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UNIVERSIDDADADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
A relao entre percepo e memria no pensamento de Henri Brgson
Warley Kelber Gusmo de Andrade
So Carlos Setembro de 2007
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WARLEY KELBER GUSMO DE ANDRADE
A relao entre percepo e memria no pensamento de Henri Bergson
Dissertao apresentada ao Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias do CCH-UFSCAR para obteno do grau de Mestre em Filosofia, sob a orientao da Prof. Dr. Dbora C. Morato Pinto.
So Carlos Setembro de 2007
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Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar
A553re
Andrade, Warley Kelber Gusmo de. A relao entre percepo e memria no pensamento de Henri Bergson / Warley Kelber Gusmo de Andrade. -- So Carlos : UFSCar, 2009. 143 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2007. 1. Matria. 2. Memria. 3. Percepo. 4. Esprito e corpo. I. Ttulo. CDD: 100 (20a)
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar a relao entre percepo e memria no pensamento
do filsofo francs Henri Bergson. Nesse sentido, toda a nossa anlise se d a partir do estudo
de Matria e Memria, mais especificamente seu primeiro captulo, pois neste livro que
Bergson buscar evitar os equvocos que filosofia e cincia cometeram no estudo da relao
entre corpo e alma. E a estratgia usada por Bergson para escapar de tais equvocos ser
recolocar este problema em novos termos. Mas o que realmente significa essa estratgia, o
que significa recolocar o problema, e ainda, ser esta a nica estratgia que permite a sua
resoluo? Significa livrar-se das confuses geradas pela cincia na definio de como se d a
relao entre corpo e alma quando a mesma baseia-se nas teorias oferecidas pela filosofia
sobre o real e ir direto ao exame dos fatos, alis, essa uma premissa fundamental na filosofia
bergsoniana, logo, na recolocao do problema que obteremos sua soluo, pois o caminho
escolhido se apresentar na forma de linhas de fatos que sero examinadas at sua
extenuao: o exame do funcionamento do sistema nervoso central e a definio da sua
funo real, o estudo e a construo da proposta bergsoniana sobre papel da percepo no
jogo do conhecimento, fato que acarretar na dissociao do misto mal analisado da
percepo e da memria, bem como, a explicitao do surgimento da afeco e sua
diferenciao no nvel da natureza da percepo; e, finalmente, a reintegrao da memria
percepo, chegando instaurao de uma possibilidade de comunicao entre corpo e alma.
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AGRADECIMENTOS
De incio quero agradecer de maneira sincera e profunda minha orientadora Dbora
Cristina Morato Pinto que durante todo o percurso que culminou na escrita desta dissertao
sempre se apresentou como algum extremamente paciente e dedicada no difcil trabalho de
orientar um recm formado em filosofia com pouqussima experincia na rea de pesquisa.
A todos meus amigos que me acompanharam nessa caminhada sempre com palavras
de nimo, entre eles: Ded (in memorian), Kity Kono, Belen, Ildenilson Meireles, Pricles de
Souza, Marden e Fabiana, Olmpio e Vanessa, Nilza, Snia, Rogrio e especialmente Alex
Fabiano Jardim, amigo e meu professor na graduao de filosofia na Universidade Estadual
de Montes Claros UNIMONTES, responsvel direto por meu primeiro contato com a
filosofia bergsoniana e a partir da por uma mudana completa no rumo da minha vida, e
muitos outros que seguramente no me lembro nesse momento, mas que espero, sintam como
eu o doce sabor de uma alegria criadora ao chegar ao fim deste trabalho.
Aos professores, alunos e funcionrios da Universidade do Estado da Bahia-UNEB,
Campus XII, Guanambi-BA, os quais receberam-me de forma extremamente afetuosa e
sempre estiveram prontos a colaborar comigo na difcil empreitada que o incio da carreira
docente, fato que foi de extrema importncia para a escrita desta dissertao.
Aos novos amigos que encontrei em Guanambi-BA, especialmente Z e Valria,
Anderson e Marly, por ajudarem a diminuir a minha saudade das minas gerais.
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A Jack, um encontro recente, mas to profundo e belo que seria impossvel expressar
toda a minha gratido e respeito por sua presena sempre carregada de carinho e
companheirismo.
Por fim a todos os meus familiares, especialmente Jack e Madu, meu irmo Wesley
por me ensinar o significado de um mundo silencioso, minha irm Thas por sua transparncia
ao expressar seus sentimentos e me ajudar a compreender a inevitvel presena da diferena, e
meus pais Sebastio Ruas de Andrade e Lais Gusmo de Andrade por todo o empenho
realizado em me propiciar uma educao familiar pautada no esforo para enfrentar a lida do
dia-a-dia com alegria e esperana.
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SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................................................5
1. MATRIA E MEMRIA: ESQUECIMENTO E ESPANTO ..........................................9
1.1 A exposio dos erros que envolvem o estudo da relao entre corpo e alma.................9
1.2 A desqualificao do paralelismo...................................................................................13
1.3 Descoberta da durao e crtica da anlise .....................................................................26
1.4 O funcionamento do mtodo .........................................................................................43
2. MATRIA E MEMRIA: FINGIR PARA ESCAPAR.....................................................57
2.1 A estratgia do fingir e a instituio do campo de imagens ...........................................57
2.2 O crebro como um centro de ao e no como um produtor da representao ............68
3. ESPRITO E MATRIA: DISTINO E COINCIDNCIA.............................................87
3.1 A questo da relao entre os dois sistemas de imagens e a querela entre idealismo e
realismo ................................................................................................................................87
3.2 Esprito e Matria: Uma relao solidria ....................................................................119
CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................140
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................142
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5
INTRODUO
O nosso desejo em pesquisar a relao entre percepo e memria na filosofia
bergsoniana est diretamente ligado conferncia intitulada A conscincia e a vida, j que
este foi este o primeiro texto de Bergson ao qual tivemos contato ainda na graduao de
filosofia, e o qual imediatamente suscitou em ns questionamentos para os quais pensvamos
que estava tudo posto e resolvido, sendo o principal deles expresso no final da mesma:
[...] se levamos em conta que a atividade mental do homem ultrapassa sua atividade cerebral, que o crebro armazena hbitos motores mas no lembranas, que as outras funes do pensamento so ainda mais independentes do crebro do que a memria, que a conservao e mesmo a intensificao da personalidade so ento possveis e mesmo provveis depois da desintegrao do corpo, no suspeitaremos que, em sua passagem atravs da matria, a conscincia se tempera como o ao e se prepara para uma ao mais eficaz, para uma vida mais intensa?1
A partir da, e tomados pelo espanto que tal questionamento nos causou, fomos
imediatamente conduzidos a buscar quais eram os motivos, ainda que superficiais, que
moviam Bergson para fazer tal questionamento, e dessa maneira verificamos que o contexto
histrico no qual estava situado a sua filosofia, especificamente na passagem do sculo XIX
para o XX, se caracterizava por ser um perodo com expressa ascendncia dos projetos
positivistas e cientificistas que exigiam a passagem das certezas cientficas pelo crivo da
observao direta dos dados e da sua comprovao emprica, conduzindo impreterivelmente
mensurao de toda e qualquer experincia e encontrando o seu desfecho em uma explicao
traduzida na relao de causa e efeito de todo e qualquer fenmeno, inclusive os fenmenos
psquicos que passam a sofrer um tratamento objetivista e ser alvo de mensurao, ou seja, a
1 Os Pensadores. p. 202 (Conferncia: A Conscincia e a vida), Ed. Abril, 1979.
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cincia passa a operar sobre um horizonte determinista que no admite nenhum tipo de
arbtrio ou de indeterminao.
No entanto ao nos depararmos com as idias propostas na conferncia A conscincia e
a vida sobre a trplice questo da conscincia, da vida e de suas relaes2, expressas nas
definies sobre o real papel do crebro, bem como com as implicaes dessas idias no que
concerne ao estudo da conscincia, sentimos a estranha sensao que, de alguma forma, tudo
aquilo que aprendramos at ento sobre como se d o conhecimento que temos do real estava
de alguma maneira contaminado por um vcio, um equvoco, que envolvera a filosofia e a
cincia no decorrer da histria, e assim expresso por Bergson:
Mas, no momento de atacar o problema, no ouso contar muito com o apoio dos sistemas filosficos. O que perturbador, angustiante, apaixonante para a maior parte dos homens nem sempre o que ocupa o primeiro lugar nas especulaes dos metafsicos. De onde viemos? Que somos? Para onde vamos? Eis questes vitais, diante das quais nos colocaramos imediatamente se filosofssemos sem passar pelos sistemas. Mas entre estas questes e ns, uma filosofia demasiadamente sistemtica interpe outros problemas. Antes de procurar a soluo, diz ela, no preciso saber como a procuraremos? Estudemos o mecanismo de nosso pensamento, discutamos nosso conhecimento e critiquemos nossa crtica: quando estivermos seguros do valor do instrumento, ento nos serviremos dele.3
Assim, a partir deste espanto inicial, que surge, como j dissemos, o nosso desejo
em estudar na filosofia bergsoniana a relao entre percepo e memria. E de fato, a prpria
diviso deste trabalho expressa o nosso esforo em tentar compreend-la: o primeiro captulo
desta dissertao retrata a tentativa de apresent-la de uma forma geral; primeiramente
tentamos demonstrar o que leva Bergson a enfrentar o problema da relao corpo e alma,
como tambm apresentamos alguns conceitos centrais da sua filosofia: a durao e a intuio;
e por fim, tentamos demonstrar o uso e as conseqncias do uso desses conceitos quando os
mesmo so aplicados no estudo de problemas que at ento no haviam, na opinio do autor
francs, alcanado solues aceitveis tanto por parte da filosofia como da cincia. Assim, o
2 Os Pensadores. p. 189 (Conferncia: A Conscincia e a vida), Ed. Abril, 1979. 3 Os Pensadores. p. 189 (Conferncia: A Conscincia e a vida), Ed. Abril, 1979.
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primeiro captulo a preparao para o objetivo efetivo dessa dissertao, que o de estudar a
relao entre percepo e memria, e o segundo e o terceiro, o momento onde realizamos esse
objetivo.
