Dissertação Luciana Santos de Oliveira · 2014-07-28 · 2 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA...

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA PRÓ REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – PPPE PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura Belém- PA 2011

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA

PRÓ REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – PPPE

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA

LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA

TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura

Belém- PA 2011

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA PRÓ REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – PPPE

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA

LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA

TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagem e Cultura da Pró-Reitoria de Pós Graduação e Extensão da Universidade da Amazônia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Comunicação, Linguagem e Cultura. Orientador: Prof. Dr. José Guilherme Castro

Belém-PA 2011

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA PRÓ REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – PPPE

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA

Banca Examinadora

________________________________________ José Guilherme Castro (Orientador)

________________________________________ Leila do Socorro Rodrigues Feio

________________________________________ Lucilinda Ribeiro Teixeira

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Dedico este trabalho:

À minha mãe, Maria de Fátima Moura Santos, que me deu a vida e formou meu caráter e personalidade.

Pessoa presente em TODOS os meus capítulos de vida. A ela, que sempre me incentivou a ir além

que ajuda a formular a minha história. Principalmente pelo amor, carinho, confiança e paciência.

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RESUMO

Esta pesquisa tem como proposta analisar a projeto intitulado TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura o qual tenta relacionar a estética da recepção com a psicologia da velhice, a fim de conhecer e identificar vivências e percepções do público leitor que forma a Terceira Idade e que reside na Pia União do Pão de Santo Antônio, para o qual procede-se uma análise focada na memória, identidade e leitura. Realizou-se um levantamento teórico e um estudo do tipo exploratório com abordagem qualitativa. Foram entrevistados 5 (cinco) idosos por meio de um roteiro que serviu como guia para as suas narrativas. Como principais resultados foram percebidos que: há uma busca pela satisfação em ser velho, principalmente em encontrar consolo por estar na Instituição. Em geral, as mulheres tratam de argumentos ligados à esfera pessoal, afetiva e ao cotidiano, enquanto os homens abordam temais mais impessoais, concretos, relativos a eventos passados e presentes. Percebe-se a religiosidade constante nas narrativas, pois acredita-se que a mesma desempenha um papel de proteção e que a crença em uma divindade gera esperança e felicidade. Constatou-se também a influência do contexto social e familiar nas decisões acerca da carreira profissional. Os idosos têm usado seu tempo livre para aprender e desenvolver aptidões que antes não possuíam. Todos disseram que a leitura os permite ficar atualizados dos acontecimentos, além de ser uma importante terapia no momento de isolamento e uma forma de libertação. A maioria relatou que não tinha acesso a livros em casa, mas sim em bibliotecas, sebos ou durante viagens. As mulheres gostam mais de romances e livros espíritas, enquanto que os homens gostam de livros sobre ocultismo, esoterismo, ficção científica e escrevem poesias.

Palavras-chave: Estética da Recepção. Identidade. Inclusão social. 3ª Idade. Memória de Leitura.

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ABSTRACT

This search is to analyze the project entitled ELDERLY: a proposal for a study on the player and his memory of reading which attempts to link the aesthetics of reception with the psychology of old age, to ascertain and identify experiences and perceptions the reading public how the Third Age and is the Pious Union of the Bread of St. Anthony, for which there shall be an analysis focused on memory, identity and reading. We conducted a survey and a theoretical study of an exploratory qualitative approach. We interviewed 5 (five) seniors through a script that served as a guide to their narratives. The main results were noted: there is a quest for satisfaction in being old, mainly by being in finding solace in the institution. In general, women deal with arguments related to the personal, emotional and daily life, while men fear more impersonal approach, concrete, related to past and present events. We can see the constant religious narratives, because it is believed that it plays a protective role and that the belief in a deity creates hope and happiness. It was also the influence of social context and family in decisions about careers. The elderly have used their free time to learn and develop skills that had not previously possessed. All said that reading allows them to stay current events as well as being an important therapy at the time of isolation and a form of liberation. Most reported that they had no access to books at home, but in libraries, bookstores or on the road. Women like novels and more than spirit, while men like books on the occult, esoteric, science fiction and writing poetry.

Keywords: Aesthetics of Reception. Identity.Inclusion. 3rd Age. Memory Read.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10

CAPÍTULO I – A VELHICE .................................................................................... 16

1.1 REPRESENTAÇÃO SOCIAL E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A

COMPREENSÃO DO ENVELHECIMENTO ...................................................

17

1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SÓCIO-CULTURAL DA VELHICE 20

1.3 VELHICE E O SENTIMENTO DE PERDA ......................................................... 23

1.4 A VELHICE HOJE ................................................................................................ 25

1.5 A LONGEVIDADE HUMANA ............................................................................ 27

1.6 OS MECANISMOS DE DESGASTE .................................................................... 28

CAPÍTULO II – A MEMÓRIA – COLEÇÃO DE CACOS ................................... 30

2.1 OS LUGARES DA MEMÓRIA COLETIVA ....................................................... 32

2.2 A FAMÍLIA E OS PRIMEIROS QUADROS DA MEMÓRIA ............................ 32

2.3 CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA ........................................................... 34

2.2 MEMÓRIA E PÓS-MODERNIDADE .................................................................. 37

2.3 RESGATE DA CULTURA ATRAVÉS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS:

EXPERIÊNCIA DA VELHICE ...................................................................................

41

CAPÍTULO III – ESTÉTICA DA RECEPÇÃO ..................................................... 44

3.1 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO ................................................................................. 44

3.2 O HORIZONTE DE EXPECTATIVAS, EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E

HERMENÊUTICA, SEGUNDO JAUSS .....................................................................

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3.3 SOCIOLOGIA DA LEITURA ............................................................................... 51

CAPÍTULO IV – METODOLOGIA ........................................................................ 53

4.1 COMO OUVIR HISTÓRIAS ................................................................................. 53

4.2 OBJETO DA PESQUISA ...................................................................................... 54

4.2.1 A Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio .................................... 54

4.2.2 Objetivos da Instituição ................................................................................. 55

4.2.3 Atividades desenvolvidas ............................................................................... 55

4.2.4 Perfil dos idosos atendidos ............................................................................. 55

4.2.5 Funcionários .................................................................................................... 56

4.3 SUJEITOS DA PESQUISA ................................................................................... 56

4.4 INSTRUMENTO DE PESQUISA ......................................................................... 56

CAPÍTULO V – O MUNDO DA LEITURA CONTADO PELOS IDOSOS ........ 58

5.1 SÍLVIO: OCULTISMO E ESOTERISMO SÃO AS SUAS PRINCIPAIS

LEITURAS ...................................................................................................................

58

5.1.1 História de Vida ................................................................................................. 58

5.1.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 59

5.1.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 60

5.2 MARLENE: GOSTA DE ROMANCE E DE ANJOS ........................................... 62

5.2.1 História de Vida ................................................................................................. 62

5.2.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 62

5.3 MARCOS: GOSTA DE FICÇÃO CIENTÍFICA E DE ESCREVER POESIAS .. 64

5.3.1 História de Vida ................................................................................................. 64

5.3.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 66

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5.3.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 68

5.4 JOANA: GOSTA DE LER ROMANCES E LIVROS ESPÍRITAS ...................... 70

5.4.1 História de Vida ................................................................................................. 70

5.4.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 71

5.4.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 73

5.5 ANTÔNIO: LÊ VÁRIOS JORNAIS DIARIAMENTE E GOSTA DE

ESCREVER POESIAS ................................................................................................

73

5.5.1 História de Vida ................................................................................................. 73

5.5.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 76

5.5.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 78

5.6 ANÁLISE DOS RELATOS ................................................................................... 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 85

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 90

APÊNDICES ............................................................................................................... 97

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INTRODUÇÃO

Ninguém nasce sabendo ler. À medida que se vive, aprende-se a ler. Se ler livros se

aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem na escola da vida, independente da

aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros. Ler é

essencial, não apenas para aqueles que almejam participar da produção cultural mais sofisticada, dos

requintes da ciência e da técnica, da filosofia e da arte literária. A própria sociedade de consumo faz

muitos de seus apelos através da linguagem escrita e chega por vezes a transformar em consumo o

ato de ler, os rituais da leitura e o acesso a ela. Segundo Lajolo (2000, p. 108) “a discussão sobre

leitura, principalmente sobre a leitura numa sociedade que pretende democratizar-se, começa

dizendo que os profissionais mais diretamente responsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons

leitores”. Nesse sentido, salienta-se o papel social da leitura, visto que o homem leitor pode ampliar

as possibilidades de amadurecimento individual e intelectual e, por conseguinte, compreender

melhor a si e o mundo. Em contrapartida, as pessoas que não lêem tendem a ser rígidas em suas

idéias e ações e a conduzir suas vidas e trabalho pelo que se lhes transmite diretamente. A pessoa

que lê abre o seu mundo, pode receber informações e conhecimentos de outras pessoas de qualquer

parte. Dessa forma, o ato da leitura não se efetiva em ações isoladas, nem mesmo lineares, mas sim em

decorrência de complexa reação em cadeia de ações, sentimentos, desejos, especulações na bagagem de

conhecimentos armazenados, motivações, análises, críticas do leitor. A leitura é uma experiência e encontra-

se submetida a diversas variáveis que não podem deixar de ser verificadas, ao se tentar teorizá-la.

No Brasil, uma relevante parcela da população encontra-se na Terceira Idade e, o que se

percebe, é que essas pessoas ainda não são respeitadas como deveriam, muito menos desenvolvidas

suas potencialidades e seu saber. Conforme Martins (2003, p. 21) “a velhice está diferente. Surge

uma nova geração, é a suplementar! Atualmente, um homem de 75 anos é igual a um de 60 anos de

um passado não muito longínquo. A paisagem social e cultural está mudando. A velhice não é mais

uma decadência, mas uma oportunidade”. Dessa forma, pode-se dizer que no ato da leitura também

entra em jogo a experiência de vida do leitor, porque entre a leitura de uma obra e o efeito

pretendido ocorre o processo da compreensão, exigindo do leitor não só a utilização do

conhecimento filológico, mas de todo o seu conhecimento de mundo acumulado.

A chegada da Terceira Idade traz consigo limitações sobre um corpo já muito vivido,

porém estas pessoas vêm mostrando perseverança em vencer obstáculos, tentando disputar espaços

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numa sociedade preconceituosa que considera a velhice como uma fase de desvitalização,

acompanhada de uma errônea concepção de que os idosos são sujeitos carentes, que não possuem

atributos para oferecer. No entanto, para combater a senilidade, é essencial que o indivíduo se

dedique às atividades criativas, pois a criatividade conserva a lucidez. Isso remete às idéias de

Martins (2003) que afirma que viver em um ambiente de atividade criativa beneficia assaz o ser

humano. Neste caso, a atividade é de vital importância não só para o bem-estar físico, mas também

para conservar a capacidade intelectual do indivíduo. Para tanto, é necessário formular estratégias

diferenciadas que estimulem a memória de leitura, estudando este leitor, para que essas pessoas

possam desfrutar das vantagens do hábito da leitura, proporcionando-lhes bem-estar, confiança,

dinamismo e participação, superando inclusive, algumas crenças negativas que muitas vezes

distanciam o idoso do seu meio social. Dessa forma, o que se busca salientar neste projeto é que a

Terceira Idade é uma nova realidade que não deve estar associada a doença e a morte, na verdade é

um período em que devemos aproveitar a liberdade, a sabedoria e a experiência adquiridas com o

tempo.

Também o geriatra Berg (1979) se pronuncia a respeito da capacidade intelectual que,

segundo ele, é mais aguda na velhice. Explica que:

Enquanto o indivíduo se mantém em atividade intelectual ele continua com capacidade de produzir. À medida que o indivíduo envelhece, sua capacidade intelectual torna-se mais aguda e mais seletiva. Esses indivíduos, que são personalidades notáveis nos seus respectivos ramos de atividade, ao longo da vida sempre tiveram uma grande produção intelectual. Na faixa compreendida entre os 20 e os 30 anos de idade, é comum a existência de um interesse amplo, isto é, por várias atividades. A partir dos 30, o indivíduo vai começando a selecionar os assuntos pelos quais se interessa. Aos 60 essa seleção aumenta e ele se dedica, conforme cada caso, a dois ou três assuntos e se torna um craque naquilo. Podemos constatar que todos os grandes estadistas foram homens velhos, como, por exemplo, De Gaulle, Churchill, Ho Chi Min, Mao Tse-Tung. Noutros setores, podemos citar Bernard Shaw, Bertrand Russel, Picasso, Chaplin e Miro. O intelectual idoso não diminui sua atividade mental. O que diminui é a sua capacidade física (BERG, 1979, p.37).

Jauss (1994) observa também a importância da memória da leitura através das gerações,

enfatizando que diferentemente do acontecimento político, o literário não possui conseqüências

imperiosas, que seguem existindo por si só e das quais nenhuma geração posterior poderá escapar.

Ele só logra seguir produzindo seus efeitos na medida em que sua recepção se estenda pelas

gerações futuras, ou seja, por elas retomada, na medida em que haja leitores que novamente se

apropriem da obra passada, ou autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la. Esta é a

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importância da leitura como acontecimento que se realiza primordialmente no horizonte de

expectativas dos leitores, dos críticos e dos autores.

Ferrara (2007, p. 24) discorre sobre integrar sensações e associar percepções fazendo a

relação destas com o ato de recepção, levando em consideração a experiência e a vivência do leitor:

Sensações e associações despertam a memória das nossas experiências sensíveis e culturais, individuais e coletivas de modo que toda a nossa vivência passada e conservada na memória seja acionada. Na realidade é necessário despertar aqueles valores ou juízos perceptivos a que já nos referimos, compreender uma interação entre passado e presente, entre as sensações de ontem e de hoje, mais a reflexão sobre elas para compará-las e perceber-lhes os pontos de convergência e/ou divergência.

História e memória, utilizadas como caminho para o passado, surgem como um campo

reivindicado por inúmeras áreas do conhecimento. Porém, o conhecimento a respeito do passado

exige perspectivas que vão além das abrangidas pelas áreas de conhecimento, pois como o passado

não está mais presente, aumenta a incerteza de seu conhecimento. É ai que está a importância da

história de vida, do processo de rememoração como ferramenta necessária do conhecimento do

passado para o entendimento do presente, uma vez que,

A incerteza fundamental acerca do passado nos deixa cada vez mais ansiosos para confirmar que tudo se deu conforme relatado. Para nos assegurarmos que ontem foi tão importante quanto hoje, saturamo-nos de detalhes e fragmentos do passado, ratificando a memória e a história de forma tangível. Gostamos de imaginar que aqueles que então viveram, desejavam que soubéssemos o quanto tudo foi real (LOWENTHAL, 1998, p. 73).

Nesse contexto, a valorização da memória é importante, no sentido de captar o passado das

pessoas, expondo o que elas viveram e sentiram em sua história de vida e de seu tempo. Por isso, a

memória de leitura, contada por idosos e idosas, poderá revelar facetas diversas e interessantes com

grande significado para futuras pesquisas. Dessa forma, o projeto justifica-se por refletir e relacionar

a teoria da estética da recepção com a psicologia da velhice, de forma a travar um diálogo entre a

obra e o receptor, a fim de integrar suas percepções, vivências e memórias de leitura com a maneira

como este destinatário julga a leitura recebida ao longo de sua história de forma a validar a tradição

e a experiência de vida, que a idade proporciona.

Refletir sobre a existência de um texto ou sobre um conjunto de uma produção literária sem

levar em conta a concretização do ato da leitura, parece querer condená-la ao limbo, enclausurá-la e

privá-la da própria existência, na medida em que cabe ao leitor o papel de trazê-la ao mundo.

Num primeiro momento, essa afirmação pode soar banal e sem força, e até desnecessária. No

entanto, a figura do leitor no processo de reflexão não é um aspecto que faz parte da tradição dos

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estudos literários. Durante muito tempo, o interesse dos estudiosos ficou restrito à figura do autor ou

à análise imanentista do texto. Foi com o advento da estética da recepção que o público leitor

começou a desempenhar um papel importante na história da obra. Na tríade da hermenêutica

literária (autor, obra e leitor), o leitor ocupa uma posição de destaque deixando de ser um simples

destinatário passivo que recebe o texto, mas se transforma em elemento ativo que julga, aceita ou

rejeita a obra recebida, na atualidade ou no passado, usando, para isso, a reflexão. Partindo desde

princípio, escritor, texto e leitor não seriam parte integrante do mesmo processo? De acordo com

Lyons (1999, p.9), “a história da leitura é o estudo das normas e práticas que determinam as

respostas dos leitores àquilo que lêem”

Sartre (1964), ao levantar o questionamento “Para quem se escreve?”, observa que, à

primeira vista, a resposta é certeira: aquele que escreve se dirige a todos os homens, ao leitor

universal. Contudo, por mais que almeje a permanência de sua obra à posteridade, “o escritor fala a

seus contemporâneos, a seus compatriotas, a seus irmãos de raça ou de classe”. Nessa perspectiva, o

leitor assume uma natureza dupla: o leitor universal e o leitor concreto.

As idéias de Sartre, gestadas no período conturbado do pós-guerra (1947), enfatizam o papel

do leitor que, no ato de ler, complementa o ato de escrever. Outros estudiosos trouxeram à figura do

leitor os holofotes, sem, contudo, construir um gerador que lhe fornecesse luz própria e que lhe

prolongasse a existência.

Coube ao professor da Universidade de Constança, Hans Robert Jauss, em sua aula inaugural

do ano letivo de 1967 intitulada “A História da Literatura como Provocação a Teoria Literária”,

revitalizar o questionamento dos estudos relativos à história da literatura e consolidar o papel do

leitor enquanto ser integrante da estética literária. Nesse primeiro momento, Jauss realiza um

panorama crítico da história da literatura tradicional e desenvolve sete teses objetivando uma nova

metodologia e forma de (re) escrever a história da literatura.

A aura que reveste a feitura da escrita faz com que habitem no imaginário do leitor,

curiosidades e interesses sobre particularidades da vida do escritor. Como se dava a prática de

leitura através de pessoas nascidas entre as décadas de 1920 e 1940? Como era a relação das pessoas

com o livro? Havia bibliotecas que facilitavam o seu acesso? O acesso ao livro era obtido através de:

empréstimo entre amigos e familiares ou compra? Como este leitor percebe o escritor e as obras

literárias do seu tempo? De que forma essa memória de leitura pode ser resgatada e valorizada nos

dias de hoje?

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Diante dessas indagações, cabe a este estudo desvendar o leitor da Terceira Idade que reside

na Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio, de forma a compreender a obra dentro dos

limites do seu momento, inserido em seu contexto sócio-cultural. Assim, ao analisar a experiência

estética do público de leitores, através de seus próprios depoimentos, busca-se evidenciar as

condições históricas dessa recepção; reconstruir seu horizonte de expectativas e reconhecer se essa

produção foi relevante para a formação desse grupo de leitores.

Logo, neste estudo, além de enfatizar a leitura, destacarei também, a história de leitores

comuns, de pessoas que ao longo do tempo “escolheram certos livros em detrimento de outros,

aceitaram, em alguns casos, o veredicto dos antepassados, mas em outras ocasiões resgataram títulos

esquecidos do passado ou puseram na estante os eleitos entre seus contemporâneos (MANGUEL,

1997, p. 347). Essa é, também, a história de seus sofrimentos e de conquistas, adquiridas durante

toda a sua experiência com a leitura.

Para tanto, foram elencados os seguintes objetivos:

OBJETIVO GERAL

Relacionar a estética da recepção com a psicologia da velhice, a fim de conhecer e

identificar vivências e percepções do público leitor que forma a Terceira Idade e que reside na Pia

União do Pão de Santo Antônio.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Caracterizar a figura do leitor da Terceira Idade;

Identificar a história de vida de idosos que moram na Pia União do Pão de Santo

Antônio, resgatando suas experiências de leitura;

Resgatar a memória de leitura dos idosos da Pia União do Pão de Santo Antônio através

dos relatos de pessoas nascidas entre as décadas de 1920 e 1940;

Traçar o perfil do leitor da Terceira Idade, partindo dos princípios da teoria da estética

da recepção.

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Diante do exposto acima, percebo então, a relevância desta pesquisa, de caminhar para a

compreensão do funcionamento mental dos idosos, buscando descobrir a essência da sua sabedoria,

das suas histórias de vida e de suas memórias de leitura e de como eles percebem estas leituras nos

dias de hoje; resgatando assim, as suas experiências, talvez até esquecidas ao longo dos anos.

Dessa forma, o interesse pela leitura, através das memórias relatadas pelos idosos, sujeitos

da pesquisa, possibilita olhar os acontecimentos e as interpretações do passado que desejamos

guardar e apresentar para reforçar os sentimentos de pertença e de fronteiras entre os mais diversos

tipos de grupos sociais. Por isso, este estudo, além de valorizar a memória da pessoa idosa, registrar

a vida de pessoas comuns, também é um produto de comunicação científica formal, podendo

provocar o interesse da comunidade científica por sua continuidade.

Meu papel como pesquisadora e ouvinte acenderam em mim, também, as minhas

experiências e me tornaram possivelmente uma pessoa mais sábia, pois, quando religamos a nossa

história de vida com a dos outros, inventamos novas ligações possíveis que relataram outras

histórias de vida (JOSSO, 2006).

Percebo a relevância deste estudo para as pessoas de terceira idade que, ao longo da leitura,

poderão vir a descobrir o quanto possuem sabedoria e o quanto ainda têm para viver; possibilidade

também de descobrir a importância de suas experiências, de sua idade e de sua vivência. Relevância

também vejo para os profissionais que trabalham com a terceira idade, pois percorrerão ao longo das

vidas de idosos sábios, identificando caminhos já percorridos, tendo, também, a possibilidade de

descobrir outros que jamais pensavam que existiriam.

A você, leitor, apresento minha dissertação. Deleite-se nas histórias que percorri, contemple

os caminhos traçados, liberte as suas histórias para que cruzem com as minhas. Bem-vindo a uma

dissertação esculpida de sentimentos e de emoção. Sinto-me privilegiada por um tema tão

encantador: a memória de leitura na Terceira Idade.

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CAPÍTULO I – A VELHICE

A vida não para. O tempo não para. Apesar de se viver como se a vida durasse para sempre

e se pensar apenas no presente e no futuro próximo, em algum momento ela passará. Para alguns,

envelhecer trará desespero e conflitos, pois não se preparam para a velhice e para morte. Para outros,

trará satisfação e plenitude. Tudo depende de como se vive e se constrói a vida.

Na sociedade, pensar em velhice traz, diversas vezes, sentimentos negativos e necessidade

de negação. Porém, o Brasil não é mais um país de jovens, portanto faz-se necessário entender o

processo do envelhecimento. Além disso, a compreensão das representações sociais do idoso e da

velhice é importante para que se entenda como o idoso vivencia a própria velhice.

No clássico livro A Velhice, Beauvoir (1990) faz uma evidente distinção entre o que seja o

processo de envelhecimento e o envelhecimento. O processo de envelhecimento corresponderia às

mudanças orgânicas que ocorrem em cada momento do desenvolvimento do corpo biológico, e o

envelhecimento seria o momento específico de constatação de declínio desse corpo.

Nota-se que a autora não diferencia de forma pontual o envelhecimento e a velhice,

equivalendo os termos ao mesmo sentido e utilizando-os indistintamente. Entretanto, há momentos

em que a autora parece distingui-los, e o termo envelhecimento ganha o sentido de processo: “A

velhice não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo. Em que consiste

esse processo? Em outras palavras, o que é envelhecer? Esta ideia está ligada à ideia de mudança.”

(BEAUVOIR, 1990, p.17). Já a seguir, o termo velhice adquire o significado de uma realidade

biológica revestida conforme o contexto social: “a velhice não poderia ser compreendida senão em

sua totalidade; ela não é somente um fato biológico, mas também um fato cultural”. (BEAUVOIR,

1990, p.20).

Conforme Britto da Motta (2006), a visão preconceituosa sobre o idoso tornou-se

naturalizada e reúne, geralmente, as características de alguém com bastante idade, de aparência

asquerosa e enrugada, com ideias do passado, inativo, pouco ágil e de alguém que se espera

comedimento na participação social. E o envelhecimento tornou-se um mecanismo para a

classificação e o estabelecimento de parâmetros no desenvolvimento das pessoas.

Bosi (1994) escreve que velhice, além de destino é uma categorial social, uma vez que as

modificações na forma como as pessoas vivem esse período da vida, provocam também mudanças

na forma de compreendê-la e, por consequência, na forma como a sociedade se estrutura para lidar

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com ela. Para a autora, a sociedade em que vivem os idosos hoje é maléfica a eles, uma vez que se

mostra muito restritiva e não permite ou incentiva que se engajem em uma grande série de

atividades, o que acaba por colocá-los à margem da organização social.

Velho é um dos possíveis adjetivos que denota, na linguagem popular, um sentido

pejorativo à imagem de quem está envelhecido. Na história da humanidade, pode-se verificar que o

termo velhice ficou, na maioria dos tempos, vinculado ao significado da imagem de decrépito e

decadente devido às naturais perdas corporais decorrentes do processo de envelhecimento. Porém, o

termo pode estar articulado à ideia de vitalidade, longevidade, sabedoria, autoridade, respeito e à

idade cronológica avançada (BEAUVOIR, 1990).

Conforme Weineck (1991), a Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe uma

classificação cronológica das faixas etárias conforme o processo de desenvolvimento e

envelhecimento do homem. A primeira classificação abrange dos 15 aos 30 anos e é denominada de

“idade adulta jovem ou juvenil”. Dos 31 aos 45 anos é a “idade madura”. Quem tem entre 46 e 60

anos está na “idade de mudança ou média”. A faixa etária do “homem mais velho” compreende as

idades entre os 61 e 75 anos. Na faixa etária do “homem velho”, as idades são entre 76 e 90 anos, e a

faixa etária do “homem muito velho” é a última, que compreende as idades acima de 90 anos. O

período entre 46 e 60 anos é também designado como “período do homem em envelhecimento” ou

“início da idade da involução”, fase na qual ocorrem alterações determinantes do subsequente

envelhecimento humano (WEINECK, 1991, p. 329).

Sabe-se que o envelhecimento demográfico é uma realidade que contrasta com a

valorização desmesurada da imagem jovem no contexto sócio-histórico contemporâneo (IBGE,

2000). Há uma previsão de que haverá, no ano de 2025, mais idosos do que crianças no planeta e o

Brasil ficará classificado como o sexto país do mundo com o maior número de pessoas na velhice.

Estima-se que a expectativa de vida da população idosa no Brasil será de 92,5 anos para as mulheres

e de 87,5 anos para os homens (IBGE, 2000).

1.3 REPRESENTAÇÃO SOCIAL E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO

ENVELHECIMENTO

A teoria das representações sociais foi elaborada primeiramente por Serge Moscovici que

definiu representação social como um grupo de conceitos, afirmações e explicações originadas a

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partir do cotidiano e que equivalem aos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais.

Constituem formas de conhecimentos elaborados a partir do âmbito social por grupos de indivíduos

com o objetivo de comunicação e compreensão daquilo que lhe é estranho e não familiar

(MOSCOVICI, 1981, apud TEIXEIRA, SCHULZE & CAMARGO, 2002). Assim, a representação

social é um conjunto organizado de conhecimentos que permite que a realidade seja compreensível

aos indivíduos que dela participam. Além disso, prepara o indivíduo para a ação e, reciprocamente, é

modificada pela interação dessas ações no mundo social. Dessa forma, a teoria das representações

sociais permitem conhecer a forma como as pessoas (idosas ou não) constroem significados ao

período da vida denominado velhice, a partir da sua própria experiência individual e a partir de

conhecimentos cotidianos e científicos, incorporados aos seus discursos.

Além disso, em seu cerne, essa teoria traz a preocupação de romper campos estanques do

conhecimento científicos e considerar outras perspectivas de estudo dentro das ciências humanas

para a compreensão do ser humano em sua totalidade. Esse paradigma, defendido já na década de 60

por Moscovici, e hoje amplamente difundido através de conceitos como da interdisciplinaridade,

parece fundamental à compreensão do envelhecimento humano diante da complexidade deste

fenômeno e da impossibilidade de analisá-lo indissociadamente dos fenômenos sociais, históricos e

culturais (DEBERT e NERI, 1999).

Nas palavras de Moscovici (2005, p.77), e partindo desta concepção dialética da relação

entre indivíduo e mundo, as representações sociais “seriam uma modalidade de conhecimento

particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos, e

que por sua vez, contribui também para os processos de formação de condutas e de orientação das

comunicações sociais”.

Segundo Jodelet (2001, p. 48), as representações sociais são:

uma maneira de interpretar e de pensar nossa realidade cotidiana,uma forma de conhecimento social. (...). O social intervém aí de várias maneiras: através do contexto concreto em que se situam os indivíduos e os grupos; através da comunicação que se estabelece entre eles; através dos marcos de apreensão que proporciona sua bagagem cultural; através dos códigos, valores e ideologias relacionados com as posições e pertenças sociais específicas.

Nesse sentido, Lane (1993) também define as Representações Sociais como a forma pela

qual as pessoas elaboram o seu conhecimento, interpretam os acontecimentos que as rodeiam,

formam suas opiniões e atuam em conformidade a elas, a partir da consideração de que não existe

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um corte dado entre o universo exterior e o universo do indivíduo (ou do grupo) e de que sujeito e

objeto não são absolutamente heterogêneos.

Pode-se considerar a representação social como sendo “uma visão funcional do mundo que,

por sua vez, permite ao indivíduo e ao grupo dar um sentido às suas condutas e compreender a

realidade através de seu próprio sistema de referências: permitindo assim ao indivíduo se adaptar e

encontrar um lugar nessa realidade” (ABRIC, 1998, apud GUIMARÃES & CAMPOS, 2007, p.

