Dissertação Luciana Santos de Oliveira · 2014-07-28 · 2 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA...
Transcript of Dissertação Luciana Santos de Oliveira · 2014-07-28 · 2 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA...
1
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA
PRÓ REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – PPPE
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA
LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA
TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura
Belém- PA 2011
2
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA PRÓ REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – PPPE
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA
LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA
TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagem e Cultura da Pró-Reitoria de Pós Graduação e Extensão da Universidade da Amazônia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Comunicação, Linguagem e Cultura. Orientador: Prof. Dr. José Guilherme Castro
Belém-PA 2011
3
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA PRÓ REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – PPPE
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA
Banca Examinadora
________________________________________ José Guilherme Castro (Orientador)
________________________________________ Leila do Socorro Rodrigues Feio
________________________________________ Lucilinda Ribeiro Teixeira
4
Dedico este trabalho:
À minha mãe, Maria de Fátima Moura Santos, que me deu a vida e formou meu caráter e personalidade.
Pessoa presente em TODOS os meus capítulos de vida. A ela, que sempre me incentivou a ir além
que ajuda a formular a minha história. Principalmente pelo amor, carinho, confiança e paciência.
5
RESUMO
Esta pesquisa tem como proposta analisar a projeto intitulado TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura o qual tenta relacionar a estética da recepção com a psicologia da velhice, a fim de conhecer e identificar vivências e percepções do público leitor que forma a Terceira Idade e que reside na Pia União do Pão de Santo Antônio, para o qual procede-se uma análise focada na memória, identidade e leitura. Realizou-se um levantamento teórico e um estudo do tipo exploratório com abordagem qualitativa. Foram entrevistados 5 (cinco) idosos por meio de um roteiro que serviu como guia para as suas narrativas. Como principais resultados foram percebidos que: há uma busca pela satisfação em ser velho, principalmente em encontrar consolo por estar na Instituição. Em geral, as mulheres tratam de argumentos ligados à esfera pessoal, afetiva e ao cotidiano, enquanto os homens abordam temais mais impessoais, concretos, relativos a eventos passados e presentes. Percebe-se a religiosidade constante nas narrativas, pois acredita-se que a mesma desempenha um papel de proteção e que a crença em uma divindade gera esperança e felicidade. Constatou-se também a influência do contexto social e familiar nas decisões acerca da carreira profissional. Os idosos têm usado seu tempo livre para aprender e desenvolver aptidões que antes não possuíam. Todos disseram que a leitura os permite ficar atualizados dos acontecimentos, além de ser uma importante terapia no momento de isolamento e uma forma de libertação. A maioria relatou que não tinha acesso a livros em casa, mas sim em bibliotecas, sebos ou durante viagens. As mulheres gostam mais de romances e livros espíritas, enquanto que os homens gostam de livros sobre ocultismo, esoterismo, ficção científica e escrevem poesias.
Palavras-chave: Estética da Recepção. Identidade. Inclusão social. 3ª Idade. Memória de Leitura.
6
ABSTRACT
This search is to analyze the project entitled ELDERLY: a proposal for a study on the player and his memory of reading which attempts to link the aesthetics of reception with the psychology of old age, to ascertain and identify experiences and perceptions the reading public how the Third Age and is the Pious Union of the Bread of St. Anthony, for which there shall be an analysis focused on memory, identity and reading. We conducted a survey and a theoretical study of an exploratory qualitative approach. We interviewed 5 (five) seniors through a script that served as a guide to their narratives. The main results were noted: there is a quest for satisfaction in being old, mainly by being in finding solace in the institution. In general, women deal with arguments related to the personal, emotional and daily life, while men fear more impersonal approach, concrete, related to past and present events. We can see the constant religious narratives, because it is believed that it plays a protective role and that the belief in a deity creates hope and happiness. It was also the influence of social context and family in decisions about careers. The elderly have used their free time to learn and develop skills that had not previously possessed. All said that reading allows them to stay current events as well as being an important therapy at the time of isolation and a form of liberation. Most reported that they had no access to books at home, but in libraries, bookstores or on the road. Women like novels and more than spirit, while men like books on the occult, esoteric, science fiction and writing poetry.
Keywords: Aesthetics of Reception. Identity.Inclusion. 3rd Age. Memory Read.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – A VELHICE .................................................................................... 16
1.1 REPRESENTAÇÃO SOCIAL E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A
COMPREENSÃO DO ENVELHECIMENTO ...................................................
17
1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SÓCIO-CULTURAL DA VELHICE 20
1.3 VELHICE E O SENTIMENTO DE PERDA ......................................................... 23
1.4 A VELHICE HOJE ................................................................................................ 25
1.5 A LONGEVIDADE HUMANA ............................................................................ 27
1.6 OS MECANISMOS DE DESGASTE .................................................................... 28
CAPÍTULO II – A MEMÓRIA – COLEÇÃO DE CACOS ................................... 30
2.1 OS LUGARES DA MEMÓRIA COLETIVA ....................................................... 32
2.2 A FAMÍLIA E OS PRIMEIROS QUADROS DA MEMÓRIA ............................ 32
2.3 CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA ........................................................... 34
2.2 MEMÓRIA E PÓS-MODERNIDADE .................................................................. 37
2.3 RESGATE DA CULTURA ATRAVÉS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS:
EXPERIÊNCIA DA VELHICE ...................................................................................
41
CAPÍTULO III – ESTÉTICA DA RECEPÇÃO ..................................................... 44
3.1 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO ................................................................................. 44
3.2 O HORIZONTE DE EXPECTATIVAS, EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E
HERMENÊUTICA, SEGUNDO JAUSS .....................................................................
46
8
3.3 SOCIOLOGIA DA LEITURA ............................................................................... 51
CAPÍTULO IV – METODOLOGIA ........................................................................ 53
4.1 COMO OUVIR HISTÓRIAS ................................................................................. 53
4.2 OBJETO DA PESQUISA ...................................................................................... 54
4.2.1 A Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio .................................... 54
4.2.2 Objetivos da Instituição ................................................................................. 55
4.2.3 Atividades desenvolvidas ............................................................................... 55
4.2.4 Perfil dos idosos atendidos ............................................................................. 55
4.2.5 Funcionários .................................................................................................... 56
4.3 SUJEITOS DA PESQUISA ................................................................................... 56
4.4 INSTRUMENTO DE PESQUISA ......................................................................... 56
CAPÍTULO V – O MUNDO DA LEITURA CONTADO PELOS IDOSOS ........ 58
5.1 SÍLVIO: OCULTISMO E ESOTERISMO SÃO AS SUAS PRINCIPAIS
LEITURAS ...................................................................................................................
58
5.1.1 História de Vida ................................................................................................. 58
5.1.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 59
5.1.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 60
5.2 MARLENE: GOSTA DE ROMANCE E DE ANJOS ........................................... 62
5.2.1 História de Vida ................................................................................................. 62
5.2.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 62
5.3 MARCOS: GOSTA DE FICÇÃO CIENTÍFICA E DE ESCREVER POESIAS .. 64
5.3.1 História de Vida ................................................................................................. 64
5.3.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 66
9
5.3.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 68
5.4 JOANA: GOSTA DE LER ROMANCES E LIVROS ESPÍRITAS ...................... 70
5.4.1 História de Vida ................................................................................................. 70
5.4.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 71
5.4.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 73
5.5 ANTÔNIO: LÊ VÁRIOS JORNAIS DIARIAMENTE E GOSTA DE
ESCREVER POESIAS ................................................................................................
73
5.5.1 História de Vida ................................................................................................. 73
5.5.2 Leitura e Recepção ............................................................................................ 76
5.5.3 Leitura e Memória ............................................................................................. 78
5.6 ANÁLISE DOS RELATOS ................................................................................... 80
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 85
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 90
APÊNDICES ............................................................................................................... 97
10
INTRODUÇÃO
Ninguém nasce sabendo ler. À medida que se vive, aprende-se a ler. Se ler livros se
aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem na escola da vida, independente da
aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros. Ler é
essencial, não apenas para aqueles que almejam participar da produção cultural mais sofisticada, dos
requintes da ciência e da técnica, da filosofia e da arte literária. A própria sociedade de consumo faz
muitos de seus apelos através da linguagem escrita e chega por vezes a transformar em consumo o
ato de ler, os rituais da leitura e o acesso a ela. Segundo Lajolo (2000, p. 108) “a discussão sobre
leitura, principalmente sobre a leitura numa sociedade que pretende democratizar-se, começa
dizendo que os profissionais mais diretamente responsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons
leitores”. Nesse sentido, salienta-se o papel social da leitura, visto que o homem leitor pode ampliar
as possibilidades de amadurecimento individual e intelectual e, por conseguinte, compreender
melhor a si e o mundo. Em contrapartida, as pessoas que não lêem tendem a ser rígidas em suas
idéias e ações e a conduzir suas vidas e trabalho pelo que se lhes transmite diretamente. A pessoa
que lê abre o seu mundo, pode receber informações e conhecimentos de outras pessoas de qualquer
parte. Dessa forma, o ato da leitura não se efetiva em ações isoladas, nem mesmo lineares, mas sim em
decorrência de complexa reação em cadeia de ações, sentimentos, desejos, especulações na bagagem de
conhecimentos armazenados, motivações, análises, críticas do leitor. A leitura é uma experiência e encontra-
se submetida a diversas variáveis que não podem deixar de ser verificadas, ao se tentar teorizá-la.
No Brasil, uma relevante parcela da população encontra-se na Terceira Idade e, o que se
percebe, é que essas pessoas ainda não são respeitadas como deveriam, muito menos desenvolvidas
suas potencialidades e seu saber. Conforme Martins (2003, p. 21) “a velhice está diferente. Surge
uma nova geração, é a suplementar! Atualmente, um homem de 75 anos é igual a um de 60 anos de
um passado não muito longínquo. A paisagem social e cultural está mudando. A velhice não é mais
uma decadência, mas uma oportunidade”. Dessa forma, pode-se dizer que no ato da leitura também
entra em jogo a experiência de vida do leitor, porque entre a leitura de uma obra e o efeito
pretendido ocorre o processo da compreensão, exigindo do leitor não só a utilização do
conhecimento filológico, mas de todo o seu conhecimento de mundo acumulado.
A chegada da Terceira Idade traz consigo limitações sobre um corpo já muito vivido,
porém estas pessoas vêm mostrando perseverança em vencer obstáculos, tentando disputar espaços
11
numa sociedade preconceituosa que considera a velhice como uma fase de desvitalização,
acompanhada de uma errônea concepção de que os idosos são sujeitos carentes, que não possuem
atributos para oferecer. No entanto, para combater a senilidade, é essencial que o indivíduo se
dedique às atividades criativas, pois a criatividade conserva a lucidez. Isso remete às idéias de
Martins (2003) que afirma que viver em um ambiente de atividade criativa beneficia assaz o ser
humano. Neste caso, a atividade é de vital importância não só para o bem-estar físico, mas também
para conservar a capacidade intelectual do indivíduo. Para tanto, é necessário formular estratégias
diferenciadas que estimulem a memória de leitura, estudando este leitor, para que essas pessoas
possam desfrutar das vantagens do hábito da leitura, proporcionando-lhes bem-estar, confiança,
dinamismo e participação, superando inclusive, algumas crenças negativas que muitas vezes
distanciam o idoso do seu meio social. Dessa forma, o que se busca salientar neste projeto é que a
Terceira Idade é uma nova realidade que não deve estar associada a doença e a morte, na verdade é
um período em que devemos aproveitar a liberdade, a sabedoria e a experiência adquiridas com o
tempo.
Também o geriatra Berg (1979) se pronuncia a respeito da capacidade intelectual que,
segundo ele, é mais aguda na velhice. Explica que:
Enquanto o indivíduo se mantém em atividade intelectual ele continua com capacidade de produzir. À medida que o indivíduo envelhece, sua capacidade intelectual torna-se mais aguda e mais seletiva. Esses indivíduos, que são personalidades notáveis nos seus respectivos ramos de atividade, ao longo da vida sempre tiveram uma grande produção intelectual. Na faixa compreendida entre os 20 e os 30 anos de idade, é comum a existência de um interesse amplo, isto é, por várias atividades. A partir dos 30, o indivíduo vai começando a selecionar os assuntos pelos quais se interessa. Aos 60 essa seleção aumenta e ele se dedica, conforme cada caso, a dois ou três assuntos e se torna um craque naquilo. Podemos constatar que todos os grandes estadistas foram homens velhos, como, por exemplo, De Gaulle, Churchill, Ho Chi Min, Mao Tse-Tung. Noutros setores, podemos citar Bernard Shaw, Bertrand Russel, Picasso, Chaplin e Miro. O intelectual idoso não diminui sua atividade mental. O que diminui é a sua capacidade física (BERG, 1979, p.37).
Jauss (1994) observa também a importância da memória da leitura através das gerações,
enfatizando que diferentemente do acontecimento político, o literário não possui conseqüências
imperiosas, que seguem existindo por si só e das quais nenhuma geração posterior poderá escapar.
Ele só logra seguir produzindo seus efeitos na medida em que sua recepção se estenda pelas
gerações futuras, ou seja, por elas retomada, na medida em que haja leitores que novamente se
apropriem da obra passada, ou autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la. Esta é a
12
importância da leitura como acontecimento que se realiza primordialmente no horizonte de
expectativas dos leitores, dos críticos e dos autores.
Ferrara (2007, p. 24) discorre sobre integrar sensações e associar percepções fazendo a
relação destas com o ato de recepção, levando em consideração a experiência e a vivência do leitor:
Sensações e associações despertam a memória das nossas experiências sensíveis e culturais, individuais e coletivas de modo que toda a nossa vivência passada e conservada na memória seja acionada. Na realidade é necessário despertar aqueles valores ou juízos perceptivos a que já nos referimos, compreender uma interação entre passado e presente, entre as sensações de ontem e de hoje, mais a reflexão sobre elas para compará-las e perceber-lhes os pontos de convergência e/ou divergência.
História e memória, utilizadas como caminho para o passado, surgem como um campo
reivindicado por inúmeras áreas do conhecimento. Porém, o conhecimento a respeito do passado
exige perspectivas que vão além das abrangidas pelas áreas de conhecimento, pois como o passado
não está mais presente, aumenta a incerteza de seu conhecimento. É ai que está a importância da
história de vida, do processo de rememoração como ferramenta necessária do conhecimento do
passado para o entendimento do presente, uma vez que,
A incerteza fundamental acerca do passado nos deixa cada vez mais ansiosos para confirmar que tudo se deu conforme relatado. Para nos assegurarmos que ontem foi tão importante quanto hoje, saturamo-nos de detalhes e fragmentos do passado, ratificando a memória e a história de forma tangível. Gostamos de imaginar que aqueles que então viveram, desejavam que soubéssemos o quanto tudo foi real (LOWENTHAL, 1998, p. 73).
Nesse contexto, a valorização da memória é importante, no sentido de captar o passado das
pessoas, expondo o que elas viveram e sentiram em sua história de vida e de seu tempo. Por isso, a
memória de leitura, contada por idosos e idosas, poderá revelar facetas diversas e interessantes com
grande significado para futuras pesquisas. Dessa forma, o projeto justifica-se por refletir e relacionar
a teoria da estética da recepção com a psicologia da velhice, de forma a travar um diálogo entre a
obra e o receptor, a fim de integrar suas percepções, vivências e memórias de leitura com a maneira
como este destinatário julga a leitura recebida ao longo de sua história de forma a validar a tradição
e a experiência de vida, que a idade proporciona.
Refletir sobre a existência de um texto ou sobre um conjunto de uma produção literária sem
levar em conta a concretização do ato da leitura, parece querer condená-la ao limbo, enclausurá-la e
privá-la da própria existência, na medida em que cabe ao leitor o papel de trazê-la ao mundo.
Num primeiro momento, essa afirmação pode soar banal e sem força, e até desnecessária. No
entanto, a figura do leitor no processo de reflexão não é um aspecto que faz parte da tradição dos
13
estudos literários. Durante muito tempo, o interesse dos estudiosos ficou restrito à figura do autor ou
à análise imanentista do texto. Foi com o advento da estética da recepção que o público leitor
começou a desempenhar um papel importante na história da obra. Na tríade da hermenêutica
literária (autor, obra e leitor), o leitor ocupa uma posição de destaque deixando de ser um simples
destinatário passivo que recebe o texto, mas se transforma em elemento ativo que julga, aceita ou
rejeita a obra recebida, na atualidade ou no passado, usando, para isso, a reflexão. Partindo desde
princípio, escritor, texto e leitor não seriam parte integrante do mesmo processo? De acordo com
Lyons (1999, p.9), “a história da leitura é o estudo das normas e práticas que determinam as
respostas dos leitores àquilo que lêem”
Sartre (1964), ao levantar o questionamento “Para quem se escreve?”, observa que, à
primeira vista, a resposta é certeira: aquele que escreve se dirige a todos os homens, ao leitor
universal. Contudo, por mais que almeje a permanência de sua obra à posteridade, “o escritor fala a
seus contemporâneos, a seus compatriotas, a seus irmãos de raça ou de classe”. Nessa perspectiva, o
leitor assume uma natureza dupla: o leitor universal e o leitor concreto.
As idéias de Sartre, gestadas no período conturbado do pós-guerra (1947), enfatizam o papel
do leitor que, no ato de ler, complementa o ato de escrever. Outros estudiosos trouxeram à figura do
leitor os holofotes, sem, contudo, construir um gerador que lhe fornecesse luz própria e que lhe
prolongasse a existência.
Coube ao professor da Universidade de Constança, Hans Robert Jauss, em sua aula inaugural
do ano letivo de 1967 intitulada “A História da Literatura como Provocação a Teoria Literária”,
revitalizar o questionamento dos estudos relativos à história da literatura e consolidar o papel do
leitor enquanto ser integrante da estética literária. Nesse primeiro momento, Jauss realiza um
panorama crítico da história da literatura tradicional e desenvolve sete teses objetivando uma nova
metodologia e forma de (re) escrever a história da literatura.
A aura que reveste a feitura da escrita faz com que habitem no imaginário do leitor,
curiosidades e interesses sobre particularidades da vida do escritor. Como se dava a prática de
leitura através de pessoas nascidas entre as décadas de 1920 e 1940? Como era a relação das pessoas
com o livro? Havia bibliotecas que facilitavam o seu acesso? O acesso ao livro era obtido através de:
empréstimo entre amigos e familiares ou compra? Como este leitor percebe o escritor e as obras
literárias do seu tempo? De que forma essa memória de leitura pode ser resgatada e valorizada nos
dias de hoje?
14
Diante dessas indagações, cabe a este estudo desvendar o leitor da Terceira Idade que reside
na Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio, de forma a compreender a obra dentro dos
limites do seu momento, inserido em seu contexto sócio-cultural. Assim, ao analisar a experiência
estética do público de leitores, através de seus próprios depoimentos, busca-se evidenciar as
condições históricas dessa recepção; reconstruir seu horizonte de expectativas e reconhecer se essa
produção foi relevante para a formação desse grupo de leitores.
Logo, neste estudo, além de enfatizar a leitura, destacarei também, a história de leitores
comuns, de pessoas que ao longo do tempo “escolheram certos livros em detrimento de outros,
aceitaram, em alguns casos, o veredicto dos antepassados, mas em outras ocasiões resgataram títulos
esquecidos do passado ou puseram na estante os eleitos entre seus contemporâneos (MANGUEL,
1997, p. 347). Essa é, também, a história de seus sofrimentos e de conquistas, adquiridas durante
toda a sua experiência com a leitura.
Para tanto, foram elencados os seguintes objetivos:
OBJETIVO GERAL
Relacionar a estética da recepção com a psicologia da velhice, a fim de conhecer e
identificar vivências e percepções do público leitor que forma a Terceira Idade e que reside na Pia
União do Pão de Santo Antônio.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Caracterizar a figura do leitor da Terceira Idade;
Identificar a história de vida de idosos que moram na Pia União do Pão de Santo
Antônio, resgatando suas experiências de leitura;
Resgatar a memória de leitura dos idosos da Pia União do Pão de Santo Antônio através
dos relatos de pessoas nascidas entre as décadas de 1920 e 1940;
Traçar o perfil do leitor da Terceira Idade, partindo dos princípios da teoria da estética
da recepção.
15
Diante do exposto acima, percebo então, a relevância desta pesquisa, de caminhar para a
compreensão do funcionamento mental dos idosos, buscando descobrir a essência da sua sabedoria,
das suas histórias de vida e de suas memórias de leitura e de como eles percebem estas leituras nos
dias de hoje; resgatando assim, as suas experiências, talvez até esquecidas ao longo dos anos.
Dessa forma, o interesse pela leitura, através das memórias relatadas pelos idosos, sujeitos
da pesquisa, possibilita olhar os acontecimentos e as interpretações do passado que desejamos
guardar e apresentar para reforçar os sentimentos de pertença e de fronteiras entre os mais diversos
tipos de grupos sociais. Por isso, este estudo, além de valorizar a memória da pessoa idosa, registrar
a vida de pessoas comuns, também é um produto de comunicação científica formal, podendo
provocar o interesse da comunidade científica por sua continuidade.
Meu papel como pesquisadora e ouvinte acenderam em mim, também, as minhas
experiências e me tornaram possivelmente uma pessoa mais sábia, pois, quando religamos a nossa
história de vida com a dos outros, inventamos novas ligações possíveis que relataram outras
histórias de vida (JOSSO, 2006).
Percebo a relevância deste estudo para as pessoas de terceira idade que, ao longo da leitura,
poderão vir a descobrir o quanto possuem sabedoria e o quanto ainda têm para viver; possibilidade
também de descobrir a importância de suas experiências, de sua idade e de sua vivência. Relevância
também vejo para os profissionais que trabalham com a terceira idade, pois percorrerão ao longo das
vidas de idosos sábios, identificando caminhos já percorridos, tendo, também, a possibilidade de
descobrir outros que jamais pensavam que existiriam.
A você, leitor, apresento minha dissertação. Deleite-se nas histórias que percorri, contemple
os caminhos traçados, liberte as suas histórias para que cruzem com as minhas. Bem-vindo a uma
dissertação esculpida de sentimentos e de emoção. Sinto-me privilegiada por um tema tão
encantador: a memória de leitura na Terceira Idade.
16
CAPÍTULO I – A VELHICE
A vida não para. O tempo não para. Apesar de se viver como se a vida durasse para sempre
e se pensar apenas no presente e no futuro próximo, em algum momento ela passará. Para alguns,
envelhecer trará desespero e conflitos, pois não se preparam para a velhice e para morte. Para outros,
trará satisfação e plenitude. Tudo depende de como se vive e se constrói a vida.
Na sociedade, pensar em velhice traz, diversas vezes, sentimentos negativos e necessidade
de negação. Porém, o Brasil não é mais um país de jovens, portanto faz-se necessário entender o
processo do envelhecimento. Além disso, a compreensão das representações sociais do idoso e da
velhice é importante para que se entenda como o idoso vivencia a própria velhice.
No clássico livro A Velhice, Beauvoir (1990) faz uma evidente distinção entre o que seja o
processo de envelhecimento e o envelhecimento. O processo de envelhecimento corresponderia às
mudanças orgânicas que ocorrem em cada momento do desenvolvimento do corpo biológico, e o
envelhecimento seria o momento específico de constatação de declínio desse corpo.
Nota-se que a autora não diferencia de forma pontual o envelhecimento e a velhice,
equivalendo os termos ao mesmo sentido e utilizando-os indistintamente. Entretanto, há momentos
em que a autora parece distingui-los, e o termo envelhecimento ganha o sentido de processo: “A
velhice não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo. Em que consiste
esse processo? Em outras palavras, o que é envelhecer? Esta ideia está ligada à ideia de mudança.”
(BEAUVOIR, 1990, p.17). Já a seguir, o termo velhice adquire o significado de uma realidade
biológica revestida conforme o contexto social: “a velhice não poderia ser compreendida senão em
sua totalidade; ela não é somente um fato biológico, mas também um fato cultural”. (BEAUVOIR,
1990, p.20).
Conforme Britto da Motta (2006), a visão preconceituosa sobre o idoso tornou-se
naturalizada e reúne, geralmente, as características de alguém com bastante idade, de aparência
asquerosa e enrugada, com ideias do passado, inativo, pouco ágil e de alguém que se espera
comedimento na participação social. E o envelhecimento tornou-se um mecanismo para a
classificação e o estabelecimento de parâmetros no desenvolvimento das pessoas.
Bosi (1994) escreve que velhice, além de destino é uma categorial social, uma vez que as
modificações na forma como as pessoas vivem esse período da vida, provocam também mudanças
na forma de compreendê-la e, por consequência, na forma como a sociedade se estrutura para lidar
17
com ela. Para a autora, a sociedade em que vivem os idosos hoje é maléfica a eles, uma vez que se
mostra muito restritiva e não permite ou incentiva que se engajem em uma grande série de
atividades, o que acaba por colocá-los à margem da organização social.
Velho é um dos possíveis adjetivos que denota, na linguagem popular, um sentido
pejorativo à imagem de quem está envelhecido. Na história da humanidade, pode-se verificar que o
termo velhice ficou, na maioria dos tempos, vinculado ao significado da imagem de decrépito e
decadente devido às naturais perdas corporais decorrentes do processo de envelhecimento. Porém, o
termo pode estar articulado à ideia de vitalidade, longevidade, sabedoria, autoridade, respeito e à
idade cronológica avançada (BEAUVOIR, 1990).
Conforme Weineck (1991), a Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe uma
classificação cronológica das faixas etárias conforme o processo de desenvolvimento e
envelhecimento do homem. A primeira classificação abrange dos 15 aos 30 anos e é denominada de
“idade adulta jovem ou juvenil”. Dos 31 aos 45 anos é a “idade madura”. Quem tem entre 46 e 60
anos está na “idade de mudança ou média”. A faixa etária do “homem mais velho” compreende as
idades entre os 61 e 75 anos. Na faixa etária do “homem velho”, as idades são entre 76 e 90 anos, e a
faixa etária do “homem muito velho” é a última, que compreende as idades acima de 90 anos. O
período entre 46 e 60 anos é também designado como “período do homem em envelhecimento” ou
“início da idade da involução”, fase na qual ocorrem alterações determinantes do subsequente
envelhecimento humano (WEINECK, 1991, p. 329).
Sabe-se que o envelhecimento demográfico é uma realidade que contrasta com a
valorização desmesurada da imagem jovem no contexto sócio-histórico contemporâneo (IBGE,
2000). Há uma previsão de que haverá, no ano de 2025, mais idosos do que crianças no planeta e o
Brasil ficará classificado como o sexto país do mundo com o maior número de pessoas na velhice.
Estima-se que a expectativa de vida da população idosa no Brasil será de 92,5 anos para as mulheres
e de 87,5 anos para os homens (IBGE, 2000).
1.3 REPRESENTAÇÃO SOCIAL E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO
ENVELHECIMENTO
A teoria das representações sociais foi elaborada primeiramente por Serge Moscovici que
definiu representação social como um grupo de conceitos, afirmações e explicações originadas a
18
partir do cotidiano e que equivalem aos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais.
Constituem formas de conhecimentos elaborados a partir do âmbito social por grupos de indivíduos
com o objetivo de comunicação e compreensão daquilo que lhe é estranho e não familiar
(MOSCOVICI, 1981, apud TEIXEIRA, SCHULZE & CAMARGO, 2002). Assim, a representação
social é um conjunto organizado de conhecimentos que permite que a realidade seja compreensível
aos indivíduos que dela participam. Além disso, prepara o indivíduo para a ação e, reciprocamente, é
modificada pela interação dessas ações no mundo social. Dessa forma, a teoria das representações
sociais permitem conhecer a forma como as pessoas (idosas ou não) constroem significados ao
período da vida denominado velhice, a partir da sua própria experiência individual e a partir de
conhecimentos cotidianos e científicos, incorporados aos seus discursos.
Além disso, em seu cerne, essa teoria traz a preocupação de romper campos estanques do
conhecimento científicos e considerar outras perspectivas de estudo dentro das ciências humanas
para a compreensão do ser humano em sua totalidade. Esse paradigma, defendido já na década de 60
por Moscovici, e hoje amplamente difundido através de conceitos como da interdisciplinaridade,
parece fundamental à compreensão do envelhecimento humano diante da complexidade deste
fenômeno e da impossibilidade de analisá-lo indissociadamente dos fenômenos sociais, históricos e
culturais (DEBERT e NERI, 1999).
Nas palavras de Moscovici (2005, p.77), e partindo desta concepção dialética da relação
entre indivíduo e mundo, as representações sociais “seriam uma modalidade de conhecimento
particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos, e
que por sua vez, contribui também para os processos de formação de condutas e de orientação das
comunicações sociais”.
Segundo Jodelet (2001, p. 48), as representações sociais são:
uma maneira de interpretar e de pensar nossa realidade cotidiana,uma forma de conhecimento social. (...). O social intervém aí de várias maneiras: através do contexto concreto em que se situam os indivíduos e os grupos; através da comunicação que se estabelece entre eles; através dos marcos de apreensão que proporciona sua bagagem cultural; através dos códigos, valores e ideologias relacionados com as posições e pertenças sociais específicas.
Nesse sentido, Lane (1993) também define as Representações Sociais como a forma pela
qual as pessoas elaboram o seu conhecimento, interpretam os acontecimentos que as rodeiam,
formam suas opiniões e atuam em conformidade a elas, a partir da consideração de que não existe
19
um corte dado entre o universo exterior e o universo do indivíduo (ou do grupo) e de que sujeito e
objeto não são absolutamente heterogêneos.
Pode-se considerar a representação social como sendo “uma visão funcional do mundo que,
por sua vez, permite ao indivíduo e ao grupo dar um sentido às suas condutas e compreender a
realidade através de seu próprio sistema de referências: permitindo assim ao indivíduo se adaptar e
encontrar um lugar nessa realidade” (ABRIC, 1998, apud GUIMARÃES & CAMPOS, 2007, p.
190). As representações sociais se manifestam em falas, atitudes e condutas que se naturalizam no
contexto social e no cotidiano dos indivíduos. São naturalizações da maneira de agir, de pensar e de
sentir que se apresentam e se modificam a partir das estruturas sociais e das relações coletivas e
grupais (MINAYO, 2007). O princípio básico de gênese das representações pode ser resumido na
dinâmica da familiarização, no esforço particular e individual de cada um em transformar, a partir
das relações sociais concretas estabelecidas entre as pessoas, o não-familiar em familiar, o estranho
e desconhecido em comum, para que possam fazer parte do imaginário coletivo, caracterizado pelo
pensamento social. Como são conhecimentos significados pelos sujeitos e constituídos através das
relações sociais, as representações sociais são fenômenos cognitivos também carregados de emoções
e afetos, dimensões estas já consideradas por Moscovici em sua teoria.
