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  • 1UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULFACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO RURAL

    MRCIO ZAMBONI NESKE

    ESTILOS DE AGRICULTURA E DINMICAS LOCAIS DE DESENVOLVIMENTO

    RURAL: o caso da Pecuria Familiar no Territrio Alto Camaqu do Rio Grande do

    Sul

    Porto Alegre2009

  • 2MRCIO ZAMBONI NESKE

    ESTILOS DE AGRICULTURA E DINMICAS LOCAIS DE DESENVOLVIMENTO

    RURAL: o caso da Pecuria Familiar no Territrio Alto Camaqu do Rio Grande do

    Sul

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Cincias Econmicas da UFRGS como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Desenvolvimento Rural.

    Orientador: Prof. Dr. Lovois de Andrade Miguel

    Porto Alegre2009

  • 3MRCIO ZAMBONI NESKE

    ESTILOS DE AGRICULTURA E DINMICAS LOCAIS DE DESENVOLVIMENTO

    RURAL: o caso da Pecuria Familiar no Territrio Alto Camaqu do Rio Grande do

    Sul

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Cincias Econmicas da UFRGS como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Desenvolvimento Rural.

    Aprovada em Porto Alegre, em 14 de julho de 2009.

    Banca Examinadora:

    ___________________________________________Prof. Dr. Lovois de Andrade Miguel PresidenteFaculdade de Cincias Econmicas - PGDR/UFRGS

    ___________________________________________Prof. Dr. Eduardo Ernesto Filippi Faculdade de Cincias Econmicas - PGDR/UFRGS

    ___________________________________________Dr. Marcos Flvio Silva BorbaEmbrapa Pecuria Sul - Bag

    ___________________________________________Prof. Dr. Oscar Agustn Torres FigueredoFacultad de Ciencias Agrarias/UNA - Paraguai

  • 4 minha me amada Gelsi,obrigado pelo amor e carinho de todas as horas;

    obrigado por ter transmitido os valores e os princpiosque me permitiram chegar at aqui.

  • 5AGRADECIMENTOS

    Esse trabalho consolida mais uma etapa da minha trajetria pessoal e profissional, e

    abre novos caminhos e desafios para serem percorridos e vencidos daqui para frente. No

    entanto, nessa caminhada nunca estive sozinho e abandonado, pois sempre estiveram ao

    meu lado pessoas especiais para compartilhar os momentos de alegria e dificuldades.

    Dedico aqui algumas palavras de profundo agradecimento as pessoas que sempre

    estiveram comigo e tambm quelas que tive a oportunidade e o privilgio de conhecer ao

    longo dessa caminhada e fortalecer as minhas relaes sociais de laos fortes. Por isso so

    essas pessoas merecedoras do meu agradecimento, admirao e respeito.

    Inicialmente agradeo DEUS pela vida e por todas as oportunidades de novas

    realizaes.

    minha famlia que, mesmo em meio distncia geogrfica, sempre estiveram to

    pertos. Obrigado me, irmos, sobrinhos.

    Ao professor Lovois por ter aceitado essa orientao e por ter oportunizado momentos

    de convivncia bastante agradveis. Obrigado pela amizade, pela simplicidade e pelos

    conhecimentos transmitidos durante a orientao desse trabalho.

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao Programa de Ps-Graduao em

    Desenvolvimento Rural (PGDR), onde tive a oportunidade de alar vos mais altos. Agradeo

    a todos os professores e funcionrios.

    A todos os colegas de Mestrado e Doutorado da turma 2007. Com certeza os

    momentos de estudo e a vida pessoal em Porto Alegre foram mais agradveis na presena de

    vocs, onde o que sempre prevaleceu foi o esprito de amizade. Sem ordem de importncia,

    um agradecimento especial aos amigos Adilson, Camilista (Camilo), Evander, Sandra, Ju,

    Josi, Stella, Otvio, Pati, Elvis, Vika, Maria, Regina, Armando, Dilvan, talo e Remy.

    Ao CNPq pela concesso de bolsa durante o perodo de mestrado.

  • 6Um agradecimento especial ao amigo e pesquisador da Embrapa Pecuria Sul Marcos

    Borba, pois sua motivao, incentivo e entusiasmo junto ao trabalho com a pecuria familiar

    contriburam para dar origem concepo desse trabalho de pesquisa.

    Ao amigo Jos Pedro, pesquisador da Embrapa Pecuria Sul, o qual sempre mostrou-

    se disposto em colaborar com esse trabalho.

    Embrapa Pecuria Sul por ter disponibilizado toda a sua estrutura (recursos

    humanos e materiais) durante a realizao da pesquisa, pois certamente muitas etapas no

    seriam alcanadas sem esse apoio institucional. Meus sinceros agradecimentos aos excelentes

    funcionrios e amigos Harry e Manzke.

    Agradeo aos amigos Leonardo Pompeu, Lidiane Boavista e Mariliane Bento que

    auxiliaram no trabalho de campo.

    Ao amigo Aluzio Guedes, professor da UERGS, que ofereceu valiosas contribuies

    na etapa da pesquisa de campo.

    amiga Raquel Cardoso por ter me recebido em Porto Alegre e tambm pela

    disposio em colaborar durante vrias fases da pesquisa.

    Aos escritrios municipais da Emater dos municpios de Pinheiro Machado e Santana

    da Boa Vista.

    Ao Sindicato Rural dos trabalhadores de Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista.

    Aos pecuaristas familiares do Alto Camaqu. Muito obrigado pela acolhida calorosa

    em suas residncias.

  • 7A pecuria familiar no melhor nem pior que os outros tipos de pecuria,

    apenas diferente.

    Palavras de um dos atores sociais do Territrio Alto Camaqu

  • 8RESUMO

    A reproduo das concepes homogeneizantes preconizadas pela modernizao da agricultura, caracterizada, sobretudo, pela crescente mercantilizao dos fatores de produo, no operou da mesma maneira e intensidade sobre as relaes sociais de produo e trabalho familiares. Essa a condio observada em relao pecuria familiar do territrio Alto Camaqu localizado na metade sul do estado do Rio Grande do Sul, pois muitas das caractersticas do contexto socioeconmico, cultural e ecolgico dos pecuaristas familiares mostraram-se incompatveis as proposies contidas no projeto de modernizao. O objetivo geral orientador dessa pesquisa identificar e analisar como a mercantilizao inseriu-se nos sistemas produtivos dos pecuaristas familiares do territrio Alto Camaqu, e como esse processo foi responsvel pela constituio de estilos de agricultura diferenciados. A operacionalizao da pesquisa emprica adotou como base metodolgica a Anlise-Diagnstico dos Sistemas Agrrios (ADSA), tendo como principal pressuposto captar a diversidade dos tipos de agricultura observveis a partir de um contexto agrrio especfico, e identificar os condicionantes histricos, socioeconmicos, polticos, culturais e ambientais responsveis por essa diferenciao entre os grupos sociais. Mesmo estando os pecuaristas familiares inseridos num ambiente com caractersticas socioeconmica, cultural e ambiental semelhantes, a aparente homogeneidade revela-se heterognea a partir das distintas formas que a mercantilizao encontra-se presente junto aos sistemas produtivos. Assim, foram aparecendo estratgias diferenciadas de reproduo social a partir dos modos que os pecuaristas lograram insero aos mercados, o que determinou a existncia de estilos de agricultura diversificados. No entanto, a mercantilizao da agricultura no desconstituiu a trade terra, famlia e trabalho, pois essas categorias representam uma totalidade e permanecem imbricadas no modo de viver dos pecuaristas familiares. Sendo a mercantilizao um processo que se estabelece em diferentes graus, operando em algumas etapas da produo (antes, dentro e depois da porteira) de acordo os interesses individuais dos agricultores, procurou-se verificar em que medida as relaes existentes entre os estilos de agricultura com a natureza contribuem para a autonomia das unidades familiares. Demonstrou-se que condio tributria aos estilos de agricultura dos pecuaristas familiares do territrio Alto Camaqu, estratgias produtivas que so baseadas e dependentes mais dos intercmbios realizados com a natureza do que as relaes estabelecidas com os mercados.

    Palavras-chave: Pecuria Familiar. Estilos de Agricultura. Territrio Alto Camaqu.

  • 9RESUMEN

    La reproduccin de las concepciones homogenizantes preconizadas por la modernizacin de la agricultura, caracterizada, sobretodo, por la creciente mercantilizacin de los factores de produccin, no opero de la misma manera e intensidad sobre las relaciones sociales de produccin y trabajo de las unidades familiares. Esa es la condicin observada en relacin a la produccin pecuaria familiar del territorio Alto Camaqu, localizado en la mitad sur del estado de Rio Grande do Sul, donde muchas de las caractersticas del contexto socioeconmico, cultural y ecolgico de los productores pecuarios familiares se mostraron incompatibles a las proposiciones contenidas en el proyecto de modernizacin. El objetivo general de esta investigacin es identificar y analizar como la mercantilizacin se insiri en los sistemas productivos de estos productores y como ese proceso fue responsable por la constitucin de estilos de agricultura diferenciados. La operacionalizacin de la investigacin adopt como base metodolgica el Anlisis-Diagnostico de los Sistemas Agrarios (ADSA), teniendo como principal objetivo captar los diferentes tipos de agricultura observables en un contexto agrario especifico, e identificar los condicionantes histricos, socioeconmicos, polticos, culturales y ambientales responsables por esa diferenciacin entre los grupos sociales. As los productores pecuarios familiares estn inseridos en un ambiente con caractersticas socioeconmicas, culturales y ambientales semejantes, la aparente homogeneidad se revela heterognea a partir de las distintas formas en que la mercantilizacin se encuentra presente junto a los sistemas productivos. De esta manera, aparecieron estrategias diferenciadas de reproduccin social a partir de los modos por medio de los cuales los productores pecuarios lograron la insercin en los mercados, lo que determin la existencia de estilos de agricultura diversificados. Sin embargo, la mercantilizacin de la agricultura no desarticul la triada tierra, familia y trabajo, pues esas estrategias representan una totalidad y permanecen imbricadas en el modo de vivir de los productores pecuarios familiares. Siendo la mercantilizacin un proceso que se da en diferentes grados, operando en algunas etapas de la produccin (antes, dentro y despus de la cerca) de acuerdo a los intereses individuales de los agricultores, se procur verificar en que medida las relaciones existentes entre los estilos de agricultura con la naturaleza contribuyen para la autonoma de las unidades familiares. Se demostr que es condicin tributaria a los estilos de agricultura de los productores pecuarios familiares del territorio Alto Camaqu, el desarrollo de estrategias productivas las cuales estn basadas mas en los intercambios realizados con la naturaleza que en las relaciones establecidas con los mercados.