190). As representações sociais se manifestam em falas, atitudes e condutas que se naturalizam no

contexto social e no cotidiano dos indivíduos. São naturalizações da maneira de agir, de pensar e de

sentir que se apresentam e se modificam a partir das estruturas sociais e das relações coletivas e

grupais (MINAYO, 2007). O princípio básico de gênese das representações pode ser resumido na

dinâmica da familiarização, no esforço particular e individual de cada um em transformar, a partir

das relações sociais concretas estabelecidas entre as pessoas, o não-familiar em familiar, o estranho

e desconhecido em comum, para que possam fazer parte do imaginário coletivo, caracterizado pelo

pensamento social. Como são conhecimentos significados pelos sujeitos e constituídos através das

relações sociais, as representações sociais são fenômenos cognitivos também carregados de emoções

e afetos, dimensões estas já consideradas por Moscovici em sua teoria.

A velhice e o processo de envelhecimento, da mesma forma que muitos outros aspectos da

vida humana, estão intrincados por representações sociais. A forma como a sociedade interpreta a

velhice e lida com os idosos é, entre outros fatores, resultante das representações sociais que foram

construídas. É justamente esta flexibilidade que possibilita a adaptação, ou a integração na

representação do sujeito, de suas experiências, vivências, permitindo assim variações de acordo com

a história de vida de cada indivíduo. Da mesma forma, o idoso poderá lidar consigo mesmo e com o

seu processo de envelhecer de acordo com o que é representado em seu contexto sócio-cultural.

Para Magalhães (1989), as representações da velhice tomam como referência processos

biológicos universais, além de questões que, nas sociedades ocidentais contemporâneas, passaram a

ser pensadas como problemas sociais. No Brasil, existem algumas pesquisas que demonstraram

como os próprios idosos simplificam o envelhecimento humano, exclusivamente a partir das perdas,

representando o processo com estereótipos negativos e preconceituosos (MEDRADO, 1996). Para

Santos (1990), tais representações negativas devem-se à ênfase dada à juventude e à incapacidade de

produção. Debert (1999), destaca que, além dos estudos feitos mostrando a representação da velhice

em termos de processo contínuo de perdas, estão-se abrindo outros espaços para que diversas

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experiências de envelhecimento bem sucedidas possam ser vividas coletivamente. Por exemplo, os

grupos de convivência de idosos e as universidades da terceira idade, entre outras. As representações

sociais da velhice têm implicações na vida cotidiana, à medida, que como já expresso anteriormente,

os comportamentos adotados por um indivíduo ou grupo de indivíduos são resultantes do modo

como eles representam socialmente esta prática e do significado pessoal que ela adquire em suas

vidas.

Com o objetivo de compreender de forma mais ampla a construção do envelhecimento e

suas representações sociais, é importante fazer uma contextualização histórico-sócio-cultural da

velhice.

1.4 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SÓCIO-CULTURAL DA VELHICE

Ao longo do percurso existencial do indivíduo, as concepções de juventude e de velhice se

transformam radicalmente. Essas concepções são interpretações sobre a trajetória da existência e não

concepções absolutas. Por isso, se constroem e se transformam historicamente, se fundam em um

campo de valores e se inserem ativamente na dinâmica das culturas. Esse campo de valores está

permeado pelas concepções inseridas em seu contexto sócio-cultural, e é construído pela mediação

de conceitos regulados por representações sociais que definem a maneira pela qual a juventude e a

velhice devem ser tratadas. Portanto, se for analisar cada era da história humana, percebe-se que a

forma como a juventude e a velhice são pensadas e abordadas será alterada a cada novo momento da

história da humanidade e a cada nova etapa da história de vida do indivíduo (BIRMAN, 1995).

Papaléo Netto (2002), tecendo considerações a respeito do desenvolvimento das chamadas

ciências do envelhecimento humano, deixa claro que a preocupação com a questão da velhice e do

envelhecimento sempre esteve presente ao longo da história em diversas civilizações, mesmo que se

configurando em diferentes formas e com preocupações bastante controversas.

Estudos históricos e sociológicos mostram que a velhice nem sempre foi vista da forma

como nosso século e a cultura ocidental a vêem. Até a passagem do século XVIII para o XIX, na

maioria das sociedades ocidentais, os velhos eram os depositários sociais da sabedoria, dos costumes

e das lendas, dos valores locais, e ocupavam lugar de prestígio nos conselhos comunitários

(HILLMAN, 2001). Nas sociedades tradicionais, a figura do idoso era envolvida por uma “aura

simbólica” que fazia do idoso o representante da sabedoria, da memória coletiva, dos valores da

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ancestralidade e a encarnação da família. As perdas da força física, da capacidade reprodutiva e da

capacidade de produção de bens materiais eram trocadas pelo lugar de detentor do poder da tradição.

Com a transformação social acontecida entre os séculos XVIII e XIX, os governos passam

a formular que a riqueza maior do Estado está na qualidade da população. Essa mudança de

paradigma leva ao investimento nas condições biológicas dos cidadãos e nas condições sanitárias,

com o objetivo de aumentar as suas riquezas materiais. Outra consequência foi a progressiva

medicalização do Ocidente com a introdução de novos métodos medicinais (vacinas, técnicas de

esterilização, etc.) e de programas de saúde pública (fornecimento de água potável, tratamento de

esgoto, etc.). A história social do homem passou a ser regulada pela intervenção maciça da medicina

no espaço social, e a longevidade e baixas taxas de mortalidade passaram a estar relacionadas com o

progresso e com a riqueza da sociedade (HILLMAN, 2001). Com o fortalecimento da medicina,

ocorre a biomedicalização da saúde, da vida e da velhice, e a consequente associação entre velhice e

doença.

Sob a influência do evolucionismo, surge no século XIX, a concepção do desenvolvimento

humano como uma sequência empírica de etapas fundadas biologicamente à Psicologia do

Desenvolvimento. Essa ciência começa a pesquisar os processos psíquicos humanos, as estruturas

cognitivas e afetivas dos indivíduos de acordo com a sequência das faixas etárias, e a traçar as

responsabilidades sociais de cada indivíduo e suas relações. Como locus principal das pesquisas

dessa época estavam a infância e a adolescência, pois se concebia o desenvolvimento apenas em

termos de ganhos e como um movimento unidirecional rumo à maturidade (BALTES, 1995). Essa

concepção era marcada pela ideia de ascendência do desenvolvimento durante a infância e a

adolescência, de estagnação na maturidade e decadência na velhice. Velhos são os que já viveram e

realizaram o seu projeto de vida.

Portanto, na medida em que o sujeito já realizou os seus potenciais evolutivos, ele perde o

seu valor social e está impossibilitado de produção de riqueza. A velhice, então, perde também o seu

valor simbólico e passa a estar relacionada com a decrepitude e com a morte. A experiência de

envelhecer passa a estar tão marcada pelo número de anos que ainda restam de vida, que o caráter

individual e a qualidade de vida ficam relegadas apenas à juventude e esquecidas, ou negadas, na

velhice. Além disso, o aumento crescente no número de idosos fez com que a idade deixasse de ser

determinante para um status social importante e diminuísse a importância do papel social do idoso

na sociedade, que passa a ocupar um lugar marginalizado (RUSCHEL & CASTRO, 1998).

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A modernização das culturas ocidentais a partir do século XIX rompeu com as tradições,

com as redes sociais tradicionais e com a estrutura familiar dos séculos anteriores. Na família

moderna, só havia lugar para a família nuclear e a reprodução só se delineava nos limites de uma

única geração. O idoso passa a ocupar um lugar periférico nessa nova família. O progresso moderno

ao mesmo tempo em que acrescentou anos à existência humana, diminuiu o valor dos idosos.

A partir do século XX, o interesse pelo idoso e pelo estudo do processo de envelhecimento

começa a surgir na Psicologia do Desenvolvimento. Na psicologia do desenvolvimento, Neri (2006)

apresenta a perspectiva teórica denominada de paradigma Life-span, que significa ao longo de toda a

vida. Nesse paradigma, o desenvolvimento e o envelhecimento são considerados processos

concorrentes, porque as mudanças evolutivas e de crescimento, como as mudanças de degeneração e

perdas, se fazem presentes em toda a extensão de vida do ser humano. Messy (1999) pressupõe a

velhice como um estado – estado de velhice – que ocorre em consequência de um desequilíbrio

entre as noções de aquisição e perdas psíquicas no envelhecimento; algo circunstancial e

independente das idades. Assim, a velhice não seria uma fase da vida, necessariamente, após a idade

adulta e sim, um estado no qual o sujeito se encontra quando perde o desejo. Então, como o desejo

pode ser perdido em qualquer fase da vida, provocando o desinvestimento libidinal, podemos inferir

que isso pode ser considerado um “marcador” para definir a velhice.

O final da Segunda Guerra Mundial trouxe mudanças para as sociedades ocidentais. Houve

um decréscimo populacional dos homens em idade reprodutiva e, consequente, diminuição das taxas

de natalidade e aumento da longevidade. O idoso passou a ser alvo da preocupação dos governos e

da sociedade em geral, no que diz respeito à saúde e às condições de vida. Porém, ainda não existia

um lugar social ativo para o idoso no século XX. Ele ainda era definido como uma ausência de

práxis e começou a ser objeto de exploração. Surgem as casas de repouso e asilos para os idosos que

pudessem pagar pelas despesas, mas muitos eram relegados a uma velhice pobre e alienada da

existência. A família passou a oprimir seus velhos de forma velada, com cuidados exagerados que os

paralisavam e com benevolência irônica.

As marcas deixadas pelo tempo no corpo do idoso, representadas pelas rugas e pela

flacidez, deixam de ser as marcas da sabedoria e da experiência de vida, passam a ser vistas como

sinônimo de vergonha e de fraqueza moral (DOURADO, 2000). Essa representação social da

velhice, além de entremear as relações sociais, muitas vezes é incorporada pelo idoso que pode se

tornar dependente ou doente.

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A relação dos membros da sociedade com memória também mudou, no século XIX. Ao

invés de possuir a dimensão de evocação e de resgate do passado através do idoso, a memória

passou a ocupar apenas o lugar de informação, tornando-se isenta de aspectos afetivos e simbólicos.

A memória começou a ser aplicada conforme as demandas produtivas do ambiente social e deixou

de ser fundamentada na potencialidade de evocação e transmissão dos valores da ancestralidade.

Essa forma de lidar com a memória reforça ainda mais a ausência de lugar e de função do idoso na

sociedade (BIRMAN, 1995). Por conseguinte, a dimensão da história particular e familiar se perde.

O idoso que adentra o século XXI é, então, marcado pela ausência de lugar e papéis ativos

na sociedade. Consequentemente, é estigmatizado pelas representações sociais que o descartam

como sujeito psíquico que ainda possui um futuro pela frente.

1.5 VELHICE E O SENTIMENTO DE PERDA

O envelhecimento humano, compreendido através de seus aspectos físicos e fisiológicos,

conforme descrito, não pode ser facilmente definido em virtude dos diversos fatores de natureza

social, histórica e cultural que os perpassam e determinam. Isto também acontece com a descrição

de aspectos de ordem psicológica, tais como a inteligência, a cognição, as emoções, a memória, a

atenção, dentre outros. Essas funções psicológicas têm origens socioculturais e, assim como em

qualquer período da vida humana, não podem ser consideradas a priori ou dissociadamente do

desenvolvimento sócio-histórico e cultural.

A velhice como uma vivência particularizada para cada sujeito causa uma diversidade de

sentidos que permeiam, na expressão de Luft (2003), a percepção de perdas e de ganhos.

Para Luft (2003), essa percepção é dependente das perspectivas e das possibilidades de

quem tece a própria história, conforme a poesia “Canção na plenitude”:

Não tenho mais os olhos de menina nem corpo adolescente, e a pele translúcida há muito se manchou. Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura agrandada pelos anos e o peso dos fardos bons ou ruins. (Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia). O que te posso dar é mais que tudo o que perdi: dou-te os meus ganhos. A maturidade que consegue rir quando em outros tempos choraria, busca a te agradar quando antigamente quereria apenas ser amada. Posso te dar-te muito mais do que beleza e juventude agora: esse dourados anos me ensinou a amar melhor, com mais paciência e não menos ardor, a entender-te se precisas, a aguardar-te quando vais, a dar-te regaço de amante e colo de amiga, e, sobretudo a força - que

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vem do aprendizado. Isso te posso dar: um amor antigo e confiável cujas marés - mesmo se fogem - retornam; cujas correntes ocultas não levam destroços, mas o sonho interminável das sereias. (LUFT, 2003, p.151).

Na Psicanálise, a percepção de perda pode ser interpretada no complexo formulado e

denominado por Freud (1924/2006) de castração. A maioria das pessoas depara-se com o sentimento

inconsciente de ameaça de castração que permaneceu inscrito no psiquismo humano como uma

operação simbólica a ser elaborada ao longo da vida. A castração na forma do recalque possibilita

ao neurótico negar que é faltoso. O símbolo do falo como representante da falta primordial recalcada

passa a simbolizar tudo aquilo que pode preencher com certa satisfação esta dificuldade do sujeito

em suportar que é constitutivamente faltoso. Entretanto, nem todo real da castração é possível de ser

simbolizado e parte deste real não simbolizado pode aparecer no lugar do falo como um puro real

que demonstra ao sujeito aquilo que ele não suporta saber, a sua falta (LACAN, 2005).

Deste modo, propõe-se pensar que a castração no real do corpo encontra-se nas perdas, nos

desgastes e no enfraquecimento corporal concernentes às alterações orgânicas ao longo do tempo

significadas de velhice. Não se trata mais somente do âmbito de ameaça ou da inscrição simbólica

no psiquismo, mas da efetiva castração no corpo que é mortal. As alterações corporais decorrentes

do processo de envelhecimento podem também significar perda irreparável de beleza e jovialidade,

caracterizando a velhice como fase de evidente feiúra e motivo para o isolamento social.

Messy (1999) afirma que a chegada da própria velhice para alguns pode ser somente

percebida quando há um acontecimento efetivo e brutal na vida da pessoa, geralmente relacionado

com alguma outra perda no passado. Para o autor, essa percepção sobre a velhice é circunstancial e

independe da idade, porém, confirma a expressão “quando a velhice nos pega é sempre de maneira

inesperada.” (MANNONI, 1995, p.34).

A pessoa na velhice pode confrontar-se também com a perda dos papéis sociais e atribuir a

esse fato o marco de entrada na velhice. Souza Santos (1990) afirma que o trabalho influencia

profundamente o psiquismo humano, porque ao mesmo tempo em que é fonte para a aquisição de

recursos materiais, também garante à pessoa a entrada no mundo das relações sociais, lugar da

construção da identidade social. Para o autor, quando se verifica a evidente importância do trabalho

no mundo capitalista e na vida da pessoa, é possível de se compreender o significado da perda do

trabalho e a chegada da aposentadoria, podendo essa adquirir, de modo favorável ou não, a

dimensão de entrada oficial na velhice.

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1.6 A VELHICE HOJE

Pelo histórico que se acabou de traçar, percebe-se o quanto a velhice foi investida de

valores negativos na modernidade. Apesar desse pensamento paradigmático da velhice como etapa

de decrepitude e de vergonha ainda persistir em nossa sociedade atual, a velhice está sendo objeto de

cuidado e atenção especiais. São tentativas de fazer calar os valores negativos que a modernidade

inscreveu na velhice. Nos países desenvolvidos e recentemente no Brasil, um novo movimento de

conscientização social tem mudado o olhar sobre a velhice, fazendo com que esta comece a receber

um reconhecimento social que ainda não existia na memória social da modernidade ocidental

(BIRMAN, 1995). Um fator que tem contribuído para essa mudança no campo de estudos e em

alguns setores da sociedade, é o aumento da população idosa ativa e produtiva que vem ocorrendo

há algumas décadas, nos países desenvolvidos e em desenvolvimento.

A partir de 1980, a população brasileira começou a sofrer alterações na sua estrutura etária.

O atual perfil demográfico do Brasil aponta que a nossa população está envelhecendo. Entre os

fatores que contribuíram para isso, estão a redução dos níveis de fecundidade, a mortalidade e o

acesso da população aos novos produtos técnico-científicos da medicina e dos medicamentos. Essa

mudança no perfil demográfico tem sido objeto de discussão no meio acadêmico, nos meios de

comunicação, das políticas públicas e de assistência social.

O índice de envelhecimento ou a razão entre a população de 65 anos ou mais e a população

de 0 a 14 anos de idade - que informa o número de pessoas idosas em uma população, para cada

grupo de 100 pessoas jovens - expressa a atual e a futura estrutura demográfica da sociedade

brasileira. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2004), no ano de 2000

havia a seguinte proporção etária: para cada 100 crianças entre 0 a 14 anos, havia 18,3 idosos com

65 anos de idade ou mais. Em 2030, cerca de 40% da população deverá apresentar a idade entre 30 e

60 anos. Em 2050, haverá no Brasil a proporção de 100 crianças (0 a 14 anos) para 105,6 idosos

com 65 anos ou mais. Tais dados não apenas alertam para o envelhecimento da população brasileira,

mas levantam questionamentos quanto à qualidade de vida dos idosos no futuro.

A projeção do perfil demográfico nos permite refletir sobre a atual situação dos idosos.

Nossa construção histórica expressa o descaso com suas experiências de vida, que não podem ser

simplesmente ignoradas. Seus saberes podem ser fundamentais para a qualidade de vida em

sociedade. Os Princípios das Nações Unidas para o Idoso, expressos na Resolução 46/91, de

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16/12/1991, destacam o direito do idoso de “permanecer integrado à sociedade, participar

ativamente na formulação e implementação de políticas que afetam diretamente seu bem-estar e

transmitir aos mais jovens conhecimentos e habilidades”. Esses princípios destacam a importância

social dos idosos como sujeitos de conhecimentos e habilidades acumulados ao longo da vida. Suas

experiências de vida podem promover a reflexão sobre as atitudes no meio ambiente e o resgate dos

saberes. Quando se conhece o passado, pode-se compreender o presente e discutir o futuro.

Nos últimos quarenta anos, as pesquisas no campo da psicologia social apontam que a

valorização da atividade e a atribuição de novos papéis sociais aumentam a satisfação do idoso e o

sentimento de pertencimento social. (NERI, 1993). O meio em que vive, tido como impeditivo, pode

trazer ao idoso a sensação de desamparo, porém o intercâmbio de gerações traz novas perspectivas

associadas às suas experiências de vida na construção de saberes, em que se incluiriam também os

ambientais. O problema da eficácia do idoso está na perspectiva social tida na velhice como um

processo de declínio. Essa perspectiva está centrada “em estimativas reais quanto em perspectivas

distorcidas sobre suas possibilidades” (NERI, 1993, p.19).

Como se percebeu, essa representação social que se teve sobre a velhice durante muito

tempo, negou-lhe o reconhecimento simbólico e qualquer forma de relação com o futuro, pois o

idoso estava desinvestido no seu presente. Durante muito tempo, ao idoso só restava o lugar e o

papel de rememorar o passado e suas lembranças. Com a mudança progressiva do lugar social da

velhice, começa a surgir a possibilidade de reconhecimento do velho como sujeito psíquico e como

agente social. Assim sendo, o idoso começa a vislumbrar a possibilidade de se relacionar de forma

diferente com o futuro, de redimensionar sua inserção na ordem da temporalidade, e ter sua

subjetividade reconhecida.

Mas, muito ainda há para ser feito. Infelizmente, o idoso ainda é tratado, em muitas

situações, com desrespeito e descaso, seja pelos órgãos públicos destinados ao seu acolhimento,

quando doente, seja pelas suas próprias famílias. Como ainda existe, na representação social da

velhice, uma relação direta entre envelhecimento e doença, muitos sintomas experimentados pelos

velhos são interpretados como elementos comuns e normais da velhice, e não como um presságio de

alguma doença, seja ela fisiológica ou psicológica. Assim, o sujeito idoso deixa de existir dando

lugar a uma pessoa que não é mais objeto de desejo (MESSY, 1999). Deste modo, muitos velhos são

abandonados e vivenciam o final de vida como fonte de amargura e de desespero, ao invés de vivê-

lo como uma fase de sabedoria e de busca de plenitude.

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Cícero (2006, p.105) afirmou que o ser humano identifica-se não pelo corpo e sim pelo

espírito ao escrever: “Tu não és aquele que apareces pela tua forma exterior, não és o aspecto que se

aponta com o dedo, mas és tua alma. Ela é tua identidade”. Hillman (2001) ressaltou a necessidade

de se repensar o papel e o lugar da velhice na atual sociedade. Porém, o que se observa é que a

mudança de foco ao se olhar a velhice tem ocorrido com mais frequência no âmbito acadêmico. No

cotidiano da vida, o olhar ainda continua no que se vê exteriormente e nos aspectos negativos da

velhice. A própria tentativa de demonstrar uma visão menos estereotipada pela substituição da

palavra “velho” por “idoso” e, depois, por “terceira idade” e esta por “melhor idade”, já conota o

preconceito e a dificuldade da sociedade em aceitar a velhice e suas características que diferem do

referencial de beleza da juventude. No presente trabalho os termos “idoso” e “velho”, “velhice” e

“terceira idade” serão utilizados de forma indiscriminada e sem qualquer conotação de valor.

Platão em A República declara: “Eu considero o velho como aqueles que vieram antes de

nós pela estrada em que todos estamos, e seria bom se perguntássemos a eles sobre a natureza dessa

estrada”. Perguntar aos idosos sobre suas trajetórias de vida poderá ajudar a compreender como o

envelhecimento pode ser construído. As perspectivas que serão abordadas neste trabalho de pesquisa

contribuirão, juntamente com outras, para que o idoso seja visto como um sujeito psíquico que

possui potencialidades a serem desenvolvidas, e para que o envelhecimento seja compreendido

como uma fase que também possui ganhos e não apenas perdas.

1.7 A LONGEVIDADE HUMANA

Para falar de longevidade humana é necessário fazer uma distinção entre duas noções: a

longevidade, ou duração do tempo que se passa em vida, e o envelhecimento, cedo ou tarde

inelutável, que evoca uma alteração das qualidades de vida às quais os seres humanos atribuem boa

dose de prazer.

Para Morin (2002), vive-se em um período revolucionário provavelmente sem precedentes

na história da humanidade, pois a cada quatro anos a esperança de vida aumenta de um ano.

Evidentemente, essa média leva em conta os bebês que morriam numa idade próxima a seu

nascimento, o que se tornou extremamente raro nos países desenvolvidos. A diminuição da

mortalidade das parturientes também desempenha um papel importante nesse fenômeno (esse tipo

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de morte explicava a curta duração de vida das mulheres há pouco mais de um século). Os idosos,

há trinta anos, morriam muito de pneumonia: o falecimento por volta dos sessenta anos era

frequente quando a penicilina ainda não existia. Tudo isso explica, em grande parte, o aumento atual

da esperança de vida, mesmo se as coisas são mais sutis. Para a sociedade, isso acarreta importantes

problemas de estrutura (economia, aposentadorias, famílias com quatro ou cinco gerações, etc.).

Todas as doenças clássicas diminuíram nesses anos recentes. Contudo, a contrário, outras

apareceram e fazem inúmeras perguntas à prática, á pesquisa e à organização médicas.

De fato, a maioria das pessoas pensa que a duração de vida da espécie é diretamente

determinada por um arranjo dos genes, como se existisse um “gene de duração de vida”. Essa noção

não é necessariamente válida, e em todo caso a longevidade aumentada que se observa atualmente

coloca diversas questões precisamente em relação à nossa espécie que iniciou, baseando-se em sua

biologia de mamífero (com um cérebro, uma atividade intelectual e uma memória diferente da dos

animais, especialmente no que diz respeito à memória transmitida pela sociedade), uma verdadeira

luta contra a natureza – luta capaz de mudar os dados anteriores. O homem vive mais do que a

maioria das outras espécies após o período de reprodução.

1.8 OS MECANISMOS DE DESGASTE

A matéria viva, paradoxalmente, perdura mais do que a matéria inanimada. Morin (2002)

afirma que somos perecíveis, é claro, enquanto o granito e o diamante são duros, mais isso é ao

mesmo tempo verdadeiro e falso, pois o que é duro e inanimado sofre um desgaste – frio, vento,

atritos -, enquanto que o que é vivo e frágil se renova. Um organismo (mesmo sendo frágil) é mais

apto para a sobrevivência do que uma célula, e até mesmo uma única célula como um micróbio pode

persistir mediante sua reprodução. Entretanto, tudo se desgasta, mesmo se as peças que enquadram a

matéria são reparáveis e, de fato, são reparadas durante muito tempo. O que é mais sólido e que

aparentemente não se modifica, os ossos, por exemplo, renova-se mais devagar do que a pele ou os

intestinos. Daí o potencial “existencial” dos fenômenos de regulação, como a alimentação e a

respiração. Os mecanismos pelos quais se desgasta a matéria viva são numerosos – mutação dos

genes, alteração das proteínas, acumulação de gorduras, etc.

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Do ponto de vista biomédico, quando se envelhece, o peso dos músculos e dos ossos, os

órgãos “secos”, diminui por oposição às estruturas gordurosas. Daí a fragilidade devida e grande

parte às perdas musculares e, incidentemente, nada é mais salutar do que fazer funcionar seus

músculos, o que proporciona um benefício indireto aos ossos.

Quando se é idoso, o hormônio do estresse, o cortisol, é geralmente elevado. As

consequências mais graves disso são as alterações do funcionamento cerebral, os defeitos

imunitários com possíveis consequências tumorais, mas a reversibilidade do funcionamento

hormonal permanece.

Entre os graves disfuncionamentos associados a uma vida mais longa, o problema do

funcionamento da memória é frequente e muitas vezes graves. O que acontece no decorrer do

envelhecimento? Ainda segundo Morin (2002), um composto medido no sangue, chamado DHEA,

diminui em 90% com a idade, tanto no homem como na mulher. Um hormônio é, por definição, um

composto químico fabricado em certas células e que atinge outras. Tratamentos podem ser utilizados

para melhorar a saúde e, especialmente, a saúde mental dos idosos. Isso poderia contribuir para

modificar a sociedade, permitindo uma longevidade de melhor qualidade, tanto no plano pessoal

quanto no social. Numerosas questões impõem-se, então: por exemplo, como facilitar a inserção

social de pessoas idosas em perfeito domínio de seus poderes físicos e, principalmente, mentais?

Como permitir-lhes um máximo de atividades úteis para elas mesmas, para suas famílias e para a

sociedade?

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CAPÍTULO II – A MEMÓRIA – COLEÇÃO DE CACOS

Segundo Lezak (2004), a memória é uma habilidade capaz de registrar, armazenar e evocar

informações. A memória é basicamente a conexão do passado com o presente, seja sob a forma de

imagens, seja como intrusões implícitas ou explícitas de como agir. Xavier (1996) considera-a uma

capacidade de alterar o comportamento em função de experiências anteriores. Ainda relata que a

memória é um processo básico para a sobrevivência, com a finalidade primordial de gerar previsões

(ABREU, 2001).

A memória é uma importante função cognitiva do homem que se relaciona com outras

funções como a linguagem e a atenção. Desempenha papel integrador, unificador e constitutivo em

relação à experiência pessoal e à experiência sobre o mundo físico (GREEN, 2000). Somente o ser

humano tem um sistema de memória tão complexo que lhe permite codificar, armazenar e integrar

informações provenientes de múltiplas fontes e usá-las para interpretar, organizar e iniciar

experiências, tanto sobre o mundo quanto sobre si mesmo.

A aprendizagem e a memória são fundamentais para a experiência humana. Conseguimos

adquirir novos conhecimentos sobre o mundo porque as experiências pelas quais passamos,

modificam o cérebro. E depois que aprendemos, conseguimos reter os novos conhecimentos na

memória, porque essas modificações são mantidas na nossa mente. Conseqüentemente, somos quem

somos devido ao que aprendemos e relembramos.

De acordo com Fentress e Wickhan (1992), esquecer é criativo porque se todos

lembrassem constantemente de tudo que é vivenciado, não precisaria inventar qualquer desculpa

para demonstrar esperteza, ou para esconder algo. Assim, não existe evocação sem a inteligência do

homem contemporâneo. “Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidada pelo espírito.

Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia. O sentimento também

precisa acompanha-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição”

(BOSI, 1994, p. 81).

Portanto, a memória é bastante complexa e, associados a ela estão o reconhecimento,

evocação e a articulação. Reconhecer é identificar algo, ou alguém, através de conhecimento ou

experiências anteriores. Evocar não necessita da presença física ou material, mas implica, antes,

trazer qualquer coisa de volta ao presente. “Evocar é, portanto, um ato puramente interior que

envolve qualquer tipo de representação mental (FENTRESS E WICKHAN, 1992, p. 42).

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Ao analisar, por exemplo, o conceito benjaminiano de experiência pressupõe fazê-lo em

oposição ao conceito de vivência. O termo vivência, na acepção de Walter Benjamin significa estar

ainda em vida quando um fato acontece. Pressupõe a presença viva e o testemunho ocular a um

evento. Conjuga a fugacidade do evento e a duração do testemunho, a singularidade do ato de vida e

a memória que o conserva e o transmite. Assim, as lembranças são guardadas na memória como

uma fonte viva, uma vez que a memória permite registrar as mais vivas recordações que, a qualquer

momento, podem aflorar. Logo, a memória é uma crescente reserva que dispõe da totalidade das

experiências adquiridas e a experiência, resulta de um conjunto de vivências.