A velhice e o processo de envelhecimento, da mesma forma que muitos outros aspectos da
vida humana, estão intrincados por representações sociais. A forma como a sociedade interpreta a
velhice e lida com os idosos é, entre outros fatores, resultante das representações sociais que foram
construídas. É justamente esta flexibilidade que possibilita a adaptação, ou a integração na
representação do sujeito, de suas experiências, vivências, permitindo assim variações de acordo com
a história de vida de cada indivíduo. Da mesma forma, o idoso poderá lidar consigo mesmo e com o
seu processo de envelhecer de acordo com o que é representado em seu contexto sócio-cultural.
Para Magalhães (1989), as representações da velhice tomam como referência processos
biológicos universais, além de questões que, nas sociedades ocidentais contemporâneas, passaram a
ser pensadas como problemas sociais. No Brasil, existem algumas pesquisas que demonstraram
como os próprios idosos simplificam o envelhecimento humano, exclusivamente a partir das perdas,
representando o processo com estereótipos negativos e preconceituosos (MEDRADO, 1996). Para
Santos (1990), tais representações negativas devem-se à ênfase dada à juventude e à incapacidade de
produção. Debert (1999), destaca que, além dos estudos feitos mostrando a representação da velhice
em termos de processo contínuo de perdas, estão-se abrindo outros espaços para que diversas
20
experiências de envelhecimento bem sucedidas possam ser vividas coletivamente. Por exemplo, os
grupos de convivência de idosos e as universidades da terceira idade, entre outras. As representações
sociais da velhice têm implicações na vida cotidiana, à medida, que como já expresso anteriormente,
os comportamentos adotados por um indivíduo ou grupo de indivíduos são resultantes do modo
como eles representam socialmente esta prática e do significado pessoal que ela adquire em suas
vidas.
Com o objetivo de compreender de forma mais ampla a construção do envelhecimento e
suas representações sociais, é importante fazer uma contextualização histórico-sócio-cultural da
velhice.
1.4 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SÓCIO-CULTURAL DA VELHICE
Ao longo do percurso existencial do indivíduo, as concepções de juventude e de velhice se
transformam radicalmente. Essas concepções são interpretações sobre a trajetória da existência e não
concepções absolutas. Por isso, se constroem e se transformam historicamente, se fundam em um
campo de valores e se inserem ativamente na dinâmica das culturas. Esse campo de valores está
permeado pelas concepções inseridas em seu contexto sócio-cultural, e é construído pela mediação
de conceitos regulados por representações sociais que definem a maneira pela qual a juventude e a
velhice devem ser tratadas. Portanto, se for analisar cada era da história humana, percebe-se que a
forma como a juventude e a velhice são pensadas e abordadas será alterada a cada novo momento da
história da humanidade e a cada nova etapa da história de vida do indivíduo (BIRMAN, 1995).
Papaléo Netto (2002), tecendo considerações a respeito do desenvolvimento das chamadas
ciências do envelhecimento humano, deixa claro que a preocupação com a questão da velhice e do
envelhecimento sempre esteve presente ao longo da história em diversas civilizações, mesmo que se
configurando em diferentes formas e com preocupações bastante controversas.
Estudos históricos e sociológicos mostram que a velhice nem sempre foi vista da forma
como nosso século e a cultura ocidental a vêem. Até a passagem do século XVIII para o XIX, na
maioria das sociedades ocidentais, os velhos eram os depositários sociais da sabedoria, dos costumes
e das lendas, dos valores locais, e ocupavam lugar de prestígio nos conselhos comunitários
(HILLMAN, 2001). Nas sociedades tradicionais, a figura do idoso era envolvida por uma “aura
simbólica” que fazia do idoso o representante da sabedoria, da memória coletiva, dos valores da
21
ancestralidade e a encarnação da família. As perdas da força física, da capacidade reprodutiva e da
capacidade de produção de bens materiais eram trocadas pelo lugar de detentor do poder da tradição.
Com a transformação social acontecida entre os séculos XVIII e XIX, os governos passam
a formular que a riqueza maior do Estado está na qualidade da população. Essa mudança de
paradigma leva ao investimento nas condições biológicas dos cidadãos e nas condições sanitárias,
com o objetivo de aumentar as suas riquezas materiais. Outra consequência foi a progressiva
medicalização do Ocidente com a introdução de novos métodos medicinais (vacinas, técnicas de
esterilização, etc.) e de programas de saúde pública (fornecimento de água potável, tratamento de
esgoto, etc.). A história social do homem passou a ser regulada pela intervenção maciça da medicina
no espaço social, e a longevidade e baixas taxas de mortalidade passaram a estar relacionadas com o
progresso e com a riqueza da sociedade (HILLMAN, 2001). Com o fortalecimento da medicina,
ocorre a biomedicalização da saúde, da vida e da velhice, e a consequente associação entre velhice e
doença.
Sob a influência do evolucionismo, surge no século XIX, a concepção do desenvolvimento
humano como uma sequência empírica de etapas fundadas biologicamente à Psicologia do
Desenvolvimento. Essa ciência começa a pesquisar os processos psíquicos humanos, as estruturas
cognitivas e afetivas dos indivíduos de acordo com a sequência das faixas etárias, e a traçar as
responsabilidades sociais de cada indivíduo e suas relações. Como locus principal das pesquisas
dessa época estavam a infância e a adolescência, pois se concebia o desenvolvimento apenas em
termos de ganhos e como um movimento unidirecional rumo à maturidade (BALTES, 1995). Essa
concepção era marcada pela ideia de ascendência do desenvolvimento durante a infância e a
adolescência, de estagnação na maturidade e decadência na velhice. Velhos são os que já viveram e
realizaram o seu projeto de vida.
Portanto, na medida em que o sujeito já realizou os seus potenciais evolutivos, ele perde o
seu valor social e está impossibilitado de produção de riqueza. A velhice, então, perde também o seu
valor simbólico e passa a estar relacionada com a decrepitude e com a morte. A experiência de
envelhecer passa a estar tão marcada pelo número de anos que ainda restam de vida, que o caráter
individual e a qualidade de vida ficam relegadas apenas à juventude e esquecidas, ou negadas, na
velhice. Além disso, o aumento crescente no número de idosos fez com que a idade deixasse de ser
determinante para um status social importante e diminuísse a importância do papel social do idoso
na sociedade, que passa a ocupar um lugar marginalizado (RUSCHEL & CASTRO, 1998).
22
A modernização das culturas ocidentais a partir do século XIX rompeu com as tradições,
com as redes sociais tradicionais e com a estrutura familiar dos séculos anteriores. Na família
moderna, só havia lugar para a família nuclear e a reprodução só se delineava nos limites de uma
única geração. O idoso passa a ocupar um lugar periférico nessa nova família. O progresso moderno
ao mesmo tempo em que acrescentou anos à existência humana, diminuiu o valor dos idosos.
A partir do século XX, o interesse pelo idoso e pelo estudo do processo de envelhecimento
começa a surgir na Psicologia do Desenvolvimento. Na psicologia do desenvolvimento, Neri (2006)
apresenta a perspectiva teórica denominada de paradigma Life-span, que significa ao longo de toda a
vida. Nesse paradigma, o desenvolvimento e o envelhecimento são considerados processos
concorrentes, porque as mudanças evolutivas e de crescimento, como as mudanças de degeneração e
perdas, se fazem presentes em toda a extensão de vida do ser humano. Messy (1999) pressupõe a
velhice como um estado – estado de velhice – que ocorre em consequência de um desequilíbrio
entre as noções de aquisição e perdas psíquicas no envelhecimento; algo circunstancial e
independente das idades. Assim, a velhice não seria uma fase da vida, necessariamente, após a idade
adulta e sim, um estado no qual o sujeito se encontra quando perde o desejo. Então, como o desejo
pode ser perdido em qualquer fase da vida, provocando o desinvestimento libidinal, podemos inferir
que isso pode ser considerado um “marcador” para definir a velhice.
O final da Segunda Guerra Mundial trouxe mudanças para as sociedades ocidentais. Houve
um decréscimo populacional dos homens em idade reprodutiva e, consequente, diminuição das taxas
de natalidade e aumento da longevidade. O idoso passou a ser alvo da preocupação dos governos e
da sociedade em geral, no que diz respeito à saúde e às condições de vida. Porém, ainda não existia
um lugar social ativo para o idoso no século XX. Ele ainda era definido como uma ausência de
práxis e começou a ser objeto de exploração. Surgem as casas de repouso e asilos para os idosos que
pudessem pagar pelas despesas, mas muitos eram relegados a uma velhice pobre e alienada da
existência. A família passou a oprimir seus velhos de forma velada, com cuidados exagerados que os
paralisavam e com benevolência irônica.
As marcas deixadas pelo tempo no corpo do idoso, representadas pelas rugas e pela
flacidez, deixam de ser as marcas da sabedoria e da experiência de vida, passam a ser vistas como
sinônimo de vergonha e de fraqueza moral (DOURADO, 2000). Essa representação social da
velhice, além de entremear as relações sociais, muitas vezes é incorporada pelo idoso que pode se
tornar dependente ou doente.
23
A relação dos membros da sociedade com memória também mudou, no século XIX. Ao
invés de possuir a dimensão de evocação e de resgate do passado através do idoso, a memória
passou a ocupar apenas o lugar de informação, tornando-se isenta de aspectos afetivos e simbólicos.
A memória começou a ser aplicada conforme as demandas produtivas do ambiente social e deixou
de ser fundamentada na potencialidade de evocação e transmissão dos valores da ancestralidade.
Essa forma de lidar com a memória reforça ainda mais a ausência de lugar e de função do idoso na
sociedade (BIRMAN, 1995). Por conseguinte, a dimensão da história particular e familiar se perde.
O idoso que adentra o século XXI é, então, marcado pela ausência de lugar e papéis ativos
na sociedade. Consequentemente, é estigmatizado pelas representações sociais que o descartam
como sujeito psíquico que ainda possui um futuro pela frente.
1.5 VELHICE E O SENTIMENTO DE PERDA
O envelhecimento humano, compreendido através de seus aspectos físicos e fisiológicos,
conforme descrito, não pode ser facilmente definido em virtude dos diversos fatores de natureza
social, histórica e cultural que os perpassam e determinam. Isto também acontece com a descrição
de aspectos de ordem psicológica, tais como a inteligência, a cognição, as emoções, a memória, a
atenção, dentre outros. Essas funções psicológicas têm origens socioculturais e, assim como em
qualquer período da vida humana, não podem ser consideradas a priori ou dissociadamente do
desenvolvimento sócio-histórico e cultural.
A velhice como uma vivência particularizada para cada sujeito causa uma diversidade de
sentidos que permeiam, na expressão de Luft (2003), a percepção de perdas e de ganhos.
Para Luft (2003), essa percepção é dependente das perspectivas e das possibilidades de
quem tece a própria história, conforme a poesia “Canção na plenitude”:
Não tenho mais os olhos de menina nem corpo adolescente, e a pele translúcida há muito se manchou. Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura agrandada pelos anos e o peso dos fardos bons ou ruins. (Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia). O que te posso dar é mais que tudo o que perdi: dou-te os meus ganhos. A maturidade que consegue rir quando em outros tempos choraria, busca a te agradar quando antigamente quereria apenas ser amada. Posso te dar-te muito mais do que beleza e juventude agora: esse dourados anos me ensinou a amar melhor, com mais paciência e não menos ardor, a entender-te se precisas, a aguardar-te quando vais, a dar-te regaço de amante e colo de amiga, e, sobretudo a força - que
24
vem do aprendizado. Isso te posso dar: um amor antigo e confiável cujas marés - mesmo se fogem - retornam; cujas correntes ocultas não levam destroços, mas o sonho interminável das sereias. (LUFT, 2003, p.151).
Na Psicanálise, a percepção de perda pode ser interpretada no complexo formulado e
denominado por Freud (1924/2006) de castração. A maioria das pessoas depara-se com o sentimento
inconsciente de ameaça de castração que permaneceu inscrito no psiquismo humano como uma
operação simbólica a ser elaborada ao longo da vida. A castração na forma do recalque possibilita
ao neurótico negar que é faltoso. O símbolo do falo como representante da falta primordial recalcada
passa a simbolizar tudo aquilo que pode preencher com certa satisfação esta dificuldade do sujeito
em suportar que é constitutivamente faltoso. Entretanto, nem todo real da castração é possível de ser
simbolizado e parte deste real não simbolizado pode aparecer no lugar do falo como um puro real
que demonstra ao sujeito aquilo que ele não suporta saber, a sua falta (LACAN, 2005).
Deste modo, propõe-se pensar que a castração no real do corpo encontra-se nas perdas, nos
desgastes e no enfraquecimento corporal concernentes às alterações orgânicas ao longo do tempo
significadas de velhice. Não se trata mais somente do âmbito de ameaça ou da inscrição simbólica
no psiquismo, mas da efetiva castração no corpo que é mortal. As alterações corporais decorrentes
do processo de envelhecimento podem também significar perda irreparável de beleza e jovialidade,
caracterizando a velhice como fase de evidente feiúra e motivo para o isolamento social.
Messy (1999) afirma que a chegada da própria velhice para alguns pode ser somente
percebida quando há um acontecimento efetivo e brutal na vida da pessoa, geralmente relacionado
com alguma outra perda no passado. Para o autor, essa percepção sobre a velhice é circunstancial e
independe da idade, porém, confirma a expressão “quando a velhice nos pega é sempre de maneira
inesperada.” (MANNONI, 1995, p.34).
A pessoa na velhice pode confrontar-se também com a perda dos papéis sociais e atribuir a
esse fato o marco de entrada na velhice. Souza Santos (1990) afirma que o trabalho influencia
profundamente o psiquismo humano, porque ao mesmo tempo em que é fonte para a aquisição de
recursos materiais, também garante à pessoa a entrada no mundo das relações sociais, lugar da
construção da identidade social. Para o autor, quando se verifica a evidente importância do trabalho
no mundo capitalista e na vida da pessoa, é possível de se compreender o significado da perda do
trabalho e a chegada da aposentadoria, podendo essa adquirir, de modo favorável ou não, a
dimensão de entrada oficial na velhice.
25
1.6 A VELHICE HOJE
Pelo histórico que se acabou de traçar, percebe-se o quanto a velhice foi investida de
valores negativos na modernidade. Apesar desse pensamento paradigmático da velhice como etapa
de decrepitude e de vergonha ainda persistir em nossa sociedade atual, a velhice está sendo objeto de
cuidado e atenção especiais. São tentativas de fazer calar os valores negativos que a modernidade
inscreveu na velhice. Nos países desenvolvidos e recentemente no Brasil, um novo movimento de
conscientização social tem mudado o olhar sobre a velhice, fazendo com que esta comece a receber
um reconhecimento social que ainda não existia na memória social da modernidade ocidental
(BIRMAN, 1995). Um fator que tem contribuído para essa mudança no campo de estudos e em
alguns setores da sociedade, é o aumento da população idosa ativa e produtiva que vem ocorrendo
há algumas décadas, nos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
A partir de 1980, a população brasileira começou a sofrer alterações na sua estrutura etária.
O atual perfil demográfico do Brasil aponta que a nossa população está envelhecendo. Entre os
fatores que contribuíram para isso, estão a redução dos níveis de fecundidade, a mortalidade e o
acesso da população aos novos produtos técnico-científicos da medicina e dos medicamentos. Essa
mudança no perfil demográfico tem sido objeto de discussão no meio acadêmico, nos meios de
comunicação, das políticas públicas e de assistência social.
O índice de envelhecimento ou a razão entre a população de 65 anos ou mais e a população
de 0 a 14 anos de idade - que informa o número de pessoas idosas em uma população, para cada
grupo de 100 pessoas jovens - expressa a atual e a futura estrutura demográfica da sociedade
brasileira. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2004), no ano de 2000
havia a seguinte proporção etária: para cada 100 crianças entre 0 a 14 anos, havia 18,3 idosos com
65 anos de idade ou mais. Em 2030, cerca de 40% da população deverá apresentar a idade entre 30 e
60 anos. Em 2050, haverá no Brasil a proporção de 100 crianças (0 a 14 anos) para 105,6 idosos
com 65 anos ou mais. Tais dados não apenas alertam para o envelhecimento da população brasileira,
mas levantam questionamentos quanto à qualidade de vida dos idosos no futuro.
A projeção do perfil demográfico nos permite refletir sobre a atual situação dos idosos.
Nossa construção histórica expressa o descaso com suas experiências de vida, que não podem ser
simplesmente ignoradas. Seus saberes podem ser fundamentais para a qualidade de vida em
sociedade. Os Princípios das Nações Unidas para o Idoso, expressos na Resolução 46/91, de
26
16/12/1991, destacam o direito do idoso de “permanecer integrado à sociedade, participar
ativamente na formulação e implementação de políticas que afetam diretamente seu bem-estar e
transmitir aos mais jovens conhecimentos e habilidades”. Esses princípios destacam a importância
social dos idosos como sujeitos de conhecimentos e habilidades acumulados ao longo da vida. Suas
experiências de vida podem promover a reflexão sobre as atitudes no meio ambiente e o resgate dos
saberes. Quando se conhece o passado, pode-se compreender o presente e discutir o futuro.
Nos últimos quarenta anos, as pesquisas no campo da psicologia social apontam que a
valorização da atividade e a atribuição de novos papéis sociais aumentam a satisfação do idoso e o
sentimento de pertencimento social. (NERI, 1993). O meio em que vive, tido como impeditivo, pode
trazer ao idoso a sensação de desamparo, porém o intercâmbio de gerações traz novas perspectivas
associadas às suas experiências de vida na construção de saberes, em que se incluiriam também os
ambientais. O problema da eficácia do idoso está na perspectiva social tida na velhice como um
processo de declínio. Essa perspectiva está centrada “em estimativas reais quanto em perspectivas
distorcidas sobre suas possibilidades” (NERI, 1993, p.19).
Como se percebeu, essa representação social que se teve sobre a velhice durante muito
tempo, negou-lhe o reconhecimento simbólico e qualquer forma de relação com o futuro, pois o
idoso estava desinvestido no seu presente. Durante muito tempo, ao idoso só restava o lugar e o
papel de rememorar o passado e suas lembranças. Com a mudança progressiva do lugar social da
velhice, começa a surgir a possibilidade de reconhecimento do velho como sujeito psíquico e como
agente social. Assim sendo, o idoso começa a vislumbrar a possibilidade de se relacionar de forma
diferente com o futuro, de redimensionar sua inserção na ordem da temporalidade, e ter sua
subjetividade reconhecida.
Mas, muito ainda há para ser feito. Infelizmente, o idoso ainda é tratado, em muitas
situações, com desrespeito e descaso, seja pelos órgãos públicos destinados ao seu acolhimento,
quando doente, seja pelas suas próprias famílias. Como ainda existe, na representação social da
velhice, uma relação direta entre envelhecimento e doença, muitos sintomas experimentados pelos
velhos são interpretados como elementos comuns e normais da velhice, e não como um presságio de
alguma doença, seja ela fisiológica ou psicológica. Assim, o sujeito idoso deixa de existir dando
lugar a uma pessoa que não é mais objeto de desejo (MESSY, 1999). Deste modo, muitos velhos são
abandonados e vivenciam o final de vida como fonte de amargura e de desespero, ao invés de vivê-
lo como uma fase de sabedoria e de busca de plenitude.
27
Cícero (2006, p.105) afirmou que o ser humano identifica-se não pelo corpo e sim pelo
espírito ao escrever: “Tu não és aquele que apareces pela tua forma exterior, não és o aspecto que se
aponta com o dedo, mas és tua alma. Ela é tua identidade”. Hillman (2001) ressaltou a necessidade
de se repensar o papel e o lugar da velhice na atual sociedade. Porém, o que se observa é que a
mudança de foco ao se olhar a velhice tem ocorrido com mais frequência no âmbito acadêmico. No
cotidiano da vida, o olhar ainda continua no que se vê exteriormente e nos aspectos negativos da
velhice. A própria tentativa de demonstrar uma visão menos estereotipada pela substituição da
palavra “velho” por “idoso” e, depois, por “terceira idade” e esta por “melhor idade”, já conota o
preconceito e a dificuldade da sociedade em aceitar a velhice e suas características que diferem do
referencial de beleza da juventude. No presente trabalho os termos “idoso” e “velho”, “velhice” e
“terceira idade” serão utilizados de forma indiscriminada e sem qualquer conotação de valor.
Platão em A República declara: “Eu considero o velho como aqueles que vieram antes de
nós pela estrada em que todos estamos, e seria bom se perguntássemos a eles sobre a natureza dessa
estrada”. Perguntar aos idosos sobre suas trajetórias de vida poderá ajudar a compreender como o
envelhecimento pode ser construído. As perspectivas que serão abordadas neste trabalho de pesquisa
contribuirão, juntamente com outras, para que o idoso seja visto como um sujeito psíquico que
possui potencialidades a serem desenvolvidas, e para que o envelhecimento seja compreendido
como uma fase que também possui ganhos e não apenas perdas.
1.7 A LONGEVIDADE HUMANA
Para falar de longevidade humana é necessário fazer uma distinção entre duas noções: a
longevidade, ou duração do tempo que se passa em vida, e o envelhecimento, cedo ou tarde
inelutável, que evoca uma alteração das qualidades de vida às quais os seres humanos atribuem boa
dose de prazer.
Para Morin (2002), vive-se em um período revolucionário provavelmente sem precedentes
na história da humanidade, pois a cada quatro anos a esperança de vida aumenta de um ano.
Evidentemente, essa média leva em conta os bebês que morriam numa idade próxima a seu
nascimento, o que se tornou extremamente raro nos países desenvolvidos. A diminuição da
mortalidade das parturientes também desempenha um papel importante nesse fenômeno (esse tipo
28
de morte explicava a curta duração de vida das mulheres há pouco mais de um século). Os idosos,
há trinta anos, morriam muito de pneumonia: o falecimento por volta dos sessenta anos era
frequente quando a penicilina ainda não existia. Tudo isso explica, em grande parte, o aumento atual
da esperança de vida, mesmo se as coisas são mais sutis. Para a sociedade, isso acarreta importantes
problemas de estrutura (economia, aposentadorias, famílias com quatro ou cinco gerações, etc.).
Todas as doenças clássicas diminuíram nesses anos recentes. Contudo, a contrário, outras
apareceram e fazem inúmeras perguntas à prática, á pesquisa e à organização médicas.
De fato, a maioria das pessoas pensa que a duração de vida da espécie é diretamente
determinada por um arranjo dos genes, como se existisse um “gene de duração de vida”. Essa noção
não é necessariamente válida, e em todo caso a longevidade aumentada que se observa atualmente
coloca diversas questões precisamente em relação à nossa espécie que iniciou, baseando-se em sua
biologia de mamífero (com um cérebro, uma atividade intelectual e uma memória diferente da dos
animais, especialmente no que diz respeito à memória transmitida pela sociedade), uma verdadeira
luta contra a natureza – luta capaz de mudar os dados anteriores. O homem vive mais do que a
maioria das outras espécies após o período de reprodução.
1.8 OS MECANISMOS DE DESGASTE
A matéria viva, paradoxalmente, perdura mais do que a matéria inanimada. Morin (2002)
afirma que somos perecíveis, é claro, enquanto o granito e o diamante são duros, mais isso é ao
mesmo tempo verdadeiro e falso, pois o que é duro e inanimado sofre um desgaste – frio, vento,
atritos -, enquanto que o que é vivo e frágil se renova. Um organismo (mesmo sendo frágil) é mais
apto para a sobrevivência do que uma célula, e até mesmo uma única célula como um micróbio pode
persistir mediante sua reprodução. Entretanto, tudo se desgasta, mesmo se as peças que enquadram a
matéria são reparáveis e, de fato, são reparadas durante muito tempo. O que é mais sólido e que
aparentemente não se modifica, os ossos, por exemplo, renova-se mais devagar do que a pele ou os
intestinos. Daí o potencial “existencial” dos fenômenos de regulação, como a alimentação e a
respiração. Os mecanismos pelos quais se desgasta a matéria viva são numerosos – mutação dos
genes, alteração das proteínas, acumulação de gorduras, etc.
29
Do ponto de vista biomédico, quando se envelhece, o peso dos músculos e dos ossos, os
órgãos “secos”, diminui por oposição às estruturas gordurosas. Daí a fragilidade devida e grande
parte às perdas musculares e, incidentemente, nada é mais salutar do que fazer funcionar seus
músculos, o que proporciona um benefício indireto aos ossos.
Quando se é idoso, o hormônio do estresse, o cortisol, é geralmente elevado. As
consequências mais graves disso são as alterações do funcionamento cerebral, os defeitos
imunitários com possíveis consequências tumorais, mas a reversibilidade do funcionamento
hormonal permanece.
Entre os graves disfuncionamentos associados a uma vida mais longa, o problema do
funcionamento da memória é frequente e muitas vezes graves. O que acontece no decorrer do
envelhecimento? Ainda segundo Morin (2002), um composto medido no sangue, chamado DHEA,
diminui em 90% com a idade, tanto no homem como na mulher. Um hormônio é, por definição, um
composto químico fabricado em certas células e que atinge outras. Tratamentos podem ser utilizados
para melhorar a saúde e, especialmente, a saúde mental dos idosos. Isso poderia contribuir para
modificar a sociedade, permitindo uma longevidade de melhor qualidade, tanto no plano pessoal
quanto no social. Numerosas questões impõem-se, então: por exemplo, como facilitar a inserção
social de pessoas idosas em perfeito domínio de seus poderes físicos e, principalmente, mentais?
Como permitir-lhes um máximo de atividades úteis para elas mesmas, para suas famílias e para a
sociedade?
30
CAPÍTULO II – A MEMÓRIA – COLEÇÃO DE CACOS
Segundo Lezak (2004), a memória é uma habilidade capaz de registrar, armazenar e evocar
informações. A memória é basicamente a conexão do passado com o presente, seja sob a forma de
imagens, seja como intrusões implícitas ou explícitas de como agir. Xavier (1996) considera-a uma
capacidade de alterar o comportamento em função de experiências anteriores. Ainda relata que a
memória é um processo básico para a sobrevivência, com a finalidade primordial de gerar previsões
(ABREU, 2001).
A memória é uma importante função cognitiva do homem que se relaciona com outras
funções como a linguagem e a atenção. Desempenha papel integrador, unificador e constitutivo em
relação à experiência pessoal e à experiência sobre o mundo físico (GREEN, 2000). Somente o ser
humano tem um sistema de memória tão complexo que lhe permite codificar, armazenar e integrar
informações provenientes de múltiplas fontes e usá-las para interpretar, organizar e iniciar
experiências, tanto sobre o mundo quanto sobre si mesmo.
A aprendizagem e a memória são fundamentais para a experiência humana. Conseguimos
adquirir novos conhecimentos sobre o mundo porque as experiências pelas quais passamos,
modificam o cérebro. E depois que aprendemos, conseguimos reter os novos conhecimentos na
memória, porque essas modificações são mantidas na nossa mente. Conseqüentemente, somos quem
somos devido ao que aprendemos e relembramos.
De acordo com Fentress e Wickhan (1992), esquecer é criativo porque se todos
lembrassem constantemente de tudo que é vivenciado, não precisaria inventar qualquer desculpa
para demonstrar esperteza, ou para esconder algo. Assim, não existe evocação sem a inteligência do
homem contemporâneo. “Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidada pelo espírito.
Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia. O sentimento também
precisa acompanha-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição”
(BOSI, 1994, p. 81).
Portanto, a memória é bastante complexa e, associados a ela estão o reconhecimento,
evocação e a articulação. Reconhecer é identificar algo, ou alguém, através de conhecimento ou
experiências anteriores. Evocar não necessita da presença física ou material, mas implica, antes,
trazer qualquer coisa de volta ao presente. “Evocar é, portanto, um ato puramente interior que
envolve qualquer tipo de representação mental (FENTRESS E WICKHAN, 1992, p. 42).
31
Ao analisar, por exemplo, o conceito benjaminiano de experiência pressupõe fazê-lo em
oposição ao conceito de vivência. O termo vivência, na acepção de Walter Benjamin significa estar
ainda em vida quando um fato acontece. Pressupõe a presença viva e o testemunho ocular a um
evento. Conjuga a fugacidade do evento e a duração do testemunho, a singularidade do ato de vida e
a memória que o conserva e o transmite. Assim, as lembranças são guardadas na memória como
uma fonte viva, uma vez que a memória permite registrar as mais vivas recordações que, a qualquer
momento, podem aflorar. Logo, a memória é uma crescente reserva que dispõe da totalidade das
experiências adquiridas e a experiência, resulta de um conjunto de vivências.
Ecléa Bosi (1983), no primeiro capítulo de Memórias de velhos, a partir das contribuições
de Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Frederic Charles Barlett e Willian Stern, discute o conceito
de memória. Ao mesmo em tempo em que apresenta as principais concepções presentes nos
trabalhos de cada um dos autores supracitados, Bosi as relaciona (aproxima e contrapõe) dando
relevância ao nexo entre memória e vida social. À noção de memória como conservação espiritual
do passado, em Bergson, são incorporadas as concepções sociológica de Halbwachs e psicossocial
de Barlett. As influências do ambiente (sócio-cultural) sobre o curso da memória individual ganham,
dessa forma, lugar de destaque: mais do que uma “ressurreição” do passado, “a lembrança é uma
imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 1994, p.55). A memória do indivíduo
encontra-se ligada às demais dimensões de sua existência atual: aos amigos, à família e aos outros
grupos de pertencimento. O presente ressignifica o passado. Sob essa perspectiva, todo o trabalho
com a memória – esta suposta capacidade de ‘reter’ o passado - remete inevitavelmente ao presente
vivenciado pelo sujeito que lembra; remete, pois, também aos contextos específicos (circunstanciais)
nos quais se dá rememoração.
Alistair Thomson, historiador oral australiano, agrega em seu trabalho, os principais pontos
destacados até então. Em uma competente sistematização, que tem como base suas pesquisas junto a
veteranos de guerra australianos (Anzacs), Thomson explora três interações chaves: as relações entre
reminiscências pessoais e memória coletiva, entre memória e identidade e entre entrevistador e
entrevistado. De acordo com o autor, “compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa
vida passada e presente” (THOMSON, 1997, p.56). A utilização do termo composição, nesse
contexto, faz referência aos processos de reconstrução a que submetemos as imagens do passado a
partir das solicitações atuais. Para tanto, são utilizadas as linguagens e os significados conhecidos e
32
socialmente aceitos de nossa cultura (THOMSON, 1997). Os vínculos entre memória e vida social –
ressaltados por Ecléa Bosi – são, dessa forma, contemplados a partir da noção de composição.
Entretanto, conforme salienta Thomson, nem sempre as imagens e linguagens disponíveis e
socialmente aceitas, em um determinado espaço-tempo, encaixam-se às experiências pessoais.