    Palabras clave: Pecuaria familiar. Estilos de agricultura. Territorio Alto Camaqu.

  • 10

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 - Esquema da condio camponesa. .....................................................................42

    FIGURA 2 - Esquema de reproduo relativamente autnomo e historicamente garantido. .44

    FIGURA 3 - Reproduo dependente do mercado..................................................................45

    FIGURA 4 - Principais processos do metabolismo entre a sociedade e a natureza .................49

    FIGURA 5 Diagrama de fluxos de emergia de um sistema de produo genrico...............69

    FIGURA 6 - Mapa de localizao dos municpios que compem a Bacia Hidrogrfica do

    Alto Camaqu, com destaque para os municpios de Pinheiro Machado e Santana da Boa

    Vista..........................................................................................................................................72

    FIGURA 7 - Mapa da leitura da paisagem com as respectivas zonas agroecolgicas

    considerando o agrupamento dos municpios de Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista,

    Rio Grande do Sul, Brasil.........................................................................................................80

    FIGURA 8 - Caractersticas socioeconmicas e ambientais da zona agroecolgica Planalto 82

    FIGURA 9 - Caractersticas socioeconmicas e ambientais da zona agroecolgica Serra.....83

    FIGURA 10 - Caractersticas socioeconmicas e ambientais da zona agroecolgica Arenito 84

    FIGURA 11 - Caractersticas socioeconmicas e ambientais da zona agroecolgica Campos

    de Vrzea ..................................................................................................................................85

    FIGURA 12 - Imagens ilustrativas com algumas das caractersticas dos sistemas de produo

    do Estilo de Agricultura 1.......................................................................................................110

    FIGURA 13 - Diagrama dos inputs/outputs socioeconmicos e ambientais do Estilo de

    Agricultura 1...........................................................................................................................111

    FIGURA 14 - Imagens ilustrativas com algumas das caractersticas dos sistemas de produo

    do Estilo de Agricultura 2.......................................................................................................132

  • 11

    FIGURA 15 - Diagrama dos inputs/outputs socioeconmicos e ambientais do Estilo de

    Agricultura 2..........................................................................................................................133

    FIGURA 16 - Imagens ilustrativas com algumas das caractersticas dos sistemas de produo

    do Estilo de Agricultura 3.......................................................................................................138

    FIGURA 17 - Diagrama dos inputs/outputs socioeconmicos e ambientais do Estilo de

    Agricultura 3...........................................................................................................................139

    FIGURA 18 - Valores percentuais dos fluxos emergticos da natureza (R+N) e da economia

    (S+M) que entram nos sistemas produtivos dos diferentes estilos de agricultura..................150

  • 12

    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 - Sistemas de criao identificados entre os estilos de agricultura dos pecuaristas

    familiares do territrio Alto Camaqu...................................................................................121

    QUADRO 2 - Itinerrio tcnico do sistema de criao bovinocultura de corte cria Estilo

    de Agricultura 1 ......................................................................................................................122

    QUADRO 3 - Itinerrio tcnico do sistema de criao bovinos de corte cria/recria Estilo

    de Agricultura 1 ......................................................................................................................126

    QUADRO 4 - Itinerrio tcnico do sistema de criao ovinos Estilo de Agricultura 1......127

    QUADRO 5 - Itinerrio tcnico do sistema de criao caprinos Estilo de Agricultura 1...129

    QUADRO 6 - Itinerrio tcnico do sistema de criao bovinos de corte recria/terminao

    Estilo de Agricultura 3...........................................................................................................147

  • 13

    LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 - Caracterizao dos municpios de Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista de

    acordo com a populao total, populao na bacia hidrogrfica, rea total e na bacia na bacia

    hidrogrfica...............................................................................................................................73

    TABELA 2 - Representatividade da cobertura vegetal dos municpios Pinheiro Machado e

    Santana da Boa Vista................................................................................................................74

    TABELA 3 - Evoluo da populao rural e urbana do Rio Grande do Sul e dos municpios

    de Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista, RS. ..................................................................76

    TABELA 4 - Estrutura fundiria dos municpios de Pinheiro Machado e Santana da Boa

    Vista, RS...................................................................................................................................77

    TABELA 5 - Nmero de estabelecimentos agropecurios dos municpios de Pinheiro

    Machado e Santana da Boa Vista, RS. .....................................................................................77

    TABELA 6 - Produto Interno Bruto (PIB) per capita e estrutura do Valor Agregado Bruto

    (VAB) dos municpios de Pinheiro Machado, Santana da Boa Vista e do estado do Rio

    Grande do Sul. ..........................................................................................................................78

    TABELA 7 - Relao de nmero de estabelecimentos agropecurios e efetivo de animais nos

    municpios de Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista, RS. ...............................................78

    TABELA 8 - Estratificao da idade/sexo dos membros e do nmero de membros que

    compem as famlias analisadas dos pecuaristas familiares segundo os estilos de agricultura.

    ..................................................................................................................................................96

    TABELA 9 - Estratificao da Unidade Trabalho Familiar (UTH f), Total (UTH t) e

    Contratada (UTHc) dos pecuaristas familiares analisadas segundo os estilos de agricultura. .99

    TABELA 10 - Formas de acesso terra das famlias dos pecuaristas familiares analisadas

    segundo os estilos de agricultura ............................................................................................102

  • 14

    TABELA 11 - Se tivesse dinheiro sobrando hoje, quais seriam as prioridades de

    investimento?..........................................................................................................................103

    TABELA 12 - Estratificao segundo as forma de uso da terra entre as famlias dos

    pecuaristas familiares analisadas segundo os estilos de agricultura.......................................105

    TABELA 13 - Estratificao segundo formas de uso da terra, conforme a amostragem total

    das famlias analisadas do Estilo de Agricultura 1 ................................................................109

    TABELA 14 - Indicadores agroeconmicos de avaliao de eficincia, conforme a

    amostragem total Estilo de Agricultura 1 ............................................................................113

    TABELA 15- Formas de uso da terra representada pela relao SAU da pastagem nativa/SAU

    pastagem total, conforme a amostragem total encontrada no Estilo de Agricultura 1 ...........116

    TABELA 16 - Relao do Produto Bruto Comercializado sob o KI animal, taxa de desfrute,

    ndices de lotao bovinos por rea e lotao total, conforme a amostragem total Estilo de

    Agricultura 1...........................................................................................................................117

    TABELA 17 - Relao do PB animal, vegetal e autoconsumo sob o PB total, conforme a

    amostragem total encontrada Estilo de Agricultura 1 ........................................................119

    TABELA 18 - Estratificao segundo formas de uso da terra, conforme a amostragem total

    das famlias analisadas do Estilo de Agricultura 2 ................................................................131

    TABELA 19 - Indicadores agroeconmicos de avaliao de eficincia, conforme a

    amostragem total encontrada no Estilo de Agricultura 2 .......................................................134

    TABELA 20 - Formas de uso da terra representada pela relao SAU da pastagem

    nativa/SAU pastagem total, conforme a amostragem total - Estilo de Agricultura 2 ............135

    TABELA 21 - Relao do Produto Bruto Comercializado sob o KI animal, taxa de desfrute,

    ndices de lotao bovinos por rea e lotao total, conforme a amostragem total - Estilo de

    Agricultura 2...........................................................................................................................136

    TABELA 22 - Relao do PB animal, vegetal e autoconsumo sob o PB total, conforme a

    amostragem total encontrada Estilo de Agricultura 2 .........................................................137

  • 15

    TABELA 23 - Estratificao segundo formas de uso da terra, conforme a amostragem total

    das famlias analisadas do Estilo de Agricultura 3 ................................................................138

    TABELA 24 - Indicadores agroeconmicos de avaliao de eficincia, conforme a

    amostragem total Estilo de Agricultura 3 ............................................................................140

    TABELA 25 - Formas de uso da terra representada pela relao SAU da pastagem

    nativa/SAU pastagem total, conforme a amostragem total encontrada no Estilo de Agricultura

    3 ..............................................................................................................................................142

    TABELA 26 - Relao do Produto Bruto Comercializado sob o KI animal, taxa de desfrute,

    ndices de lotao bovinos por rea e lotao total, conforme a amostragem total Estilo de

    Agricultura 3...........................................................................................................................143

    TABELA 27 - Relao do PB animal, vegetal e autoconsumo sob o PB total, conforme a

    amostragem total encontrada Estilo de Agricultura 3 .........................................................144

    TABELA 28 - Participao individual dos diferentes fluxos emergticos da natureza (R+N) e

    da economia (S+M) que entram nos sistemas produtivos dos estilos de agricultura

    identificados (valores mdios)................................................................................................151

    TABELA 29 - Comparaes dos ndices emergticos dos estilos de agricultura dos

    pecuaristas familiares do territrio Alto Camaqu, com os sistemas de produo de lavoura

    arroz e pecuria de corte e cultivo de soja convencional .......................................................155

  • 16

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ADSA Anlise Diagnstico de Sistemas AgrriosCI Consumo IntermedirioEA Estilo de AgriculturaEER Taxa de Intercmbio EmergticoEIR Razo de Investimento EmergticoEMATER Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso RuralEMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa AgropecuriaEYR Razo de Produo EmergticaFAO Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e