Ecléa Bosi (1983), no primeiro capítulo de Memórias de velhos, a partir das contribuições

de Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Frederic Charles Barlett e Willian Stern, discute o conceito

de memória. Ao mesmo em tempo em que apresenta as principais concepções presentes nos

trabalhos de cada um dos autores supracitados, Bosi as relaciona (aproxima e contrapõe) dando

relevância ao nexo entre memória e vida social. À noção de memória como conservação espiritual

do passado, em Bergson, são incorporadas as concepções sociológica de Halbwachs e psicossocial

de Barlett. As influências do ambiente (sócio-cultural) sobre o curso da memória individual ganham,

dessa forma, lugar de destaque: mais do que uma “ressurreição” do passado, “a lembrança é uma

imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de

representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 1994, p.55). A memória do indivíduo

encontra-se ligada às demais dimensões de sua existência atual: aos amigos, à família e aos outros

grupos de pertencimento. O presente ressignifica o passado. Sob essa perspectiva, todo o trabalho

com a memória – esta suposta capacidade de ‘reter’ o passado - remete inevitavelmente ao presente

vivenciado pelo sujeito que lembra; remete, pois, também aos contextos específicos (circunstanciais)

nos quais se dá rememoração.

Alistair Thomson, historiador oral australiano, agrega em seu trabalho, os principais pontos

destacados até então. Em uma competente sistematização, que tem como base suas pesquisas junto a

veteranos de guerra australianos (Anzacs), Thomson explora três interações chaves: as relações entre

reminiscências pessoais e memória coletiva, entre memória e identidade e entre entrevistador e

entrevistado. De acordo com o autor, “compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa

vida passada e presente” (THOMSON, 1997, p.56). A utilização do termo composição, nesse

contexto, faz referência aos processos de reconstrução a que submetemos as imagens do passado a

partir das solicitações atuais. Para tanto, são utilizadas as linguagens e os significados conhecidos e

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socialmente aceitos de nossa cultura (THOMSON, 1997). Os vínculos entre memória e vida social –

ressaltados por Ecléa Bosi – são, dessa forma, contemplados a partir da noção de composição.

Entretanto, conforme salienta Thomson, nem sempre as imagens e linguagens disponíveis e

socialmente aceitas, em um determinado espaço-tempo, encaixam-se às experiências pessoais.

Portanto, os relatos coletivos que usamos para narrar e relembrar experiências não necessariamente apagam experiências que não fazem sentido para a coletividade. Incoerentes, desestruturadas e, na verdade, “não-lembradas”, essas experiências podem permanecer na memória e se manifestar em outras épocas e lugares – sustentadas talvez por relatos alternativos – ou através de imagens menos conscientes. Experiências novas ampliam constantemente as imagens antigas e no final exigem e geram novas formas de compreensão. (...) Que memórias escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo (THOMSON, 1997, p.56 e 57).

2.1 OS LUGARES DA MEMÓRIA COLETIVA

A memória coletiva é a memória do grupo. Esta que servirá de base para a memória

individual, traz consigo a maneira de sentir, pensar e agir do grupo, que foram passadas através de

gerações. A memória coletiva e a individual, ambas, são construídas na interação com o social, de

acordo com os modos de ser de cada grupo. Esses modos de ser impõem-se ao indivíduo que realiza

seu pensar, seu agir e seus registros de acordo com as construções coletivas.

Para Halbwachs (2004), a memória é o centro das tradições e também da identidade, pois é

devido ao que é lembrado, àquilo que é significado naquele momento de reconstrução que o

indivíduo representa-se e representa, também, o mundo.

Sendo assim, então um estudo da maneira como nos lembramos – a maneira como nos apresentamos nas nossas memórias, a maneira como definimos as nossas identidades pessoais e coletivas através das nossas memórias, a maneira como ordenamos e estruturamos as nossas ideias nas nossas memórias e a maneira como transmitimos essas memórias a outros – é o estudo da maneira como somos (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p.20)

2.2 A FAMÍLIA E OS PRIMEIROS QUADROS DA MEMÓRIA

Uma das maneiras de se estudar a cultura é através da memória. A memória do indivíduo

depende de seu relacionamento com a família, escola, igreja e outras instituições de referência.

Pensa-se, então, a memória relacionada a quadros e instituições sociais, como fato social que

expressa a consciência coletiva.

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Os modos de ser são apresentados ao indivíduo desde o nascimento dele, então ele constrói

a memória a partir de quando entra em contato com a cultura e com ela interage. Segundo

Halbwachs (2004), o indivíduo passa a fazer registros mnêmicos à medida que abandona seu estado

inicialmente instintivo e insere-se numa vida de relação e de troca com o outro.

O relacionar-se com o outro, o pensar com o outro e como o outro insere a criança na

corrente de pensamento do grupo. O grupo primordial de convívio da criança é a família. E só com o

passar do tempo ela passa a conviver com outros grupos e a fazer parte de outras correntes do

pensamento.

A criança é inserida na corrente de pensamento pelos comentários, reações e significados

que os familiares atribuem aos acontecimentos. Tais significados estão inseridos dentro de um

quadro social e, por isso, são guardados na memória. Nem sempre o acontecido passa imediatamente

a fazer parte da corrente de pensamento da criança, por vezes ele é significado posteriormente, de

acordo com as vivências e a maturidade por ela adquiridas.

As lembranças da infância, muitas vezes, não são rememoradas porque, à época do

acontecimento, o indivíduo ainda não estava inserido na corrente de pensamento. Pode ocorrer,

também, que determinado fato seja lembrado não porque a criança o selecionou, mas porque ela

percebeu que foi importante para os pais, ou porque despertou preocupação nos adultos e, por isso,

mereceu ser lembrado. Através dos comentários de familiares, a criança percebe que determinado

fato ultrapassou o círculo familiar e se inseriu em uma memória social, na história vivida da

sociedade.

A família é a primeira instituição de que o sujeito participa e, como tal, está ligada à

estrutura social, recebendo da sociedade uma força coerciva. A família, assim como outras

instituições, expressam nos modos de pensar, sentir e agir, o funcionamento, a fisiologia social, as

representações e a consciência coletiva. A família é a instituição que introduzirá o sujeito à

coletividade, aos modos de ser de certa sociedade. Ao longo da vida, este amplia seu convívio, pois

se insere em diferentes memórias coletivas e participa de grupos distintos, compartilhando das

consciências coletivas de cada um deles.

Apesar de a família ter mudado sua estrutura, devido a necessidade dos adultos inserirem-se

no mercado de trabalho, afastando-se das incumbências do núcleo familiar, ela ainda é o grupo

matriz, a referência e a base dos valores, da cultura, da proteção e do amor. É também lugar de

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exercício de poder, de definições de papéis e experiências de liberdade e de repressão (BACELAR,

2002).

2.3 CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA

Ao se pensar em cultura através da memória, deve-se ter claro que se fala dos modos, das

representações de determinada sociedade, de determinada coletividade em certo tempo e espaço.

Pertencer a uma cultura é pertencer a uma região, possuir uma identidade, não àquela

essencialmente geográfica, fisicamente limitada, mas a uma região construída simbolicamente. Para

Bourdieu (2000), região é uma divisão arbitrária, delimitada por diferentes critérios e que nada tem

de natural. Dentre eles podem estar a língua, o habitat, as relações com a terra e tantos outros que

são objetos de representações, de percepção e de apreciação. Esse entrecruzamento entre cultura,

identidade e memória está presente nas obras literárias, na linguagem, nas descrições dos ambientes,

nos modos de ser dos idosos e sujeitos que representam certas tradições e experiências de vida.

Cultura são teias de significados em que o homem está inserido e estudá-la não é buscar

leis, mas usar o significado de determinada cultura ou manifestação cultural. Segundo Geertz

(1989), o homem necessita de mecanismos de controle, de padrões de comportamento para que

possa conviver em grupo e a cultura dá ao homem esses padrões. Para o autor, a cultura é um

entrelaçado de símbolos construídos historicamente que representam fontes de informação através

das quais o homem se comunica, perpetua conhecimentos e atividades em relação à vida. Esses

símbolos existem fora do indivíduo, independente de sua vontade e de suas escolhas.

Canclini (2005, p. 117) atribui o conceito de identidade como “construção imaginária que

se narra”. Hall (2003), não busca identidade nas origens ou tradições de um povo, mas opta pela

identidade diaspórica, resultado híbrido entre múltiplas interferências culturais. Segundo esse autor:

As identidades cultuais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e história. Não uma essência, mas um posicionamento. Donde deve haver sempre uma política de identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta numa “lei de origem” sem problemas, transcendental (HALL, 2003, p. 70).

Essas dificuldades em definir cultura estão presentes em Diferentes, Desiguais e

Desconectados (2005), obra em que o autor resume três grandes definições de cultura (2005, p. 37-

41): 1- “cultura é o acúmulo de conhecimentos e de aptidões intelectuais e estéticas”; 2- cultura

como tudo aquilo criado pelo homem e por todos os homens a partir do natural que existe no mundo.

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São os modelos de comportamento, os costumes, as distribuições espaciais e temporais; 3- definição

sóciossemiótica, na qual a cultura abarca “o conjunto de processos sociais de produção, circulação e

consumo da significação na vida social”. Contudo, para o autor, mais importante que ater-se às

definições de cultura “é (...) descrever os esforços de convivência e não somente ressaltar as

diferenças”.

Hall (2000) afirma que o sujeito contemporâneo apresenta-se composto de várias

identidades. Desse modo, ele é definido como um indivíduo que não possui uma identidade

permanente, se forem considerados antigos valores, como definidores de uma unidade subjetiva, e

sim uma multiplicidade de desconcertantes e cambiantes identidades possíveis, podendo-se com

cada uma delas se identificar. De acordo com esse enfoque, é possível pensar que todos são

submetidos continuamente a influências de diversos sistemas culturais que se interpenetram e se

entrecruzam, promovendo uma heterogeneidade cultural pela convivência de vários códigos

simbólicos dentro de um mesmo grupo e até mesmo em um só sujeito.

Hall defende que a identidade também pode ser retratada como sendo as várias máscaras

sociais e ideológicas que nos identificam como seres humanos em momentos distintos. Em suas

palavras, “em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deve-se falar de identificação, e

vê-la como um processo em andamento” (2000, p. 39). No entanto para Bhabha (1998), a questão da

identidade não se estabelece somente no reconhecimento das diferenças com o outro. Segundo esse

autor, essa questão é mais complexa e implica a representação do sujeito a partir da sua condição de

diferente. Dessa forma, a construção de uma imagem do sujeito se estabelece na sua relação com um

outro. Essa definição faz pressupor que a identidade de um sujeito se constitui a partir da

experiência dele como indivíduo, como autônomo; e como ser coletivo, produto do meio por estar

sempre inserido em um grupo social. E essas duas últimas experiências são inseparáveis.

Relacionando ao objeto de estudo, tanto Canclini quanto Hall, apresentam a possibilidade

de representação e da reconstrução de identidades a partir do resgate mnemônico. A memória é

portanto, retratada como elemento que permeia a articulação da identidade do narrador (idoso), já

que funciona como fio condutor entre o sujeito e o seu permanecer no tempo e no espaço. Pode-se

observar, então, que é por meio da sua memória que o idoso, se rearticula nesse contexto, buscando

construir sua própria história, sua identidade e sua origem, ao buscar também, as identidades

daqueles que, de alguma forma, contribuíram para a sua formação como sujeito, partindo de suas

interações culturais.

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Tal procedimento mostra que a identidade articula o conjunto de referências que, de certa

forma, orientam o narrador na sua forma de agir e de mediar seu relacionamento com os outros e

consigo mesmo. Tudo isso se realiza por meio da própria experiência de vida do sujeito e das

representações da experiência coletiva de sua comunidade e sociedade, aprendidas na interação com

os outros. A identidade é, dessa forma, a continuidade das características do indivíduo através do

tempo, enraizadas na memória, no hábito e nas formas de tradições comunitárias. É algo que se

modifica de maneira lenta e imperceptível, por sofrer pequenas mudanças e variações em relação à

sociedade da qual faz parte.

A memória como produto da linguagem, também é pensada como produção simbólica e

parte integrante de um imaginário social. Nesse sentido, tanto a memória como a tradição são vistas

como fruto de um tempo determinado e de um conjunto social dado, por poderem constituir-se

elementos da história de mentalidades coletivas. Vale ressaltar, então, que a memória faz cruzar a

história e a intimidade, por permitir que os acontecimentos públicos e os pessoais sejam nutridos de

valores simbólicos vivenciados na encruzilhada da cultura e do desejo, oferecendo-nos, assim, focos

e direções existenciais e sociais em meio às experiências vividas pelo sujeito. É inegável que a

subjetividade alcançada pelas histórias contadas pelos idosos, é reconstruída nos interstícios e

limiares das formas sociais e culturais de existência vividas.

A memória é refletida pela vontade do ser social que exalta e destaca apenas os elementos-

chave, de sua vivência, expressos na sua oralidade. Por isso, Vasconcelos (2001, p. 28) diz que a

memória marca “os pontos que se fixam em volumes de lembranças, prontas a emergir dos

escaninhos mais profundos da alma, da pessoa que rememora”. Nesse caso, observamos que o mais

importante para a pessoa idosa é a sua própria rememoração, a qual ela expõe conforme sua

vontade. É nesse vínculo entre presente e passado que se percebe a estreita relação entre a memória

e o tempo. Encontra-se, portanto, nos idosos, uma memória atemporal que permite o acesso às

histórias, mitos, lendas de mundos distantes, saberes e épocas longínquas. Essas histórias que foram

retidas pela experiência, são percebidas pelo convívio e pela oralidade. A memória é, dessa maneira,

constituída pelo distanciamento temporal do narrador em relação ao fato narrado e pela mescla de

uma memória simultaneamente coletiva e individual. Nessa perspectiva, deve-se, ainda, ressaltar

que os espaços da casa, do bairro e da cidade são retratados como lugares representativos da

convivência, das trocas de experiências, das histórias, dos mitos, das lendas, das festas e dos jogos

sociais.

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O homem moderno vive o presente sem laços com o passado, atropelado pelo excesso de

apelos que a sociedade de consumo oferece, assim como na teoria freudiana do choque que

inviabiliza a impressão mnemônica e o seu consequente traço duradouro. Tais características estão

essencialmente presentes na atual sociedade da informação, em que a velocidade induz ao

esquecimento, não havendo espaço para a memória. Nessa circunstância, pode-se afirmar, ainda, que

a memória busca restaurar as lembranças e revitalizar dados do passado, preservando-se assim,

aquilo que não pode mais ser vivido.

Desse modo, ao se enraizar no social como linguagem, a memória possibilita a

reelaboração das experiências desses diversos grupos sociais, por permitir que elas se manifestem e

vinculem-se através de um trabalho a diferentes vozes. Ressalta-se, ainda, que essas tradições são,

por sua vez, conclamadas pela oralidade, por meio do olhar atento do narrador sobre esses mundos e

culturas, possibilitando que elas sejam recordadas e relidas, impedindo, dessa forma, o seu total

desaparecimento. É, assim, por meio da rememoração a partir do olhar subjetivo desse idoso-

narrador, que nós, leitores, vimos a conhecer essa realidade.

2.4 MEMÓRIA E PÓS-MODERNIDADE

Alberto Melucci, no livro O jogo do eu (2004), fala a respeito das dificuldades que se

encontra para definir a experiência do tempo. Segundo o escritor, as referências que são feitas ao

tempo remetem imediatamente a uma noção experiencial deste; remetem àquilo que, pelas próprias

experiências, sabe-se ser o tempo: “todos sabemos do que falamos quando dizemos ‘tempo’”

(MELUCCI, 2004, p.17). Contudo, é quando se tenta defini-lo que as dificuldades se apresentam.

Esse antigo problema tem produzido, ao longo dos séculos, diferentes estratégias para sua

superação, dentre as quais, possivelmente a mais frequente deve ter sido o uso de metáforas e de

mitos. Desde as culturas mais antigas, nas quais a referência ao tempo vinha acompanhada de

imagens divinas – aquáticas (fluidas) ou cíclicas – a experiência do tempo vem sendo traduzida

através de suas utilizações. A partir da análise de três diferentes figuras – o círculo, a flecha e o

ponto - utilizadas para esse fim, o de “representar simbolicamente a dimensão indescritível do

tempo” (MELUCCI, 2004, p.18), o autor constrói um quadro que nos permite vislumbrar as

principais transformações ocorridas nas formas de se perceber o tempo ao longo da história.

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Na figura do círculo, o tempo é representado como um eterno retornar de todas as coisas;

“as coisas repetem-se e nada é definitivamente adquirido ou perdido” (MELUCCI, 2004, p.18). Essa

metáfora que encontra na natureza, nos seus ciclos e ritmos, suporte material e inspiração, foi (e

ainda é) utilizada por diversas culturas. A alternância entre os dias e as noites, entre as estações do

ano, as fases da lua, a vida e a morte, revelam a existência de um tempo cíclico onde início e final

tornam-se relativos; onde todo o início implica um final que, por sua vez, implica um (re) início.

Esse tempo cíclico, representado pela figura do círculo, é ressignificado pelo cristianismo.

A partir da idéia de gênese e de fim do mundo são instituídos os limites de um percurso, agora,

linear. O tempo, ainda que continue apresentando-se à experiência imediata como uma sucessão de

ciclos, ganha agora uma dimensão profunda (linear) em que tudo isso acontece. O tempo da vida

sobre este planeta é um tempo marcado entre sua origem e seu anunciado final; o tempo da

experiência passa também a ser o caminho que percorremos entre o nascimento e a morte, um

percurso progressivo e irreversível no qual a possibilidade de salvação confere ao seu final o

derradeiro sentido.

Com o advento da modernidade, essa idéia - a de uma redenção final -, ressignificada,

ganha força e projeção:

A figura do círculo é substituída pela flecha, e o tempo, assim, segue um rumo, tem uma finalidade que é também o seu fim, ou seja, é o ponto final que dá sentido a todo o percurso precedente e ilumina as passagens intermediárias. A figura linear do tempo como flecha, seja ela interpretada no que implica salvação ou progresso, impregna as raízes profundas da cultura ocidental e alimenta, ainda hoje, nossa representação do tempo (MELUCCI, 2004, p.19).

Conforme destaca Melucci, a noção de tempo na modernidade assenta-se sobre duas

referências essenciais: a máquina e a meta. O tempo passa a ser medido por máquinas: é dividido em

unidades estáveis e equivalentes que permitem a atribuição de valores precisos a cada uma delas. A

partir daí, mais do que nunca, “time is money”. Os ritmos e as cadências que governam a vida

moderna, deixam de ser ditados pelos ciclos naturais e passam a ser marcados pelo “tic-tac” dos

relógios. As experiências do tempo são forçosamente homogeneizadas: o tempo social desencontra-

se cada vez mais dos tempos internos individuais. Pode-se falar, conforme Bauman (2001), em uma

rotinização do tempo.

Sob essa ótica, a linearidade das relações entre passado, presente e futuro - quando o

presente decorre do passado na mesma medida em que o futuro decorre do presente- é atravessada

por um jogo retroativo: é do futuro que partem os sentidos para a interpretação do passado e para a

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promoção do presente. O objetivo final para onde aponta a flecha justifica e condiciona os meios

que se utilizarão para sua consecução.

Contemporaneamente, entretanto, se assiste “o ocaso dos grandes mitos da modernidade, de

todos os contos de salvação que prometiam êxito no final do tempo”

(MELUCCI, 2004, p.19/20). O futuro se torna cada vez menos provável e o passado cada vez mais

distante. O presente consolida-se como o tempo próprio e único para a satisfação e o gozo. A

metáfora da flecha já não serve para representar a experiência atual do tempo. Agora, o ponto

expressa com maior precisão uma experiência de tempo fragmentada, descontínua e concentrada no

presente. Vive-se, conforme sustenta Bauman (2001), a era da instantaneidade, quando

“‘instantaneidade’ significa realização imediata, ‘no ato’ – mas também exaustão e desaparecimento

do interesse” (BAUMAN, 2001, p.137). A instantaneidade confere a cada momento valor

inestimável e sentido em si mesmo. É nesse sentido que o autor dirá que “a ‘escolha racional’ na era

da instantaneidade significa buscar a gratificação evitando as conseqüências, e particularmente as

responsabilidades que essas conseqüências podem implicar” (BAUMAN, 2001, p.148).

Em tempos de pós-modernidade¹ (modernidade tardia? modernidade líquida?), a

supervalorização do tempo presente se dá em detrimento das dimensões passada e futura das

experiências.

A busca pela “gratificação evitando as conseqüências” desconsidera os saberes produzidos

no passado e ignora os possíveis e inevitáveis desdobramentos de suas ações; também pressupõe

uma desvinculação cada vez maior com o espaço, com tudo aquilo que impeça ou dificulte o

movimento.

Na era da instantaneidade, o “movimento no espaço torna-se um fim em si mesmo”

(MELUCCI, 2004, p30/31). O espaço, assim como o tempo é experimentado como uma construção

multidimensional, sem referências estáveis.

_______________________________________________________

1 Frederic Jameson, em seu livro Pós-modenismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, contudo, alerta-nos:

“Pós-modernismo não é algo que se possa estabelecer de uma vez por todas e, então, usá-lo com a

consciência tranqüila. O conceito, se existe um, tem que surgir no fim, e não no começo de nossas

discussões do tema. Essas são as condições – as únicas, penso, que evitam os danos de uma clarificação

prematura – em que o termo pode continuar a ser usado de forma produtiva.” (JAMESON, 2000, p.25).

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Nesse contexto, em que o ritmo da mudança dilacera as referências espaciais, o passado,

cada vez mais distante, falta enquanto substrato e o futuro se rarefazem com a ausência do projeto.

Neste caso, a desorientação é um claro risco que temos de assumir. Contudo, se por um lado a

experiência pontual do tempo representa o “esfacelamento da tradição” de que nos fala Arendt

(2005), por outro lado na dimensão puntiforme existe também uma riqueza, a possibilidade de

reativar o horizonte da presença como capacidade de viver momento a momento, tecendo a trama da

continuidade.

O estabelecimento de relações entre passado, presente e futuro, entre as diferentes formas

com que se experimenta o tempo, apresenta-se hoje como condição necessária para a reabilitação

daquelas referências essenciais que permitem decidir e discernir (orientar) – justamente o que

desafia o atual momento.

É no presente que se encontra “o único horizonte possível para essa ligação: a presença é o

lugar em que passado e futuro podem estar em uma relação circular” (MELUCCI, 2004, p.23).

Memória e projeto se influenciam reciprocamente a partir do presente; o passado é ressignificado

pelo que “está sendo” e pelo que ainda “está por vir” ao mesmo tempo em que engendra as

condições de possibilidade atuais.

O espaço, tal qual o é experimentado, vem sendo submetido a velozes transformações. O

espaço físico, no qual residem e com o qual interagem as diferentes formas de vida que habitam este

planeta e os espaços simbólicos, sobre os quais se constroem os sentidos da existência, têm sido

objeto de contínua e, cada vez mais, intensa exploração.

O advento urbano, por exemplo, em sua expansão desmedida, promove a transformação

(destruição e reconstrução) do espaço. Essa transformação, dependendo da forma e da velocidade

com que é conduzida (ou não é, se for o caso), abala os vínculos que se estabelece com ele; priva-se

do contato com aqueles referenciais a partir dos quais são orientados.

Éclea Bosi em seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos (1994) tece algumas

considerações a esse respeito:

Há algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligação com a natureza. Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam, mas que persistem em nós como uma carência. Os velhos lamentarão a perda do muro em que se recostavam para tomar sol. Os que voltam do trabalho acharão cansativo o caminho sem a sombra do renque de árvores. A casa demolida abala os hábitos familiares e

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para os vizinhos que a viam há anos aquele canto de rua ganhará uma face estranha ou adversa (BOSI, 1994, p.451).

É importante destacar que essa discussão não visa ao desenvolvimento de uma postura

conservacionista, no sentido estrito de manter as coisas como elas estão; até mesmo por que, a

mudança, inexorável em sua marcha, a tudo e a todos atinge – “tudo muda o tempo todo”. O que se

pretende é conhecer os sentidos que se relacionam ao espaço e apresentá-los a reflexão; trazer à tona

o espaço enquanto realidade complexa atravessada por múltiplos interesses e sentimentos. Faz-se

importante, como nunca, restituir ao espaço sua complexidade, seus múltiplos sentidos, para que

esse possa ser pensado e apreendido de outras formas. O que se discute, também, é a velocidade

com que são operadas as transformações sobre o espaço: essa sim se apresenta hoje como uma das

principais responsáveis pelo solapamento dos esteios e referenciais sobre os/ a partir dos quais as

pessoas são orientadas. Novamente um excerto do trabalho de Bosi exemplifica essa questão:

A memória das sociedades antigas apoiava-se na estabilidade espacial e na confiança em que os seres da nossa convivência não se perderiam, não se afastariam. Constituíam-se valores ligados à práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), família larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a certos objetos biográficos (versus objetos de consumo). Eis aí alguns arrimos em que sua memória se apoiava (BOSI, 1994, p.447).

Bosi (1994) reafirma o papel dos idosos na família ao destacar que o velho é a memória da

família e da sociedade, tem o poder de tornar presente os que não estão mais ali, entretanto,

tornando-os visíveis nos hábitos, nos costumes e nos valores demonstrados. Os adultos, segundo

Bosi (1994) não se dedicam ao relembrar, não se prendem ao passado. Isso é papel do velho, que se

volta para a infância, para o passado da família e da sociedade.

2.3 RESGATE DA CULTURA ATRAVÉS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: EXPERIÊNCIA

DA VELHICE

Experiência enquanto ato ou efeito de experimentar, significa prática de vida indicando o

fato de suportar ou sofrer algo, como quando se diz que se experimenta uma dor ou uma alegria. Por

outro lado, experiência é um indicador de competência social ou técnica, no sentido de se possuir

habilidade, perícia ou prática, adquiridas com o exercício constante de uma profissão, de uma arte

ou de um ofício. Quem tem acumulado experiências, possui algo que lhe confere autoridade,

evidenciando uma distância que separa a ingenuidade juvenil da experiência de vida dos idosos.

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No ensaio “Experiência e Pobreza” de Walter Benjamin, a pobreza da experiência aparece

como um sintoma ou característica da modernidade, junto com a decadência da arte de narrar, de

compartilhar experiências. Ele inicia a narração com uma pequena parábola: um velho no leito de

sua morte revela aos seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Pretendia

transmitir aos filhos o que eles constataram com o passar do tempo através da lição da experiência: a

felicidade é o fruto do trabalho e do tempo. Benjamin lembra que era a transmissão da experiência

que conferia autoridade aos mais velhos. Por tal motivo, Bosi (1994) afirma que há um momento em

que o ser humano deixa de ser um membro ativo da sociedade e passa a viver uma velhice social.

Nesse momento, resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar e lembrar bem. A partir daí,

a pessoa idosa será a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade, pois tende a ocupar

a maioria do seu espaço mental com coisas do passado. Os provérbios, as histórias e as narrativas de

viagens cingiam o tempo de ver, viver, contar, transmitir e ouvir, constatando que as ações da

experiência estão em baixa, questionando:

O que foi feito de tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1987, p. 114)

Esse novo homem, pobre de experiências, formata-se aos espaços modulados e funcionais,

adaptados às necessidades práticas da vida moderna, nos quais os “rastros são apagados”. O

resultado de tudo isso é apenas a pobreza, pois todas as peças do patrimônio humano foram

abandonadas. O que resta é uma nova barbárie que deve e precisa ser assumida, para que a

humanidade possa dar conta de tamanhas perdas de culturas e, principalmente, de tradições. Esta

temática é retomada no ensaio “O Narrador”, associando o declínio da experiência com o fim da arte

de contar, visto que esse tipo de experiência é próprio de organizações comunitárias centradas no

artesanato, ou seja, de sociedades pré-capitalistas, onde havia espaço para a narrativa. O “frágil e

minúsculo corpo humano”, perdido neste cenário desolador “dominado por forças destruidoras e

explosões”, não lega nenhuma experiência a ser transmitida de pessoa a pessoa, de geração a

geração. São vivências que não se quer contar, ao contrário, busca-se esquecer. Se “a experiência

que anda de boca em boca é a fonte onde todos os narradores vão beber” (BENJAMIN, 1992, p. 28),

então não se tem mais o que ouvir e o que contar.

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Caracterizar um narrador nato é reconhecê-lo como alguém que tem o dom do conselho, ou

seja, inclinação para assuntos de interesse prático, capaz de dar instruções, transmitir ensinamentos

morais, como o camponês sedentário que conhece e transmite as tradições dos antepassados ou o

marinheiro, mercador dos mares que vai a terras longínquas e volta com a bagagem cheia de

histórias para contar. O que se conta tem um caráter fácil, claro e acessível, fascinado pela

simplicidade. Hoje, afirma Benjamin, dar conselhos soa como algo antiquado porque as experiências

estão deixando de ser comunicáveis.

Conselho é mais uma proposta do que a resposta a uma pergunta, é a continuação de uma história começada (ainda que esteja a desenrolar-se). Para pedirmos um conselho deveríamos, antes de mais, saber narrar a história (...). O conselho que é tecido na substância da vida vivida, é sabedoria. A arte de narrar tende a acabar porque o lado épico da verdade – a sabedoria - está a morrer (BENJAMIN, 1992, p. 31).

Uma das principais consequências do rompimento do intercâmbio de experiências é a

supressão da memória do indivíduo e a perda do sentido da história. O que mantém vinculados

ouvinte e narrador, é o interesse em conservar o que foi narrado. Quem ouve uma história, está na

companhia do narrador. A comunicação que o narrador efetiva não se restringe aos domínios da

comunicação verbal. Às palavras do narrador, somam-se os elementos não verbais de uma práxis

artesanal, incomum na modernidade, que integra alma, olhos e mãos, inseridos em um mesmo

contexto onde a gestualidade do trabalho incorpora a experiência do que é narrado. O narrador, é

para Benjamin, a síntese de mestre e sábio, porque sabe dar conselhos, porque pode recorrer à

própria vida associando à sua experiência mais íntima aquilo que aprendeu na tradição.

