DN- Contos Digitais- A Moeda

download DN- Contos Digitais- A Moeda

of 9

Transcript of DN- Contos Digitais- A Moeda

  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    1/9

    [email protected]

  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    2/9

    [email protected]

  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    3/9

    Lista de autores, por ordem de sada dos contos:

    Pedro Paixo | Joo Tordo | Rui Zink | Lusa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Ins Pedrosa

    Afonso Cruz | Gonalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mrio de Carvalho

    Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidnio Cachapa | David Machado

    JP Simes | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | Joo Barreiros | Raquel Ochoa | Joo Bonifcio

    David Soares | Pedro Santo | Onsimo Teotnio Almeida | Mrio Zambujal | Manuel Joo Vieira

    Patrcia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Ldia Jorge | Srgio Godinho

    Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

    [email protected]

    http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspxhttp://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx
  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    4/9

    Contos Digitais DN

    A coleo Contos Digitais DN -lhe oferecida pelo

    Dirio de Notcias, atravs da Biblioteca Digital DN.

    Autor: Gonalo M. Tavares

    Ttulo: A Moeda

    Ideia Original e Coordenao Editorial: Miguel Neto

    Design e conceo tcnica de ebooks: Dania Afonso

    ESCRITORIO editora | www.escritorioeditora.com

    2012 os autores, DIRIO DE NOTCIAS, ESCRITORIO editora

    ISBN: 978-989-8507-05-1

    Reservados todos os direitos. proibida a reproduo desta obra por qualquer meio, sem o

    consentimento expresso dos autores, do Dirio de Notcias e da Escritorio editora, abrangendo esta

    proibio o texto e o arranjo grfico. A violao destas regras ser passvel de procedimento judicial, de

    acordo com o estipulado no Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

    [email protected]

    http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspxhttp://www.escritorioeditora.com/http://www.escritorioeditora.com/http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx
  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    5/9

    sobre o autor

    Gonalo M. Tavares

    Nasceu em Luanda, em 1970, mas vive em Portugal desde os 3 anos de idade. A sua

    estreia literria deu-se em 2001, com O Livro da Dana, e desde a no tem parado depublicar, de granjear leitores e reconhecimento nacional e internacional: 30 livros

    numa dcada, do romance poesia, passando pelos contos, o ensaio e o teatro; varia-

    dssimos prmios; edies em mais de 40 pases.

    Recebeu, entre outros, o Prmio Jos Saramago 2005, o Prmio LER/Millennium bcp

    2004 e o Prmio Portugal Telecom de Literatura 2007 (Brasil) pelo romanceJerusalm

    (2004); o Grande Prmio de Conto Camilo Castelo Branco com gua, co, cavalo, cabea

    (2006); o Prmio Branquinho da Fonseca da Fundao Calouste Gulbenkian e do

    jornal Expresso com o livro O Senhor Valry(2002); o Prmio Revelao de Poesia daAssociao Portuguesa de Escritores com Investigaes. Novalis(2002). Mais recentemen-

    te, pelo romance Aprender a Rezar na Era da Tcnica(2007) recebeu o Prmio de Melhor

    Livro Estrangeiro publicado em Frana em 2010, e com Uma Viagem ndia(2010) o

    Grande Prmio Romance e Novela da Associao Portuguesa de Autores 2011.

    Em termos internacionais, podemos ainda destacar o Prmio Internacional Trieste

    2008 (Itlia) e o Prmio Belgrado Poesia 2009 (Srvia).

    Um pouco por todo o mundo, os seus livros tm dado origem a variadssimos projetos

    artsticos, arquitetnicos e acadmicos.

    [email protected]

  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    6/9

    6

    A Moeda

    Gonalo M. Tavares

    Vass Kartopeck dobrou-se pela segunda vez para pegar na moedinha.

    De novo! exclamou.

    A rapariga riu-se.

    Num certo sentido, Vass Kartopeck estava doente. Manchas incmodas espalha-

    vam-se por baixo dos olhos e ao nvel do pescoo, obrigando-o a pequenos gestos para

    acalmar aquilo que designava como sendo um espantoso fervor no rosto.