    AlimentaoFEE Fundao de Economia e Estatstica IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e EstatsticaICMS Imposto sobre Circulao de Mercadorias e prestao de ServiosINCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma AgrriaPB Produto BrutoPBt Produto Bruto TotalR Renovabilidade EmergticaRA Renda AgrcolaRAA Rendas das Atividades No-AgrcolasRT Renda TotalSAU Superfcie Agrcola tilSR Sindicato RuralSTR Sindicato dos Trabalhadores RuraisST Superfcie TotalUFRGS Universidade Federal do Rio Grande do SulVAB Valor Agregado BrutoVAL Valor Agregado Liquido

  • 17

    SUMRIO

    1 INTRODUO ...................................................................................................................20

    2 DIVERSIDADE PRODUTIVA E MERCANTILIZAO DA AGRICULTURA ......24

    2.1.1 As interfaces entre sistemas agrrios e territrio para o estudo de realidades

    complexas.................................................................................................................................24

    2.1.2 Desenvolvimento territorial: ruptura epistemolgica ou o mais do mesmo?...30

    2.2 MERCANTILIZAO E DIVERSIDADE PRODUTIVA ..............................................36

    2.2.1 A mercantilizao tradicional e a mercantilizao diferenciada ..........................36

    2.2.2 Da relao mercantil antes da porteira e depois da porteira determinao

    reprodutiva da unidade familiar dentro da porteira ......................................................41

    2.2.3 Estilos de agricultura como expresso da heterogeneidade social e produtiva .......45

    2.2.3.1 A base de recursos naturais garantidos pela produo familiar............................48

    3 ASPECTOS METODOLGICOS DA PESQUISA ........................................................53

    3.1 Delimitao da rea de estudo............................................................................................53

    3.2 As etapas do estudo ............................................................................................................54

    3.2.1 Coleta e tratamento dos dados secundrios existentes...............................................55

    3.2.2 Leitura da paisagem ......................................................................................................56

    3.2.3 Resgate da histria agrria...........................................................................................57

    3.2.4 Tipologia dos Estilos de Agricultura............................................................................58

    3.2.5 Anlise agroeconmica e ambiental dos Estilos de Agricultura ...............................60

    3.2.5.1 Anlise agroeconmica...............................................................................................60

    3.2.5.2 Anlise ambiental .......................................................................................................68

  • 18

    4 CARACTERIZAO E EVOLUO DOS SISTEMAS AGRRIOS DO

    TERRITRIO ALTO CAMAQU ....................................................................................72

    4.1 Localizao e caracterizao ambiental e socioeconmica do territrio............................72

    4.2 Populao e estrutura fundiria .........................................................................................75

    4.3 Economia e produo agropecuria....................................................................................78

    4.4 Zoneamento Agroecolgico do Territrio Alto Camaqu.................................................80

    4.5 Evoluo e diferenciao dos sistemas agrrios do territrio Alto Camaqu ...................85

    4.5.1 Sistema agrrio indgena (at 1756).............................................................................85

    4.5.2 Sistema agrrio estncia (1756 1900)........................................................................86

    4.5.3 Sistema agrrio pecuria tradicional (1900 1970) ...................................................88

    4.5.4 Sistema agrrio agropecuria moderna (1970 presente) ........................................90

    5 ESTILOS DE AGRICULTURA E ESTRATGIAS PRODUTIVAS NO

    TERRITRIO ALTO CAMAQU ....................................................................................93

    5.1 Relaes (re)produtivas no contexto da pecuria familiar no territrio Alto Camaqu: terra, trabalho e famlia.............................................................................................................94

    5.2 Estilo de agricultura 1: Pecuaristas familiares no-especializados e pluriativos ..........109

    5.2.1 Sistema de criao bovinocultura de corte cria .....................................................121

    5.2.2 Sistema de criao bovinocultura de corte cria/recria..........................................125

    5.2.3 Sistema de criao ovinos ciclo completo ...............................................................127

    5.3 Estilo de agricultura 2: pecuaristas familiares no-especializados e dependentes de transferncias sociais ..............................................................................................................131

    5.4 Estilo de agricultura 3: pecuaristas familiares especializados ......................................137

    5.4.1 Sistema de criao: bovinocultura de corte cria/recria ........................................146

    5.4.2 Sistema de criao: bovinocultura de corte recria/terminao............................146

    5.4.3 Sistema de criao ovinos ciclo completo ...............................................................147

  • 19

    5.5 Avaliao emergtica em perspectiva comparada dos estilos de agricultura dos pecuaristas familiares do territrio Alto Camaqu....................................................................................148

    5.6 A dimenso simblica/cultural como representao da identidade territorial..................160

    6 CONSIDERAES FINAIS............................................................................................164

    REFERNCIAS ...................................................................................................................169

    APNDICE A - Roteiro de entrevista ................................................................................181

    APNDICE B - Smbolos da linguagem do fluxo de energia para representar sistemas

    ................................................................................................................................................197

    APNDICE C - Base de dados para o clculo dos fluxos emergticos do Estilo de

    Agricultura 1 .........................................................................................................................201

    APNDICE D - Base de dados para o clculo dos fluxos emergticos do Estilo de

    Agricultura 2 .........................................................................................................................204

    APNDICE E - Base de dados para o clculo dos fluxos emergticos do Estilo de

    Agricultura 3 .........................................................................................................................207

  • 20

    1 INTRODUO

    No mbito do debate terico-analtico recente voltado ao tema do desenvolvimento

    rural, tm sido recorrente encontrar tanto nas prticas acadmicas como nos discursos

    proferidos pela esfera poltica-institucional a idia de que os espaos rurais j no se

    restringem mais como o local que exerce a funo exclusiva de produo de alimentos para

    abastecer os espaos urbanos. Nesse contexto, novas atribuies e oportunidades tm sido

    institudas s exploraes agrcolas familiares a partir de um suposto reconhecimento do

    carter multifuncional que essa categoria social pode desempenhar na perspectiva do

    desenvolvimento rural sustentvel. Entre as atribuies e oportunidades reconhecidas, estaria

    o papel exercido pelas unidades familiares na preservao e manuteno da paisagem e

    biodiversidade, para a segurana alimentar, a gerao de empregos e ocupaes, entre outras.

    No epicentro dessa renovao epistemolgica que vm buscando novos referenciais

    para repensar o desenvolvimento rural, encontram-se questes tericas e analticas que

    renem elementos que convergem para contestar os impactos e as limitaes do modelo de

    modernizao da agricultura implementado a partir da segunda metade do sculo passado. De

    certa forma, h um consenso na literatura dos estudos rurais que a modernizao da

    agricultura foi o elemento responsvel por acelerar a diferenciao social e econmica no

    processo de produo agrcola atravs da submisso dessa atividade ao modelo capitalista,

    caracterizado, sobretudo, pela crescente mercantilizao dos fatores de produo.

    Numa viso clssica, a modernizao da agricultura pode ser interpretada como um

    processo que foi inspirado na ideologia da noo de desenvolvimento como sinnimo de

    crescimento econmico (ALMEIDA, 1997). A idealizao desse processo tinha como uma

    das premissas norteadoras a transformao das sociedades ditas tradicionais ou atrasadas

    em sociedades modernas ou avanadas mediante ao progresso tcnico-cientfico da

    agricultura. No caso do Rio Grande do Sul, a modernizao representou um condicionante

    importante que foi responsvel por criar padres diferenciados e especficos de

    desenvolvimento conforme as particularidades socioeconmicas, culturais e ambientais de

    cada contexto agrrio.

    Desse modo, com o advento da revoluo verde observa-se a consolidao de

    modelos exgenos de desenvolvimento em certas regies, sobretudo, a partir da

    especializao da produo e a integrao mercantil dos agricultores ao mercado global de

  • 21

    commodities agrcolas, derivando num processo crescente de mercantilizao das agriculturas

    de base familiar. Esse o caso de regies como o norte e noroeste do Rio Grande do Sul, onde

    os agricultores familiares que ocuparam e colonizaram aquele espao agrrio tiveram as suas

    formas tradicionais de reproduo social transformadas na medida em que a

    mercantilizao da agricultura adentrou densamente sobre as relaes de produo e

    trabalho (CONTERATO, 2004; NIEDERLE, 2007).

    Por outro lado, em meio s concepes homogeneizantes preconizadas pela

    modernizao da agricultura, em outros espaos agrrios do Rio Grande do Sul a repercusso

    e reproduo da modernizao sobre as relaes sociais de produo e trabalho de algumas

    formas familiares foi diferenciada em decorrncia de sua menor intensidade. Essa a

    condio observada em relao pecuria familiar1 do territrio Alto Camaqu localizado na

    metade sul do estado Rio Grande do Sul, pois muitas das caractersticas do contexto

    socioeconmico, cultural e ecolgico dos pecuaristas familiares mostraram-se incompatveis

    as proposies contidas no projeto de modernizao. Assim, a ausncia de tais condies

    necessrias para a transformao produtiva de uma condio de atraso condio

    moderna caracterizou um processo de modernizao incompleto da pecuria familiar

    (BORBA, 2006). Trata-se, portanto, de uma categoria social que instituiu a sua identidade

    sociocultural baseada na atividade produtiva da pecuria de corte, e mesmo co-existindo com

    as foras dominadoras do capitalismo, ainda mantm nos dias atuais muitas caractersticas

    produtivas pr-modernas ao no ter incorporado ipsis literis os padres tecnolgicos

    normativos proclamados pela modernizao da agricultura.

    Portanto, embora o territrio Alto Camaqu seja um espao agrrio aparentemente

    homogneo no que se refere as suas caractersticas ambientais e tambm quanto as relaes

    scioculturais e produtivas consolidadas a partir da pecuria de corte, a mercantilizao no

    operou no mesmo nvel e num sentido nico. Esse comportamento uma das expresses de

    que a mercantilizao no transcorre na mesma intensidade, pois mesmo num ambiente

    mercantilizado, os agricultores so responsveis por construir seus espaos de manobra em

    relao s imposies do capitalismo, pois desenvolvem estratgias desde um repertrio

    1Verifica-se atualmente, por parte dos estudiosos ligados ao tema do desenvolvimento rural, um grande interesse

    de estudos e pesquisas voltados para a categoria social que tm sido designada como pecuarista familiar. Do ponto de vista terico, esses trabalhos tm demonstrado que o pecuarista familiar um tipo de agricultor familiar criador de gado, ou seja, a sua principal atividade produtiva representada pela produo da pecuria de corte (COTRIM, 2003; SANDRINI, 2005; RIBEIRO, 2009). Dessa maneira, ao tratarmos dessa categoria social, estamos nos remetendo definio conceitual presentes nesses estudos.