Nesse sentido todo o nosso trabalho se d a partir do estudo de Matria e Memria,
mais especificamente seu primeiro captulo, pois nesse livro que Bergson buscar evitar os
equvocos que filosofia e cincia cometeram no estudo da relao entre corpo e alma. E a
estratgia usada por Bergson para escapar a esses equvocos ser recolocar este problema em
novos termos. Mas o que realmente significa essa estratgia, o que significa recolocar o
problema, e ainda, ser esta a nica estratgia que permite a sua resoluo? Significa livrar-se
das confuses geradas pela cincia na definio de como se d a relao entre corpo e alma
quando a mesma baseia-se nas teorias oferecidas pela filosofia sobre o real e ir direto ao
exame dos fatos, alis, essa uma premissa fundamental na filosofia bergsoniana, logo, na
recolocao do problema que obteremos sua soluo, pois o caminho escolhido se apresentar
na forma de linhas de fatos que sero examinadas at sua extenuao: o exame do
funcionamento do sistema nervos central e a definio da sua funo real, o estudo e a
construo da proposta bergsoniana sobre o papel da percepo no jogo do conhecimento,
fato que acarretar na dissociao do misto mal analisado da percepo e da memria, bem
como, a explicitao do surgimento da afeco e sua diferenciao ao nvel de natureza da
percepo; e, finalmente, a reintegrao da memria percepo, chegando instaurao de
uma possibilidade de comunicao entre corpo e alma.
Por fim a pergunta que devemos fazer : chegaremos a alguma certeza imediata ou
absoluta? Obviamente no, mas pensamos que como o prprio Bergson defende ao menos
seremos conduzidos a optar por uma:
[...] filosofia mais modesta, que iria diretamente ao objeto sem se inquietar com os princpios de que ele parece depender! Ela no mais ambicionaria uma certeza imediata, que s pode ser efmera. Ela no se apressaria. Seria uma ascenso gradual para luz. Levados por uma
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8
experincia cada vez mais vasta para probabilidades cada vez mais altas, tenderamos para a certeza definitiva como para um limite.4
E justamente o que sentimos a respeito deste trabalho, ou seja, ele um modesto
trabalho de filosofia, mas que nem por isso deixou de ser para ns uma possibilidade de
ascenso gradual e uma experincia que nos faz desejar probabilidades cada vez mais altas.
4 Os Pensadores. p. 190 (Conferncia: A Conscincia e a vida), Ed. Abril, 1979.
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1. MATRIA E MEMRIA: ESQUECIMENTO E ESPANTO 1.1 A exposio dos erros que envolvem o estudo da relao entre corpo e alma
No prefcio VII Edio de Matria e Memria, deparamo-nos com Bergson
entrando de sobressalto no problema da relao entre corpo e esprito, afirmando
categoricamente a realidade de um e de outro. Esse ato inicial lhe permitir assumir um
dualismo em novas bases, com a finalidade de resgatar esta teoria das armadilhas que a
envolveram.
A prpria afirmao sobre a existncia do esprito e da matria uma indicao de
que a preocupao primordial do autor no ser buscar a origem nem de um nem de outro,
pois encaminhar essa busca s conduziria a um labirinto no qual reencontraramos as
dificuldades criadas pela concepo ora realista, ora idealista, que feita da matria5. Nesse
sentido, o esforo bergsoniano para resolver o problema da relao entre corpo e esprito
apontar em outra direo, que no ser o da busca da origem. Mas, como ele mesmo afirma
na II Introduo a O Pensamento e o Movente:
Este esforo exorcizar alguns fantasmas de problemas que obcecam o metafsico, isto , cada um de ns. Falo desses problemas angustiantes e insolveis que no dizem respeito ao que , que se referem mais ao que no . Tal o problema da origem do ser: Como possvel que qualquer coisa exista matria, esprito ou Deus?6
Assim, o esforo executado em Matria e Memria ser o de buscar a relao entre
esprito e matria, atravs do estudo de um exemplo preciso, o da memria7. E se o objetivo
dessa obra o de atenuar as dificuldades geradas pelo dualismo, a inteno ser torn-lo um
5 M.M., p. 1 6 P.M. (II Introd.), p. 254 (Grifo nosso). 7 M.M., p1
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prato saboroso que alimente mais uma vez as discusses filosficas, que dele se afastaram por
ser sugerido pela conscincia imediata, adotado pelo senso comum8.
O surgimento dessa pouca estima pelo dualismo fruto das armadilhas criadas pelo
idealismo e pelo realismo. Bergson chama de excessos, nessas duas concepes, a definio que
apresenta de matria e aponta uma possvel falsidade contida em seus enunciados falso reduzir a
matria representao que temos dela, falso tambm fazer da matria algo que produziria em ns
representaes mas que seria de uma natureza diferente delas9.
Se idealismo e realismo so falsas concepes da matria, armadilhas que nunca nos
permitem acessar o real, como no se deixar apanhar? Bergson nos convida a executar uma
espcie de fingimento que nos coloque fora das armadilhas, prontos para, respirando um novo
ar, buscarmos foras para, mais uma vez, olharmos com entusiasmo o velho problema
filosfico sobre as teorias da matria. Esse fingimento um recomeo, que pode fazer com
que aparea, para ns, a soluo. Assim, estamos envoltos em um ambiente de suspense, de
espera, de consideraes vrias, estamos, mais uma vez, filosofando.
Ser, portanto, a demonstrao dos excessos em que foi definida a matria, ora por parte do
idealismo, ora do realismo, o alvo do primeiro captulo de Matria e Memria, e essa demonstrao j
significa a tentativa de escapar das armadilhas que essas duas teorias podem preparar. Nesse sentido,
Bergson afirma:
A matria, para ns, um conjunto de imagens. E por imagem entendemos uma certa existncia que mais do que aquilo que o idealista chama uma representao, porm menos do que aquilo que o realista chama uma coisa uma existncia situada a meio caminho entre a coisa e a representao.10
Bergson afirma, ainda, que essa concepo da matria expressa pura e
simplesmente a do senso comum11.
8 M.M., p. 1 9 Idem, p. 1 10 Idem, p. 1 11 M.M., p. 2
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11
Mas como entender a estratgia bergsoniana de usar o que ele chama de concepo
da matria do senso comum? Bergson quer que finjamos no ver mais do que vemos, que
deixemos de lado qualquer tipo de objeo advinda das teorias idealistas ou realistas, que
possam se interpor entre ns e a matria. Esse pedido se torna radical quando ele pede que
esqueamos todas as dificuldades que surgiram quando a matria foi dividida entre sua
existncia e sua aparncia12.
J que estamos livres da busca pelas origens, ou pela causa da matria, podemos nos
debruar sobre o objetivo proposto por Bergson: o estudo da relao entre corpo e esprito.
Percebemos, no Prefcio, o uso de duas palavras que, apesar de soarem semelhantes, parecem
indicar para Bergson uma diferena de abordagem do problema proposto. Vejamos: Essa
relao, embora constantemente tratada ao longo da histria da filosofia, em realidade foi
muito pouco estudada.13
Ao afirmar que at o momento essa relao foi apenas tratada, Bergson, na verdade,
est denunciando que as hipteses originadas desse tratamento empregado para resolver o
problema no so o resultado de uma abordagem direta dos dados da experincia, mas do uso
de uma metafsica que s visava sua conformidade aos interesses da cincia positiva. Assim,
excluindo-se as teorias que constatam a unio entre corpo e alma como um fato irredutvel e
inexplicvel, ou outras, que afirmam ser o corpo o instrumento da alma, no restariam outras
concepes da relao psicofisiolgica seno as hipteses epifenomenista ou paralelista. As
duas concepes, segundo ele, limitadas a uma nica concluso: se possussemos a chave da
psicofisiologia, ou seja, uma tabela que nos permitisse descrever a correspondncia entre o
mental e o cerebral, ao ver o crebro e seus movimentos interiores, conseqentemente,
teramos a viso da conscincia e, exatamente, do que nela se passa.14
12 Idem, p. 2 13 M.M. p. 4 (Grifo nosso) 14 A verdade que se pudssemos, atravs do crnio, ver o que se passa no crebro que trabalha, se dispusssemos, para observar o interior do crebro, de instrumentos capazes de aumentar milhes e milhes de
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Logo, as afirmaes acima j nos indicam que a demonstrao dos excessos das
teorias metafsicas sobre a matria o primeiro passo dado por Bergson na busca da soluo
do problema da relao entre corpo e esprito. E, para ele, no h dvidas sobre as origens
metafsicas das teses que sustentam o paralelismo psicofisiolgico: elas derivaram, apesar de
conterem muitas restries, diretamente do cartesianismo15. No entanto, essa derivao
ocorreu de maneira quase que obrigatria, pois os fisiologistas estavam diante de um
problema metafsico relao corpo e alma e, j que os metafsicos no lhes haviam
oferecido outra soluo e a adeso a essa metafsica lhes garantiria um progresso ininterrupto
nas explicaes sobre as condies cerebrais do pensamento, associaram-se a ela. Entretanto,
Bergson pretende demonstrar que tal associao revela que a afirmao dogmtica da tese do
paralelismo psicofisiolgico retira o problema do terreno cientfico e o transforma em uma
hiptese metafsica, que somente poder tornar-se inteligvel em virtude das caractersticas da
cincia constituda na poca moderna altamente matematizada.
Mas, basta que nos livremos dos pressupostos e nos encaminhemos ao estudo direto
dos fatos para que vejamos surgir a primeira mudana que a proposta bergsoniana nos traz.
Ela se expressa na troca da palavra equivalncia por solidariedade. E em decorrncia dessa
alterao, surge, segundo nosso autor, uma nova possibilidade: os estados cerebrais
exprimiriam apenas as aes, as articulaes motoras pr-formadas nos estados psicolgicos.
Assim, seria possvel, a partir de um estado psicolgico, definir o estado cerebral
concomitante, mas a operao inversa seria impossvel, pois um mesmo estado cerebral pode
estar ligado a uma enorme diversidade de estados psicolgicos; em outras palavras: o estado
vezes mais do que nossos melhores microscpios, se assistssemos assim dana de molculas, tomos e eltrons de que feita a substncia cerebral, e se, por outro lado, possussemos a tbua de correspondncia entre o cerebral e o mental, isto um dicionrio que permitisse traduzir cada figura da dana na linguagem do pensamento e do sentimento, saberamos to bem quanto a pretensa alma tudo o que ela pensa, sente e quer, tudo o que ela acredita fazer livremente enquanto o faz mecanicamente. (A alma e o corpo, p.205 Grifo nosso). 15 Sobre as origens totalmente metafsicas desta tese no h dvidas possveis. Ela deriva em linha direta do cartesianismo. Implicitamente contida (com muitas restries, bem verdade) na filosofia de Descartes, destacada e levada ao extremo por seus sucessores, ela passou, por intermdio dos mdicos filsofos do sculo XVIIII, para a psicofisiologia do nosso tempo. (O crebro e o pensamento: Uma iluso filosfica, p.163).