    Numa noite j afastada no tempo h alguns meses a rapariga, depois do amor, e

    com uma certa perversidade controlada, comeou a contar as pequenas manchas escuras:

    um, dois, trs, quatro...

    Est rico, senhor! troara Mais de catorze manchas!

    Kartopeck no parava agora de esfregar com a mo direita, sobretudo as manchas

    debaixo dos olhos.Na presena da sua me, na consulta anterior, o mdico dissera:

    So manchas, simplesmente, que quer que faa? Se considerar que a boa apresenta-

    o fsica sintoma de sade, ento vossa excelncia estar doente. Se no, esquea: as

    manchas so feias, claro, mas h quem, sem elas, esteja mais marcado.

    Nessa altura, saiu do consultrio ajudando a me; esta nada compreendera: h muito

    havia perdido as capacidades mnimas que permitem a uma existncia ser autnoma. Um

    homem de rosto deformado ajuda uma velha pensou, instintivamente, Vass Kartopeck,

    tentando abstrair-se do olhar dos senhores da cidade com que se iam cruzando.Dias depois comeara o tal fervor na pele: as manchas ardiam calmamente, em lume

    [email protected]

  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    7/9

    7

    brando, dizia Kartopeck.

    A rapariga, no entanto, no parara de troar. Depois de mais uma oferta generosa,

    ainda no quarto, ela experimentara os limites da pacincia do senhor Kartopeck. Primeiro

    contara as moedas recebidas em voz alta, colocando-as num pequeno monte: um, dois,

    trs, quatro, cinco... Quando o monte desmoronava o que aconteceu vrias vezes a

    rapariga retomava a contagem: um, dois, trs, quatro... Eram catorze moedas.

    Esta contagem seguira-se com um pequeno intervalo contagem das manchas

    no rosto, da o sorriso obsceno da rapariga.

    Onze manchas disse ela, primeiro.

    E segundos mais tarde, disse:

    14 moedinhas! E sorriu para o senhor Vass Kartopeck.

    Kartopeck trajava de um modo rude e era evidente que no permitia influncias

    excessivas da cidade no seu modo de vestir. Tudo o resto poderia ser visto como causaou efeito deste pormenor. Kartopeck raramente descia ao centro, e quando o fazia no

    deixava de se sentir indisposto, prolongando acidamente um discurso negativo sobre os

    movimentos e os hbitos que a turbulncia do centro exigia aos cidados.

    Algumas pessoas com quem se cruzava multiplicavam-se em gestos de uma rapidez

    quieta e no produtiva que espantava o seu olhar observador. Aqueles homens tentavam

    resistir desordem e ao facto de no dominarem o tempo nem o seu sculo, nem

    aquele dia em particular afundando-se num conjunto de rituais que envolviam braos

    levantados, dedos esticados a chamar a ateno de um meio de transporte mais rpido,tanto burburinho, mas no fundo tudo aquilo no passava de uma espcie de exibio de

    possibilidades, vindas de corpos claramente habituados a aceitar, e no a exigir. Assim

    pensava Vass Kartopeck, que no seu pequeno mundo insignificante para aquela gente,

    certo se habituara a mandar.

    Pela segunda vez estava em frente do mdico. Tinham passado apenas seis meses e

    entretanto ocorrera um facto absolutamente relevante: o falecimento da sua me.

    Kartopeck entrou no consultrio com a rapariga e os dois sentaram-se espera.

    A empregada reconheceu-o e, depois de um rpido olhar, perguntou:Est pior?

    Sim, murmurou Kartopeck.

    As manchas haviam aumentado de tamanho e uma cor acinzentada sem paralelo

    no mundo da sade surgia desde o ponto central de cada mancha. Por estar treinada a

    ver o que assusta, a funcionria do consultrio disfarou perfeitamente o esgar de rejeio

    que todos, por instinto, faziam, quando, pela primeira vez, e de surpresa, contactavam

    com aquele rosto. A desordem de h meses ganhara uma forma, digamos, monstruosa.