  • 22

    cultural especfico visando busca pela autonomia quanto s relaes mercantis (PLOEG,

    1993, 2003, 2008). De tal modo, ainda que a mercantilizao seja responsvel por conduzir ao

    processo de diferenciao social e econmica, ao mesmo tempo, tambm responde pela

    ampliao da diversificao dos estilos de agricultura, pois esses so expresses das respostas

    adaptativas adotas pelos agricultores nas suas relaes estabelecidas no somente com os

    mercados, mas tambm com o universo sociocultural e ecolgico que esto envolvidos.

    O carter incompleto de modernizao da pecuria familiar do territrio Alto

    Camaqu anteriormente comentado, caracterizado, sobretudo, pela baixa interferncia humana

    sobre os ecossistemas naturais, demonstra a existncia de dinmicas produtivas especficas

    que so determinadas por relaes construdas entre o homem-cultural local e a natureza.

    Tal comportamento revela padres produtivos, que de modo geral, esto assentados no uso de

    recursos locais no-mercantilizados, por exemplo, o uso de mo-de-obra familiar, os recursos

    reproduzidos dentro da prpria unidade de explorao agrcolas ou ento, as trocas

    realizadas com a natureza.

    Diante desta contextualizao apresentada, a problemtica de pesquisa definida com

    a seguinte questo: como o processo de mercantilizao da agricultura configura diferentes

    estilos de agricultura em um contexto com caractersticas socioeconmica, cultural e

    ambiental semelhantes?

    Como forma de contribuir para responder a problemtica definida, trs hipteses de

    pesquisa foram estabelecidas. A primeira hiptese considera que a mercantilizao da

    agricultura conduziu emergncia de diferentes estilos de agricultura da pecuria familiar do

    territrio Alto Camaqu. Sustenta-se que os pecuaristas familiares construram diferentes

    respostas individuais na relao com o processo de mercantilizao, caracterizando, assim, a

    existncia de diferentes estilos de agricultura. Como segunda hiptese considera-se que

    mercantilizao no transformou a constituio da trade terra, famlia e trabalho. Ou seja,

    sustentamos que, embora a mercantilizao tenha adentrado as relaes de produo e

    transformado algumas das caractersticas da base tcnica e da relao de produo e trabalho,

    esse processo no alterou o modo de viver dos pecuaristas familiares, baseados em relaes

    constitudas entre os elementos terra, a famlia e o trabalho. A terceira hiptese parte do

    princpio de que condio tributria aos estilos de agricultura dos pecuaristas familiares do

    territrio Alto Camaqu, estratgias produtivas que so baseadas e dependentes mais dos

    intercmbios realizados com a natureza do que as relaes estabelecidas com os mercados.

    Fundamentalmente considera-se que tais estratgias foram construdas num processo histrico

  • 23

    e constituem aes planejadas dos pecuaristas familiares, tendo em vista a busca pela

    autonomia.

    Ligado ao quadro de hipteses, o objetivo geral orientador dessa pesquisa identificar

    e analisar como a mercantilizao inseriu-se nos sistemas produtivos dos pecuaristas

    familiares do territrio Alto Camaqu, e como esse processo foi responsvel pela constituio

    de estilos de agricultura diferenciados. Alm disso, o objetivo geral complementado por trs

    objetivos especficos: 1) interpretar o processo histrico de formao e diferenciao dos

    sistemas agrrios no territrio; 2) identificar a heterogeneidade de sistemas produtivos e suas

    relaes com a constituio dos estilos de agricultura; 3) examinar em que medida as relaes

    existentes entre os sistemas produtivos e os recursos naturais criam condies que

    possibilitam o distanciamento dos mercados.

    A anlise emprica dessa pesquisa faz parte de um enquadramento terico dos estudos

    da sociologia rural que tm dado nfase as formas distintas de como as unidades familiares

    esto envolvidas no processo mais geral da mercantilizao e como elas desenvolvem

    estratgias diferenciadas visando construo da autonomia do grupo familiar. No entanto,

    ainda so necessrios estudos que ampliem os conhecimentos acerca da heterogeneidade de

    estilos de agricultura em diferentes contextos agrrios, evidenciando as rotas histricas

    percorridas na sua evoluo e diferenciao e que deram origem a estratgias de

    desenvolvimento genuinamente endgenas.

    Alm desse captulo introdutrio, o trabalho est organizado e estruturado em mais

    quatro captulos, juntamente com as consideraes finais, referncias bibliogrficas e

    apndices. O segundo captulo apresenta as bases tericas que serviro de orientao ao longo

    do restante do trabalho, analisando como eixo central as contribuies dos estudos

    sociolgicos clssicos e contemporneos ligados ao tema da mercantilizao da agricultura e

    estilos de agricultura. O terceiro captulo dedica-se aos aspectos metodolgicos, onde so

    apresentadas as etapas que permitiram identificar os diferentes estilos de agricultura do

    territrio. Na seqncia, o quarto captulo apresenta uma caracterizao do territrio e adentra

    na histria agrria do territrio Alto Camaqu, reconstituindo as grandes etapas da evoluo e

    diferenciao dos sistemas agrrios at os dias atuais. Por fim, o ltimo captulo analisa os

    diferentes estilos de agricultura, demonstrando s particularidades presentes no domnio

    produtivo e os condicionantes que deram origem a estilos de agricultura diversificados.

  • 24

    2 DIVERSIDADE PRODUTIVA E MERCANTILIZAO DA AGRICULTURA

    Nesse captulo apresentado o referencial terico-analtico orientador desse trabalho

    de pesquisa. Assim, inicialmente a discusso envolve as representaes da abordagem

    conceitual dos sistemas agrrios no estudo da diversidade na agricultura, focando de maneira

    especial, os processos histricos responsveis pela diferenciao das categorias de

    agricultores. Dentro dessa discusso, procura-se identificar os pontos de convergncia

    conceituais e metodolgicos entre sistemas agrrios e territrio para o estudo de diferentes

    realidades agrrias. Assim, o esforo reunir elementos que possam contribuir para a

    apreenso da diversidade produtiva da pecuria familiar presente no territrio Alto Camaqu.

    Com a utilizao de autores referenciais da sociologia rural, buscam-se contribuies

    que permitam pontuar o debate sobre a insero das unidades familiares de produo em

    ambientes mercantilizados e a constituio de diferentes estilos de agricultura.

    Fundamentalmente, consideram-se as proposies que tratam dos estudos envolvendo as

    racionalidades produtivas (econmica e ecolgica) e os comportamentos socioculturais das

    unidades familiares no que se refere anlise da diversidade de estilos de agricultura e modos

    de vida no meio rural.

    2 AS EXPRESSES DA DIVERSIDADE AGRRIA

    2.1.1 As interfaces entre sistemas agrrios e territrio para o estudo de realidades

    complexas

    A histria agrria da humanidade demonstra que o desenvolvimento das diferentes

    sociedades sempre esteve associado a contextos espaciais especficos circunscritos por

    complexas relaes produtivas, socioeconmicas e culturais juntamente com o ambiente

    natural. Antes mesmo do surgimento da agricultura no perodo neoltico (cerca de 10.000

    anos antes do presente), a sobrevivncia das populaes primitivas nmades (caadoras,

    coletoras e pescadoras) dependia de contnuos processos de desterritorializao e

    reterritorializao em determinados espaos geogrficos, onde executavam as atividades

  • 25

    necessrias at atingirem os limites daquilo que era possvel explorar de forma que garantisse

    a sua reproduo biolgica. A revoluo agrcola neoltica caracterizou a primeira grande

    revoluo agrria da histria da humanidade, pois se caracteriza como o perodo que marcou o

    surgimento e a expanso2 para todas as partes do mundo das primeiras prticas de agricultura

    geradoras de excedentes denominadas de protocultura e protocriao de gado (MAZOYER &

    ROUDART, 2001).

    O que se pretende evidenciar com essa passagem histrica por alguns desencaixes3

    sociais que caracterizaram as sociedades agrrias antigas, reconhecer e demonstrar que,

    geograficamente distribudas em todas as regies continentais, a diversidade e a complexidade

    observvel que caracterizam os processos produtivos agrcolas atuais, as suas diferenciaes

    sociais, econmicas e culturais e formas de relaes com o sistema natural, so expresses

    que advm da herana agrria onde encontram-se inseridas.

    Desse modo, conforme Mazoyer & Roudart (2001), a anlise da dinmica dos sistemas

    agrrios nas diferentes partes do mundo e nas diferentes pocas permite-nos compreender o

    movimento geral de transformao no tempo e de diferenciao no espao das sociedades

    agrrias. Assim concebido, cada sistema agrrio:

    a expresso de um tipo de agricultura historicamente constitudo e geograficamente localizado, composto de um ecossistema cultivado caracterstico e de um sistema social produtivo definido, permitindo este explorar duradouramente a fertilidade do ecossistema cultivado correspondente (MAZOYER & ROUDART, 2001: 43).