O estudo da leitura, através das memórias e das experiências relatadas pelos idosos,

sujeitos da pesquisa, possibilitará olhar os acontecimentos e as interpretações do passado que

desejamos guardar e apresentar para reforçar sentimentos de pertença e fronteiras entre os mais

diversos tipos de grupos sociais.

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CAPÍTULO III – ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

3.1 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

A recepção é de essencial importância para uma obra. Ela completa o ciclo e age como

“uma concretização pertinente à estrutura da obra, tanto no momento de sua produção quanto no

momento de sua leitura, que pode ser estudada esteticamente, o que dá ensejo à denominação da

teoria de estética da recepção” (AGUIAR e BORDINI, 1988, p. 81).

A Estética da Recepção foi delineada pela Escola de Constança, sob a liderança de Hans-

Robert Jauss (AGUIAR, 1996). A teoria é direcionada à perspectiva da recepção da obra,

enfatizando o papel da literatura no plano individual e coletivo, valorizando a função ativa e

criadora do leitor como receptor da obra literária. A estética da recepção pressupõe um

desdobramento essencial entre a recepção propriamente dita e uma análise do chamado efeito

estético. Deste ponto de vista, a estética da recepção “diz respeito ao modo como os textos têm sido

lidos e assimilados nos vários contextos históricos”. Por esta razão, é preciso “mapear as atitudes

que determinaram certo modo de compreensão dos textos numa situação histórica específica.

Zilberman (1989) afirma que Jauss trabalha sobre alguns pressupostos: o primeiro deles é o

de que a historicidade da literatura depende do diálogo da obra literária com seus leitores. Desta

forma, o autor reabilita a história de leitura, agora não mais com ênfase no autor ou no texto.

Focalizou, principalmente, o fenômeno estético-literário do texto, considerando o leitor como um

fato extrínseco e, portanto, com necessidade de ser estudado.

A recepção também é uma produção estética, pois o leitor é um ser ativo e criador. Por esse

motivo, a obra continua viva enquanto houver o leitor. A existência da obra se dá na medida em que

o seu leitor se relaciona com a mesma, modificando-a ou atualizando-a de acordo com suas

expectativas. Esta interação é chamada de horizonte de expectativas. Esse processo de produção e de

recepção estética vai determinar o rumo da história da literatura.

Para a revisão da história da literatura, Jauss (1994) se baseou em sete teses, sendo que as

quatro primeiras têm características de premissa e as três últimas apontam para a ação. A primeira

tese afirma que a natureza eminentemente histórica da literatura se manifesta durante o processo de

recepção e efeito de uma obra. Assim, a base da história literária é o leitor e sua relação dialógica

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com o texto. A historicidade defendida, portanto, é a atualização do texto, sendo que, a cada leitura,

a cada período, a obra se mostra mutável.

Na segunda tese, o autor esforça-se para evidenciar que o leitor não se baseie apenas em

sua subjetividade, para que não se caia novamente na crítica impressionista. Ela é formulada para

descrever a experiência literária do leitor, não sendo necessário recorrer à psicologia. Jauss (1994)

retoma a noção de horizonte cunhada por seu mestre, Gadamer. Assim, cada obra vem colocar-se,

para o leitor, em contraponto às suas experiências prévias e a própria obra oferece a seus leitores

informações prévias de gênero, sinais indiretos ou marcas explícitas de sua natureza, que o leitor

pode alterar, corrigir com sua própria experiência de leitura ou simplesmente reproduzir. É também

aspecto importante dessa tese a afirmação de que a recepção é um fato social no qual as reações

particulares não são apenas singulares ou individuais, mas fazem parte de reações de grupos que irão

apreciar e compreender ou não uma obra.

A terceira tese aborda a reconstituição do horizonte, sendo que esse fato possibilita

determinar o caráter artístico de cada obra. O valor decorre da distância estética do horizonte atual

do leitor e o horizonte apresentado pela obra e que leva o leitor a construir outro horizonte.

Na quarta tese, Jauss (1994) examina as relações do texto com seu período de

aparecimento. Isto equivale a descobrir qual era o horizonte de expectativas sob o qual a obra foi

criada e quais perguntas a obra respondeu para o leitor contemporâneo de seu lançamento (a idéia

das perguntas da obra também foi retirada de Gadamer). Trata-se da recuperação da comunicação

que houve naquele momento, trazendo de volta sua historicidade e o sentido que a obra recebeu no

seu presente, além do diálogo entre uma obra e seu público. Mais outro aspecto interessante no

resgate da obra: o horizonte de expectativas, em seu primeiro período, não é mais o mesmo. Ao

recuperar a pergunta do público de outra época e, portanto, sua hermenêutica, há a explicitação de

que havia outro horizonte de expectativas:

[...] escudado em Gadamer, [Jauss] adverte: “a pergunta reconstituída não pode estar no horizonte original, porque este horizonte histórico já foi englobado pelo horizonte da nossa atualidade” (p. 185). A “fusão de horizontes”, e Jauss novamente emprega uma noção cara seu mestre, já ocorreu, sendo agora parte integrante da compreensão. Jauss cita Gadamer diretamente: “compreender [é] sempre proceder ao processo de fusão dos horizontes aparentemente independentes um do outro” (ZILBERMAN, 1989, p. 37).

As últimas teses esclarecem o sistema metodológico de Jauss (1994), em que ele estuda a

obra de três formas: sob o aspecto diacrônico, que se refere à recepção das obras no decorrer do

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tempo; o sincrônico, que trata do sistema de relações da literatura ou de determinada obra em um

tempo determinado e a sucessão destes sistemas; o relacionamento da literatura com a vida prática.

Esta última tese é importante, uma vez que examina as relações da literatura com a sociedade. É nela

que Jauss (1994) enfatiza o caráter formador da literatura, que repercute na compreensão de mundo

do leitor e é transferida para sua vida real. Esta relação, entre literatura e vida, da última tese de

Jauss é transcrita por Zilberman (1989, p.39):

A relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial como estímulo à percepção estética, como também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral. A nova obra literária é acolhida e julgada tanto contra o background de outras formas artísticas, como ante o background da experiência cotidiana da vida.

Desta forma, de acordo com a Estética da Recepção, pode-se caracterizar o leitor como

parte da rede de sentidos do texto e, portanto, como elemento de essencial importância para que se

conheça o fenômeno literário. Tais teses são de primordial importância para a fundamentação

metodológica da história da literatura, como também, a forma de reescrever tal história.

3.2 O HORIZONTE DE EXPECTATIVAS, EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E HERMENÊUTICA,

SEGUNDO JAUSS

O horizonte de expectativas do leitor é formado por diversos fatores que influenciam

intimamente a vida de determinada obra, como o conjunto de normas estéticas, sociais, ideológicas e

filosóficas que permeiam determinada época e sociedade. Ou seja, um texto que, em determinado

momento, fez grande sucesso pode, em outro momento, tornar-se esquecido ou até discriminado,

alterando ou abalando os horizontes de expectativa daqueles novos leitores.

O horizonte de expectativas se constrói no leitor em sua consciência individual, mas como

um saber que se desenvolve no social. O horizonte situa o sujeito não apenas com relação à obra,

mas também no mundo real, através de comparação com aquilo que ele já conhecia.

Quando o leitor toma posicionamento dentro da leitura, no cotejo da tradição com o inusitado da obra, introjeta novos valores, deslocando seu horizonte. Uma nova obra pode satisfazer o horizonte de expectativas do público ou provocar sua alteração em maior ou menor grau. A distância entre a expectativa dos leitores e sua realização, denominada pelo autor de ‘distância estética’, vai determinar o valor artístico da obra. A ruptura com o horizonte de expectativas é, portanto, critério de valor, como o estranhamento para os formalistas (AGUIAR, 1996, p. 27).

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Como será visto com mais atenção na sociologia da leitura, assim como o horizonte de

expectativas muda, também muda o valor estético: uma obra pode ser “novidade”, e romper com os

horizontes de expectativas de um grupo social em uma determinada época. No entanto, pode tornar-

se vulgar para os leitores de épocas posteriores. Outrossim, obras consideradas “populares” e até

mesmo vulgares na época de seu lançamento, porém, ao apresentar novas questões, podem colocar-

se em um lugar revolucionário no horizonte de expectativas do leitor, em outras gerações. Segundo

Aguiar (1996), as obras de verdadeiro significado são aquelas que provocam o leitor a cada releitura,

trazendo também novos questionamentos. Para Jauss (1994), levantar o horizonte de expectativas é

levantar o horizonte de questões para o qual o texto seria a resposta, mesmo que tais respostas não

sejam definitivas. Aguiar (1996) aponta para o papel sincrônico e diacrônico do horizonte de

expectativas:

Para a teoria recepcional, a história da leitura deve reconstituir os horizontes de expectativas de uma obra e situar essa mesma obra na sucessão histórica dos eventos literários. Ao conceito de evolução literária, imanente dos formalistas, Jauss acrescenta a perspectiva social, atribuindo ao leitor um papel ativo. Contudo, o autor salienta que a experiência literária não pode ser pensada apenas diacronicamente, não se devendo confrontar apenas os horizontes de expectativas de um mesmo tempo através do tempo, mas verificar as relações que se estabelecem entre os horizontes de expectativas de diferentes obras simultâneas (AGUIAR, 1996, p. 28).

Segundo Zilberman (1982), o procedimento do exercício da leitura retrata um tipo

particular de leitor. Mas, esse exercício não ocorre de maneira espontânea, pois cada leitor, formado

pela escola, carrega um tipo de ideologia, ou seja, resultando em um horizonte cognitivo e histórico

que acaba dominando-o, pois está tomado por certas convenções que se expressam em seu modo de

vida. Zilberman (1982, p. 103) aponta as seguintes ordens de convenções estético-ideológicas

constitutivas do horizonte de expectativas:

- Social, pela posição do indivíduo na hierarquia da sociedade;

- Intelectual, pelo fato de que ele detém um conhecimento de mundo compatível com seu

espectro social, atingido após completar sua educação formal;

- Ideológica, por ser correspondente aos valores que são transmitidos ao indivíduo por seu

meio, de que se imbui e dos quais é muito difícil que ele fuja;

- Lingüística, que corresponde a certos padrões expressivos, mais ou menos coincidentes

com a norma padrão privilegiada, decorrente de sua educação ou do espaço e grupo social em que

transita;

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- Literária, sendo resultado de suas leituras, das preferências que apresenta, assim como da

oferta artística disponível pelos meios de comunicação e por outros meios, inclusive a escola.

Além desses fatores, pode-se incluir a ordem afetiva no horizonte de expectativas. Para

Jauss (1994), o juízo de crítica nada mais é que a materialização da compreensão do público e de

certos indivíduos, comparando seu horizonte de expectativas com as novas obras, em que

experiências familiares podem ser rechaçadas e há a acentuação de experiências latentes, ou as

experiências familiares podem ser bem aceitas. No entanto, para o autor, a valorização das obras se

dá na medida em que, em termos temáticos ou formais, elas alteram o horizonte de expectativas do

leitor levantando novos questionamentos.

A atitude receptiva começa através da aproximação entre leitor e texto, colocando em

contato o horizonte de expectativas e as convenções culturais, sociais e a tradição do leitor com as

convenções sociais e culturais colocadas pelo autor na obra. Quando a obra corrobora com a

bagagem que o leitor já possuía, quando confirma seu sistema de valores e de normas, diz-se que o

horizonte de expectativas permaneceu inalterado, pois há uma posição psicológica de conforto no

conhecido. Talvez seja por isso o sucesso e a aceitabilidade da literatura de massa, pois as obras vêm

apenas satisfazer a concepção que certo grupo de leitores tem do mundo. Por outro lado, obras com

difícil compreensão ou que não se encaixam no horizonte de expectativas do leitor por fatores

sociais, lingüísticos, ou qualquer um daqueles citados por Zilberman (1982) acabam por provocar a

rejeição, ou provocam uma interação conflitiva com o sistema de referências do leitor. Diante de um

texto com tais características, se o leitor responder aos desafios e adotar uma postura de

disponibilidade, romperá seu horizonte de expectativas e permitirá que a obra atue sobre ele através

das estratégias textuais, criando novo horizonte.

O leitor, em primeiro lugar, precisa conhecer o gênero e buscar as ideologias, sua estrutura

ou composição estética para conhecer as inovações que são feitas nele. O processo se concluirá após

o leitor analisar e entrar em contato com os aspectos díspares do seu horizonte de expectativas e,

depois, decide se incluirá a obra ou não nele. Quanto maior o número de leituras do indivíduo, maior

sua predisposição para “dialogar” com as obras e ampliar seu horizonte de expectativas.

Um livro, muitas vezes, é transformado em “clássico” sob pena de perder seu contato mais

aproximado com o dia-a-dia do público. No entender de Jauss (1979), as formas de interação do

leitor com o texto podem reforçar ou desafiar seu horizonte de expectativas. De uma forma ou de

outra, ela sugerirá normas de conduta para o leitor. Desta forma, haverá influências mútuas, pois a

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ficção mostra uma realidade em outro nível, um nível idealizado. Ou seja, a realidade retratada na

ficção e na literatura em geral, é a mesma, mas colocada em um grau superior, que faz com que o

leitor a incorpore a seu cotidiano.

Jauss (1994) considera que a comunicação com o público é o que complementa a arte.

Portanto, a experiência estética traz, ao mesmo tempo, prazer e conhecimento. Também atribui a ela

o papel de transgressão e, por isso, é emancipadora do sujeito. Ao mesmo tempo em que liberta ou

aliena o ser humano de seu cotidiano, fornece certo distanciamento entre o texto lido e o leitor. O

leitor sabe que o que está lendo é ficção e, por isso, esquece-se de seus problemas reais, mas a

leitura realizada não deixa de agir como elemento tensionador que, ao mesmo tempo em que

antecipa o futuro idealizado, provoca um reconhecimento retrospectivo do passado, ou seja, uma

volta e reflexão à sua própria realidade.

Jauss (1979) acredita que o objetivo de uma obra de arte não pode ser alcançado, se não for

vivenciado esteticamente. Portanto, as obras de arte são feitas para serem apreciadas pelo público, e

é esta comunicação que completa o sentido da arte. É nesse sentido que Jauss (1979) se opõe ao

prazer estético exposto por Roland Barthes em O prazer do texto, obra publicada em 1977, após a

Pequena apologia da experiência estética de Jauss. Barthes põe em foco dois conceitos de interação

com o texto literário: o prazer (plaiser) e a fruição (jouissance). Para o autor, prazer e fruição são

como duas margens opostas de um rio e que, às vezes, são complementares. Se o primeiro é

responsável pelo prazer afirmativo, a fruição, por sua vez, tem como conseqüência o deleite estético

negativo. Assim, o prazer constitui-se em uma alegria fácil e estável, enquanto a fruição traz a

fragmentação, a violência, a morte:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem (BARTHES, 1997, p. 21 e 22).

Ao priorizar a linguagem, o processo de leitura defendido por Barthes deixa um espaço

restrito para o leitor, a quem cabe um “papel passivo, tão só de recepção e desaparece como fonte de

prazer, sua atividade imaginante, experimentadora e doadora de significação” (JAUSS, 1979, p. 74).

Para Jauss (1979, p. 76), o prazer estético realiza-se “na relação dialética do prazer de si no

prazer do outro”, fato que coloca em primazia a figura do leitor, a quem cabe, no processo de leitura,

tanto a contemplação desinteressada, quanto as participação experimentadora. É nesse sentido que o

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prazer estético constitui-se em “um modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser outro,

capacidade a nós aberta pelo comportamento estético” (JAUSS, 1979, p. 77).

O processo hermenêutico deve ser compreendido como segmentado em três momentos: da

compreensão, quando o sujeito busca os sentidos do texto e os coteja; da interpretação, quando o

leitor introjeta os sentidos apreendidos anteriormente; e da aplicação, quando incorpora os

conhecimentos de acordo com suas possibilidades e necessidades. Quando o sujeito compreende a

obra ao ponto de apropriar-se dela, surge o prazer estético, transferindo esta experiência para seu

conhecimento de mundo e de realidade. Desta forma, Jauss percebe a função emancipadora e

humanizadora da literatura.

A hermenêutica - ciência geral da interpretação - forneceu a Jauss os princípios para

formação da hermenêutica literária, uma abordagem mais científica dos textos. Ele utilizou o

horizonte de expectativas, a tese da pergunta e da resposta do texto e, também, a fusão de horizontes

de diversas épocas com a atuação do passado sobre o sujeito e idéias baseadas nos princípios de

Gadamer. Tais elementos auxiliaram no processo de interpretação dos textos literários, através da

natureza dialógica da literatura. Mais que qualquer outra parte da teoria, a hermenêutica literária é

importante para a estética da recepção, pois um texto não pode ser parte de uma experiência literária

e estética se não for interpretado, quando ocorre o efeito.

O efeito é uma das duas modalidades de relacionamento entre o texto e o leitor. De um

lado, a obra, ao ser consumida, ou seja, no caso de um livro, lida, provoca um efeito sobre o

destinatário. Este efeito compõe-se de dois fenômenos concomitantes: a compreensão fruidora e a

fruição compreensiva, que ligam imediatamente o ato da leitura (intelectual, consciente e individual)

com o prazer.

A outra modalidade ocorre quando uma obra passa por um processo histórico, sendo, ao

longo do tempo, interpretada de maneiras diferentes. Esta é a recepção. O texto coloca orientações

prévias ao leitor, de certa forma imutáveis, pois o texto, como estrutura, não se modifica. A

recepção, por sua vez, é condicionada pelo leitor, que traz suas vivências pessoais para a fusão dos

horizontes, que pode equivaler à concretização do sentido. Utilizando-se da terminologia de Iser

(1996), o efeito mostra o leitor implícito, enquanto a recepção representa o leitor explícito. Assim, a

metodologia de Jauss sugere que se considerem separadamente os dois tópicos, uma vez que o leitor

implícito já é um código literário determinado, e o leitor explícito é o leitor com um código

historicamente determinado. Ao definir-se o leitor implícito no texto, é possível definir as estruturas

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do texto, sua pré-compreensão e, com isso, as projeções ideológicas de determinadas camadas de

leitores podem ser vistas (ZILBERMAN, 1989).

Desta forma, a Estética da Recepção é um estudo com um foco inovador no outro extremo

da criação artística, o leitor: isso a diferencia das demais teorias anteriores. Outro ponto que leva em

consideração o leitor, porém, não mais do ponto de vista individual, mas do ponto de vista de grupos

sociais, é a sociologia da leitura.

3.3 SOCIOLOGIA DA LEITURA

Apesar de a Estética da Recepção e a Sociologia da Leitura serem distintas quanto às

posições epistemológicas, acabam se completando, pois abordam a relação do leitor fora e dentro do

texto, objetivando estudar o público atuante dentro do processo literário e histórico:

A sociologia da leitura aparece inicialmente como um segmento da sociologia do saber, quando L.L. Schücking publica, em 1923, o livro Die Soziologie der Literarischen Geschmackbildung. A obra, cujo título poderia ser traduzido como A sociologia da formação do gosto literário, foi reeditada em 1931 e, em 1944, publicada na Inglaterra, com um nome mais simples de The sociology of literary taste [A sociologia do gosto literário], com o qual se popularizou (ZILBERMAN, 1989, p. 16).

O público, desta vez, é visto como fator ativo no processo literário, pois mudanças de gosto

e de preferência podem interferir não apenas na circulação, e, portanto, na fama dos textos, mas

também em sua produção. Esta observação passou a ser válida principalmente depois que o livro se

popularizou com a invenção da imprensa e, principalmente, com a ascensão da burguesia, que

passou a ter acesso ao livro como objeto de consumo, o que antes era privilégio da aristocracia

letrada. A teoria examina, então, as agências formadoras do gosto, e os mecanismos que inibem ou

facilitam a difusão de uma obra. Tais agências incluem a crítica literária e a escola, sendo que a

última tem um papel mais importante, como será visto a seguir. Depois de Schücking, vários autores

estudaram as implicações históricas e sociais da arte. Leavis e Hoggart (apud ZILBERMAN, 1989)

debruçaram-se sobre o estudo das leituras populares e dos fenômenos de literatura de massa. Isso

representou uma ruptura importante, pois, além de mostrar o papel do público e sua intervenção na

criação literária, também questionou o que faz uma obra ser “cult”, ou seja, intelectualmente

preferível, ou “kitsch”, considerada de mau gosto.

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O leitor inserido em um processo social, histórico e cultural determinado tem o poder

emancipador de considerar determinada obra, representativa ou não dentro de seu contexto e

preferência, segundo padrões de sua época. Ou seja, segundo Jacinto Prado Coelho (apud AGUIAR,

1996, p.23-24) “se toda leitura é foco de estudo porque definidora de um tipo de público, é também

objeto de análise a recepção dos textos considerados marginais e subliterários”.

Partindo desse preceito, a sociologia da leitura não considera o assim chamado “valor

literário de uma obra”, mas sim evidencia sua aceitação e circulação em um contexto,

proporcionando sucesso e permanência em uma sociedade.

A leitura é enriquecedora e pode ser feita com motivações diversas: informação, evasão,

prazer, entre outras. As circunstâncias da leitura também variam: pessoas podem ler apenas em seu

período disponível, podem se obrigar a ler algo necessário pela atividade profissional ou para um

conhecimento requerido.

Alguns estudos desenvolvidos a respeito dessa teoria surgiram na Escola de Bordéus, onde

Escarpit (1969) e sua equipe priorizaram três funções para Sociologia da Leitura: a primeira vê o

autor como um “homem de seu tempo”, inserido em uma sociedade e determinado pelas ideologias

vigentes da mesma. A segunda analisa a questão mercadológica, que delimita a produção,

publicação e distribuição das obras na sociedade e a terceira função é analisar o êxito ou fracasso de

um texto, considerando o seu tipo de público consumidor.

O estudo da Sociologia da Leitura possibilitou resgatar o estado de pesquisa nesse campo.

Seus estudos direcionados para a história do livro, da leitura, das práticas culturais de leitura e da

sociologia da cultura voltam-se para uma análise qualitativa e não quantitativa da distribuição social

das produções culturais, levando em consideração o nível de instrução e da origem social de seus

leitores. Há uma preocupação igualmente com a circulação e apropriação dos textos.

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CAPÍTULO IV - METODOLOGIA

4.1 COMO OUVIR HISTÓRIAS

Eu considero os velhos como aqueles que vieram antes de nós pela estrada em que todos estamos, e seria bom se

perguntássemos a eles sobre a natureza dessa estrada. Sócrates

A República

Diante do estudado nos primeiros capítulos, questionei-me qual seria a melhor forma de

investigar as dimensões do processo de envelhecimento e da memória de leitura dos idosos. A

pesquisa qualitativa demonstrou ser a que melhor responderia às questões a serem investigadas, pois

suas estratégias de análises de dados ocupam-se da interpretação dada pelo sujeito ao seu mundo

interno e externo, conforme Minayo (2007). Uma das principais características fundamentais dos

métodos qualitativos é o enfoque no caráter singular e subjetivo do objeto de estudo e dos processos

que o geraram.

Segundo González Rey (2005), a análise qualitativa dos dados da pesquisa pode ser

realizada a partir do que foi obtido através de entrevistas, narrativas, avaliações psicológicas, textos

e imagens, entre outros. Isso é possível porque seu objetivo é compreender peculiaridades inerentes

a cada sujeito estudado. Dessa forma, compreender as memórias de leituras à luz da história de vida

de cada idoso apenas seria possível a partir desse tipo de abordagem.

Conforme já exposto no capítulo anterior, busquei na Estética da Recepção o método para

ouvir as histórias de vida e relacioná-las a memória de leitura dos idosos. Não esquecendo que o

leitor não se aproxima do texto isento de experiências, pré-concepções e outros envolvimentos

sociais e literários anteriores. E o repertório pessoal que ele movimenta quando do ato da leitura é

determinado, ou pelo menos influenciado, por sua época e por seu lugar. E em se tratando quer de

leitura, quer de interpretação, não existem reações puramente literárias. Todas as reações, sem

exclusão das reações à forma literária estão profundamente arraigadas no indivíduo social e histórico

que somos. Isso significa que toda resposta produzida em relação a uma obra literária é definida e

delimitada pela posição do leitor na sociedade.

O universo pesquisado é formado por 110 (cento e dez) idosos que moram na Associação

da Pia União do Pão de Santo Antônio. A amostra escolhida será composta por 05 (cinco) idosos

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para realizar a pesquisa, levando em consideração que estes idosos devem possuir a leitura em sua

história de vida.

4.2 OBJETO DA PESQUISA

4.2.1 A Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio

Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio tem na sua história passagens de lutas

contra as dificuldades financeiras que sempre foram muitas, mas vão sendo superadas, graças ao

imperioso reconhecimento da necessidade de mantê-la funcionando bem.

A Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio, fundada em 13 de janeiro de 1930 é

uma instituição considerada como referência ao amparo da Terceira Idade. É constituída com fins

não econômicos e reconhecida de utilidade pública nas três esferas de governo: Lei Municipal 6.985

de 7 de abril de 1976, Lei Estadual 3.308 de 10 de julho de 1939 e Lei Federal 82.474 de 23 de

outubro de 1978, com prazo indeterminado de existência e funcionamento, regendo-se pelas regras

estabelecidas nos seus Estatuto e Regimento Interno. É composta por número ilimitado de

associados, obedecido o procedimento para sua admissão, conforme normas estatutárias. É dirigida

por pessoas que prestam serviços voluntários, apoiados tecnicamente pelas coordenadorias: médica,

jurídica, administrativa e contábil com seus respectivos departamentos, abrangendo servidores

regidos pelas leis trabalhistas.

De acordo com seu Estatuto reformado em 2005, a Casa abriga três categorias de

residentes:

O pobre sem família e destituído de recursos de qualquer natureza, que é admitido no

Casarão, sem qualquer ônus, desde que haja disponibilidade de vagas;

Pensionista, com aposentadoria ou pensão, que pagará uma mensalidade

correspondente a 70% dos seus proventos; e

Pensionista, com maior poder aquisitivo, que pagará uma mensalidade fixada pela

Diretoria Executiva, de acordo com as instalações a serem ocupadas.

As formas de acesso à Instituição ocorrem através de demanda espontânea e

encaminhamentos de diversos órgãos como Promotoria do Idoso, CRAS, CREAS, Unidades de

Saúde e outros. Seu período de funcionamento é de 24 horas.

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Atualmente, a Associação dispõe do Centro da Terceira Idade com 16 (dezesseis) chalés e

24 (vinte e quatro) apartamentos destinados aos idosos de melhores condições financeiras para

ajudar no custeio das despesas de manutenção dos idosos residentes no Casarão.

4.2.2 Objetivos da Instituição

Incentivar, entre todas as pessoas, sem distinção de sexo, cor ou idade o culto e

devoção a Santo Antônio, divulgando, por todos os meios ao seu alcance, a sua vida,

obra e milagres, promovendo na sua Capela orações, em especial a festividade com a

Trezena de Santo Antônio, anualmente, no mês de junho;

Abrigar anciãos de ambos os sexos, a partir de 55 anos de idade, ou que seja portador

de atestado médico certificando velhice precoce; e

Como instituição confessional, anualmente, comemora as datas festivas da Igreja

Católica, dentro da disponibilidade de recursos existentes.

4.2.3 Atividades desenvolvidas:

Sendo uma entidade asilar, desenvolve junto ao idoso residente atividades que o

mantenham participativo e integrado a sua nova opção de vida. Com efeito, proporciona para um

maior congraçamento:

Atividades sociais: comemorações de aniversários, datas festivas, bailes, desfiles, passeio,

piqueniques, etc.

Atividades Recreativas: pinturas, execução de artesanatos, campeonatos de jogos de mesa,

hidroginástica, etc.

Atividades culturais: leitura de livros, jornais, revistas, coral, dramatização, etc.

Atividades religiosas: trezena de Santo Antônio, Via Sacra, peregrinação de Nossa Senhora

de Nazaré, novena de Natal e celebrações religiosas.

4.2.4 Perfil dos idosos atendidos

A entidade atende a todos aqueles que a buscam, obedecendo, os seguintes critérios:

Disponibilidade de vagas;

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Avaliação médica (consulta e exames);

Comprometimento de um responsável; e

Ajustamento as normas da Casa.

4.2.5 Funcionários

Visando assegurar uma melhor qualidade de vida do idoso residente a Instituição dispõe de:

49 (quarenta e nove) empregados regidos pela CLT, entre eles: Auxiliar de Escritório,

Auxiliar de Tesouraria, Supervisor, Recreadora, Motorista, Serviços Gerais,

Serventes, Cozinheira, Auxiliar de Cozinha, Porteiros, Costureiras, Pintor, Jardineiro,

Encarregado de Obras; e

Corpo Técnico: 1 Médico, 1 Enfermeira, 5 Técnicas de Enfermagem, 1 Assistente

Social, 1 Fisioterapeuta, 1 Nutricionista e 1 Professor de Educação Física.

Os especialistas possuem o seu local específico de trabalho, assim como o material

essencial para o desempenho de suas atividades.

4.3 SUJEITOS DA PESQUISA

A pesquisa realizada teve como participantes 5 (cinco) idosos, sendo: 03 (três) homens e 02

(duas) mulheres. Todos na faixa etária de 70 a 85 anos. Destes 05 (cinco) idosos entrevistados, 02

(dois) moram no casarão, 2 (dois) nos chalés e 01 (um) nos apartamentos.

Na tentativa de conhecer a experiência de leitura e história de vida dos idosos que vivem

em um contexto asilar optei por escolher idosos que vivem tanto na casa, pois são mais dependentes,

recebem atendimento médico psiquiátrico e psicológico intenso, quanto nos chalés e apartamentos

que, além de receberem um atendimento multidisciplinar, também têm oportunidades de convívio

social como os que são oferecidos pelos grupos terapêuticos

4.4 INSTRUMENTO DE PESQUISA

Como instrumento de pesquisa foi adotado um roteiro de questões para embasar as

narrativas e oportunizar a interação e a troca de informação entre o pesquisador e o pesquisado.