    Como se o desarranjo da pele, aps uma hesitao inicial, tivesse finalmente avanado

    para uma outra forma de expresso, que j no era humanamente educada. O rosto de

    [email protected]

  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    8/9

    8

    Kartopeck tornara-se horrendo, imprprio, como se de facto ele cometesse uma indeli-

    cadeza em relao s outras pessoas. Se estivesse nu, em plena sala de espera, Kartopeck

    no causaria maior rejeio moral. A fealdade do seu rosto entrara j no campo do

    pecado, abandonara o das falhas fsicas.

    Claro que a rapariga que o acompanhava tambm no passou despercebida. O modo

    de vestir evidenciava duas coisas: no era da cidade e era uma prostituta. Mesmo sentada

    ela no parava de se mexer, de compor a saia, num gesto perfeitamente despropositado

    de pudor, gesto que cheirava a falso, pois era sincronizado com um olhar excitado que

    varria toda a sala de espera; e todos os que ali se encontravam eram envolvidos por esse

    olhar. Ela sentia-se radiante por estar ali.

    O desconforto que aquele casal provocava nas outras pessoas ganhou em pouco

    tempo uma dimenso significativa. Com uma desculpa de ltima hora, uma das senhoras

    que esperava consulta levantou-se e saiu.A sua me?

    Morreu respondeu Kartopeck, que estava j em p, preparado para entrar. H

    dois meses acrescentou.

    A funcionria baixou os olhos, por inabilidade cometera uma indiscrio.

    Mas de dentro chamaram. Chegara a vez de Vass Kartopeck.

    A rapariga ficou espera na sala, por ordem do mdico. Ela sorria. O mdico ter-se

    dirigido a si, especificamente, causara-lhe um enorme impacto mesmo que proibindo-

    -a de entrar.Esse rosto est pior! disse, de imediato, l dentro, o especialista.

    E sentaram-se.

    Mas tenho aqui as suas anlises continuou. No h qualquer problema de sade.

    O senhor Kartopeck no est doente. Isso claramente um problema exterior que no

    veio de dentro do organismo, nem h qualquer motivo para suspeitar que caminhe para

    l. desagradvel estar a ficar com o rosto deformado, mas da parte da medicina s lhe

    podemos recomendar alguns produtos para acalmar a irritao da pele, e s o podemos

    tranquilizar: no morrer um minuto mais cedo por ter assim o rosto.Kartopeck estava aliviado: nas ltimas semanas construra um cenrio mental onde

    a degradao do seu exterior correspondia a uma sentena de morte. Tinha mesmo

    ensaiado o modo corajoso de reagir frase que previa ouvir: Tem apenas seis meses de vida!

    Os comentrios apaziguadores do mdico foram assim recebidos como quem recebe

    uma grande notcia. Uma vitria!

    A consulta foi rpida. sada, antes de o mdico abrir a porta, Vass Kartopeck,

    tentando mostrar a sua gratido, enfiou a mo direita no bolso e tirou uma moeda que

    estendeu na direco do mdico. Este recusou, com um afastamento delicado do brao,

    e, controlando a vontade de soltar uma gargalhada, sorriu.

    [email protected]

  • 7/29/2019 DN- Contos Digitais- A Moeda

    9/9

    9

    Na cidade no se oferecem moedas aos mdicos disse. Guarde-a para si.

    Vass Kartopeck, envergonhado, escondeu logo a moeda na sua prpria mo fechada:

    era um labrego, absolutamente um labrego!, e mais uma vez isso ficara vista de todos.

    Sou um imbecil, murmurou para si prprio.

    Felicidades disse o mdico, para os dois.

    Foi depois j em plena rua, a menos de duzentos metros do ponto onde, no cho,

    estava assinalado o centro da cidade, que Kartopeck deixou cair pela segunda vez a moeda

    que trazia na mo.

    De novo! exclamou Kartopeck, irritado consigo prprio.

    E a rapariga riu-se.

    fim

    inBest European Fiction 2011

    ( Dalkey Archive Press Verso traduzida para Ingls)

    Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

    Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

    http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspxhttp://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx