Do amanhecer ao pr-do-sol - Igreja Metodista de Vila Isabel · Sou agradecido aos meus ... e ao meu...

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DO AMANHECER AO PÔR-DO SOL (Autobiografia resumida) JOSÉ GONÇALVES SALVADOR São Paulo, 1995 DEDICATÓRIA Sou agradecido aos meus saudosos genitores, Elias e Encarnação, pela vida que me deram; Devo às minhas filhas, Lineide e Marineide, e ao meu filho José, muito da inspiração que tem me alimentado o espírito; Aos queridos netos: Ulisses, Aquiles, Péricles, Wesley, Rafael e Fábio, expresso aqui meu desejo, de que sejam uma bênção para o Brasil; Dedico a todos estas memórias. São três vínculos entrelaçados pelo mesmo sangue, pela estima e pelo idealismo. Também, como incentivo as novas gerações.

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DO AMANHECER AO

PÔR-DO SOL

(Autobiografia resumida)

JOSÉ GONÇALVES SALVADOR

São Paulo, 1995

DEDICATÓRIA

Sou agradecido aos meus saudosos genitores,

Elias e Encarnação, pela vida que me deram;

Devo às minhas filhas, Lineide e Marineide, e ao

meu filho José, muito da inspiração que tem me

alimentado o espírito;

Aos queridos netos: Ulisses, Aquiles, Péricles,

Wesley, Rafael e Fábio, expresso aqui meu desejo,

de que sejam uma bênção para o Brasil;

Dedico a todos estas memórias. São três vínculos

entrelaçados pelo mesmo sangue, pela estima e pelo

idealismo.

Também, como incentivo as novas gerações.

SUMÁRIO

Preâmbulo

Capítulo I

Considerações sobre a genealogia dos Gonçalves Salvador

Capítulo II

A fascinação exercida pelo Brasil

Capítulo III

Com os pés nos chãos do Brasil

Capítulo IV

Peraltices do pequeno José

Capítulo V

Regresso forçado a Portugal

Capítulo VI

Cai o esteio da família de Elias

Capítulo VII

Situação aflitiva após o falecimento do chefe

Capítulo VIII

A Revolução Paulista em 1932

Capítulo IX

A grande decisão tomada por Jose

Capítulo X

A atividade pastoral

Capítulo XI

Ingresso no magistério da Faculdade de Teologia e outras

funções

Capítulo XII

A Universidade de São Paulo (viagens a Portugal e à Suíça)

Capítulo XIII

O interstício de 1970 a 1977

Capítulo XIV

A roda do tempo

Capítulo XV

Observando o pôr-do-sol

Capítulo XVI

Nossa residencia no Conjunto Costa do Sol

Curriculum vitae, abreviado, do autor

Produção literária do autor

Fotografias e documentos

Créditos da presente edição

PREÂMBULO O tema que escolhi para esta obra – Do amanhecer

ao pôr-do-sol – deve-se ao fato de que ele engloba a minha vida em toda a extensão, começando pelo nascimento até a idade avançada.

Posso dizer que, pela graça de Deus, muitos anos já

se foram, durante os quais foi possível transpor montanhas e penhascos. Ganhei, assim, experiências benéficas e lições importantes.

A vida é uma escola salutar, pois muito nos ensina,

embora às vezes tenhamos que pagar caro. O vazio que se coloca entre os dois extremos nem sempre é preenchido com fatos agradáveis e nem por vontade própria. No seu todo se assemelha bem a uma colcha de retalhos, confeccionada aproveitando-se pedaços de vários tecidos, de largura, espécies e coloridos diferentes, que, no entanto, dão ao conjunto, por fim, unidade, beleza e sentido. O mesmo se passa com os vitrais de uma igreja, em cuja estrutura, de modo geral, entram porções dissemelhantes; assim como nas melodias, que, por sua vez, recebem notas graves e agudas em sua composição.

Altos e baixos em nossas vidas só nos podem

engrandecer. São exatas as palavras do poeta ao dizer: “Quem passou pela vida em brancas nuvens e em plácida calma adormeceu; quem passou pela vida e não sofreu; foi espectro de homem; não foi homem. Só passou pela vida, mas não viveu”.

Escrevo para recordar; para reviver o que já passou. Até mesmo as coisas tristes ou desagradáveis merecem ser lembradas, porque não nos pesam mais; alimentam nossas esperanças, nos encorajam, e no conjunto, realçam o vitral da existência de cada um.

É preciso, então, ver os dois lados do quadro, e

procurarei fazê-lo, ainda que a tarefa seja difícil. Devo, por conseguinte, ser justo, sincero e imparcial. Além do mais, julgo-me relativamente conhecedor da “gens Gonçalves Salvador”, cujas origens remontam a passado longínquo. Por isso, muitos parentes nem sequer se conhecem, dado o seu desconhecimento das respectivas genealogias. Quero, portanto, reaproximá-los, e daí a minha autobiografia, colocando-me no centro desta história para servir de elo entre todos. Desejo, pois, que fatos e pessoas se perpetuem, sem, contudo, descer a detalhes; razão, outrossim, para colocar o quadro genealógico no princípio da presente obra.

A parte restante é alusiva à minha vida, desde o

capítulo II. Aspectos parciais, mas correlatos, são anexados. Causaram impactos.

Muita coisa poderia ser dita, mas, se não o foi, deve-

se a razões particulares. Um livro de memórias teria abrangência maior, sem dúvida; coisa relativamente fácil, visto que venho escrevendo um diário já há muito tempo.

O que escrevi é produto daquilo que senti e pensei.

I

CONSIDERAÇÕES SOBRE A GENEALOGIA DOS

GONÇALVES SALVADOR Sempre me preocupei com a origem de meus

ancestrais. Sei que eram portugueses. Quais foram, porém, os mais remotos? Seríamos capazes de descobrir os cabeças-tronco, ou primitivos? De onde vieram e por onde andaram? Já existiam quando se formou a nacionalidade? Que parte tiveram nas guerras do passado e nos movimentos marítimos? Que dizem as tradições e que confiança merecem? Conta-se, por exemplo, que certo indivíduo por sobrenome Salvador acompanhou Vasco da Gama ao Oriente, mas, quem no-lo comprovará?

Alguns documentos fidedignos nos revelam os nomes

dos irmãos Francisco e José Salvador, judeus nascidos em Espanha ou Portugal, de cujas terras passaram para Londres antes de 1744, vivendo, então, circunscritos, ao comércio de minérios preciosos. Foi ao tempo do Marquês de Pombal, seu amigo no princípio e rival depois, visto entregar o acordo a John Gore, inglês, concorrente no rendoso negócio. É certo, igualmente, que o terremoto de Lisboa, em 1755, causou danos

irreparáveis à família. É provável existir algum parentesco entre esses e os Gonçalves Salvador posteriores.1

Quem soube informar-me sobre coisas interessantes

acerca desta família foi minha tia Ana, irmã mais velha de Júlio e do meu progenitor. Embora fosse pouco instruída, gostava de inteirar-se sobre o passado. Era poetiza por natureza, inteligente e viva. Teve a infelicidade de ficar viúva ainda moça e com um filho, de nome Elídio, o qual, feito rapaz, veio trabalhar no comércio com meu pai e depois aprendeu o ofício de alfaiate, estabelecendo-se no bairro da Penha, em São Paulo, onde também constituiu família. A mãe, ou seja, tia Ana, viveu com estes familiares nos últimos anos de vida. Visitei-a ali algumas vezes, quando me contou certas novidades que eu ignorava, como a de que Aurora e Carmem Miranda eram nossas primas, assim como os Craveiro e os Miranda, cuja veracidade comprovei mais tarde.

Sei, agora, que nós somos originários de um único

tronco, proveniente da região de Coimbra e que se ramificou depois com os três irmãos Joaquim, Manoel e Francisco, todos de sobrenome Gonçalves Salvador, a exceção do primeiro que acrescentou o apelido “dos Anjos”, ou seja, Joaquim dos Anjos Gonçalves Salvador, surgido em tempo de uma convulsão em Portugal. Legítimos descendentes continuaram a usá-lo.

I. Joaquim dos Anjos Gonçalves Salvador. Foi meu

bisavô. Casou com Joaquina Miranda, natural de Vila Nova, vizinha de Coimbra. Era filha de José da Cunha Craveiro. Joaquim viveu da arte pirotécnica. Fabricava foguetes e bombas; recebia encomendas de artifícios

1 Os Cristãos-Novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro (São Paulo, Pioneira,

1992), p. 125s.

para as festas. A oficina pegou fogo, e ele morreu queimado com um dos filhos. Descendentes:

1) Francisco Gonçalves Salvador, o qual, embora

casado, não deixou descendentes. 2) Júlio. Deixou filhos do matrimônio, cujo destino,

porém, ignoro. 3) Augusto. Idem. 4) Luísa. Igualmente 5) Ana. Teve a filha Angelina, que se casou com um

Ribeiro. Viveram em Glicéio, vilarejo da Noroeste, onde botaram uma loja de secos e molhados próximos à estação. Visitei-os certo dia e ali fiquei conhecendo o filho, de nome Jaime, já homem feito.