Portanto, os relatos coletivos que usamos para narrar e relembrar experiências não necessariamente apagam experiências que não fazem sentido para a coletividade. Incoerentes, desestruturadas e, na verdade, “não-lembradas”, essas experiências podem permanecer na memória e se manifestar em outras épocas e lugares – sustentadas talvez por relatos alternativos – ou através de imagens menos conscientes. Experiências novas ampliam constantemente as imagens antigas e no final exigem e geram novas formas de compreensão. (...) Que memórias escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo (THOMSON, 1997, p.56 e 57).
2.1 OS LUGARES DA MEMÓRIA COLETIVA
A memória coletiva é a memória do grupo. Esta que servirá de base para a memória
individual, traz consigo a maneira de sentir, pensar e agir do grupo, que foram passadas através de
gerações. A memória coletiva e a individual, ambas, são construídas na interação com o social, de
acordo com os modos de ser de cada grupo. Esses modos de ser impõem-se ao indivíduo que realiza
seu pensar, seu agir e seus registros de acordo com as construções coletivas.
Para Halbwachs (2004), a memória é o centro das tradições e também da identidade, pois é
devido ao que é lembrado, àquilo que é significado naquele momento de reconstrução que o
indivíduo representa-se e representa, também, o mundo.
Sendo assim, então um estudo da maneira como nos lembramos – a maneira como nos apresentamos nas nossas memórias, a maneira como definimos as nossas identidades pessoais e coletivas através das nossas memórias, a maneira como ordenamos e estruturamos as nossas ideias nas nossas memórias e a maneira como transmitimos essas memórias a outros – é o estudo da maneira como somos (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p.20)
2.2 A FAMÍLIA E OS PRIMEIROS QUADROS DA MEMÓRIA
Uma das maneiras de se estudar a cultura é através da memória. A memória do indivíduo
depende de seu relacionamento com a família, escola, igreja e outras instituições de referência.
Pensa-se, então, a memória relacionada a quadros e instituições sociais, como fato social que
expressa a consciência coletiva.
33
Os modos de ser são apresentados ao indivíduo desde o nascimento dele, então ele constrói
a memória a partir de quando entra em contato com a cultura e com ela interage. Segundo
Halbwachs (2004), o indivíduo passa a fazer registros mnêmicos à medida que abandona seu estado
inicialmente instintivo e insere-se numa vida de relação e de troca com o outro.
O relacionar-se com o outro, o pensar com o outro e como o outro insere a criança na
corrente de pensamento do grupo. O grupo primordial de convívio da criança é a família. E só com o
passar do tempo ela passa a conviver com outros grupos e a fazer parte de outras correntes do
pensamento.
A criança é inserida na corrente de pensamento pelos comentários, reações e significados
que os familiares atribuem aos acontecimentos. Tais significados estão inseridos dentro de um
quadro social e, por isso, são guardados na memória. Nem sempre o acontecido passa imediatamente
a fazer parte da corrente de pensamento da criança, por vezes ele é significado posteriormente, de
acordo com as vivências e a maturidade por ela adquiridas.
As lembranças da infância, muitas vezes, não são rememoradas porque, à época do
acontecimento, o indivíduo ainda não estava inserido na corrente de pensamento. Pode ocorrer,
também, que determinado fato seja lembrado não porque a criança o selecionou, mas porque ela
percebeu que foi importante para os pais, ou porque despertou preocupação nos adultos e, por isso,
mereceu ser lembrado. Através dos comentários de familiares, a criança percebe que determinado
fato ultrapassou o círculo familiar e se inseriu em uma memória social, na história vivida da
sociedade.
A família é a primeira instituição de que o sujeito participa e, como tal, está ligada à
estrutura social, recebendo da sociedade uma força coerciva. A família, assim como outras
instituições, expressam nos modos de pensar, sentir e agir, o funcionamento, a fisiologia social, as
representações e a consciência coletiva. A família é a instituição que introduzirá o sujeito à
coletividade, aos modos de ser de certa sociedade. Ao longo da vida, este amplia seu convívio, pois
se insere em diferentes memórias coletivas e participa de grupos distintos, compartilhando das
consciências coletivas de cada um deles.
Apesar de a família ter mudado sua estrutura, devido a necessidade dos adultos inserirem-se
no mercado de trabalho, afastando-se das incumbências do núcleo familiar, ela ainda é o grupo
matriz, a referência e a base dos valores, da cultura, da proteção e do amor. É também lugar de
34
exercício de poder, de definições de papéis e experiências de liberdade e de repressão (BACELAR,
2002).
2.3 CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA
Ao se pensar em cultura através da memória, deve-se ter claro que se fala dos modos, das
representações de determinada sociedade, de determinada coletividade em certo tempo e espaço.
Pertencer a uma cultura é pertencer a uma região, possuir uma identidade, não àquela
essencialmente geográfica, fisicamente limitada, mas a uma região construída simbolicamente. Para
Bourdieu (2000), região é uma divisão arbitrária, delimitada por diferentes critérios e que nada tem
de natural. Dentre eles podem estar a língua, o habitat, as relações com a terra e tantos outros que
são objetos de representações, de percepção e de apreciação. Esse entrecruzamento entre cultura,
identidade e memória está presente nas obras literárias, na linguagem, nas descrições dos ambientes,
nos modos de ser dos idosos e sujeitos que representam certas tradições e experiências de vida.
Cultura são teias de significados em que o homem está inserido e estudá-la não é buscar
leis, mas usar o significado de determinada cultura ou manifestação cultural. Segundo Geertz
(1989), o homem necessita de mecanismos de controle, de padrões de comportamento para que
possa conviver em grupo e a cultura dá ao homem esses padrões. Para o autor, a cultura é um
entrelaçado de símbolos construídos historicamente que representam fontes de informação através
das quais o homem se comunica, perpetua conhecimentos e atividades em relação à vida. Esses
símbolos existem fora do indivíduo, independente de sua vontade e de suas escolhas.
Canclini (2005, p. 117) atribui o conceito de identidade como “construção imaginária que
se narra”. Hall (2003), não busca identidade nas origens ou tradições de um povo, mas opta pela
identidade diaspórica, resultado híbrido entre múltiplas interferências culturais. Segundo esse autor:
As identidades cultuais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e história. Não uma essência, mas um posicionamento. Donde deve haver sempre uma política de identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta numa “lei de origem” sem problemas, transcendental (HALL, 2003, p. 70).
Essas dificuldades em definir cultura estão presentes em Diferentes, Desiguais e
Desconectados (2005), obra em que o autor resume três grandes definições de cultura (2005, p. 37-
41): 1- “cultura é o acúmulo de conhecimentos e de aptidões intelectuais e estéticas”; 2- cultura
como tudo aquilo criado pelo homem e por todos os homens a partir do natural que existe no mundo.
35
São os modelos de comportamento, os costumes, as distribuições espaciais e temporais; 3- definição
sóciossemiótica, na qual a cultura abarca “o conjunto de processos sociais de produção, circulação e
consumo da significação na vida social”. Contudo, para o autor, mais importante que ater-se às
definições de cultura “é (...) descrever os esforços de convivência e não somente ressaltar as
diferenças”.
Hall (2000) afirma que o sujeito contemporâneo apresenta-se composto de várias
identidades. Desse modo, ele é definido como um indivíduo que não possui uma identidade
permanente, se forem considerados antigos valores, como definidores de uma unidade subjetiva, e
sim uma multiplicidade de desconcertantes e cambiantes identidades possíveis, podendo-se com
cada uma delas se identificar. De acordo com esse enfoque, é possível pensar que todos são
submetidos continuamente a influências de diversos sistemas culturais que se interpenetram e se
entrecruzam, promovendo uma heterogeneidade cultural pela convivência de vários códigos
simbólicos dentro de um mesmo grupo e até mesmo em um só sujeito.
Hall defende que a identidade também pode ser retratada como sendo as várias máscaras
sociais e ideológicas que nos identificam como seres humanos em momentos distintos. Em suas
palavras, “em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deve-se falar de identificação, e
vê-la como um processo em andamento” (2000, p. 39). No entanto para Bhabha (1998), a questão da
identidade não se estabelece somente no reconhecimento das diferenças com o outro. Segundo esse
autor, essa questão é mais complexa e implica a representação do sujeito a partir da sua condição de
diferente. Dessa forma, a construção de uma imagem do sujeito se estabelece na sua relação com um
outro. Essa definição faz pressupor que a identidade de um sujeito se constitui a partir da
experiência dele como indivíduo, como autônomo; e como ser coletivo, produto do meio por estar
sempre inserido em um grupo social. E essas duas últimas experiências são inseparáveis.
Relacionando ao objeto de estudo, tanto Canclini quanto Hall, apresentam a possibilidade
de representação e da reconstrução de identidades a partir do resgate mnemônico. A memória é
portanto, retratada como elemento que permeia a articulação da identidade do narrador (idoso), já
que funciona como fio condutor entre o sujeito e o seu permanecer no tempo e no espaço. Pode-se
observar, então, que é por meio da sua memória que o idoso, se rearticula nesse contexto, buscando
construir sua própria história, sua identidade e sua origem, ao buscar também, as identidades
daqueles que, de alguma forma, contribuíram para a sua formação como sujeito, partindo de suas
interações culturais.
36
Tal procedimento mostra que a identidade articula o conjunto de referências que, de certa
forma, orientam o narrador na sua forma de agir e de mediar seu relacionamento com os outros e
consigo mesmo. Tudo isso se realiza por meio da própria experiência de vida do sujeito e das
representações da experiência coletiva de sua comunidade e sociedade, aprendidas na interação com
os outros. A identidade é, dessa forma, a continuidade das características do indivíduo através do
tempo, enraizadas na memória, no hábito e nas formas de tradições comunitárias. É algo que se
modifica de maneira lenta e imperceptível, por sofrer pequenas mudanças e variações em relação à
sociedade da qual faz parte.
A memória como produto da linguagem, também é pensada como produção simbólica e
parte integrante de um imaginário social. Nesse sentido, tanto a memória como a tradição são vistas
como fruto de um tempo determinado e de um conjunto social dado, por poderem constituir-se
elementos da história de mentalidades coletivas. Vale ressaltar, então, que a memória faz cruzar a
história e a intimidade, por permitir que os acontecimentos públicos e os pessoais sejam nutridos de
valores simbólicos vivenciados na encruzilhada da cultura e do desejo, oferecendo-nos, assim, focos
e direções existenciais e sociais em meio às experiências vividas pelo sujeito. É inegável que a
subjetividade alcançada pelas histórias contadas pelos idosos, é reconstruída nos interstícios e
limiares das formas sociais e culturais de existência vividas.
A memória é refletida pela vontade do ser social que exalta e destaca apenas os elementos-
chave, de sua vivência, expressos na sua oralidade. Por isso, Vasconcelos (2001, p. 28) diz que a
memória marca “os pontos que se fixam em volumes de lembranças, prontas a emergir dos
escaninhos mais profundos da alma, da pessoa que rememora”. Nesse caso, observamos que o mais
importante para a pessoa idosa é a sua própria rememoração, a qual ela expõe conforme sua
vontade. É nesse vínculo entre presente e passado que se percebe a estreita relação entre a memória
e o tempo. Encontra-se, portanto, nos idosos, uma memória atemporal que permite o acesso às
histórias, mitos, lendas de mundos distantes, saberes e épocas longínquas. Essas histórias que foram
retidas pela experiência, são percebidas pelo convívio e pela oralidade. A memória é, dessa maneira,
constituída pelo distanciamento temporal do narrador em relação ao fato narrado e pela mescla de
uma memória simultaneamente coletiva e individual. Nessa perspectiva, deve-se, ainda, ressaltar
que os espaços da casa, do bairro e da cidade são retratados como lugares representativos da
convivência, das trocas de experiências, das histórias, dos mitos, das lendas, das festas e dos jogos
sociais.
37
O homem moderno vive o presente sem laços com o passado, atropelado pelo excesso de
apelos que a sociedade de consumo oferece, assim como na teoria freudiana do choque que
inviabiliza a impressão mnemônica e o seu consequente traço duradouro. Tais características estão
essencialmente presentes na atual sociedade da informação, em que a velocidade induz ao
esquecimento, não havendo espaço para a memória. Nessa circunstância, pode-se afirmar, ainda, que
a memória busca restaurar as lembranças e revitalizar dados do passado, preservando-se assim,
aquilo que não pode mais ser vivido.
Desse modo, ao se enraizar no social como linguagem, a memória possibilita a
reelaboração das experiências desses diversos grupos sociais, por permitir que elas se manifestem e
vinculem-se através de um trabalho a diferentes vozes. Ressalta-se, ainda, que essas tradições são,
por sua vez, conclamadas pela oralidade, por meio do olhar atento do narrador sobre esses mundos e
culturas, possibilitando que elas sejam recordadas e relidas, impedindo, dessa forma, o seu total
desaparecimento. É, assim, por meio da rememoração a partir do olhar subjetivo desse idoso-
narrador, que nós, leitores, vimos a conhecer essa realidade.
2.4 MEMÓRIA E PÓS-MODERNIDADE
Alberto Melucci, no livro O jogo do eu (2004), fala a respeito das dificuldades que se
encontra para definir a experiência do tempo. Segundo o escritor, as referências que são feitas ao
tempo remetem imediatamente a uma noção experiencial deste; remetem àquilo que, pelas próprias
experiências, sabe-se ser o tempo: “todos sabemos do que falamos quando dizemos ‘tempo’”
(MELUCCI, 2004, p.17). Contudo, é quando se tenta defini-lo que as dificuldades se apresentam.
Esse antigo problema tem produzido, ao longo dos séculos, diferentes estratégias para sua
superação, dentre as quais, possivelmente a mais frequente deve ter sido o uso de metáforas e de
mitos. Desde as culturas mais antigas, nas quais a referência ao tempo vinha acompanhada de
imagens divinas – aquáticas (fluidas) ou cíclicas – a experiência do tempo vem sendo traduzida
através de suas utilizações. A partir da análise de três diferentes figuras – o círculo, a flecha e o
ponto - utilizadas para esse fim, o de “representar simbolicamente a dimensão indescritível do
tempo” (MELUCCI, 2004, p.18), o autor constrói um quadro que nos permite vislumbrar as
principais transformações ocorridas nas formas de se perceber o tempo ao longo da história.
38
Na figura do círculo, o tempo é representado como um eterno retornar de todas as coisas;
“as coisas repetem-se e nada é definitivamente adquirido ou perdido” (MELUCCI, 2004, p.18). Essa
metáfora que encontra na natureza, nos seus ciclos e ritmos, suporte material e inspiração, foi (e
ainda é) utilizada por diversas culturas. A alternância entre os dias e as noites, entre as estações do
ano, as fases da lua, a vida e a morte, revelam a existência de um tempo cíclico onde início e final
tornam-se relativos; onde todo o início implica um final que, por sua vez, implica um (re) início.
Esse tempo cíclico, representado pela figura do círculo, é ressignificado pelo cristianismo.
A partir da idéia de gênese e de fim do mundo são instituídos os limites de um percurso, agora,
linear. O tempo, ainda que continue apresentando-se à experiência imediata como uma sucessão de
ciclos, ganha agora uma dimensão profunda (linear) em que tudo isso acontece. O tempo da vida
sobre este planeta é um tempo marcado entre sua origem e seu anunciado final; o tempo da
experiência passa também a ser o caminho que percorremos entre o nascimento e a morte, um
percurso progressivo e irreversível no qual a possibilidade de salvação confere ao seu final o
derradeiro sentido.
Com o advento da modernidade, essa idéia - a de uma redenção final -, ressignificada,
ganha força e projeção:
A figura do círculo é substituída pela flecha, e o tempo, assim, segue um rumo, tem uma finalidade que é também o seu fim, ou seja, é o ponto final que dá sentido a todo o percurso precedente e ilumina as passagens intermediárias. A figura linear do tempo como flecha, seja ela interpretada no que implica salvação ou progresso, impregna as raízes profundas da cultura ocidental e alimenta, ainda hoje, nossa representação do tempo (MELUCCI, 2004, p.19).
Conforme destaca Melucci, a noção de tempo na modernidade assenta-se sobre duas
referências essenciais: a máquina e a meta. O tempo passa a ser medido por máquinas: é dividido em
unidades estáveis e equivalentes que permitem a atribuição de valores precisos a cada uma delas. A
partir daí, mais do que nunca, “time is money”. Os ritmos e as cadências que governam a vida
moderna, deixam de ser ditados pelos ciclos naturais e passam a ser marcados pelo “tic-tac” dos
relógios. As experiências do tempo são forçosamente homogeneizadas: o tempo social desencontra-
se cada vez mais dos tempos internos individuais. Pode-se falar, conforme Bauman (2001), em uma
rotinização do tempo.
Sob essa ótica, a linearidade das relações entre passado, presente e futuro - quando o
presente decorre do passado na mesma medida em que o futuro decorre do presente- é atravessada
por um jogo retroativo: é do futuro que partem os sentidos para a interpretação do passado e para a
39
promoção do presente. O objetivo final para onde aponta a flecha justifica e condiciona os meios
que se utilizarão para sua consecução.
Contemporaneamente, entretanto, se assiste “o ocaso dos grandes mitos da modernidade, de
todos os contos de salvação que prometiam êxito no final do tempo”
(MELUCCI, 2004, p.19/20). O futuro se torna cada vez menos provável e o passado cada vez mais
distante. O presente consolida-se como o tempo próprio e único para a satisfação e o gozo. A
metáfora da flecha já não serve para representar a experiência atual do tempo. Agora, o ponto
expressa com maior precisão uma experiência de tempo fragmentada, descontínua e concentrada no
presente. Vive-se, conforme sustenta Bauman (2001), a era da instantaneidade, quando
“‘instantaneidade’ significa realização imediata, ‘no ato’ – mas também exaustão e desaparecimento
do interesse” (BAUMAN, 2001, p.137). A instantaneidade confere a cada momento valor
inestimável e sentido em si mesmo. É nesse sentido que o autor dirá que “a ‘escolha racional’ na era
da instantaneidade significa buscar a gratificação evitando as conseqüências, e particularmente as
responsabilidades que essas conseqüências podem implicar” (BAUMAN, 2001, p.148).
Em tempos de pós-modernidade¹ (modernidade tardia? modernidade líquida?), a
supervalorização do tempo presente se dá em detrimento das dimensões passada e futura das
experiências.
A busca pela “gratificação evitando as conseqüências” desconsidera os saberes produzidos
no passado e ignora os possíveis e inevitáveis desdobramentos de suas ações; também pressupõe
uma desvinculação cada vez maior com o espaço, com tudo aquilo que impeça ou dificulte o
movimento.
Na era da instantaneidade, o “movimento no espaço torna-se um fim em si mesmo”
(MELUCCI, 2004, p30/31). O espaço, assim como o tempo é experimentado como uma construção
multidimensional, sem referências estáveis.
_______________________________________________________
1 Frederic Jameson, em seu livro Pós-modenismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, contudo, alerta-nos:
“Pós-modernismo não é algo que se possa estabelecer de uma vez por todas e, então, usá-lo com a
consciência tranqüila. O conceito, se existe um, tem que surgir no fim, e não no começo de nossas
discussões do tema. Essas são as condições – as únicas, penso, que evitam os danos de uma clarificação
prematura – em que o termo pode continuar a ser usado de forma produtiva.” (JAMESON, 2000, p.25).
40
Nesse contexto, em que o ritmo da mudança dilacera as referências espaciais, o passado,
cada vez mais distante, falta enquanto substrato e o futuro se rarefazem com a ausência do projeto.
Neste caso, a desorientação é um claro risco que temos de assumir. Contudo, se por um lado a
experiência pontual do tempo representa o “esfacelamento da tradição” de que nos fala Arendt
(2005), por outro lado na dimensão puntiforme existe também uma riqueza, a possibilidade de
reativar o horizonte da presença como capacidade de viver momento a momento, tecendo a trama da
continuidade.
O estabelecimento de relações entre passado, presente e futuro, entre as diferentes formas
com que se experimenta o tempo, apresenta-se hoje como condição necessária para a reabilitação
daquelas referências essenciais que permitem decidir e discernir (orientar) – justamente o que
desafia o atual momento.
É no presente que se encontra “o único horizonte possível para essa ligação: a presença é o
lugar em que passado e futuro podem estar em uma relação circular” (MELUCCI, 2004, p.23).
Memória e projeto se influenciam reciprocamente a partir do presente; o passado é ressignificado
pelo que “está sendo” e pelo que ainda “está por vir” ao mesmo tempo em que engendra as
condições de possibilidade atuais.
O espaço, tal qual o é experimentado, vem sendo submetido a velozes transformações. O
espaço físico, no qual residem e com o qual interagem as diferentes formas de vida que habitam este
planeta e os espaços simbólicos, sobre os quais se constroem os sentidos da existência, têm sido
objeto de contínua e, cada vez mais, intensa exploração.
O advento urbano, por exemplo, em sua expansão desmedida, promove a transformação
(destruição e reconstrução) do espaço. Essa transformação, dependendo da forma e da velocidade
com que é conduzida (ou não é, se for o caso), abala os vínculos que se estabelece com ele; priva-se
do contato com aqueles referenciais a partir dos quais são orientados.
Éclea Bosi em seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos (1994) tece algumas
considerações a esse respeito:
Há algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligação com a natureza. Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam, mas que persistem em nós como uma carência. Os velhos lamentarão a perda do muro em que se recostavam para tomar sol. Os que voltam do trabalho acharão cansativo o caminho sem a sombra do renque de árvores. A casa demolida abala os hábitos familiares e
41
para os vizinhos que a viam há anos aquele canto de rua ganhará uma face estranha ou adversa (BOSI, 1994, p.451).
É importante destacar que essa discussão não visa ao desenvolvimento de uma postura
conservacionista, no sentido estrito de manter as coisas como elas estão; até mesmo por que, a
mudança, inexorável em sua marcha, a tudo e a todos atinge – “tudo muda o tempo todo”. O que se
pretende é conhecer os sentidos que se relacionam ao espaço e apresentá-los a reflexão; trazer à tona
o espaço enquanto realidade complexa atravessada por múltiplos interesses e sentimentos. Faz-se
importante, como nunca, restituir ao espaço sua complexidade, seus múltiplos sentidos, para que
esse possa ser pensado e apreendido de outras formas. O que se discute, também, é a velocidade
com que são operadas as transformações sobre o espaço: essa sim se apresenta hoje como uma das
principais responsáveis pelo solapamento dos esteios e referenciais sobre os/ a partir dos quais as
pessoas são orientadas. Novamente um excerto do trabalho de Bosi exemplifica essa questão:
A memória das sociedades antigas apoiava-se na estabilidade espacial e na confiança em que os seres da nossa convivência não se perderiam, não se afastariam. Constituíam-se valores ligados à práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), família larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a certos objetos biográficos (versus objetos de consumo). Eis aí alguns arrimos em que sua memória se apoiava (BOSI, 1994, p.447).
Bosi (1994) reafirma o papel dos idosos na família ao destacar que o velho é a memória da
família e da sociedade, tem o poder de tornar presente os que não estão mais ali, entretanto,
tornando-os visíveis nos hábitos, nos costumes e nos valores demonstrados. Os adultos, segundo
Bosi (1994) não se dedicam ao relembrar, não se prendem ao passado. Isso é papel do velho, que se
volta para a infância, para o passado da família e da sociedade.
2.3 RESGATE DA CULTURA ATRAVÉS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: EXPERIÊNCIA
DA VELHICE
Experiência enquanto ato ou efeito de experimentar, significa prática de vida indicando o
fato de suportar ou sofrer algo, como quando se diz que se experimenta uma dor ou uma alegria. Por
outro lado, experiência é um indicador de competência social ou técnica, no sentido de se possuir
habilidade, perícia ou prática, adquiridas com o exercício constante de uma profissão, de uma arte
ou de um ofício. Quem tem acumulado experiências, possui algo que lhe confere autoridade,
evidenciando uma distância que separa a ingenuidade juvenil da experiência de vida dos idosos.
42
No ensaio “Experiência e Pobreza” de Walter Benjamin, a pobreza da experiência aparece
como um sintoma ou característica da modernidade, junto com a decadência da arte de narrar, de
compartilhar experiências. Ele inicia a narração com uma pequena parábola: um velho no leito de
sua morte revela aos seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Pretendia
transmitir aos filhos o que eles constataram com o passar do tempo através da lição da experiência: a
felicidade é o fruto do trabalho e do tempo. Benjamin lembra que era a transmissão da experiência
que conferia autoridade aos mais velhos. Por tal motivo, Bosi (1994) afirma que há um momento em
que o ser humano deixa de ser um membro ativo da sociedade e passa a viver uma velhice social.
Nesse momento, resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar e lembrar bem. A partir daí,
a pessoa idosa será a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade, pois tende a ocupar
a maioria do seu espaço mental com coisas do passado. Os provérbios, as histórias e as narrativas de
viagens cingiam o tempo de ver, viver, contar, transmitir e ouvir, constatando que as ações da
experiência estão em baixa, questionando:
O que foi feito de tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1987, p. 114)
Esse novo homem, pobre de experiências, formata-se aos espaços modulados e funcionais,
adaptados às necessidades práticas da vida moderna, nos quais os “rastros são apagados”. O
resultado de tudo isso é apenas a pobreza, pois todas as peças do patrimônio humano foram
abandonadas. O que resta é uma nova barbárie que deve e precisa ser assumida, para que a
humanidade possa dar conta de tamanhas perdas de culturas e, principalmente, de tradições. Esta
temática é retomada no ensaio “O Narrador”, associando o declínio da experiência com o fim da arte
de contar, visto que esse tipo de experiência é próprio de organizações comunitárias centradas no
artesanato, ou seja, de sociedades pré-capitalistas, onde havia espaço para a narrativa. O “frágil e
minúsculo corpo humano”, perdido neste cenário desolador “dominado por forças destruidoras e
explosões”, não lega nenhuma experiência a ser transmitida de pessoa a pessoa, de geração a
geração. São vivências que não se quer contar, ao contrário, busca-se esquecer. Se “a experiência
que anda de boca em boca é a fonte onde todos os narradores vão beber” (BENJAMIN, 1992, p. 28),
então não se tem mais o que ouvir e o que contar.
43
Caracterizar um narrador nato é reconhecê-lo como alguém que tem o dom do conselho, ou
seja, inclinação para assuntos de interesse prático, capaz de dar instruções, transmitir ensinamentos
morais, como o camponês sedentário que conhece e transmite as tradições dos antepassados ou o
marinheiro, mercador dos mares que vai a terras longínquas e volta com a bagagem cheia de
histórias para contar. O que se conta tem um caráter fácil, claro e acessível, fascinado pela
simplicidade. Hoje, afirma Benjamin, dar conselhos soa como algo antiquado porque as experiências
estão deixando de ser comunicáveis.
Conselho é mais uma proposta do que a resposta a uma pergunta, é a continuação de uma história começada (ainda que esteja a desenrolar-se). Para pedirmos um conselho deveríamos, antes de mais, saber narrar a história (...). O conselho que é tecido na substância da vida vivida, é sabedoria. A arte de narrar tende a acabar porque o lado épico da verdade – a sabedoria - está a morrer (BENJAMIN, 1992, p. 31).
Uma das principais consequências do rompimento do intercâmbio de experiências é a
supressão da memória do indivíduo e a perda do sentido da história. O que mantém vinculados
ouvinte e narrador, é o interesse em conservar o que foi narrado. Quem ouve uma história, está na
companhia do narrador. A comunicação que o narrador efetiva não se restringe aos domínios da
comunicação verbal. Às palavras do narrador, somam-se os elementos não verbais de uma práxis
artesanal, incomum na modernidade, que integra alma, olhos e mãos, inseridos em um mesmo
contexto onde a gestualidade do trabalho incorpora a experiência do que é narrado. O narrador, é
para Benjamin, a síntese de mestre e sábio, porque sabe dar conselhos, porque pode recorrer à
própria vida associando à sua experiência mais íntima aquilo que aprendeu na tradição.
O estudo da leitura, através das memórias e das experiências relatadas pelos idosos,
sujeitos da pesquisa, possibilitará olhar os acontecimentos e as interpretações do passado que
desejamos guardar e apresentar para reforçar sentimentos de pertença e fronteiras entre os mais
diversos tipos de grupos sociais.
44
CAPÍTULO III – ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
3.1 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
A recepção é de essencial importância para uma obra. Ela completa o ciclo e age como
“uma concretização pertinente à estrutura da obra, tanto no momento de sua produção quanto no
momento de sua leitura, que pode ser estudada esteticamente, o que dá ensejo à denominação da
teoria de estética da recepção” (AGUIAR e BORDINI, 1988, p. 81).
A Estética da Recepção foi delineada pela Escola de Constança, sob a liderança de Hans-
Robert Jauss (AGUIAR, 1996). A teoria é direcionada à perspectiva da recepção da obra,
enfatizando o papel da literatura no plano individual e coletivo, valorizando a função ativa e
criadora do leitor como receptor da obra literária. A estética da recepção pressupõe um
desdobramento essencial entre a recepção propriamente dita e uma análise do chamado efeito
estético. Deste ponto de vista, a estética da recepção “diz respeito ao modo como os textos têm sido
lidos e assimilados nos vários contextos históricos”. Por esta razão, é preciso “mapear as atitudes
que determinaram certo modo de compreensão dos textos numa situação histórica específica.
Zilberman (1989) afirma que Jauss trabalha sobre alguns pressupostos: o primeiro deles é o
de que a historicidade da literatura depende do diálogo da obra literária com seus leitores. Desta
forma, o autor reabilita a história de leitura, agora não mais com ênfase no autor ou no texto.
Focalizou, principalmente, o fenômeno estético-literário do texto, considerando o leitor como um
fato extrínseco e, portanto, com necessidade de ser estudado.
A recepção também é uma produção estética, pois o leitor é um ser ativo e criador. Por esse
motivo, a obra continua viva enquanto houver o leitor. A existência da obra se dá na medida em que
o seu leitor se relaciona com a mesma, modificando-a ou atualizando-a de acordo com suas
expectativas. Esta interação é chamada de horizonte de expectativas. Esse processo de produção e de
recepção estética vai determinar o rumo da história da literatura.
Para a revisão da história da literatura, Jauss (1994) se baseou em sete teses, sendo que as
quatro primeiras têm características de premissa e as três últimas apontam para a ação. A primeira
tese afirma que a natureza eminentemente histórica da literatura se manifesta durante o processo de
recepção e efeito de uma obra. Assim, a base da história literária é o leitor e sua relação dialógica
45
com o texto. A historicidade defendida, portanto, é a atualização do texto, sendo que, a cada leitura,
a cada período, a obra se mostra mutável.
