades da forma a partir de propriedades da matria se for assumida a matria

    apropriada69

    , por exemplo, o corpo organizado, que apresenta propriedades cujas

    existncias so devidas estritamente forma do animal. No entanto, tal deduo no

    seria propriamente explanatria, na medida em que no se trata de demonstrao

    envolvendo questes relativas ao porqu de algo, mas sim questes relativas ao que (ou

    seja, que algo ou existe de fato), as quais remontam s causas a partir do efeito70

    . O

    caso do serrote, recorrente nos textos de Aristteles, nos serve como um exemplo para

    compreendermos este tipo de demonstrao: (i) aquilo que possui dentes de metal,

    dispostos de determinado modo, capaz de serrar; (ii) o serrote possui dentes de metal,

    dispostos sob determinado modo; logo (iii) o serrote capaz de serrar71

    . No que diz

    respeito aos organismos, este tipo de demonstrao poderia ser algo como se segue: (i)

    os animais que possuem dentes caninos, sendo pontiagudos e rijos, so capazes de

    perfurar e rasgar os alimentos (carne); (ii) os carnvoros possuem caninos; logo (iii) os

    carnvoros so capazes de perfurar e rasgar os alimentos.

    68

    Cf. Fsica, II.9, 20033-34; As Partes dos Animais, I.1, 64129-31. 69

    Cf. Metafsica, VIII.4, 104415-19. 70

    Em Segundos Analticos, Aristteles declara que h duas maneiras de investigar, cada qual

    correspondendo a busca de saber o que e o porqu de algo: Quando investigamos se isto ou aquilo (considerando-o como uma multiplicidade), por exemplo, se o sol se eclipsa ou no, investigamos o que.

    Eis um sinal disso: tendo descoberto que se eclipsa, detemo-nos; e se desde o incio sabemos que se

    eclipsa, no investigamos se se eclipsa. Por outro lado, quando conhecemos o que, investigamos o por que, por exemplo, sabendo que se eclipse, ou que a Terra se move, investigamos o por que se eclipsa ou por que se move. 71

    Cf. Angioni L., Aristteles: Fsica I-II (prefcio, introduo, traduo e comentrios). Editora

    Unicamp, Campinas, 2009, p. 239.

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  • 34

    1.3 O nexo teleolgico entre matria e forma.

    Como vimos, segundo o hilemorfismo como modelo de investigao cientfica,

    o conhecimento natural deve ser conduzido por um nexo teleolgico envolvendo

    matria e forma. Procuremos, ento, analisar com mais detalhes tal nexo na investigao

    dos entes naturais.

    A natureza, afirma Aristteles, acabamento (telos) e aquilo em vista de que

    (hou heneka) (Fsica, II.2, 19428). Com tal afirmao, Aristteles pretende dizer que

    h, na natureza, um princpio que norteia o processo de constituio do ente natural,

    sendo responsvel pela efetividade deste processo. Este princpio capaz de determinar

    as propriedades que a matria necessariamente deve adquirir para que, efetivamente, se

    realizem as concatenaes adequadas aos processos constitutivos dos diversos seres

    naturais. Nas tcnicas ocorre algo semelhante.

    Em vista de produzir, por exemplo, uma casa, o artfice elabora uma matria

    nova, a saber, tijolos. Ao manusear e preparar o barro para a fabricao de tijolos, o

    artfice apresenta-se como princpio norteador a partir do qual a matria da casa adquire

    as propriedades necessrias sua realizao. Se a matria da casa j est previamente

    presente na natureza, a saber, pedras ou madeiras, o princpio norteador - que neste caso

    coincide com a ao orientada do artfice - age de modo a dispor pedras e madeiras na

    devida ordem, a fim de que haja o acabamento para o qual elas foram dispostas de tais e

    tais modos. Nos dois casos, seja na elaborao de uma matria nova, seja em dispor

    certos materiais previamente dados, a operao do artfice preside a fabricao dos

    componentes materiais apropriados, introduzindo-lhes propriedades sem as quais no

    haveria casa. , portanto, em funo de um princpio atuante desde o incio do processo

    tcnico que a constituio de um artefato levada a cabo efetivamente.

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    adminNotaExemplo hilemrfico da feitura de uma casa com tijolos

  • 35

    Embora haja relaes de implicao lgica e explanatria entre as concepes

    teleolgicas relativas aos processos tcnicos e naturais, Aristteles, no entanto, assinala

    uma diferena fundamental entre ambas:

    Naquilo que conforme a tcnica, somos ns que fazemos a matria ser em vista da

    funo, mas, nos entes naturais, a matria j se encontra disponvel em vista da

    funo.72

    Na tcnica somos ns o princpio que preside a constituio dos artefatos,

    fazendo com que a matria torne-se adequada s funes que definem o produto do qual

    ela componente. Quaisquer que sejam os propsitos tcnicos, somos ns, e no a

    natureza, que alteramos as propriedades materiais em vista de adequ-las ao

    desempenho de determinadas funes prprias aos artefatos. A tcnica intervm sobre

    uma matria que se encontra disponvel na natureza de modo a introduzir propriedades

    que ela seria incapaz de adquirir por si prpria73

    . Por outro lado, na natureza, a matria,

    por si mesma, sem a necessidade da interveno externa da tcnica, adquire as

    propriedades adequadas ao exerccio de certa funo. Deste modo, a relao entre

    matria e forma, no domnio natural, est, por assim dizer, mais ntima do que a relao

    entre matria e forma no domnio da tcnica. Neste sentido, a matria apropriada, isto ,

    a matria que apresenta as propriedades relevantes que a tornam apta ao exerccio da

    funo, por meio da qual se define o ente natural, no separvel de sua forma.

    No entanto, como Ackrill observou74

    , dizer que a matria no separvel de sua

    forma parece contradizer a concepo de Aristteles, formulada no Livro I da Fsica,

    72

    Aristteles, Fsica I-II, trad. Lucas Angioni, Editora Unicamp, Campinas, 2009, 194b7-8. 73

    A tcnica perfaz algumas coisas que a natureza incapaz de elaborar (19915-16). Cf. Angioni, L. Aristteles: Fsica I-II (prefcio, introduo, traduo e comentrios). Editora Unicamp, Campinas, 2009,

    p. 247-49. 74

    Cf. Ackrill, J. L. Aristotles Definition of psuche, in Barnes, Schofield, Sorabji (Eds.), Articles on Aristotle. Londres: Duckworth, vol 4, 1979, pp. 65-75.

    adminRealce

    adminNotaNa tcnica somos ns o princpio que preside a constituio dos artefatos, fazendo com que a matria se torne adequada s funes que definem o produto do qual ela componente. Quaisquer que sejam os propsitos tcnicos, somos ns, e no a natureza, que alteramos as propriedades materiais em vista de adequ-las ao desempenho de determinadas funes prprias aos artefatos.

    adminRealce

    adminNotaMP!!!!

    No esquema hilemrfico, a tcnica intervm sobre uma matria que se encontra disponvels na natureza de modo a introduzir propriedades que ela seria incapaz pos si prpria.

    adminRealce

  • 36

    sobre a matria como natureza subjacente e princpio do devir. A matria, sendo aquilo

    que subjaz ao processo do vir a ser, apresenta-se como item independente das

    caractersticas contrrias: forma e privao. Por exemplo, o bronze, considerado em si

    mesmo, uma substncia composta de matria e forma, mas em relao ao processo de

    gerao de uma esttua identificada como a matria que subjaz forma (esttua) e, no

    processo de corrupo, a matria que subjaz privao (da forma). O bronze -

    considerado como natureza subjacente e princpio do devir revela-se como algo

    independente da forma e da privao, persistindo ao movimento pelos quais as coisas se

    transformam. Deste modo, a relao da matria com a forma e com a privao revela ser

    uma relao de natureza contingente.

    Entretanto, ao afirmar que a matria dos entes naturais j se encontra disponvel

    em vista da funo, Aristteles parece se comprometer com a idia de que a relao

    entre matria e forma, longe de apresentar um carter contingente, manifesta uma

    condio de necessidade e de interdependncia. Sendo assim, Ackrill alega o seguinte:

    O problema com a aplicao aristotlica da distino matria-forma a coisas vivas que

    o corpo, que aqui a matria, est ele mesmo j necessariamente vivo. Pois o corpo

    esta cabea, estes braos, etc. (ou esta carne, estes ossos etc.), mas no havia uma

    cabea particular antes do seu nascimento e no haver uma cabea, estritamente

    falando, aps a morte. Em resumo [...], o material neste caso no capaz de existir,

    exceto como o material de um animal, como matria assim in-formada. O corpo, que

    deveria ser capaz de ser tomado separadamente como o material constituinte do

    animal, depende, para sua prpria identidade, de ser vivo, in-formado por uma psuch.75

    75

    Ackrill, J. L. Aristotles Definition of psuche, in Barnes, Schofield, Sorabji (Eds.), Articles on Aristotle. Londres: Duckworth, vol 4, 1979, pp. 69-70.

    adminRealce

  • 37

    De acordo com Ackrill, no tocante aos seres vivos, a matria no poderia

    apresentar o papel de natureza subjacente, relacionando-se de um modo independente

    com relao forma, tal como sustentado no Livro I da Fsica, pois no haveria um

    componente material (ex. cabea, mos, carne, ossos) que persistisse ao processo de

    constituio orgnica, sendo capaz de exercer a funo que o define. Porm, conforme

    sugerido no Livro II, a matria, neste caso, desempenharia uma relao de

    interdependncia com relao forma. Assim, em algumas passagens, Aristteles

    parece conceber a relao entre matria e forma de um modo contingente e

    independente; j em outras, de um modo necessrio e interdependente. Aristteles

    estaria, portanto, incorrendo em contradio? Como iremos argumentar a seguir, a

    anlise da constituio do ser vivo credencia-nos a dizer que no.

    A anlise da constituio do ser vivo envolve trs tipos de composio76

    : (i) a

    que corresponde aos elementos: fogo, ar, gua e terra; (ii) as partes homogneas

    (homoiomeres): sangue, carne, ossos etc., (iii) as partes no homogneas

    (anhomoiomeres): mos, olhos, pulmes etc.77

    O primeiro nvel de composio orgnica

    serve de base para a composio de todos os outros nveis constituintes, mas de um

    modo mais imediato, apresenta-se como componente material das partes homogneas.

    J as partes homogneas, constitudas pelos quatro elementos, apresentam-se como

    componentes das partes no homogneas e estas, por sua vez, constituem a composio

    do ser vivo como um todo. Assim, podemos notar que a constituio orgnica

    estratificada, de modo que os nveis de composio inferiores servem de matria para os

    nveis de composio situados nas camadas superiores.

    Dentre os trs tipos de composio anteriores que, de certo modo, podem ser

    designados como matria do organismo, somente o primeiro, que correspondente aos

    76

    Cf. As Partes dos Animais, II.1, 64612-25; Gerao dos Animais, I.1, 7159-12. 77

    As partes homogneas e as partes no homogneas respectivamente corresponderiam, mais ou menos,

    nossa distino entre tecidos e rgos.

  • 38

    quatro elementos, pode existir parte do ser vivo. As partes homogneas e no

    homogneas, distintamente dos elementos, no se encontram na natureza aqum e alm

    da existncia do organismo. Os ossos, parte homognea, persistem morte do animal,

    mas eles no so mais capazes de executar a funo pela qual vm a ser e so definidos

    e, portanto, so ditos ossos apenas por homonmia78

    . Ossos, carne, mos, olhos etc. vm

    a ser e so definidos estritamente pela funo que eles exercem no organismo como um

    todo79

    . Sendo assim, eles no so o que so sem o organismo do qual fazem parte80

    .

    Enquanto caracterizados como tais, as partes homogneas e as partes no homogneas

    estabelecem uma relao de carter necessrio e de interdependncia com a forma do

    animal.

    No entanto, entre os elementos que compe a matria apropriada do ser vivo

    (partes homogneas e no homogneas) e, de um modo geral, a forma do animal, h

    uma relao de carter contingente, pois os elementos, na composio orgnica,

    adquirem propriedades acidentais para se tornarem aptos a exercer as funes

    requeridas pelo vivente. Considerados em si mesmos, os elementos possuem

    propriedades essenciais que, por meio de uma interveno externa a eles prprios, vm

    a adquirir novas propriedades. Contudo, estas propriedades essenciais dos elementos

    permanecem em potncia na compleio do vivente. Sinal disto que, no processo de

    decadncia ou deteriorao do animal, as propriedades acidentais que os elementos

    apresentam ao compor o organismo passam a deixar de atuar em funo das

    propriedades essenciais que estes elementos, por si mesmos, preservavam na forma de

    disposies81

    . A este respeito, no De Caelo, Aristteles diz o seguinte:

    78

    Cf. As Partes dos Animais, I.1, 640b34-6417; Gerao dos Animais, II.1, 734b25-27. 79

    Com relao aos ossos e as veias ver: As Partes dos Animais, II.9, 65432-654b12. 80

    Cf. Metafsica, VII.10, 1035b23-25. 81

    Discordamos de Sarah Waterlow, quando ela afirma: Os elementos no contexto biolgico, ou totalmente deixam de lado suas naturezas originais, ou so modificados de modo a se adequarem s

    necessidades do todo. Na primeira alternativa, eles no esto absolutamente presentes no organismo [...].

    adminRealce

    adminNotaPropriedades caractersticas

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    As debilidades, nos animais, so contra a natureza, como a velhice e o enfraquecimento.

    Pois, certamente, a constituio inteira dos animais est formada a partir de [elementos]

    tais que diferem de seus lugares prprios, pois nenhuma das partes ocupa o lugar que

    prprio a ela mesma82

    .

    Ao constiturem os animais, os elementos permanecem, sob a interveno da

    forma do ser vivo, fora de seus lugares naturais. Assim, as disposies originais dos

    elementos so constrangidas, de modo que a tendncia de voltarem a estas disposies

    originais explica as debilitaes que os animais inevitavelmente sofrem, aumentando

    gradativamente no decorrer do tempo. O fato de que os elementos - cessada a

    interveno externa que mantinha as suas propriedades essenciais desatualizadas no

    organismo - tendem a voltar a se comportarem segundo as suas respectivas naturezas,

    revela o carter contingente da relao entre os elementos no seu estado primitivo e as

    propriedades adquiridas atravs da forma do organismo.

    O caso do sangue, talvez, permite-nos esclarecer melhor esta questo. Para

    Aristteles, o sangue (haima) se constitui por determinada mistura (mikton) de

    elementos, a qual se acrescenta calor (thermotes) por uma influncia externa a esta

    mistura83

    . O sangue, para cumprir a sua funo no organismo, a saber, servir de

    alimento s partes do animal84

    ao estar distribudo pelo corpo, deve ser quente na

    Na segunda alternativa, enquanto os elementos puderem, em certo sentido, estarem l, os modos nos

    quais manifestam a sua presena so dedutveis apenas de um conhecimento prvio do organismo e suas

    necessidades, e no vice-versa (Sarah Waterlow, Nature, Change and Agency in Aristotles Physics, Oxford: Clarendon Press, 1982, p. 86). Para Waterlow, os elementos, ao constituirem os organismos

    vivos, perderiam as suas disposies essenciais. Mas, estas disposies so justamente o que explica a decadncia ou a deteriorao do animal. 82

    Aristteles, De Caelo, II.6, 288b14-18. 83

    Cf. Angioni L., As Noes Aristotlicas de Substncia e Essncia, Campinas, Ed. Unicamp, 2008, pp.

    364-372; Frank A. Lewis, Aristotle on the Relation between a Thing and its Matter, in T. Scaltsas, D. Charles e M. L. Gill (eds.), Unity, Identity and Explanation in Aristotles Metaphysics. Oxford: Clarendon Press, 1994, pp. 262-267. 84

    Em As Partes dos Animais, II.3 (65034-650b4), Aristteles afirma: O sangue o alimento ltimo para os animais sanguneos , e para os no sanguneos o anlogo ao sangue.

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    medida em que vem a ser elaborado por um processo de coco (pepsis). justamente

    por meio deste processo de coco que se acrescenta extrinsecamente a propriedade de

    ser quente a certa mistura de elementos materiais, que constituem o sangue. No entanto,

    tais elementos no deixam de preservar as suas disposies essenciais, de modo que o

    calor, necessrio funo desempenhada pelo sangue, advm-lhes como uma

    propriedade acidental. De fato, os elementos materiais que compe o sangue, quando

    separados do organismo, passam a reassumir as suas caractersticas prprias, de acordo

    com suas propriedades intrnsecas. Em uma passagem de As Partes dos Animais,

    Aristteles diz:

    O sangue quente por influncia externa e no em essncia. O mesmo sucede com

    respeito ao slido e ao lquido. Por isso, tambm, entre as partes que possuem tais

    qualidades na natureza, umas so quentes e lquidas, mas, ao serem separadas, se

    solidificam e parecem frias, como o sangue; outras so quentes e tm densidade, como a

    blis, e ao separar-se do organismo que as contm experimentam o contrrio: se esfriam

    e se liquefazem. De fato, enquanto o sangue seca-se mais, a blis amarela se faz

    lquida85

    .

    No organismo, o sangue exibe a propriedade de ser quente e lquido. Mas, ao

    deixar de pertencer ao organismo, torna-se frio e slido. Algo semelhante acontece com

    a blis: na composio do ser vivo, quente e densa. Porm, ao se separar, adquire

    propriedades contrrias, ou seja, se esfria e se liquefaz. Conforme Angioni86

    , estas

    mudanas so explicadas pelo fato de os elementos, ao deixarem de constituir o ser

    vivo, voltarem a se comportar segundo as propriedades intrnsecas que os caracterizam.

    Podemos, ento, chegar a seguinte concluso: no que diz respeito matria apropriada

    85

    Aristteles, As Partes dos Animais, II.3, 649b28-33. 86

    Cf. Angioni L., Aristteles: Fsica I-II (prefcio, introduo, traduo e