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13
psicolgico prolonga-se em movimentos que constituem estados cerebrais, ento possvel
deduzir a forma dos movimentos a partir do que se passa conscientemente. O mesmo no
ocorre na direo inversa: dado um estado cerebral, no se deduz o contedo psicolgico, pois
ele pode ser acionado por uma enormidade de diferentes estados psicolgicos.
No entanto devemos ressaltar que todas estas colocaes expostas por Bergson no
tm como objetivo a destruio da tese do paralelismo psicofisiolgico, mas sim a
demonstrao de sua contradio interna. E ser a partir da constatao dessa contradio que
retiraremos os ensinamentos necessrios pelos quais adivinharemos em que direo preciso
buscar a soluo do problema, ao mesmo tempo em que descobriremos o mecanismo de uma
das mais sutis iluses do pensamento metafsico.16 E para Bergson, o erro contido na tese do
paralelismo repousa na ambigidade dos termos por ela usados, j que a afirmao dogmtica
de tal tese gera um artifcio dialtico que exprime o real usando dois sistemas de notao
opostos, e que s aparecer aos nossos olhos se nos dispusermos a tentar formular a tese em
questo, alternativamente, nos dois sistemas de notao de que dispe a filosofia.17
Avancemos um poucos mais e vejamos como, a partir destes dois sistemas de
notao, nosso autor desqualifica o paralelismo.
1.2 A desqualificao do paralelismo
Como j vimos, Bergson considera que a tese do paralelismo deriva da adeso s
concepes idealista e realista da matria bem como da mistura entre os dois sistemas; a
origem das duas concepes reside em escolher um conceito coisa ou representao
como fundamento e princpio agente; h generalizao pelo uso dos conceitos e sua aplicao
a todos os fenmenos. Os conceitos so nomes, funcionam como categorias gerais que
englobam uma srie de coisas pela semelhana ou caractersticas comuns. O conceito de
16 Crebro e Pensamento, p.164. 17 Idem, p.164.
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14
cavalo, por exemplo, produzido por um tipo de operao anloga da contagem, pelo
menos por exigir a constituio de uma unidade homognea: a cavalice do cavalo surge
pela abstrao das diferenas entre os cavalos concretos. Podemos encontrar essas mesmas
afirmaes ainda por outra via, e para isso basta que sigamos uma orientao bergsoniana no
que tange ajuda que a arte pode nos dar na recuperao da nossa percepo natural das
coisas, (...) Com efeito, h sculos que surgem homens cuja funo justamente a de ver e
de nos fazer ver o que no percebemos naturalmente. So os artistas.18 Com esse intuito
analisaremos um trecho do conto Funes o memorioso, do escritor argentino Jorge Luis
Borges, no qual ele relata o seu encontro com um jovem uruguaio chamado Irineu Funes,
vtima de um acidente. Funes encontra-se totalmente imvel em uma cama, mas, apesar dessa
condio, possui uma memria infalvel e, como Bergson, demonstra a mesma insatisfao
em relao linguagem; nesse sentido, o conto pode nos servir para explicitar ainda mais essa
insatisfao:
Este, no o esqueamos, era quase incapaz de idias gerais, platnicas. No s lhe custava compreender que o smbolo genrico co abrangesse tantos indivduos dspares de diversos tamanhos e diversas formas; aborrecia-o que o co das trs e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o co das trs e quatro (visto de frente). Seu prprio rosto no espelho, suas prprias mos, surpreendiam-no todas s vezes. Menciona Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os tranqilos avanos da corrupo, das cries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitrio e lcido expectador de um mundo multiforme, instantneo e quase intoleravelmente exato.19
A partir das afirmaes explicitadas acima, pertencentes tanto filosofia bergsoniana
quanto ao conto de Borges, encontramos a tese forte de Bergson: o conceito deriva de um
procedimento prprio a praxis, necessrio vida, e transportado sem crtica para o terreno
da especulao. Fato que tambm podemos verificar no personagem Funes: Tinha aprendido
sem esforo o ingls, o francs e o latim. Suspeito, entretanto, que no era muito capaz de
18 O Pensamento e o Movente. p. 155 (Conferncia: A Percepo da Mudana), Ed. Martins Fontes, 2006. 19 BORGES L., Jorge. Fices, p.127
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15
pensar. Pensar esquecer diferenas, generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes
no havia seno pormenores, quase imediatos20, pois ele tambm indica a crtica de Bergson
metafsica e cincia, quando elas afastam-se da experincia, e passam a descrever o real a
partir de conceitos, ao que as impede de ver o que realmente acontece no mesmo, pois,
(...) o exame das doutrinas mostra-nos que a faculdade de conceber, medida que progride nesse trabalho de integrao, est reduzida a eliminar do real um grande nmero de diferenas qualitativas, a apagar em parte nossas percepes, a empobrecer nossa viso concreta do universo. mesmo pelo fato de ser levada, de bom ou mau grado, a assim proceder que toda filosofia suscita filosofias antagonistas, cada uma das quais reergue algo daquilo que ela deixou cair. O mtodo vai portando de encontro ao objetivo: ele devia, em teoria, estender e completar a percepo; obrigado, de fato, a pedir a um sem-fim de percepes que se apaguem para que tal ou tal dentre elas possa tornar-se representativa das outras.21
E que Borges ao escrever sobre Funes o expressa da seguinte maneira para
demonstrar a insatisfao do seu personagem: de um lado a linguagem que insiste em tornar o
real um quase intoleravelmente exato, do outro a sua prpria insatisfao, pois, para Funes o
real s poderia ser visto na forma de pormenores quase imediatos. Logo, tanto para Bergson
quanto para o personagem de Borges, o real s pode ser expresso a partir de um contato
direto, um contato que como j indicamos anteriormente evite a diviso operada na matria
entre sua existncia e sua aparncia. E so esses mesmos fatos, portanto, que levam Bergson a
defender que a linguagem e a inteligncia tm sua origem nos mecanismos da praxis, e
induzem a interpretao filosfica do real guiada pela questo por que o Ser e no o Nada?,
e so estas as questes que passaremos a discutir.
O objetivo nesse momento do nosso trabalho ento duplo; inicialmente
mostraremos a implicao direta entre as iluses da inteligncia e a tese do paralelismo, para
logo aps explicitar essa implicao como nico resultado possvel da aplicao do modo de
pensamento conceitual ao problema mente-corpo. Iniciaremos a nossa descrio pelas
definies dos dois sistemas de notao e a apresentao da inteno efetiva de Bergson, que
20 Idem, p.127 21 O Pensamento e o Movente. p. 154 (Conferncia: A Percepo da Mudana), Ed. Martins Fontes, 2006.
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a de abordar o idealismo e o realismo para solucionar as dificuldades surgidas no uso do
paralelismo para explicar as relaes entre estado cerebral e estado psicolgico; e por fim
exporemos de forma mais detalhada o fato que j anunciamos logo acima, ou seja, a
implicao direta entre as iluses da inteligncia e a tese do paralelismo.
Ao designarmos os objetos exteriores, podemos usar dois sistemas de notao
oferecidos pela filosofia. Em um, podemos nos referir a esses objetos e s mudanas neles
operadas como coisas e, no outro, como representaes. Os dois sistemas conduzem a
solues prprias, que podem ser endossadas desde que seus adeptos se mantenham
estritamente na mesma notao.
Mas no basta apenas indicarmos as diferenas entre os dois sistemas de notao,
necessrio que os distingamos com preciso uma vez que o realismo fala de coisas e o
idealismo fala de representaes22. Aqui, segundo Bergson, no encontramos apenas uma
discusso a respeito de quais palavras designam o real, pois enquanto sistemas eles expressam
duas maneiras distintas de compreender a anlise do real.23
Segundo Bergson, o idealismo no encontra, no real, qualquer coisa que no seja
capaz de apresentar-se minha conscincia ou conscincia em geral. Assim, absurdo para
um idealista pensar em alguma propriedade da matria que no possa tornar-se objeto de
representao; para ele, no h virtualidade nas coisas, toda a existncia atualidade ou
poder se atualizar, em suma, o idealismo um sistema de notao implicando que todo o
essencial da matria mostrado ou mostrvel na representao que dele temos, e que as
articulaes do real so as mesmas de nossas representaes24.
J o segundo sistema de notao, o realismo, para Bergson, repousa em uma hiptese
inversa ao idealismo ao defender a existncia da matria independentemente da nossa
representao da mesma, isto , para o realista, h uma espcie de causa inacessvel em
22 Crebro e Pensamento, p.164. 23 Idem, p.164. 24 Idem, p.164.
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17
relao nossa representao da matria. No realismo, por trs da (nossa) percepo do atual
h poderes e virtualidades ocultos: ; enfim, afirmar que as divises e articulaes visveis em
nossa representao so puramente relativas nossa maneira de perceber.25.
Essas explicaes bergsonianas sobre os dois sistemas de notao j indicam uma
crtica que ser por ele desenvolvida em Matria e Memria, ao tratar da natureza e da
finalidade da nossa percepo sensvel, que sero discutidas no prximo captulo.
A inteno de Bergson, ao explicitar sua maneira estas duas notaes, no se
configurar como uma tentativa de acompanh-las durante seu desenvolvimento na histria da
filosofia, campo no qual, certamente, encontraramos definies mais profundas sobre as
mesmas. Sua inteno apontar uma perspectiva do idealismo e do realismo para demonstrar
e resolver as contradies surgidas do uso do paralelismo na explicao das relaes entre
estado cerebral e estado psicolgico: o primeiro designando o real pela representao que dele
temos e o segundo indicando que, sob nossa apreenso do real, existe algo que ultrapassa
nossa representao. Mas, se nosso autor no tem como objetivo aprofundar as explicaes
histricas sobre idealismo e realismo, qual seria o verdadeiro motor de suas reflexes sobre os
dois sistemas de notao? Apesar da generalidade de tais definies, Bergson quer chamar
ateno sobre um fato de grande importncia, que a impossibilidade de convivncia dos dois
sistemas no que diz respeito ao tratamento da realidade, pois, todos concordaro que os dois
postulados se excluem, que, conseqentemente, ilegtimo aplicar ao mesmo tempo os dois
sistemas de notao ao mesmo objeto.26
Ser ento essa impossibilidade de convivncia entre idealismo e realismo, no que
diz respeito apreenso do real, o argumento usado por Bergson para demonstrar a
contradio interna das teses defendidas pelo paralelismo psicofisiolgico na sua tentativa de
explicar a equivalncia entre estado cerebral e estado psicolgico.