Na segunda tese, o autor esforça-se para evidenciar que o leitor não se baseie apenas em
sua subjetividade, para que não se caia novamente na crítica impressionista. Ela é formulada para
descrever a experiência literária do leitor, não sendo necessário recorrer à psicologia. Jauss (1994)
retoma a noção de horizonte cunhada por seu mestre, Gadamer. Assim, cada obra vem colocar-se,
para o leitor, em contraponto às suas experiências prévias e a própria obra oferece a seus leitores
informações prévias de gênero, sinais indiretos ou marcas explícitas de sua natureza, que o leitor
pode alterar, corrigir com sua própria experiência de leitura ou simplesmente reproduzir. É também
aspecto importante dessa tese a afirmação de que a recepção é um fato social no qual as reações
particulares não são apenas singulares ou individuais, mas fazem parte de reações de grupos que irão
apreciar e compreender ou não uma obra.
A terceira tese aborda a reconstituição do horizonte, sendo que esse fato possibilita
determinar o caráter artístico de cada obra. O valor decorre da distância estética do horizonte atual
do leitor e o horizonte apresentado pela obra e que leva o leitor a construir outro horizonte.
Na quarta tese, Jauss (1994) examina as relações do texto com seu período de
aparecimento. Isto equivale a descobrir qual era o horizonte de expectativas sob o qual a obra foi
criada e quais perguntas a obra respondeu para o leitor contemporâneo de seu lançamento (a idéia
das perguntas da obra também foi retirada de Gadamer). Trata-se da recuperação da comunicação
que houve naquele momento, trazendo de volta sua historicidade e o sentido que a obra recebeu no
seu presente, além do diálogo entre uma obra e seu público. Mais outro aspecto interessante no
resgate da obra: o horizonte de expectativas, em seu primeiro período, não é mais o mesmo. Ao
recuperar a pergunta do público de outra época e, portanto, sua hermenêutica, há a explicitação de
que havia outro horizonte de expectativas:
[...] escudado em Gadamer, [Jauss] adverte: “a pergunta reconstituída não pode estar no horizonte original, porque este horizonte histórico já foi englobado pelo horizonte da nossa atualidade” (p. 185). A “fusão de horizontes”, e Jauss novamente emprega uma noção cara seu mestre, já ocorreu, sendo agora parte integrante da compreensão. Jauss cita Gadamer diretamente: “compreender [é] sempre proceder ao processo de fusão dos horizontes aparentemente independentes um do outro” (ZILBERMAN, 1989, p. 37).
As últimas teses esclarecem o sistema metodológico de Jauss (1994), em que ele estuda a
obra de três formas: sob o aspecto diacrônico, que se refere à recepção das obras no decorrer do
46
tempo; o sincrônico, que trata do sistema de relações da literatura ou de determinada obra em um
tempo determinado e a sucessão destes sistemas; o relacionamento da literatura com a vida prática.
Esta última tese é importante, uma vez que examina as relações da literatura com a sociedade. É nela
que Jauss (1994) enfatiza o caráter formador da literatura, que repercute na compreensão de mundo
do leitor e é transferida para sua vida real. Esta relação, entre literatura e vida, da última tese de
Jauss é transcrita por Zilberman (1989, p.39):
A relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial como estímulo à percepção estética, como também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral. A nova obra literária é acolhida e julgada tanto contra o background de outras formas artísticas, como ante o background da experiência cotidiana da vida.
Desta forma, de acordo com a Estética da Recepção, pode-se caracterizar o leitor como
parte da rede de sentidos do texto e, portanto, como elemento de essencial importância para que se
conheça o fenômeno literário. Tais teses são de primordial importância para a fundamentação
metodológica da história da literatura, como também, a forma de reescrever tal história.
3.2 O HORIZONTE DE EXPECTATIVAS, EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E HERMENÊUTICA,
SEGUNDO JAUSS
O horizonte de expectativas do leitor é formado por diversos fatores que influenciam
intimamente a vida de determinada obra, como o conjunto de normas estéticas, sociais, ideológicas e
filosóficas que permeiam determinada época e sociedade. Ou seja, um texto que, em determinado
momento, fez grande sucesso pode, em outro momento, tornar-se esquecido ou até discriminado,
alterando ou abalando os horizontes de expectativa daqueles novos leitores.
O horizonte de expectativas se constrói no leitor em sua consciência individual, mas como
um saber que se desenvolve no social. O horizonte situa o sujeito não apenas com relação à obra,
mas também no mundo real, através de comparação com aquilo que ele já conhecia.
Quando o leitor toma posicionamento dentro da leitura, no cotejo da tradição com o inusitado da obra, introjeta novos valores, deslocando seu horizonte. Uma nova obra pode satisfazer o horizonte de expectativas do público ou provocar sua alteração em maior ou menor grau. A distância entre a expectativa dos leitores e sua realização, denominada pelo autor de ‘distância estética’, vai determinar o valor artístico da obra. A ruptura com o horizonte de expectativas é, portanto, critério de valor, como o estranhamento para os formalistas (AGUIAR, 1996, p. 27).
47
Como será visto com mais atenção na sociologia da leitura, assim como o horizonte de
expectativas muda, também muda o valor estético: uma obra pode ser “novidade”, e romper com os
horizontes de expectativas de um grupo social em uma determinada época. No entanto, pode tornar-
se vulgar para os leitores de épocas posteriores. Outrossim, obras consideradas “populares” e até
mesmo vulgares na época de seu lançamento, porém, ao apresentar novas questões, podem colocar-
se em um lugar revolucionário no horizonte de expectativas do leitor, em outras gerações. Segundo
Aguiar (1996), as obras de verdadeiro significado são aquelas que provocam o leitor a cada releitura,
trazendo também novos questionamentos. Para Jauss (1994), levantar o horizonte de expectativas é
levantar o horizonte de questões para o qual o texto seria a resposta, mesmo que tais respostas não
sejam definitivas. Aguiar (1996) aponta para o papel sincrônico e diacrônico do horizonte de
expectativas:
Para a teoria recepcional, a história da leitura deve reconstituir os horizontes de expectativas de uma obra e situar essa mesma obra na sucessão histórica dos eventos literários. Ao conceito de evolução literária, imanente dos formalistas, Jauss acrescenta a perspectiva social, atribuindo ao leitor um papel ativo. Contudo, o autor salienta que a experiência literária não pode ser pensada apenas diacronicamente, não se devendo confrontar apenas os horizontes de expectativas de um mesmo tempo através do tempo, mas verificar as relações que se estabelecem entre os horizontes de expectativas de diferentes obras simultâneas (AGUIAR, 1996, p. 28).
Segundo Zilberman (1982), o procedimento do exercício da leitura retrata um tipo
particular de leitor. Mas, esse exercício não ocorre de maneira espontânea, pois cada leitor, formado
pela escola, carrega um tipo de ideologia, ou seja, resultando em um horizonte cognitivo e histórico
que acaba dominando-o, pois está tomado por certas convenções que se expressam em seu modo de
vida. Zilberman (1982, p. 103) aponta as seguintes ordens de convenções estético-ideológicas
constitutivas do horizonte de expectativas:
- Social, pela posição do indivíduo na hierarquia da sociedade;
- Intelectual, pelo fato de que ele detém um conhecimento de mundo compatível com seu
espectro social, atingido após completar sua educação formal;
- Ideológica, por ser correspondente aos valores que são transmitidos ao indivíduo por seu
meio, de que se imbui e dos quais é muito difícil que ele fuja;
- Lingüística, que corresponde a certos padrões expressivos, mais ou menos coincidentes
com a norma padrão privilegiada, decorrente de sua educação ou do espaço e grupo social em que
transita;
48
- Literária, sendo resultado de suas leituras, das preferências que apresenta, assim como da
oferta artística disponível pelos meios de comunicação e por outros meios, inclusive a escola.
Além desses fatores, pode-se incluir a ordem afetiva no horizonte de expectativas. Para
Jauss (1994), o juízo de crítica nada mais é que a materialização da compreensão do público e de
certos indivíduos, comparando seu horizonte de expectativas com as novas obras, em que
experiências familiares podem ser rechaçadas e há a acentuação de experiências latentes, ou as
experiências familiares podem ser bem aceitas. No entanto, para o autor, a valorização das obras se
dá na medida em que, em termos temáticos ou formais, elas alteram o horizonte de expectativas do
leitor levantando novos questionamentos.
A atitude receptiva começa através da aproximação entre leitor e texto, colocando em
contato o horizonte de expectativas e as convenções culturais, sociais e a tradição do leitor com as
convenções sociais e culturais colocadas pelo autor na obra. Quando a obra corrobora com a
bagagem que o leitor já possuía, quando confirma seu sistema de valores e de normas, diz-se que o
horizonte de expectativas permaneceu inalterado, pois há uma posição psicológica de conforto no
conhecido. Talvez seja por isso o sucesso e a aceitabilidade da literatura de massa, pois as obras vêm
apenas satisfazer a concepção que certo grupo de leitores tem do mundo. Por outro lado, obras com
difícil compreensão ou que não se encaixam no horizonte de expectativas do leitor por fatores
sociais, lingüísticos, ou qualquer um daqueles citados por Zilberman (1982) acabam por provocar a
rejeição, ou provocam uma interação conflitiva com o sistema de referências do leitor. Diante de um
texto com tais características, se o leitor responder aos desafios e adotar uma postura de
disponibilidade, romperá seu horizonte de expectativas e permitirá que a obra atue sobre ele através
das estratégias textuais, criando novo horizonte.
O leitor, em primeiro lugar, precisa conhecer o gênero e buscar as ideologias, sua estrutura
ou composição estética para conhecer as inovações que são feitas nele. O processo se concluirá após
o leitor analisar e entrar em contato com os aspectos díspares do seu horizonte de expectativas e,
depois, decide se incluirá a obra ou não nele. Quanto maior o número de leituras do indivíduo, maior
sua predisposição para “dialogar” com as obras e ampliar seu horizonte de expectativas.
Um livro, muitas vezes, é transformado em “clássico” sob pena de perder seu contato mais
aproximado com o dia-a-dia do público. No entender de Jauss (1979), as formas de interação do
leitor com o texto podem reforçar ou desafiar seu horizonte de expectativas. De uma forma ou de
outra, ela sugerirá normas de conduta para o leitor. Desta forma, haverá influências mútuas, pois a
49
ficção mostra uma realidade em outro nível, um nível idealizado. Ou seja, a realidade retratada na
ficção e na literatura em geral, é a mesma, mas colocada em um grau superior, que faz com que o
leitor a incorpore a seu cotidiano.
Jauss (1994) considera que a comunicação com o público é o que complementa a arte.
Portanto, a experiência estética traz, ao mesmo tempo, prazer e conhecimento. Também atribui a ela
o papel de transgressão e, por isso, é emancipadora do sujeito. Ao mesmo tempo em que liberta ou
aliena o ser humano de seu cotidiano, fornece certo distanciamento entre o texto lido e o leitor. O
leitor sabe que o que está lendo é ficção e, por isso, esquece-se de seus problemas reais, mas a
leitura realizada não deixa de agir como elemento tensionador que, ao mesmo tempo em que
antecipa o futuro idealizado, provoca um reconhecimento retrospectivo do passado, ou seja, uma
volta e reflexão à sua própria realidade.
Jauss (1979) acredita que o objetivo de uma obra de arte não pode ser alcançado, se não for
vivenciado esteticamente. Portanto, as obras de arte são feitas para serem apreciadas pelo público, e
é esta comunicação que completa o sentido da arte. É nesse sentido que Jauss (1979) se opõe ao
prazer estético exposto por Roland Barthes em O prazer do texto, obra publicada em 1977, após a
Pequena apologia da experiência estética de Jauss. Barthes põe em foco dois conceitos de interação
com o texto literário: o prazer (plaiser) e a fruição (jouissance). Para o autor, prazer e fruição são
como duas margens opostas de um rio e que, às vezes, são complementares. Se o primeiro é
responsável pelo prazer afirmativo, a fruição, por sua vez, tem como conseqüência o deleite estético
negativo. Assim, o prazer constitui-se em uma alegria fácil e estável, enquanto a fruição traz a
fragmentação, a violência, a morte:
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem (BARTHES, 1997, p. 21 e 22).
Ao priorizar a linguagem, o processo de leitura defendido por Barthes deixa um espaço
restrito para o leitor, a quem cabe um “papel passivo, tão só de recepção e desaparece como fonte de
prazer, sua atividade imaginante, experimentadora e doadora de significação” (JAUSS, 1979, p. 74).
Para Jauss (1979, p. 76), o prazer estético realiza-se “na relação dialética do prazer de si no
prazer do outro”, fato que coloca em primazia a figura do leitor, a quem cabe, no processo de leitura,
tanto a contemplação desinteressada, quanto as participação experimentadora. É nesse sentido que o
50
prazer estético constitui-se em “um modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser outro,
capacidade a nós aberta pelo comportamento estético” (JAUSS, 1979, p. 77).
O processo hermenêutico deve ser compreendido como segmentado em três momentos: da
compreensão, quando o sujeito busca os sentidos do texto e os coteja; da interpretação, quando o
leitor introjeta os sentidos apreendidos anteriormente; e da aplicação, quando incorpora os
conhecimentos de acordo com suas possibilidades e necessidades. Quando o sujeito compreende a
obra ao ponto de apropriar-se dela, surge o prazer estético, transferindo esta experiência para seu
conhecimento de mundo e de realidade. Desta forma, Jauss percebe a função emancipadora e
humanizadora da literatura.
A hermenêutica - ciência geral da interpretação - forneceu a Jauss os princípios para
formação da hermenêutica literária, uma abordagem mais científica dos textos. Ele utilizou o
horizonte de expectativas, a tese da pergunta e da resposta do texto e, também, a fusão de horizontes
de diversas épocas com a atuação do passado sobre o sujeito e idéias baseadas nos princípios de
Gadamer. Tais elementos auxiliaram no processo de interpretação dos textos literários, através da
natureza dialógica da literatura. Mais que qualquer outra parte da teoria, a hermenêutica literária é
importante para a estética da recepção, pois um texto não pode ser parte de uma experiência literária
e estética se não for interpretado, quando ocorre o efeito.
O efeito é uma das duas modalidades de relacionamento entre o texto e o leitor. De um
lado, a obra, ao ser consumida, ou seja, no caso de um livro, lida, provoca um efeito sobre o
destinatário. Este efeito compõe-se de dois fenômenos concomitantes: a compreensão fruidora e a
fruição compreensiva, que ligam imediatamente o ato da leitura (intelectual, consciente e individual)
com o prazer.
A outra modalidade ocorre quando uma obra passa por um processo histórico, sendo, ao
longo do tempo, interpretada de maneiras diferentes. Esta é a recepção. O texto coloca orientações
prévias ao leitor, de certa forma imutáveis, pois o texto, como estrutura, não se modifica. A
recepção, por sua vez, é condicionada pelo leitor, que traz suas vivências pessoais para a fusão dos
horizontes, que pode equivaler à concretização do sentido. Utilizando-se da terminologia de Iser
(1996), o efeito mostra o leitor implícito, enquanto a recepção representa o leitor explícito. Assim, a
metodologia de Jauss sugere que se considerem separadamente os dois tópicos, uma vez que o leitor
implícito já é um código literário determinado, e o leitor explícito é o leitor com um código
historicamente determinado. Ao definir-se o leitor implícito no texto, é possível definir as estruturas
51
do texto, sua pré-compreensão e, com isso, as projeções ideológicas de determinadas camadas de
leitores podem ser vistas (ZILBERMAN, 1989).
Desta forma, a Estética da Recepção é um estudo com um foco inovador no outro extremo
da criação artística, o leitor: isso a diferencia das demais teorias anteriores. Outro ponto que leva em
consideração o leitor, porém, não mais do ponto de vista individual, mas do ponto de vista de grupos
sociais, é a sociologia da leitura.
3.3 SOCIOLOGIA DA LEITURA
Apesar de a Estética da Recepção e a Sociologia da Leitura serem distintas quanto às
posições epistemológicas, acabam se completando, pois abordam a relação do leitor fora e dentro do
texto, objetivando estudar o público atuante dentro do processo literário e histórico:
A sociologia da leitura aparece inicialmente como um segmento da sociologia do saber, quando L.L. Schücking publica, em 1923, o livro Die Soziologie der Literarischen Geschmackbildung. A obra, cujo título poderia ser traduzido como A sociologia da formação do gosto literário, foi reeditada em 1931 e, em 1944, publicada na Inglaterra, com um nome mais simples de The sociology of literary taste [A sociologia do gosto literário], com o qual se popularizou (ZILBERMAN, 1989, p. 16).
O público, desta vez, é visto como fator ativo no processo literário, pois mudanças de gosto
e de preferência podem interferir não apenas na circulação, e, portanto, na fama dos textos, mas
também em sua produção. Esta observação passou a ser válida principalmente depois que o livro se
popularizou com a invenção da imprensa e, principalmente, com a ascensão da burguesia, que
passou a ter acesso ao livro como objeto de consumo, o que antes era privilégio da aristocracia
letrada. A teoria examina, então, as agências formadoras do gosto, e os mecanismos que inibem ou
facilitam a difusão de uma obra. Tais agências incluem a crítica literária e a escola, sendo que a
última tem um papel mais importante, como será visto a seguir. Depois de Schücking, vários autores
estudaram as implicações históricas e sociais da arte. Leavis e Hoggart (apud ZILBERMAN, 1989)
debruçaram-se sobre o estudo das leituras populares e dos fenômenos de literatura de massa. Isso
representou uma ruptura importante, pois, além de mostrar o papel do público e sua intervenção na
criação literária, também questionou o que faz uma obra ser “cult”, ou seja, intelectualmente
preferível, ou “kitsch”, considerada de mau gosto.
52
O leitor inserido em um processo social, histórico e cultural determinado tem o poder
emancipador de considerar determinada obra, representativa ou não dentro de seu contexto e
preferência, segundo padrões de sua época. Ou seja, segundo Jacinto Prado Coelho (apud AGUIAR,
1996, p.23-24) “se toda leitura é foco de estudo porque definidora de um tipo de público, é também
objeto de análise a recepção dos textos considerados marginais e subliterários”.
Partindo desse preceito, a sociologia da leitura não considera o assim chamado “valor
literário de uma obra”, mas sim evidencia sua aceitação e circulação em um contexto,
proporcionando sucesso e permanência em uma sociedade.
A leitura é enriquecedora e pode ser feita com motivações diversas: informação, evasão,
prazer, entre outras. As circunstâncias da leitura também variam: pessoas podem ler apenas em seu
período disponível, podem se obrigar a ler algo necessário pela atividade profissional ou para um
conhecimento requerido.
Alguns estudos desenvolvidos a respeito dessa teoria surgiram na Escola de Bordéus, onde
Escarpit (1969) e sua equipe priorizaram três funções para Sociologia da Leitura: a primeira vê o
autor como um “homem de seu tempo”, inserido em uma sociedade e determinado pelas ideologias
vigentes da mesma. A segunda analisa a questão mercadológica, que delimita a produção,
publicação e distribuição das obras na sociedade e a terceira função é analisar o êxito ou fracasso de
um texto, considerando o seu tipo de público consumidor.
O estudo da Sociologia da Leitura possibilitou resgatar o estado de pesquisa nesse campo.
Seus estudos direcionados para a história do livro, da leitura, das práticas culturais de leitura e da
sociologia da cultura voltam-se para uma análise qualitativa e não quantitativa da distribuição social
das produções culturais, levando em consideração o nível de instrução e da origem social de seus
leitores. Há uma preocupação igualmente com a circulação e apropriação dos textos.
53
CAPÍTULO IV - METODOLOGIA
4.1 COMO OUVIR HISTÓRIAS
Eu considero os velhos como aqueles que vieram antes de nós pela estrada em que todos estamos, e seria bom se
perguntássemos a eles sobre a natureza dessa estrada. Sócrates
A República
Diante do estudado nos primeiros capítulos, questionei-me qual seria a melhor forma de
investigar as dimensões do processo de envelhecimento e da memória de leitura dos idosos. A
pesquisa qualitativa demonstrou ser a que melhor responderia às questões a serem investigadas, pois
suas estratégias de análises de dados ocupam-se da interpretação dada pelo sujeito ao seu mundo
interno e externo, conforme Minayo (2007). Uma das principais características fundamentais dos
métodos qualitativos é o enfoque no caráter singular e subjetivo do objeto de estudo e dos processos
que o geraram.
Segundo González Rey (2005), a análise qualitativa dos dados da pesquisa pode ser
realizada a partir do que foi obtido através de entrevistas, narrativas, avaliações psicológicas, textos
e imagens, entre outros. Isso é possível porque seu objetivo é compreender peculiaridades inerentes
a cada sujeito estudado. Dessa forma, compreender as memórias de leituras à luz da história de vida
de cada idoso apenas seria possível a partir desse tipo de abordagem.
Conforme já exposto no capítulo anterior, busquei na Estética da Recepção o método para
ouvir as histórias de vida e relacioná-las a memória de leitura dos idosos. Não esquecendo que o
leitor não se aproxima do texto isento de experiências, pré-concepções e outros envolvimentos
sociais e literários anteriores. E o repertório pessoal que ele movimenta quando do ato da leitura é
determinado, ou pelo menos influenciado, por sua época e por seu lugar. E em se tratando quer de
leitura, quer de interpretação, não existem reações puramente literárias. Todas as reações, sem
exclusão das reações à forma literária estão profundamente arraigadas no indivíduo social e histórico
que somos. Isso significa que toda resposta produzida em relação a uma obra literária é definida e
delimitada pela posição do leitor na sociedade.
O universo pesquisado é formado por 110 (cento e dez) idosos que moram na Associação
da Pia União do Pão de Santo Antônio. A amostra escolhida será composta por 05 (cinco) idosos
54
para realizar a pesquisa, levando em consideração que estes idosos devem possuir a leitura em sua
história de vida.
4.2 OBJETO DA PESQUISA
4.2.1 A Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio
Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio tem na sua história passagens de lutas
contra as dificuldades financeiras que sempre foram muitas, mas vão sendo superadas, graças ao
imperioso reconhecimento da necessidade de mantê-la funcionando bem.
A Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio, fundada em 13 de janeiro de 1930 é
uma instituição considerada como referência ao amparo da Terceira Idade. É constituída com fins
não econômicos e reconhecida de utilidade pública nas três esferas de governo: Lei Municipal 6.985
de 7 de abril de 1976, Lei Estadual 3.308 de 10 de julho de 1939 e Lei Federal 82.474 de 23 de
outubro de 1978, com prazo indeterminado de existência e funcionamento, regendo-se pelas regras
estabelecidas nos seus Estatuto e Regimento Interno. É composta por número ilimitado de
associados, obedecido o procedimento para sua admissão, conforme normas estatutárias. É dirigida
por pessoas que prestam serviços voluntários, apoiados tecnicamente pelas coordenadorias: médica,
jurídica, administrativa e contábil com seus respectivos departamentos, abrangendo servidores
regidos pelas leis trabalhistas.
De acordo com seu Estatuto reformado em 2005, a Casa abriga três categorias de
residentes:
O pobre sem família e destituído de recursos de qualquer natureza, que é admitido no
Casarão, sem qualquer ônus, desde que haja disponibilidade de vagas;
Pensionista, com aposentadoria ou pensão, que pagará uma mensalidade
correspondente a 70% dos seus proventos; e
Pensionista, com maior poder aquisitivo, que pagará uma mensalidade fixada pela
Diretoria Executiva, de acordo com as instalações a serem ocupadas.
As formas de acesso à Instituição ocorrem através de demanda espontânea e
encaminhamentos de diversos órgãos como Promotoria do Idoso, CRAS, CREAS, Unidades de
Saúde e outros. Seu período de funcionamento é de 24 horas.
55
Atualmente, a Associação dispõe do Centro da Terceira Idade com 16 (dezesseis) chalés e
24 (vinte e quatro) apartamentos destinados aos idosos de melhores condições financeiras para
ajudar no custeio das despesas de manutenção dos idosos residentes no Casarão.
4.2.2 Objetivos da Instituição
Incentivar, entre todas as pessoas, sem distinção de sexo, cor ou idade o culto e
devoção a Santo Antônio, divulgando, por todos os meios ao seu alcance, a sua vida,
obra e milagres, promovendo na sua Capela orações, em especial a festividade com a
Trezena de Santo Antônio, anualmente, no mês de junho;
Abrigar anciãos de ambos os sexos, a partir de 55 anos de idade, ou que seja portador
de atestado médico certificando velhice precoce; e
Como instituição confessional, anualmente, comemora as datas festivas da Igreja
Católica, dentro da disponibilidade de recursos existentes.
4.2.3 Atividades desenvolvidas:
Sendo uma entidade asilar, desenvolve junto ao idoso residente atividades que o
mantenham participativo e integrado a sua nova opção de vida. Com efeito, proporciona para um
maior congraçamento:
Atividades sociais: comemorações de aniversários, datas festivas, bailes, desfiles, passeio,
piqueniques, etc.
Atividades Recreativas: pinturas, execução de artesanatos, campeonatos de jogos de mesa,
hidroginástica, etc.
Atividades culturais: leitura de livros, jornais, revistas, coral, dramatização, etc.
Atividades religiosas: trezena de Santo Antônio, Via Sacra, peregrinação de Nossa Senhora
de Nazaré, novena de Natal e celebrações religiosas.
4.2.4 Perfil dos idosos atendidos
A entidade atende a todos aqueles que a buscam, obedecendo, os seguintes critérios:
Disponibilidade de vagas;
56
Avaliação médica (consulta e exames);
Comprometimento de um responsável; e
Ajustamento as normas da Casa.
4.2.5 Funcionários
Visando assegurar uma melhor qualidade de vida do idoso residente a Instituição dispõe de:
49 (quarenta e nove) empregados regidos pela CLT, entre eles: Auxiliar de Escritório,
Auxiliar de Tesouraria, Supervisor, Recreadora, Motorista, Serviços Gerais,
Serventes, Cozinheira, Auxiliar de Cozinha, Porteiros, Costureiras, Pintor, Jardineiro,
Encarregado de Obras; e
Corpo Técnico: 1 Médico, 1 Enfermeira, 5 Técnicas de Enfermagem, 1 Assistente
Social, 1 Fisioterapeuta, 1 Nutricionista e 1 Professor de Educação Física.
Os especialistas possuem o seu local específico de trabalho, assim como o material
essencial para o desempenho de suas atividades.
4.3 SUJEITOS DA PESQUISA
A pesquisa realizada teve como participantes 5 (cinco) idosos, sendo: 03 (três) homens e 02
(duas) mulheres. Todos na faixa etária de 70 a 85 anos. Destes 05 (cinco) idosos entrevistados, 02
(dois) moram no casarão, 2 (dois) nos chalés e 01 (um) nos apartamentos.
Na tentativa de conhecer a experiência de leitura e história de vida dos idosos que vivem
em um contexto asilar optei por escolher idosos que vivem tanto na casa, pois são mais dependentes,
recebem atendimento médico psiquiátrico e psicológico intenso, quanto nos chalés e apartamentos
que, além de receberem um atendimento multidisciplinar, também têm oportunidades de convívio
social como os que são oferecidos pelos grupos terapêuticos
4.4 INSTRUMENTO DE PESQUISA
Como instrumento de pesquisa foi adotado um roteiro de questões para embasar as
narrativas e oportunizar a interação e a troca de informação entre o pesquisador e o pesquisado.
A entrevista realizada foi semi-estruturada com base em um roteiro composto por itens
sobre a história de vida e memória de leitura dos idosos. Esse instrumento teve como objetivo
oferecer ao idoso oportunidade de falar sobre sua vida e seus hábitos de leitura. Os aspectos
57
investigados englobaram fatos relevantes sobre a trajetória existencial do indivíduo, seu ambiente
psicossocial, sua participação social, vivência e enfrentamento de perdas, sua memória, atividades
ocupacionais, leituras, entre outros aspectos.
A escolha deste instrumento se deu pela riqueza de informações presentes em situações
onde a narrativa de história de vida é proposta. Adotou-se como pressuposto que a narrativa não é
apenas um relato de acontecimentos, mas a totalidade de uma experiência que é comunicada
(BUENO, 2002). As narrativas são representações e interpretações da realidade e revelam a
subjetividade do indivíduo.
Bassit (2002) afirma que os depoimentos pessoais de história de vida possibilitam o
registro de várias experiências individuais e o estabelecimento de pontos que estejam de acordo e
desacordo com as perspectivas teóricas do envelhecimento. Além disso, valorizar a trajetória pessoal
auxilia na compreensão do envelhecimento como parte de um processo contínuo do
desenvolvimento humano.
A utilização do roteiro de entrevista não foi feita de forma rígida, pois primou-se pelo
estabelecimento de um clima favorável que incentivasse o participante a falar sobre sua vida e suas
memórias de leitura. O roteiro serviu como guia para me motivar e estimular o sujeito a falar sobre
si e seu percurso existencial. As informações fornecidas foram gravadas com a autorização do
participante e depois transcritas por mim.
Posteriormente foi verificado o que cada sujeito tem em comum com outros e, a partir desta
análise, destacar a importância de se resgatar a memória de leitura, de forma a validar tradições e
experiências na qualidade de vida, na Terceira Idade.
58
CAPÍTULO V – O MUNDO DA LEITURA CONTADO PELOS IDOSOS
Os dados serão apresentados em forma de casos com os aspectos considerados relevantes
para o estudo em questão. Primeiramente, será feita uma descrição geral da história de vida de cada
sujeito, seguida de análise à luz das perspectivas teóricas estudadas, nos capítulos anteriores. Os
nomes adotados nos relatos são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.
5.1 SÍLVIO: OCULTISMO E ESOTERISMO SÃO AS SUAS PRINCIPAIS LEITURAS
5.1.1 História de Vida
Sílvio tem 73 anos, é divorciado, tem 3 (três) filhas e 6 (seis) netos. Segundo o idoso, seu
relacionamento com os filhos e netos é satisfatório. Passa o final de semana com as filhas, mantém
contato telefônico. Possui ensino médio completo, é aposentado. Exercia a profissão de
representante comercial. Considera ser um espiritualista. Possui três irmãos. Somente ele, seu pai e
sua irmã mais velha se interessavam por livros. Sua irmã era professora de francês e seu pai era
oleiro, trabalhava na olaria fabricando tijolos, telhas e cerâmicas em geral. Fez primário, ginásio e
científico no Colégio Marista. Veio para Belém em 1959. Tinha um tio em Belém e ficou morando
com ele. Sua mãe era filha de português e o seu pai de holandês. O avô português gostava muito de
escrever.
O idoso é hipertenso, cardiopata (faz uso de marcapasso) e tem histórico de disritmia. Neste
ano, de 2011, apresentou comprometimento no intestino tendo sido submetido a intervenção
cirúrgica. Atualmente, faz tratamento com quimioterapia. Não possui deficiência e nem demência. É
ex-fumante; bebia socialmente sem histórico de alcoolismo.
Não fala nenhum idioma, nem toca instrumento musical. Tocava gaita, mas afirma que
desaprendeu. Gosta de escutar música como valsa, bolero e músicas antigas. Atualmente, não gosta
de dançar, mas em sua juventude dançava muito nos salões da Assembléia Paraense. Possui uma
coleção de mais de 2.000 livros voltados para os temas do ocultismo e esoterismo.