    Todo sistema agrrio , portanto, o produto de um processo coevolucionrio entre

    sociedade e natureza, no sentido de evoluo integrada entre cultura e meio ambiente. De

    acordo com Mazoyer (1987) citado por FAO/INCRA (1999:20), um sistema agrrio envolve,

    portanto, uma combinao de um conjunto de variveis, quais sejam:

    2

    Conforme Mazoyer & Roudart (2001:67) a agricultura expandiu-se por todas as regies do globo terrestre a partir dos chamados centros de origem irradiantes, onde cada centro correspondia a uma rea de expanso particular. Os autores descrevem seis centros de origem, sendo quatro entre eles que foram centros largamente irradiantes: o centro prximo-oriental, que se constituiu na Sria-Palestina e mais latentemente no conjunto do Crescente frtil, entre 10.000 e 9.000 anos antes da atualidade; o centro centro-americano, que se estabeleceu no Sul do Mxico entre 9.000 e 4.000 anos antes da atualidade; o centro chins, que se constituiu inicialmente h 8.500 anos na China do Norte e depois completou-se ao estender-se para nordeste e sudeste, entre 8.000 e 6.000 anos antes da atualidade; o centro neoguineense, que teria emergido em Papua-Nova-Guin h cerca de 10.000 anos.Outros dois centros de origem, pouco ou nada irradiantes, tambm teriam se formados prximo mesma poca: centro sul-americano, possivelmente desenvolvido nos Andes peruanos ou equatorianos h mais de 6.000 anos antes da atualidade; centro norte-americano, que se instalou na bacia do mdio Mississipi entre 4.000 e 1.800 anos antes do presente.

    3 Giddens (1991: 29) define desencaixe referindo-se ao deslocamento das relaes sociais de contextos locais de interao e sua reestruturao atravs de extenses indefinidas de tempo-espao.

  • 26

    o meio cultivado o meio original e as suas transformaes histricas; os instrumentos de produo as ferramentas, as mquinas, os materiais biolgicos

    (as plantas cultivadas, os animais domsticos, etc.) - e a fora de trabalho social (fsica

    e intelectual) que os utiliza;

    o modo de artificializao do meio que disso resulta (a reproduo e a explorao do ecossistema cultivado);

    a diviso social do trabalho entre a agricultura, o artesanato e a indstria que permite a reproduo dos instrumentos de trabalho e, por conseguinte;

    os excedentes agrcolas, que, alm das necessidades dos produtores, permitem satisfazer as necessidades dos outros grupos sociais;

    as relaes de troca entre os ramos associados, as relaes de propriedade e as relaes de fora que regulam a repartio dos produtos do trabalho, dos bens de produo e

    dos bens de consumo e as relaes de troca entre os sistemas (concorrncia).

    O arcabouo conceitual e metodolgico dos sistemas agrrios permite compreender,

    de forma inteligvel, os processos histricos que conduziram formao da heterogeneidade

    social e diversidade produtiva dos produtores. Entretanto, a anlise de um sistema agrrio

    requer a aproximao dialtica com bases epistemolgicas interdisciplinares que possam

    contribuir com a interpretao dos nveis de organizao e funcionamento de realidades

    agrrias to diversas.

    Nesse sentido, o conceito de territrio uma varivel importante que apresenta sua

    interface com os sistemas agrrios no que refere ao entendimento de como se manifestam

    diferentes dinmicas scio-culturais, econmicas, polticas e ambientais a partir de um

    contexto histrico especfico em constante evoluo. Dito de outra forma, do ponto de vista

    da investigao emprica, o territrio um referencial conceitual que contm elementos

    analticos sem os quais a apreenso da diversidade e complexidade de um determinado

    sistema agrrio seria incompleta. Dessa maneira procurar-se- demonstrar ao longo desse

    trabalho que a categoria social de pecuaristas familiares presente no territrio Alto Camaqu

    a expresso natural de um processo (inacabado) de diferenciao social decorrente das

    diferentes etapas da evoluo e transformaes dos sistemas agrrios. Trata-se ento de

    analisar as formas de uso do espao no sentido atribudo por Santos (1994), e identificar as

    relaes sociedade-espao que deram origem s formas de apropriao e transformao do

    espao vivido e das diferentes caractersticas que configuraram estilos de agricultura

    diversificados.

  • 27

    O conceito de territrio ostenta na literatura uma acepo polissmica, tendo assumido

    heuristicamente significados e conceitos prprios em diferentes disciplinas na rea das

    cincias humanas e sociais4. No caso da geografia, origem do conceito, para grande parte dos

    gegrafos o territrio faz meno ao espao e as relaes de poder nele existente (BECKER,

    1983; SACK, 1986; RAFFESTIN, 1993; SOUZA, 1995; HAESBAERT, 1997; SANTOS,

    1994, 2000; SAQUET, 2003, 2007).

    O gegrafo brasileiro Milton Santos (1994) utiliza o conceito de territrio usado

    dentro de uma concepo materialista (econmica), em que o uso dos territrios deve ser

    entendido como um conjunto interligado de sistemas de objetos que representam

    materialidade da sociedade e da natureza, e sistemas de aes representadas pelas relaes

    sociais. Assim, para o autor

    [...] o territrio no apenas o resultado da superposio de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem [...] O territrio a base do trabalho, da residncia, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em territrio deve-se pois, de logo, entender que se est falando em territrio usado, utilizado por uma dada populao (SANTOS, 2000:96).

    Para Claude Raffestin (1993), um dos gegrafos contemporneos mais influentes na

    literatura internacional que contribuiu para a elaborao do conceito de territrio, o territrio

    se forma a partir do espao, onde se projetam formas de trabalho e relaes de poder.

    Desde uma perspectiva da representao de campo5 de Bourdieu (2000), podemos

    compreender o territrio como o campo de foras onde se manifestam diferentes relaes de

    poder baseados em valores e prticas especficas. possvel, ento, identificar relaes de

    poder ou poderes (econmico, poltico, simblico) a partir da distino de uso do territrio

    realizada por Santos (2000) entre territrio como recurso e territrio como abrigo, onde

    enquanto para os atores hegemnicos o territrio constitui-se um recurso como garantia de

    realizaes de seus interesses, para os atores hegemonizados o territrio constitui-se um

    4

    Esse polissemismo em torno do conceito de territrio certamente renderia uma extensa reviso da literatura especializada. No objetivo nosso fazer uma reviso do estado da arte sobre territrio, mas sim, evidenciar as principais concepes tericas do termo que serviro de orientao para esse trabalho. No caso do Brasil, algumas contribuies profcuas sobre as diferentes acepes de territrio presentes na literatura brasileira e internacional podem ser encontradas em Haesbaert (2004), Schneider e Tartaruga (2004), Saquet (2007), Schneider (2008).

    5 Segundo Bourdieu (2000), campo pode ser definido como uma configurao relacional de foras em disputa pelo que considerado importante no campo, um espao de conflitos e de concorrncia no qual os concorrentes lutam para estabelecer o monoplio sobre a espcie especfica de capital pertinente ao campo.

  • 28

    abrigo onde existem processos adaptativos e recriao de estratgias que garantem sua

    sobrevivncia. A partir dessa abordagem de territrio enquanto campo de poder entre

    territrio-recurso e territrio-abrigo, pode-se analiticamente compreender as

    transformaes da agricultura desde o seu processo de modernizao at as mudanas mais

    atuais provocadas pela reestruturao da agricultura e dos espaos rurais e intensificadas pelo

    processo de globalizao.

    Outro autor brasileiro que, no nosso entendimento, tem oferecido contribuies

    significativas aos estudos geogrficos territoriais atuais Rogrio Haesbaert (1997), onde a

    partir de uma compilao das principais vertentes tericas clssicas e contemporneas,

    elabora e prope uma abordagem integradora do territrio entre as dimenses materialista,

    idealista e naturalista, o que seria possvel evidenciar as diferentes manifestaes que o

    espao apresenta. Haesbaert (1997:39; 2004:40) concebe o territrio atravs de quatro

    dimenses bsicas:

    poltica (referida s relaes espao-poder em geral) ou jurdico-poltica (relativa as relaes espao-poder institucionalizada), em que o territrio visto como um espao

    delimitado e controlado por um determinado poder (muitas vezes relativo as poder

    poltico do Estado);

    cultural ou simblico-cultural, a qual prioriza a dimenso simblica e mais subjetiva, onde o territrio visto como o produto da apropriao/valorizao simblica de um

    grupo em relao ao seu espao vivido;

    econmica, a qual enfatiza a dimenso espacial das relaes econmicas, sendo o territrio uma fonte de recursos.

    natural, que utiliza a noo de territrio como forma de analisar as relaes entre sociedade e natureza.

    Essa abordagem integradora proposta por Haesbaert visa suplantar a concepo

    cartesiana do territrio, por exemplo, da etologia que estuda apenas o comportamento

    territorial dos animais, da cincia poltica envolvida somente com o papel do espao na

    construo de relaes de poder, ou ento, da antropologia em analisar as relaes simblicas

    em diferentes grupos sociais.

    A construo da definio de territrio para Haesbaert (1997, 2004) est centralizada

    em relaes de poder envolvendo processos de dominao e apropriao da sociedade-espao6

    6 O conceito de territrio em Haesbaert (1997) desenvolvido a partir dos conceitos de apropriao e dominao elaborados por Henri Lefebvre (1986). Conforme Lefebvre citado por Haesbaert (1997:41), a apropriao refere-

  • 29

    ao longo de um continuum entre a dominao poltica-econmica mais concreta e

    funcional apropriao mais subjetiva e/ou cultural/simblica. Segundo o autor:

    o territrio produto e condio da territorializao, e envolve, sempre, ao mesmo tempo [...], uma dimenso simblica, cultural, atravs de uma identidade territorial atribuda pelos grupos socais, como forma de controle simblico sobre o espao onde vivem (sendo tambm, portanto, uma forma de apropriao), e uma dimenso mais concreta, de carter poltico-disciplinar: a apropriao e ordenao do espao como forma de domnio. (HAESBAERT, 1997:42).