25 Idem, p.164. (Grifo nosso) 26 Idem p.165.
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Assim, devemos ir alm do tratamento que foi dado no decorrer da histria da
filosofia ao problema da relao corpo e alma e que, segundo Bergson, ora restringiu-se a
constatar a unio irredutvel e inexplicvel dos mesmos, ora definiu o corpo como um
instrumento da alma. Devemos assumir uma postura diferente em relao ao problema,
necessrio nos tornarmos novamente estudantes e efetivarmos uma espcie de movimento
terico que nos coloque antes do seu prprio surgimento e, conseqentemente, antes de todas
as dificuldades que surgiram aps sua colocao. Adotaremos desse modo uma atitude
carregada da ingenuidade do senso comum, mas ao mesmo tempo impulsionada pela liberao
do excesso de carga adquirido no caminho, uma retirada de obstculos, para assim irmos ao
estudo dos fatos, examinados sem idias preconcebidas.27 Dessa forma, seria possvel,
finalmente, verificarmos se tais hipteses so realmente vlidas.
No dizer de Prado Jnior:
A filosofia , para Bergson, um perene recomear, no no sentido de um retorno constante origem absoluta do mundo, mas no sentido que a sua descrio sempre deve recomear, para acompanhar a experincia continuamente nova de uma realidade que est sempre em vias de se fazer.28
Livrando-se de idias preconcebidas e partindo para a observao, para a experincia,
Bergson redefine o crebro como um rgo que nos mantm atentos vida e que tem, dentre
suas funes, a exteriorizao da conscincia, sua mimetizao. E conclui, apesar do que a
filosofia e a cincia defendem, que h apenas solidariedade, e no equivalncia, entre a
conscincia e o crebro, entre corpo e esprito, elegendo o estudo da memria como caminho
para resolver os impasses que envolvem a relao entre corpo e alma.
Para ele, a memria o ponto de interseco entre esprito e matria; , tambm, o
terreno onde encontraremos, graas aos avanos da cincia, os dados para comprovar a tese da
solidariedade no redutvel entre o mental e o cerebral. Ainda no Prefcio, presenciamos o
27 M.M., p. 5 28 PRADO JNIOR, B. Presena e Campo Transcendental, p. 165. (Grifo do autor)
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aparecimento, ainda que superficial, de algumas oposies bergsonianas s teses defendidas
pela cincia para a relao corpo-alma, especialmente quando a cincia faz uso de algumas
teorias filosficas. Nosso autor encerra seu Prefcio deixando claro seu espanto ao descobrir
que o estudo da memria seria a chave para a relao entre corpo e alma.
Temos, assim, um movimento de ampliao do problema em vrias direes.
Reconstruindo as linhas que fazem surgir o problema da relao entre corpo e alma, Bergson
expe as solues propostas pela filosofia e pela cincia e faz, finalmente, convergir as linhas
e as solues para um nico ponto que pode elucidar a confuso: o estudo da memria, mais
especificamente o estudo da memria das palavras ou, mais restritamente ainda, uma
interseco que converge para o estudo das afasias. O que parece marcante no prefcio de
Matria e Memria, em primeiro lugar, o pedido feito logo de incio: pedimos no entanto
que o leitor esquea.29 Por outro lado, tambm chama ateno o seu espanto ao eleger o
estudo das afasias como uma boa colocao do problema da relao entre corpo e alma. O que
deve ser esquecido? E o que h por detrs deste pedido?
O que deve ser esquecido justamente a mediao da linguagem na busca da soluo
do problema. Especificamente em Matria e Memria, Bergson trata do tradicional problema
metafsico das relaes entre esprito e matria mostrando que as concepes idealista e
realista da matria se furtaram anlise dos fatos e se refugiaram em conceitos
antecipadamente definidos e depositados na linguagem. Essa operao, afirma Bergson, criou
o vcio que est no incio desses sistemas filosficos: eles se apoiaram na pretenso de nos
informar sobre o absoluto construindo conceitos que seriam, ao mesmo tempo, uma idia
explicativa e um princpio agente30. Com isto, desviaram-se da experincia e procuraram se
sustentar nas definies conceituais, alargando ao mximo a abrangncia das mesmas para a
explicao do real.
29 M.M., p. 3 (Grifo nosso) 30 P.M., p 245
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O que filsofos e cientistas parecem no perceber que, ao estender a designao que
um conceito pode dar a uma coisa totalidade do real, no h ganhos, mas somente perdas, j
que uma palavra pode ter um sentido definido quando ela designa uma coisa; mas ela o perde
quando o queremos aplicar a todas as coisas31. Eles se esquecem que os conceitos esto
inclusos nas palavras32 e, na sua maioria, so produzidos visando uma aplicao prtica que
venha a resolver problemas e a contribuir para o bom andamento dos organismos sociais.
Dessa forma, uma confuso engendrada, pois nos conceitos no encontraremos nada de
metafsica, j que so somente recortes do real que provavelmente jamais conseguiriam dar
conta de todas as articulaes do mesmo. Aceitando a formulao dos problemas tal qual eles
so apresentados pela linguagem, a filosofia condena-se a uma espcie de dogmatismo, no
qual ela sempre receber da linguagem solues que j esto pr-fabricadas.
Seria o mesmo que dizer que toda verdade j virtualmente conhecida, que o modelo est depositado nos cartes administrativos da cidade, e que a filosofia um quebra-cabea, em que se trata de reconstruir, com as peas que a sociedade fornece, o desenho que ela no nos quer mostrar.33
Grande parte do trajeto percorrido por Bergson na II Introduo a O Pensamento e o
Movente diz respeito aos problemas que a linguagem interpe entre ns e o conhecimento do
real, desde suas entranhas. Em decorrncia dessa interposio, inicia-se uma busca por parte
da filosofia, financiada pela linguagem, de uma causa, e uma causa da causa, e assim
indefinidamente34, busca que envolve a filosofia e, mais especificamente, a metafsica em
um emaranhado de falsos problemas. Os falsos problemas caracterizam-se por serem
inexistentes, no so mais que palavras, miragens de idias35, criados inteiramente pela
especulao e pela ao humana que tem como essncia fabricar coisas. E, por mais modesta
que seja esta fabricao, ela sempre parte de um modelo ou de um esquema que permita a sua
31 P.M. (II Introd.), p. 246 32 P.M., p. 247 33 Idem, p. 247 34 P.M. (II Introd.), p. 254 35 Idem, p. 256
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efetivao. Assim, necessrio que escapemos das iluses causadas pelos falsos problemas, e
para isso temos que evitar uma impreciso fundamental, nascida da indiferena da
inteligncia s linhas de fato e s articulaes regionais da experincia36, pois como vimos
acima justamente a linguagem e a inteligncia que induzem a interpretao filosfica ao
erro, obrigando-a a se guiar pela questo por que o Ser e no o Nada? . Portanto temos que
analisar dentro da filosofia bergsoniana a que remete a noo de falso problema, e essa anlise
nos conduz de imediato ao exame de duas iluses tericas do entendimento:
Em ltima instncia, o entendimento se define atravs de duas iluses originrias: a da passagem do Nada ao ser e a do Caos ao Cosmo. Se a segunda origina os falsos problemas em que a filosofia se enreda na teoria do conhecimento a primeira a matriz das antinomias em que se perde a ontologia tradicional37
Ao iniciar o quarto captulo do seu livro A Evoluo Criadora, Bergson faz a seguinte
afirmao: Resta-nos examinar concretamente duas iluses tericas com que temos
freqentemente deparado no nosso caminho, e nas quais temos at agora considerado mais as
consequncias que os princpios38. Essa afirmao indica uma mudana de atitude de nosso
autor, pois se em toda sua obra ele se concentrou em denunciar as solues tradicionalmente
oferecidas aos diversos problemas particulares por ele estudados, nesse momento ele passar
da crtica das conseqncias para a crtica dos princpios. E alm de observarmos essa
passagem, o que devemos reter, em primeiro lugar, esta oposio da crtica no nvel das
conseqncias crtica no nvel dos princpios39.
O Prof. Bento Prado diz que os erros cometidos na posio de cada problema
especfico explicitam equvocos filosficos cometidos no nvel das conseqncias, enquanto
36 PRADO JNIOR, B. Presena e Campo Transcendental, p. 32 37 PRADO JNIOR, B. Presena e Campo Transcendental, p. 33 38 Evoluo Criadora, p.269. 39 PRADO JNIOR, B. Presena e Campo Transcendental, p. 35.
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que a explicitao das duas iluses gerais da inteligncia se d no nvel dos princpios40. A
explicao dos fundamentos dessa maneira de tratar o problema j expe aspectos do objeto
efetivo da filosofia (a durao real) e fornece as condies para a nova posio do problema
em Matria e Memria, entre as quais a principal: afastar os conceitos a priori e penetrar na
experincia concreta, a reflexo modelando-se pela experincia.
Assim, para combater esses problemas que a linguagem interpe entre ns e o
conhecimento do real que Bergson analisa as iluses tericas do pensamento, afirmando que a
realidade s pode se manifestar diretamente para ns como perptuo devir, forma que nossa
inteligncia e nossos sentidos atribuiriam realidade se a olhssemos de uma forma
desinteressada e imediata. Mas o fato que nossa inteligncia tem como carter gentico uma
preocupao com as necessidades advindas da ao humana sobre a realidade, o que faz com
que a mesma s nos oferea instantneos, recortes imveis sobre o devir da matria que so
pontos de apoio para a ao. Assim, tornamo-nos escravos da inteligncia que, por sua vez,
escrava da ao. Nossa especulao sobre a natureza do real estar fadada a apreender, do
devir, somente estados e, da durao das coisas e da minha prpria, somente instantes.