Sílvio residia em um apartamento no bairro do Marco, quando entrou em conflito com
traficantes que moravam no mesmo conjunto. Prestou denúncia na Polícia Federal e passou a ser
ameaçado, afirmando que “sua vida virou um inferno”. Tomou conhecimento da Instituição através
de um amigo, que residia no chalé, e, ao visitá-lo, gostou do Pão de Santo Antônio. Apesar de ter 03
59
(três) filhas, não era de sua vontade morar com as mesmas. No Pão de Santo Antônio, Sílvio busca
tranquilidade e repouso.
O idoso afirmou ter tido uma infância tranqüila, residindo em Recife, no bairro do
Espinheiro, onde ficou em torno de 15 anos, mudando-se depois para o Rio de Janeiro. Em Recife,
conheceu sua esposa. Casou em Belém e ficou casado durante 12 anos. Afirmou que sua separação
foi motivada por incompatibilidade de gênio. A esposa reside com uma de suas filhas; ambos não
casaram novamente, mas possuem uma boa amizade.
Seu gosto pela leitura iniciou nas aulas de leitura, na escola. Sempre se interessou pelo
ocultismo e pelo esoterismo. Não gosta do gênero romântico. Entre as principais leituras destacou:
“Poder Secreto do Homem”, “Conhecimento Secreto do Homem”, “O Homem e a Cosmogênese”,
“Divina Comédia”, “A Chave dos 12 Mistérios”, “Os Grandes Iniciados – de Brahma até Jesus” e
“Eterna Sabedoria”. Entre os seus autores preferidos estão: Goethe, Dante Alighieri, Fausto,
Machado de Assis, Eliphas Levi, Dostoievski, Annie Besant, C.W. Leadbeater e Helena Petrovna
Blavatsky. Está lendo o livro “A Visão Teosófica das Origens do Homem – Ensaio sobre a
antropologia esotérica”, afirma que é uma obra relacionada ao ocultismo, que poucas pessoas
gostam.
5.1.2 Leitura e Recepção
O idoso usa os conceitos da Estética da Recepção para dar a sua interpretação para o livro
do profeta Enoque que conta a história em que Noé pede socorro ao pai Lemech, dizendo que a
Terra estava sofrendo as dores do parto, pois ela está inclinando. O pai responde: “Volta, junta tudo
o que é teu e sobe, as águas lá não chegarão”, portanto, ele afirma que o dilúvio aconteceu por uma
inclinação da Terra.
Segundo Eagleton (1997), a hermenêutica de Heidegger recebeu nova direção por meio dos
estudos do filósofo Hans Georg Gadamer (1900-2002), o qual ampliou o espaço do leitor ao afirmar
que, na interpretação de uma obra do passado, existe a possibilidade de emergir um novo
significado para o texto, dependendo da posição histórica do leitor e da sua capacidade de dialogar
com o texto: “Quando a obra passa de um contexto histórico para outro, novos significados podem
ser dela extraídos”. (EAGLETON, 1997, p. 98). Isso se torna possível por meio do cruzamento dos
60
horizontes de expectativa da obra com o do leitor, no momento da leitura e tal fato se comprova na
narrativa do descrita pelo idoso.
Em um outro exemplo, o idoso cita a lenda do Tapete Voador que, segundo o idoso, era um
prenúncio dos discos voadores. A lenda citada refere-se a um tapete lendário das histórias das “Mil e
Uma Noites”, a que se atribuía a capacidade de voar, transportando pessoas. Afirma também que Ali
Babá e os 40 ladrões – 40 é um número cabalístico e que o americano criou o Tio Patinhas, pois
tinha a visão do tesouro, do capitalista. O Tio Patinhas veio para ensinar a poupança, assim como, a
lenda da formiga e da cigarra dizendo que quem poupa no verão e na primavera, terá um inverno
tranquilo. Essas narrativas conduzem o leitor a analisar, à sua maneira de perceber os fatos contados
pela história, na medida em que desconstrói a história oficial, possibilitando outras visões. Para que
isso ocorra, deve perceber a ambiguidade presente nos relatos, indo além do que está escrito. Dessa
forma, o receptor da obra poderá decodificar as afirmações das personagens e sinalizar para a
duplicidade do enunciado, descobrindo vozes emudecidas e outras possibilidades de leitura.
Esses exemplos confirmam que as obras lidas no passado, são lembradas perfeitamente nos
dias de hoje. Dessa forma, Jauss (1994) concebe a relação entre leitor e literatura, baseando-se no
caráter estético e histórico da mesma. O valor estético, para o autor, pode ser comprovado por meio
da comparação com outras leituras; o valor histórico, através da compreensão da recepção de uma
obra a partir de sua publicação, assim como, pela recepção do público, ao longo do tempo.
5.1.3 Leitura e Memória
Estudou no Marista de Recife e depois foi morar no Rio, sempre viajando e lendo muito.
Tem livros que não existem mais, por exemplo, uma Bíblia de 1800 e pouco. Também se interessa
bastante pelo catolicismo e cita “A Chave dos 12 Mistérios”, uma obra puramente católica.
Identifica a Igreja Católica como única, pois os seus rituais herdaram a verdadeira sabedoria,
dizendo que os evangélicos são repetidores de salmos. A Igreja Católica tem essência, tem
fundamento, com seus mantras e seus cantos gregorianos. Segundo Geertz (1989, apud AQUINO),
em qualquer cultura, a religião é uma tentativa de prover significativos gerais para que os sujeitos,
individualmente, possam interpretar suas experiências e organizar sua conduta. Esses significados
são armazenados, através dos símbolos sagrados que passam a expressar, para aqueles que lhes são
devotos, a forma como veem o mundo e como devem se comportar, ou seja, os símbolos dão, ao
61
mesmo tempo, um sentido normativo e coercitivo para a organização da vida prática, em torno dos
quais a vida deve ser necessariamente vivida. Pode-se, então, afirmar de acordo com o autor, que a
religião é uma espécie de ciência prática, como sinônimo de conhecimento, que produz os valores
pelos quais todos devem se guiar.
Sílvio explica que gosta de ler livros novos e sempre busca, na memória, lembrar dos
antigos. Sua memória está sempre se renovando e proporcionando bem estar. Sempre que acorda vai
para a janela e faz ioga, como exercício físico e mental. O trabalho com as histórias de vida está
diretamente relacionado ao entrelaçamento memória-leitura, visto que a memória tem o poder de
conferir uma identidade, assim como possibilita que, através da percepção que se torna lembrança,
surja a consciência do real. O conteúdo que é guardado na memória, é proveniente das imagens que
temos do mundo e por conta disso, somos capazes de raciocinar, de conferir valores, de estabelecer
julgamentos, de acolher, de rechaçar, enfim, de conhecer, de refletir, de pensar. Conforme relatou o
idoso, sua filha disse uma vez que queria lhe dar um computador, mas ele declara que não quer se
viciar no computador e perder o hábito de ler. Relata que no Pão de Santo Antônio, tem poucos que
fazem uso da leitura e que, com a leitura, as pessoas olham a vida de outra maneira. Afirma também
que, hoje em dia, para se ter acesso aos livros, é difícil. Bibliotecas contam-se nos dedos e que
precisa haver mais para habituar essa “meninada” a ler. Na Educação, é sempre a mesma promessa e
nunca evolui. Não há incentivo.
Relata que, antigamente, frequentava o cinema, assistia ao Rim Tim Tim (um cachorro
policial) e o Cabo Rusty, Lessy e outros filmes que hoje em dia não tem mais. Diz que, hoje em dia,
é só loucura. As crianças não aprendem mais a gostar de animais, chutam eles na rua. Por isso, os
crimes estão acontecendo. Conta que, na sua época de escola tinha dissertação quando voltava das
férias e o professor pedia para descrever sobre as atividades desenvolvidas durante o período de
folga. Quando olhamos para o passado, resgatamos antigos compromissos educacionais valorizados
pela tradição, orientando os que são novos neste mundo (ARENDT, 1972). Passamos a olhar para as
crianças como seres em processo de conhecimento que estão se preparando para fazer parte do
mundo do idoso, que é mediador dos saberes ambientais acumulados, ao longo das experiências de
vida das gerações passadas.
62
5.2 MARLENE: GOSTA DE ROMANCE E DE ANJOS
5.2.1 História de Vida
Durante toda a entrevista, Marlene mostrou-se com dificuldades em desenvolver o
raciocínio que iniciava. Assim, foi preciso constantemente questioná-la e incentivá-la a dar
prosseguimento ao raciocínio iniciado.
Marlene tem 83 anos, é viúva e não possui filhos. É católica. Concluiu o curso de
contábeis, mas nunca exerceu a profissão, pois seu marido não a deixava trabalhar fora de casa,
porém, nunca a impediu de ler livros. Sempre gostou muito de ler. Seu pai era auxiliar de farmácia,
dormia cedo, enquanto sua mãe cuidava de 5 (cinco) filhos. Seu marido era radiotelegrafista, não
gostava de festas e nem de passeios.
Não possui nenhum problema de saúde, não tem nenhuma deficiência e nem toma nenhum
medicamento controlado. Só fez uma única cirurgia na sua vida que foi de catarata.
Marlene residia no bairro da Marambaia com seu marido. Depois que ele faleceu, para não
ficar sozinha, optou em morar no Pão de Santo Antônio. Informa que, na Instituição, busca sossego
e amizade, além de cuidar das suas plantas, uma terapia que gosta muito. Recebe muitas visitas de
amigas no Pão de Santo Antônio. Mora em chalé.
Afirma que é uma pessoa extrovertida e que convive e possui muitas amigas que vivem no
meio de literários, como por exemplo, do escritor Benedito Nunes.
5.2.2 Leitura e Recepção
A leitura fez parte da sua vida desde que começou a estudar. Era uma das melhores alunas
de história. Sempre gostou de inventar, de criar e de contar histórias. Gosta de ler um pouco de tudo.
Comprava muitos livros. Conta que as bibliotecas eram muito restritas na sua época de adolescente.
Atualmente, sempre que vai a uma livraria vem carregada de livros.
Adora ler M. Delly. Gostava das leituras que ela compreendia. M. Delly era o pseudônimo
do casal de irmãos Frédéric Henri Petitjean de la Rosiére e Jeanne Marie Henriette Petitjean de la
Rosiére, escritores franceses. Em estilo romântico, os romances de M. Delly possuíam um tom de
encantamento, um clima de conto de fada. As histórias destacavam os valores e comportamentos da
aristocracia européia situada entre os finais do século XIX e inícios do século XX, apesar de não
63
serem, na grande maioria, datadas. A imprecisão temporal é característica das narrativas
maravilhosas, que alimentam o imaginário dos leitores e nas quais os argumentos desenvolvem-se
dentro da magia feérica: reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, objetos mágicos,
metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida.
Gosta também de ler livros de escritores nacionais. Afirma que não gosta de escritores
rabugentos. Está fazendo uma pesquisa sobre os Anjos, que diz que aprendeu a admirar com a
“sabedoria da idade”. O desenvolvimento da sabedoria é dado pela aceitação dos limites de
conhecimento do ser humano. As pessoas sábias estão atentas e sabem que há mais caminhos para
se olhar o fenômeno e eventos do que podemos saber. Elas têm a tendência a duvidar sobre as
crenças, valores, conhecimento e informação, porque sabem que pode não haver necessariamente
uma resposta correta, e uma verdade mais profunda pode também existir. Na sabedoria, há redução
desse individualismo, tendendo a se preocupar com o coletivo, problemas universais, mais do que o
bem-estar individual. A sabedoria capacita os mais velhos a entender os limites da vida, incluindo
o declínio físico e a morte. Uma pessoa mais velha e sábia tende a ser satisfeita com suas vidas,
independentemente das circunstâncias e obstáculos que eles encontram. “Ninguém pode ter
sabedoria sem ser sábio. Se quisermos a vida para ser entendida o caminho é em outra direção. A
descoberta é o começo da sabedoria”. (Moody, conforme citado por Ardelt, 2000, p. 781).
O seu interesse pelos anjos se deu devido a um desgosto recente que a abalou muito,
deixando-a magoada. Segundo a idosa, precisava se modificar para buscar a salvação para o
desgosto, e não estava conseguindo. Foi nesse momento que a figura dos Anjos tocou seu coração.
Diz que o que tem lido sobre os Anjos, tem colocado em prática. Começou a tentar entender e
perdoar as pessoas que achava que de alguma forma a tinham machucado e, com isso, tem tentado
buscar a paz. Quer repassar esse conhecimento que é muito importante, inclusive para a sua saúde,
pois sua pressão estava alta e não conseguia controlar por causa da mágoa. Comenta que está se
sentindo um anjo, voando com tanta leveza. Por isso, gosta de leituras doces, amenas e leves.
Marlene termina a entrevista citando que, com a velhice e todas as suas conseqüências, hoje
em dia, já que não podem sair, a leitura é a melhor companhia e passatempo. O que foi lido ontem,
sempre tem relação com o que é lido hoje e com o dia a dia. Jamais se esquece ou deixa de existir,
pois é essencial.
Segundo Josso (2004), uma experiência formadora é feita de uma aprendizagem que
articula o saber-fazer e conhecimentos, funcionalidade e significação, técnicas e valores num
64
espaço-tempo. E daí em diante, que o idoso começa a indagar a sua identidade e a refletir sobre a
sua existencialidade. Para a autora, é necessário recordar o que viveu, relatar e pensar sobre a
própria experiência, para que haja uma experiência formadora. O que foi vivido servirá de
referência para o que ainda vai acontecer, servindo assim, como um guia ou uma orientadora de
experiências. “São as experiências que podemos utilizar como ilustração numa história para
descrever uma transformação, um estado de coisas, um complexo afetivo, uma idéia, como também
uma situação, um acontecimento, uma atividade ou um encontro” (JOSSO, 2004, p. 40).
Experiência para Josso é um conceito central das histórias de vida e do trabalho sobre essas
histórias.
Marlene afirma que gostaria de viver, de ser feliz e de ler, sempre!
5.3 MARCOS: GOSTA DE FICÇÃO CIENTÍFICA E DE ESCREVER POESIAS
5.3.1 História de Vida
Marcos tem 85 anos, é viúvo e possui 02 (dois) filhos, 05 (cinco) netos e 02 (dois) bisnetos.
É aposentado e hipertenso. Toma remédio controlado, apesar de não ser portador de nenhuma
patologia grave e não possui traços de demência. Gosta de poesia, de valsa e de músicas religiosas.
Durante toda a entrevista demonstrou bom humor e disposição para contar a sua história.
Nasceu na Santa Casa. Foi criado na casa de um médico conhecido na cidade de Belém,
onde suas tias eram governantas e ajudaram a criar os filhos do médico. Quando nasceu, seu pai não
tinha condições financeiras de ficar com ele. Seu pai era dono de um estaleiro de construções navais
no Marajó, era muito ocupado, não tinha mulher, portanto, não tinha com quem deixá-lo.
Na casa do médico, teve condições de fazer um curso técnico de mecânica. Com 18 anos
era reservista de 2ª categoria. Foi chamado para o Exército Americano e para DACAR (África do
Norte), para servir em uma base de apoio, em um Hospital da Cruz Vermelha. Neste hospital
trabalhavam outros brasileiros. Era uma base de apoio para recuperação de material bélico, como:
tanques de guerra, canhão e armas que vinham dos combates dos aviões da Alemanha e do Japão.
Os técnicos americanos que havia lá ensinavam a manusear armas e tanques de guerra. Tudo isso
representou uma importante experiência de vida para o idoso. Afirma que aquela experiência o
ajudou tanto que não considera que tenha tido uma difícil trajetória profissional.
65
Quando chegou ao Brasil, foi servir à Aeronáutica, na profissão de mecânico. Fez curso
para Sargento. Passou 2 (dois) anos em Guaratinguetá, fazendo curso de mecânico de aviação
(motores), quando se graduou para 2º Sargento. Apesar de tudo isso, diz que não gostava da vida
militar, que tinha um “verdadeiro abuso da vida militar porque havia muita petulância, muita
disciplina. Hoje não dava mais para ter uma disciplina como naquele tempo, árdua. Hoje a coisa está
mais suave, todo mundo na vida militar é profissionalizante, os oficiais conversam com os praças,
tudo muito moderno, diferente daquele tempo”.
O grupo familiar é o espaço de experiências e de crescimento pessoal e social.
Pichon-Rivière (1998) diz que a família enseja o marco das diferenças humanas através de papéis
básicos em todas as culturas: pai, mãe e filho. Além da importância biológica ligada à sobrevivência
e a conservação da espécie, a família fornece condições para aquisição de identidade pela
transmissão de valores éticos, religiosos e culturais (OSÓRIO, 1997), como no caso de Marcos, que
pautou seu discurso sobre a sua vida familiar embasado em princípios éticos e valores que foram
repassados pela sua criação na casa de família do médico e pela sua tradição na vida militar. O
repasse desses valores ocorre de forma espontânea e contínua através das atividades diárias, dos
exemplos, das histórias. Enfim, é através da memória que a corrente de pensamento do grupo é
transmitida para as gerações vindouras. Dentro do grupo familiar, são os velhos, isto é, os avós, os
sujeitos responsáveis por exercer o papel de perpetuador da cultura.
A preservação da família e o desejo de formar vínculos familiares também são uma
constante na entrevista com o idoso. Fala com muito entusiasmo que o seu ideal de vida era casar e
ter filhos. Conta que já era noivo há 2 anos e não podia casar, devido a sua carreira militar que só
permitia que Oficial se casasse. E que um dia, estava em forma, escutando a ordem do dia, e veio
um decreto do Ministério da Aeronáutica dando a opção para quem quisesse se reengajar no serviço
militar por mais 9 anos ou se inscrever para a vida civil. Como queria casar, vislumbrou aquele
momento uma grande oportunidade. Depois de um tempo, novamente durante a ordem do dia, o
Major leu o decreto que o colocou à disposição da vida civil. Não conseguindo segurar a sua
emoção, deu um pulo e um grito, e foi preso logo em seguida, por indisciplina. Ficou à disposição
do comando por um tempo e só foi liberado quando conseguiu consertar 2 (dois) aviões C-47 que
transportavam tropas e mantimentos.
No mês seguinte, casou logo. Diz que foi o acontecimento mais feliz da sua vida. É viúvo
há 18 anos. Tem um casal de filhos. Morou 17 anos em São Paulo com sua filha. Sua filha é médica
66
e casou com um médico também. Marcos conta que sempre mandava dinheiro para pagar a
faculdade e o apartamento em que ela morava. Na época em que a filha casou, o marido era
residente no Hospital Psiquiátrico, ganhava pouco e estava no começo da vida. Conta que foi assim
até ela se formar, quando foi para Campinas, fazer Pediatria na UNICAMP, e passou no concurso
para a Prefeitura. Depois, ela fez outra especialidade na UNICAMP. Fez Psiquiatria que é a mesma
especialidade do marido. Fizeram concurso juntos para a Secretaria de Segurança Pública. Há 3
anos, ela ainda fez um curso de Nutrologia na USP, ganhou uma bolsa de estudos e passou 1 ano em
Paris, fazendo pós graduação. Trabalha nas 3 especialidades: Pediatria, Psiquiatria e Nutróloga. O
filho é Farmacêutico Bioquímico; é funcionário do Ministério da Saúde, e mora aqui em Belém. Fez
pós graduação e doutorado. Trabalha com Vigilância Sanitária, aqui no Pará. Declara que sua
mulher morreu muito feliz, pois sempre planejou ter um casal de filhos.
Quando já estava na vida civil, trabalhou em multinacionais, quando teve a oportunidade de
viajar muito. Conheceu 4 (quatro) continentes: Europa, África, Ásia e América, só não esteve na
Oceania.
Quando retornou para Belém, já viúvo, foi morar com o seu filho, mas, por razão de sua
neta ter se separado do esposo, voltou para a casa do pai e precisou ocupar o quarto que o idoso
ocupava. Foi por esse motivo que ele procurou o Pão de Santo Antônio. Procurou a instituição sem
avisar nada aos filhos. Conta que atualmente está voltando a morar novamente com o filho.
5.3.2 Leitura e Recepção
Relacionando com a história de leitura de Marcos, Josso (2004) afirma que ser sábio
significa então, percorrer o caminho sobre a sua própria vida e refletir lucidamente sobre esse
percurso. A sua própria história de vida, no ponto de vista de Josso (2004), revela sabedoria. E a sua
história de vida é consequentemente o resultado de experiências acumuladas. Reflexão sobre o
caminhar para si e a procura da arte de viver com lucidez é, para Josso, uma busca pela sabedoria de
vida. Sabedoria é, portanto, dar sentindo à própria experiência de vida. Quando não se consegue dar
sentido àquilo que se vivencia, torna-se apenas uma ação, sem significados, sem reflexão, e que não
acrescentará em nada nas outras experiências. Não se tornará, então, sabedoria. Saber é sentir, é dar
sentido; essa reflexão é uma das formas de atenção consciente de si mesmo. Ser sábio não é
acumular idades e/ou ações. Sabedoria e experiência de vida caminham juntas.
67
Como resultado da sabedoria acumulada, Marcos relata que atualmente está fazendo um
conto de ficção científica que pretende publicar junto com as suas outras tantas poesias românticas
que já possui. Neste conto de ficção científica, ele falará sobre a vida de Cristo que não é contada na
Bíblia. Diz que tudo será contado com base em suas pesquisas. Também fala de forma crítica sobre
opção sexual, se é hereditário ou opção mesmo. Quer juntar todo o material que tem escrito, fazer
meia dúzia de livros e distribuir para os amigos e pessoas que gostam de ler. Não quer fazer isso
para ganhar dinheiro.
Uma questão muito interessante em relação à Estética da Recepção foi demonstrada
claramente na fala do idoso. Ele relata que, no começo do livro que ele pretende publicar, nas
considerações, ele escreverá: “Caro leitor, ao iniciar a leitura deste livro, procure se descentralizar
de religião, credo, artifícios religiosos, livros considerados sagrados e arranje um espaço na sua
mente para se concentrar e entender a mente criadora do autor”.
Desse diálogo com o leitor que Marcos trava nas considerações do seu texto, Iser (1996)
percebe no leitor uma peça essencial para o ato comunicativo com o texto. Ao escrever sobre a
interação do texto com o leitor, o estudioso afirma a “limitação” do leitor, que “nunca retirará do
texto a certeza explícita de que a sua compreensão é justa”, por ser uma relação ímpar e diferenciada
da interação dialógica. Porém, semelhante a esta última, há os vazios a serem preenchidos, e
consequentemente a mudança do leitor, a amplitude do seu horizonte. É o que ele determina como a
“atividade de constituição”, ou seja, os vazios e as negações presentes no texto em contato com o
leitor permitem a este coordenar as perspectivas que darão sentido ao primeiro, assim como a
negação o faz modificar a atitude perante o texto. Na definição de Eagleton (1997), cabe ao leitor
preencher os “hiatos” presentes na obra. Tais nortes são importantíssimos para a recepção de uma
obra e, consequentemente do seu autor somados às outras questões, conforme informa o teórico e
analista alemão: “Quanto mais preso esteja o leitor a uma posição ideológica, tanto menos inclinado
estará para aceitar a estrutura básica de compreensão do tema e horizonte, que regula a interação
entre texto e leitor”, não permitindo que as normas se transformem em tema, já que estariam ligadas
à visão crítica do leitor. O que, associado às ideias de valor, o fariam rejeitar a obra e o autor. Como
ele bem coloca quanto à sua teoria do efeito: “o texto literário se origina da reação de um autor ao
mundo e ganha o caráter de acontecimento à medida que traz uma perspectiva para o mundo
presente que não está nele contida. Em Iser (1996), além do caráter ficcional, o discurso do texto é
tratado como “organismo vivo” em diálogo com o leitor. Dos seus significantes recebidos pelo
68
leitor, a realização da leitura temporal em um feedback contínuo sobre o efeito no mesmo, gerando a
imprevisibilidade do texto, e desta a comunicação e a compreensão.
5.3.3 Leitura e Memória
Em relação à memória, Marcos conta que teve o seu primeiro contato com a leitura quando
ainda era muito jovem, aluno do colégio primário, em uma matéria de Letras chamada Thales de
Andrade (que era o nome do autor). Eram vários livros deste autor. O primeiro incentivava o aluno a
obedecer aos pais, aos mestres e às pessoas mais idosas. Os outros ensinavam os bons costumes, os
bons hábitos alimentares, e questões de cidadania como dar prioridade às pessoas mais velhas na
entrada dos transportes públicos.
No rodapé destes livros, sempre tinha um verso de algum poeta como Olavo Bilac e
Gonçalves Dias. Conta que aqueles versos eram um incentivo para a pessoa ler e gostar de poesia.
Esses livros ensinavam muito sobre moral e cívica. Disse também que já naquele tempo se aprendia
muito sobre religião, a cumprir os mandamentos da lei de Deus: “porque Deus não é palavra, é
ação”. Se todo mundo procurasse se aproximar o melhor possível do cumprimento da lei de Deus, a
humanidade seria totalmente diferente, não existiria guerra, só existiria coisa boa.
A aprendizagem durante a vida e a educação continuada é essencial para as pessoas idosas
que desejam se envolver nas mudanças do mundo. Nas idades mais avançadas, parece ser mais
importante adquirir o conhecimento da sabedoria, já que é para sempre e universal. O conhecimento
intelectual capacita idosos a se envolverem nos eventos do mundo, enquanto que a sabedoria
relacionada com o conhecimento os ajuda a se preparar para a vida e até mesmo para os problemas
que podem ocorrer na terceira idade. O conhecimento intelectual, se não for estimulado, tende a
declinar com a idade, enquanto a sabedoria relacionada com o conhecimento é positiva e presente
nessa etapa da vida.
Para ilustrar a importância deste desenvolvimento intelectual durante a vida e como ele se
manifesta em sabedoria nas pessoas idosas, Marcos lembra que lia muito Sócrates, Confúcio e
Shakespeare quando era novo. Gostava muito das poesias de Olavo Bilac, de Coelho Neto, de
Gonçalves Dias e, de tanto ler poesias, foi também aprendendo a fazer poesias. Diz que morou em
São Paulo, depois que já estava aposentado. Participou durante 05 (cinco) anos do “Talento da
Maturidade” do Banco Real, na parte de literatura, onde eram inscritos cerca de 27.000 idosos, na
faixa etária de 60 a 80 anos. Escrevia poesias, fazia contos da vida real e contos de ficção científica.
69
Ganhou prêmios, medalhas, certificados e diplomas. Sempre ficava entre os 10 primeiros lugares.
Conta que na banca examinadora havia escritores, poetas, e até membros da Academia Brasileira de
Letras e que eles eram bem exigentes em relação à rima, à métrica, à criatividade e à ortografia. Diz
que sempre gostou de escrever poesias românticas (uma das classificadas no concurso encontra-se
no anexo da pesquisa).
Marcos diz que também sempre gostou de Mitologia e de Filosofia. Lia muito sobre
Mitologia Grega. Mas, conta que é a Ciência que comprova todos os acontecimentos do mundo. Por
isso, ele trabalha muito com a Ciência, para comprovar tudo o que pensa e escreve nos seus contos
de ficção científica.
Como vivia trabalhando pelo mundo, costumava ler os jornais que anunciavam as editoras
que mandavam livros por reembolso. Os livros eram pagos no ato do recebimento. Relata que era
basicamente essa a forma de acesso aos livros. Com isso, sempre buscava ter livros para ler
independente de onde estivesse.
Estas informações prestadas pelo idoso refletem os estudos da Sociologia da Leitura. A
disciplina Sociologia da Leitura pretendeu discutir, numa perspectiva histórica e sociológica,
atividades de leitura, partindo da compreensão de leitura enquanto prática cultural e não apenas
escolarizada, o que desencadeou uma série de questões: representações do livro e do ato de ler, os
contextos sociais de recepção, de produção e de mediação, e de circulação da leitura, bem como os
efeitos da leitura sobre leitores e leitoras em função das suas predisposições: formação, gostos,
preferências e motivações diferenciadas. Ou seja, cultura, sexo, idade, atividade profissional, lugar
social, situação familiar e histórias de leitura que diferenciam os leitores: o que leem, como se
aproximam da leitura e dos meios de acesso que utilizam para alcançá-la, onde leem, como
manuseiam e tratam o material que leem, o que fazem com a informação lida, se gostam de ler ou
leem por necessidade ou obrigação.
Marcos afirma que a Bíblia nunca mudou em nada, desde o início da humanidade. Faz um
paralelo entre a Bíblia e o Alcorão. Diz que o Alcorão é um livro antigo mas muito atualizado. Ele
tem a filosofia religiosa e a ciência ao lado, amparando-a.
70
5.4 JOANA: GOSTA DE LER ROMANCES E LIVROS ESPÍRITAS
5.4.1 História de Vida
Joana tem 83 anos, é separada e possui 05 (cinco) filhos, 16 (dezesseis) netos e 02 (dois)
bisnetos. É costureira. Não possui nenhum tipo de deficiência e nem demência. Já teve um
aneurisma cerebral que não gerou nenhuma sequela.
É independente e mora nos chalés. Gosta de escutar músicas clássicas e orquestradas.
Também gosta de dançar músicas antigas e atuais. Sempre que pode sai para dançar em festas com
as suas amigas. No seu tempo ocioso, como terapia, gosta de bordar, principalmente ponto de cruz.
Já vive na Instituição há 04 (quatro) anos e diz que procurou o Pão de Santo Antônio por
vontade própria para fazer amizades e sentir-se segura. Declarou que a Instituição oferece muita
coisa, porém não supre a falta da família. Dos 05 (cinco) filhos que possui, 03(três) moram fora de
Belém e 02 (dois) moram em Belém. Menciona também que, no Pão de Santo Antônio, não se
integra em muitas atividades. Só participa da hidroginástica e faz fisioterapia. Fora da Instituição,
faz parte de grupos de estudos espíritas.
Comenta que sempre criou os filhos com muito carinho e zelo, tanto que até hoje eles
“tomam a bênção”. Seu filho mais velho tem 66 anos. Teve filho com 16 anos. A família não a visita
com muita frequência. Justifica que os dois que moram em Belém, são homens, e que são muito
ocupados com os filhos deles e com os seus afazeres cotidianos. Na casa deles, ela só vai a convite,
é um sistema que adota. Ela se relaciona muito bem com as noras e com os genros. Um dos filhos
trabalha na CODEM, é arquiteto. O outro é autônomo e formado em Engenharia Elétrica. Em
relação aos seus outros filhos, um é também arquiteto e mora em Salvador, a moça é pedagoga e
mora no Rio e o outro, que tem apenas o 2º grau completo, também mora na Bahia. Comenta sobre a
ausência da família, e mais especificamente dos filhos com certa angústia e solidão.