6) “Tio João”, como dizíamos, enviuvou em idade avançada e, por isso, passou a residir com os filhos em Promissão, ora com o filho Francisco (Xico), ora com o Maneco. Foi meu pai, outrossim, do Aristides, que casou com a jovem Rosa, espanhola, e se instalaram em Lins com um bar, no qual estive empregado. Foi o genitor, também, de minha prima Glória. Deixou remanescentes.

7) Maria Rosa, mãe de Maria da Glória. Mas desconheço outros informes.

8) José dos Anjos Gonçalves Salvador, meu avô. Casou com Ana Rodrigues Azenha, provavelmente da mesma família. Enquanto viveu em Portugal, geraram filhos. Depois ele se passou para o Brasil e aqui faleceu durante uma epidemia, em Limeira, ou Campinas, segundo notícias posteriores. Tiveram os descendentes que se seguem:

A) Júlio dos Anjos Gonçalves Salvador. Nasceu em

1897. Veio para o Brasil com apenas nove anos e sua missão era encontrar o pai, na qual foi infeliz, porque o genitor falecera um pouco antes. Passou a residir em Piracicaba e depois se empregou no comércio, em São

Paulo, adquirindo assim razoável experiência no referido trato. Seus dons levaram-no, por fim, a contrair matrimônio com a bela senhorita Isaura, instruída em fino educandário. Era a mais velha das três irmãs, filhas do fazendeiro Manoel Pereira dos Reis. Júlio e Isaura escolheram para residir a novel estação de Lauro Muller, ponto inicial da Ferrovia Noroeste do Brasil em direção às matarias de Araçatuba. A seguir, mudaram-se para Presidente Pena e, finalmente para Albuquerque Lins, associando-se Júlio, desta vez, ao mano Elias. Do casal procede; o médico dr. Manoel, o qual se fixou em São Paulo; dr. Júlio, engenheiro civil, que casou com Nair e tiveram uma plêiade de descendentes; Marinete que casou com o professor Geraldo Boaventura, o qual se tornou o sucessor do sogro nos negócios da firma. Todos têm descendentes dos mais ilustres.

• De Marinete e Geraldo Boaventura, procedem: Paulo, já falecido; Emília; Paulo Emílio; Sergio, engenheiro civil, e Isa, professora.

• O dr. Manoel Reis Gonçalves Salvador é médico-operador em São Paulo. Prestou trabalhos profissionais em diversos hospitais e em outras instituições. Casou com Liseth Barreto Brito. São genitores de José Ricardo; de Isa Cláudia, assistente social e mãe de Guilherme, filho de Fausto Soares, seu primeiro marido.

• O dr. Júlio Gonçalves Salvador é ilustre engenheiro civil. Serviu durante longos anos à Companhia Paulista de Estradas de Ferro e foi professor de algumas faculdades superiores do Estado de São Paulo. De seu casamento com Nair Gomes, nasceram: Leda, que se formou em arquitetura e se casou com Jean Claude Rossi; Carolina; Eduardo e Adriana; É filho, igualmente, de Júlio e de Nair, o engenheiro civil Fernando, casado com Flávia, pais dos jovens Felipe e Paulo, amantes da natação.

B) Tia Ana Azenha Salvador era a mais velha dos irmãos. Foi a progenitora do Elídio Salvador Maia (ou Gonçalves Salvador Maia). Vinda de Portugal, passou a viver com o filho e família na Penha, em São Paulo. Residiu antes em Cadima, vizinha de Coimbra.

C) Maria Azenha Salvador, que enviuvou ainda moça,

e, por isso morou com a mãe durante a nos na Tocha, juntamente com o sobrinho Júlio Rodrigues Brandão, cujos pais imigraram para o Brasil. Foi a mãe de Augusto e José Maria, que também vieram e aqui constituíram família. Augusto e sua mulher Patrocínia geraram Walter, Edson e Dirce.

D) Elias dos Anjos Gonçalves Salvador, meu pai.

Nasceu em 1892 e fez os estudos primários no vilarejo de Tocha. Quando moço serviu no exército, o que lhe proporcionou experiência e bons conhecimentos. Participou da guarda pessoal do jovem rei D. Manuel, fato de que se orgulhava. Casou com a prendada senhorita Encarnação Dias Cardoso, filha única de Rosa Cardoso, que a criara juntamente com os enteados, rebentos de Joaquim Dias Cardoso. Esta se constituiu, então, em verdadeira mãe para eles, razão porque muito a amavam, a ponto de chorarem sentidamente sua partida para o Brasil. Mulher forte, bondosa e sensata. Em Lins, quase todas as parturientes a chamavam para atendê-las. É curioso que atravessou o Atlântico por três vezes sem nunca enjoar. Depois que nasci, tornou-se minha amiga inseparável. Eu lhe devo eterna gratidão. Elias e Encarnação tiveram quatro filhos: Manoel, José, Celina e Judite. O primogênito e a caçula nasceram em Portugal, e os dois do meio em Lins, no Brasil. Todos deixaram descendentes.

• De Manoel, ficaram: a) pe. Antônio dos Anjos Salvador; b)Juliza, professora do Estado; c)Altamiro,

militar da Força Pública; d) Odila, casada com um funcionário dos correios e Ariovaldo, funcionário municipal em São Bernardo do Campo.

• De José, autor destas notas, são: a)Lineide, professora na Universidade de São Paulo, casada com o empresário Domingos Mosca. Têm os filhos: Ulisses, Aquiles e Péricles; b)Marineide, que está integrada no Ensino Superior e é casada como advogado João Maria dos Santos; são pais de Rafael e Fábio; c)José do Lago Gonçalves Salvador, funcionário da Cesp, em São Paulo. É pai de Wesley Duarte do Lago Salvador.

• De Celina: Élio, escrivão de cartório, e José, dentista.

• Judite, que faleceu após uma intervenção cirúrgica na cabeça. Deixou os filhos Noeli e Waldomiro Junior, que casaram posteriormente.

E) Encarnação. Foi a última filha do casal Ana Rodrigues Azenha e José, meus avós. Casou com Raul Brandão, pais de Júlio, que deixaram em Portugal. No Brasil lhes nasceu a menina Angelina. Encarnação faleceu de tuberculose em conseqüência do clima e do modus vivendi, embora tivesse feito tratamento em Campos do Jordão.

Escrevi, linhas atrás, que os Gonçalves Salvador,

agora conhecidos, provêm dos três irmãos Joaquim, Manoel e Francisco. Resta-nos saber mais um pouco sobre os dois últimos.

II. Manoel Gonçalves Salvador. Era, portanto, irmão

de meu bisavô. Convolou matrimônio com Rosa Azenha (Gonçalves Salvador). Mudou-se com a família para Ribeirão Preto, no Brasil, e ali faleceu, tendo sido sepultado no cemitério local. Filhos:

1) Beatriz. Nasceu e viveu sempre na Tocha. Foi divorciada. Teve o filho Fernando, que faleceu ainda jovem.

2) Ester, que também nasceu na Tocha, viveu sempre naquele local e ali constituiu família. Precedeu-a, ao que parece, o irmão, cuja descrição segue abaixo.

3) Joaquim Gonçalves Salvador, o qual veio, por fim, residir na cidade de Lins, na Noroeste, com a esposa Zenóbia e os filhos. Empregou-se como fiscal da Prefeitura, mas o zelo pelo serviço lhe granjeou inimigos, um dos quais o assassinou traiçoeiramente. O casal teve diversos filhos, a saber:

A) Álvaro, que alcançou o posto de capitão de

cavalaria, ao qual renunciou para trabalhar no comércio em Lins, tendo, finalmente, empregado-se numa companhia de seguros. Então adoeceu gravemente, internando-se em um hospital, na cidade de São Paulo. Visitei-o algumas vezes. Era um sujeito de bem; espírita e maçon; inteligente e muito ativo. Certa ocasião, o seu veículo ficou retido na estrada, longe da cidade. Pediu socorro aos que, porventura, passavam pelo local, mas, como evitassem ajuda-lo, sacou o revólver e atirou no primeiro carro que passou, estourando-lhes os pneus. Era assim o seu gênio. Casou em Lins com dona Maria, jovem senhora conhecida de tio Júlio, e viveram felizes durante anos. São os pais de Alvarinho, dentista, e de uma filha, casada, e moradora em Araraquara.

B) Aparecida. Convolou matrimônio em Araçatuba,

mas faleceu pouco tempo depois, creio que de parto, visto tratar-se de pessoa já idosa.

C) Alice Gonçalves Salvador. É professora pública

aposentada. Enquanto fazia o curso normal, hospedou-se no lar de minha mãe. Fomos muito bons amigos. Não foi

feliz no casamento e precisou desquitar-se. Reside em Piracicaba. Mãe de Maria Alice Azevedo, casada, e também ali reside.

D) Manoel. Empregou-se na Casa Lusitana, em

Bauru; depois adquiriu uma propriedade rural em Garça, se não me engano.

E) Eugênia, de quem fui grande amigo, por sermos

parentes e de igual idade. Casou com o nissei Kheite Mimaki. Residem em Mogi das Cruzes. Têm filhos.