Falaremos do devir e da durao, mas estaremos pensando em outra coisa. Esta seria a
primeira iluso, e a mais ntida, segundo Bergson, por que diz respeito a como a inteligncia
v o real. Ele a define da seguinte maneira: Consiste em acreditar que possvel pensar o
instvel por intermdio do estvel, o movente por intermdio do imvel.41
40 As iluses do entendimento (prioridade do Nada, da Desordem, do Imvel, do Possvel) so denunciadas ao longo de toda a obra de Bergson. Mas esta denncia feita sempre, exceto neste captulo (captulo quarto de A Evoluo Criadora) e em La pense et le mouvant, no nvel das conseqncias, isto , da anlise de problemas particulares. As solues tradicionais oferecidas aos problemas da liberdade, da relao psicofisiolgica, da evoluo das espcies, fundavam-se em proposies e teses ontolgicas inconscientes. A recusa do determinismo e do livre-arbtrio em sua forma tradicional, do paralelismo e do epifenomenismo, do mecanicismo e do finalismo, era ao mesmo tempo crtica e recusa dessa ontologia latente. Mas ela no era patenteada e diretamente tematizada pela crtica bergsoniana. Era recusada como horizonte de uma explicao que no dava conta do explicado e que tinha contra si os dados e o testemunho irrecusvel da experincia. PRADO JNIOR, B. Presena e Campo Transcendental, p. 35 (Grifo nosso). 41 Evoluo Criadora, p.270.
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A segunda iluso tem ntima ligao com a primeira, uma vez que ambas tm a mesma
origem: o hbito de usarmos, na especulao, um processo que somente vlido para a
prtica, para a ao. Qual a finalidade de uma ao? Ela traz em seu interior um desejo de
repor um objeto cuja ausncia sentida ou de criar qualquer coisa que ainda no exista, ou
seja, objeto ou coisa que so necessrios para a sua consecuo no plano da realidade, nesse
sentido especialssimo ela preenche um vazio e vai do vazio ao pleno, de uma ausncia a uma
presena, do irreal ao real42. Obviamente, aqui, o termo realidade dir respeito somente
ao surgida de uma ateno que nos exige uma direo a seguir, j que, para Bergson,
impossvel que no estejamos mergulhados em realidades43. Temos ento uma espcie de
dana entre ausncia e presena, expressa em nossa decepo ao encontrarmos uma realidade
que no era a que estvamos procurando, ou seja, a ausncia de uma realidade desejada seria
somente a presena de uma outra realidade que no ela. A finalidade da ao est ento
descrita; porm, estendemos esta descrio para o terreno da especulao sobre a natureza das
coisas mesmo quando elas no demonstram nenhum interesse prtico, nenhuma exigncia de
ao da nossa parte. Acabamos de presenciar o surgimento da segunda iluso do pensamento,
para Bergson:
Tal como a primeira, deriva dos hbitos estticos contrados pela nossa inteligncia quando ela prepara a nossa ao sobre as coisas. Tal como passamos pelo imvel para chegar ao movente, do mesmo modo que nos servimos do vazio para pensar o pleno.44
No nos enganemos. Bergson no est apenas explicitando as iluses causadas pelo
uso das estratgias da vida prtica, que so direcionadas para a ao, em um domnio onde
elas no so vlidas, que o da especulao. A sua inteno vai muito alm, o seu desejo
muito mais amplo, ele quer discutir o que, segundo ele, diz respeito ao problema fundamental
do conhecimento, consignado na seguinte afirmao:
42 Idem, p.270. 43 Idem, p.270. 44 Evoluo Criadora, p.271.
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Dissemos que o problema consiste em saber qual a razo de nas coisas existir ordem e no desordem. Mas este problema s adquire sentido se supusermos que a desordem, tomada como ausncia de ordem, possvel, imaginvel ou concebvel.45
Ento, como podemos explicar a existncia da desordem? Para Bergson, somente na
ordem o real pode existir. O que afirmamos quando dizemos que encontramos uma desordem
seria a presena de duas formas de ordem, sendo que a presena de uma delas exclui
imediatamente a presena da outra. Afirmar, ento, a presena de uma desordem seria apenas
dizer que no encontramos uma das duas ordens que procurvamos, e no a ausncia total de
ordem. Estaramos apenas exprimindo a nossa decepo a respeito de uma ordem do real que
no nos despertaria nenhum tipo de interesse atual. Ento, se tentarmos negar inteiramente a
idia de ordem, entraremos em um crculo vicioso onde passaremos indefinidamente de uma
espcie de ordem para a outra: a pretensa supresso de ambas implica a presena das duas46.
Mas o que est implcito nesta anlise da idia de desordem que ela s tem sua valia no
campo da vida prtica, fora dela deixamos de estar perante uma idia e passamos a estar
somente diante de uma palavra.
Qual a origem do ser, matria, esprito? Por que ordem e no desordem? Bergson
defende que este problema diz respeito mais ao que no , do que ao que , pois o que nos
encaminha busca da origem do ser o fato de que figuramos ou melhor acreditamos nos
figurar, que o ser veio preencher um vazio e que o nada preexistiria logicamente ao ser47.
Mas as coisas j esto a, o ser, a ordem, ou o existente so a prpria realidade48. Ou seja, o
ser e a ordem, a prpria realidade, so transformados em possibilidade de uma possibilidade,
o no-ser e a desordem.
45 Idem, p.271 46 Evoluo Criadora, p.271 47 P.M. (II Introd.), p. 254 48 DELEUZE, GILLES. Bergsonismo, p.11
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Voltando ao pedido de esquecimento, realizado por Bergson no incio de Matria e
Memria, veremos que o seu principal objetivo justamente o que analisamos at aqui: o de
evitar que nos tornemos presas fceis da linguagem, da sua utilidade prtica em vista da vida
social, e que, conseqentemente, fiquemos margem, quando muito superfcie de
problemas que nos pedem um mergulho profundo:
(...) a inteligncia adquiriu hbitos necessrios vida prtica: tais hbitos, transportados para o domnio da especulao, nos mostraram uma realidade deformada ou reformada, em todo caso organizada, mas este arranjo no se impe inelutavelmente a ns; ele vem de ns; se o fizemos, podemos desfaze-lo; e entramos ento em contato direto com a realidade.49
Em Matria e Memria, esse pedido tem um alvo certo, o esquecimento de conceitos e
teorias que juntaram coisas de gneros diferentes, na tentativa frustrada de explicar a relao
corpo-alma, tendo como causa, na maioria das vezes, os vcios de uma metafsica que surgiu
para atender s necessidades da fsica50 e, portanto, voltada para o espao, ou mesmo de
crticas que levaram a metafsica a operar fora do tempo, e conseqentemente, decretaram sua
impossibilidade de alcanar conhecimentos concretos.
preciso ento voltar ao conceito, perguntar sobre sua gnese, para que possamos
verificar sua legitimidade como instrumento da metafsica, pois essa atitude nos permite ver
com clareza o surgimento de suas articulaes com o real e nos permite enxergar que os
conceitos podem nos levar a um tratamento equivocado do real, uma vez que eles trabalham
sobre o princpio de semelhana e, assim, nos conduzem a uma iluso fatal. Os conceitos
buscam no objeto a ser conhecido seja corpo, seja alma , partes que se assemelhem a
outros objetos e, como a semelhana uma propriedade do objeto, como uma propriedade
49 P.M. (I Introd.), p. 232 50 (...) como a filosofia do sculo XVII foi conduzida a esta hiptese? Certamente no foi pela anatomia e fisiologia do crebro, cincias que mal existiam; tambm no foi pelo estudo da estrutura, das funes e das leses do esprito. No, esta hiptese foi naturalmente deduzida dos princpios gerais de uma metafsica que era concebida, ao menos em grande parte, para dar corpo s esperanas da fsica moderna. As descobertas que se seguiram ao Renascimento principalmente as de Kepler e Galileu haviam revelado a possibilidade de reduzir os problemas astronmicos e fsicos a problemas da mecnica. A alma e o corpo, p. 208.
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parece ser sempre uma parte do objeto51, somos levados a crer que poderemos, justapondo
conceitos a conceitos, recompor o objeto a partir de suas partes. Mas o fato que no
podemos reconstruir o todo partindo de suas partes como fazemos, por exemplo, ao
montarmos um quebra-cabeas, pois nesse caso sabemos de antemo que cada pea
corresponde figura que queremos montar. No caso de um objeto qualquer, do qual
construmos seu equivalente intelectual juntando conceitos justapostos advindos da sua
semelhana com outros objetos, s obteremos sua sombra. E esta sombra, que conseguimos
do objeto, no nos dar nunca o conhecimento interior e metafsico do real, ao contrrio, ele
s servir aos propsitos de nossa inteligncia no seu direcionamento gentico para a ao.
simplesmente para se servir dele, cada conceito (como, alis, cada sensao) sendo uma questo prtica que nossa atividade pe realidade e qual a realidade responder, como convm neste comrcio, por um sim ou por um no. Mas assim a inteligncia deixa escapar do real, o que a sua prpria essncia.52
No caso da relao entre corpo e alma, Bergson proceder da impossibilidade de
convivncia entre realismo e idealismo no que diz respeito apreenso do real, para
demonstrar a contradio interna das teses defendidas pelo paralelismo psicofisiolgico.
Diminuamos a velocidade com que apresentamos as propostas de Bergson. Voltemos
ao Prefcio de Matria e Memria e verifiquemos que o autor nos apresenta resumidamente
algo muito caro sua filosofia: seu mtodo.
1.3 Descoberta da durao e crtica da anlise
Bergson afirma, na II Introduo a O Pensamento e o Movente, a importncia da
escolha de um mtodo no desenvolvimento de sua obra filosfica. Refazendo seu itinerrio
filosfico luz do mtodo por ele utilizado a intuio , ele mostra como foi possvel, a
partir dela, o encaminhamento de uma obra para outra.