É certo que, com as novas ofertas de espaços sociais, existe ainda uma velhice segregada
pela sociedade. Nesse cenário, o abandono, o preconceito e a desvalorização ainda recaem sobre o
idoso de forma violenta. Casos de maus tratos no comércio, nos transportes coletivos, nas ruas e até
no interior da família são cada vez mais comuns. Algumas dessas ocorrências são noticiadas nos
jornais, porém muitas são silenciadas no âmbito social e pelos próprios idosos, às vezes por
desconhecerem seus direitos ou ainda por se sentirem envergonhados e até culpados por
determinadas situações.
71
Durante a sua infância, morou no bairro do Umarizal com os seus pais e mais 04 (quatro)
irmãos (dois homens e duas mulheres). Uma coisa que lembra muito, é que, antes de morar no
Umarizal, sempre ia ao sítio do avô que tinha muitos cajueiros. Seu avô ficava brabo e a avó não
deixava ele bater nos netos.
Considera que teve uma infância repressora. Seu pai era demais disciplinador. Conta que
morou em regime de internato no Colégio Santa Rosa porque seu pai a castigou, por descobrir que
estava namorando. Quando casou, perdeu o contato com a família. Não demorou muito seu pai
morreu.
A narrativa de Joana, impressiona, primeiro pelas memórias juvenis da construção amorosa
e pela criação que deu aos seus filhos; depois pela descrição pragmática das peripécias da idosa.
Mas, o trabalho aparece, como necessidade de sobrevivência e como ocupação contra as tentações e
contra o ócio, simbolizado na máquina, pois era costureira. A tensão dramática do zelo do pai, não
permitindo que namorasse e nem ficasse na casa dos outros, cumprindo com a promessa feita de
colocá-la em um internato, desperta emoção. Vale salientar, no entanto, que essas atitudes são
tomadas dentro de um carinho, verdadeira união e amor. Hoje, sente-se cidadã e arrola vitórias.
Possui o ensino médio incompleto. Comentou que na época, quando as pessoas casavam,
deixavam de estudar. Tinha muita vontade de fazer uma faculdade, mas depois que casou perdeu o
estímulo. Queria fazer a “área de comércio”, ou seja, ser contadora.
5.4.2 Leitura e Recepção
Joana destaca que, antigamente, adorava ler romances, como os da M.Delly. Além dos
romances, gostava também de algumas obras de Machado de Assis e de José Veríssimo. Depois,
por sempre ter se considerado uma espiritualista, passou a se interessar por livros espíritas.
A espiritualidade, conforme menciona a idosa, é uma construção complexa e multifacetada
que envolve os sentimentos de fé e de sentido. A fé fortalece e faz acreditar em algo transcendental,
uma força superior, permitindo a vivência de um sentimento de transcendência. Envolve o interior
de cada um e está ligada às necessidades de receber e de dar amor, dar esperança, dar criatividade,
dar perdão e dar solidariedade com as pessoas e com Deus. Refere-se ao sentido compreendido com
a convicção pessoal da realização de uma missão, através de um dom com um propósito inalienável
na vida. A espiritualidade é uma propulsora na busca do sentido da vida, estimulando o interesse
para consigo e com os outros que pode ou não ser vivenciada a partir de uma religião formal.
72
Conta que o hábito da leitura trouxe conhecimentos e abriu seus horizontes: “A gente lê e
fica pensando sobre aquilo”. Atualmente, sua leitura é espírita. Acabou de ler Chico Xavier e
Divaldo Franco. Quase não lê mais romances como antigamente. Os romances que Joana lê, na
atualidade, são os romances espíritas como “Renúncia”, que comprou recentemente.
Joana conta que sempre procura acompanhar o presente, caminhar com a atualidade, pois o
passado não volta. Seus netos, ela diz, não sabem como foi o seu tempo, como também os netos
deles, não vão saber como é o tempo deles agora. Proíbe-se de dizer: “no meu tempo não era assim”.
Não usa esse ditado porque, segundo ela, o seu tempo foi o seu tempo e ele não volta mais.
A idosa reitera que hoje, o espiritismo, lhe deu muitas respostas que a Igreja e o padre não
deram. Segundo Joana, os sermões não lhe passam muita coisa. Hoje, ela diz que é cristã. Vai à
missa porque gosta e por passar uma energia muito boa, porém, diz que nas relações do dia a dia,
não lhe passa nada: “eles têm conhecimento, fazem homilia, falam do Advento, Epifania, mas sem
se atualizar”. Dessa forma, acredita-se que, conforme Zilberman (1989), o processo de recepção está
diretamente ligado ao leitor, colaborando com suas experiências pessoais para fornecer vitalidade à
obra e manter com ela uma relação dialógica. Essa relação, segundo os pressupostos das teorias
recepcionais, deve estar para além dos aspectos puramente cognitivos, concebendo a recepção como
um envolvimento intelectual, corporal, sensorial e emotivo com a obra.
Conclui falando que o espiritismo vai esclarecer verdades. É uma doutrina consoladora, à
medida que progredimos. Ela não diz “não beba”, “não fuma”. Ela fala das doenças, das
dificuldades, dos excessos e cada um possui o livre arbítrio de seguir ou não, conforme suas próprias
vontades.
A satisfação e o bem-estar da idosa se inserem no projeto reflexivo do eu através de um
equilíbrio entre oportunidade e risco. A auto-realização na contemporaneidade pressupõe o
abandono de antigos hábitos e comportamentos que não apresentam mais vantagens, seguido pelo
investimento do sujeito em novos modos de ser e agir que lhe pareçam mais satisfatórios. Uma frase
que a idosa falou e que me chamou atenção foi: “você não pode ficar pensando que está velho. É só
manter o cabelo arrumado que está bom”. Parafraseando Clarice Lispector, a experiência do
envelhecimento é a harmonia secreta da desarmonia: “você vai ficando feio, mas harmonioso”,
segundo Joana.
73
5.4.3 Leitura e Memória
Joana conta que sempre se interessou por leitura. Quando era garota, na sua casa, tinha uma
pequena biblioteca e que ela e seus irmãos sempre foram incentivados a estudar, a ler. Seu pai
comprava livros, ele gostava muito de ler. Depois que casou, seu marido também comprava livros.
Tinha muitos conhecidos que liam também e um emprestava para o outro.
Ao refletirmos sobre os espaços de leitura, consideramos importante observar os lugares
que ocupam na educação a leitura e a escrita, isto é, conceito do que é um leitor e, portanto, das
práticas para se formar um leitor proficiente. A leitura é ato e gesto, conforme Escarpit (1969). Há
uma dimensão que é pessoal, única, intransferível do sujeito. Há outra que complementa e é
complementada por essa, de natureza sociocultural. Em suma, é preciso olhar o leitor, mas
igualmente as condições históricas em que o ato de ler ocorre. Se a leitura envolve aprendizagem, é
preciso cuidar dos elementos de diferentes ordens que fazem a mediação entre as informações e os
leitores: materiais de leitura, instituições (bibliotecas, salas, cantos de leitura, livrarias, cafés
científicos) e influência de leitores na família, conforme descreveu Joana.
Atualmente, sua leitura é espírita, mas conta que, dos romances que leu no passado muita
coisa ficou e ainda lembra com a “alma leve” os livros e as histórias de amor que tanto a
encantaram.
5.5 ANTÔNIO: LÊ VÁRIOS JORNAIS DIARIAMENTE E GOSTA DE ESCREVER POESIAS
5.5.1 História de Vida
Antônio tem 77 anos, é separado e tem 4 (quatro) filhos. Dois trabalham na Petrobrás: um é
bacharel em Direito e o outro tem curso secundário completo e trabalha com perfuração de poços. A
filha também tem curso secundário completo e possui uma loja de chocolates em um shopping e o
filho mais novo trabalha com rede telefônica.
Conta que nasceu no meio do mato, na Floresta Amazônica, na fronteira do Amazonas com
o Acre. O local era cortado por um rio e a parte baixa era chamada de Boca do Acre. Seu pai era
cearense, veio para o Acre junto com a família na época em que existiam os “soldados da borracha”,
contratados pelo governo federal para trabalhar na extração de leite das seringueiras. Antônio
74
descreve com detalhes e emocionado o trabalho que seu pai desenvolvia: “Cortando a casca ficava
pingando um leite grosso. Colocavam tipo uma tigela, parece uma xícara de alumínio embutida na
casca da árvore e, a tardinha, voltavam na “estrada da seringa” e colocavam em um recipiente, aí
defumavam e a fumaça meio quente, pegavam uma vara, passavam sebo de qualquer animal para a
borracha não ficar grudada. A fumaça quente fazia o leite coalhar mais rapidamente e a borracha ia
fazendo aquela bola. Todo dia fazia um pouco, quando já tinha 20 ou 30 quilos, deixavam aquela
pele de borracha no sol e começavam outra. Levavam para o patrão no final de cada mês que pesava
e pagava a mercadoria”. Conta que seu pai e seu avô foram seringueiros.
Na entrevista com Antônio, e durante todo tempo que transcorreu a pesquisa, ele
demonstrou uma notável capacidade de narrar fatos significantes da sua vida que estão inseridos no
contexto da história da colonização da Amazônia, resgatando uma prática que hoje está em desuso
na sociedade que é “A Arte de Narrar”, como afirma Benjamin (1994, p.98):
As ações da experiência narrativas estão em baixa, e tudo indica que continuam caindo, até que seu valor desaparece. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo do que nunca e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo da ética sofrem transformações que antes não julgaríamos possíveis.
Com a 2ª Guerra Mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final
da 2ª Guerra Mundial, observou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de batalhas,
não mais ricos, e sim mais pobres em experiências comunicáveis. Porque não houve experiências
mais radicalmente desmoralizantes do que a experiência estratégica da guerra de trincheiras, a
experiência econômica da inflação e a experiência do corpo em fome (BENJAMIN, 1994).
Gomes (2005), no seu valioso trabalho “A Conquista do Acre”, cria uma narrativa em tudo
semelhante à do nosso narrador. Nos tempos de convivência durante a pesquisa, percebe-se como as
experiências de “soldado da borracha” e de “sindicalista”, mas sobretudo a de “poeta”, compuseram
o perfil de uma liderança que poderia ter se perdido nos desvãos da velhice abandonada e
desvalorizada.
Onde nasceu, havia uma estação de rádio dos correios, serviço que atualmente quem toma
conta é a Embratel. Eram 6 (seis) filhos. Um faleceu, 3 (três) moram no Rio, um em Brasília e
Antônio, aqui no Pará. Um dos irmãos foi nomeado pelos Correios como telegrafista em Boca do
Acre, foi transferido para a Serra da Madureira, interior do Acre, e Antônio foi junto. Até a vinda
definitiva para Belém, a vida de Antônio foi marcada por constantes mudanças de cidade. Percebe
75
pontos positivos e negativos em suas várias mudanças, e procurou compensar os negativos com a
possibilidade que tinha em experimentar novidades.
O juiz de direito de Serra da Madureira era do Rio e chamava Antônio de “traquino”, termo
que era usado para designar uma pessoa sapeca, levada. O juiz insistiu para que Antônio fosse morar
com a família dele no Rio e estudar. Seus pais tinham se separado e sua mãe foi para o Rio com seus
2 (dois) irmãos, pois tinham um tio que também morava lá. Foram nos aviões da FAB (Força Aérea
Brasileira), que transportavam famílias sem custo.
O trabalho sempre permeou a vida de Antônio. Tinha um irmão em Porto Velho. O irmão
passou um telegrama avisando que tinha uma vaga para telegrafista no governo. Pegou um avião da
FAB e foi para lá. Ficou em Guaporé (nome do atual Estado de R ondônia) e, na mesma semana, foi
nomeado telegrafista. Passou aproximadamente 5 (cinco) anos lá, se envolveu com uma mulher
casada e “se deu mal”. Conta que queriam matá-lo e saiu de lá fugido.
Foi quando soube, através de um colega, que havia vaga de telegrafista na Petrobrás, daqui
de Belém. Veio de lá em 1957 e fez o teste na mesma semana. Foi nomeado e transferido para
Manaus. Quando acabou a base de petróleo em Manaus, foi para São Luís. Depois também acabou a
de São Luís e voltou para Belém. Foi transferido para o Rio Madeira, no interior do Amazonas. Era
uma base grande com vários alojamentos, refeição e moradia de graça. Diz que construíram ao lado
da base, uma vila e o pessoal que era casado aqui arrumou outra mulher lá. Umas quando souberam,
resolveram deixar os maridos, outras preferiram ficar recebendo pensão. Casou lá mesmo, no Rio
Madeira. Quando sua mulher estava com 8 (oito) meses de gravidez, foi transferido para Belém.
Conta que todos os seus filhos nasceram aqui e que nunca mais saiu daqui.
A narrativa declara a importância do conhecimento do mundo, numa descrição das viagens
para conseguir um emprego e um lugar que se sentisse digno e orgulhoso de produzir a própria
renda, por meio de grande capacidade de empreendedorismo comercial, passando por muitas
dificuldades.
Antônio declara que já mora no Pão de Santo Antônio há 10 anos. Conta que, depois que a
esposa faleceu, ainda permaneceu na sua casa, mesmo sendo grande, pois tinha 2 (dois) pavimentos.
Os filhos foram casando e saindo. O mais velho ficou morando ao lado da sua casa e foi se
enchendo de filhos, até que disse que a casa estava pequena para a família inteira dele e foi morar
com Antônio.
76
Depois que o filho mudou-se, acabou se apaixonando pela namorada do pai. O pai conta
que “vira e mexe” o filho queria brigar com ele por causa de sua namorada: “sempre saía com ela
para bebermos uma cervejinha e quando voltava, ele queria tomar satisfações comigo”. O idoso
ainda faz uma ressalva: “aliás, não era bem minha namorada porque ela era mulher casada e eu
pedia emprestado do marido dela 2 (duas) vezes por semana”. Conta ainda que o filho se apaixonou
por ela porque ela também deu confiança e namorou com ele. Dessa feita, para não ficar ouvindo
aquela “lenga lenga” de mulher e filho, foi morar no Pão de Santo Antônio espontaneamente e, de
vez em quando eles vão visitá-lo.
Diante da nova realidade exposta, o idoso tende a ressocializar-se, reinterpretanto o
passado, a fim de estabelecer uma conexão com o presente. Complementando esse processo, Bosi
(1994) acrescenta que a verdadeira mudança é percebida no interior, no concreto, no cotidiano, pois
os abalos exteriores não modificam o essencial. Todavia, Birman (1995), também evidencia a
possibilidade de um processo de ressocialização, que tendo uma grande semelhança com a
socialização primária requer, do sujeito, uma forte identificação efetiva, para que seja possível uma
transformação da realidade.
5.5.2 Leitura e Recepção
Antônio conta que concluiu duas faculdades: a de Direito e depois a de Administração.
Trabalhava de dia e estudava a noite. Era uma rotina cansativa.
Depois que se aposentou, parou de escrever. Esporadicamente, passou a escrever poesias,
que para ele, é uma espécie de terapia. Relata que escreve quando começa a ficar estressado de estar
na Instituição. Às vezes, se sente isolado. Quando isso acontece, lembra-se de determinados
acontecimentos, episódios de novela de televisão ou outra coisa qualquer, e começa a escrever.
Sente-se mais relaxado, mais tranquilo. O processo histórico da leitura resulta de relações sociais,
que se estabelecem entre o leitor e o texto quando o lê e o autor quando o cria. Assim, o leitor e o
autor de um texto são indivíduos que interagem entre si através do texto e ambos têm uma história
de vida que influencia o processo de leitura e escrita dos textos, no caso de Antônio, são os
acontecimentos e fatos que ocorrem no seu dia a dia.
Considera ler uma atividade “gostosa”. Conta que não gosta de ler a página policial do
jornal, pois só aparece violência e desgraça. Gosta mais da parte romântica, maleável, elitizada e a
que o deixa atualizado, como o Repórter 70. A leitura, no seu pleno significado, refere-se à
77
realidade. Ela se processa sobre o conhecimento expresso por escrito mas, também, através dos
nossos sentidos, que estão expostos a diversos estímulos, cheios de cores, sabores, cheiros e formas.
Todos eles, em vários momentos, passam por nós e atingem um grau de relevância. Isso porque,
cada leitor, como Antônio, com base em suas referências sociais, dá um sentido aos textos de que se
apropria.
Explica que sempre gostou de comprar livros em exposições e feiras que acontecem até os
dias de hoje. Lá no Rio, frequentava sebos em busca de livros que as pessoas que moravam em
apartamentos pequenos doavam ou vendiam. Neles tinha de tudo: romances, poesias, ficção,
policial, etc.
Considera a leitura muito importante, pois possibilita que a pessoa se sinta viva, fique
atualizada e com vontade de ler mais. Diz também que a leitura faz o tempo correr, que é uma
companhia e evita o estresse. Observa que os idosos que vivem na Instituição, não leem nada,
passam o dia ociosos e ansiosos. Portanto, conclui, que devem ficar estressados.
A teoria da estética da recepção explora a dinâmica que se estabelece na relação entre o
leitor e o texto literário, que é essencialmente interativa. Nessa interação, tanto a obra quanto o
receptor se engajam em uma relação recursiva (MORIN, 2002) marcada por uma causalidade
circular, em que os dois elementos se influenciam e se modificam mutuamente.
Conta também que, já esqueceu de muitas leituras que fez e que isso, às vezes, o deixa um
pouco angustiado. Porém, busca sempre estar atualizado com autores e leituras que considera
recentes. Se a formulação de uma lembrança, ou seja, se o processo de construção de uma memória
é sempre resultado do tempo presente, o mesmo se pode dizer sobre a produção de esquecimento.
Ideias, projetos, experiências, desejos e propostas existem porque são lembrados e são leituras
contemporâneas daquilo que um dia foram. Aquilo que é novo só se faz reconhecer pela diferença
com o antigo, a possibilidade de interpretação de nossa condição do mundo depende da capacidade
de lembrar e por estes motivos, esquecer representa riscos: o desconhecimento, a manipulação, a
ignorância. Esquecer também representa sofrimento porque implica na ausência de uma dimensão
de tempo que é fundamental na compreensão do que somos, individual e coletivamente, conforme
declarou Antônio. Finalmente, quanto à questão da memória, cumpre esclarecer que, Le Goff (2003)
ressalta que, mesmo para além do campo da história e da antropologia, a memória diz respeito tanto
à ordenação do passado, de seus vestígios, quanto a uma releitura contemporânea dos mesmos e está
irremediavelmente ligada a uma forma narrativa que, diante de uma ausência – ou não existência –
78
torna-se o modo de reviver. Por isso o esquecimento que também faz parte da memória implica,
mesmo em termos neurológicos, num trabalho de reelaboração.
Por outro lado, Ferreira (2003) discorre que o esquecimento seria responsável pela
continuidade, pela memória e até pela lembrança. É o esquecimento que vem quebrar uma certa
continuidade na ordem mental, sendo responsável pela criação de uma outra ordem. Coloca aí algo
que é fundamental: a noção de quebra, de hiato, para futuras e renovadas retomadas e reconstruções,
algo como a morte provisória que se faria seguir da ressurreição. Lapso, hiato, fratura,
ressurgimento têm a ver com a interrupção de um projeto, tanto de vida e de ação como de narrar.
Formam uma espécie de morte momentânea, ritualizada, que daria lugar ao fluxo da vida.
Olha para cima da mesa e aponta que só vieram 2 (dois) jornais, mas que normalmente lê 3
(três) ou 4 (quatro) jornais diariamente. Não lê tudo, lê apenas as partes que considera mais
importantes e interessantes. Diz que sua filha, sempre lhe manda revistas como: Veja, Isto é, Marie
Claire e outras: “eu leio tudo isso e faço aquela farofa”.
Relata também que a televisão tem boas novelas. Cita a “Cordel Encantado”, como um
exemplo, pois relembra os tempos antigos e a vida do sertão nordestino. Assistia novela pelo rádio
através da Rádio Tupi. Lembra que transmitia até cópia de novelas mexicanas, adaptadas aos velhos
costumes aqui do Brasil, como a “Direito de Nascer”. Relembra com detalhes que havia um
noticiário às 18 horas, e a novela às 19 horas: “era gostoso, mas é melhor olhar, é claro”. A estética
da recepção, através da estrutura apelativa, coloca a obra de arte como um permanente processo,
como relatou Antônio quando se refere às novelas da atualidade que relembram o passado. A obra,
no caso a novela, é apreendida e interpretada pelo receptor que a modifica constantemente segundo
sua percepção, seu referencial, sua visão de mundo, suas experiências prévias, sua intencionalidade.
Uma obra de arte, assim, não é uma reprodução objetiva do mundo, mas é uma das abordagens
possíveis para a realidade no contexto da recepção.
5.5.3 Leitura e Memória
Como já foi mencionado, ao decorrer da entrevista, Antônio contou diversas vezes que
sempre gostou muito de ler. Lembra que o hábito da leitura o beneficiou inclusive na sua vida
profissional. Quando começou a trabalhar “comecei debaixo como quase todo cristão”. Foi chefe de
um setor durante 9 (nove) anos, e só saiu quando se aposentou. Trabalhou muito tempo com
79
telecomunicação (rádio técnico, rádio telegrafista, auxiliar de escritório), na Petrobrás. O seu chefe
ficava no Rio. Uma das suas atividades era elaborar o relatório do setor durante o mês. Lembra que
seu chefe gostava tanto do seu tipo de redação que passou a mandar material que era de
responsabilidade dele como, expediente para diretores estrangeiros que estavam em Londres, Paris,
Estados Unidos, etc, para Antônio ler e fazer uma espécie de minuta. Depois de um tempo, ele já
queria que Antônio respondesse totalmente e completamente o expediente como se fosse ele:
“quando chegava lá no Rio já ia bem datilografado (eu escrevia bem a máquina), ele xerocava o
material que eu mandava e assinava como se fosse ele que tivesse feito”. Conta com vaidade todos
estes fatos, dizendo que isto sempre lhe fez bem, pois entendia que era útil e valorizado. Diz que
deve muito tudo isso a leitura.
A crença em si mesmo e a força de vontade fizeram dele um homem resistente a tudo e a
todos e hoje exibe esta posição confortável, que incorpora a ideia de sucesso na vida e na saúde. No
entanto, o vínculo simbólico com o trabalho permanece através da identidade de trabalhador que se
mantém como referência de identidade, pois não se rompem os modelos de identificação
preservados pela memória.
Leu muito Carlos Drumond de Andrade. Tinha também um livro de Gregório de Matos
Guerra, que lamenta ter emprestado e não o terem devolvido. Conta que gostava do estilo do escritor
pernambucano debochado, só escrevia coisas consideradas imorais, principalmente naquele tempo
dos seus pais e dos seus avós. O escritor era apelidado de “Boca Maldita” e também declamava
algumas poesias.
Considera que o trabalho na Petrobrás incentivou o seu hábito e gosto por leitura, pois tinha
de ler todos os expedientes para responder. Dessa forma, criou vontade de voltar a estudar. Fez um
teste para estudar no Paes de Carvalho, ginasial e científico. Nessa época, foi criado o Artigo 99
pelo MEC, onde poderia fazer o 2º grau através de 2 (dois) testes com 7 (sete) matérias. Passou em 4
(quatro) matérias e depois nas outras 3 (três). Fez cursinho pré-vestibular no Colégio Santo Antônio.
Estudou literatura com o Paes Loureiro e Matemática com o Manoel Leite. Ingressou no curso de
Direito e depois também terminou o de Administração.
Diz que o passado era melhor do que os dias de hoje. As pessoas viviam sem violência.
Considera a televisão uma das principais responsáveis, pois ela banalizou a violência e outras
práticas consideradas imorais e sem ética: “as pessoas que não tem discernimento olham e acabam
absorvendo e se envolvendo”.
80
Na narrativa de Antônio, pode-se perceber claramente o que Josso (2004) descreve como
três idades distintas na vida: a primeira idade é dedicada ao aprendizado e a preparação para a vida
ativa e aos futuros papéis familiar, na segunda idade da vida dedica-se à família, aos filhos e ao
trabalho para mantê-los; na terceira fase da vida finalmente, pode-se dedicar a si mesmo e
enriquecer interiormente, para desenvolver melhor as próprias capacidades, em um trabalho do qual
nunca se aposentará.
5.6 ANÁLISE DOS RELATOS
Durante a entrevista com os idosos pude perceber que todos procuram vislumbrar um
amanhã melhor e tentam buscar satisfação em ser velho e, principalmente, encontrar consolo por
estar ali, na Instituição. Enfrentar suas perdas exige o remanejamento de várias prioridades e
objetivos. A necessidade de reavaliar a vida e o que deseja conquistar a partir do presente, que é
uma incógnita, se manifestou várias vezes nas narrativas. Todos tem a certeza de quem foram, mas
ainda procuram compreender quem são após a conscientização de sua velhice e, na maioria dos
casos, do abandono da família. Baltes (1995, p.137) afirma que “a arte da vida na velhice consiste
em uma busca criativa por um novo território, muitas vezes menor, mas que esteja cheio de uma
intensidade semelhante à experimentada no passado”.
O passado é não só, a parte mais longa de suas vidas, mas também a mais rica, na qual
encontram a própria identidade. O presente, entretanto, é vivido de maneira completa e com
entusiasmo mesmo porque eles não se sentem idosos, e, sobretudo não querem ser considerados
como tais. Em geral, as mulheres tratam de argumentos ligados à esfera pessoal, afetiva e ao
cotidiano, enquanto os homens abordam temas mais impessoais, concretos, relativos a eventos
passados e presentes.
Na prática cotidiana dos idosos, percebe-se que a religiosidade desempenha um papel de
proteção às pessoas que sofrem de angústia e de depressão espiritual. Acredita-se que a religiosidade
acalme o espírito, e que a crença em uma divindade gera esperança de felicidade. A espiritualidade e
religiosidade são fontes benéficas para a saúde do corpo e da alma. Além disso, a crença religiosa
parece auxiliá-los a encarar os desafios e debilidades da velhice, e também a pensar sobre a morte.
Este modo de ser no mundo, na forma de cuidado, permite ao ser humano viver a
experiência fundamental do valor, daquilo que tem importância e definitivamente conta. Não do
81
valor utilitarista, só para o seu uso, mas do valor intrínseco às coisas. A partir desse valor
substantivo emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade, de reciprocidade e de
complementariedade. O lamento pelas oportunidades inexistentes ou perdidas de estudar, a infância
difícil porém lembrada com carinho, a construção criativa de estratégias de sobrevivência, o papel
das avós no desenvolvimento das habilidades de sonhar e lutar, a superação das ansiedades e
tristezas somatizadas, a descoberta dos direitos de cidadania e de empoderamento a partir da
convivência em grupo, constituem os elementos fundamentais que podem ser extraídos destas
narrativas. Quando Bosi (1999) entrevistou seus “velhinhos” em Memória e Sociedade mostrou
como aquelas pessoas tentavam dar coerência as suas experiências, como selecionavam aquilo que
era lembrado e aquilo que era esquecido, como reescreviam o passado de modo a estabelecer fios de
continuidade e causalidade que são antes construções, buscando justificar trajetórias inteiras de vida.
Na narrativa dos idosos, também constatou-se a influência do contexto social e familiar nas
decisões acerca da carreira profissional. Normalmente, em famílias que se constituíram na primeira
metade do século passado e provenientes de uma classe social baixa, os filhos mais velhos não
tinham muitas oportunidades de se dedicarem aos estudos. Começavam a trabalhar cedo para ajudar
no sustento da casa, e as mulheres abandonavam seus trabalhos para se dedicarem à criação de filhos
e ao cuidado da casa e do marido. Outro agravante diz respeito às falas dos homens, travadas por
constantes mudanças e pouca permanência nas cidades onde moraram.
Os estudos de Josso (2004) afirmam que o idoso pode encontrar satisfação e realização em
ver os filhos bem sucedidos, enquanto profissionais e pais. A criação e o cuidado dos filhos podem
ser experimentados como manifestação da geratividade que traz satisfação permanente, já que se
estende por vários anos. O orgulho em ver os filhos e netos construírem suas carreiras profissionais
e conquistarem seus sonhos, geralmente, gera profunda satisfação, promove envolvimento vital e
pode compensar as frustações experimentadas durante a vida.
Algumas narrativas são marcadas por uma lacuna na vida por ocasião da viuvez. Muitas
vezes, a perda do cônjuge é vivenciada pelo idoso como perda de um cúmplice e de parte de si
mesmo. As representações que o sujeito faz das pessoas afetivamente próximas e de si mesmo
contribuem para o sentido de continuidade individual. Consequentemente, a morte do cônjuge pode
abalar esse senso de continuidade de vida. Adicionalmente, a falta de um ambiente que lhe
proporcione envolvimento social e a falta de relacionamento e proximidade com os filhos, netos e
bisnetos parecem também contribuir para um isolamento social e estagnação.
82
Outra dificuldade demonstrada durante a entrevista diz respeito à construção de
relacionamentos de intimidade na velhice. A maioria dos idosos entrevistados relataram que não têm
conseguido preservar ou reviver laços de companheirismo, de amor e de amizade. Relacionamentos
sociais de amizade são muito importantes para o envolvimento vital do indivíduo na velhice,
principalmente aqueles que estão presentes em sua vida há muito tempo. Bacelar (2002) assevera
que amizades antigas dão ao idoso sensação de ser escutado e compreendido por aqueles que
compartilharam juntos momentos importantes.
Face à progressiva diminuição sensório-motora que normalmente ocorre na velhice, muitos
idosos tendem a experimentar o elemento distônico da inferioridade. A forma de superá-lo é re-
experimentando o senso de competência que pode reaparecer sob a forma de aprendizado e
desenvolvimento de novas capacidades. Dessa forma, os idosos entrevistados têm usado seu tempo
livre para aprender e desenvolver aptidões que antes não possuía, como escrever poesias, ler outros
tipos de livros que antes não se interessavam ou, até mesmo se aprofundar em leituras que no
passado não havia tempo para o deleite. Portanto, além de manter um forte senso de competência,
todos foram unânimes em dizer que a leitura os permite ficar atualizados dos acontecimentos do
mundo, além de ser uma importante terapia no momento de isolamento.
Manguel (1997) reconhece a leitura como algo cumulativo, que avança em progressão
geométrica, onde cada nova leitura se baseia no que a pessoa leu antes. Dessa maneira, a leitura,
muitas vezes, não segue uma sequência convencional do tempo. Por exemplo, a leitura em voz alta,
de um determinado texto, não será a mesma leitura feita em momentos solitários. Nesse caso, será
uma releitura do texto, uma recordação a qual o leitor compara com outras leituras, trazendo à tona
as sua emoções.
Vale ressaltar que a maioria dos idosos relatou que não tinham acesso a livros em casa, mas
sim em bibliotecas, sebos ou durante viagens. Durante muito tempo, em várias partes do mundo, o
livro integrou o grupo dos objetos de luxo porque eram limitados e, consequentemente, caros. O
acesso às bibliotecas também eram raridade, pois as maiores e melhores estavam situadas nos
mosteiros, que eram locais fechados para o público. Por isso, em muitas famílias, os livros eram
lidos em voz alta. Esse tipo de leitura em família tinha por finalidade a instrução e o entretenimento.
Geralmente eram feitas na hora do jantar, na tentativa de realçá-las ao paladar, como diversão
criativa. Chartier (1996), ao estudar as categorias livro e leitura, buscou examinar as condições
83
possíveis para uma história das práticas de leitura. Para ele, o ponto de partida enraíza-se nas
aquisições e, também, nos limites do que tem sido até hoje, a história do impresso.
Outro ponto a destacar em relação a leitura e aos idosos entrevistados é que, a maioria,
destacou e relacionou seu sucesso profissional ao hábito de leitura que adquiriu durante a sua vida.
As habilidades de ler e de escrever são imprescindíveis para a organização política, para a
mobilização e comunicação de uma sociedade. No entanto, é evidente que só se torna leitor aquele
que tem a oportunidade de ler, que tem acesso ao objeto de leitura e o utiliza. Assim, a leitura, com
toda a sua história, oferece às pessoas, um caminho para a educação e para o desenvolvimento da
conscientização da sociedade, inclusive do crescimento profissional. À proporção que as entrevistas
revelam vidas imersas em trabalho, estas se mostram como indutoras à formação de profissionais em
serviço. Este é o resultado de uma sociedade que não prepara seus trabalhadores e o aprendizado é
feito por necessidade de sobrevivência. O que não permite ao trabalhador, a construção de uma
ocupação em que desempenhos e competências sejam um processo de ensaios e erros.
Com isso, verificamos que apesar de tantas dificuldades vivenciadas pelos idosos
pesquisados, eles sempre buscaram soluções empreendedoras para tirarem seu sustento. Embora
reconhecendo que nem sempre um diploma, ou certificado venha garantir de imediato maiores
ganhos econômicos, não podendo negar a sua representação enquanto elemento que, de certa forma,
acarreta prestígio. Sendo assim, buscam garantir na leitura uma forma de se atualizar no seu tempo e
manter um aprendizado continuado, além de considerarem o ato de ler uma forma de libertação,
através do qual as pessoas poderão tomar consciência de seus direitos.
Por fim, observando as entrevistas, detectou-se que as mulheres liam romances e livros
espíritas, enquanto que os homens ocultismo, esoterismo, ficção científica e escrevem poesias. De
acordo com Manguel (1997, p.29), “livros determinados emprestam certas características a leitores
determinados”. Para completar esse argumento Certeau (1972, p.77) afirma que, “ao ler uma
determinada obra o leitor depara-se com os nós do autor, que remete a uma convenção. Pois, esses
nós é um sujeito plural que sustenta o discurso e se apropria da linguagem, pelo fato de ali ser posto
como locutor”. Assim, implícita na posse de um livro, está a história das leituras anteriores do livro,
ou seja, cada novo leitor é afetado pelo que imagina que o livro foi, em mãos anteriores. O lugar do
livro e o momento em que a pessoa está vivendo também influência na escolha do material de
leitura, pois estes são representações de um lugar, e de um tempo.
84
Na tentativa de verificar como os idosos estão praticando a sua capacidade de leitura, é que
busquei os seus relatos para saber que tipo de informação eles carregam na memória. Obtive como
resposta que eles leem os mais diversos tipos de materiais inclusive, aqueles voltados para a questão
espiritual até os que falam de ocultismo e esoterismo, como já relatado acima. Comparando as
leituras anteriores com as leituras atuais, as mulheres não citaram mais o romance como uma de suas
leituras, porém os homens continuam lendo basicamente as mesmas leituras do passado. As pessoas
escolhem leituras com as quais elas se identificam, porque procuram nelas algo que as caracterizem
em um determinado momento de suas vidas. Por isso, alguns tipos de leitura perderam espaço para
outras, que se aproximam mais do momento em que cada um está vivendo.
Outro aspecto observado corresponde ao fato de que tanto nas leituras anteriores quanto nas
atuais, a Bíblia está entre os materiais mais lidos, principalmente pelos homens. Isso leva a inferir
que a religião tem funcionado como incentivador da leitura, embora com finalidades diferentes. A
leitura da Bíblia também pode estar relacionada ao fato de que ela funciona como um tipo de guia
ético-espiritual, como uma fonte de ensinamentos religiosos, de caráter fundamental para o
estabelecimento da moral humana. Além disso, a Bíblia também é um documento de caráter
histórico que expressa uma cultura milenar, constituindo-se numa fonte de sabedoria e ensinamento
até mesmo para os não religiosos.
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência com grupo de idosos, além de se constituir em um espaço de exercício do
pensamento, é também a possibilidade de entrar em contato com a condição de finitude a que todos
são sujeitos.
A morte continua indecifrável e incontornável, apesar de todos os avanços das ciências e
das demais tentativas de dar-lhe um contorno e uma inteligibilidade aceitável, como a religião. Os
grupos da terceira idade se constituem ambiguamente em relação ao espectro da morte: por um lado,
fornecem o amparo e as presenças dos outros, confirmando a possibilidade da manutenção e do
prolongamento da vida. Por outro, na medida em que aqueles que estão ao lado, sucumbem, vem à
tona a constatação de que ela continua em sua insidiosa ronda.
Como um objeto complexo, o envelhecimento humano se inscreve em diferentes planos
conectados entre si. A compressão do tempo e do espaço, como plano social de fundo, promove
outra inscrição do homem no mundo contemporâneo, cujas consequências ressoam nos modos de
ver e de experienciar a finitude. A aceleração do ritmo da vida e a ampliação dos espaços sociais
também afetam a velhice, que passa a ser vista e tratada como uma fase que pode receber algum
aditivo para incrementar a circulação dos idosos. A ciência e demais produções discursivas, somadas
às políticas públicas, ao criarem a categoria denominada idoso ou terceira idade, promovem um
conhecimento racional e instrumental do qual o mercado se apropria, para produzir demandas
apresentadas por essa população. Até mesmo a memória e a narrativa na velhice, tidas como bens
maiores dessa idade, se encontram diretamente afetadas por todos esses atravessamentos
contemporâneos, os quais fomentam uma relação diferenciada do homem com o passado, com a
experiência narrativa e com a (im) possibilidade de se ter interlocutores no exercício de rememorar e
transmitir um legado cultural.
O trabalho reflexivo da memória tem sido associado ao movimento expansivo para
extensão das lembranças aos outros. A tradição oral sempre desempenhou um papel significativo na
história da humanidade. Na contemporaneidade, faz-se parte de uma sociedade letrada, complexa,
em que a escrita passou a exercer o papel de guardiã dos registros do passado. É, pois, através da
leitura que é possível reavivar a memória, mantendo vivo um grande acervo do saber. A leitura,
assim, se configura como atividade que dá significado ao mundo e por isso pode ser compreendida
como fonte do saber, do prazer, da evasão, do refúgio, de formação do imaginário, dentre outros.
86
A memória, dessa forma, é a capacidade de registrar e evocar informações diversas. Por
isso, ela necessita que cada indivíduo faça uma leitura dos acontecimentos do passado, a fim de que
possa entender o presente e se preparar para o futuro. Essa leitura não deve ser feita apenas com
base nos gestos, nas situações vivenciadas no dia a dia, mas, também nos livros e demais materiais e
objetos de registro da nossa memória, para que perdure por gerações. É a memória que vai fornecer
a base para todos os conhecimentos, habilidades, sonhos e desejos.
Toda memória se estrutura em identidades de grupos. Essa argumentação de Halbwachs
(2004) remete aos sujeitos da pesquisa que tiveram a prática da leitura durante suas vidas, o que
facilitou a trajetória pelos caminhos da leitura. Essa prática, por ter sido habitual, os idosos
entrevistados desenvolveram a memória-hábito da leitura, o que certamente contribuiu para que se
tornassem leitores até os dias de hoje.
O processo histórico da leitura resulta das relações sociais e do registro da memória. Para a
continuação desse processo faz-se necessário um constante exercício da leitura, a fim de garantir às
gerações futuras, o conhecimento do passado para o entendimento do presente. Caso contrário, a
desinformação da sociedade será intensificada, abrindo portas para o surgimento e manutenção de
diversos tipos de preconceitos, inclusive, contra a pessoa idosa.
Ao abordar histórias de vida de pessoas idosas, observa-se que o comportamento dos
entrevistados aproxima-se muito do que Halbwachs (2004) comentou em seus estudos, a respeito de
que um indivíduo, quando testemunha oralmente o seu passado, formula a própria narrativa que,
dependendo da reação do ouvinte, funciona como um processo de adaptação, confronto ou
acomodação. Desse modo, no momento em que relataram suas histórias, os sujeitos procuraram uma
forma de justificar e confirmar sua formação leitora.
Constata-se também, que as memórias aqui apresentadas correspondem àquelas que
marcaram de forma significativa e afetiva, a vida dos idosos e das idosas. Por isso, cada fragmento
de memória comunicado contribui para a reconstrução da história da leitura, pois quando o passado
é reconstruído, realiza-se uma releitura, já que não é possível revivê-lo exatamente como o foi antes.
Mais adiante, com maiores leituras e exemplos práticos no convívio dos idosos do Pão de
Santo Antônio, percebe-se que os mais sábios são os que põem em prática o que acreditam e o que
aprendem. Os mais sábios são os que aceitam suas idades, limitações e aproveitam o que há de
melhor no envelhecimento para alcançar maior qualidade de vida.
87
Dessa forma, experienciar não é somente viver, e sim refletir sobre essa vivência. É
desvelado o fato de que, quando há reflexão sobre aquilo que é vivido, há aprendizagem, seja ela
informal ou formal, seja ela na escola ou na vida. Experiências de vida estão mescladas com a
aprendizagem significativa. Portanto, há pessoas que experienciam muito, que aprendem muito, mas
não são consideradas sábias. O que falta então para alcançar a sabedoria? Conclui-se nessa
elaboração de conhecimento, que a ação é primordial nesse processo. De que adiantam tantas
experiências, tantas aprendizagens, se nada é praticado? O que levaria um senhor de 80 anos a saber,
conhecer e ter vivido tanto, se não age mais e se não encontra ou procura espaços para dividir
tamanha aprendizagem? Falta a ação; falta a prática.
E foi assim, em tantas caminhadas, que a sabedoria começou a ser definida e entendida.
Sabedoria, então, são as experiências, a aprendizagem significativa e a ação. Iniciou-se um momento
de reflexão e de aprendizagens significativas. A pesquisa já fazia sentido. Os livros, os diversos
autores, filósofos, as memórias das leituras, os sebos, as bibliotecas ganhavam voz quando os idosos
começavam a falar e a relacioná-los com a sua trajetória de vida.
Eles mostravam o caminho da sabedoria. O sentido maior da aprendizagem se encontra
neles. O campo começava a chamar. E aí percebia o valor da minha pesquisa, o valor das palavras
do orientador “você não quer falar de idosos? Então não desista, vá até o fim”. Via com nitidez a
própria definição de aprendizagem significativa se encaixar com a minha experiência.
Agradeço aos inúmeros filósofos, educadores, cientistas, autores, artigos e livros lidos antes
da minha entrada no campo de pesquisa. Encontrei a fala de cada um deles sendo descrita e falada
pelos meus sujeitos colaboradores. Diferentemente de muitos que vão para o campo e descobrem
outra realidade, eu via ante a mim, cada um dos colaboradores falar o que eu havia descoberto por
meio de outrem. Parecia que muitas vezes conseguia colocar as aspas e dizer de acordo com o
fulano de tal, ano tal, meu sujeito colaborador também compartilha desse conceito, dessa ideia,
desse olhar. Tudo fazia sentido, tudo estava relacionado.
As histórias de vida de Josso (2004), a lembrança dos “velhinhos” de Bosi (1994), a forma
de narrar e contar histórias de Benjamin (1987), a relação entre a modernidade que contribui para
apagar estes rastros deixados pelos nossos avós e que tanto discutimos nas nossas aulas de
Modernidade e Pós Modernidade sempre embalados por Canclini (2005) e Hall (2000), as fases do
envelhecimento e os medos citados pelos idosos que relacionei perfeitamente com os estudos de
Beauvoir (1990) e, claro, não poderia deixar de citar os estudos de Jauss (1979) e de Lajolo (2000)
88
que tiveram tamanha importância para reatualizar e contextualizar as entrevistas dos idosos e,
principalmente, a minha forma de interpretar e receber estas informações. Eu me deliciava com suas
falas. Era como se uma voz gritasse dentro de mim dizendo “eu já li isso. É verdade”. A teoria era
então comprovada pela prática.
Percebe-se o valor da etnografia dentro de uma pesquisa. Digo que fui afetada e
transformada por meio do meu estudo. As histórias de vida que ouvi e experienciei já fazem parte de
mim. Uma mescla da minha história de vida antes da minha pesquisa e, agora, diz o que eu
realmente sou: uma pesquisadora que teve o privilégio de ouvir a sabedoria falar por meio das
histórias de vida. Meus ouvidos sensíveis às histórias de vida, mesmo após o término da pesquisa,
não conseguem mais se comportar como antes. Minha fala usa vocabulário novo, meu olhar busca
outro foco, encontro-me muitas vezes dividindo tudo o que aprendi. Um livro lido, um filme
assistido, uma história compartilhada, nada deixa de passar pelo filtro da minha experiência.
Compreende-se que o exercício que fiz durante esses encontros e horas de convivência,
resgatou as memórias situadas nas lembranças e possibilitaram a (re)construção de um futuro
melhor. O passado sendo escutado e resgatado, localizado dentro de um presente e possibilitando a
vinda de um futuro de maior qualidade; esse foi um dos objetivos alcançados na pesquisa. E, assim,
permiti que as histórias deles se mesclassem com a minha história, sempre mediadas pelos textos
apresentados no início de cada cena.
Assim, ao analisar as experiências vividas e as memórias de leituras dos sujeitos
colaboradores, pude me reconhecer como portadora de uma história de vida. E foi com as narrativas
advindas deles que puderam se autobiografizar como autores e protagonistas de suas histórias.
Essa experiência possibilitou-lhes a encontrar o sabor da sabedoria em suas próprias vidas.
E assim me movimentei em busca de novos conhecimentos e saberes. E foi assim que fui me
deparando com os objetivos desta pesquisa.
Desconstruiu-se a ideia de que seres sábios são seres excepcionais, dignos somente de
acertos; seres perfeitos em ações e pensamentos. E fortaleci a crença de que seres sábios são aqueles
que experienciam, aprendem e agem de acordo com sua consciência.
Vejo o valor da minha pesquisa de poder resgatar uma parcela da população que
preconceituosamente é desvalorizada: a terceira idade e, principalmente àquelas que vivem em
regime asilar, em instituições de caridade. É muitas vezes tratada como quem não aprende ou que
tem lentidão em aprender, e que já não possui utilidade perante a sociedade, incluindo por seus
89
familiares. Os que praticam a exclusão deveriam falar menos e ouvir mais e se preparar para
aprender tanto quanto a ensinar.
O maior beneficiado desta pesquisa foi o próprio pesquisador. Senti-me transformada,
renovada. Achei-me sendo capaz de envelhecer ainda nos meus 33 anos. E digo, com todo orgulho,
que apreciei o valor do envelhecimento. E, para descobrir tudo isso, perpassei meus objetivos
específicos, identificando a história de vida de idosos que moram na Pia União do Pão de Santo
Antônio, resgatando suas experiências e memória de leitura, partindo dos princípios da teoria da
estética da recepção.
Descubro que o saber não vem dos conteúdos, o saber vem da vida. O campo foi um back
vocal dos autores que me acompanharam nesses dois anos de estudo. Encontrei a sabedoria. Carrego
05 (cinco) experiências de vida e histórias de leitura. Elas têm um lugar especial e serão mexidas,
transformadas, completadas, avaliadas e aceitas até enquanto eu existir.
90
REFERÊNCIAS
ABREU, V. P. S. Memória e Velhice. Campinas, SP, 2000. Tese de Mestrado em Gerontologia pela UNICAMP, Campinas, 2001 ACEVEDO, Claudia, NOHARA, Jouliana. Monografia no curso de administração: guia completo de conteúdo e forma: inclui normas atualizadas da ABNT, TCC, TGI, trabalhos de estágio, MBA, dissertações, teses. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. AGUIAR, Vera Teixeira de. O Leitor Competente à luz da Teoria Literária. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: 1996. ARDELT, M. (2000). Intellectual versus wisdom – related knowledge: The case for a different kind of learning in the later years of life. Educational gerontology. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Hannah Arendt; tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. Introdução Celso Lafer. São Paulo, Perspectiva, 1972. BACELAR, R. O lugar da avó. Recife: Fasa, 2002. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. BALTES, P.B. Psicologia do envelhecimento: temas relacionados na perspectiva do curso de vida. Campinas, SP: Papirus, 1995. BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 17 ed. São Paulo: Cultrix, 1997. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. BASSIT, A. Histórias de Mulheres: reflexões sobre a maturidade e a velhice. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. BEAUVOIR, Simone. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Monteiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução de Maria Amélia Cruz et al. Lisboa: Relógio D´Água, 1992. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v.1).
91
BERG, Ralph. Na velhice, capacidade intelectual mais aguda. 2. ed. Rio de Janeiro, 1979. BIRMAN, J. Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: UnATI/UERJ, 1995. BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura – a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 3 ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000. BRITTO DA MOTTA, A. A Juvenilização das Idades. Trabalho apresentado no 13. Encontro da Redor, Recife, nov. 2006. BRUYNE, P; HERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. Dinâmica da pesquisa em ciências sociais: os pólos da prática metodológica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. BUENO, B.O. O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de professores: A questão da subjetividade. Educação e Pesquisa, 2002. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, Desiguais e Desconectados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel. A escrita da história, 1972. CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. CÍCERO, M.T. A velhice saudável. São Paulo: Escala, 2006. DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Ed. Edusp, 1999. DOURADO, M. C. Há menos de mim hoje do que havia ontem: demência e subjetividade. Dissertação de Mestrado não publicada. Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2000. DUBOIS-DUMÉE, J.P. Envelhecer sem ficar velho; a aventura espiritual. São Paulo: Paulinas, 1999.
92
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 ESCARPIT, Robert. Sociologia da Leitura. Almedina: Coimbra, 1969. FENTRESS, J.; WICKHAM, C. Memória social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Teorema, 1992. FERRARA, Lucrécia D´Aléssio. Leitura sem Palavras. 5. ed. São Paulo: Ática, 2007. FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. FREUD, Sigmund. A dissolução do complexo de Édipo (1924). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: IMAGO, 2006. v. XIX, GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. da Unesp, 1991. GOMES, R.P. A conquista do Acre. 2. ed. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2005. GONZÁLEZ REY, F. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Thomson, 2005. GREEN, C. R. Memória turbinada: Oito passos para sua memória entrar em boa forma. Rio de Janeiro: Campus, 2000. GUIMARÃES, I.G. Quando escrever é o problema: representações sociais de familiares sobre saúde mental no envelhecimento e os desafios impostos pela demência. Dissertação de Mestrado não publicada. Universidade Brasília: Brasília, 2005. GUIMARÃES, S.P. & CAMPOS, P.H.F. Norma social violenta: um estudo da representação social da violência em adolescente. Brasília, 2007. HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo. A Ideologia da Velhice. São Paulo: Cortez, 1986. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
93
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. HILLMAN, J. A força do caráter. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. IBGE (2000). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/idoso/idoso_no_mundo.html>. Acesso em: 10 fev. 2010. ISER, Wolfgang. O Ato de Leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução: Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996. JAUSS, Hans Robert. O Prazer Estético e as Experiências Fundamentais da Poiesis, Aesthesis e Katharsis. In: LIMA, Luis (org.). A Literatura e o Leitor – textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária. São Paulo: Ática, 1994. JODELET, D. Representações Sociais: Domínio em Expansão. Em D. Jodelet (Org.), As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2001. JOSSO, M-C. Experiências de vida e formação. (J. Claudino e J. Ferreira, trad.). São Paulo: Cortez, 2004. LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. LAJOLO, Marisa. Do Mundo da Leitura para a Leitura do Mundo. 6 ed. São Paulo: Ática, 2000. LANE, S. T. M. Uso e Abusos do conceito de Representação Social. In: Spink, M. J. (org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1993. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5 ed. Campinas: Unicamp, 2003. LEZAK, M. D. Neuropsychological Assessment. New York: Oxford University Press, 1995. LOBO, Luíza. “Estética da Recepção” em: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis, Vozes, 1985. LOWENTHAL, David. Como Conhecemos o Passado. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da USP. São Paulo, n. 17, 1998.
94
LYONS, Martyn. A Palavra Impressa: histórias de leitura no Século XIX. Tradução de Cyana Leahy. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999. LUFT, Lya. As Parceiras. Rio de Janeiro: Record, 2003. LUFT, Lya. Perdas & ganhos. 31. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. MAGALHÃES, Dirceu. A invenção social da velhice. Rio de Janeiro: Editora Papagaio, 1989. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MANNONI, Maud. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003. MARTINS, Iris Mesquita. Felicidade na velhice. São Paulo: Paulinas, 2003. MEDRADO, B. D. Caindo prá idade: A vivência da velhice em um contexto rural nordestino. Dissertação de mestrado não publicada. Curso de Psicologia. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1994. MEDRADO, B. D. O idoso e a representação de si. Revista de Psicologia, São Paulo, v. 2, maio1996. MESSY. Jack. A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice. 2. ed. SãoPaulo: ALEPH, 1999. MINAYO, Maria Cecília Souza (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 18 ed. Petrópolis: Vozes, 2001. MINAYO, Maria Cecília Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10 ed. São Paulo: HUCITEC, 2007. MORIN, Edgar. Complexidade e ética da solidariedade. In: CASTRO, G. (Org.). Porto Alegre: Sulina, 1997 MORIN, Edgar. A Religação dos Saberes: o desafio do século XXI. 2 ed. São Paulo: Bertrand, 2002. MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise (A. Cabral, Trad). Rio de Janeiro: Zahar, 1978. MOSCOVICI, Serge. On Social Representation. Em J.P. Forgas (Org.), Social Cognition: Perspectives on everyday understanding. London: Academic Press, 1981.
95
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. (P.A. Guareschi, Trad.). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005. NERI, Anita Liberalesso. Qualidade de Vida no Adulto Maduro: Interpretações Teóricas e Evidências de Pesquisa. Em, Qualidade de Vida e Idade Madura. Campinas: Papirus, 1993. NERI, Anita Liberalesso e DEBERT, Guita Grin.(orgs). Velhice e Sociedade. Campinas: Papirus, 1999. NERI, Anita Liberalesso (org). Desenvolvimento e Envelhecimento: perspectivas biológicas, psicológicas e sociológicas. Campinas, SP: Papirus, 2001. NERI, Anita Liberalesso. Teorias psicológicas do envelhecimento: percurso histórico e teorias atuais. In: FREITAS, Viana et al. Tratado de geriatria e gerontologia. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 2006. ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. OSÓRIO, L. C. Família Hoje. Porto Alegre: Artmed, 1996. PAPALÉO NETTO, Matheus. Gerontologia: a velhice e o envelhecimento em visão globalizada. São Paulo: Atheneu, 2002. PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. RUSHEL, A. E. & CASTRO, O. P. A intergeracionalidade na dinâmica das relações de poder familiar. In O. P. Castro (Org.) Velhice que idade é esta? Uma construção psicossocial do envelhecimento. Porto Alegre: Síntese, 1998. SANTOS, M. F. S. Identidade e Aposentadoria. São Paulo: Pedagógica e Universitária, 1990. SARTRE, J. P. As Palavras (tradução de J. Guinsburg). 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964. SOUZA SANTOS, Maria de Fátima de. Identidade e Aposentadoria. São Paulo: EPU, 1990. TEIXEIRA, M.C.T.V., SCHULZE, C.M.N. & CAMARGO, B.V. Representações sociais sobre a saúde na velhice: um diagnóstico psicossocial na rede básica de saúde. Rio de Janeiro, 2002. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. VASCONCELOS, G. Memórias no plural. Fortaleza: lcr, 2001.
96
XAVIER, G.F. Memória: Correlatos Anátomo-Funcionais. In: NITRINI, R.; CARAMELLI, P.; MANSUR, L.L. Neuropsicologia: Das Bases Anatômicas à Reabilitação. Clínica Neurológica do Hospital das Clínica – FMUSP. São Paulo, 1996. WEINECK, J. Parte VI. Idade e esporte. In: WEINECK, J. Biologia do Esporte. Tradução Anita Viviani. São Paulo: Manole, 1991. ZILBERMAN, Regina. A Leitura na Escola. In: ZILBERMAN, Regina (org). Leitura em crise na Escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989. ZILBERMAN, Regina. Fim dos Livros, Fim dos Leitores? São Paulo: Senac, 2001. WEINECK, J. Parte VI. Idade e esporte. In: WEINECK, J. Biologia do Esporte. Tradução Anita Viviani. São Paulo: Manole, 1991.
97
APÊNDICES
APÊNDICE I: Roteiro para Entrevista – Pão de Santo Antônio
Identificação:
Nome
Idade
Profissão
Há quanto tempo encontra-se no Pão de Santo Antônio
Possui família? A família visita o idoso com frequência?
1. Como e quando começou a se interessar pela leitura?
2. Que tipo de leitura costumava fazer?
3. Quais os escritores favoritos? Por quê?
4. Como tinha acesso aos livros? Compra? Empréstimo? Biblioteca?
5. Sua família se interessava pela leitura?
6. De que forma o hábito e o gosto da leitura influenciou na sua memória e qualidade de vida atual?
7. Você considera que as leituras feitas no passado ainda estão presentes e atualizadas nos dias de
hoje? Quais as consequências delas hoje em dia?
8. Você encontrou barreiras ou dificuldades para fazer suas leituras
98
APÊNDICE II: Entrevista
S.F.L.A.
Nascimento: 26/03/1938 – 72 anos
Meu gosto pela leitura iniciou-se na escola. Diariamente havia aulas de leitura. Os alunos liam. Isso
era normal no colégio. Em casa, papai nos obrigava a ler. Era o meu castigo e dos meus irmãos.
Trabalhava em laboratório, viajava muito e sempre gostei de ir em sebos. Trabalhava em laboratório
e fui atrás de um livro chamado “Poder Secreto do Homem” e não encontrei. Os chefes, um italiano
e um português, souberam que eu estava procurando este livro e me indicaram o “Conhecimento
Secreto do Homem”. Comecei a ler a orelha e o prefácio, o prólogo, e, naquela hora, se descortinou
um manancial, parecia que eu tinha vivido aquilo e o autor, Sílvia de Pascoal, era o próprio. Ela
também me deu a auto ajuda “Despertar da Consciência” e “O Homem e a Cosmogênese”. Veja o
que acontece, parece que eu já conhecia aquilo ali. O ocultismo me convidou para ir a São Lourenço
no fim de semana. Era a Sociedade Teosófica: Goethe, Dante Alighieri, Fausto, entrei de cabeça.
Gosto do esotérico, ocultismo, não do espiritismo.
Dos autores clássicos lia muito Machado de Assis (“Dom Casmurro” e o “Alienista”,
principalmente) e Dostoievski (Crime e Castigo), essas eram as minhas leituras do dia a dia. Não
gosto muito do gênero romântico. Sempre busco mais o teatro como o Inferno da “Divina Comédia”
de Dante Alighieri.
Com 10 ou 11 anos, estava no admissão. Foi dentro de casa que comecei a ler o livro “Tesouro da
Juventude”. Meu pai tinha o hábito de ler e comprava muitos livros. Estudei no Marista de Recife.
Depois fui morar no Rio, sempre viajando e lendo muito. Um dia, passeando pelas ruas, passei pelo
parque São Pedro e vi um cara, tipo hippie, vendendo o livro “Os grandes iniciados – De Brahma até
Jesus”, perguntei para ele por quanto estava vendendo e ele falou que trocava por uma “cervejinha”
e assim o fiz. É o tipo de livro que não existe mais. Tenho livros que não existem mais, por
exemplo, uma Bíblia de 1800 e pouco. Tenho todos os livros da Annie Besant, C.W. Leadbeater e
Helena Petrovna Blavatsky.
99
Fui na Saraiva na semana passada e lá comprei uns livros: “Eterna Sabedoria”, “A Visão Teosófica
das Origens do Homem – Ensaio sobre a antropologia esotérica”, são obras relacionadas ao
cultismo, que poucas pessoas gostam. O cultismo é o lado culto das coisas, e eu adoro. Também
tenho um livro do profeta Enoque que conta a história que Noé pede socorro ao pai Lemech dizendo
que a Terra estava sofrendo as dores do parto, ela está inclinando. O pai responde: “Volta, junto
tudo o que é teu e sobe, as águas lá não chegarão”, portanto, o dilúvio aconteceu por uma inclinação
da Terra. Também gosto de Eliphas Levi, “A Chave dos 12 Mistérios”, é uma obra espetacular
puramente Católica, mas é um outro lado, ou seja, um lado esotérico da Igreja Católica. A Igreja
Católica, na realidade, é única. Os seus rituais herdaram a verdadeira sabedoria, os evangélicos são
repetidores de salmos. A Igreja Católica tem essência, tem fundamento, os mantras que ela usa, seus
cantos gregorianos, ioga da voz e ninguém dá valor.
Na minha casa era eu e mais três irmãos. Somente eu, meu pai e minha irmã mais velha se
interessavam por livros. Minha irmã era professora de francês e meu pai era oleiro, trabalhava na
olaria fabricando tijolos, telhas e cerâmicas em geral.
Eu gosto de ler livros novos e sempre busco na minha memória lembrar dos antigos. A minha
memória está sempre renovando e me proporcionando bem estar. Acordo vou para a janela e faço
minha ioga.
Obras lidas no passado, lembro-me perfeitamente hoje. Melquisedeque foi arrebatado! Elias veio em
carro de fogo! “A lenda do Tapete Voador” era um prenúncio dos discos voadores. “Ali Babá e os
40 ladrões” – 40 é um número cabalístico. Já o americano criou o Tio Patinhas, pois tinha a visão do
tesouro, do capitalista. O Tio Patinhas veio para ensinar a poupança, assim como, a lenda “A
formiga e a cigarra” dizendo que quem pouca no verão e na primavera, terá um inverno tranquilo.
Minha filha disse uma vez que queria me dar um computador, mas eu não quero, pois com isso me
viciarei no computador e perderei o hábito de ler. Aqui no Pão de Santo Antônio tem poucos que
fazem uso da leitura, somente com uns 2 (dois) idosos é que troco ideias, o restante acorda, come,
dorme e deixa o tempo passar. Com a leitura você olha a vida de outra maneira.
Sou contra o comunismo, não existe igualdade física, mas sim de espírito! A própria natureza mostra
o predador, o animal, portanto, o homem vai lapidando e evoluindo espiritualmente. A luta do Eu
Superior (espírito) com o Eu Inferior (matéria), do Netuno contra o Vulcão, da Água e o Fogo.
100
Hoje em dia para se ter acesso aos livros é difícil. Bibliotecas contam-se nos dedos. É preciso haver
mais para habituar essa “meninada” a ler. Na Educação é sempre a mesma promessa e nunca evolui.
Havia uma biblioteca na Campos Sales, mas não sei se ainda existe, não há incentivo.
Antigamente, eu frequentava o cinema, assistia o Rim Tim Tim (um cachorro policial), o Cabo
Rusty, Lassie e outros filmes que hoje em dia não tem mais. Hoje é só loucura, as crianças não
aprendem mais a gostar de animais, chutam eles na rua. Por isso que os crimes estão acontecendo.
Na minha época tinha dissertação quando eu voltava das férias o professor pedia para descrever
sobre as férias. Fiz primário, ginásio e científico no Colégio Marista. Vim para Belém em 1959,
tinha um tio aqui e fiquei morando com ele. Minha mãe era filha de português e o meu pai de
holandês. Meu avô português gostava de escrever, o “Chico Mendes”, Francisco de Paulo Mendes é
meu primo, chamavam ele de “Ratinho” faleceu há pouco tempo e também gostava muito de
escrever. Sou também primo da professora Maria Regina Maneschy e sempre que converso com o
professor Benedito Nunes, ele pergunta pelo Chico Mendes.
101
APÊNDICE III: Entrevista
M.M.M.S.
Nascimento: 22/07/1927 – 83 anos
A leitura entrou na minha vida desde que comecei a estudar. Era uma das melhores alunas de
história, invento, crio, por isso gostava de ler tudo. Tudo o que sei devo a leitura. Sempre gostei de
ler. Comprava muitos livros. A bibliotecas eram muito restritas.
Adoro ler M. Delly. Gostava das leituras que eu compreendia. Gosto também de ler livros de
escritores nacionais. Não gosto de escritores rabugentos. Domingo, fui na Saraiva e vim carregada
de livros. Estou fazendo pesquisa sobre os Anjos. O meu interesse pelos anjos se deu devido a um
desgosto recente que me abalou muito, deixando-me magoada. Precisava então me modificar para
obter a minha salvação e não estava conseguindo, então a figura dos Anjos tocou meu coração. O
que tenho lido, estou colocando em prática. Comecei a perdoar aquela pessoa e tenho buscado a paz.
Quero repassar esse meu conhecimento que é muito importante para minha saúde, pois minha
pressão estava alta e eu não conseguia controlar por causa da mágoa. Estou me sentindo um anjo
voando com tanta leveza. Nós praticamos também muitas coisas e como sempre queremos ser
perfeitos, também pecamos, fazemos o mal e isso se reverte para nós. Por isso, gosto de leituras
doces, amenas e leves.
Sou extrovertida e tenho muitas amigas que vivem no meio de literários, como o Benedito Nunes, e
que gostam muito de ler. Convivo com estas amizades. Meu pai era auxiliar de farmácia, dormia
cedo e minha mãe cuidava de 5 filhos. Meu marido era radiotelegrafista, não gostava de festas e nem
de passeios. Estudei contábeis e terminei o curso, porém, nunca exerci a profissão, pois meu marido
não queria que eu saísse de casa para trabalhar, porém, nunca me impediu de ler livros.
A leitura foi maravilhosa. Hoje, já que não podemos sair, a leitura é o nosso melhor passatempo. O
que foi lido ontem, sempre tem relação com o que lemos hoje e com o nosso dia a dia. Jamais se
esquece ou deixa de existir, pois é essencial.
Eu queria viver, ser feliz e ler!
102
APÊNDICE IV: Entrevista
M.T.O.
Nascimento:27/09/1925 – 85 anos
Quando eu era aluno do colégio primário havia uma matéria de Letras chamada Thales de Andrade
(que era o autor). Os livros deste autor cada ano eram lidos, então líamos eles no primeiro, no
segundo, no terceiro ano, e assim por diante. O primeiro livro dava o incentivo para o aluno
obedecer aos pais, aos mestres e as pessoas mais idosas. Ensinava os bons costumes, não só os bons
hábitos alimentares, como também os procedimentos, inclusive na entrada do transporte
(antigamente era bonde): entravam primeiro as pessoas idosas, depois as senhoras, depois os jovens
e as crianças tinham prioridade. No rodapé desses livros, sempre tinha um verso (uma estrofe com
quatro versos) de algum poeta famoso como Olavo Bilac, Gonçalves Dias, aquilo tudo era um
incentivo para a pessoa ler e gostar de poesia. Esses livros ensinavam muito sobre moral e cívica.
Aprendia também uma parte de religião, a cumprir os mandamentos da lei de Deus, porque Deus
não é palavra, é ação. Se todo mundo procurasse se aproximar o melhor possível do cumprimento da
lei de Deus, a humanidade seria totalmente diferente, não existiria guerra, só existiria coisa boa.
Nasci na Santa Casa, mas não fui criado pelos meus pais. Quem me criou foi o Dr. Camilo Salgado,
minhas tias eram governantas da casa dele, e ajudaram a criar os filhos dele. Quando eu nasci meu
pai não tinha como ficar comigo, ele era dono de um estaleiro de construções navais, no Marajó.
Não tinha mulher e as filhas eram pequenas também e tinha que deixar aquela criança (que no caso
era eu) com alguém. Aí minha tia pediu permissão para minha madrinha, esposa do Dr. Camilo
Salgado, se podia me levar para criar que ela tomava conta de mim e ela falou com Dr. Camilo e ele
permitiu. Ele já conhecia meu pai, pois meu pai construiu o iate do Dr. Camilo e aí, por influência
desse conhecimento eu fui pra lá. Fizeram tudo por mim, me deram até o meu curso técnico de
mecânica, de lá já saí pra vida pronto. Com 18 anos eu já era reservista de 2ª categoria, tanto que fui
chamado para o Exército Americano e mandaram eu ir para DACAR (África do Norte), servir lá em
uma base de apoio onde tinha um Hospital da Cruz Vermelha, que trabalhavam brasileiros também,
e uma base de apoio para recuperação de material bélico, tipo tanques de guerra, canhão e tudo que
era tipo de armas que vinham dos combates dos aviões da Alemanha, do Japão e tudo era
103
recuperado ali. E tinham os técnicos americanos que ensinavam a gente. Só faltavam pegar na mão
da gente ensinando como era que se mexia numa arma, num tanque de guerra e aquilo ali foi um
incentivo muito bom, juntando o conhecimento que eu já tinha dos livros que eu lia. Aquilo me
ajudou muito na vida, tanto que a minha carreira profissional foi muito fácil, com a profissão que eu
aprendi lá, quando eu cheguei no Brasil já fui servir a Aeronáutica, já dentro da profissão de
mecânico. Fiz o curso de Sargento, me mandaram para Guaratinguetá, lá fiz o curso de mecânico de
aviação (motores), passei 2 anos e peguei mais uma graduação para 2º Sargento. Só que eu não
gostava da vida militar, eu tinha um abuso da vida militar porque havia muita petulância era muita
disciplina, que hoje não dava mais para ter uma disciplina como naquele tempo, árdua. Hoje a coisa
está mais suave, hoje todo mundo na vida militar é profissionalizante, os oficiais conversam com os
praças, está uma coisa muito moderna, diferente daquele tempo. Eu não gostava daquilo, eu estava
tirando meu tempo perdido porque era necessário tirar, mas foi bom, pois eu aprendi mais uma
profissão lá.
Tem uma coisa que marcou muito na minha vida. Eu era noivo, já há 2 anos, e eu não podia casar.
Só Oficial que casava, de Sargento para baixo não casava, era lei. Então eu queria me casar, e um
belo dia estava em forma, escutando a ordem do dia, o boletim, e veio um decreto do Ministério da
Aeronáutica que quem quisesse reengajar por mais 9 (nove) anos, podia reengajar, era só se
apresentar lá no comando, e quem quisesse ir para a vida civil podia também chegar e se inscrever.
Para mim foi um prato cheio, no dia seguinte eu fui lá e me inscrevi logo para a vida civil, eu queria
me casar. Meu ideal era casar, ter família, ter filhos e não seguir na vida militar. Depois de 1 mês, a
gente estava no mesmo pátio, na mesma forma, o mesmo Major lendo a ordem do dia, e cantou em
boletim um decreto número tal, do Ministério da Aeronáutica, botando a disposição o pessoal que
pediu para ir para a vida civil. O primeiro nome cantado foi o meu, eu esqueci que estava em forma,
com disciplina, dei um pulo e um grito e fui preso. Fiquei a disposição do comando e o comandante,
era o Coronel Juscelino Brasil, ele era neurótico de guerra, era carrasco, diziam que ele não abria
mão nem para a mulher dele, eu pensei: tô ferrado! Ocorre que, todo fim de mês, iam 2 (dois) aviões
C-47 levar tropas para Jacareacanga com mantimentos e traziam o pessoal que estavam lá de volta
pra cá. Então, nós éramos 3 (três) mecânicos, da mesma especialidade, 3 (três) Sargentos: 1 (um)
estava para o Rio de férias, o outro estava acidentado no hospital (tinha caído da asa de um avião e
quebrou um braço) e só estava eu, e estava preso, detido. O Major que era o responsável pela
liberação dos aviões foi lá no comando e contou a história para o Coronel. O Coronel me disse: você
104
vai lá fazer o serviço, libera estes aviões e depois volta aqui para prestar conta da sua indisciplina.
Dentro de 3 (três) dias preparei os aviões, eles foram embora, levaram tropa, material e tudo. O
Major voltou comigo e perguntou o que tinha dado em mim, perguntou se eu tinha estudado
disciplina militar, querendo saber que história era aquela de eu estar em forma e ter soltado aquele
pulo e aquele grito. Eu contei a minha história e disse que no momento eu tinha ficado tão eufórico
com a notícia que não lembrava que eu estava em forma. Aí ele me liberou porque eu tinha dado
conta lá dos aviões, e por merecimento fui liberado. No mês seguinte, casei logo. Foi a coisa mais
feliz da minha vida, a melhor coisa que me aconteceu. Na minha vida fui muito bem orientado,
nunca tive dificuldade de vida, graças a Deus. Tive 2 (duas) profissões boas, nunca faltava serviço.
Hoje está difícil emprego. Naquele tempo a gente escolhia onde queria trabalhar. Trabalhei em 3
(três) Ministérios: Aeronáutica, Agricultura e dos Transportes. Foi quando começam a construir as
estradas federais aqui no Norte (Belém/Brasília), Transamazônica, Santarém/Cuiabá, aí fui
transferido pra cá, pois eu morava em Brasília.
O meu casamento durou, até como disse o reverendo, “até que a morte nos separe”. Sou viúvo há 18
anos e depois morei 17 anos em São Paulo com minha filha que é médica lá. Quando eu era novo eu
lia muito Sócrates, Confúcio, Shakespeare. Gostava muito das poesias de Olavo Bilac, Coelho Neto,
Gonçalves Dias, tudo que era poesia eu gostava e com isso fui também aprendendo a fazer poesias.
Tanto que lá em São Paulo, depois que eu já estava aposentado, participei durante 05 (cinco) anos
do “Talento da Maturidade” do Banco Real. Tinha arte, tinha música, tinha literatura e várias outras
modalidades, então eu concorri na literatura. Escrevia poesias, fazia contos da vida real e contos de
ficção científica. Ganhei prêmios, ganhei medalhas, certificados e diplomas. Mas o ponto alto, foi
uma poesia que eu fiz (todas as minhas poesias eram românticas), então nós éramos 27.000 idosos
inscritos, na faixa etária de 60 a 80 anos, e eu tirei em 11º lugar nessa poesia, porque a banca
examinadora era aqueles catedráticos em literatura, escritores, poetas, e tinha até gente da Academia
Brasileira de Letras. Era um concurso anual, então depois que eu ganhei todo ano me convidavam
para participar da entrega dos prêmios. Até o 10º lugar, naquele tempo, tinha prêmio de R$ 5.000, o
1º lugar ganhava R$ 10.000. Mas eu sempre me destacava, não ficava muito longe. Esta poesia que
estou lhe dando foi uma das que eu concorri. A banca examinadora exigia rima, métrica,
criatividade e ortografia. Então aqui está tudo enquadrado, dentro destes quesitos que eles pediam.
Agora têm outras que eu já fiz por aqui, e como não era para concurso, eu fiz só com rima, sem
métrica, sem nada, mas todas são românticas. Agora mesmo estou fazendo um conto de ficção
105
científica que se torna interessante pelo seguinte, a Bíblia fala sobre a vida de Cristo até os 12 anos,
quando ele era filósofo, dotado de natureza e discutia com os grandes padres da época, com 12 anos
de idade. Depois a vida dele desaparece da literatura, da Bíblia, e só reaparece já aos 30 anos. Aí,
nesses 18 anos, há tantas polêmicas sobre isso, mas não há uma definição. Então neste conto de
ficção científica eu descrevo tudinho: onde o Cristo estava, fazendo o que, e por que. Vou mandar
buscar o material que eu tenho lá com a minha filha e vou juntar com as poesias que eu tenho por
aqui, aí eu vou lá na Universidade Federal do Pará, que me falaram que tem uma editora, e conforme
for, dependendo do material, eles fazem um livro. Eu quero juntar aquilo tudo para fazer uma meia
dúzia de livros, porque eu não faço para ganhar dinheiro, quero fazer para distribuir para os amigos
e pessoas que gostam de ler. Porque tem que gostar daquilo, muitas pessoas começam a ler um livro
e percebem que aquilo não é o gênero dele ou alguma coisa e aí encostam. No começo, nas
considerações, eu escrevo assim: “Caro leitor, ao iniciar a leitura deste livro, procure se
descentralizar de religião, credo, artifícios religiosos, livros considerados sagrados e arranje um
espaço na sua mente para se concentrar e entender a mente criadora do autor”. Porque a gente não
pode confundir ficção com vida real. Vida real é vida real, ficção é a criação da mente. Eu falo, por
exemplo, sobre os gays. Existe uma certa polêmica, se é opção, se é hereditário, mas não tem nada
disso. Eu explico tudinho, os porquês, como provém isso, o que faz a pessoa ser gay, tudo, tudo,
tudo direitinho ali. Tudo com base no meu raciocínio, porque se eu for pesquisar não bate com o
meu raciocínio, meu raciocínio é completamente diferente. A Mitologia é o que a gente pensa, a
mente imagina, lia muito sobre Mitologia Grega. A Filosofia já vem mais com a razão, mas o que
prova mesmo é a Ciência. Eu trabalho em cima da Ciência.
Eu vivia trabalhando no mundo, então eu lia os jornais que anunciavam as editoras que mandavam
livros por reembolso, aí em pedia o livro por reembolso, ele chegava e a gente pagava na hora de
receber. Era basicamente essa a minha forma de acesso aos livros, eu sempre buscava ter livros para
ler onde eu estivesse. Quando eu já estava na vida civil, e trabalhava para multinacionais, havia uma
cláusula no contrato que nós assinávamos, que dizia: “sujeito a remoção para qualquer parte do país
ou do exterior”. Dessa forma, andei muito pelo exterior. Andei em 4 continentes: Europa, África,
Ásia e América, só não estive na Oceania.
Tive um casal de filhos. A filha é a médica que mora em São Paulo, casou com um médico também.
Estudou lá, eu mandava dinheiro para pagar a faculdade dela, pagar o apartamento que ela morava.
Ela era casada, mas o médico que ela casou era residente no Hospital Psiquiátrico, ganhava pouco e
106
estava no começo da vida, então eu ajudava como eu podia. Foi assim até ela se formar, aí foi para
Campinas, fazer Pediatria na UNICAMP, e passou no concurso para a Prefeitura. Depois ela fez
outra especialidade na UNICAMP, fez Psiquiatria, que é a mesma especialidade do marido. Fizeram
concurso juntos para a Secretaria de Segurança Pública e eles trabalham um dia na semana em uma
penitenciária. Porque quando o preso termina a sentença dele, ele tem que ser avaliado para ver se
tem condições de ser entregue a sociedade ou se precisa de tratamento. Há 3 (três) anos, ela ainda
fez um curso de Nutrologia na USP, ganhou uma bolsa de estudos e passou 1 (um) ano em Paris,
fazendo pós graduação. Então ela trabalha nas 3 (três) especialidade: Pediatria (na Prefeitura),
Psiquiatria (na Secretaria de Segurança Pública do Estado) e Nutróloga (no consultório dela). O meu
filho fez Farmácia Bioquímica, fez concurso e é funcionário do Ministério da Saúde, mora aqui em
Belém. Fez pós graduação e doutorado. É coordenador da Vigilância Sanitária daqui do Pará. Minha
mulher morreu feliz da vida, pois nós planejamos ter um casal, ela fez tratamento no ginecologista e
tudo correu dentro do que esperávamos.
A Bíblia nunca mudou em nada, desde o início da humanidade. O Alcorão também. Se você for
pensar, é um livro antigo mas muito atualizado. Ele tem a filosofia religiosa e a ciência ao lado,
amparando-a.
107
APÊNDICE V: Entrevista
J.O.Q
Nascimento:15/08/1928 – 83 anos
A Instituição oferece muita coisa, porém, não supre a falta da família. Cheguei aqui por livre e
espontânea vontade, ainda tenho família. Tenho 05 (cinco) filhos, 03 (três) moram fora de Belém e
02 (dois) moram aqui em Belém. Até hoje meus filhos tomam a bênção. Eu vim para a Instituição,
não me colocaram aqui. Meu filho mais velho tem 66 anos. Tive filho com 16 anos. Tenho o 2º grau
incompleto. Naquela época quando a gente casava, deixava de estudar. Tinha muita vontade de fazer
uma faculdade, mas depois que casei perdi o estímulo. Queria fazer a área de comércio que hoje é a
de contabilista.
Aqui dentro não me integro em muitas atividades, só faço hidroginástica. Fora da Instituição faço
parte de grupos de estudos espírita. A minha família não me visita muito frequentemente, pois são
só 02 (dois) homens, e eles já são muito ocupados com os filhos deles. Na casa deles eu só vou a
convite, é um sistema que adoto, me dou muito bem com as noras e os genros. Um dos filhos
trabalha na CODEM, é arquiteto. O outro é autônomo e formado em Engenharia Elétrica. Em
relação aos meus outros filhos, um é também arquiteto e mora em Salvador, a moça é pedagoga e
mora no Rio e o outro, que tem apenas o 2º grau completo, também mora na Bahia.
Sempre me interessei por leitura. Desde de garota, na minha casa, tinha uma pequena biblioteca e
sempre fomos incentivados a estudar, a ler. Gostava de ler romances, como M.Delly. Li algumas
obras de Machado de Assis e José Veríssimo. Depois passei a me interessar por livros espíritas. Meu
pai sempre comprava livros, ele gostava muito de ler. Depois que casei, meu marido também
comprava livros. Tinha muitos conhecidos que liam também e um emprestava para o outro. Quando
casei, perdi o contato com a minha família. Eu estava cheia de filhos pequenos e tinha muita
dificuldade para ir lá com eles. Não demorou muito meu pai morreu.
O hábito da leitura trouxe conhecimentos e abriu meus horizontes. A gente lê e fica pensando sobre
aquilo. Atualmente a minha leitura é espírita. Acabei de ler Chico Xavier e Divaldo Franco. Quase
não leio mais romances como antigamente. Leio mais romances espíritas como “Renúncia” que
comprei ontem. Dos romances que li, muita coisa ficou. Eu procuro caminhar com a atualidade, o
meu tempo não volta. Os meus netos não sabem nem como foi o meu tempo como também os netos
108
deles não vão saber como é o tempo deles agora. Eu acho proibido dizer: “no meu tempo não era
assim”. Não uso esse ditado porque o meu tempo foi o meu tempo e ele não volta mais.
Hoje o espiritismo me deu muitas respostas que a Igreja e o padre não me deram. Os sermões não
me passam muita coisa. Hoje digo que sou cristã. Vou a missa porque gosto e me passa uma energia
muito boa. Nas relações do dia a dia, não me passa nada. Eles tem conhecimento, fazem homilia,
falam do Advento, Epifania, mas sem se atualizar.
O espiritismo vai esclarecer verdades. É uma doutrina consoladora, a medida que progredimos. Ela
não diz “não beba”, “não fuma”, ela fala das doenças, das dificuldades, dos excessos.
109
APÊNDICE VI: Entrevista
A.B.R.
Nascimento:05/07/1934 – 77 anos
Sempre gostei de ler muito, leio 2 (dois) ou 3 (três) jornais diariamente e livros também. Fiz o curso
de Direito, e depois o de Administração, mas já lia antes.
Quando trabalhava, eu comecei debaixo como quase todo cristão. No meu setor cheguei a ser chefe
do setor durante 9 (nove) anos, só sai quando me aposentei. Trabalhava com telecomunicação (rádio
técnico, rádio telegrafista, auxiliar de escritório, que é o pessoal burocratizado). O meu chefe
principal estava localizado no Rio. Eu trabalhava na Petrobras. Uma das minhas atividades era fazer
o relatório do setor durante o mês. Meu chefe gostava tanto do meu tipo de redação que passou a me
mandar material dele e outros tantos que eram de responsabilidade dele como, expediente para
diretores estrangeiros que estavam em Londres, Paris, Estados Unidos, etc, aí eu lia aquela papelada
e fazia uma espécie de minuta depois, ele já queria que eu respondesse totalmente e completamente
o expediente como se fosse ele. Então, quando chegava lá no Rio já ia bem datilografado (eu
escrevia bem a máquina), ele xerocava o material que eu mandava e assinava como se fosse ele que
tivesse feito.
Depois que me aposentei parei de escrever, não todo dia mas, esporadicamente, passei a escrever
poesias, que para mim é uma espécie de terapia, li uma vez a esse respeito. Escrevo quando estou
ficando estressado de estar aqui, isolado, aí me lembro de determinados acontecimentos, episódios
de novela de televisão ou outro acontecimento aí escrevo e fico mais relaxado, mais tranquilo.
Conclui as duas faculdades. Trabalhava de dia e estudava a noite. Era uma rotina super cansativa.
Sábado e domingo estava estressado.
Li muito Carlos Drumond de Andrade. Tinha também um livro de Gregório de Matos Guerra que eu
emprestei e não me devolveram. O escritor pernambucano debochado, só escrevia coisas
consideradas imorais, principalmente naquele tempo do meu pai e dos meus avós. Era apelidado de
“Boca Maldita” e também declamava algumas poesias.
110
Ler para mim é muito gostoso. No jornal não gosto da página policial, dificilmente eu olho. Só
aparece violência, desgraça. Gosto mais da parte romântica, maleável, elitizada e que te deixa
atualizado como o Repórter 70.
Geralmente eu comprava os livros nessas exposições que fazem até hoje. Lá no Rio, perto do
escritório da Petrobrás, na Biblioteca Municipal, perguntei a uma colega onde ficava uma livraria e
ela indicou-me a Rua da Carioca e Uruguaiana, que tem comércio, mercearias, lojas de confecção e
várias livrarias. Fui então na livraria dos sebos (livros usados). Lá no Rio muitos moram em
apartamentos que são apertados, quando os livros estão atrapalhando, eles levam para essas livrarias
e vendem, aí chega um ou outro como eu e compra, é baratinho. Tem de tudo: romances, poesias,
ficção, policial, etc.
Tenho 4 (quatro) filhos. Dois trabalham na Petrobras, um deles é bacharel em Direito e o outro tem
curso secundário completo e trabalha com perfuração de poço. Minha filha tem curso secundário
completo e tem uma loja de chocolates em um shopping e o mais novo é voltado para rede
telefônica.
Eu nasci no meio do mato, no meio da Floresta Amazônica, na fronteira do Amazonas com o Acre.
O local era cortado por um rio e a parte baixa era chamada de Boca do Acre. Rio Purus que vinha da
Bolívia com o Rio Acre e aí era a cidade, a capital Rio Branco. Meu pai era cearense, veio para o
Acre junto com a família na época que existia os “soldados da borracha”, contratados pelo governo
federal para recrutarem pessoal para extração de leite das seringueiras. Cortando a casca ficava
pingando um leite grosso. Colocavam tipo uma tigela, parece uma xícara de alumínio embutida na
casca da árvore e, a tardinha, voltavam na “estrada da seringa” e colocavam em um recipiente, aí
defumavam e a fumaça meio quente, pegavam uma vara, passavam sebo de qualquer animal para a
borracha não ficar grudada. A fumaça quente fazia o leite coalhar mais rapidamente e a borracha ia
fazendo aquela bola. Todo dia fazia um pouco, quando já tinha 20 ou 30 quilos, deixavam aquela
pele de borracha no sol e começavam outra. Levavam para o patrão no final de cada mês que pesava
e pagava a mercadoria.
Meu pai e avô foram seringueiros e todos os parentes. Aonde eu nasci tinha uma estação de rádio
dos correios, atualmente é a Embratel que toma conta desse serviço. Antigamente, o correio é que
fazia o transporte de carga. Tinha o imposto postal, a pessoa recebia um catálogo de compras e o
correio mandava buscar em outra cidade.
111
Éramos 6 (seis) filhos. Um faleceu, moram 3 (três) no Rio, um em Brasília e eu aqui no Pará. Um
dos meus irmãos foi nomeado pelos Correios como telegrafista em Boca do Acre. Foi transferido
para a Serra Madureira, interior do Acre, e me levou para lá. O juiz de direito de lá era do Rio, ele
dizia que eu era “traquino”, como se dizia no interior, e insistiu para eu ir morar com a família dele
no Rio e estudar. Meus pais separaram e minha mãe foi para o Rio com meus 2 (dois) irmãos, aí
como temos um tio no Rio, ou outros também foram para lá. Foram nos aviões da FAB (Força
Aérea Brasileira), de graça, e meus parentes também foram para lá.
Aproveitando o serviço, meu irmão pediu para um amigo, que era telegrafista do Correio, para eu
me hospedar na casa dele enquanto estudava. Fui na Escola Técnica Federal do Amazonas para não
ficar em casa sem fazer nada, resolvi fazer um processo seletivo para estudantes em internato e
externato. Comecei a estudar, paguei uma taxa e passei no concurso, estudei só 2 (dois) anos. Já
havia movimentos de greve e os estudantes aderiram e quem participasse da greve seria desligado e
foi isso que aconteceu comigo, fui desligado.
Tinha um irmão em Porto Velho, passei um telegrama e ele me avisou que tinha uma vaga para
telegrafista no governo. Peguei um avião da FAB e fui para lá. Fui para Guaporé (nome da cidade
naquele tempo) e na mesma semana fui nomeado como telegrafista. Passei 5 (cinco) anos lá, me
envolvi com uma mulher casada e me dei mal. Queriam me matar e saí de lá fugido.
Soube através de um colega, que havia vaga de telegrafista na Petrobrás daqui de Belém. Vim de lá
em 1957 e fiz o teste na mesma semana e fui nomeado e transferido para Manaus. Quando acabou a
base de petróleo em Manaus, fui para São Luís, depois também acabou e vim de volta para Belém.
Fui transferido para o Rio Madeira, no interior do Amazonas, era uma base grande com vários
alojamentos, refeição e moradia de graça. Recebia o salário lá mesmo. Construíram ao lado da base
uma vila e o pessoal que era casado aqui arrumou outra mulher lá. Umas quando souberam
resolveram deixar os maridos, outras preferiram ficar recebendo pensão. Me casei lá, no Rio
Madeira. Quando minha mulher estava com 8 (oito) meses de gravidez recebi minha transferência
para Belém. Todos os meus filhos nasceram aqui. Nunca mais saí daqui.
O meu hábito de leitura eu peguei na Petrobras, pois eu tinha de ler todos os expedientes para
responder. Criei vontade de voltar a estudar. Fiz um teste para estudar no Paes de Carvalho, ginasial
e científico. Aí foi criado o Artigo 99 pelo MEC, onde poderia fazer o 2º grau através de 2 (dois)
testes com 7 (sete) matérias. Passei em 4 (quatro) matérias e depois nas outras 3 (três). Fiz um
cursinho de pré-vestibular no Colégio Santo Antônio. Estudei literatura com o Paes Loureiro e
112
Matemática com o Manoel Leite. Ingressei no curso de Direito e depois também me formei em
Administração.
A leitura é muito importante. Com ela a pessoa se sente viva, fica atualizada e fica sempre com
vontade de ler mais. A leitura também faz o tempo correr, é uma companhia e não deixa a pessoa
ficar estressada. Eu vejo aqui na Instituição, observo as pessoas idosas não leem nada, passam o dia
ociosas e ansiosas, devem ficar estressadas, eu não fico. Hoje só vieram 2 (dois) jornais, mas
normalmente leio 3 (três) ou 4 (quatro) jornais. Não leio tudo, leio as partes mais importantes e
interessantes. Minha filha, que sabe que gosto de ler, sempre me manda revistas como: Veja, Isto é,
Marie Claire e outras. Eu leio tudo isso e faço aquela farofa.
O passado era melhor do que os dias de hoje. O povo vivia sem violência. A televisão influenciou
muito, pois mostra tudo, e, a pessoa que não tem discernimento olha e acaba absorvendo e se
envolvendo. Nas minhas poesias lembro de lances de Porto Velho, Manaus, aí faço um ensaio.
A boa leitura é benéfica em todos os sentidos. A televisão tem boas novelas. Agora tem uma ótima
que relembra os tempos antigos, o “Cordel Encantado”, relembra a vida do sertão nordestino.
Assistia novela pelo rádio através da Rádio Tupi. Transmitia até cópia de novelas mexicanas,
adaptadas aos velhos costumes aqui do Brasil que era a “Direito de Nascer”. Tinha um noticiário as
18 horas e a novela as 19 horas. Era gostoso, mas é melhor olhar, claro.
Já estou aqui na Instituição há 10 anos. Depois que a minha mulher morreu eu permaneci na minha
casa que tinha 2 (dois) pavimentos. Os filhos foram casando e saindo. O mais velho ficou morando
ao lado da minha casa e foi se enchendo de filhos, até que disse que a casa estava pequena para a
família inteira dele e foi morar comigo. Depois que foi morar comigo, ele se apaixonou pela minha
namorada e vira e mexe queria brigar comigo. Sempre saia com ela para bebermos uma cervejinha e
quando voltava, ele queria tomar satisfações comigo. Quando eu era novo, nunca fui de brigar por
causa de namorada, não é agora, depois de velho, que vou brigar. Aliás, não era bem minha
namorada porque ela era mulher casada e eu pedia emprestado do marido dela 2 (duas) vezes por
semana. E se ele se apaixonou por ela é porque ela também deu confiança e namorou com ele. Para
não ficar ouvindo aquela lenga lenga de mulher e filho, vim para cá espontaneamente e, de vez em
quando eles vem me visitar.