    Para Haesbaert (1997, 2004), a dominao e apropriao do espao sempre envolvem

    a criao de novos processos de desterritorializao (destruio ou excluso de antigos

    territrios, ou a des-integrao de novos espaos numa rede econmica globalizada) e (re)

    territorializao (formao de novos territrios atravs de uma reapropriao poltica e/ou

    simblica do espao). No escopo desse referencial, um caso emblemtico apresentado pelo

    prprio Haesbaert (1997) ao analisar a coexistncia da desterritorializao e a

    reterritorializao no cerrado do nordeste brasileiro provocada pela migrao sulina a partir

    do final da dcada de 1970. Enquanto a primeira foi promovida por redes nacionais-globais

    dos complexos agroindustriais capitalistas e pelo prprio fluxo migratrio dos gachos para o

    nordeste, a segunda acabou sendo conseqncia da primeira, sobretudo, na dimenso poltica

    e cultural atravs do mantimento de alguns enraizamentos culturais do sul e com o controle

    sobre os grupos sociais locais. Situao semelhante marcada por conflitos histricos

    fundirios e scio-ambientais sobre um mesmo espao agrrio entre quem chegava e quem

    j estava, provocando desenraizamentos tanto geogrfico como cultural, foi retratada

    recentemente por Torres Figueredo (2008) ao analisar a formao do territrio brasiguaio7 no

    espao produtivo do Paraguai atravs da introduo e expanso da sojicultura no leste e

    sudeste do Pas por brasileiros.

    Portanto, decorrente de uma estrutura social complexa, tanto a desterritorializao

    como a reterritorializao devem ser entendidas como processos indissociveis,

    multidimensionais e multiescalares e que constituem a existncia de multiterritorialidades, ou

    seja, a sobreposio de territrios hierarquicamente encaixados (HAESBAERT, 2004,

    2005), ou ento os territrios do territrio (FERNANDES, 2008:276). se a um processo de territorializao, envolvendo uma dimenso concreta (funcional) e outra simblica e afetiva. A dominao do espao origina territrios essencialmente utilitrios e funcionais, sem que haja sentido socialmente compartilhado e/ou relao de identidade. 7

    Segundo Torres Figueredo (2008:59), brasiguaio so genericamente considerados os brasileiros que vivem no Paraguai, pertencendo a distintas classes sociais e que trabalham em diversos setores da economia.

  • 30

    A perspectiva integradora do territrio vinculada s condies de gerao de

    desterritorializao e reterritorializao sobre o espao dominado e apropriado ,

    heuristicamente, nosso referencial conceitual para o estudo dos sistemas agrrios do Alto

    Camaqu. Enquanto um sistema agrrio permite apreender os diferentes estilos de agricultura

    e explorar a sua ao prtica, reconstituindo as grandes etapas da sua evoluo, o territrio

    delimita o espao de ao onde transcorrem as manifestaes das relaes scio-culturais,

    econmicas e polticas e que determina (tempo-espao) transies entre novas e velhas

    territorialidades, desterritorialidades e reterritorialidades.

    Assim, deve-se considerar que, independente do momento histrico, todo sistema

    agrrio est circunscrito por tramas territoriais, ou seja, um sistema agrrio pode ser formado

    por vrios territrios (multiterritorialidades), constituindo camadas sobrepostas ( ex. unidade

    de produo, comunidade, municpio, estado, pas, etc). Desse modo, tanto territrio como

    sistema agrrio so construes objetivas/subjetivas de um espao, no entanto, analiticamente

    deve-se recorrer estratificao da realidade em diversas dimenses ou escalas de acordo com

    a perspectiva terico-metodolgica utilizada, conforme sugerido por Fernandes (2008).

    2.1.2 Desenvolvimento territorial: ruptura epistemolgica ou o mais do mesmo?

    O desenvolvimento rural ao longo das ltimas cinco dcadas passou por constantes

    processos de metamorfoses em suas concepes tericas e propostas analticas de interveno

    no mbito acadmico e poltico-institucional. Recuperar a gnese e a evoluo de tais

    concepes tericas um exerccio em que o risco de simplificao elevado. Ao que se

    observa, no entanto, percebe-se que a discusso mais recente sobre o que vm a ser o

    desenvolvimento rural conduz h interpretaes de um processo inacabado de diferentes

    arcabouos terico-analticos, mas que desde a dcada de 1990 o termo vm passando por um

    renovado conjunto de noes e idias. Expresses como sustentabilidade, territorialidade,

    ruralidade, pluriatividade, multifuncionalidade so triviais do debate atual sobre

    desenvolvimento rural como demonstraes do reconhecimento de algumas novas

    atribuies desempenhadas pelos processos produtivos e os espaos rurais.

    De modo geral, a discusso sobre o desenvolvimento rural, tanto no mbito nacional

    como internacional, tem atribudo agricultura um papel para alm da produo de alimentos

  • 31

    e fibras, como tambm um conjunto de funes como a gesto dos recursos naturais, a

    conservao da biodiversidade e paisagens naturais e a contribuio para a viabilidade

    socioeconmica para zonas rurais (RETING et al., 2009; GUZMN CASADO et al., 2000;

    PLOEG et al., 2000). A decorrncia mais imediata dessa nova postura epistemolgica est

    no reconhecimento e na (re)valorizao das estratgias endgenas do desenvolvimento, onde

    os atributos locais e territoriais dos processos produtivos passaram a ser considerados

    referenciais conceituais e operacionais importantes para o desenvolvimento rural.

    Nesse sentido, atribui-se a globalizao um papel que reala as dinmicas locais e

    territoriais. Segundo Marsden (1995), a reestruturao capitalista da agricultura a nvel global

    ultrapassa as fronteiras das unidades produtivas individuais e passa a operar tambm no

    espao rural como um todo, gerando uma ruralidade diferenciada responsvel por uma

    reestruturao da prpria diviso social do trabalho em que espao rural tambm estaria sendo

    mercantilizado. No caso brasileiro e latino-americano, conforme Schneider (2008), a

    ruralidade diferenciada seria decorrente do processo crescente de mercantilizao, e tem

    modificado as dinmicas das relaes rural-urbana atravs do incremento dos servios, do

    turismo e da pluriatividade das famlias.

    No seio do debate voltado aos estudos rurais parasse haver consenso que o divisor

    dgua entre as velhas e novas abordagens tericas est na constituio de uma possvel

    superao do paradigma da modernizao que dominou prticas, polticas e teorias nas

    ltimas dcadas e na emergncia de um novo paradigma de desenvolvimento rural. Para

    Ploeg et al. (2000) o desenvolvimento rural passa a ser um processo multi-nvel, multi-ator e

    multifacetado como respostas emergentes aos problemas e limitaes decorrentes do

    paradigma da modernizao. O novo paradigma deve partir do reconhecimento global que

    na inter-relao entre agricultura e sociedade o rural deixa de ser apenas o espao dedicado a

    fornecer matria-prima a preos baixos para os centros urbanos. Segundo os autores

    necessrio tambm definir um novo modelo agrcola para o desenvolvimento rural j que at a

    dcada de 1990 a intensificao e especializao produtiva em larga escala era o parmetro

    que circunscreviam o desenvolvimento do setor agrcola. Deve-se, ento, criar estratgias que

    valorizem as sinergias e a coeso dos espaos rurais, sobretudo, entre diferentes atividades

    (agrcolas e no-agrcolas), produtos e servios e estilos de agricultura especficos juntamente

    com os ecossistemas locais. O desenvolvimento um processo multi-ator, pois o rural deve

    deixar de ser visto apenas como monoplio do agricultor e passar a integrar diferentes

    mecanismos de coordenao que envolva todos os atores da sociedade. Outra questo

  • 32

    importante diz respeito ao nvel multifacetado do desenvolvimento envolvendo as questes

    ambientais, pois necessrio criar diferentes prticas que estejam interconectadas em relao

    ao uso e manejo sustentvel dos recursos naturais. Entre estas, estariam gesto das paisagens

    naturais, o agro-turismo, e a produo de alimentos com qualidade diferenciada associada

    imagem de regies especificas.

    Nesse escopo terico a noo de territrio vm favorecendo o avano dos estudos

    rurais no que se refere compreenso das dinmicas e as trajetrias de desenvolvimento em

    diferentes contextos socioeconmico, culturais e ambientais. As discusses acerca da

    abordagem territorial do desenvolvimento tm sido ampliadas nos ltimos anos justamente

    como tentativa da criao de um novo referencial que possa reorientar o modelo de

    desenvolvimento rural, tanto no que se refere s discusses envolvendo a prpria sociedade

    civil (movimento sociais, entidades no-governamentais, etc), assim como, no plano

    acadmico e tambm nos novos papis que o Estado e as polticas pblicas devem assumir. A

    dimenso espacial de uso do territrio , portanto, o locus de anlise e interveno estratgica

    para o desenvolvimento rural.

    Conforme Abramovay (2003), o enfoque territorial do desenvolvimento rural

    compreende as razes histricas de um territrio e seu capital social, que valoriza as tradies

    e o potencial do espao local. Um caso emblemtico para as condies latino-americanas em

    que o territrio define-se como a referncia para o desenvolvimento, planejamento e gesto de

    territrios rurais encontrado no trabalho de Schejtman & Berdegu (2003), onde elaboram

    uma proposta de aes poltico-institucional visando o combate da pobreza rural. Assim,

    definem o desenvolvimento territorial rural como um processo de transformao produtiva e

    institucional num determinado espao rural, com o propsito de reduzir a pobreza rural. Para

    os autores, existem sete elementos que devem ser considerados como o novo enfoque de

    desenvolvimento territorial rural:

    1. A competitividade determinada pela ampla difuso do progresso tcnico e do

    conhecimento condio necessria sobrevivncia das unidades produtivas. No

    entanto, para ser competitivo quando se tem a perspectiva da superao da pobreza,

    deve-se entender competitividade como capacidade de melhores empregos e auto-

    empregos, que conduzam a um incremento sustentvel de renda e melhoria na

    qualidade de vida das famlias rurais.

    2. A inovao tecnolgica em processos, produtos e gesto o ponto chave para elevar a

    produtividade do trabalho e a renda da populao rural.

  • 33

    3. A competitividade um fenmeno sistmico, ou seja, no um atributo de empresas

    ou unidades de produo individuais ou isoladas, mas depende das caractersticas dos

    ambientes e dos territrios.

    4. A demanda externa ao territrio o motor das transformaes produtivas, essencial

    para incrementar a produtividade e o emprego.

    5. Os vnculos urbano-rurais so essenciais ao desenvolvimento das atividades agrcolas

    e no-agrcolas no interior do territrio.

    6. O desenvolvimento institucional decisivo para o desenvolvimento territorial. Por ele

    se d a relao com o funcionamento de redes de relaes sociais de reciprocidade

    baseada na confiana, nos elementos culturais e na identidade territorial, e nas redes

    com atores externos ao territrio. Esses fatores facilitam a aprendizagem coletiva.

    7. O territrio uma construo, ou seja, um conjunto de relaes sociais que do origem

    e expressam uma identidade e um sentido de propsitos compartilhados por mltiplos

    agentes pblicos e privados (SCHEJTMAN & BERDEGU, 2003:04).

    De acordo com Schneider (2004), no campo dos estudos rurais a abordagem territorial

    promoveu a superao do enfoque setorial das atividades econmicas (agricultura, indstria,

    comrcio, servios) e suplantou a dicotomia espacial entre o rural versus urbano. Conforme o

    autor, no existe qualquer tipo de determinismo ou evoluo pr-determinada, pois a

    viabilizao dos territrios depender de relaes particulares e especficas de acordo com as

    aes, estratgias e trajetrias que os atores (indivduos, empresas ou instituies) adotam

    visando a reproduo social e econmica.

    Para Sabourin (2002:24) o enfoque territorial considera a valorizao coletiva e

    negociada das potencialidades das localidades e coletividades (individuais e institucionais),

    chamadas de atributos locais ou de ativos especficos. Dessa forma, o desenvolvimento cada

    vez mais dependente de relaes territoriais seja por proximidade (geogrfica, social, cultural)

    ou por inter-conhecimento por meio de redes econmicas e scio-tcnicas. Nesse sentido, o

    territrio pode ser visto como uma configurao mutvel, provisria e inacabada, e sua

    construo pressupe a existncia de uma relao de proximidade dos atores (PACQUEUR,

    2006), mas que tenha como base o princpio da especializao de ativos (fatores em

    atividade), ou seja, a busca pelos recursos prprios ao territrio que permitiro a

    diferenciao em relao aos territrios vizinhos antes que seja necessrio a concorrncia por

    produtos padronizados (PACQUEUR, 2005).

  • 34

    Carrire & Gazella (2006) apresentam uma perspectiva similar a Marsden (1995)

    sobre a mercantilizao do espao, pois no processo de especializao visando qualificao

    e diferenciao de recursos, produtos e servios, gera-se uma renda de qualidade territorial,

    ou seja, o prprio territrio o produto comercializado.

    Nesse cenrio de reformulao das noes e conceitos acerca do desenvolvimento

    rural, tm-se ampliado as possibilidades para a apreenso e valorizao da diversidade dos

    processos produtivos agrcolas associados dimenso territorial envolvendo a agricultura

    familiar. Questes importantes para reflexo podem ser extradas, sobretudo, a partir dos

    estudos franceses.

    Mollard (2006) trabalha com o conceito de multifuncionalidade e externalidades

    territoriais avaliando os servios ambientais ou ecolgicos fornecidos pelos processos

    produtivos agrcolas. Citando Picard (1998), para Mollard a noo de externalidade permite

    caracterizar situaes onde as decises relativas consumo e produo de um agente afetam

    diretamente a satisfao (bem-estar) ou o lucro (benefcio) de outros agentes, sem que o

    mercado avalie e faa pagar ou retribua o agente por essa interao. Assim, o autor elabora

    uma tipologia de externalidades que permitem avaliar a multifuncionalidade da agricultura. O

    primeiro tipo so as externalidades diretas decorrentes do carter compsito dos produtos e/ou

    dos fatores de produo agrcola e so resultantes da complementariedade tcnica envolvendo

    produtos ou fatores (o papel da agricultura para manuteno ou degradao dos recursos

    naturais), ou a partir de relaes econmicas associados ao processo produtivo (custo relativo

    dos fatores de produo e substituio entre fatores, economias de escala, preos dos

    produtos).

    O segundo tipo so as externalidades indiretas, as quais so mais difceis de serem

    apreendidas por possurem uma relao com a agricultura mais fraca. Por exemplo, a

    agricultura pode contribuir para a promoo da biodiversidade e manuteno das paisagens,

    por conseguinte, influenciar o turismo, ou o adensamento social pelos empregos gerados, mas,

    no entanto, essas externalidades no so valorizadas e nem valorizveis, tratando-se apenas de

    um estoque de recursos. Por fim, as externalidades de localizao referem-se a integrao

    geogrfica ou de proximidade, pois na medida em que a maioria dos recursos naturais

    necessrios agricultura esto localmente disponveis nos territrios, os efeitos ligados a sua

    imobilidade podem ser qualificados de externalidades territoriais no sentido de que o seu

    benefcio poder ser valorizado apenas localmente.

  • 35

    Outra contribuio importante presente na literatura internacional, o trabalho de

    Pecqueur (2006), onde elabora uma anlise de diferenciao dos processos e produtos

    territoriais a partir do conceito de cesta de bens. Para o autor a hiptese da cesta de bens

    pode ser verificada, quando num momento de aquisio de um produto de qualidade

    territorial, o consumidor descobre a especificidade de outros produtos procedentes da

    produo local e determina sua utilidade do conjunto de produtos oferecidos (cesta)

    (PACQUEUR, 2006:143). Empiricamente o autor demonstra que os processos produtivos de

    um determinado territrio podem colocar em prtica uma estratgia voltada para uma oferta

    ao mesmo tempo diversificada (integrando vrios tipos de bens e servios) e situada (

    vinculada a um territrio especfico, aos processos histricos e culturais). O autor cita como

    exemplo a produo do leo de oliva (produto lder) de Nyons na Frana que tambm induz

    a compra de outros produtos do mesmo territrio, como vinhos, leos essenciais, alm da

    utilizao turstica de terraos de oliveiras. Portanto, segundo Pecqueur (2005:14):

    [...] uma diferenciao durvel, isto , no suscetvel de ser ameaada pela mobilidade dos fatores, s pode nascer verdadeiramente dos nicos recursos especficos, que no podem existir sem as condies nas quais foram gerados. O desafio das estratgias de desenvolvimento dos territrios consiste, portanto, essencialmente em se apropriar dessas condies e buscar o que constituiria o potencial identificvel de um territrio. Essas condies no poderiam ser definidas no abstrato. Elas dependem do contexto no qual se inscreve o processo heurstico de onde nascem os recursos especficos.

    Desde a perspectiva at aqui discutida, sugere-se que as prticas de produo e

    trabalho no mbito das unidades familiares sejam abordadas e entendidas a partir do conceito

    de estilos de agricultura (PLOEG, 1994, 2003), ou seja, como um modo especfico de relao

    e interao entre os elementos scio-culturais, econmicos e os processos naturais que, num

    contexto histrico, mantm uma continuidade de modos de vida e produo agrcola ligada a

    dimenso espacial (territorial). Dessa forma, o conceito de estilos de agricultura adotado

    nesse trabalho privilegia o local onde estes esto inseridos, pois como ser visto no decorrer

    desse trabalho, as relaes de produo e trabalho da pecuria familiar do territrio Alto

    Camaqu esto enraizadas em circuitos do prprio territrio nas prticas historicamente

    construdas.

  • 36

    2.2 MERCANTILIZAO E DIVERSIDADE PRODUTIVA

    2.2.1 A mercantilizao tradicional e a mercantilizao diferenciada

    A segunda metade da dcada de 70 e incio dos anos 80 do sculo XX marcam o

    revigoramento dos estudos rurais acerca do entendimento da relao das unidades familiares

    frente ao capitalismo nas sociedades avanadas. O perodo desencadeia no pensamento social

    a retomada das discusses do papel das formas familiares de produo no capitalismo e as

    razes da sua perseverana a partir da vertente neomarxista que vai, fundamentalmente,

    resgatar as bases e as idias no revolucionrias de Marx e dos marxistas do sculo XIX.

    Os estudos neomarxistas tiveram iniciou nos Estados Unidos por um conjunto de

    autores que mais tarde formaram a escola conhecida como sociologia da agricultura. Uma

    discusso aprofundada sobre o pensamento terico-metodolgico da sociologia da agricultura

    norte-americana pode ser observada em Schneider (1997), onde segundo o autor, a sociologia

    da agricultura pode ser definida pela negao aos pressupostos da "rural sociology" [...] e

    caracteriza-se por uma clara preocupao com o estudo da "estrutura da agricultura" a partir

    de uma "perspectiva crtica" [...](grifos no original), principalmente em oposio ao

    difusionismo.

    Para alm da dificuldade de definio8 do referencial terico-metodolgico da

    economia poltica da sociologia da agricultura, alguns autores neomarxistas vo resgatar as

    proposies de Kautsky no que se refere aos estudos rurais. Conforme Schneider (1997: 239),

    os autores neo-kautskista [...] acreditam que a estrutura agrria tende a consolidar um

    modelo dual: de um lado, persistir uma diversidade de formas familiares de produo e, de

    outro, como plo hegemnico, se consolidar a industrializao e a mercantilizao da

    agricultura [...] (grifos no original).

    Portanto, no limite, os autores da escola sociolgica americana associados

    perspectiva neomarxista vo orientar seus estudos analisando, de forma desvinculada do

    8 Schneider (1997:238) citando Buttel et al. (1991), demonstra que na viso desse autor, a sociologia da agricultura segue duas orientaes: por um lado, esto os autores que procuram a partir de Marx demonstrar que o progresso tcnico segue uma orientao da penetrao do capitalismo na agricultura; e por outro, os autores que acreditam que o capitalismo tende a industrializar a agricultura igualmente ao processo de produo de mercadorias como outro qualquer. Alm disso, outros autores seguem uma terceira via analtica caracterizada pela fuso das duas perspectivas anteriores.

  • 37

    marxismo ortodoxo9, as transformaes da agricultura em face subordinao das unidades

    familiares frente penetrao do capitalismo.

    Nesse contexto, as formas de insero das unidades familiares de produo junto aos

    mercados se constituem um ambiente com as condies necessrias para os neomarxistas

    avaliarem as diferentes estratgias de reproduo desses agricultores no capitalismo.