F) Altair, casada, vive na Vila Gustavo, em São Paulo. G) Irã. Esteve preso por homicídio, creio que por

infidelidade conjugal. H) Wilson. Ignoro seu paradeiro e ocupação. 4) Professor Júlio Gonçalves Salvador. Foi casado.

Viveu na Tocha onde constituiu família. Além do magistério oficial, por cujas salas passaram centenas de alunos, encarregou-se também da agência dos correios. Estudei com o casal enquanto residimos no interior. Foram pessoas das mais queridas e prestimosas. Estive em sua casa, em 1963, juntamente com o meu primo Júlio Rodrigues Brandão. Encontrava-se viúvo, mas ainda forte. Organizou uma chácara no fundo do quintal, e ali também criava algumas cabeças de gado. Deixou dois valiosos filhos, a saber: dr. Manoel Júlio, que eu visitei em Lisboa, no ano de 1963, no alto posto de Juiz do Supremo Tribunal de Justiça e sua irmã, Maria José, que formou-se em medicina e convolou núpcias com o engenheiro, dr. Manoel, da Companhia Carris de Lisboa, mas não tive a ventura de conhecê-los, nem mais tarde.

5) Eugênio Gonçalves Salvador. Foi o último dos filhos de Manoel e Rosa. Nasceu na Tocha em 24 de abril de 1893. Veio para Ribeirão Preto aos dezessete anos com o avô Manuel Gonçalves Salvador. Casou-se aqui, em 1916, com Rosa Velludo, filha de Ilhéus da Madeira e deste enlace nasceram: Alamiro e Olga. Esta formou-se para o magistério, ao passo que ele cursou ciências contábeis, de sorte que, em 1935, ingressou na carreira bancária. Em 1941, Alamiro casou com Henilla Geüdice de Godoy, professora agora aposentada, natural de Mococa, no Estado de São Paulo. Nasceram, então, os dois rebentos: Cid Antônio Velludo Salvador (com 51 anos em 1993) e Luiz Antônio Velludo Salvador (com 40 anos). Ambos advogados militantes, casados e com filhos.

Alamiro, revelou-se pessoa inteligente e capaz,

tanto que fundou o Banco Agrícola de Alta Mogiana, do qual foi superintendente por muito tempo. Foi diretor do Bradesco em São Paulo e Presidente da Beneficência Portuguesa em Ribeirão Preto. Os parentes podem orgulhar-se, pois.

Vejamos outro elemento de suma valia na cadeia

dos Gonçalves Salvador: III. Francisco Gonçalves Salvador, irmão de

Joaquim, meu bisavô. Deu origem a uma ilustre descendência, conforme discriminação abaixo:

1. O filho homônimo, ou seja, Francisco.

2. Manoel Gonçalves Salvador. Sacerdote e Cônego. Consta que foi exercer o ministério eclesiástico nos Estados Unidos da América.

3. Dr. Aristides. Foi professor do Liceu em Cantanhede, vila próxima a Coimbra. Foi proprietário da Quinta da Conga, em Cadima, local onde residiu, também, durante anos, minha tia Ana.

4. Dr. Alfredo, médico, que eu fiquei conhecendo a bordo do navio da Mala Real Inglesa, em 1927, quando regressava ao Brasil com meus pais, avó Rosa e meus irmãos. Foi o referido médico que descobriu a enfermidade de seu primo Elias, meu pai, a qual lhe retirou a vida, por fim.

5. Maria. Mãe da notável geração de doutores, a seguir:

A) Dr. Manoel, médico na Tocha e diretor do Sanatório Rovisco Pais, bonita construção entre pinheirais. Não o encontrei na visita que lhe fiz em 1963.

B) Francisco, farmacêutico, exercia também a função

de administrador do mesmo Sanatório. C) Dr. Antônio, veterinário. D) Lucila. Casou com o dr. Manoel Gomes, médico na

Tocha. E) Palmira, de cujo matrimônio resultaram diversos

filhos, sendo que uma filha é farmacêutica no bairro Jabaquara, em São Paulo (Cidade Vargas).

Entrelaçados com os Salvador acham-se os Craveiros

e os Miranda, famílias cuja amizade vinha de longe. Antônio Miranda, irmão de minha bisavó, gerou: José

Miranda, o qual fixou moradia no Rio de Janeiro e foi o progenitor de: Joaquim Miranda, Augusto, e das irmãs

Carmem e Aurora Miranda, famosas no Brasil; Isaías Miranda, cujos filhos se estabeleceram em Pirajuí.

Minha avó, Ana Rodrigues Azenha, pertencia à

linhagem dos Craveiro. Seu irmão Joaquim é avô de: Antônio Mendes Craveiro, que faleceu em São Paulo; Manoel; Júlio; Glória e Belmira. Outros da mesma genealogia: José da Cunha Craveiro e Manoel da Cunha Craveiro.

Numerosos descendentes estão espalhados no Brasil

exercendo as mais diversas profissões, contribuindo, assim, para o bem do País.

IIIIIIII

A FASCINAÇÃO EXERCIDA PELO BRASIL

Portugal dispôs durante séculos de um vasto império,

com espaços que se estendiam desde a velha Europa até o Oriente distante, achando-se incluídas aí as Ilhas Adjacentes, o Reino de Angola, Moçambique e o Brasil, além de outras áreas. Havia, pois, o que escolher para habitar, sobreviver e negociar. Diga-se, no entanto, a bem da verdade, que nenhuma delas despertou tanto o espírito aventureiro dos portugueses como a Terra de Santa Cruz, designada mais tarde Brasil, concorrendo para isso a fama crescente da prodigalidade do solo, da higidez do clima e de prováveis riquezas ocultas nos ínvios sertões, segundo propalou Pero Vaz de Caminha, endossado por Pero de Magalhães Gândavo, pelos jesuítas em suas cartas e por tantos mais, sem esquecer os viajantes.

O certo é que uma vez iniciada a imigração o fato

jamais cessou, mesmo com a independência em 1822, com a abolição da escravatura negra, e com o estabelecimento da República. Ao contrário, foram abertas novas oportunidades para quem quisesse trabalhar. Então, locomoveram-se para cá pessoas de todas as regiões de Portugal, quer do norte, quer do centro, quer do sul. Isto significa que as antigas praças de atividade perderam o incentivo laborial em benefício do novel país, que permitia a qualquer tempo a obtenção de riqueza fácil. Conta-se, a propósito, a anedota acerca de certo indivíduo que ao desembarcar em um de nossos

portos, encontrou de imediato valiosa nota em papel moeda e chutou-a para longe, exclamando: “Esta é apenas a primeira”, e foi adiante, convicto de achar outras.

Após a guerra de 1914-1918, as oportunidades no

Brasil para trabalhar e ganhar dinheiro reabriram-se, aliás, com maior amplitude. Sucede, outrossim, que o Velho Mundo achava-se desmantelado e empobrecido, ao passo que os países da América careciam de gente. Cessaram os perigos no Atlântico e o tratamento a bordo melhorou sensivelmente. O transcurso nas viagens passou a exigir menos tempo. Assim, cresceu o número de passageiros com destino ao Brasil, sobretudo de jovens e de pessoas com algum capital prestes a investir. Lembre-se, também, que a pacificação dos indígenas em 1912-1913, originou boas condições em São Paulo, um dos focos de atração, proporcionando a abertura de propriedades rurais e de caminhos, incluindo vias férreas.

Entre os imigrados enumerava-se meu avô e

homônimo, José dos Anjos Gonçalves Salvador, natural da Tocha, vizinha de Coimbra. Porém, a aventura lhe seria deveras amarga, não só por deixar atrás de si a santa terrinha e família, mas igualmente, por vir a adquirir a terrível febre amarela, que lhe tiraria a vida, antes de notabilizar o médico Oswaldo Cruz, cuja campanha contribuiu para debelá-la e para incentivar novamente a imigração. Infelizmente, aquele meu ancestral não conseguiu escapar. Foi sepultado em Campinas ou Limeira, segundo informações.

No encalço do progenitor chegou logo após o

rapazola Júlio, contando apenas nove anos de idade. Nascera em 1897. Seu plano consistia em encontrar o pai e dar notícias à família, contudo, sofreu desdita de

saber que o mesmo falecera recentemente. Face a tal desventura, como agiria o pequeno Júlio em terra estranha? Descobriu, porém, que em Piracicaba residia o tio Joaquim e para lá se encaminhou, sendo recebido satisfatoriamente. Felizmente, também, encontrou emprego no comércio local, em cuja atividade se adestraria para o futuro; negócio muito de seu agrado. Graças ao bom desempenho no trabalho, ali revelado, amigos guindaram-no a encargo mais alto, pelo que, merecidamente, arranjaram-lhe colocação na firma Coelho, no Brás, em São Paulo. Entrementes, o tempo ia correndo. O menino fez-se homem, aliás, esbelto, respeitável e digno de confiança, razão, outrossim, para conquistar o coração da prendada senhorita de nome Isaura, dileta filha do comerciante português, sr. Manoel Pereira dos Reis, e com a mesma contraiu matrimônio. Corria o ano de 1913. Optaram para residir no minúsculo vilarejo de Lauro Muller, engastado no ponto inicial da Estrada Noroeste do Brasil, cujos habitantes eram em grande parte operários dessa via férrea, além de alguns sitiantes e fazendeiros que vinham chegando enquanto a referida estrada caminhava rumo a Araçatuba; derrubando matas, transpondo rios e dando lugar a novos aldeamentos. Isso deu margem a que Júlio, dono do armazém, chamasse para virem auxiliá-lo os sobrinhos Augusto e José Maria, residentes na Tocha. Ambos passaram anos depois para Lins, ao seu serviço ainda.