A entrevista realizada foi semi-estruturada com base em um roteiro composto por itens

sobre a história de vida e memória de leitura dos idosos. Esse instrumento teve como objetivo

oferecer ao idoso oportunidade de falar sobre sua vida e seus hábitos de leitura. Os aspectos

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investigados englobaram fatos relevantes sobre a trajetória existencial do indivíduo, seu ambiente

psicossocial, sua participação social, vivência e enfrentamento de perdas, sua memória, atividades

ocupacionais, leituras, entre outros aspectos.

A escolha deste instrumento se deu pela riqueza de informações presentes em situações

onde a narrativa de história de vida é proposta. Adotou-se como pressuposto que a narrativa não é

apenas um relato de acontecimentos, mas a totalidade de uma experiência que é comunicada

(BUENO, 2002). As narrativas são representações e interpretações da realidade e revelam a

subjetividade do indivíduo.

Bassit (2002) afirma que os depoimentos pessoais de história de vida possibilitam o

registro de várias experiências individuais e o estabelecimento de pontos que estejam de acordo e

desacordo com as perspectivas teóricas do envelhecimento. Além disso, valorizar a trajetória pessoal

auxilia na compreensão do envelhecimento como parte de um processo contínuo do

desenvolvimento humano.

A utilização do roteiro de entrevista não foi feita de forma rígida, pois primou-se pelo

estabelecimento de um clima favorável que incentivasse o participante a falar sobre sua vida e suas

memórias de leitura. O roteiro serviu como guia para me motivar e estimular o sujeito a falar sobre

si e seu percurso existencial. As informações fornecidas foram gravadas com a autorização do

participante e depois transcritas por mim.

Posteriormente foi verificado o que cada sujeito tem em comum com outros e, a partir desta

análise, destacar a importância de se resgatar a memória de leitura, de forma a validar tradições e

experiências na qualidade de vida, na Terceira Idade.

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CAPÍTULO V – O MUNDO DA LEITURA CONTADO PELOS IDOSOS

Os dados serão apresentados em forma de casos com os aspectos considerados relevantes

para o estudo em questão. Primeiramente, será feita uma descrição geral da história de vida de cada

sujeito, seguida de análise à luz das perspectivas teóricas estudadas, nos capítulos anteriores. Os

nomes adotados nos relatos são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.

5.1 SÍLVIO: OCULTISMO E ESOTERISMO SÃO AS SUAS PRINCIPAIS LEITURAS

5.1.1 História de Vida

Sílvio tem 73 anos, é divorciado, tem 3 (três) filhas e 6 (seis) netos. Segundo o idoso, seu

relacionamento com os filhos e netos é satisfatório. Passa o final de semana com as filhas, mantém

contato telefônico. Possui ensino médio completo, é aposentado. Exercia a profissão de

representante comercial. Considera ser um espiritualista. Possui três irmãos. Somente ele, seu pai e

sua irmã mais velha se interessavam por livros. Sua irmã era professora de francês e seu pai era

oleiro, trabalhava na olaria fabricando tijolos, telhas e cerâmicas em geral. Fez primário, ginásio e

científico no Colégio Marista. Veio para Belém em 1959. Tinha um tio em Belém e ficou morando

com ele. Sua mãe era filha de português e o seu pai de holandês. O avô português gostava muito de

escrever.

O idoso é hipertenso, cardiopata (faz uso de marcapasso) e tem histórico de disritmia. Neste

ano, de 2011, apresentou comprometimento no intestino tendo sido submetido a intervenção

cirúrgica. Atualmente, faz tratamento com quimioterapia. Não possui deficiência e nem demência. É

ex-fumante; bebia socialmente sem histórico de alcoolismo.

Não fala nenhum idioma, nem toca instrumento musical. Tocava gaita, mas afirma que

desaprendeu. Gosta de escutar música como valsa, bolero e músicas antigas. Atualmente, não gosta

de dançar, mas em sua juventude dançava muito nos salões da Assembléia Paraense. Possui uma

coleção de mais de 2.000 livros voltados para os temas do ocultismo e esoterismo.

Sílvio residia em um apartamento no bairro do Marco, quando entrou em conflito com

traficantes que moravam no mesmo conjunto. Prestou denúncia na Polícia Federal e passou a ser

ameaçado, afirmando que “sua vida virou um inferno”. Tomou conhecimento da Instituição através

de um amigo, que residia no chalé, e, ao visitá-lo, gostou do Pão de Santo Antônio. Apesar de ter 03

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(três) filhas, não era de sua vontade morar com as mesmas. No Pão de Santo Antônio, Sílvio busca

tranquilidade e repouso.

O idoso afirmou ter tido uma infância tranqüila, residindo em Recife, no bairro do

Espinheiro, onde ficou em torno de 15 anos, mudando-se depois para o Rio de Janeiro. Em Recife,

conheceu sua esposa. Casou em Belém e ficou casado durante 12 anos. Afirmou que sua separação

foi motivada por incompatibilidade de gênio. A esposa reside com uma de suas filhas; ambos não

casaram novamente, mas possuem uma boa amizade.

Seu gosto pela leitura iniciou nas aulas de leitura, na escola. Sempre se interessou pelo

ocultismo e pelo esoterismo. Não gosta do gênero romântico. Entre as principais leituras destacou:

“Poder Secreto do Homem”, “Conhecimento Secreto do Homem”, “O Homem e a Cosmogênese”,

“Divina Comédia”, “A Chave dos 12 Mistérios”, “Os Grandes Iniciados – de Brahma até Jesus” e

“Eterna Sabedoria”. Entre os seus autores preferidos estão: Goethe, Dante Alighieri, Fausto,

Machado de Assis, Eliphas Levi, Dostoievski, Annie Besant, C.W. Leadbeater e Helena Petrovna

Blavatsky. Está lendo o livro “A Visão Teosófica das Origens do Homem – Ensaio sobre a

antropologia esotérica”, afirma que é uma obra relacionada ao ocultismo, que poucas pessoas

gostam.

5.1.2 Leitura e Recepção

O idoso usa os conceitos da Estética da Recepção para dar a sua interpretação para o livro

do profeta Enoque que conta a história em que Noé pede socorro ao pai Lemech, dizendo que a

Terra estava sofrendo as dores do parto, pois ela está inclinando. O pai responde: “Volta, junta tudo

o que é teu e sobe, as águas lá não chegarão”, portanto, ele afirma que o dilúvio aconteceu por uma

inclinação da Terra.

Segundo Eagleton (1997), a hermenêutica de Heidegger recebeu nova direção por meio dos

estudos do filósofo Hans Georg Gadamer (1900-2002), o qual ampliou o espaço do leitor ao afirmar

que, na interpretação de uma obra do passado, existe a possibilidade de emergir um novo

significado para o texto, dependendo da posição histórica do leitor e da sua capacidade de dialogar

com o texto: “Quando a obra passa de um contexto histórico para outro, novos significados podem

ser dela extraídos”. (EAGLETON, 1997, p. 98). Isso se torna possível por meio do cruzamento dos

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horizontes de expectativa da obra com o do leitor, no momento da leitura e tal fato se comprova na

narrativa do descrita pelo idoso.

Em um outro exemplo, o idoso cita a lenda do Tapete Voador que, segundo o idoso, era um

prenúncio dos discos voadores. A lenda citada refere-se a um tapete lendário das histórias das “Mil e

Uma Noites”, a que se atribuía a capacidade de voar, transportando pessoas. Afirma também que Ali

Babá e os 40 ladrões – 40 é um número cabalístico e que o americano criou o Tio Patinhas, pois

tinha a visão do tesouro, do capitalista. O Tio Patinhas veio para ensinar a poupança, assim como, a

lenda da formiga e da cigarra dizendo que quem poupa no verão e na primavera, terá um inverno

tranquilo. Essas narrativas conduzem o leitor a analisar, à sua maneira de perceber os fatos contados

pela história, na medida em que desconstrói a história oficial, possibilitando outras visões. Para que

isso ocorra, deve perceber a ambiguidade presente nos relatos, indo além do que está escrito. Dessa

forma, o receptor da obra poderá decodificar as afirmações das personagens e sinalizar para a

duplicidade do enunciado, descobrindo vozes emudecidas e outras possibilidades de leitura.

Esses exemplos confirmam que as obras lidas no passado, são lembradas perfeitamente nos

dias de hoje. Dessa forma, Jauss (1994) concebe a relação entre leitor e literatura, baseando-se no

caráter estético e histórico da mesma. O valor estético, para o autor, pode ser comprovado por meio

da comparação com outras leituras; o valor histórico, através da compreensão da recepção de uma

obra a partir de sua publicação, assim como, pela recepção do público, ao longo do tempo.

5.1.3 Leitura e Memória

Estudou no Marista de Recife e depois foi morar no Rio, sempre viajando e lendo muito.

Tem livros que não existem mais, por exemplo, uma Bíblia de 1800 e pouco. Também se interessa

bastante pelo catolicismo e cita “A Chave dos 12 Mistérios”, uma obra puramente católica.

Identifica a Igreja Católica como única, pois os seus rituais herdaram a verdadeira sabedoria,

dizendo que os evangélicos são repetidores de salmos. A Igreja Católica tem essência, tem

fundamento, com seus mantras e seus cantos gregorianos. Segundo Geertz (1989, apud AQUINO),

em qualquer cultura, a religião é uma tentativa de prover significativos gerais para que os sujeitos,

individualmente, possam interpretar suas experiências e organizar sua conduta. Esses significados

são armazenados, através dos símbolos sagrados que passam a expressar, para aqueles que lhes são

devotos, a forma como veem o mundo e como devem se comportar, ou seja, os símbolos dão, ao

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mesmo tempo, um sentido normativo e coercitivo para a organização da vida prática, em torno dos

quais a vida deve ser necessariamente vivida. Pode-se, então, afirmar de acordo com o autor, que a

religião é uma espécie de ciência prática, como sinônimo de conhecimento, que produz os valores

pelos quais todos devem se guiar.

Sílvio explica que gosta de ler livros novos e sempre busca, na memória, lembrar dos

antigos. Sua memória está sempre se renovando e proporcionando bem estar. Sempre que acorda vai

para a janela e faz ioga, como exercício físico e mental. O trabalho com as histórias de vida está

diretamente relacionado ao entrelaçamento memória-leitura, visto que a memória tem o poder de

conferir uma identidade, assim como possibilita que, através da percepção que se torna lembrança,

surja a consciência do real. O conteúdo que é guardado na memória, é proveniente das imagens que

temos do mundo e por conta disso, somos capazes de raciocinar, de conferir valores, de estabelecer

julgamentos, de acolher, de rechaçar, enfim, de conhecer, de refletir, de pensar. Conforme relatou o

idoso, sua filha disse uma vez que queria lhe dar um computador, mas ele declara que não quer se

viciar no computador e perder o hábito de ler. Relata que no Pão de Santo Antônio, tem poucos que

fazem uso da leitura e que, com a leitura, as pessoas olham a vida de outra maneira. Afirma também

que, hoje em dia, para se ter acesso aos livros, é difícil. Bibliotecas contam-se nos dedos e que

precisa haver mais para habituar essa “meninada” a ler. Na Educação, é sempre a mesma promessa e

nunca evolui. Não há incentivo.

Relata que, antigamente, frequentava o cinema, assistia ao Rim Tim Tim (um cachorro

policial) e o Cabo Rusty, Lessy e outros filmes que hoje em dia não tem mais. Diz que, hoje em dia,

é só loucura. As crianças não aprendem mais a gostar de animais, chutam eles na rua. Por isso, os

crimes estão acontecendo. Conta que, na sua época de escola tinha dissertação quando voltava das

férias e o professor pedia para descrever sobre as atividades desenvolvidas durante o período de

folga. Quando olhamos para o passado, resgatamos antigos compromissos educacionais valorizados

pela tradição, orientando os que são novos neste mundo (ARENDT, 1972). Passamos a olhar para as

crianças como seres em processo de conhecimento que estão se preparando para fazer parte do

mundo do idoso, que é mediador dos saberes ambientais acumulados, ao longo das experiências de

vida das gerações passadas.

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5.2 MARLENE: GOSTA DE ROMANCE E DE ANJOS

5.2.1 História de Vida

Durante toda a entrevista, Marlene mostrou-se com dificuldades em desenvolver o

raciocínio que iniciava. Assim, foi preciso constantemente questioná-la e incentivá-la a dar

prosseguimento ao raciocínio iniciado.

Marlene tem 83 anos, é viúva e não possui filhos. É católica. Concluiu o curso de

contábeis, mas nunca exerceu a profissão, pois seu marido não a deixava trabalhar fora de casa,

porém, nunca a impediu de ler livros. Sempre gostou muito de ler. Seu pai era auxiliar de farmácia,

dormia cedo, enquanto sua mãe cuidava de 5 (cinco) filhos. Seu marido era radiotelegrafista, não

gostava de festas e nem de passeios.

Não possui nenhum problema de saúde, não tem nenhuma deficiência e nem toma nenhum

medicamento controlado. Só fez uma única cirurgia na sua vida que foi de catarata.

Marlene residia no bairro da Marambaia com seu marido. Depois que ele faleceu, para não

ficar sozinha, optou em morar no Pão de Santo Antônio. Informa que, na Instituição, busca sossego

e amizade, além de cuidar das suas plantas, uma terapia que gosta muito. Recebe muitas visitas de

amigas no Pão de Santo Antônio. Mora em chalé.

Afirma que é uma pessoa extrovertida e que convive e possui muitas amigas que vivem no

meio de literários, como por exemplo, do escritor Benedito Nunes.

5.2.2 Leitura e Recepção

A leitura fez parte da sua vida desde que começou a estudar. Era uma das melhores alunas

de história. Sempre gostou de inventar, de criar e de contar histórias. Gosta de ler um pouco de tudo.

Comprava muitos livros. Conta que as bibliotecas eram muito restritas na sua época de adolescente.

Atualmente, sempre que vai a uma livraria vem carregada de livros.

Adora ler M. Delly. Gostava das leituras que ela compreendia. M. Delly era o pseudônimo

do casal de irmãos Frédéric Henri Petitjean de la Rosiére e Jeanne Marie Henriette Petitjean de la

Rosiére, escritores franceses. Em estilo romântico, os romances de M. Delly possuíam um tom de

encantamento, um clima de conto de fada. As histórias destacavam os valores e comportamentos da

aristocracia européia situada entre os finais do século XIX e inícios do século XX, apesar de não

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serem, na grande maioria, datadas. A imprecisão temporal é característica das narrativas

maravilhosas, que alimentam o imaginário dos leitores e nas quais os argumentos desenvolvem-se

dentro da magia feérica: reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, objetos mágicos,

metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida.

Gosta também de ler livros de escritores nacionais. Afirma que não gosta de escritores

rabugentos. Está fazendo uma pesquisa sobre os Anjos, que diz que aprendeu a admirar com a

“sabedoria da idade”. O desenvolvimento da sabedoria é dado pela aceitação dos limites de

conhecimento do ser humano. As pessoas sábias estão atentas e sabem que há mais caminhos para

se olhar o fenômeno e eventos do que podemos saber. Elas têm a tendência a duvidar sobre as

crenças, valores, conhecimento e informação, porque sabem que pode não haver necessariamente

uma resposta correta, e uma verdade mais profunda pode também existir. Na sabedoria, há redução

desse individualismo, tendendo a se preocupar com o coletivo, problemas universais, mais do que o

bem-estar individual. A sabedoria capacita os mais velhos a entender os limites da vida, incluindo

o declínio físico e a morte. Uma pessoa mais velha e sábia tende a ser satisfeita com suas vidas,

independentemente das circunstâncias e obstáculos que eles encontram. “Ninguém pode ter

sabedoria sem ser sábio. Se quisermos a vida para ser entendida o caminho é em outra direção. A

descoberta é o começo da sabedoria”. (Moody, conforme citado por Ardelt, 2000, p. 781).

O seu interesse pelos anjos se deu devido a um desgosto recente que a abalou muito,

deixando-a magoada. Segundo a idosa, precisava se modificar para buscar a salvação para o

desgosto, e não estava conseguindo. Foi nesse momento que a figura dos Anjos tocou seu coração.

Diz que o que tem lido sobre os Anjos, tem colocado em prática. Começou a tentar entender e

perdoar as pessoas que achava que de alguma forma a tinham machucado e, com isso, tem tentado

buscar a paz. Quer repassar esse conhecimento que é muito importante, inclusive para a sua saúde,

pois sua pressão estava alta e não conseguia controlar por causa da mágoa. Comenta que está se

sentindo um anjo, voando com tanta leveza. Por isso, gosta de leituras doces, amenas e leves.

Marlene termina a entrevista citando que, com a velhice e todas as suas conseqüências, hoje

em dia, já que não podem sair, a leitura é a melhor companhia e passatempo. O que foi lido ontem,

sempre tem relação com o que é lido hoje e com o dia a dia. Jamais se esquece ou deixa de existir,

pois é essencial.

Segundo Josso (2004), uma experiência formadora é feita de uma aprendizagem que

articula o saber-fazer e conhecimentos, funcionalidade e significação, técnicas e valores num

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espaço-tempo. E daí em diante, que o idoso começa a indagar a sua identidade e a refletir sobre a

sua existencialidade. Para a autora, é necessário recordar o que viveu, relatar e pensar sobre a

própria experiência, para que haja uma experiência formadora. O que foi vivido servirá de

referência para o que ainda vai acontecer, servindo assim, como um guia ou uma orientadora de

experiências. “São as experiências que podemos utilizar como ilustração numa história para

descrever uma transformação, um estado de coisas, um complexo afetivo, uma idéia, como também

uma situação, um acontecimento, uma atividade ou um encontro” (JOSSO, 2004, p. 40).

Experiência para Josso é um conceito central das histórias de vida e do trabalho sobre essas

histórias.

Marlene afirma que gostaria de viver, de ser feliz e de ler, sempre!

5.3 MARCOS: GOSTA DE FICÇÃO CIENTÍFICA E DE ESCREVER POESIAS

5.3.1 História de Vida

Marcos tem 85 anos, é viúvo e possui 02 (dois) filhos, 05 (cinco) netos e 02 (dois) bisnetos.

É aposentado e hipertenso. Toma remédio controlado, apesar de não ser portador de nenhuma

patologia grave e não possui traços de demência. Gosta de poesia, de valsa e de músicas religiosas.

Durante toda a entrevista demonstrou bom humor e disposição para contar a sua história.

Nasceu na Santa Casa. Foi criado na casa de um médico conhecido na cidade de Belém,

onde suas tias eram governantas e ajudaram a criar os filhos do médico. Quando nasceu, seu pai não

tinha condições financeiras de ficar com ele. Seu pai era dono de um estaleiro de construções navais

no Marajó, era muito ocupado, não tinha mulher, portanto, não tinha com quem deixá-lo.

Na casa do médico, teve condições de fazer um curso técnico de mecânica. Com 18 anos

era reservista de 2ª categoria. Foi chamado para o Exército Americano e para DACAR (África do

Norte), para servir em uma base de apoio, em um Hospital da Cruz Vermelha. Neste hospital

trabalhavam outros brasileiros. Era uma base de apoio para recuperação de material bélico, como:

tanques de guerra, canhão e armas que vinham dos combates dos aviões da Alemanha e do Japão.

Os técnicos americanos que havia lá ensinavam a manusear armas e tanques de guerra. Tudo isso

representou uma importante experiência de vida para o idoso. Afirma que aquela experiência o

ajudou tanto que não considera que tenha tido uma difícil trajetória profissional.

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Quando chegou ao Brasil, foi servir à Aeronáutica, na profissão de mecânico. Fez curso

para Sargento. Passou 2 (dois) anos em Guaratinguetá, fazendo curso de mecânico de aviação

(motores), quando se graduou para 2º Sargento. Apesar de tudo isso, diz que não gostava da vida

militar, que tinha um “verdadeiro abuso da vida militar porque havia muita petulância, muita

disciplina. Hoje não dava mais para ter uma disciplina como naquele tempo, árdua. Hoje a coisa está

mais suave, todo mundo na vida militar é profissionalizante, os oficiais conversam com os praças,

tudo muito moderno, diferente daquele tempo”.

O grupo familiar é o espaço de experiências e de crescimento pessoal e social.

Pichon-Rivière (1998) diz que a família enseja o marco das diferenças humanas através de papéis

básicos em todas as culturas: pai, mãe e filho. Além da importância biológica ligada à sobrevivência

e a conservação da espécie, a família fornece condições para aquisição de identidade pela

transmissão de valores éticos, religiosos e culturais (OSÓRIO, 1997), como no caso de Marcos, que

pautou seu discurso sobre a sua vida familiar embasado em princípios éticos e valores que foram

repassados pela sua criação na casa de família do médico e pela sua tradição na vida militar. O

repasse desses valores ocorre de forma espontânea e contínua através das atividades diárias, dos

exemplos, das histórias. Enfim, é através da memória que a corrente de pensamento do grupo é

transmitida para as gerações vindouras. Dentro do grupo familiar, são os velhos, isto é, os avós, os

sujeitos responsáveis por exercer o papel de perpetuador da cultura.

A preservação da família e o desejo de formar vínculos familiares também são uma

constante na entrevista com o idoso. Fala com muito entusiasmo que o seu ideal de vida era casar e

ter filhos. Conta que já era noivo há 2 anos e não podia casar, devido a sua carreira militar que só

permitia que Oficial se casasse. E que um dia, estava em forma, escutando a ordem do dia, e veio

um decreto do Ministério da Aeronáutica dando a opção para quem quisesse se reengajar no serviço

militar por mais 9 anos ou se inscrever para a vida civil. Como queria casar, vislumbrou aquele

momento uma grande oportunidade. Depois de um tempo, novamente durante a ordem do dia, o

Major leu o decreto que o colocou à disposição da vida civil. Não conseguindo segurar a sua

emoção, deu um pulo e um grito, e foi preso logo em seguida, por indisciplina. Ficou à disposição

do comando por um tempo e só foi liberado quando conseguiu consertar 2 (dois) aviões C-47 que

transportavam tropas e mantimentos.

No mês seguinte, casou logo. Diz que foi o acontecimento mais feliz da sua vida. É viúvo

há 18 anos. Tem um casal de filhos. Morou 17 anos em São Paulo com sua filha. Sua filha é médica

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e casou com um médico também. Marcos conta que sempre mandava dinheiro para pagar a

faculdade e o apartamento em que ela morava. Na época em que a filha casou, o marido era

residente no Hospital Psiquiátrico, ganhava pouco e estava no começo da vida. Conta que foi assim

até ela se formar, quando foi para Campinas, fazer Pediatria na UNICAMP, e passou no concurso

para a Prefeitura. Depois, ela fez outra especialidade na UNICAMP. Fez Psiquiatria que é a mesma

especialidade do marido. Fizeram concurso juntos para a Secretaria de Segurança Pública. Há 3

anos, ela ainda fez um curso de Nutrologia na USP, ganhou uma bolsa de estudos e passou 1 ano em

Paris, fazendo pós graduação. Trabalha nas 3 especialidades: Pediatria, Psiquiatria e Nutróloga. O

filho é Farmacêutico Bioquímico; é funcionário do Ministério da Saúde, e mora aqui em Belém. Fez

pós graduação e doutorado. Trabalha com Vigilância Sanitária, aqui no Pará. Declara que sua

mulher morreu muito feliz, pois sempre planejou ter um casal de filhos.

Quando já estava na vida civil, trabalhou em multinacionais, quando teve a oportunidade de

viajar muito. Conheceu 4 (quatro) continentes: Europa, África, Ásia e América, só não esteve na

Oceania.

Quando retornou para Belém, já viúvo, foi morar com o seu filho, mas, por razão de sua

neta ter se separado do esposo, voltou para a casa do pai e precisou ocupar o quarto que o idoso

ocupava. Foi por esse motivo que ele procurou o Pão de Santo Antônio. Procurou a instituição sem

avisar nada aos filhos. Conta que atualmente está voltando a morar novamente com o filho.

5.3.2 Leitura e Recepção

Relacionando com a história de leitura de Marcos, Josso (2004) afirma que ser sábio

significa então, percorrer o caminho sobre a sua própria vida e refletir lucidamente sobre esse

percurso. A sua própria história de vida, no ponto de vista de Josso (2004), revela sabedoria. E a sua

história de vida é consequentemente o resultado de experiências acumuladas. Reflexão sobre o

caminhar para si e a procura da arte de viver com lucidez é, para Josso, uma busca pela sabedoria de

vida. Sabedoria é, portanto, dar sentindo à própria experiência de vida. Quando não se consegue dar

sentido àquilo que se vivencia, torna-se apenas uma ação, sem significados, sem reflexão, e que não

acrescentará em nada nas outras experiências. Não se tornará, então, sabedoria. Saber é sentir, é dar

sentido; essa reflexão é uma das formas de atenção consciente de si mesmo. Ser sábio não é

acumular idades e/ou ações. Sabedoria e experiência de vida caminham juntas.

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Como resultado da sabedoria acumulada, Marcos relata que atualmente está fazendo um

conto de ficção científica que pretende publicar junto com as suas outras tantas poesias românticas

que já possui. Neste conto de ficção científica, ele falará sobre a vida de Cristo que não é contada na

Bíblia. Diz que tudo será contado com base em suas pesquisas. Também fala de forma crítica sobre

opção sexual, se é hereditário ou opção mesmo. Quer juntar todo o material que tem escrito, fazer

meia dúzia de livros e distribuir para os amigos e pessoas que gostam de ler. Não quer fazer isso

para ganhar dinheiro.

Uma questão muito interessante em relação à Estética da Recepção foi demonstrada

claramente na fala do idoso. Ele relata que, no começo do livro que ele pretende publicar, nas

considerações, ele escreverá: “Caro leitor, ao iniciar a leitura deste livro, procure se descentralizar

de religião, credo, artifícios religiosos, livros considerados sagrados e arranje um espaço na sua

mente para se concentrar e entender a mente criadora do autor”.

Desse diálogo com o leitor que Marcos trava nas considerações do seu texto, Iser (1996)

percebe no leitor uma peça essencial para o ato comunicativo com o texto. Ao escrever sobre a

interação do texto com o leitor, o estudioso afirma a “limitação” do leitor, que “nunca retirará do

texto a certeza explícita de que a sua compreensão é justa”, por ser uma relação ímpar e diferenciada

da interação dialógica. Porém, semelhante a esta última, há os vazios a serem preenchidos, e

consequentemente a mudança do leitor, a amplitude do seu horizonte. É o que ele determina como a

“atividade de constituição”, ou seja, os vazios e as negações presentes no texto em contato com o

leitor permitem a este coordenar as perspectivas que darão sentido ao primeiro, assim como a

negação o faz modificar a atitude perante o texto. Na definição de Eagleton (1997), cabe ao leitor

preencher os “hiatos” presentes na obra. Tais nortes são importantíssimos para a recepção de uma

obra e, consequentemente do seu autor somados às outras questões, conforme informa o teórico e

analista alemão: “Quanto mais preso esteja o leitor a uma posição ideológica, tanto menos inclinado

estará para aceitar a estrutura básica de compreensão do tema e horizonte, que regula a interação

entre texto e leitor”, não permitindo que as normas se transformem em tema, já que estariam ligadas

à visão crítica do leitor. O que, associado às ideias de valor, o fariam rejeitar a obra e o autor. Como

ele bem coloca quanto à sua teoria do efeito: “o texto literário se origina da reação de um autor ao

mundo e ganha o caráter de acontecimento à medida que traz uma perspectiva para o mundo

presente que não está nele contida. Em Iser (1996), além do caráter ficcional, o discurso do texto é

tratado como “organismo vivo” em diálogo com o leitor. Dos seus significantes recebidos pelo

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leitor, a realização da leitura temporal em um feedback contínuo sobre o efeito no mesmo, gerando a

imprevisibilidade do texto, e desta a comunicação e a compreensão.

5.3.3 Leitura e Memória

Em relação à memória, Marcos conta que teve o seu primeiro contato com a leitura quando

ainda era muito jovem, aluno do colégio primário, em uma matéria de Letras chamada Thales de

Andrade (que era o nome do autor). Eram vários livros deste autor. O primeiro incentivava o aluno a

obedecer aos pais, aos mestres e às pessoas mais idosas. Os outros ensinavam os bons costumes, os

bons hábitos alimentares, e questões de cidadania como dar prioridade às pessoas mais velhas na

entrada dos transportes públicos.

No rodapé destes livros, sempre tinha um verso de algum poeta como Olavo Bilac e

Gonçalves Dias. Conta que aqueles versos eram um incentivo para a pessoa ler e gostar de poesia.

Esses livros ensinavam muito sobre moral e cívica. Disse também que já naquele tempo se aprendia

muito sobre religião, a cumprir os mandamentos da lei de Deus: “porque Deus não é palavra, é

ação”. Se todo mundo procurasse se aproximar o melhor possível do cumprimento da lei de Deus, a

humanidade seria totalmente diferente, não existiria guerra, só existiria coisa boa.

A aprendizagem durante a vida e a educação continuada é essencial para as pessoas idosas

que desejam se envolver nas mudanças do mundo. Nas idades mais avançadas, parece ser mais

importante adquirir o conhecimento da sabedoria, já que é para sempre e universal. O conhecimento

intelectual capacita idosos a se envolverem nos eventos do mundo, enquanto que a sabedoria

relacionada com o conhecimento os ajuda a se preparar para a vida e até mesmo para os problemas

que podem ocorrer na terceira idade. O conhecimento intelectual, se não for estimulado, tende a

declinar com a idade, enquanto a sabedoria relacionada com o conhecimento é positiva e presente

nessa etapa da vida.