    Friedmann (1978) recupera o conceito de Marx de produo simples de mercadoria e afirma

    que as formas familiares de produo esto inseridas num processo de acumulao capitalista

    como produtor simples de mercadoria e no como produtor ampliado (produo de mais

    valia). Para a autora mesmo numa condio de fragilidade enquanto produtores simples de

    mercadoria, a permanncia desses agricultores no capitalismo assegurada, de um lado, por

    certos comportamentos internos da unidade familiar como as relaes de parentesco e o ciclo

    demogrfico, e nesse caso corrobora com a perspectiva de Chayanov. Por outro lado, segundo

    a autora, a interveno do Estado assume um papel fundamental, j que alimento uma

    mercadoria estratgica para a manuteno da estabilidade social de uma nao e, portanto,

    interessa ao Estado.

    Situando no tempo - mesmo que brevemente - a corrente analtica do neomarxismo, na

    dcada de 1980 e 1990 a sociologia da agricultura norte americana impetrou novos adeptos

    junto aos estudos das cincias sociais na Europa para analisar as transformaes no

    capitalismo. Destacam-se as contribuies de Norman Long, Terry Marsden, e Jan Douwe

    Van der Ploeg, respectivamente numa perspectiva da antropologia, geografia e sociologia. O

    grupo neomarxista europeu vai propor a anlise da relao das unidades familiares e os

    mercados a partir do debate que ficou conhecido como mercantilizao da agricultura.

    Opondo-se a posio estruturalista de interpretao das transformaes das unidades

    familiares nas sociedades capitalistas avanadas a partir do paradigma da modernizao e da

    economia poltica, na escola europia, sobretudo em Long e Ploeg, possvel encontrar uma

    posio epistemolgica de ordem culturalista baseada na perspectiva orientada ao ator para

    analisar a mercantilizao e sua incluso adjacente as formas familiares de produo.

    Analisando a mercantilizao num plano mais macro, para alm da unidade

    produtiva, para Marsden (1995:293) a mercantilizao:

    9 Esses autores embora faam um resgate das idias de Kautsky contidas em Marx, ver Goodman e Redclift (1990) por exemplo, rejeitam a perspectiva revolucionria marxista de Lnin pelo fato desse considerar que os camponeses iriam se proletarizar e, desse modo, iriam formar uma classe social revolucionria.

  • 38

    [...] represents a variety of social and political processes by which commodity values are constructed and attributed to rural and agricultural objects, artifacts and people. It does not represent one all-encompassing process which, for instance transforms agricultural labour processes [...] it is a diversely constructed phenomenon around which development processes coalesce and then diffuse.

    Na concepo do autor a mercantilizao representa uma variedade de processos

    sociais e polticos no restritivos somente a atividade produtiva agrcola, mas se configura e

    avana sobre os espaos rurais, mercantilizando a paisagem, cultura e os modos de vidas.

    Por outro lado, os estudos da mercantilizao a partir da perspectiva orientada ao ator

    iro ratificar que mesmo estando os agricultores inseridos ao capitalismo, a forma como tal

    processo acontece, no necessariamente decorre exclusivamente enquanto o capitalismo

    sendo uma estrutura externa que determina e orienta por completo a vida desses agricultores.

    De acordo com Long (1998), mesmo que certas mudanas estruturais resultam do impacto de

    foras externas, teoricamente insatisfatrio basear uma anlise no conceito de determinao

    externa, pois todas as formas de interveno externa necessariamente entram nos mundos de

    vida dos indivduos e grupos sociais afetados, e desta maneira, so mediados e transformados

    por estes mesmos atores e estruturas locais.

    A mercantilizao se configura como um processo em que o capitalismo exerce foras

    de fora sobre os agricultores ( tecnologias, sistemas de preo, polticas pblicas etc), mas

    nela tambm existem espaos de manobra onde os agricultores estabelecem suas estratgias

    de resistncia (SCOTT, 1987), pois possuem capacidades de agncia (LONG, 2006) e

    habilidades cognitivas para interferir, se necessrio, no fluxo de eventos sociais ao seu

    entorno. Assim, a abordagem dos atores permite explicar respostas diferenciais para

    circunstncias estruturais similares, mesmo se as condies parecerem relativamente

    homogneas (LONG & PLOEG, 1994). Ou seja, pode-se assumir que os padres diferenciais

    que emergem so, em parte, criaes dos prprios atores (coletivos ou individuais).

    De acordo com Long (1998):

    [...] la mercantilizacion no solo cubre los procesos por los cuales se atribuye valor a los bienes en el mercado, sino tambien incluye el como las relaciones y el valor de las mercancias influyen en los patrones, los valores y el comportamiento del consumo, de la produccion, de la distribucion, del intercambio, de la circulacion y de la inversion[...].

    A perspectiva orientado ao ator, torna-se ento, uma tentativa de interpretao

    diferenciada para abordar os processos sociais e entender como os valores mercantis e outros

  • 39

    valores sociais involucrados fazem parte das prticas agrrias e influenciam as prticas

    sociais dos agricultores.

    O referencial adotado por Ploeg junto perspectiva orientada ao ator, conduziu esse

    autor a uma aproximao dialtica com alguns autores campesinistas (Chayanov, Shanin,

    Mendras, Wolf, Toledo, Sevilla-Guzmn, entre outros). Tal comportamento justifica-se pela

    tentativa de reunir elementos explicativos culturais para demonstrar justamente que o

    comportamento e/ou as formas de insero dos agricultores junto ao processo mais geral da

    mercantilizao, no pode ser compreendido simplesmente rotulando esses agricultores como

    atores sociais que esto completamente orientados a lgica mercantil e subordinados a sua

    rigidez. Dessa forma, o que Ploeg ir demonstrar em seus estudos que as formas familiares

    possuem um conjunto de racionalidades e estruturas internas de organizao e

    funcionamento que permitem essas famlias estabelecer relaes de proximidade e

    distanciamento dos mercados, diferenciando-as das empresas capitalistas de produo.

    Enquanto para Friedmann (1978) as unidades familiares so estruturas homogneas

    inseridas em contextos mercantis rgidos, para Ploeg (1993) esses agricultores encontram-se

    em ambientes marcados por uma mercantilizao multi-nvel e com distintos graus de

    mercantilizao da explorao agrcola, ou seja, os agricultores podem mercantilizar

    diferentes etapas do processo de produo e encontrar-se em diferentes graus de

    mercantilizao. Fundamentalmente esse ser o contexto analtico que Ploeg se situa, por um

    lado, para contestar e refutar as hipteses tericas marxistas que anunciavam o

    desaparecimento do campesinato e, por outro, para demonstrar que as unidades familiares,

    tanto nos pases desenvolvidos quanto perifricos, ao invs de desaparecem esto se

    fortalecendo constituindo o que Ploeg (2006, 2008) conceitualmente vm chamando de

    recampenizao.

    Desta forma, para Ploeg (1993) a mercantilizao no pode ser considerada um

    processo uniforme ou acabado, pois a complexidade de atividades produtivas e reprodutivas

    que compem a agricultura capaz de internalizar elementos que podem transforma-se ou no

    mercantilizados. Nessa perspectiva, portanto, o grau de mercantilizao agrcola representar

    um resultado negociado pelos interesses dos agricultores (ibid.). Uma segunda perspectiva da

    mercantilizao analisada por Ploeg refere-se ao conceito de cientifizao, entendido como a

    reconstruo sistemtica das atuais prticas agrcolas segundo as pautas marcadas por

    desenhos de carter cientifico (1993:154). Por meio da cientifizao se cria uma estrutura

  • 40

    que permite ao capital um controle direto sobre processo de trabalho agrcola, acelerando

    desta forma o processo de mercantilizao.

    Os elementos estruturais do que Ploeg chamou de cientifizao e suas relaes com o

    capitalismo receberam desde o advento da modernizao da agricultura inmeras

    contribuies satisfatrias de anlise e interpretao dos seus processos mais gerais, por

    exemplo, os trabalhos de Goodman et al. (1990), Romeiro (1998), Gomes (1999), Graziano

    da Silva (1999), Rosset (2000), Altieri (2001), Toledo (2006).

    De acordo com Graziano da Silva (1999), o progresso da cincia e sua relao com a

    agricultura tm um papel definido no capitalismo, qual seja, o desenvolvimento de tcnicas

    que permitem fortalecer a dominao do capital sobre o processo produtivo, permitindo assim

    incrementar a extorso de mais-valia, seja ela absoluta ou relativa. Crtico da industrializao

    da agricultura, o trabalho de Goodman et al. (1990) ganhou relevncia na literatura

    internacional ao demonstrar as vias pelas quais o progresso tcnico se tornou o responsvel

    por mediar a apropriao por parte da indstria do processo de produo agrcola. Segundo os

    autores, diante das limitaes estruturais da produo agrcola (limitaes da natureza, tempo

    de crescimento das plantas/animais), os capitalistas industriais reagiram adaptando-se as

    limitaes e especificidades da produo natural atravs do processo de apropriacionismo e

    do substitucionismo10. Essa perspectiva corrobora com a crena da tese de Kautsky (1986)

    que acreditava que o progresso tcnico seria o grande responsvel por transformar a

    agricultura e, estando os camponeses inseridos nesse processo, no teriam capacidade para

    acompanhar o progresso tcnico da agricultura.

    Mesmo nesses contextos onde a cientifizao est a servio dos preceitos do

    capitalismo, a mercantilizao da atividade agrcola no segue uma trajetria determinada a

    priori e, tampouco, se constitui como uma condio necessria para a reproduo social dos

    agricultores. Pelo contrrio, na perspectiva de alguns autores, como Ellis (1998), a insero

    das famlias em ambientes mercantilizados passam por uma integrao parcial a mercados

    incompletos. Tal comportamento segundo Abramovay (2007), deve-se porque o ambiente

    10Segundo Goodman et al. (1990:02), apropriacionismo se refere a ao empreendida pelos capitais industriais

    para reduzir a importncia da natureza na produo rural, e o substitucionismo criao de setores de acumulao nas fa