51 I.M., p.137. 52 I.M., p. 151.
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No poderamos jamais ter tirado de nosso livro Matria e Memria, que precedeu A Evoluo Criadora, uma verdadeira doutrina da evoluo (seria no mximo uma aparncia); nem de nosso Ensaio sobre os Dados Imediatos da Conscincia uma teoria das relaes da alma com o corpo como aquela que expusemos em seguida em Matria e Memria (teramos apenas uma construo hipottica), nem da pseudofilosofia qual estvamos ligados antes dos Dados Imediatos isto , as noes gerais armazenadas na linguagem as concluses acerca da durao e da vida interior que apresentamos em nosso primeiro trabalho. Nossa iniciao no verdadeiro mtodo filosfico data do dia em que rejeitamos as solues verbais, tendo encontrado na vida interior um primeiro campo de experincia. Todo o progresso posterior foi um alargamento desse campo. Estender logicamente uma concluso, aplic-la a outros objetos sem ter realmente alargado o crculo de suas investigaes, uma inclinao natural do esprito humano, mas qual preciso no ceder nunca.53
em Matria e Memria, portanto, que o autor trata do problema metafsico da
relao corpo-alma, evitando construir sua soluo partindo da extenso de teorias j
existentes sobre a idealidade ou a realidade da matria. Ele procura, ao contrrio, resolver o
problema partindo de sua boa colocao, buscando, nas diversas regies da experincia54,
fatos precisos que permitam resolv-lo. Todo o esforo realizado na re-definio do termo
matria acontece tendo em vista encontrar o ponto em que ocorre a interseco entre corpo e
esprito, pois neste ponto veremos, com clareza, aparecer a boa colocao do problema e sua
soluo, posio e soluo do problema esto aqui bem prximos de se equivaler55. Antes
de chegarmos l, porm, nos lanaremos por diversas linhas de fatos56, que no nos daro a
resposta exata, mas nos indicaro, passo a passo, o caminho a ser seguido. Em Matria e
Memria, como j dissemos anteriormente, o alargamento do crculo de investigaes tem
como alvo o estudo da memria:
Mas pouco importa a razo: ningum contestar, creio eu, que no conjunto de fatos capazes de lanar alguma luz sobre a relao psicofisiolgica, os
53 P.M. (II Introd.), p. 271 (Grifo do autor). 54 Os Pensadores. p. 190 (Conferncia: A Conscincia e a vida), Ed. Nova Cultura, 1989. 55 P.M., p. 247 56 Em suma, possumos desde j um certo nmero de linhas de fatos, que no vo to longe quanto seria desejvel [...]. Cada uma, tomada separadamente, nos conduzir a uma concluso simplesmente provvel; mas todas juntas, pela sua convergncia, nos colocaro em presena de uma tal acumulao de probabilidades que nos sentiremos, espero, no caminho da certeza. Conferncia: A Conscincia e a vida. In Os Pensadores. p. 190, Ed. Nova Cultural, 1989.
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que concernem memria, seja no estado normal, seja no estado patolgico, ocupam um lugar privilegiado.57
Este alargamento encaminha com clareza a discusso, pois ele evita o uso de
princpios gerais58 que no so mais que construes da linguagem, criados em grande parte
visando o agir humano na sua prtica quase constante de fabricar utenslios que facilitem a
sua sobrevivncia, com o conseqente enquadramento de toda a realidade, seja ela espiritual
ou material, em moldes de quantificao e medida. A investigao tenta, a todo momento,
acompanhar as sinuosidades apresentadas pelo real, gerando uma possibilidade de
reconstruo contnua do saber. Verdades mveis, adaptveis s situaes, mltiplos pontos
de vista que no se confundem e que, ao contrrio, nos conduzem por linhas de fatos at o
ponto preciso onde encontraremos as solues, no mais fixas, mas to prximas do real que
nos conduziro a um novo movimento de busca incessante, mesmo que, para tanto, gastemos
toda nossa vida. E, dessa forma, perceberemos algo que se constituiu no caminho, na marcha,
um mtodo, a intuio.
No so raras as obras que apontam Matria e Memria e, mais especificamente, o seu
primeiro captulo, como uma demonstrao clara do uso do mtodo bergsoniano a intuio
para a resoluo do problema da relao entre corpo e alma. E com esse propsito que o
descreveremos. Esse primeiro captulo de Matria e Memria mostra mais do que qualquer
outro texto a complexidade do manejo da intuio como mtodo de diviso59.
Mas antes de avanarmos devemos deixar claro que o prprio Bergson relata sua
hesitao, no que diz respeito ao uso da palavra intuio, para nomear seu mtodo: Intuio
, alis, uma palavra diante da qual hesitamos muito tempo60. Como nomear um mtodo por
intuio, se essa palavra designa, de imediato, um contato direto com um objeto qualquer, 57 M.M., p. 6. 58 A isto se abandona ingenuamente a filosofia quando ela dialtica pura, isto , tentativa para construir uma metafsica com os conhecimentos rudimentares que se encontram armazenados na linguagem. Ela continua a faz-lo quando erige concluses tiradas de certos fatos em princpios gerais aplicveis ao resto das coisas. P.M., p. 271. 59 DELEUZE, GILLES. Bergsonismo, p.16 60 P.M., p. 233 (Grifo do autor).
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como que contradizendo o que se supe ser caracterstica especfica a um mtodo? E, ainda,
como no considerar o carter negativo da intuio sensvel, o caos causado pelas
informaes concretas e imediatas que recebemos pelos sentidos, provocando, na maioria das
vezes, um tipo de viso sbita, inefvel, inexprimvel em relao ao percebido?
No entanto, mesmo diante de sua hesitao inicial, Bergson afirma que s atravs da
intuio conseguiremos dar filosofia um carter de preciso e que, entre todos os termos que
se afirmam como modos de conhecer, este o que mais lhe satisfaz.
Neste momento do nosso trabalho, o objetivo apresentar o mtodo bergsoniano, em
sua complexidade, evidenciando a possibilidade por ele inaugurada de nova abordagem de
problemas at ento insolveis. A primeira questo que nos aparece : qual a origem da
intuio como mtodo no pensamento bergsoniano? A intuio adotada gradualmente como
mtodo por Bergson medida que ele aprofunda seus estudos sobre a durao, o tempo
real61. Dessa forma, cabe-nos primeiro apresentar a descoberta da durao para depois
expormos a intuio como mtodo, pois somente depois de esboado e preenchido o
sentido do conceito de durao que se determina o sentido da intuio62.
O prprio Bergson relata seu desgosto com a falta de preciso da filosofia, com suas
explicaes to abrangentes e abstratas que pretendem valer para este mundo ou para outro
qualquer que imaginemos, situao totalmente distinta daquela da explicao cientfica, na
qual encontramos uma evidncia completa e crescente. O autor apresenta tambm seu desejo
de encontrar um caminho que nos levasse, em filosofia, a um tipo de explicao que aderisse
de tal forma a seu objeto que no apresentasse qualquer espao ou aresta onde outra
explicao viesse a se alojar. Uma relao de aderncia entre objeto e sua respectiva
explicao.
61 P.M., p. 233 62 PRADO JNIOR, B. Presena e Campo Transcendental, p. 40.
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Esse ideal de preciso apresentado por Bergson na eleio da intuio como mtodo j
expressa as duas faces do mesmo, de um lado ele conduz raiz dos erros da filosofia
tradicional, do outro busca a preciso que nos permite alcanar a via real do saber, expressa
na projeo ideal de uma explicao que apresente efetivamente o explicado63. Assim para
nos livrar do julgo da inteligncia preciso que nos livremos das iluses por ela causadas.
Mas como conseguir, de um mtodo baseado na intuio, essa aderncia ao objeto, sua
descrio exata, sem nenhuma brecha que permita a entrada de nenhuma outra descrio? Se a
intuio tem como caracterstica a imediatez, um conhecimento direto, e, portanto, passvel de
ingenuidade, contrariando o significado de mtodo conhecimento por mediao, com uso
intenso da razo para se livrar do conhecimento ingnuo oferecido pelos sentidos como
eleger a intuio um mtodo?
Porm, justamente o que parece descredenciar a intuio como mtodo exatamente o
que a qualifica e leva Bergson a fazer a seguinte afirmao: Mas a intuio, se ela possvel,
um ato simples64, simplicidade que evita o erro operacional da inteligncia, pois recusa
interpretaes a priori e procura na experincia e no nas definies ou descries formuladas
pela linguagem acompanhar todas as ondulaes do real, a clareza da idia radicalmente
nova e absolutamente simples, que capta mais ou menos uma intuio65. Mas esta uma
operao que nos custa caro, pois nossa inteligncia, como vimos, fadada a procurar
identidades, fixa-se no geomtrico, busca agrupar o mximo de conhecimentos em um nico
gnero. E justamente desse vcio natural da inteligncia que surgem todo tipo de
dificuldades, pois ela divide o real em partes que, reagrupadas, no conseguem explic-lo. A
inteligncia agrupa diversas coisas de gneros diferentes como se fossem iguais, como se 63 As duas faces no mantm, no interior do mtodo, relaes de exterioridade: imbricam-se internamente, constituindo-lhe a estrutura secreta. Simtricas, cada uma traz em si refletida a imagem inversa da outra. A destruio das iluses da inteligncia, das antinomias que lhe marcam essencialmente o movimento, o reconhecimento, enfim, da vaidade da dialtica dos conceitos, indicam j os caminhos da investigao positiva e esboam a geografia da autntica problemtica filosfica. A lgica da iluso e a lgica da verdade correspondem-se como o avesso e o direito. PRADO JNIOR, B. Presena e Campo Transcendental, p. 40. 64 I.M., p. 135. 65 P.M., p. 236
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possussem a mesma natureza. J a intuio significa, pois, primeiramente conscincia, mas
conscincia imediata, viso que quase no se distingue do objeto visto, conhecimento que
contato e mesmo coincidncia66.Ou ainda:
relativo o conhecimento simblico por conceitos preexistentes que vai do fixo ao movente, mas no o conhecimento intuitivo que se instala no movente e adota a prpria vida das coisas. Esta intuio atinge um absoluto.67
Portanto, a intuio como um ato simples que se fixa na experincia, que recusa a
circunscrio de conceitos criados para possibilitar a humanidade uma maior facilidade na
resoluo de problemas que dizem respeito sua sobrevivncia justamente o que permite a
Bergson tom-la como mtodo, uma vez que se encontra despojada das complexas operaes
efetivadas pela inteligncia para alinhar e classificar o real.
Assim, ao tratar do problema da relao psicofisiolgica, a intuio procurar,
incansavelmente, um ponto de partida para, da, seguir no s uma, mas diversas linhas de
fatos. Logo, a simplicidade do ato no excluir de si multiplicidades qualitativas nem
diversidade de direes para sua atualizao. No problema proposto, ela partir do estudo da
memria e descobrir a mistos, agrupamentos mal analisados, que levam tanto o metafsico
quanto o cientista ao erro.
Em sua conferncia A conscincia e vida, Bergson faz a seguinte afirmao: Penso de
minha parte, que no h princpio de que pudssemos deduzir matematicamente a soluo dos
grandes problemas68. nesse sentido que a intuio um ato vivido, que acompanha o real
em todas as suas ondulaes, no agindo por deduo, mas fundado na experincia. Dessa
forma, ela tambm capaz de livrar a inteligncia das suas iluses.