Evidentemente, outros elementos da cepa Gonçalves

Salvador seguiram o exemplo e também foram chegando. No rastro de Júlio veio o irmão Elias. Este já aqui se encontrava em março de 1914, pois no dia 25 autografou e enviou à saudosa mãe uma fotografia tirada em Palmar, vila recém-criada na linha Paulista. Ele havia deixado há pouco o serviço militar, em que fizera parte da

guarda pessoal de el-rei D. Manoel II, fato de que se orgulhava muito. Contudo, Elias somente deixaria Portugal após o casamento com uma jovem eleita por escolha própria, ao contrário do costume voga. Chamava-se Encarnação, em homenagem à tia homônima, mulher de Raul Brandão; era filha de Rosa Dias Cardoso e de Joaquim, o qual ficara viúvo e na posse de numerosos rebentos, motivo porque tiveram de conviver juntos, formando uma grande família; de modo que bela e forte amizade surgiu entre todos. A pequenina Encarnação tornou-se o alvo central desses irmãos, sobretudo desde a morte do velho Cardoso.

Nesse meio cresceu a menina. Quando iam às tarefas

na lavoura, levavam-na consigo. Por volta dos sete anos de idade, matricularam-na na classe feminina da escola do professor Júlio Salvador, em que sua senhora também lecionava, de sorte que Encarnação tornou-se uma das raras mulheres da região a alfabetizar-se. Moça ou adulta era procurada a fim de ler e responder as cartas remetidas do Brasil pelos maridos e filhos, com o que aprendeu certas coisas sobre o país. Aos domingos, participava das missas na igreja da Tocha; ali como na escola, nos bailes e noutras ocasiões, costumava avistar o vizinho e amigo, Elias. Ela gostava de dançar e de cantar. Aprendeu inclusive a dedilhar uma guitarra. O jovem muitas vezes lhe serviu de companhia em tais oportunidades. Nem o serviço militar conseguiu afastá-los inteiramente. Assim, sem se aperceberem, acabaram realizando o acordo feito no passado entre suas genitoras, pois um dia, ao tempo da gravidez de Rosa, estando Elias já nascido há alguns meses, Ana lhe disse: “Se tiveres uma menina haveremos de casar os dois”. O certo é que o evento se consumou espontaneamente, por decisão de ambos os jovens. Sucedeu o matrimônio em dia festivo, no cartório da Tocha e na igreja local.

Todavia, não demorou muito e o casal precisou

separar-se, visto que Elias resolveu ir para o Brasil, só retardando o fato a chegada do primogênito, ao qual deram o nome de Manoel, sendo o registro e o batismo efetuados na vila da Tocha. A seguir, trataram de reunir os capitais destinados à viagem e aos gastos na nova pátria, onde Elias encontrou o desconhecido. Por exemplo, em que lugar fixar-se e o que fazer, visto não possuir ofício algum, mas apenas coragem e ambição? Obteve, no entanto, uma informação preciosa: as companhias de estrada de ferro Paulista e Noroeste do Brasil, em pleno desenvolvimento, careciam de dormentes para o assentamento dos trilhos. Então, Elias foi entender-se com os respectivos diretores, optando pela primeira delas. Mas os gastos a enfrentar seriam vultosos, exigindo machados, serras braçais, limas, material de cozinha, abrigos, alimentos, pagamentos aos operários e assim por diante. Convidou, então, para se associarem com ele, o amigo Guímaro, que conhecia Tocha, e o sr. Bortolan. Organizaram tudo e deram início à tarefa. Foram alojar-se em Frutal, próximo ao Rio Grande. Não se intimidaram com o perigo da maleita e nem com o ataque dos terríveis mosquitos. O trabalho seria duro por demais, abrangendo, inclusive, o carregamento das madeiras. Restavam-lhes as saídas, de quando em quando, até Barretos, para a correspondência, para a retirada de dinheiro no banco, compra de medicamentos ou a efetivação de outras transações. Enfim, a atividade lhes proporcionava bons lucros. Elias se dispôs, então, a mandar vir de Portugal a família da qual estava separado há meses.

Encontrando-se as coisas nesse ponto, Elias enviou

instruções à mulher sobre como agir. Devia cuidar acerca do arrendamento das propriedades que tinham,

constando da relação: a casa de moradia e os lotes da lavoura, nos quais cultivavam feijões, trigo, abóboras, ervilhas, favas e outros produtos de consumo doméstico ou, quando possível, para vendagem na feira local, que se realizava uma vez por mês e incluía negócios de gado e aves. Ali, em certa ocasião, a jovem senhora adquiriu uma vaca leiteira, que por ser mocha, custou razoavelmente um preço menor.

Elias orientou de igual maneira a esposa, quanto à

viagem, como obter os passaportes e realizar o embarque. Tomariam o navio inglês da rota Brasil-Argentina, com escala em Santos, onde iria aguardá-los. Viriam somente a sogra, companheira impreterível da filha Encarnação, e o Manoelzinho. O chefe preveniu-os, outrossim, de que estaria a espera no porto santista, ao término da incômoda travessia oceânica. A seguir, tomariam o trem da São Paulo Railway em demanda do Planalto Paulista e com desembarque em São Paulo, para descanso. Na estação da Luz fariam transbordo com rumo à cidade de Barretos, destino final da aventura.

A ansiedade pelo encontro foi indescritível. O casal

vivera distantes longos meses e, ademais, os dois esposos se amavam muito. Elias deixara o filho primogênito ainda em tenra idade. A sogra constituía uma segunda mãe. O contentamento não poderia ser maior para todos. Uma nova vida começava a raiar.

Na verdade, numerosos parentes começaram a

desfrutar no Brasil o tipo de existência que não encontravam na terra-mãe, embora tivessem que trabalhar incansavelmente. O país é pródigo para quem luta; por isto, a corrente emigratória mereceu o beneplácito dos Gonçalves Salvador. Vieram logo: o Tio João; o Raul Brandão e a família (a mulher e a filha

Angelina); Jorge Rodrigues Craveiro; o jovem Elídio; os Miranda; os Ribeiro e tantos mais. A Noroeste soube acolhê-los.

O Brasil convertera-se em terra de portugueses. Eles

se achavam em todas as partes do país. Davam-se bem aqui, como na sua pátria. Nunca se julgavam em terra estranha. Na verdade, o Brasil era o prolongamento de Portugal, uma província da mãe-pátria.

IIIIIIIIIIII

COM OS PÉS NOS CHÃOS DO BRASIL

Ao iniciar-se a década de 1900 as viagens para o

Brasil iam-se tornando mais desejáveis, porém mais difíceis. A situação na Europa caracterizava-se por incompatibilidades entre as nações. Uma guerra teria que acontecer. Os governos trataram de acautelar-se. Os boatos corriam céleres. O temor subiu às alturas, decorrido algum tempo, até que Portugal se juntou ao grupo dos aliados. Entrementes, a luta armada estourou no ano de 1914 e prosseguiu por mais quatro anos, findando-se no ano de 1918. Viajar então, exigia muita coragem e muita força de vontade. Sucede, além de tudo, que os navios estavam sujeitos a inspeções no alto-mar para se verificar a que nações pertenciam e se conduziam armamentos. Por isso, o temor jazia a bordo dia e noite, ao passo que comandantes e tripulações deviam manter-se em vigilância.

Minha avó Rosa, a filha Encarnação e o pequeno

Manoel figuravam entre os amedrontados passageiros. Ela contou-me, anos depois, ainda emocionada, os sustos que padeceram até alcançarem o porto de Santos, final do pesadelo. Então o regozijo não poderia ser descrito, mesmo porque diversos familiares os aguardavam ali, incluindo-se o nosso Elias.

Assim, foi imenso o júbilo de toda a família, pois não

se viam há muito tempo, tanto que Manoelzinho fora

deixado recém-nascido e agora achava-se bem desenvolvido. Efetuado o desembarque e liberada a bagagem, dirigiram-se à estação da via férrea, onde tomaram a São Paulo Railway com destino ao burgo paulista, no cimo do planalto, transpondo vales e beirando precipícios. A paisagem era de rara beleza. Um hotel os acolheu em São Paulo, mas no dia seguinte tiveram que continuar viagem, rumando para o interior do Estado.

A família Salvador destinava-se à cidade de Barretos,

local de moradia de Elias e à curta distância do lugarejo de nome Frutal, onde ficava o acampamento da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, para a qual trabalhava fornecendo dormentes para o assentamento dos trilhos. Dali poderia visitar os queridos sempre que possível, no entanto, seu alvo consistia em mudar-se para a vila de Albuquerque Lins, na região noroeste do estado. O intuito era o de tornar-se negociante por conta e risco próprios, visto os ganhos que juntava como madeireiro, embora ainda se interessasse pela construção das vias férreas, nas quais o governo vinha se empenhando. O estímulo para tanto partia dos ingleses aqui residentes ou com negócios à vista. As iniciativas consumiram anos, até 1852.

A linha entre Santos e Jundiaí, inaugurada em 1867,

foi uma das primeiras. Em 1868 surgiu o plano da Companhia Paulista, mas construída a partir de 1870, e na mesma data a Companhia Ituana. Seguiram-se outras: a Mogiana, a Araraquarense, a Pedro II, e assim por diante. Algumas enfrentaram sérias dificuldades, ao passo que outras venceram. Entretanto, o espaçoso sertão permanecia quase intacto. Tudo isto era zona desconhecida e habitada por indígenas. A Estrada de

Ferro Noroeste só começaria bem depois, destacando-se no seu percurso a vila de Lins.

E por que Elias se interessou por este lugar? Tratava-

se de modesta aldeota situada na chamada “Zona do Sertão”, da qual se dizia estar fadada ao progresso. Ficava a meio caminho entre Bauru e Araçatuba; aquela inaugurada há tempos, e esta dando os passos iniciais. Quem quisesse prosperar era ali na região que devia instalar-se. Encontraria terras em abundância e sempre bem aguadas. Os índios tinham-se afastado mais para o interior. Os caingangues, ferozes no passado, achavam-se pacificados graças ao serviço de proteção e à obra conduzida pelo marechal Rondon. A ocupação do solo, ainda que penosa, estava sendo facilitada através de medidas governamentais, das quais a abertura da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil é o exemplo primordial. Para isso, o longo espaço foi dividido em talhões numerados cuja execução foi entregue a trabalhadores sob a chefia de guias competentes. De modo que, no devido tempo, em setembro de 1906, pôde ser inaugurado o apeadeiro denominado Lauro Müller, em homenagem ao ministro desse nome. Distava 92 quilômetros de Bauru. Outras paragens nasceram em seguida, a saber: Presidente Alves, Guarantã, Cafelândia, Lins, Promissão, Coroados, Birigui e Araçatuba. Algumas delas mudaram de nome, como Hector Legru, Promissão e Miguel Calmon. Entretanto, Lins, Birigui e Araçatuba logo foram se destacando, motivadas com o crescimento populacional, as oportunidades para trabalhar, a formação de sítios e fazendas e a edificação de olarias e serrarias. Hortas e searas surgiram em conseqüência. Máquinas para benefício do café ergueram-se aqui e ali. Por fim, Lins tornou-se o produtor número um dessa rubiácea e grande exportador da mesma.

A primitiva Albuquerque Lins em breve tornou-se

apenas cidade de Lins. Por obra da engenharia, deram-lhe a localização no Km 152 da Noroeste, próximo ao Riacho Douradinho (mais tarde Campestre) e a 900 metros da futura vila, no planalto adjunto. Assim, tornou-se necessário abrir um caminho até à estação ferroviária e levantar um pontilhão sobre o córrego, a fim de permitir a passagem do trem. Todavia, sempre que chovia pesado, as águas inundavam tudo, obstruindo o percurso de locomotivas e respectivos vagões. Eu assisti muitas vezes a esse drama, mas com o erguimento dos trilhos, isto cessou. Agora existe novo traçado e uma nova estação. A cidade, outrossim, mudou de aspecto. As moradias iniciais, geralmente simples casebres de madeira ou de pau-a-pique, deram lugar às de tijolos, erguidas mais e mais rumo à periferia. As ruas de chão batido dominaram por longos anos. A primeira delas recebeu a patriótica designação de Sete de Setembro, tendo predominado sobre as irmãs, visto ser a via de acesso ao embarcadouro ferroviário e ponto central de todo o comércio até bem tarde. Nela, igualmente, se efetuavam os carnavais e festejos cívicos e, às vezes, os religiosos. Por ali aconteciam as saídas de veículos (jardineiras) para Bauru e cidades vizinhas, para sítios e fazendas, naturalmente à medida que progresso foi chegando.

Por volta de 1911, o desenvolvimento de Lins já era

notável. Nenhuma outra a igualava neste sentido. Gente das mais diversas idades e profissões desembarcava ali todos os dias. Pessoas havia que se fixavam no lugar, enquanto outras, talvez a maioria, se dirigiam às lavouras. Uma das belas fazendas de que me recordo, e a conhecia bem, porque nela colhi variedade de frutas por diversas vezes, apelidava-se “Taquarussu”,

pertencente ao sr. Manoel Pereira dos Reis, sogro de meu tio Júlio e progenitor do jovem engenheiro civil, dr. Gumercindo, o qual desde 1913 prestou relevantes serviços à municipalidade e aos administradores. Não sejamos injustos, porém, esquecendo-nos dos bons médicos, farmacêuticos, professores, advogados e dos incógnitos carpinteiros e pedreiros que foram chegando, oferecendo ânimo ao lugar ao mesmo tempo que incentivavam o progresso. Entre as construções destacaram-se logo a escola primária e a cadeia pública, seguindo-se o edifício da Câmara e os santuários religiosos: a capelinha, no início, coberta de folhas de palmeira e o modesto templo da Igreja Metodista, próximo à residência de minha família, fato este que me constrangia a passar por ali, temerosamente, em razão do que se propalava acerca do culto protestante. Por exemplo, a respeito de suas cerimônias, dizia-se que eles prestavam adoração a um bode preto. Pura invencionice que eu acabei aceitando inicialmente, de modo que, certo dia, ao anoitecer, ouvi atrás de mim o chacoalhar constante de algum objeto; se parasse de correr, tudo cessava. Que seria isso? Eu desejava comprovar. Descobri, então, no bolso da calça, um espelho e diversas moedas. Quando, pois, corria, era certo que se batiam. O mistério foi descoberto. Aprendi, assim, a procurar razão das coisas ocultas.

Lembro-me, igualmente, de que nas proximidades do

templo metodista ficava a zona de meretrício, graças à repulsa da sociedade local. Ambos, contudo, mudaram-se anos depois, ao passo que duas das mulheres proscritas deixaram boa fama no lugar. Uma, por nome Ambrosina, ficou entrevada e se tornou adepta do metodismo. Por isso, aos domingos, alguns membros da seita, iam buscá-la para as reuniões, carregando-a numa cadeira de vime. A outra companheira, ainda bem moça,

conseguiu empregar-se em casa de insigne família, de onde saiu para casar-se com certo negociante. Veio a ser mãe de dois filhos, e respeitável senhora. Eu a conheci e aprendi a admirá-la por suas virtudes.

Ao tempo em que Elias se estabeleceu com uma

lojinha, Lins não passava de simples lugarejo. Para tanto, escolheu a esquina da rua Sete de Setembro cruzada pela congênere Campos Sales e vizinha de modesta pensão, que, depois, virou Hotel dos Viajantes. Havia ali, também, uma padaria que fabricava doces muito deliciosos e tentadores para mim. O ponto, então, era excepcional. Nossa residência, por sua vez, situava-se ao lado da loja, com acesso pela Campos Sales, e na mesma foi onde eu nasci. Não tardou muito e os dois irmãos se associaram, organizando a firma “Gonçalves Salvador e Irmão”, alterada mais tarde para “Gonçalves Salvador & Companhia”. O edifício, inclusive, sofreu uma grande reforma nos idos de 1919-1920, com mudanças no espaço e no aspecto, sendo-lhe anexado ao mesmo tempo o Cineteatro Salvador, que se tornou famoso pela aparência e pelos serviços prestados à comunidade linense. Além do embelezamento, oferecia lazer e instrução, pois realizavam-se ali festividades escolares e representações por companhias vindas de fora. Entrementes, o cinema projetava diariamente os melhores filmes da época. Aos domingos à tarde figurava a matinê, da qual eu seria assíduo freqüentador em minha adolescência. Gostava de assentar-me na galeria à direita, de onde podia avistar a bela menina-moça Aparecida Godinho, pela qual sentia certa inclinação.

Na atividade comercial, os irmãos Gonçalves

Salvador revelaram-se, igualmente, corajosos, ousados e finos mercantilistas. Os estoques, além de variados, eram renovados na medida do possível, sobretudo sal,

querosene, óleo comestível, diesel para veículos, ferragens de vários tipos, tecidos, cordoalhas e muitos outros artigos. Uma secção da casa, conhecida por “Palácio das Noivas”, destinava-se a bem servir os nubentes, de modo a evitar-lhes uma fastidiosa viagem à Capital, além dos gastos. De igual modo sucedia com relação à moeda estrangeira, porquanto os câmbios podiam ser efetuados através da firma. É justo lembrar, outrossim, que os “Salvador” contribuíram deveras em favor da agricultura, visto adiantarem empréstimos aos lavradores até às colheitas, ou fornecendo-lhes sementes. Assim, Lins projetou-se como grande produtor de cereais e de café. Na vida social e no setor político, os dois irmãos também exerceram notável papel.

Ademais, há certos aspectos a considerar na novel

comunidade interiorana, recém-nascida em pleno sertão. Sucederam-se alterações no povoamento. Aos poucos, surgiram as residências de alvenaria. Novas ruas foram abertas. A administração, de modo geral, se alterou. O relacionamento urbano e rural sofreu metamorfoses. E Lins passou por tudo isso. Durante anos a semana se revelava pacífica, ordeira e pouco movimentada, porque muita gente vivia na roça, ocupada nos sítios e fazendas, ao passo que, aos domingos, havia agitação. Tais ruralistas vinham suprir-se de certos artigos, ou negociar alguma coisa, ou encontrar amigos, e saber notícias. Uma prova das mais eloqüentes era visível através dos animais, cavalos e bestas, amarrados defronte aos bares, às casas de comércio e a outros pontos. Não raro, também, ouvia-se de manhã a cantilena sonora dos carros de boi que vinham adentrando à pacata cidadezinha. Mas ao anoitecer tudo voltava à antiga forma.

À semelhança de Lins, a Noroeste conheceu outras povoações. Ao longo da via férrea levantaram-se tantas mais, oferecendo oportunidade a quem quisesse comerciar de algum modo. Razão porque Elias e o irmão Júlio incentivaram amigos e parentes a se estabelecerem nos referidos lugares. Promissão foi uma das primeiras. Depois foi Glicério, onde nosso primo Ribeiro abriu loja de secos e molhados. Coroados, lugarejo que me deu motivo para a primeira viagem de trem. Ali meu pai adquiriu uma serraria e abriu casa de comércio; colocou o sobrinho Elídio e o cunhado Raul Brandão, viúvo, e de triste memória para nós, visto as falcatruas que cometeu durante a viagem de Elias, quando este foi obrigado a ausentar-se por motivo de doença.

IVIVIVIV

PERALTICES DO PEQUENO JOSÉ

Não se espantem os adultos com as maluquices das

crianças. Gente miúda tem que praticar doidices, que é próprio da natureza humana. Falta-lhes experiência, enquanto o bom senso ainda é rudimentar. São, por isso, inquietas, travessas e dominadas pela curiosidade. Às vezes fazem o mal pensando que estão agindo certo. É a maneira pela qual desenvolvem o seu psiquismo. Inclusive os filhos dos mesmos genitores pensam, sentem e agem diferentemente. É evidente, pois, que eu, José, pratique muitas artes e travessuras até bem tarde na vida.

Acredito que o dia do meu nascimento, oito de

setembro, teve caráter festivo, por ser o primeiro rebento da família nascido no Brasil, e por tratar-se de um belo garoto, ou seja, de um menino macho, daquele tipo que a sociedade aprova. De sorte que Elias brindou amigos e conhecidos na ocasião com um cálice de vinho do Porto. O nome a ser dado ao pimpolho causou diálogo sério entre o progenitor e o irmão Júlio porque, aquele, querendo homenagear o irmão, desejava que o filho se chamasse Júlio, ao passo que o segundo queria que se chamasse José, argumentando assim: “Não temos, entre todos os nossos parentes, alguém como o nome de nosso pai e agora é a oportunidade”. Assim, fui batizado e registrado poucos dias depois no cartório de Bento Ferraz de A. Pinto, sendo escrivão Sebastião Rebouças

de Carvalho e tendo por testemunhas Durval Raulino e Antônio Rebouças de Carvalho. A data do evento: 2 de outubro de 1916.

Nossa residência achava-se anexa à loja, pelo que

passei a conviver com os empregados e com os fregueses. Sei que gostavam de ouvir as palavras erradas e torcidas do meu rude vocabulário, inclusive, valiam-se das ocasiões para ensinar-me maroteiras. Quando, por exemplo, passava alguma jovem, mandavam-me dizer-lhe: “Você é bonita”, ou esta expressão mais graciosa: “Você quer casar comigo?”, ao que ela respondia: “Quero sim, mas vou esperar que tu cresças primeiro”. Se o caso fosse de passante masculino, retiravam uma espingarda do mostruário e ordenavam-me ir após o tal indivíduo com a arma no ombro, repetindo: “Espera aí, porque vou dar-te um tiro”.

Havia dois senhores muito particulares, cujo

tratamento para comigo foi sempre amistoso, por isso, nunca os esquecerei: Domingos de Matos Guedes e Nicolau Zarvos. Aquele, mulato, era um rico fazendeiro e político atuante; quando vinha à cidade, ia buscar-me para comer doces na confeitaria. O outro, conhecido por Zarvos, era um moço de origem grega que vivia no Hotel dos Viajantes, defronte ao armazém comercial dos irmãos Gonçalves Salvador. Via-me constantemente, de modo que a minha fisionomia pôde fixar-se em sua mente, como revelou dez anos mais tarde, através de um fato que alterou profundamente o meu futuro. Sobre isso falarei mais adiante.

Deixou lembranças, outrossim, o caso relativo à pipa

de groselha, guardada no depósito anexo à loja. Por curiosidade, mais do que por glutonice, abri a torneira e bebi tanto quanto foi possível, mas esqueci, ou não sabia

fechá-la, e deixei-a vazando livremente. Quando o mal foi descoberto, já era tarde para corrigi-lo. Ao Zezinho todos atribuíram a culpa. O pai apenas me admoestou, admitindo ser coisa de criança, a exemplo do que acontecia com a minha falsa dor de dentes. Era meu costume aparecer na loja e me queixar choroso de que estava sofrendo por essa causa, embora minha dentição fosse perfeita e contasse apenas cinco anos de idade. Bastava comer um pedaço de goiabada para que o mal desaparecesse. A pequena Calu, negra, que meus genitores admitiram ao serviço da família, às vezes participava das culpas, embora não as tivesse, e como era necessária, muitas faltas lhe eram toleradas, ainda porque minha irmã Celina viera enriquecer o nosso lar. Agora éramos dois brasileiros e mais o Manoel, português.

Lins também estava crescendo e melhorando. As ruas

ganharam sarjetas e, de quando em quando, a prefeitura mandava passar um trator sobre elas, até que, por fim, receberam paralelepípedos. Tornou-se, igualmente, imprescindível abrir ligações para certos lugarejos ao redor, como era o caso de Guaiçara, Getulina, Guaimbé e Sabino. Por sua vez, vilas mais à frente, na Noroeste, viraram cidades, como Glicério e Coroados, que eu vi nascer.

Coroados tem um sentido especial para mim. Meu

genitor resolveu montar uma serraria ali e abrir uma loja de secos e molhados. Convidou-me então para irmos juntos até lá. Fomos de trem pela Noroeste, conduzidos por uma Maria-fumaça. Locomotiva vagarosa, fagulhas de carvão e muita poeira. Fiquei deslumbrado com as paisagens, pois a mataria ainda permanecia quase intacta. Os espaços intermediários achavam-se ocupados

mal e mal. Comércio fraco durante a semana, porém mais ativo aos domingos.

Realizando o plano da serraria e da loja, mudamos

para Coroados. Ocupamos uma casa recém-construída, de madeira. Elias convidou o cunhado Raul Brandão, agora viúvo, para morar conosco. Os vizinhos resumiam-se a meia dúzia de famílias. Em caso de premente necessidade, precisávamos ir a Birigui, cidade das mais florescentes em toda a via férrea. A loja era bem suprida de mercadorias.

Pessoas adultas, antigas no lugar, insistiam a que

ninguém se afastasse das moradias ou da estação, senão a curta distância. Era perigoso adentrar o mato mais que o razoável; digamos quinhentos metros. Tudo muito vago, dependendo de cada indivíduo. A razão consistia em ouvir-se dizer que os índios costumavam aparecer por ali e investir contra os moradores, não deixando a salvo nem as composições da Estrada de Ferro Noroeste. Muita gente, contudo, desprezava os boatos, pois ia catar palmitos, ou caçar aves e animais, ou colher frutas silvestres. Assim, o Manoel, meu irmão, certa vez descobriu uma atraente jabuticabeira em plena florescência. Enquanto os frutos podiam ser colhidos à mão, tudo caminhava bem, mas, depois, tornou-se necessário outro meio; não uma escada e sim um machado, de modo que o inexperiente jovem resolveu golpear a árvore. O barulho, naturalmente, chamou a atenção de alguns vizinhos que acudiram logo, impedindo o sacrilégio, ao passo que nós dois fomos brindados com as deliciosas jabuticabas por muitos anos.

Aprendi coisas interessantes enquanto residimos em

Coroados; uns três anos ao todo. Entre elas, que o órgão urinário tinha outras funções, como, também, fazer sexo,

mesmo que instintivamente. Eu andaria nos meus cinco anos, quando muito.

O tempo voou e fomos morar em Portugal, na

Figueira da Foz, à margem do rio Mondego, de inesquecíveis lembranças. No verão, acostumamos-nos a nos banhar em sua belíssima praia, uma das mais vistosas em toda a Europa. Sucede que, em certa manhã, aproveitamos a oportunidade para catar mexilhões numa ilhazinha próxima, à flor das águas marítimas; esquecemos, porém, de preamar, quando a enchente sobe até ao limite máximo. Escusado é dizer que precisamos escapar enquanto ainda podíamos, advertidos por meu pai.

Imprevistos estão sempre a acontecer, até no lar, e

isto me faz lembrar de um evento que se passou comigo e meu primo Júlio, em Piracicaba, no interior paulista. Como era tempo de férias escolares, fui convidado a passar lá alguns dias com tia Isaura e filhos. Havia, então, junto à cama do primo Manoel, um despertador de que se servia para ir à escola de manhã. A inventiva nos saltou à mente, sugerindo-nos consertar o velho cronômetro, já um tanto desgastado. Ato seguido, começamos a tirar peça por peça colocando-as em certa ordem, a fim de facilitar a reposição. Ouvimos passos. Era o dono. De nada valeu nos apressarmos. Quando viu o estrago, Manoel virou fera. Propomos procurar um técnico. Acalmou-se então. Mas, felizmente, as férias terminaram, e eu pude safar-me, deixando o problema nas mãos do Júlio.

VVVV

REGRESSO FORÇADO A PORTUGAL

Eu nasci em um lar caracterizado por bem-

aventuranças. Nada nos faltava. A vida corria de vento em popa. Mas, por volta de meus seis anos de idade, tudo mudou. Sucedeu então que a árvore-tronco foi açoitada por forte ventania, incluindo, evidentemente, os ramos. Toda família forma um conjunto, de sorte que, se algum membro for atingido, o corpo todo padece. A sincronia é perfeita, e nós somos disso o exemplo. Em razão de sério abalo na saúde, Elias viu-se obrigado, por conselho médico, a abandonar os negócios se quisesse sobreviver para cuidar dos que lhe eram queridos. A fase alta da vida em comum principiara a declinar.

Lembro-me de que, nessa ocasião, ele já podia ser considerado um homem do povo, tal a sua identificação com os moradores e a vida de Lins. Tornara-se comum vê-lo participar nas festividades locais, fossem cívicas ou religiosas. Tinha numerosos amigos nas diversas classes sociais, e apesar de lusitano, fazia parte da Câmara Municipal. Fora eleito em 22 de outubro de 1920 por 84 votos, ao passo que o segundo candidato obteve apenas 33, conforme a ata do evento. Além dos compromissos sociais e políticos, Elias estava preso, também, aos de natureza econômica. Junto com o Júlio, dirigia os negócios da firma comercial, Gonçalves Salvador e Irmão, tendo tomado, a seguir, as rédeas do cineteatro Salvador, um dos mais notáveis em todo o Estado de São Paulo, tanto por sua construção como pelas companhias e pelos filmes que apresentava.

Entretanto, quase que inesperadamente, o chefe

precisou dar outro destino aos negócios. Desfez a sociedade com o irmão, confiou ao cunhado Raul Brandão, sob a forma de comodato, os haveres em Coroados, e cortou os laços que ainda o prendiam em toda a região. Arrumou as malas, providenciou a documentação necessária, despediu-se dos amigos, reuniu a família e embarcou rumo a Portugal. A saúde era a preocupação máxima. Assim, ele e a família não tardaram a chegar a Santos e, dali, ao Rio de Janeiro, onde o Alcântara, navio inglês, se deteve por algumas horas. Muitos passageiros quiseram ver a bela Guanabara e alugaram uma condução. Meu pai resolveu caminhar pelas ruas centrais, tomando-me por companheiro. Nem em São Paulo eu vira tanta gente, porque lá não saíramos do hotel. No Rio, entramos na Praça Mauá e descemos a Rio Branco. De repente, nos detivemos defronte a uma loja, em cuja vitrina encontrava-se exposto um artístico cavalinho de madeira. Elias perguntou o preço e sem titubear o adquiriu, dizendo-me: “É para ti. No navio terás tempo de sobra e precisarás de distração”. E ele estava certo. Comprou também para Manoel outro divertimento. Então voltamos ao barco. A noite se avizinhava. Mais alguns minutos, e partíamos para o Velho Mundo.

Aos poucos, o litoral brasileiro foi rareando. O

Atlântico dominava o espaço. Além das nuvens acima de nós e das águas oceânicas a perder de vista, podíamos contemplar de quando em quando os peixes voadores a saltitarem fora do imenso lençol aquático como que para nos divertirem, a mim, sobretudo. Até que o espetáculo tornou-se monótono, assim como a viagem. Embora houvessem diversões a bordo, entre elas o jogo de cartas, eu era obrigado a afastar-me do local.

Contudo, certo dia, ao amanhecer, percebemos ao

longe algo como montanhas escuras. Na verdade, tratava-se de terras da África, ou melhor, do Cabo Verde e Senegal. Breve atingimos o porto de Dacar, a meio de todo o percurso. Faltava outro tanto para atingirmos Portugal e acabar com o nosso mal-estar. Apenas a avó Rosa permaneceu sempre firme. Em Dacar, nome deveras estranho para o pequeno José, e creio que para os demais viajeiros, tivemos surpresas chocantes. Os habitantes eram de raça negra e de costumes atrasados. Gente mal vestida. Os moleques bastante atrevidos. Em razão de que a maioria dos homens resolvera baixar à terra, as crianças praticaram diversos furtos. Um deles pretendeu roubar-me os sapatos, e quando minha mãe o repreendeu, o danado mostrou-lhe uma faca escondida por debaixo do encardido calção. Por felicidade, outros de nossos companheiros acudiram logo. Todavia, bastava jogar às águas qualquer moeda do país, para que o mesmo sujeito fosse buscá-la prontamente.

Ao ouvir-se a buzina peculiar do navio convocando os

ausentes à embarcação, aconteceu a correria de sempre. Minutos depois, as escadas foram recolhidas e fechadas as portas de acesso à nave. O barco começou a mover-se lentamente. A noite encobriu tudo; o silêncio fez-se total. Nem sequer tocamos nas famosas ilhas portuguesas da Madeira, Açores ou qualquer outra. Agora, desejávamos alcançar o quanto antes o porto de Leixões, fim de nossa viagem marítima e motivo de gratidão ao Senhor da vida e Criador do Universo, pois não havia nenhum pastor ou sacerdote para nos conduzir. Eu, pelo menos, não vi nenhum.

Iríamos começar, realmente, uma nova etapa desde

que descemos em Portugal. A saúde de meu pai nos

preocupava deveras. Elias precisava entregar-se o quanto antes à orientação médica. Por isso, seguimos para os Ignácios, bairro da Tocha, onde ficaríamos em casa da avó Ana Rodrigues Azenha, que aguardava a todos, ansiosamente.

Naturalmente, os parentes e certos amigos vieram

nos visitar, entre os quais o primogênito do Raul Brandão, os filhos (ou enteados) da avó Rosa, as cunhadas, e outros. Então, Elias saiu em busca de tratamento, seguindo a orientação de um respeitável clínico. Na Serra da Estrela, havia diversos sanatórios destinados à recuperação de enfermos, e ele alojou-se ali o tempo necessário, sem esquecer a família, evidentemente. Assim, ao cabo de dois anos, pôde voltar em definitivo ao nosso convívio e reiniciar as atividades comerciais. Enquanto isso, minha mãe e a avó Rosa se entregaram à lavoura de suas terras. Recordo-me, de certo dia ao amanhecer, quando meu pai levou-me no colo para apanhar o comboio do trajeto Coimbra-Figueira da Foz, transpondo searas e pinheirais.

Visto obter excelentes resultados na recuperação da

sua saúde, meu pai resolveu fixar-se na cidade marítima de Figueira da Foz, a qual atendia bem aos seus interesses. Montou um escritório, alugou um armazém e ajustou as coisas alusivas ao complexo negócio do bacalhau. Os pescadores desse peixe hipotecavam-lhe o produto entregando-o ao fim de cada viagem. Cabia ao negociante o restante do empreendimento, como, por exemplo, o preparo e a vendagem do peixe. Para tanto, viu-se na contingência de conseguir um sócio, reunindo o capital de ambos. Descobriu, porém, depois de algum tempo, que aquele o estava enganando e decidiu separar-se do velhaco. Mas, quando foi à casa bancária retirar o próprio dinheiro, verificou que o desonesto havia

sacado tudo com a ajuda do gerente, seu padrinho de casamento. Adiante-se que a polícia nunca conseguiu encontrar o ladrão. Elias era homem de boa fé, e, por isso, enfrentou muitas situações semelhantes durante sua vida.

Entrementes, desfrutei de excelentes experiências na

Figueira da Foz, localização vizinha de Coimbra. Travei relação com a praia de banhos local; fiz bons amigos; visitei os arredores por mais de uma vez, inclusive Barcos, cidade carbonífera. Mas o mais importante para mim foi o tempo passado na escola primária do mestre João Evangelista, no centro da cidade, que eu frequentava diariamente, de manhã e à tarde. Aprendi não só a ler e a escrever, mas também rudimentos de gramática, história e geografia. Foi um desenvolvimento rápido e útil; a porta de acesso a muitas outras ciências. Lembro-me daquele dia fantástico quando meu pai chegou em casa à noite, trazendo um jornal. Inocentemente, peguei o referido órgão e comecei a ler. Ambos ficamos admirados: eu, pela descoberta, e meu genitor, pela novidade. Agora eu podia ver o que antes me estava oculto. Aconteceu verdadeiro milagre.