Para ilustrar a importância deste desenvolvimento intelectual durante a vida e como ele se

manifesta em sabedoria nas pessoas idosas, Marcos lembra que lia muito Sócrates, Confúcio e

Shakespeare quando era novo. Gostava muito das poesias de Olavo Bilac, de Coelho Neto, de

Gonçalves Dias e, de tanto ler poesias, foi também aprendendo a fazer poesias. Diz que morou em

São Paulo, depois que já estava aposentado. Participou durante 05 (cinco) anos do “Talento da

Maturidade” do Banco Real, na parte de literatura, onde eram inscritos cerca de 27.000 idosos, na

faixa etária de 60 a 80 anos. Escrevia poesias, fazia contos da vida real e contos de ficção científica.

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Ganhou prêmios, medalhas, certificados e diplomas. Sempre ficava entre os 10 primeiros lugares.

Conta que na banca examinadora havia escritores, poetas, e até membros da Academia Brasileira de

Letras e que eles eram bem exigentes em relação à rima, à métrica, à criatividade e à ortografia. Diz

que sempre gostou de escrever poesias românticas (uma das classificadas no concurso encontra-se

no anexo da pesquisa).

Marcos diz que também sempre gostou de Mitologia e de Filosofia. Lia muito sobre

Mitologia Grega. Mas, conta que é a Ciência que comprova todos os acontecimentos do mundo. Por

isso, ele trabalha muito com a Ciência, para comprovar tudo o que pensa e escreve nos seus contos

de ficção científica.

Como vivia trabalhando pelo mundo, costumava ler os jornais que anunciavam as editoras

que mandavam livros por reembolso. Os livros eram pagos no ato do recebimento. Relata que era

basicamente essa a forma de acesso aos livros. Com isso, sempre buscava ter livros para ler

independente de onde estivesse.

Estas informações prestadas pelo idoso refletem os estudos da Sociologia da Leitura. A

disciplina Sociologia da Leitura pretendeu discutir, numa perspectiva histórica e sociológica,

atividades de leitura, partindo da compreensão de leitura enquanto prática cultural e não apenas

escolarizada, o que desencadeou uma série de questões: representações do livro e do ato de ler, os

contextos sociais de recepção, de produção e de mediação, e de circulação da leitura, bem como os

efeitos da leitura sobre leitores e leitoras em função das suas predisposições: formação, gostos,

preferências e motivações diferenciadas. Ou seja, cultura, sexo, idade, atividade profissional, lugar

social, situação familiar e histórias de leitura que diferenciam os leitores: o que leem, como se

aproximam da leitura e dos meios de acesso que utilizam para alcançá-la, onde leem, como

manuseiam e tratam o material que leem, o que fazem com a informação lida, se gostam de ler ou

leem por necessidade ou obrigação.

Marcos afirma que a Bíblia nunca mudou em nada, desde o início da humanidade. Faz um

paralelo entre a Bíblia e o Alcorão. Diz que o Alcorão é um livro antigo mas muito atualizado. Ele

tem a filosofia religiosa e a ciência ao lado, amparando-a.

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5.4 JOANA: GOSTA DE LER ROMANCES E LIVROS ESPÍRITAS

5.4.1 História de Vida

Joana tem 83 anos, é separada e possui 05 (cinco) filhos, 16 (dezesseis) netos e 02 (dois)

bisnetos. É costureira. Não possui nenhum tipo de deficiência e nem demência. Já teve um

aneurisma cerebral que não gerou nenhuma sequela.

É independente e mora nos chalés. Gosta de escutar músicas clássicas e orquestradas.

Também gosta de dançar músicas antigas e atuais. Sempre que pode sai para dançar em festas com

as suas amigas. No seu tempo ocioso, como terapia, gosta de bordar, principalmente ponto de cruz.

Já vive na Instituição há 04 (quatro) anos e diz que procurou o Pão de Santo Antônio por

vontade própria para fazer amizades e sentir-se segura. Declarou que a Instituição oferece muita

coisa, porém não supre a falta da família. Dos 05 (cinco) filhos que possui, 03(três) moram fora de

Belém e 02 (dois) moram em Belém. Menciona também que, no Pão de Santo Antônio, não se

integra em muitas atividades. Só participa da hidroginástica e faz fisioterapia. Fora da Instituição,

faz parte de grupos de estudos espíritas.

Comenta que sempre criou os filhos com muito carinho e zelo, tanto que até hoje eles

“tomam a bênção”. Seu filho mais velho tem 66 anos. Teve filho com 16 anos. A família não a visita

com muita frequência. Justifica que os dois que moram em Belém, são homens, e que são muito

ocupados com os filhos deles e com os seus afazeres cotidianos. Na casa deles, ela só vai a convite,

é um sistema que adota. Ela se relaciona muito bem com as noras e com os genros. Um dos filhos

trabalha na CODEM, é arquiteto. O outro é autônomo e formado em Engenharia Elétrica. Em

relação aos seus outros filhos, um é também arquiteto e mora em Salvador, a moça é pedagoga e

mora no Rio e o outro, que tem apenas o 2º grau completo, também mora na Bahia. Comenta sobre a

ausência da família, e mais especificamente dos filhos com certa angústia e solidão.

É certo que, com as novas ofertas de espaços sociais, existe ainda uma velhice segregada

pela sociedade. Nesse cenário, o abandono, o preconceito e a desvalorização ainda recaem sobre o

idoso de forma violenta. Casos de maus tratos no comércio, nos transportes coletivos, nas ruas e até

no interior da família são cada vez mais comuns. Algumas dessas ocorrências são noticiadas nos

jornais, porém muitas são silenciadas no âmbito social e pelos próprios idosos, às vezes por

desconhecerem seus direitos ou ainda por se sentirem envergonhados e até culpados por

determinadas situações.

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Durante a sua infância, morou no bairro do Umarizal com os seus pais e mais 04 (quatro)

irmãos (dois homens e duas mulheres). Uma coisa que lembra muito, é que, antes de morar no

Umarizal, sempre ia ao sítio do avô que tinha muitos cajueiros. Seu avô ficava brabo e a avó não

deixava ele bater nos netos.

Considera que teve uma infância repressora. Seu pai era demais disciplinador. Conta que

morou em regime de internato no Colégio Santa Rosa porque seu pai a castigou, por descobrir que

estava namorando. Quando casou, perdeu o contato com a família. Não demorou muito seu pai

morreu.

A narrativa de Joana, impressiona, primeiro pelas memórias juvenis da construção amorosa

e pela criação que deu aos seus filhos; depois pela descrição pragmática das peripécias da idosa.

Mas, o trabalho aparece, como necessidade de sobrevivência e como ocupação contra as tentações e

contra o ócio, simbolizado na máquina, pois era costureira. A tensão dramática do zelo do pai, não

permitindo que namorasse e nem ficasse na casa dos outros, cumprindo com a promessa feita de

colocá-la em um internato, desperta emoção. Vale salientar, no entanto, que essas atitudes são

tomadas dentro de um carinho, verdadeira união e amor. Hoje, sente-se cidadã e arrola vitórias.

Possui o ensino médio incompleto. Comentou que na época, quando as pessoas casavam,

deixavam de estudar. Tinha muita vontade de fazer uma faculdade, mas depois que casou perdeu o

estímulo. Queria fazer a “área de comércio”, ou seja, ser contadora.

5.4.2 Leitura e Recepção

Joana destaca que, antigamente, adorava ler romances, como os da M.Delly. Além dos

romances, gostava também de algumas obras de Machado de Assis e de José Veríssimo. Depois,

por sempre ter se considerado uma espiritualista, passou a se interessar por livros espíritas.

A espiritualidade, conforme menciona a idosa, é uma construção complexa e multifacetada

que envolve os sentimentos de fé e de sentido. A fé fortalece e faz acreditar em algo transcendental,

uma força superior, permitindo a vivência de um sentimento de transcendência. Envolve o interior

de cada um e está ligada às necessidades de receber e de dar amor, dar esperança, dar criatividade,

dar perdão e dar solidariedade com as pessoas e com Deus. Refere-se ao sentido compreendido com

a convicção pessoal da realização de uma missão, através de um dom com um propósito inalienável

na vida. A espiritualidade é uma propulsora na busca do sentido da vida, estimulando o interesse

para consigo e com os outros que pode ou não ser vivenciada a partir de uma religião formal.

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Conta que o hábito da leitura trouxe conhecimentos e abriu seus horizontes: “A gente lê e

fica pensando sobre aquilo”. Atualmente, sua leitura é espírita. Acabou de ler Chico Xavier e

Divaldo Franco. Quase não lê mais romances como antigamente. Os romances que Joana lê, na

atualidade, são os romances espíritas como “Renúncia”, que comprou recentemente.

Joana conta que sempre procura acompanhar o presente, caminhar com a atualidade, pois o

passado não volta. Seus netos, ela diz, não sabem como foi o seu tempo, como também os netos

deles, não vão saber como é o tempo deles agora. Proíbe-se de dizer: “no meu tempo não era assim”.

Não usa esse ditado porque, segundo ela, o seu tempo foi o seu tempo e ele não volta mais.

A idosa reitera que hoje, o espiritismo, lhe deu muitas respostas que a Igreja e o padre não

deram. Segundo Joana, os sermões não lhe passam muita coisa. Hoje, ela diz que é cristã. Vai à

missa porque gosta e por passar uma energia muito boa, porém, diz que nas relações do dia a dia,

não lhe passa nada: “eles têm conhecimento, fazem homilia, falam do Advento, Epifania, mas sem

se atualizar”. Dessa forma, acredita-se que, conforme Zilberman (1989), o processo de recepção está

diretamente ligado ao leitor, colaborando com suas experiências pessoais para fornecer vitalidade à

obra e manter com ela uma relação dialógica. Essa relação, segundo os pressupostos das teorias

recepcionais, deve estar para além dos aspectos puramente cognitivos, concebendo a recepção como

um envolvimento intelectual, corporal, sensorial e emotivo com a obra.

Conclui falando que o espiritismo vai esclarecer verdades. É uma doutrina consoladora, à

medida que progredimos. Ela não diz “não beba”, “não fuma”. Ela fala das doenças, das

dificuldades, dos excessos e cada um possui o livre arbítrio de seguir ou não, conforme suas próprias

vontades.

A satisfação e o bem-estar da idosa se inserem no projeto reflexivo do eu através de um

equilíbrio entre oportunidade e risco. A auto-realização na contemporaneidade pressupõe o

abandono de antigos hábitos e comportamentos que não apresentam mais vantagens, seguido pelo

investimento do sujeito em novos modos de ser e agir que lhe pareçam mais satisfatórios. Uma frase

que a idosa falou e que me chamou atenção foi: “você não pode ficar pensando que está velho. É só

manter o cabelo arrumado que está bom”. Parafraseando Clarice Lispector, a experiência do

envelhecimento é a harmonia secreta da desarmonia: “você vai ficando feio, mas harmonioso”,

segundo Joana.

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5.4.3 Leitura e Memória

Joana conta que sempre se interessou por leitura. Quando era garota, na sua casa, tinha uma

pequena biblioteca e que ela e seus irmãos sempre foram incentivados a estudar, a ler. Seu pai

comprava livros, ele gostava muito de ler. Depois que casou, seu marido também comprava livros.

Tinha muitos conhecidos que liam também e um emprestava para o outro.

Ao refletirmos sobre os espaços de leitura, consideramos importante observar os lugares

que ocupam na educação a leitura e a escrita, isto é, conceito do que é um leitor e, portanto, das

práticas para se formar um leitor proficiente. A leitura é ato e gesto, conforme Escarpit (1969). Há

uma dimensão que é pessoal, única, intransferível do sujeito. Há outra que complementa e é

complementada por essa, de natureza sociocultural. Em suma, é preciso olhar o leitor, mas

igualmente as condições históricas em que o ato de ler ocorre. Se a leitura envolve aprendizagem, é

preciso cuidar dos elementos de diferentes ordens que fazem a mediação entre as informações e os

leitores: materiais de leitura, instituições (bibliotecas, salas, cantos de leitura, livrarias, cafés

científicos) e influência de leitores na família, conforme descreveu Joana.

Atualmente, sua leitura é espírita, mas conta que, dos romances que leu no passado muita

coisa ficou e ainda lembra com a “alma leve” os livros e as histórias de amor que tanto a

encantaram.

5.5 ANTÔNIO: LÊ VÁRIOS JORNAIS DIARIAMENTE E GOSTA DE ESCREVER POESIAS

5.5.1 História de Vida

Antônio tem 77 anos, é separado e tem 4 (quatro) filhos. Dois trabalham na Petrobrás: um é

bacharel em Direito e o outro tem curso secundário completo e trabalha com perfuração de poços. A

filha também tem curso secundário completo e possui uma loja de chocolates em um shopping e o

filho mais novo trabalha com rede telefônica.

Conta que nasceu no meio do mato, na Floresta Amazônica, na fronteira do Amazonas com

o Acre. O local era cortado por um rio e a parte baixa era chamada de Boca do Acre. Seu pai era

cearense, veio para o Acre junto com a família na época em que existiam os “soldados da borracha”,

contratados pelo governo federal para trabalhar na extração de leite das seringueiras. Antônio

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descreve com detalhes e emocionado o trabalho que seu pai desenvolvia: “Cortando a casca ficava

pingando um leite grosso. Colocavam tipo uma tigela, parece uma xícara de alumínio embutida na

casca da árvore e, a tardinha, voltavam na “estrada da seringa” e colocavam em um recipiente, aí

defumavam e a fumaça meio quente, pegavam uma vara, passavam sebo de qualquer animal para a

borracha não ficar grudada. A fumaça quente fazia o leite coalhar mais rapidamente e a borracha ia

fazendo aquela bola. Todo dia fazia um pouco, quando já tinha 20 ou 30 quilos, deixavam aquela

pele de borracha no sol e começavam outra. Levavam para o patrão no final de cada mês que pesava

e pagava a mercadoria”. Conta que seu pai e seu avô foram seringueiros.

Na entrevista com Antônio, e durante todo tempo que transcorreu a pesquisa, ele

demonstrou uma notável capacidade de narrar fatos significantes da sua vida que estão inseridos no

contexto da história da colonização da Amazônia, resgatando uma prática que hoje está em desuso

na sociedade que é “A Arte de Narrar”, como afirma Benjamin (1994, p.98):

As ações da experiência narrativas estão em baixa, e tudo indica que continuam caindo, até que seu valor desaparece. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo do que nunca e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo da ética sofrem transformações que antes não julgaríamos possíveis.

Com a 2ª Guerra Mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final

da 2ª Guerra Mundial, observou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de batalhas,

não mais ricos, e sim mais pobres em experiências comunicáveis. Porque não houve experiências

mais radicalmente desmoralizantes do que a experiência estratégica da guerra de trincheiras, a

experiência econômica da inflação e a experiência do corpo em fome (BENJAMIN, 1994).

Gomes (2005), no seu valioso trabalho “A Conquista do Acre”, cria uma narrativa em tudo

semelhante à do nosso narrador. Nos tempos de convivência durante a pesquisa, percebe-se como as

experiências de “soldado da borracha” e de “sindicalista”, mas sobretudo a de “poeta”, compuseram

o perfil de uma liderança que poderia ter se perdido nos desvãos da velhice abandonada e

desvalorizada.

Onde nasceu, havia uma estação de rádio dos correios, serviço que atualmente quem toma

conta é a Embratel. Eram 6 (seis) filhos. Um faleceu, 3 (três) moram no Rio, um em Brasília e

Antônio, aqui no Pará. Um dos irmãos foi nomeado pelos Correios como telegrafista em Boca do

Acre, foi transferido para a Serra da Madureira, interior do Acre, e Antônio foi junto. Até a vinda

definitiva para Belém, a vida de Antônio foi marcada por constantes mudanças de cidade. Percebe

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pontos positivos e negativos em suas várias mudanças, e procurou compensar os negativos com a

possibilidade que tinha em experimentar novidades.

O juiz de direito de Serra da Madureira era do Rio e chamava Antônio de “traquino”, termo

que era usado para designar uma pessoa sapeca, levada. O juiz insistiu para que Antônio fosse morar

com a família dele no Rio e estudar. Seus pais tinham se separado e sua mãe foi para o Rio com seus

2 (dois) irmãos, pois tinham um tio que também morava lá. Foram nos aviões da FAB (Força Aérea

Brasileira), que transportavam famílias sem custo.

O trabalho sempre permeou a vida de Antônio. Tinha um irmão em Porto Velho. O irmão

passou um telegrama avisando que tinha uma vaga para telegrafista no governo. Pegou um avião da

FAB e foi para lá. Ficou em Guaporé (nome do atual Estado de R ondônia) e, na mesma semana, foi

nomeado telegrafista. Passou aproximadamente 5 (cinco) anos lá, se envolveu com uma mulher

casada e “se deu mal”. Conta que queriam matá-lo e saiu de lá fugido.

Foi quando soube, através de um colega, que havia vaga de telegrafista na Petrobrás, daqui

de Belém. Veio de lá em 1957 e fez o teste na mesma semana. Foi nomeado e transferido para

Manaus. Quando acabou a base de petróleo em Manaus, foi para São Luís. Depois também acabou a

de São Luís e voltou para Belém. Foi transferido para o Rio Madeira, no interior do Amazonas. Era

uma base grande com vários alojamentos, refeição e moradia de graça. Diz que construíram ao lado

da base, uma vila e o pessoal que era casado aqui arrumou outra mulher lá. Umas quando souberam,

resolveram deixar os maridos, outras preferiram ficar recebendo pensão. Casou lá mesmo, no Rio

Madeira. Quando sua mulher estava com 8 (oito) meses de gravidez, foi transferido para Belém.

Conta que todos os seus filhos nasceram aqui e que nunca mais saiu daqui.

A narrativa declara a importância do conhecimento do mundo, numa descrição das viagens

para conseguir um emprego e um lugar que se sentisse digno e orgulhoso de produzir a própria

renda, por meio de grande capacidade de empreendedorismo comercial, passando por muitas

dificuldades.

Antônio declara que já mora no Pão de Santo Antônio há 10 anos. Conta que, depois que a

esposa faleceu, ainda permaneceu na sua casa, mesmo sendo grande, pois tinha 2 (dois) pavimentos.

Os filhos foram casando e saindo. O mais velho ficou morando ao lado da sua casa e foi se

enchendo de filhos, até que disse que a casa estava pequena para a família inteira dele e foi morar

com Antônio.

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Depois que o filho mudou-se, acabou se apaixonando pela namorada do pai. O pai conta

que “vira e mexe” o filho queria brigar com ele por causa de sua namorada: “sempre saía com ela

para bebermos uma cervejinha e quando voltava, ele queria tomar satisfações comigo”. O idoso

ainda faz uma ressalva: “aliás, não era bem minha namorada porque ela era mulher casada e eu

pedia emprestado do marido dela 2 (duas) vezes por semana”. Conta ainda que o filho se apaixonou

por ela porque ela também deu confiança e namorou com ele. Dessa feita, para não ficar ouvindo

aquela “lenga lenga” de mulher e filho, foi morar no Pão de Santo Antônio espontaneamente e, de

vez em quando eles vão visitá-lo.

Diante da nova realidade exposta, o idoso tende a ressocializar-se, reinterpretanto o

passado, a fim de estabelecer uma conexão com o presente. Complementando esse processo, Bosi

(1994) acrescenta que a verdadeira mudança é percebida no interior, no concreto, no cotidiano, pois

os abalos exteriores não modificam o essencial. Todavia, Birman (1995), também evidencia a

possibilidade de um processo de ressocialização, que tendo uma grande semelhança com a

socialização primária requer, do sujeito, uma forte identificação efetiva, para que seja possível uma

transformação da realidade.

5.5.2 Leitura e Recepção

Antônio conta que concluiu duas faculdades: a de Direito e depois a de Administração.

Trabalhava de dia e estudava a noite. Era uma rotina cansativa.

Depois que se aposentou, parou de escrever. Esporadicamente, passou a escrever poesias,

que para ele, é uma espécie de terapia. Relata que escreve quando começa a ficar estressado de estar

na Instituição. Às vezes, se sente isolado. Quando isso acontece, lembra-se de determinados

acontecimentos, episódios de novela de televisão ou outra coisa qualquer, e começa a escrever.

Sente-se mais relaxado, mais tranquilo. O processo histórico da leitura resulta de relações sociais,

que se estabelecem entre o leitor e o texto quando o lê e o autor quando o cria. Assim, o leitor e o

autor de um texto são indivíduos que interagem entre si através do texto e ambos têm uma história

de vida que influencia o processo de leitura e escrita dos textos, no caso de Antônio, são os

acontecimentos e fatos que ocorrem no seu dia a dia.

Considera ler uma atividade “gostosa”. Conta que não gosta de ler a página policial do

jornal, pois só aparece violência e desgraça. Gosta mais da parte romântica, maleável, elitizada e a

que o deixa atualizado, como o Repórter 70. A leitura, no seu pleno significado, refere-se à

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realidade. Ela se processa sobre o conhecimento expresso por escrito mas, também, através dos

nossos sentidos, que estão expostos a diversos estímulos, cheios de cores, sabores, cheiros e formas.

Todos eles, em vários momentos, passam por nós e atingem um grau de relevância. Isso porque,

cada leitor, como Antônio, com base em suas referências sociais, dá um sentido aos textos de que se

apropria.

Explica que sempre gostou de comprar livros em exposições e feiras que acontecem até os

dias de hoje. Lá no Rio, frequentava sebos em busca de livros que as pessoas que moravam em

apartamentos pequenos doavam ou vendiam. Neles tinha de tudo: romances, poesias, ficção,

policial, etc.

Considera a leitura muito importante, pois possibilita que a pessoa se sinta viva, fique

atualizada e com vontade de ler mais. Diz também que a leitura faz o tempo correr, que é uma

companhia e evita o estresse. Observa que os idosos que vivem na Instituição, não leem nada,

passam o dia ociosos e ansiosos. Portanto, conclui, que devem ficar estressados.

A teoria da estética da recepção explora a dinâmica que se estabelece na relação entre o

leitor e o texto literário, que é essencialmente interativa. Nessa interação, tanto a obra quanto o

receptor se engajam em uma relação recursiva (MORIN, 2002) marcada por uma causalidade

circular, em que os dois elementos se influenciam e se modificam mutuamente.

Conta também que, já esqueceu de muitas leituras que fez e que isso, às vezes, o deixa um

pouco angustiado. Porém, busca sempre estar atualizado com autores e leituras que considera

recentes. Se a formulação de uma lembrança, ou seja, se o processo de construção de uma memória

é sempre resultado do tempo presente, o mesmo se pode dizer sobre a produção de esquecimento.

Ideias, projetos, experiências, desejos e propostas existem porque são lembrados e são leituras

contemporâneas daquilo que um dia foram. Aquilo que é novo só se faz reconhecer pela diferença

com o antigo, a possibilidade de interpretação de nossa condição do mundo depende da capacidade

de lembrar e por estes motivos, esquecer representa riscos: o desconhecimento, a manipulação, a

ignorância. Esquecer também representa sofrimento porque implica na ausência de uma dimensão

de tempo que é fundamental na compreensão do que somos, individual e coletivamente, conforme

declarou Antônio. Finalmente, quanto à questão da memória, cumpre esclarecer que, Le Goff (2003)

ressalta que, mesmo para além do campo da história e da antropologia, a memória diz respeito tanto

à ordenação do passado, de seus vestígios, quanto a uma releitura contemporânea dos mesmos e está

irremediavelmente ligada a uma forma narrativa que, diante de uma ausência – ou não existência –

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torna-se o modo de reviver. Por isso o esquecimento que também faz parte da memória implica,

mesmo em termos neurológicos, num trabalho de reelaboração.

Por outro lado, Ferreira (2003) discorre que o esquecimento seria responsável pela

continuidade, pela memória e até pela lembrança. É o esquecimento que vem quebrar uma certa

continuidade na ordem mental, sendo responsável pela criação de uma outra ordem. Coloca aí algo

que é fundamental: a noção de quebra, de hiato, para futuras e renovadas retomadas e reconstruções,

algo como a morte provisória que se faria seguir da ressurreição. Lapso, hiato, fratura,

ressurgimento têm a ver com a interrupção de um projeto, tanto de vida e de ação como de narrar.

Formam uma espécie de morte momentânea, ritualizada, que daria lugar ao fluxo da vida.

Olha para cima da mesa e aponta que só vieram 2 (dois) jornais, mas que normalmente lê 3

(três) ou 4 (quatro) jornais diariamente. Não lê tudo, lê apenas as partes que considera mais

importantes e interessantes. Diz que sua filha, sempre lhe manda revistas como: Veja, Isto é, Marie

Claire e outras: “eu leio tudo isso e faço aquela farofa”.

Relata também que a televisão tem boas novelas. Cita a “Cordel Encantado”, como um

exemplo, pois relembra os tempos antigos e a vida do sertão nordestino. Assistia novela pelo rádio

através da Rádio Tupi. Lembra que transmitia até cópia de novelas mexicanas, adaptadas aos velhos

costumes aqui do Brasil, como a “Direito de Nascer”. Relembra com detalhes que havia um

noticiário às 18 horas, e a novela às 19 horas: “era gostoso, mas é melhor olhar, é claro”. A estética

da recepção, através da estrutura apelativa, coloca a obra de arte como um permanente processo,

como relatou Antônio quando se refere às novelas da atualidade que relembram o passado. A obra,

no caso a novela, é apreendida e interpretada pelo receptor que a modifica constantemente segundo

sua percepção, seu referencial, sua visão de mundo, suas experiências prévias, sua intencionalidade.

Uma obra de arte, assim, não é uma reprodução objetiva do mundo, mas é uma das abordagens

possíveis para a realidade no contexto da recepção.

5.5.3 Leitura e Memória

Como já foi mencionado, ao decorrer da entrevista, Antônio contou diversas vezes que

sempre gostou muito de ler. Lembra que o hábito da leitura o beneficiou inclusive na sua vida

profissional. Quando começou a trabalhar “comecei debaixo como quase todo cristão”. Foi chefe de

um setor durante 9 (nove) anos, e só saiu quando se aposentou. Trabalhou muito tempo com

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telecomunicação (rádio técnico, rádio telegrafista, auxiliar de escritório), na Petrobrás. O seu chefe

ficava no Rio. Uma das suas atividades era elaborar o relatório do setor durante o mês. Lembra que

seu chefe gostava tanto do seu tipo de redação que passou a mandar material que era de

responsabilidade dele como, expediente para diretores estrangeiros que estavam em Londres, Paris,

Estados Unidos, etc, para Antônio ler e fazer uma espécie de minuta. Depois de um tempo, ele já

queria que Antônio respondesse totalmente e completamente o expediente como se fosse ele:

“quando chegava lá no Rio já ia bem datilografado (eu escrevia bem a máquina), ele xerocava o

material que eu mandava e assinava como se fosse ele que tivesse feito”. Conta com vaidade todos

estes fatos, dizendo que isto sempre lhe fez bem, pois entendia que era útil e valorizado. Diz que

deve muito tudo isso a leitura.

A crença em si mesmo e a força de vontade fizeram dele um homem resistente a tudo e a

todos e hoje exibe esta posição confortável, que incorpora a ideia de sucesso na vida e na saúde. No

entanto, o vínculo simbólico com o trabalho permanece através da identidade de trabalhador que se

mantém como referência de identidade, pois não se rompem os modelos de identificação

preservados pela memória.

Leu muito Carlos Drumond de Andrade. Tinha também um livro de Gregório de Matos

Guerra, que lamenta ter emprestado e não o terem devolvido. Conta que gostava do estilo do escritor

pernambucano debochado, só escrevia coisas consideradas imorais, principalmente naquele tempo

dos seus pais e dos seus avós. O escritor era apelidado de “Boca Maldita” e também declamava

algumas poesias.

Considera que o trabalho na Petrobrás incentivou o seu hábito e gosto por leitura, pois tinha

de ler todos os expedientes para responder. Dessa forma, criou vontade de voltar a estudar. Fez um

teste para estudar no Paes de Carvalho, ginasial e científico. Nessa época, foi criado o Artigo 99

pelo MEC, onde poderia fazer o 2º grau através de 2 (dois) testes com 7 (sete) matérias. Passou em 4

(quatro) matérias e depois nas outras 3 (três). Fez cursinho pré-vestibular no Colégio Santo Antônio.

Estudou literatura com o Paes Loureiro e Matemática com o Manoel Leite. Ingressou no curso de

Direito e depois também terminou o de Administração.

Diz que o passado era melhor do que os dias de hoje. As pessoas viviam sem violência.

Considera a televisão uma das principais responsáveis, pois ela banalizou a violência e outras

práticas consideradas imorais e sem ética: “as pessoas que não tem discernimento olham e acabam

absorvendo e se envolvendo”.

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Na narrativa de Antônio, pode-se perceber claramente o que Josso (2004) descreve como

três idades distintas na vida: a primeira idade é dedicada ao aprendizado e a preparação para a vida

ativa e aos futuros papéis familiar, na segunda idade da vida dedica-se à família, aos filhos e ao

trabalho para mantê-los; na terceira fase da vida finalmente, pode-se dedicar a si mesmo e

enriquecer interiormente, para desenvolver melhor as próprias capacidades, em um trabalho do qual

nunca se aposentará.

5.6 ANÁLISE DOS RELATOS

Durante a entrevista com os idosos pude perceber que todos procuram vislumbrar um

amanhã melhor e tentam buscar satisfação em ser velho e, principalmente, encontrar consolo por

estar ali, na Instituição. Enfrentar suas perdas exige o remanejamento de várias prioridades e

objetivos. A necessidade de reavaliar a vida e o que deseja conquistar a partir do presente, que é

uma incógnita, se manifestou várias vezes nas narrativas. Todos tem a certeza de quem foram, mas

ainda procuram compreender quem são após a conscientização de sua velhice e, na maioria dos

casos, do abandono da família. Baltes (1995, p.137) afirma que “a arte da vida na velhice consiste

em uma busca criativa por um novo território, muitas vezes menor, mas que esteja cheio de uma

intensidade semelhante à experimentada no passado”.

O passado é não só, a parte mais longa de suas vidas, mas também a mais rica, na qual

encontram a própria identidade. O presente, entretanto, é vivido de maneira completa e com

entusiasmo mesmo porque eles não se sentem idosos, e, sobretudo não querem ser considerados

como tais. Em geral, as mulheres tratam de argumentos ligados à esfera pessoal, afetiva e ao

cotidiano, enquanto os homens abordam temas mais impessoais, concretos, relativos a eventos

passados e presentes.

Na prática cotidiana dos idosos, percebe-se que a religiosidade desempenha um papel de

proteção às pessoas que sofrem de angústia e de depressão espiritual. Acredita-se que a religiosidade

acalme o espírito, e que a crença em uma divindade gera esperança de felicidade. A espiritualidade e

religiosidade são fontes benéficas para a saúde do corpo e da alma. Além disso, a crença religiosa

parece auxiliá-los a encarar os desafios e debilidades da velhice, e também a pensar sobre a morte.

Este modo de ser no mundo, na forma de cuidado, permite ao ser humano viver a

experiência fundamental do valor, daquilo que tem importância e definitivamente conta. Não do

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valor utilitarista, só para o seu uso, mas do valor intrínseco às coisas. A partir desse valor

substantivo emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade, de reciprocidade e de

complementariedade. O lamento pelas oportunidades inexistentes ou perdidas de estudar, a infância

difícil porém lembrada com carinho, a construção criativa de estratégias de sobrevivência, o papel

das avós no desenvolvimento das habilidades de sonhar e lutar, a superação das ansiedades e

tristezas somatizadas, a descoberta dos direitos de cidadania e de empoderamento a partir da

convivência em grupo, constituem os elementos fundamentais que podem ser extraídos destas

narrativas. Quando Bosi (1999) entrevistou seus “velhinhos” em Memória e Sociedade mostrou

como aquelas pessoas tentavam dar coerência as suas experiências, como selecionavam aquilo que

era lembrado e aquilo que era esquecido, como reescreviam o passado de modo a estabelecer fios de

continuidade e causalidade que são antes construções, buscando justificar trajetórias inteiras de vida.

Na narrativa dos idosos, também constatou-se a influência do contexto social e familiar nas

decisões acerca da carreira profissional. Normalmente, em famílias que se constituíram na primeira

metade do século passado e provenientes de uma classe social baixa, os filhos mais velhos não

tinham muitas oportunidades de se dedicarem aos estudos. Começavam a trabalhar cedo para ajudar

no sustento da casa, e as mulheres abandonavam seus trabalhos para se dedicarem à criação de filhos

e ao cuidado da casa e do marido. Outro agravante diz respeito às falas dos homens, travadas por

constantes mudanças e pouca permanência nas cidades onde moraram.

Os estudos de Josso (2004) afirmam que o idoso pode encontrar satisfação e realização em

ver os filhos bem sucedidos, enquanto profissionais e pais. A criação e o cuidado dos filhos podem

ser experimentados como manifestação da geratividade que traz satisfação permanente, já que se

estende por vários anos. O orgulho em ver os filhos e netos construírem suas carreiras profissionais

e conquistarem seus sonhos, geralmente, gera profunda satisfação, promove envolvimento vital e

pode compensar as frustações experimentadas durante a vida.

Algumas narrativas são marcadas por uma lacuna na vida por ocasião da viuvez. Muitas

vezes, a perda do cônjuge é vivenciada pelo idoso como perda de um cúmplice e de parte de si

mesmo. As representações que o sujeito faz das pessoas afetivamente próximas e de si mesmo

contribuem para o sentido de continuidade individual. Consequentemente, a morte do cônjuge pode

abalar esse senso de continuidade de vida. Adicionalmente, a falta de um ambiente que lhe

proporcione envolvimento social e a falta de relacionamento e proximidade com os filhos, netos e

bisnetos parecem também contribuir para um isolamento social e estagnação.

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Outra dificuldade demonstrada durante a entrevista diz respeito à construção de

relacionamentos de intimidade na velhice. A maioria dos idosos entrevistados relataram que não têm

conseguido preservar ou reviver laços de companheirismo, de amor e de amizade. Relacionamentos

sociais de amizade são muito importantes para o envolvimento vital do indivíduo na velhice,

principalmente aqueles que estão presentes em sua vida há muito tempo. Bacelar (2002) assevera

que amizades antigas dão ao idoso sensação de ser escutado e compreendido por aqueles que

compartilharam juntos momentos importantes.

Face à progressiva diminuição sensório-motora que normalmente ocorre na velhice, muitos

idosos tendem a experimentar o elemento distônico da inferioridade. A forma de superá-lo é re-

experimentando o senso de competência que pode reaparecer sob a forma de aprendizado e

desenvolvimento de novas capacidades. Dessa forma, os idosos entrevistados têm usado seu tempo

livre para aprender e desenvolver aptidões que antes não possuía, como escrever poesias, ler outros

tipos de livros que antes não se interessavam ou, até mesmo se aprofundar em leituras que no

passado não havia tempo para o deleite. Portanto, além de manter um forte senso de competência,

todos foram unânimes em dizer que a leitura os permite ficar atualizados dos acontecimentos do

mundo, além de ser uma importante terapia no momento de isolamento.

Manguel (1997) reconhece a leitura como algo cumulativo, que avança em progressão

geométrica, onde cada nova leitura se baseia no que a pessoa leu antes. Dessa maneira, a leitura,

muitas vezes, não segue uma sequência convencional do tempo. Por exemplo, a leitura em voz alta,

de um determinado texto, não será a mesma leitura feita em momentos solitários. Nesse caso, será

uma releitura do texto, uma recordação a qual o leitor compara com outras leituras, trazendo à tona

as sua emoções.

Vale ressaltar que a maioria dos idosos relatou que não tinham acesso a livros em casa, mas

sim em bibliotecas, sebos ou durante viagens. Durante muito tempo, em várias partes do mundo, o

livro integrou o grupo dos objetos de luxo porque eram limitados e, consequentemente, caros. O

acesso às bibliotecas também eram raridade, pois as maiores e melhores estavam situadas nos

mosteiros, que eram locais fechados para o público. Por isso, em muitas famílias, os livros eram

lidos em voz alta. Esse tipo de leitura em família tinha por finalidade a instrução e o entretenimento.

Geralmente eram feitas na hora do jantar, na tentativa de realçá-las ao paladar, como diversão

criativa. Chartier (1996), ao estudar as categorias livro e leitura, buscou examinar as condições

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possíveis para uma história das práticas de leitura. Para ele, o ponto de partida enraíza-se nas

aquisições e, também, nos limites do que tem sido até hoje, a história do impresso.

Outro ponto a destacar em relação a leitura e aos idosos entrevistados é que, a maioria,

destacou e relacionou seu sucesso profissional ao hábito de leitura que adquiriu durante a sua vida.

As habilidades de ler e de escrever são imprescindíveis para a organização política, para a

mobilização e comunicação de uma sociedade. No entanto, é evidente que só se torna leitor aquele

que tem a oportunidade de ler, que tem acesso ao objeto de leitura e o utiliza. Assim, a leitura, com

toda a sua história, oferece às pessoas, um caminho para a educação e para o desenvolvimento da

conscientização da sociedade, inclusive do crescimento profissional. À proporção que as entrevistas

revelam vidas imersas em trabalho, estas se mostram como indutoras à formação de profissionais em

serviço. Este é o resultado de uma sociedade que não prepara seus trabalhadores e o aprendizado é

feito por necessidade de sobrevivência. O que não permite ao trabalhador, a construção de uma

ocupação em que desempenhos e competências sejam um processo de ensaios e erros.

Com isso, verificamos que apesar de tantas dificuldades vivenciadas pelos idosos

pesquisados, eles sempre buscaram soluções empreendedoras para tirarem seu sustento. Embora

reconhecendo que nem sempre um diploma, ou certificado venha garantir de imediato maiores

ganhos econômicos, não podendo negar a sua representação enquanto elemento que, de certa forma,

acarreta prestígio. Sendo assim, buscam garantir na leitura uma forma de se atualizar no seu tempo e

manter um aprendizado continuado, além de considerarem o ato de ler uma forma de libertação,

através do qual as pessoas poderão tomar consciência de seus direitos.

Por fim, observando as entrevistas, detectou-se que as mulheres liam romances e livros

espíritas, enquanto que os homens ocultismo, esoterismo, ficção científica e escrevem poesias. De

acordo com Manguel (1997, p.29), “livros determinados emprestam certas características a leitores

determinados”. Para completar esse argumento Certeau (1972, p.77) afirma que, “ao ler uma

determinada obra o leitor depara-se com os nós do autor, que remete a uma convenção. Pois, esses

nós é um sujeito plural que sustenta o discurso e se apropria da linguagem, pelo fato de ali ser posto

como locutor”. Assim, implícita na posse de um livro, está a história das leituras anteriores do livro,

ou seja, cada novo leitor é afetado pelo que imagina que o livro foi, em mãos anteriores. O lugar do

livro e o momento em que a pessoa está vivendo também influência na escolha do material de

leitura, pois estes são representações de um lugar, e de um tempo.

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Na tentativa de verificar como os idosos estão praticando a sua capacidade de leitura, é que

busquei os seus relatos para saber que tipo de informação eles carregam na memória. Obtive como

resposta que eles leem os mais diversos tipos de materiais inclusive, aqueles voltados para a questão

espiritual até os que falam de ocultismo e esoterismo, como já relatado acima. Comparando as

leituras anteriores com as leituras atuais, as mulheres não citaram mais o romance como uma de suas

leituras, porém os homens continuam lendo basicamente as mesmas leituras do passado. As pessoas

escolhem leituras com as quais elas se identificam, porque procuram nelas algo que as caracterizem

em um determinado momento de suas vidas. Por isso, alguns tipos de leitura perderam espaço para

outras, que se aproximam mais do momento em que cada um está vivendo.

Outro aspecto observado corresponde ao fato de que tanto nas leituras anteriores quanto nas

atuais, a Bíblia está entre os materiais mais lidos, principalmente pelos homens. Isso leva a inferir

que a religião tem funcionado como incentivador da leitura, embora com finalidades diferentes. A

leitura da Bíblia também pode estar relacionada ao fato de que ela funciona como um tipo de guia

ético-espiritual, como uma fonte de ensinamentos religiosos, de caráter fundamental para o

estabelecimento da moral humana. Além disso, a Bíblia também é um documento de caráter

histórico que expressa uma cultura milenar, constituindo-se numa fonte de sabedoria e ensinamento

até mesmo para os não religiosos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência com grupo de idosos, além de se constituir em um espaço de exercício do

pensamento, é também a possibilidade de entrar em contato com a condição de finitude a que todos

são sujeitos.

A morte continua indecifrável e incontornável, apesar de todos os avanços das ciências e

das demais tentativas de dar-lhe um contorno e uma inteligibilidade aceitável, como a religião. Os

grupos da terceira idade se constituem ambiguamente em relação ao espectro da morte: por um lado,

fornecem o amparo e as presenças dos outros, confirmando a possibilidade da manutenção e do

prolongamento da vida. Por outro, na medida em que aqueles que estão ao lado, sucumbem, vem à

tona a constatação de que ela continua em sua insidiosa ronda.

Como um objeto complexo, o envelhecimento humano se inscreve em diferentes planos

conectados entre si. A compressão do tempo e do espaço, como plano social de fundo, promove

outra inscrição do homem no mundo contemporâneo, cujas consequências ressoam nos modos de

ver e de experienciar a finitude. A aceleração do ritmo da vida e a ampliação dos espaços sociais

também afetam a velhice, que passa a ser vista e tratada como uma fase que pode receber algum

aditivo para incrementar a circulação dos idosos. A ciência e demais produções discursivas, somadas

às políticas públicas, ao criarem a categoria denominada idoso ou terceira idade, promovem um

conhecimento racional e instrumental do qual o mercado se apropria, para produzir demandas

apresentadas por essa população. Até mesmo a memória e a narrativa na velhice, tidas como bens

maiores dessa idade, se encontram diretamente afetadas por todos esses atravessamentos

contemporâneos, os quais fomentam uma relação diferenciada do homem com o passado, com a

experiência narrativa e com a (im) possibilidade de se ter interlocutores no exercício de rememorar e

transmitir um legado cultural.

O trabalho reflexivo da memória tem sido associado ao movimento expansivo para

extensão das lembranças aos outros. A tradição oral sempre desempenhou um papel significativo na

história da humanidade. Na contemporaneidade, faz-se parte de uma sociedade letrada, complexa,

em que a escrita passou a exercer o papel de guardiã dos registros do passado. É, pois, através da

leitura que é possível reavivar a memória, mantendo vivo um grande acervo do saber. A leitura,

assim, se configura como atividade que dá significado ao mundo e por isso pode ser compreendida

como fonte do saber, do prazer, da evasão, do refúgio, de formação do imaginário, dentre outros.

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A memória, dessa forma, é a capacidade de registrar e evocar informações diversas. Por

isso, ela necessita que cada indivíduo faça uma leitura dos acontecimentos do passado, a fim de que

possa entender o presente e se preparar para o futuro. Essa leitura não deve ser feita apenas com

base nos gestos, nas situações vivenciadas no dia a dia, mas, também nos livros e demais materiais e

objetos de registro da nossa memória, para que perdure por gerações. É a memória que vai fornecer

a base para todos os conhecimentos, habilidades, sonhos e desejos.

Toda memória se estrutura em identidades de grupos. Essa argumentação de Halbwachs

(2004) remete aos sujeitos da pesquisa que tiveram a prática da leitura durante suas vidas, o que

facilitou a trajetória pelos caminhos da leitura. Essa prática, por ter sido habitual, os idosos

entrevistados desenvolveram a memória-hábito da leitura, o que certamente contribuiu para que se

tornassem leitores até os dias de hoje.

O processo histórico da leitura resulta das relações sociais e do registro da memória. Para a

continuação desse processo faz-se necessário um constante exercício da leitura, a fim de garantir às

gerações futuras, o conhecimento do passado para o entendimento do presente. Caso contrário, a

desinformação da sociedade será intensificada, abrindo portas para o surgimento e manutenção de

diversos tipos de preconceitos, inclusive, contra a pessoa idosa.

Ao abordar histórias de vida de pessoas idosas, observa-se que o comportamento dos

entrevistados aproxima-se muito do que Halbwachs (2004) comentou em seus estudos, a respeito de

que um indivíduo, quando testemunha oralmente o seu passado, formula a própria narrativa que,

dependendo da reação do ouvinte, funciona como um processo de adaptação, confronto ou

acomodação. Desse modo, no momento em que relataram suas histórias, os sujeitos procuraram uma

forma de justificar e confirmar sua formação leitora.

Constata-se também, que as memórias aqui apresentadas correspondem àquelas que

marcaram de forma significativa e afetiva, a vida dos idosos e das idosas. Por isso, cada fragmento

de memória comunicado contribui para a reconstrução da história da leitura, pois quando o passado

é reconstruído, realiza-se uma releitura, já que não é possível revivê-lo exatamente como o foi antes.

Mais adiante, com maiores leituras e exemplos práticos no convívio dos idosos do Pão de

Santo Antônio, percebe-se que os mais sábios são os que põem em prática o que acreditam e o que

aprendem. Os mais sábios são os que aceitam suas idades, limitações e aproveitam o que há de

melhor no envelhecimento para alcançar maior qualidade de vida.

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Dessa forma, experienciar não é somente viver, e sim refletir sobre essa vivência. É

desvelado o fato de que, quando há reflexão sobre aquilo que é vivido, há aprendizagem, seja ela

informal ou formal, seja ela na escola ou na vida. Experiências de vida estão mescladas com a

aprendizagem significativa. Portanto, há pessoas que experienciam muito, que aprendem muito, mas

não são consideradas sábias. O que falta então para alcançar a sabedoria? Conclui-se nessa

elaboração de conhecimento, que a ação é primordial nesse processo. De que adiantam tantas

experiências, tantas aprendizagens, se nada é praticado? O que levaria um senhor de 80 anos a saber,

conhecer e ter vivido tanto, se não age mais e se não encontra ou procura espaços para dividir

tamanha aprendizagem? Falta a ação; falta a prática.

E foi assim, em tantas caminhadas, que a sabedoria começou a ser definida e entendida.

Sabedoria, então, são as experiências, a aprendizagem significativa e a ação. Iniciou-se um momento

de reflexão e de aprendizagens significativas. A pesquisa já fazia sentido. Os livros, os diversos

autores, filósofos, as memórias das leituras, os sebos, as bibliotecas ganhavam voz quando os idosos

começavam a falar e a relacioná-los com a sua trajetória de vida.

Eles mostravam o caminho da sabedoria. O sentido maior da aprendizagem se encontra

neles. O campo começava a chamar. E aí percebia o valor da minha pesquisa, o valor das palavras

do orientador “você não quer falar de idosos? Então não desista, vá até o fim”. Via com nitidez a

própria definição de aprendizagem significativa se encaixar com a minha experiência.

Agradeço aos inúmeros filósofos, educadores, cientistas, autores, artigos e livros lidos antes

da minha entrada no campo de pesquisa. Encontrei a fala de cada um deles sendo descrita e falada

pelos meus sujeitos colaboradores. Diferentemente de muitos que vão para o campo e descobrem

outra realidade, eu via ante a mim, cada um dos colaboradores falar o que eu havia descoberto por

meio de outrem. Parecia que muitas vezes conseguia colocar as aspas e dizer de acordo com o

fulano de tal, ano tal, meu sujeito colaborador também compartilha desse conceito, dessa ideia,

desse olhar. Tudo fazia sentido, tudo estava relacionado.

As histórias de vida de Josso (2004), a lembrança dos “velhinhos” de Bosi (1994), a forma

de narrar e contar histórias de Benjamin (1987), a relação entre a modernidade que contribui para

apagar estes rastros deixados pelos nossos avós e que tanto discutimos nas nossas aulas de

Modernidade e Pós Modernidade sempre embalados por Canclini (2005) e Hall (2000), as fases do

envelhecimento e os medos citados pelos idosos que relacionei perfeitamente com os estudos de

Beauvoir (1990) e, claro, não poderia deixar de citar os estudos de Jauss (1979) e de Lajolo (2000)

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que tiveram tamanha importância para reatualizar e contextualizar as entrevistas dos idosos e,

principalmente, a minha forma de interpretar e receber estas informações. Eu me deliciava com suas

falas. Era como se uma voz gritasse dentro de mim dizendo “eu já li isso. É verdade”. A teoria era

então comprovada pela prática.

Percebe-se o valor da etnografia dentro de uma pesquisa. Digo que fui afetada e

transformada por meio do meu estudo. As histórias de vida que ouvi e experienciei já fazem parte de

mim. Uma mescla da minha história de vida antes da minha pesquisa e, agora, diz o que eu

realmente sou: uma pesquisadora que teve o privilégio de ouvir a sabedoria falar por meio das

histórias de vida. Meus ouvidos sensíveis às histórias de vida, mesmo após o término da pesquisa,

não conseguem mais se comportar como antes. Minha fala usa vocabulário novo, meu olhar busca

outro foco, encontro-me muitas vezes dividindo tudo o que aprendi. Um livro lido, um filme

assistido, uma história compartilhada, nada deixa de passar pelo filtro da minha experiência.

Compreende-se que o exercício que fiz durante esses encontros e horas de convivência,

resgatou as memórias situadas nas lembranças e possibilitaram a (re)construção de um futuro

melhor. O passado sendo escutado e resgatado, localizado dentro de um presente e possibilitando a

vinda de um futuro de maior qualidade; esse foi um dos objetivos alcançados na pesquisa. E, assim,

permiti que as histórias deles se mesclassem com a minha história, sempre mediadas pelos textos

apresentados no início de cada cena.

Assim, ao analisar as experiências vividas e as memórias de leituras dos sujeitos

colaboradores, pude me reconhecer como portadora de uma história de vida. E foi com as narrativas

advindas deles que puderam se autobiografizar como autores e protagonistas de suas histórias.

Essa experiência possibilitou-lhes a encontrar o sabor da sabedoria em suas próprias vidas.

E assim me movimentei em busca de novos conhecimentos e saberes. E foi assim que fui me

deparando com os objetivos desta pesquisa.

Desconstruiu-se a ideia de que seres sábios são seres excepcionais, dignos somente de

acertos; seres perfeitos em ações e pensamentos. E fortaleci a crença de que seres sábios são aqueles

que experienciam, aprendem e agem de acordo com sua consciência.

Vejo o valor da minha pesquisa de poder resgatar uma parcela da população que

preconceituosamente é desvalorizada: a terceira idade e, principalmente àquelas que vivem em

regime asilar, em instituições de caridade. É muitas vezes tratada como quem não aprende ou que

tem lentidão em aprender, e que já não possui utilidade perante a sociedade, incluindo por seus

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familiares. Os que praticam a exclusão deveriam falar menos e ouvir mais e se preparar para

aprender tanto quanto a ensinar.

O maior beneficiado desta pesquisa foi o próprio pesquisador. Senti-me transformada,

renovada. Achei-me sendo capaz de envelhecer ainda nos meus 33 anos. E digo, com todo orgulho,

que apreciei o valor do envelhecimento. E, para descobrir tudo isso, perpassei meus objetivos

específicos, identificando a história de vida de idosos que moram na Pia União do Pão de Santo

Antônio, resgatando suas experiências e memória de leitura, partindo dos princípios da teoria da

estética da recepção.

Descubro que o saber não vem dos conteúdos, o saber vem da vida. O campo foi um back

vocal dos autores que me acompanharam nesses dois anos de estudo. Encontrei a sabedoria. Carrego

05 (cinco) experiências de vida e histórias de leitura. Elas têm um lugar especial e serão mexidas,

transformadas, completadas, avaliadas e aceitas até enquanto eu existir.

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XAVIER, G.F. Memória: Correlatos Anátomo-Funcionais. In: NITRINI, R.; CARAMELLI, P.; MANSUR, L.L. Neuropsicologia: Das Bases Anatômicas à Reabilitação. Clínica Neurológica do Hospital das Clínica – FMUSP. São Paulo, 1996. WEINECK, J. Parte VI. Idade e esporte. In: WEINECK, J. Biologia do Esporte. Tradução Anita Viviani. São Paulo: Manole, 1991. ZILBERMAN, Regina. A Leitura na Escola. In: ZILBERMAN, Regina (org). Leitura em crise na Escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989. ZILBERMAN, Regina. Fim dos Livros, Fim dos Leitores? São Paulo: Senac, 2001. WEINECK, J. Parte VI. Idade e esporte. In: WEINECK, J. Biologia do Esporte. Tradução Anita Viviani. São Paulo: Manole, 1991.

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APÊNDICES

APÊNDICE I: Roteiro para Entrevista – Pão de Santo Antônio

Identificação:

Nome

Idade

Profissão

Há quanto tempo encontra-se no Pão de Santo Antônio

Possui família? A família visita o idoso com frequência?

1. Como e quando começou a se interessar pela leitura?

2. Que tipo de leitura costumava fazer?

3. Quais os escritores favoritos? Por quê?

4. Como tinha acesso aos livros? Compra? Empréstimo? Biblioteca?

5. Sua família se interessava pela leitura?

6. De que forma o hábito e o gosto da leitura influenciou na sua memória e qualidade de vida atual?

7. Você considera que as leituras feitas no passado ainda estão presentes e atualizadas nos dias de

hoje? Quais as consequências delas hoje em dia?

8. Você encontrou barreiras ou dificuldades para fazer suas leituras

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APÊNDICE II: Entrevista

S.F.L.A.

Nascimento: 26/03/1938 – 72 anos

Meu gosto pela leitura iniciou-se na escola. Diariamente havia aulas de leitura. Os alunos liam. Isso

era normal no colégio. Em casa, papai nos obrigava a ler. Era o meu castigo e dos meus irmãos.

Trabalhava em laboratório, viajava muito e sempre gostei de ir em sebos. Trabalhava em laboratório

e fui atrás de um livro chamado “Poder Secreto do Homem” e não encontrei. Os chefes, um italiano

e um português, souberam que eu estava procurando este livro e me indicaram o “Conhecimento

Secreto do Homem”. Comecei a ler a orelha e o prefácio, o prólogo, e, naquela hora, se descortinou

um manancial, parecia que eu tinha vivido aquilo e o autor, Sílvia de Pascoal, era o próprio. Ela

também me deu a auto ajuda “Despertar da Consciência” e “O Homem e a Cosmogênese”. Veja o

que acontece, parece que eu já conhecia aquilo ali. O ocultismo me convidou para ir a São Lourenço

no fim de semana. Era a Sociedade Teosófica: Goethe, Dante Alighieri, Fausto, entrei de cabeça.

Gosto do esotérico, ocultismo, não do espiritismo.

Dos autores clássicos lia muito Machado de Assis (“Dom Casmurro” e o “Alienista”,

principalmente) e Dostoievski (Crime e Castigo), essas eram as minhas leituras do dia a dia. Não

gosto muito do gênero romântico. Sempre busco mais o teatro como o Inferno da “Divina Comédia”

de Dante Alighieri.

Com 10 ou 11 anos, estava no admissão. Foi dentro de casa que comecei a ler o livro “Tesouro da

Juventude”. Meu pai tinha o hábito de ler e comprava muitos livros. Estudei no Marista de Recife.

Depois fui morar no Rio, sempre viajando e lendo muito. Um dia, passeando pelas ruas, passei pelo

parque São Pedro e vi um cara, tipo hippie, vendendo o livro “Os grandes iniciados – De Brahma até

Jesus”, perguntei para ele por quanto estava vendendo e ele falou que trocava por uma “cervejinha”

e assim o fiz. É o tipo de livro que não existe mais. Tenho livros que não existem mais, por

exemplo, uma Bíblia de 1800 e pouco. Tenho todos os livros da Annie Besant, C.W. Leadbeater e

Helena Petrovna Blavatsky.

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Fui na Saraiva na semana passada e lá comprei uns livros: “Eterna Sabedoria”, “A Visão Teosófica

das Origens do Homem – Ensaio sobre a antropologia esotérica”, são obras relacionadas ao

cultismo, que poucas pessoas gostam. O cultismo é o lado culto das coisas, e eu adoro. Também

tenho um livro do profeta Enoque que conta a história que Noé pede socorro ao pai Lemech dizendo

que a Terra estava sofrendo as dores do parto, ela está inclinando. O pai responde: “Volta, junto

tudo o que é teu e sobe, as águas lá não chegarão”, portanto, o dilúvio aconteceu por uma inclinação

da Terra. Também gosto de Eliphas Levi, “A Chave dos 12 Mistérios”, é uma obra espetacular

puramente Católica, mas é um outro lado, ou seja, um lado esotérico da Igreja Católica. A Igreja

Católica, na realidade, é única. Os seus rituais herdaram a verdadeira sabedoria, os evangélicos são

repetidores de salmos. A Igreja Católica tem essência, tem fundamento, os mantras que ela usa, seus

cantos gregorianos, ioga da voz e ninguém dá valor.

Na minha casa era eu e mais três irmãos. Somente eu, meu pai e minha irmã mais velha se

interessavam por livros. Minha irmã era professora de francês e meu pai era oleiro, trabalhava na

olaria fabricando tijolos, telhas e cerâmicas em geral.

Eu gosto de ler livros novos e sempre busco na minha memória lembrar dos antigos. A minha

memória está sempre renovando e me proporcionando bem estar. Acordo vou para a janela e faço

minha ioga.

Obras lidas no passado, lembro-me perfeitamente hoje. Melquisedeque foi arrebatado! Elias veio em

carro de fogo! “A lenda do Tapete Voador” era um prenúncio dos discos voadores. “Ali Babá e os

40 ladrões” – 40 é um número cabalístico. Já o americano criou o Tio Patinhas, pois tinha a visão do

tesouro, do capitalista. O Tio Patinhas veio para ensinar a poupança, assim como, a lenda “A

formiga e a cigarra” dizendo que quem pouca no verão e na primavera, terá um inverno tranquilo.

Minha filha disse uma vez que queria me dar um computador, mas eu não quero, pois com isso me

viciarei no computador e perderei o hábito de ler. Aqui no Pão de Santo Antônio tem poucos que

fazem uso da leitura, somente com uns 2 (dois) idosos é que troco ideias, o restante acorda, come,

dorme e deixa o tempo passar. Com a leitura você olha a vida de outra maneira.

Sou contra o comunismo, não existe igualdade física, mas sim de espírito! A própria natureza mostra

o predador, o animal, portanto, o homem vai lapidando e evoluindo espiritualmente. A luta do Eu

Superior (espírito) com o Eu Inferior (matéria), do Netuno contra o Vulcão, da Água e o Fogo.

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Hoje em dia para se ter acesso aos livros é difícil. Bibliotecas contam-se nos dedos. É preciso haver

mais para habituar essa “meninada” a ler. Na Educação é sempre a mesma promessa e nunca evolui.

Havia uma biblioteca na Campos Sales, mas não sei se ainda existe, não há incentivo.

Antigamente, eu frequentava o cinema, assistia o Rim Tim Tim (um cachorro policial), o Cabo

Rusty, Lassie e outros filmes que hoje em dia não tem mais. Hoje é só loucura, as crianças não

aprendem mais a gostar de animais, chutam eles na rua. Por isso que os crimes estão acontecendo.