Toda essa nova possibilidade de abordagem de problemas que eram tratados como
resolvidos ou, em alguns casos, como de impossvel resoluo, ganham um novo olhar a
66 P.M., p. 234 67 I.M., p. 153 68 Conferncia: A Conscincia e a vida. In Os Pensadores. p. 190, Ed. Nova Cultural, 1989.
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partir da descoberta da durao e conseqente instituio da intuio como mtodo filosfico.
E isto se d quando Bergson conduzido a uma nova idia de tempo; um tempo real, que
escapava furtivamente da apreenso pelas cincias matemticas e que tinha, para ele, um
papel decisivo na teoria da evoluo. E, junto com essa nova idia, uma surpresa, a
descoberta da durao, e o conseqente encaminhamento de suas discusses para um local
que at aquele momento no havia lhe chamado ateno, o domnio da vida interior69.
Mas como se daria esta apreenso equivocada do tempo pelas cincias matemticas?
Para Bergson, ao longo de toda a histria da filosofia, tempo e espao foram tratados como
coisas do mesmo gnero, bastando que, ao nos referirmos ao espao, falssemos de
justaposio e, ao nos referirmos ao tempo, de sucesso. Para ele, este aprendizado nos
imposto, ainda nos tempos de colgio70, quando, nos estudos de fsica, aprendemos que a
durao de um movimento qualquer seria medida em relao trajetria de um mvel e que o
tempo de durao desse movimento apresentar-se-ia na linha onde esse mvel desenvolvesse
sua trajetria. A anlise dessa operao por Bergson revelou um erro que, para ele,
influenciaria a totalidade das operaes de medida: medimos a linha, que imobilidade, mas
o tempo, que mobilidade, nos escapa.
Para Bergson at admissvel que a cincia tenha aceitado esta imitao do tempo,
representada pela fuso entre ele e o espao, uma vez que, na sua funo de prever, ela retira
do mundo material os eventos que se repetem e podem ser calculados e que, portanto, no
duram. A cincia, como criao da inteligncia humana, tem sua destinao gentica para a
ao, e v-se obrigada a fracionar o movimento da durao, agindo apenas sobre pontos fixos
uma vez que s na fixidez sua ao poder ser preparada e engendrada; dessa forma, ela
69 Tal era a questo. Atravs dela penetramos no domnio da vida interior, no qual at ento no estvamos interessados. P.M., p.222 70 Sabamos bem, desde os anos de colgio, que a durao se mede pela trajetria de um mvel e que o tempo matemtico uma linha; mas no havamos ainda notado que esta operao decide radicalmente acerca de todas as outras operaes de medida, porque ela no se realiza sobre um aspecto ou sobre um efeito representativo que se quer medir, mas sobre algo que o exclui. P.M., p. 222.
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detm o mvel e o tempo, simultaneamente, em paradas virtuais e sabe, ao fim, o estar, o
passar e o estar desse mvel, construindo assim sua ao tudo fixado, sua ao
executada. Esse o tempo da ao prtica, o meio ambiente do entendimento humano. A
cincia pensa na medida da durao e se faz cega diante da durao em si.
No entanto para o filsofo, a durao assim definida estava contaminada pelo vrus do
entendimento, da linguagem e da cincia. Tudo previsto e calculado acessaramos o futuro,
pois ele estaria sempre no presente sua causa e jamais traria qualquer novidade ou
imprevisibilidade, tudo est dado.
Mas o que nos indicam as afirmaes acima? O que nosso autor quer nos mostrar
justamente o erro operacional da nossa inteligncia, pois ela descarta o tempo real, a durao,
por ser esse o direcionamento do nosso entendimento71. O entendimento humano congela a
durao, tanto no movimento como na mudana, vendo extremidades de intervalos ou de
momentos. Envolvidos na iluso da linguagem, tratamos o tempo, a durao, como extenso.
A linguagem, ferramenta da inteligncia, trabalha no espao e, somente a, ela realiza um
recorte do devir para executar aes que garantam a manuteno da vida em fins de
sociabilidade, de adaptao e criao de instrumentos de ao no espao.
Podemos constatar esse fato tambm no Prefcio do Ensaio sobre os dados imediatos
da conscincia, ali Bergson j anuncia o vnculo entre linguagem e sua utilidade na vida
prtica, visto o papel por ela desempenhado de nomear os objetos, seja em palavras
enunciadas, seja em pensamentos. A coincidncia entre esses objetos e a linguagem j aponta
para a descontinuidade do espao.
Exprimimo-nos necessariamente por palavras e pensamos quase sempre no espao. Isto , a linguagem exige que estabeleamos entre as nossas idias as
71 Mas se a cincia e o senso comum esto de acordo, se a inteligncia, espontnea ou refletida, descarta o tempo real, no seria porque a destinao de nosso entendimento exige? Foi bem isso o que cremos perceber estudando a estrutura do entendimento humano. Pareceu-nos que uma de suas funes era justamente mascarar a durao, seja no movimento, seja na mudana. P.M., p. 223
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mesmas distines ntidas e precisas, a mesma descontinuidade que entre os objetos materiais.72
Descrevemos assim como a inteligncia e a linguagem mascaram a durao, mas ainda
necessrio que demonstremos a cegueira da cincia que indicamos anteriormente. Vejamos:
a fsica newtoniana afirma que s h movimento se a distncia entre um objeto e o referencial
escolhido variar com o tempo. Aqui est o erro apontado pela anlise bergsoniana do tempo:
sendo a essncia do tempo passar, nenhuma de suas partes poderia permanecer na presena da
outra. Bergson no questiona que o tempo implique sucesso, a sua discordncia que
entendamos esta sucesso como justaposio de partes do tempo, pois a passagem no pode
ser pensada como alinhamento de partes no espao, ou como um acrscimo dessas partes a
elas mesmas, ela envolve algum tipo de conservao (virtual), j que no pode tambm ser
reduzida ao desaparecimento imediato de um momento na medida em que se passa ao outro:
(...) a passagem, que movimento, no tem nada em comum com a parada, que imobilidade, pois ento coincidiria com ela, o que seria contraditrio. Os pontos no esto no movimento, como partes, nem mesmo sob o movimento, como lugares do mvel. Eles so simplesmente projetados por ns sob o movimento, como lugares, onde estaria, se parasse, um mvel que, por hiptese, no se detm.73
Esclareamos um pouco mais essa afirmao bergsoniana: imaginemos o movimento
de um corpo qualquer em um plano, uma linha, iniciado no tempo zero e terminado no tempo
dez; para a fsica, esse corpo passou no tempo um, no tempo dois e assim sucessivamente at
o tempo dez. Nota-se, portanto, que as cincias matemticas no apreendem o tempo e sua
passagem, mas somente medem os aspectos e efeitos da sobreposio de momentos somente
os momentos, os intervalos, so contados e eles representam as paradas virtuais do tempo.
Dessa forma, a medida realizada exclui a passagem do tempo, j que ela feita sobre a linha,
que imvel, e desconsidera o aspecto, o efeito representativo74 do que se quer medir, que a
72 E.D.I.C., p.9 73 I.M. p, 146 (Grifo do autor) 74 P.M. (I Introd.), p. 222
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prpria passagem do tempo. Medimos a linha que o feito, uma espcie de presente imvel, e
exclumos o tempo que o que se faz e mesmo o que faz com que tudo se faa.75
justamente essa medida do tempo proposta pela fsica, que Bergson declara ser
incompatvel com a durao, pois ela apenas enumera as paradas virtuais do tempo, s efetiva
uma contagem. Pois se dissermos que um certo evento acontecer aps um certo tempo,
estaremos afirmando simplesmente que, aps contarmos uma certa quantidade de
simultaneidades, este evento ocorrer. Mas entre estas simultaneidades poderemos criar
outras, infinitamente, pois elas esto em uma linha indefinidamente divisvel, elas esto presas
ao espao. Assim, para o fsico, o matemtico e o astrnomo, mesmo que o tempo se
acelerasse ao infinito, nada mudaria no movimento observado. Contudo, para uma
conscincia que no se interessasse em medir a durao, mas que, sentindo e vivendo esta
durao, s desejasse simplesmente v-la, coincidindo-se com ela, at fazer coincidir a
ateno que se fixa e o tempo que escapa76, o que ela veria?
Bergson defende que o olhar lanado por esta conscincia sobre o tempo seria
totalmente diferente. Este, inclusive, ser um dos problemas tratados por ele no
desenvolvimento do primeiro captulo de Matria e Memria. Essa conscincia no veria o
tempo fragmentado da cincia, mas sua integralidade, ela no se basearia mais em smbolos
que descrevem o real por semelhanas, ela buscaria a experincia mvel e plena, abandonaria
esse tempo traduzido por um espao vazio, simplesmente concebido nunca percebido,
transformado em smbolo77. No haveria, para ela, pausas do tempo, pois ela romperia o
invlucro espacial que o envolve o tempo real, a durao, ela iria alm de conceitos
produzidos por palavras que o imobilizaram e o transformaram em uma descontinuidade:
75 Idem, p. 222 76 Idem, p. 222 77 As posies do mvel tornamos a dizer, no so partes do movimento: so pontos do espao que, supostamente, subexiste ao movimento. Este espao imvel e vazio, simplesmente concebido, jamais percebido, tem justamente o valor de um smbolo. Como, manipulando smbolos, fabricaramos realidade? I.M., p.147
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A espacialidade, ento, e, num sentido todo especial, a sociabilidade, so as verdadeiras causas de relatividade de nosso conhecimento. Afastando este vu, reencontramos o imediato e tocamos um absoluto78
Voltemos ao olhar lanado pela conscincia, primeiro em relao ao movimento. J
afirmamos que a concepo de tempo da cincia tem como caracterstica no durar, pois o
movimento dividido at a sua total imobilizao, voltado inteiramente para a ao prtica,
criando uma espcie de meio ambiente propcio para o desenvolvimento do entendimento
humano. A afirmao de Bergson categrica: o tempo e o movimento so outra coisa79,
explicitemos melhor o que ocorre: a reconstruo do movimento se dar pela juno dos
momentos do tempo e das posies do mvel (portanto, imobilidades) que so somente o
resultado dos recortes do real realizados por nosso entendimento. Uma substituio voltada
para a ao prtica, do tempo e do movimento real, que servir somente linguagem e ao
clculo (em ltima instncia, cincia e a sua maneira de prever) nada mais que um produto
da indstria da inteligncia.
E em relao mudana? A mudana o aspecto da durao que foi contaminado
pelas paradas do tempo invadido pelo conceito de espao. O entendimento humano decompe
a mudana em sucesso e distino de estados. Essa decomposio da mudana engendra uma
contradio: os estados variam, mudam. E essa variao e essa mudana garantem a durao
dos estados; na realidade, nenhum deles acaba ou comea, mas todos se prolongam uns nos
outros80 o contrrio de estados justapostos e distintos um do outro, com incio e fim,
portanto, sem durao. Sendo assim, o entendimento, novamente, que divide os estados o
quanto for necessrio para a ao. A viso do entendimento justape os estados, criando uma
espcie de clone imperfeito do tempo real. Uma recomposio artificial e esttica do tempo e
do movimento. O socorro chega rpido e a confuso desfeita. Bergson afirma:
78 P.M. (I. Introdu.), p. 231 79 P.M. (I Introd.), p. 224 80 I.M., p.136
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O real no so os estados, simples instantneos tomados por ns, ainda uma vez, ao longo da mudana, , ao contrrio, o fluxo, a continuidade de transio, a mudana ela mesma.81
O fato que, ao partir dessa concepo viciada do movimento, da mudana e do
tempo, a metafsica executou uma m formulao dos seus problemas e, ao mesmo tempo,
tornou-se uma presa fcil dos conceitos oferecidos pela linguagem, filha do entendimento
espacializador. A metafsica, ento, viu-se obrigada a buscar o real fora do tempo, causando
assim sua imobilizao. Bergson acredita que, at esse momento da histria da filosofia, a
linguagem venceu seu duelo com a metafsica, j que esta se conformou aos moldes propostos
por aquela e pelo senso comum82. Desa dos tamancos, metafsica, esta seria uma boa frase
para expressar o projeto bergsoniano para refazer a metafsica. Ela deveria descer das alturas e
se confundir com a prpria experincia a ento a durao gentilmente se revelaria para ela
como criao contnua, ininterrupto jorro de novidade.83
No entanto, se permanecermos na nossa viso habitual do movimento e da mudana, a
durao ser sucesso de posies e justaposio de estados. Para deixar essa afirmao mais
clara analisemos uma analogia bergsoniana baseada em um filme cinematogrfico. Para
Bergson, o hbito que impregna nossa viso do movimento e da mudana, traduz um dficit
de nossa percepo84, que a condena a ver do filme somente partes, imagem por imagem,
tornando-a incapaz de englobar o filme na sua totalidade, ou seja, o tempo torna-se um espao
ideal, que seria a nossa prpria durao, passado, presente e futuro alinhados em um espao
ideal, dos quais s veremos acontecimentos passados, presentes e futuros, que esto, ainda
mais, impedidos de aparecer-nos em blocos: o fluir da durao seria esta prpria imperfeio,
81 P.M. (I Introd.), p. 224 82 Aqui cabe-nos uma ressalva, pois ser atravs deste mesmo senso comum que Bergson iniciar seu percurso em Matria e Memria, em outros moldes claro, e deste ponto trataremos com mais vigor no decorrer deste trabalho. 83 P.M. (I Introd.), p. 225 84 P.M., (I Introd.), p. 225
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a adio de quantidade negativa.85 Mas abandonemos as alucinaes virulentas,
recoloquemo-nos na durao pura, o vu cai, e uma ao totalmente nova, ainda que interior,
surge.
nesse ponto, a partir de uma discusso iniciada sobre a concepo de tempo da fsica
e a conseqente descoberta da durao, que Bergson conduzido para o estudo da vida
interior e levado a desqualificar a concepo associacionista do esprito, originada da
recomposio artificial da vida consciente, como teoria vlida para explicar a relao corpo-
alma.
Bergson compara a nossa vida interior a uma melodia, na qual a mudana de uma
pequena nota que seja acarreta a mudana de toda a melodia. Quando consideramos o tempo
puro, a durao, os estados se transformam em fases, saem da fixidez e ganham movimento
de interpenetrao, uma espcie de expansionismo interior, em que o limite de cada fase
coincide, ultrapassa e se mantm em relao outra. Diferentemente de partes distintas que se
justapem, aqui, se a velocidade varia, tudo muda. E, finalmente, chegamos a uma igualdade
entre contedo e durao.
Mas, ao lado de uma conscincia que dura, coloca-se a matria, previsvel, calculvel,
carregada de um presente que anuncia antecipadamente suas possibilidades, to bem
conhecidas da cincia astronomia, fsica, qumica. Como ento relacionar esta conscincia,
que dura, com a matria, que no dura?
Usemos outra analogia bergsoniana: se preparo um copo de gua aucarada, uma
necessidade que eu espere que o acar derreta. Eu sou obrigado a esperar que gua e acar
se misturem, passem de um estado para outro, esperar que gua mais acar se tornem gua
aucarada. Se mexer a gua com mais velocidade, o acar se dissolver mais rpido; ao
contrrio, se mexer mais lentamente, o acar se dissolver mais devagar. A necessidade da
85 Idem, p. 225
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espera varia conforme a velocidade da interpenetrao das fases que se relacionam, se
aumento ou diminuo a velocidade tudo muda interiormente, como tambm na projeo dessa
durao na matria. E justamente esta necessidade de esperar86 que Bergson declara ser o
fato significativo, pois atravs dele perceberemos que contrariamente ao que a cincia
defende, existem sistemas no universo onde o tempo no passa de uma abstrao, de um
recurso criado por ela para conseguir alcanar o seu ideal de previsibilidade.
Logo no incio da II Introduo a O Pensamento e o Movente, encontramos a seguinte
afirmao: essas consideraes sobre a durao pareciam-nos decisivas. Gradualmente, elas
nos levaram a fazer da intuio o mtodo filosfico.87 Como j citamos anteriormente,
houve, por parte de Bergson, uma certa resistncia na eleio da intuio como seu mtodo
filosfico e, nesta passagem, fica ainda mais claro que esta eleio ocorreu de forma gradual,
aos poucos, a partir da descoberta da durao, o filsofo foi conduzido ao mtodo. Cabe-nos,
ento, aps expor a durao, passarmos descrio do mtodo, sua maquinaria.
Mas se comeamos por afastar conceitos j prontos, se nos proporcionamos uma viso direta do real, se subdividimos ento esta realidade, levando em conta suas articulaes, os conceitos novos, que deveremos formar para nos exprimir, sero desta vez talhados na exata medida do objeto: a impreciso s poder nascer de sua extenso a outros objetos, que eles abarcariam igualmente em sua generalidade, mas que devero ser estudados neles mesmos, fora desses conceitos, quando quisermos conhec-los por sua vez.88
No por acaso que preferimos o uso da palavra descrio ao uso da palavra anlise,
pois toda crtica de Bergson aos mtodos filosficos usados at ento concentra-se justamente
na forma como procedem, por anlise, dividindo o real em partes ou estados, analisando cada
um deles e repetindo a diviso o quanto for necessrio, sem antes verificarem a existncia ou
no de um problema, a existncia ou no de diferenas de natureza, por fim, sem verificarem
as articulaes destes estados com o real Mas o erro acreditar que com estes esquemas
86 P.M., p. 227 (Grifo nosso) 87 P.M. (Segunda Parte), p. 233 88 P.M. (I Introd.), p. 232
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recomporamos o real. Nunca repetiramos suficientemente: da intuio podemos passar
anlise, mas no da anlise intuio.89
Mas, a intuio tambm se apresenta como mtodo de diviso, portanto, um mtodo
dualista. Um exemplo claro do uso da intuio como mtodo de diviso seria a dissociao do
misto corpo-alma, at ento tratado de forma a se concluir duas possibilidades: a unio
irredutvel e inexplicvel entre corpo e alma, ou o corpo como instrumento da alma, as duas
como j dissemos conduzindo-nos a uma mesma concluso: o paralelismo das sries ou a
reduo ao cerebral.
A intuio, ento, ser como o fio dado por Ariadne ao heri grego Teseu90, ela nos
permitir sair do labirinto criado pelo relacionamento entre linguagem e metafsica. Teremos,
ainda, como Teseu, que usar a espada, dada por Ariadne, e destruirmos todos os monstros
revestidos em conceitos pr-fabricados, originados das exigncias de uma sociedade cada vez
mais voltada para a produo desenfreada e de uma metafsica que se preocupa com a busca
da origem das origens e, portanto, fixa-se na imobilidade dos conceitos. E encontramos assim
uma noo fundamental: a anlise como mtodo de diviso em blocos fixos, intervalos
espaciais ou pontos e linhas, isto , mtodo que opera sob o horizonte do espao ou pela
espacializao, ou ainda sob a mediao da linguagem; a isto ope-se o mtodo da intuio,
como mtodo da distino em natureza, que separa os elementos puros que compem os
mistos, encontrando a diferena de natureza, logo, de um lado temos o entendimento
trabalhando com uma diviso que trata de partes exteriormente recprocas, de outro temos a
intuio trabalhando com estabelecimento de diferenas.
89 I.M., p.146 90 Teseu era filho de Egeu, rei de Atenas, e de Etra, filha do rei de Trzen, por quem foi criado. (...) Os atenienses encontravam-se, naquela poca, em estado de grande aflio, devido ao tributo que eram obrigados a pagar a Minos, rei de Tebas. Esse tributo consistia em sete jovens e sete donzelas, que eram entregues todos os anos, a fim de serem devorados pelo Minotauro, monstro com corpo de homem e cabea de touro, forte e feroz, que era mantido num labirinto construdo por Ddalo, e to habilmente projetado que quem se visse ali encerrado no conseguiria sair, sem ajuda. (..) Chegando a Creta, os jovens e donzelas foram todos exibidos diante de Minos, e Ariadne, filha do rei, que estava presente, apaixonou-se por Teseu, e este amor foi correspondido. A jovem deu-lhe, ento, uma espada, para enfrentar o Minotauro, e um novelo de linha, graas ao qual poderia encontrar o caminho. Teseu foi bem-sucedido, matando o Minotauro e saindo do labirinto. (BULFINCH, T. O Livro de Ouro da Mitologia, 31 ed. p. 187)
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Se optarmos por este caminho, no encontraremos nenhum subterfgio possvel;
adeus ao artifcio dialtico que distrai a ateno e d em sonho,