Na minha época tinha dissertação quando eu voltava das férias o professor pedia para descrever

sobre as férias. Fiz primário, ginásio e científico no Colégio Marista. Vim para Belém em 1959,

tinha um tio aqui e fiquei morando com ele. Minha mãe era filha de português e o meu pai de

holandês. Meu avô português gostava de escrever, o “Chico Mendes”, Francisco de Paulo Mendes é

meu primo, chamavam ele de “Ratinho” faleceu há pouco tempo e também gostava muito de

escrever. Sou também primo da professora Maria Regina Maneschy e sempre que converso com o

professor Benedito Nunes, ele pergunta pelo Chico Mendes.

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APÊNDICE III: Entrevista

M.M.M.S.

Nascimento: 22/07/1927 – 83 anos

A leitura entrou na minha vida desde que comecei a estudar. Era uma das melhores alunas de

história, invento, crio, por isso gostava de ler tudo. Tudo o que sei devo a leitura. Sempre gostei de

ler. Comprava muitos livros. A bibliotecas eram muito restritas.

Adoro ler M. Delly. Gostava das leituras que eu compreendia. Gosto também de ler livros de

escritores nacionais. Não gosto de escritores rabugentos. Domingo, fui na Saraiva e vim carregada

de livros. Estou fazendo pesquisa sobre os Anjos. O meu interesse pelos anjos se deu devido a um

desgosto recente que me abalou muito, deixando-me magoada. Precisava então me modificar para

obter a minha salvação e não estava conseguindo, então a figura dos Anjos tocou meu coração. O

que tenho lido, estou colocando em prática. Comecei a perdoar aquela pessoa e tenho buscado a paz.

Quero repassar esse meu conhecimento que é muito importante para minha saúde, pois minha

pressão estava alta e eu não conseguia controlar por causa da mágoa. Estou me sentindo um anjo

voando com tanta leveza. Nós praticamos também muitas coisas e como sempre queremos ser

perfeitos, também pecamos, fazemos o mal e isso se reverte para nós. Por isso, gosto de leituras

doces, amenas e leves.

Sou extrovertida e tenho muitas amigas que vivem no meio de literários, como o Benedito Nunes, e

que gostam muito de ler. Convivo com estas amizades. Meu pai era auxiliar de farmácia, dormia

cedo e minha mãe cuidava de 5 filhos. Meu marido era radiotelegrafista, não gostava de festas e nem

de passeios. Estudei contábeis e terminei o curso, porém, nunca exerci a profissão, pois meu marido

não queria que eu saísse de casa para trabalhar, porém, nunca me impediu de ler livros.

A leitura foi maravilhosa. Hoje, já que não podemos sair, a leitura é o nosso melhor passatempo. O

que foi lido ontem, sempre tem relação com o que lemos hoje e com o nosso dia a dia. Jamais se

esquece ou deixa de existir, pois é essencial.

Eu queria viver, ser feliz e ler!

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APÊNDICE IV: Entrevista

M.T.O.

Nascimento:27/09/1925 – 85 anos

Quando eu era aluno do colégio primário havia uma matéria de Letras chamada Thales de Andrade

(que era o autor). Os livros deste autor cada ano eram lidos, então líamos eles no primeiro, no

segundo, no terceiro ano, e assim por diante. O primeiro livro dava o incentivo para o aluno

obedecer aos pais, aos mestres e as pessoas mais idosas. Ensinava os bons costumes, não só os bons

hábitos alimentares, como também os procedimentos, inclusive na entrada do transporte

(antigamente era bonde): entravam primeiro as pessoas idosas, depois as senhoras, depois os jovens

e as crianças tinham prioridade. No rodapé desses livros, sempre tinha um verso (uma estrofe com

quatro versos) de algum poeta famoso como Olavo Bilac, Gonçalves Dias, aquilo tudo era um

incentivo para a pessoa ler e gostar de poesia. Esses livros ensinavam muito sobre moral e cívica.

Aprendia também uma parte de religião, a cumprir os mandamentos da lei de Deus, porque Deus

não é palavra, é ação. Se todo mundo procurasse se aproximar o melhor possível do cumprimento da

lei de Deus, a humanidade seria totalmente diferente, não existiria guerra, só existiria coisa boa.

Nasci na Santa Casa, mas não fui criado pelos meus pais. Quem me criou foi o Dr. Camilo Salgado,

minhas tias eram governantas da casa dele, e ajudaram a criar os filhos dele. Quando eu nasci meu

pai não tinha como ficar comigo, ele era dono de um estaleiro de construções navais, no Marajó.

Não tinha mulher e as filhas eram pequenas também e tinha que deixar aquela criança (que no caso

era eu) com alguém. Aí minha tia pediu permissão para minha madrinha, esposa do Dr. Camilo

Salgado, se podia me levar para criar que ela tomava conta de mim e ela falou com Dr. Camilo e ele

permitiu. Ele já conhecia meu pai, pois meu pai construiu o iate do Dr. Camilo e aí, por influência

desse conhecimento eu fui pra lá. Fizeram tudo por mim, me deram até o meu curso técnico de

mecânica, de lá já saí pra vida pronto. Com 18 anos eu já era reservista de 2ª categoria, tanto que fui

chamado para o Exército Americano e mandaram eu ir para DACAR (África do Norte), servir lá em

uma base de apoio onde tinha um Hospital da Cruz Vermelha, que trabalhavam brasileiros também,

e uma base de apoio para recuperação de material bélico, tipo tanques de guerra, canhão e tudo que

era tipo de armas que vinham dos combates dos aviões da Alemanha, do Japão e tudo era

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recuperado ali. E tinham os técnicos americanos que ensinavam a gente. Só faltavam pegar na mão

da gente ensinando como era que se mexia numa arma, num tanque de guerra e aquilo ali foi um

incentivo muito bom, juntando o conhecimento que eu já tinha dos livros que eu lia. Aquilo me

ajudou muito na vida, tanto que a minha carreira profissional foi muito fácil, com a profissão que eu

aprendi lá, quando eu cheguei no Brasil já fui servir a Aeronáutica, já dentro da profissão de

mecânico. Fiz o curso de Sargento, me mandaram para Guaratinguetá, lá fiz o curso de mecânico de

aviação (motores), passei 2 anos e peguei mais uma graduação para 2º Sargento. Só que eu não

gostava da vida militar, eu tinha um abuso da vida militar porque havia muita petulância era muita

disciplina, que hoje não dava mais para ter uma disciplina como naquele tempo, árdua. Hoje a coisa

está mais suave, hoje todo mundo na vida militar é profissionalizante, os oficiais conversam com os

praças, está uma coisa muito moderna, diferente daquele tempo. Eu não gostava daquilo, eu estava

tirando meu tempo perdido porque era necessário tirar, mas foi bom, pois eu aprendi mais uma

profissão lá.

Tem uma coisa que marcou muito na minha vida. Eu era noivo, já há 2 anos, e eu não podia casar.

Só Oficial que casava, de Sargento para baixo não casava, era lei. Então eu queria me casar, e um

belo dia estava em forma, escutando a ordem do dia, o boletim, e veio um decreto do Ministério da

Aeronáutica que quem quisesse reengajar por mais 9 (nove) anos, podia reengajar, era só se

apresentar lá no comando, e quem quisesse ir para a vida civil podia também chegar e se inscrever.

Para mim foi um prato cheio, no dia seguinte eu fui lá e me inscrevi logo para a vida civil, eu queria

me casar. Meu ideal era casar, ter família, ter filhos e não seguir na vida militar. Depois de 1 mês, a

gente estava no mesmo pátio, na mesma forma, o mesmo Major lendo a ordem do dia, e cantou em

boletim um decreto número tal, do Ministério da Aeronáutica, botando a disposição o pessoal que

pediu para ir para a vida civil. O primeiro nome cantado foi o meu, eu esqueci que estava em forma,

com disciplina, dei um pulo e um grito e fui preso. Fiquei a disposição do comando e o comandante,

era o Coronel Juscelino Brasil, ele era neurótico de guerra, era carrasco, diziam que ele não abria

mão nem para a mulher dele, eu pensei: tô ferrado! Ocorre que, todo fim de mês, iam 2 (dois) aviões

C-47 levar tropas para Jacareacanga com mantimentos e traziam o pessoal que estavam lá de volta

pra cá. Então, nós éramos 3 (três) mecânicos, da mesma especialidade, 3 (três) Sargentos: 1 (um)

estava para o Rio de férias, o outro estava acidentado no hospital (tinha caído da asa de um avião e

quebrou um braço) e só estava eu, e estava preso, detido. O Major que era o responsável pela

liberação dos aviões foi lá no comando e contou a história para o Coronel. O Coronel me disse: você

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vai lá fazer o serviço, libera estes aviões e depois volta aqui para prestar conta da sua indisciplina.

Dentro de 3 (três) dias preparei os aviões, eles foram embora, levaram tropa, material e tudo. O

Major voltou comigo e perguntou o que tinha dado em mim, perguntou se eu tinha estudado

disciplina militar, querendo saber que história era aquela de eu estar em forma e ter soltado aquele

pulo e aquele grito. Eu contei a minha história e disse que no momento eu tinha ficado tão eufórico

com a notícia que não lembrava que eu estava em forma. Aí ele me liberou porque eu tinha dado

conta lá dos aviões, e por merecimento fui liberado. No mês seguinte, casei logo. Foi a coisa mais

feliz da minha vida, a melhor coisa que me aconteceu. Na minha vida fui muito bem orientado,

nunca tive dificuldade de vida, graças a Deus. Tive 2 (duas) profissões boas, nunca faltava serviço.

Hoje está difícil emprego. Naquele tempo a gente escolhia onde queria trabalhar. Trabalhei em 3

(três) Ministérios: Aeronáutica, Agricultura e dos Transportes. Foi quando começam a construir as

estradas federais aqui no Norte (Belém/Brasília), Transamazônica, Santarém/Cuiabá, aí fui

transferido pra cá, pois eu morava em Brasília.

O meu casamento durou, até como disse o reverendo, “até que a morte nos separe”. Sou viúvo há 18

anos e depois morei 17 anos em São Paulo com minha filha que é médica lá. Quando eu era novo eu

lia muito Sócrates, Confúcio, Shakespeare. Gostava muito das poesias de Olavo Bilac, Coelho Neto,

Gonçalves Dias, tudo que era poesia eu gostava e com isso fui também aprendendo a fazer poesias.

Tanto que lá em São Paulo, depois que eu já estava aposentado, participei durante 05 (cinco) anos

do “Talento da Maturidade” do Banco Real. Tinha arte, tinha música, tinha literatura e várias outras

modalidades, então eu concorri na literatura. Escrevia poesias, fazia contos da vida real e contos de

ficção científica. Ganhei prêmios, ganhei medalhas, certificados e diplomas. Mas o ponto alto, foi

uma poesia que eu fiz (todas as minhas poesias eram românticas), então nós éramos 27.000 idosos

inscritos, na faixa etária de 60 a 80 anos, e eu tirei em 11º lugar nessa poesia, porque a banca

examinadora era aqueles catedráticos em literatura, escritores, poetas, e tinha até gente da Academia

Brasileira de Letras. Era um concurso anual, então depois que eu ganhei todo ano me convidavam

para participar da entrega dos prêmios. Até o 10º lugar, naquele tempo, tinha prêmio de R$ 5.000, o

1º lugar ganhava R$ 10.000. Mas eu sempre me destacava, não ficava muito longe. Esta poesia que

estou lhe dando foi uma das que eu concorri. A banca examinadora exigia rima, métrica,

criatividade e ortografia. Então aqui está tudo enquadrado, dentro destes quesitos que eles pediam.

Agora têm outras que eu já fiz por aqui, e como não era para concurso, eu fiz só com rima, sem

métrica, sem nada, mas todas são românticas. Agora mesmo estou fazendo um conto de ficção

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científica que se torna interessante pelo seguinte, a Bíblia fala sobre a vida de Cristo até os 12 anos,

quando ele era filósofo, dotado de natureza e discutia com os grandes padres da época, com 12 anos

de idade. Depois a vida dele desaparece da literatura, da Bíblia, e só reaparece já aos 30 anos. Aí,

nesses 18 anos, há tantas polêmicas sobre isso, mas não há uma definição. Então neste conto de

ficção científica eu descrevo tudinho: onde o Cristo estava, fazendo o que, e por que. Vou mandar

buscar o material que eu tenho lá com a minha filha e vou juntar com as poesias que eu tenho por

aqui, aí eu vou lá na Universidade Federal do Pará, que me falaram que tem uma editora, e conforme

for, dependendo do material, eles fazem um livro. Eu quero juntar aquilo tudo para fazer uma meia

dúzia de livros, porque eu não faço para ganhar dinheiro, quero fazer para distribuir para os amigos

e pessoas que gostam de ler. Porque tem que gostar daquilo, muitas pessoas começam a ler um livro

e percebem que aquilo não é o gênero dele ou alguma coisa e aí encostam. No começo, nas

considerações, eu escrevo assim: “Caro leitor, ao iniciar a leitura deste livro, procure se

descentralizar de religião, credo, artifícios religiosos, livros considerados sagrados e arranje um

espaço na sua mente para se concentrar e entender a mente criadora do autor”. Porque a gente não

pode confundir ficção com vida real. Vida real é vida real, ficção é a criação da mente. Eu falo, por

exemplo, sobre os gays. Existe uma certa polêmica, se é opção, se é hereditário, mas não tem nada

disso. Eu explico tudinho, os porquês, como provém isso, o que faz a pessoa ser gay, tudo, tudo,

tudo direitinho ali. Tudo com base no meu raciocínio, porque se eu for pesquisar não bate com o

meu raciocínio, meu raciocínio é completamente diferente. A Mitologia é o que a gente pensa, a

mente imagina, lia muito sobre Mitologia Grega. A Filosofia já vem mais com a razão, mas o que

prova mesmo é a Ciência. Eu trabalho em cima da Ciência.

Eu vivia trabalhando no mundo, então eu lia os jornais que anunciavam as editoras que mandavam

livros por reembolso, aí em pedia o livro por reembolso, ele chegava e a gente pagava na hora de

receber. Era basicamente essa a minha forma de acesso aos livros, eu sempre buscava ter livros para

ler onde eu estivesse. Quando eu já estava na vida civil, e trabalhava para multinacionais, havia uma

cláusula no contrato que nós assinávamos, que dizia: “sujeito a remoção para qualquer parte do país

ou do exterior”. Dessa forma, andei muito pelo exterior. Andei em 4 continentes: Europa, África,

Ásia e América, só não estive na Oceania.

Tive um casal de filhos. A filha é a médica que mora em São Paulo, casou com um médico também.

Estudou lá, eu mandava dinheiro para pagar a faculdade dela, pagar o apartamento que ela morava.

Ela era casada, mas o médico que ela casou era residente no Hospital Psiquiátrico, ganhava pouco e

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estava no começo da vida, então eu ajudava como eu podia. Foi assim até ela se formar, aí foi para

Campinas, fazer Pediatria na UNICAMP, e passou no concurso para a Prefeitura. Depois ela fez

outra especialidade na UNICAMP, fez Psiquiatria, que é a mesma especialidade do marido. Fizeram

concurso juntos para a Secretaria de Segurança Pública e eles trabalham um dia na semana em uma

penitenciária. Porque quando o preso termina a sentença dele, ele tem que ser avaliado para ver se

tem condições de ser entregue a sociedade ou se precisa de tratamento. Há 3 (três) anos, ela ainda

fez um curso de Nutrologia na USP, ganhou uma bolsa de estudos e passou 1 (um) ano em Paris,

fazendo pós graduação. Então ela trabalha nas 3 (três) especialidade: Pediatria (na Prefeitura),

Psiquiatria (na Secretaria de Segurança Pública do Estado) e Nutróloga (no consultório dela). O meu

filho fez Farmácia Bioquímica, fez concurso e é funcionário do Ministério da Saúde, mora aqui em

Belém. Fez pós graduação e doutorado. É coordenador da Vigilância Sanitária daqui do Pará. Minha

mulher morreu feliz da vida, pois nós planejamos ter um casal, ela fez tratamento no ginecologista e

tudo correu dentro do que esperávamos.

A Bíblia nunca mudou em nada, desde o início da humanidade. O Alcorão também. Se você for

pensar, é um livro antigo mas muito atualizado. Ele tem a filosofia religiosa e a ciência ao lado,

amparando-a.

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APÊNDICE V: Entrevista

J.O.Q

Nascimento:15/08/1928 – 83 anos

A Instituição oferece muita coisa, porém, não supre a falta da família. Cheguei aqui por livre e

espontânea vontade, ainda tenho família. Tenho 05 (cinco) filhos, 03 (três) moram fora de Belém e

02 (dois) moram aqui em Belém. Até hoje meus filhos tomam a bênção. Eu vim para a Instituição,

não me colocaram aqui. Meu filho mais velho tem 66 anos. Tive filho com 16 anos. Tenho o 2º grau

incompleto. Naquela época quando a gente casava, deixava de estudar. Tinha muita vontade de fazer

uma faculdade, mas depois que casei perdi o estímulo. Queria fazer a área de comércio que hoje é a

de contabilista.

Aqui dentro não me integro em muitas atividades, só faço hidroginástica. Fora da Instituição faço

parte de grupos de estudos espírita. A minha família não me visita muito frequentemente, pois são

só 02 (dois) homens, e eles já são muito ocupados com os filhos deles. Na casa deles eu só vou a

convite, é um sistema que adoto, me dou muito bem com as noras e os genros. Um dos filhos

trabalha na CODEM, é arquiteto. O outro é autônomo e formado em Engenharia Elétrica. Em

relação aos meus outros filhos, um é também arquiteto e mora em Salvador, a moça é pedagoga e

mora no Rio e o outro, que tem apenas o 2º grau completo, também mora na Bahia.

Sempre me interessei por leitura. Desde de garota, na minha casa, tinha uma pequena biblioteca e

sempre fomos incentivados a estudar, a ler. Gostava de ler romances, como M.Delly. Li algumas

obras de Machado de Assis e José Veríssimo. Depois passei a me interessar por livros espíritas. Meu

pai sempre comprava livros, ele gostava muito de ler. Depois que casei, meu marido também

comprava livros. Tinha muitos conhecidos que liam também e um emprestava para o outro. Quando

casei, perdi o contato com a minha família. Eu estava cheia de filhos pequenos e tinha muita

dificuldade para ir lá com eles. Não demorou muito meu pai morreu.

O hábito da leitura trouxe conhecimentos e abriu meus horizontes. A gente lê e fica pensando sobre

aquilo. Atualmente a minha leitura é espírita. Acabei de ler Chico Xavier e Divaldo Franco. Quase

não leio mais romances como antigamente. Leio mais romances espíritas como “Renúncia” que

comprei ontem. Dos romances que li, muita coisa ficou. Eu procuro caminhar com a atualidade, o

meu tempo não volta. Os meus netos não sabem nem como foi o meu tempo como também os netos

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deles não vão saber como é o tempo deles agora. Eu acho proibido dizer: “no meu tempo não era

assim”. Não uso esse ditado porque o meu tempo foi o meu tempo e ele não volta mais.

Hoje o espiritismo me deu muitas respostas que a Igreja e o padre não me deram. Os sermões não

me passam muita coisa. Hoje digo que sou cristã. Vou a missa porque gosto e me passa uma energia

muito boa. Nas relações do dia a dia, não me passa nada. Eles tem conhecimento, fazem homilia,

falam do Advento, Epifania, mas sem se atualizar.

O espiritismo vai esclarecer verdades. É uma doutrina consoladora, a medida que progredimos. Ela

não diz “não beba”, “não fuma”, ela fala das doenças, das dificuldades, dos excessos.

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APÊNDICE VI: Entrevista

A.B.R.

Nascimento:05/07/1934 – 77 anos

Sempre gostei de ler muito, leio 2 (dois) ou 3 (três) jornais diariamente e livros também. Fiz o curso

de Direito, e depois o de Administração, mas já lia antes.

Quando trabalhava, eu comecei debaixo como quase todo cristão. No meu setor cheguei a ser chefe

do setor durante 9 (nove) anos, só sai quando me aposentei. Trabalhava com telecomunicação (rádio

técnico, rádio telegrafista, auxiliar de escritório, que é o pessoal burocratizado). O meu chefe

principal estava localizado no Rio. Eu trabalhava na Petrobras. Uma das minhas atividades era fazer

o relatório do setor durante o mês. Meu chefe gostava tanto do meu tipo de redação que passou a me

mandar material dele e outros tantos que eram de responsabilidade dele como, expediente para

diretores estrangeiros que estavam em Londres, Paris, Estados Unidos, etc, aí eu lia aquela papelada

e fazia uma espécie de minuta depois, ele já queria que eu respondesse totalmente e completamente

o expediente como se fosse ele. Então, quando chegava lá no Rio já ia bem datilografado (eu

escrevia bem a máquina), ele xerocava o material que eu mandava e assinava como se fosse ele que

tivesse feito.

Depois que me aposentei parei de escrever, não todo dia mas, esporadicamente, passei a escrever

poesias, que para mim é uma espécie de terapia, li uma vez a esse respeito. Escrevo quando estou

ficando estressado de estar aqui, isolado, aí me lembro de determinados acontecimentos, episódios

de novela de televisão ou outro acontecimento aí escrevo e fico mais relaxado, mais tranquilo.

Conclui as duas faculdades. Trabalhava de dia e estudava a noite. Era uma rotina super cansativa.

Sábado e domingo estava estressado.

Li muito Carlos Drumond de Andrade. Tinha também um livro de Gregório de Matos Guerra que eu

emprestei e não me devolveram. O escritor pernambucano debochado, só escrevia coisas

consideradas imorais, principalmente naquele tempo do meu pai e dos meus avós. Era apelidado de

“Boca Maldita” e também declamava algumas poesias.

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Ler para mim é muito gostoso. No jornal não gosto da página policial, dificilmente eu olho. Só

aparece violência, desgraça. Gosto mais da parte romântica, maleável, elitizada e que te deixa

atualizado como o Repórter 70.

Geralmente eu comprava os livros nessas exposições que fazem até hoje. Lá no Rio, perto do

escritório da Petrobrás, na Biblioteca Municipal, perguntei a uma colega onde ficava uma livraria e

ela indicou-me a Rua da Carioca e Uruguaiana, que tem comércio, mercearias, lojas de confecção e

várias livrarias. Fui então na livraria dos sebos (livros usados). Lá no Rio muitos moram em

apartamentos que são apertados, quando os livros estão atrapalhando, eles levam para essas livrarias

e vendem, aí chega um ou outro como eu e compra, é baratinho. Tem de tudo: romances, poesias,

ficção, policial, etc.

Tenho 4 (quatro) filhos. Dois trabalham na Petrobras, um deles é bacharel em Direito e o outro tem

curso secundário completo e trabalha com perfuração de poço. Minha filha tem curso secundário

completo e tem uma loja de chocolates em um shopping e o mais novo é voltado para rede

telefônica.

Eu nasci no meio do mato, no meio da Floresta Amazônica, na fronteira do Amazonas com o Acre.

O local era cortado por um rio e a parte baixa era chamada de Boca do Acre. Rio Purus que vinha da

Bolívia com o Rio Acre e aí era a cidade, a capital Rio Branco. Meu pai era cearense, veio para o

Acre junto com a família na época que existia os “soldados da borracha”, contratados pelo governo

federal para recrutarem pessoal para extração de leite das seringueiras. Cortando a casca ficava

pingando um leite grosso. Colocavam tipo uma tigela, parece uma xícara de alumínio embutida na

casca da árvore e, a tardinha, voltavam na “estrada da seringa” e colocavam em um recipiente, aí

defumavam e a fumaça meio quente, pegavam uma vara, passavam sebo de qualquer animal para a

borracha não ficar grudada. A fumaça quente fazia o leite coalhar mais rapidamente e a borracha ia

fazendo aquela bola. Todo dia fazia um pouco, quando já tinha 20 ou 30 quilos, deixavam aquela

pele de borracha no sol e começavam outra. Levavam para o patrão no final de cada mês que pesava

e pagava a mercadoria.

Meu pai e avô foram seringueiros e todos os parentes. Aonde eu nasci tinha uma estação de rádio

dos correios, atualmente é a Embratel que toma conta desse serviço. Antigamente, o correio é que

fazia o transporte de carga. Tinha o imposto postal, a pessoa recebia um catálogo de compras e o

correio mandava buscar em outra cidade.

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Éramos 6 (seis) filhos. Um faleceu, moram 3 (três) no Rio, um em Brasília e eu aqui no Pará. Um

dos meus irmãos foi nomeado pelos Correios como telegrafista em Boca do Acre. Foi transferido

para a Serra Madureira, interior do Acre, e me levou para lá. O juiz de direito de lá era do Rio, ele

dizia que eu era “traquino”, como se dizia no interior, e insistiu para eu ir morar com a família dele

no Rio e estudar. Meus pais separaram e minha mãe foi para o Rio com meus 2 (dois) irmãos, aí

como temos um tio no Rio, ou outros também foram para lá. Foram nos aviões da FAB (Força

Aérea Brasileira), de graça, e meus parentes também foram para lá.

Aproveitando o serviço, meu irmão pediu para um amigo, que era telegrafista do Correio, para eu

me hospedar na casa dele enquanto estudava. Fui na Escola Técnica Federal do Amazonas para não

ficar em casa sem fazer nada, resolvi fazer um processo seletivo para estudantes em internato e

externato. Comecei a estudar, paguei uma taxa e passei no concurso, estudei só 2 (dois) anos. Já

havia movimentos de greve e os estudantes aderiram e quem participasse da greve seria desligado e

foi isso que aconteceu comigo, fui desligado.

Tinha um irmão em Porto Velho, passei um telegrama e ele me avisou que tinha uma vaga para

telegrafista no governo. Peguei um avião da FAB e fui para lá. Fui para Guaporé (nome da cidade

naquele tempo) e na mesma semana fui nomeado como telegrafista. Passei 5 (cinco) anos lá, me

envolvi com uma mulher casada e me dei mal. Queriam me matar e saí de lá fugido.

Soube através de um colega, que havia vaga de telegrafista na Petrobrás daqui de Belém. Vim de lá

em 1957 e fiz o teste na mesma semana e fui nomeado e transferido para Manaus. Quando acabou a

base de petróleo em Manaus, fui para São Luís, depois também acabou e vim de volta para Belém.

Fui transferido para o Rio Madeira, no interior do Amazonas, era uma base grande com vários

alojamentos, refeição e moradia de graça. Recebia o salário lá mesmo. Construíram ao lado da base

uma vila e o pessoal que era casado aqui arrumou outra mulher lá. Umas quando souberam

resolveram deixar os maridos, outras preferiram ficar recebendo pensão. Me casei lá, no Rio

Madeira. Quando minha mulher estava com 8 (oito) meses de gravidez recebi minha transferência

para Belém. Todos os meus filhos nasceram aqui. Nunca mais saí daqui.

O meu hábito de leitura eu peguei na Petrobras, pois eu tinha de ler todos os expedientes para

responder. Criei vontade de voltar a estudar. Fiz um teste para estudar no Paes de Carvalho, ginasial

e científico. Aí foi criado o Artigo 99 pelo MEC, onde poderia fazer o 2º grau através de 2 (dois)

testes com 7 (sete) matérias. Passei em 4 (quatro) matérias e depois nas outras 3 (três). Fiz um

cursinho de pré-vestibular no Colégio Santo Antônio. Estudei literatura com o Paes Loureiro e

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Matemática com o Manoel Leite. Ingressei no curso de Direito e depois também me formei em

Administração.

A leitura é muito importante. Com ela a pessoa se sente viva, fica atualizada e fica sempre com

vontade de ler mais. A leitura também faz o tempo correr, é uma companhia e não deixa a pessoa

ficar estressada. Eu vejo aqui na Instituição, observo as pessoas idosas não leem nada, passam o dia

ociosas e ansiosas, devem ficar estressadas, eu não fico. Hoje só vieram 2 (dois) jornais, mas

normalmente leio 3 (três) ou 4 (quatro) jornais. Não leio tudo, leio as partes mais importantes e

interessantes. Minha filha, que sabe que gosto de ler, sempre me manda revistas como: Veja, Isto é,

Marie Claire e outras. Eu leio tudo isso e faço aquela farofa.

O passado era melhor do que os dias de hoje. O povo vivia sem violência. A televisão influenciou

muito, pois mostra tudo, e, a pessoa que não tem discernimento olha e acaba absorvendo e se

envolvendo. Nas minhas poesias lembro de lances de Porto Velho, Manaus, aí faço um ensaio.

A boa leitura é benéfica em todos os sentidos. A televisão tem boas novelas. Agora tem uma ótima

que relembra os tempos antigos, o “Cordel Encantado”, relembra a vida do sertão nordestino.

Assistia novela pelo rádio através da Rádio Tupi. Transmitia até cópia de novelas mexicanas,

adaptadas aos velhos costumes aqui do Brasil que era a “Direito de Nascer”. Tinha um noticiário as

18 horas e a novela as 19 horas. Era gostoso, mas é melhor olhar, claro.

Já estou aqui na Instituição há 10 anos. Depois que a minha mulher morreu eu permaneci na minha

casa que tinha 2 (dois) pavimentos. Os filhos foram casando e saindo. O mais velho ficou morando

ao lado da minha casa e foi se enchendo de filhos, até que disse que a casa estava pequena para a

família inteira dele e foi morar comigo. Depois que foi morar comigo, ele se apaixonou pela minha

namorada e vira e mexe queria brigar comigo. Sempre saia com ela para bebermos uma cervejinha e

quando voltava, ele queria tomar satisfações comigo. Quando eu era novo, nunca fui de brigar por

causa de namorada, não é agora, depois de velho, que vou brigar. Aliás, não era bem minha

namorada porque ela era mulher casada e eu pedia emprestado do marido dela 2 (duas) vezes por

semana. E se ele se apaixonou por ela é porque ela também deu confiança e namorou com ele. Para

não ficar ouvindo aquela lenga lenga de mulher e filho, vim para cá espontaneamente e, de vez em

quando eles vem me visitar.