Dois outros acontecimentos causaram profunda

mudança no meu viver. Ambos enquanto ainda residíamos na Figueira da Foz. Recordo-me, a propósito, de que apreciava o regresso das embarcações que vinham da pesca do bacalhau. Ao longe, as velas de pano luziam por sua alvura, mas quando se aproximavam do cais apresentavam-se rotas e sujas. Aprendi que não se deve julgar segundo as aparências e sim após criterioso exame. Pessoas que, à primeira vista, nos impressionam mal, depois de convivermos com elas, modificamos o critério. Eu já passei por isso. Conheci

uma senhora estrangeira, feia e de péssimo sotaque, mas passei a admirá-la graças à convivência.

Por sua vez, minha mãe deu-me um exemplo

maravilhoso, em certa manhã de inverno. O correio chegou e entregou-me uma carta procedente do Brasil, conforme indicava a selagem. Imediatamente, levei-a ao destinatário: meu pai. Minha mãe aproximou-se, e ele leu a missiva a meia-voz enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. Que teria acontecido de grave? E virando-se para a dileta companheira disse: “Vamos arrumar as malas. Preciso ir imediatamente para o Brasil. Meu cunhado Raul, em Coroados, deu o tombo na praça, pois, consumiu as mercadorias que lhe confiei e não pagou aos nossos fornecedores com o dinheiro que lhe adiantei para isso”. Essas notícias, tão pesarosas, eram da autoria do guarda-livros da firma. Então, diante do que estava ocorrendo, minha querida mãe disse corajosamente a Elias: “Não deves ir; deixa tudo para lá; a tua saúde é o que importa. Nós somos jovens ainda e haveremos de recuperar o que está perdido”. Grande mulher; nasceu para lutar e vencer. Companheira incomparável; mãe exemplar.

Elias só voltaria ao Brasil meses depois. Apenas

Manoel iria consigo. De novo, Barretos entrou nos planos. Compraria uma pensão para o filho, enquanto se engajaria outra vez no fornecimento de madeira à Companhia Paulista de Estradas de Ferro. E assim aconteceu.

Entrementes, a família fora acrescida por mais duas

crianças, a saber: Celina, que havia nascido no Brasil, e Judith, em Portugal. Todos, porém, com a saída de Elias, mudaram-se para os Ignácios, junto à Tocha, onde a família possuía modesta residência e algumas terras de

lavoura. A administração da casa passara, evidentemente, à responsabilidade de Encarnação, embora coadjuvada por sua mãe, mulher prática e com valiosa experiência. Ali se encontravam, também, muitos amigos e parentes, o que lhes proporcionava encorajamento. Eu me tornara o varão da casa e já podia prestar certas tarefas, mas tive que adaptar-me às circunstâncias. Contudo, sempre reconheci a autoridade e o bom senso de minha mãe, enriquecidos com o quotidiano.

Nessa época, o meu tempo andava bem fragmentado.

Parte dele era consumido com a freqüência à escola do professor Júlio Gonçalves Salvador, nosso parente e grande amigo, que, todavia, nunca deixou de aplicar-me a palmatória, caso a merecesse. A freqüência exigia que eu caminhasse uns três quilômetros na ida e na volta, todos os dias; e eu fazia isso com alegria, porque, outrossim, facultava-me a oportunidade de visitar minha querida avó Ana, cuja residência ficava à beira da estrada. Podia, então, colher alguns figos ou maçãs no seu quintal, ou deliciar-me com um pedaço de broa de milho. De quando em quando, faziam-nos companhia na comilança o Raulzinho e a tia Maria.

As atividades agrícolas eram, igualmente, parte de

meus afazeres, quer nas semeaduras, quer nas colheitas. Os lotes destinados ao plantio de feijões, favas, ervilhas, milho, trigo, batatas, feno e outras espécies, distanciavam-se entre si, e todos a dois ou três quilometros da casa de morada. Eu levava às duas senhoras, comumente, o almoço que a avó Rosa e a filha tinham preparado pela manhã. Como o sótão não comportava a safra por inteiro, o milho era depositado, para guarda e secagem, numa eira cimentada, sob a vigilância minha e da avó, a fim de evitar cães e ladrões à

noite. A época das colheitas caracterizava-se por festejos, atraindo muitos jovens. Enganam-se quantos dizem que os portugueses são um povo triste. Conhecíamos diversas festas locais, como a das camarinhas, a das vinhas, a apanha de azeitonas, a debulha do milho (folhada), a da freqüência às praias para o arrastão das redes de pescaria, a da concentração mensal dos feirantes na praça da matriz, e assim por diante.

Por fim, meu pai resolveu vir passar alguns dias na

Pátria e, na volta, levar-nos consigo para o Brasil, que ele fizera o seu novo berço.

VIVIVIVI

CAI O ESTEIO DA FAMÍLIA DE ELIAS

Elias não pretendia demorar-se em Portugal, figurando nos seus planos apenas uma viagem rápida, visto que no Brasil, mais particularmente em Barretos, sérios compromissos o aguardavam. Inclusive, deixara ali o Manoelzinho à testa de uma pensão que alugara, sendo o rapaz de curta experiência. No entanto, cumpria-lhe visitar parentes e amigos antes do regresso. Em Cadima, residia a irmã Ana, muito querida, e de igual maneira, na Tocha, a irmã Maria e a mãe. Um papinho com o professor Júlio era exigência absoluta. Nos Morros, mais adiante, ficavam as moradias do tio Joaquim Dias, irmão da avó Rosa, de seu filho e nora, além de outros familiares. Nos Ignácios, outro lugarejo vizinho, estavam radicados desde há muito o cunhado Antonio Neto e família, além de diversos parentes. Seria imperdoável se, por acaso, esquecesse de Francisco Terezo, que fora seu padrinho de casamento e amigo deveras estimado. Por sua vez, uma ida à bela cidade praieira da Figueira da Foz, não distante, precisava acontecer, graças, sobretudo, à amizade que tinha com o sr. Manoel Cardoso, crente presbiteriano, do qual havia ganho no passado significativo exemplar do Novo Testamento. Eu tive a ventura de acompanhar meu pai em algumas dessas visitas. Ademais, devia ele vistoriar as propriedades que possuíamos nos arredores da Tocha, constituídas por terrenos de cultura, e confiá-las a bons rendeiros, pois não pensava em vendê-las. Só no futuro veria o que fazer, se necessário.

Como a família somava o casal, a sogra e os filhos, os passaportes consumiram tempo precioso. As exigências englobavam viagens a Cantanhede, sede do distrito, Coimbra e Figueira da Foz. Ficamos sabendo, entrementes, o nome do navio e a data do embarque, no cais do Porto, ao norte. A embarcação pertencia à Mala Real Inglesa, cujo percurso se prolongava até a Argentina, passando por Santos e Rio de Janeiro.

Então, no devido tempo, deixamos para trás, com

muita pena, a querida vila da Tocha, a cidade de Aveiro, além de outros lugares, até alcançarmos o embarcadouro, rumo ao Brasil. Fatos significativos iriam acontecer desde que subimos as escadas e buscamos o alojamento à nós destinado. Logo após a entrada, um dos oficiais da alta marinhagem nos aguardava, despertando-nos receio e temor. Que haveria de anormal? Nada, felizmente! Vendo meu pai aproximar-se, caminhou ao seu encontro e lhe disse jovialmente: “Estava à tua espera, pois vi a relação de passageiros. Tu és Elias Salvador. Eu me chamo Alfredo Salvador. Sucede que não nos vemos há anos, mas não importa! Somos parentes. Enquanto eu cursava medicina, tu vivias ocupado no Brasil. No momento, sirvo como médico neste navio. Aqui estou ao teu dispor. Procura-me, ao menos para conversarmos”. O inesperado encontro causou naquele momento grande júbilo aos dois, convertido posteriormente em séria preocupação e motivo de amargor, conforme veremos a seguir.

De fato, Elias e Alfredo eram primos. Ambos se

radicavam no mesmo tronco, pois descendiam de Joaquim Gonçalves Salvador e ainda tinham parentes residindo na Tocha. O encontro, agora, oferecia razões para uma viagem feliz, mas tal não aconteceu, porque meu pai ficou doente e, ao que se supunha, de

enfermidade contagiosa. Portanto, tornara-se forçoso o silêncio a respeito, pois do contrário, o doente e a família seriam obrigados a desembarcar. Além disso, naquele momento, tudo não passava de conjecturas.

O dr. Alfredo resolveu contemporizar a fim de verificar

melhor. Em plena viagem, o mal surgiu sem rebuços. A febre alta e outros sintomas indicavam a presença de tifóide, muito difícil de debelar à bordo, visto que a farmácia local não dispunha de medicamento adequado. O clínico empregou o que foi possível e recomendou que, ao aportarem no Rio de Janeiro, Elias procurasse melhores recursos, além de telegrafar ou telefonar ao filho mandando-lhe tomar providências em Barretos para internação no hospital assim que chegasse. Mas, infelizmente, o diagnóstico foi também ali confirmado, dando origem à terrível apreensão. Apesar do zelo dos médicos, o mal avançava dia-a-dia, até que por fim o enfermo sucumbiu. A notícia correu célere. Numerosos amigos vieram para o sepultamento, que teve lugar no cemitério municipal.

A crise que estávamos enfrentando agravou-se ainda

mais. Sem o chefe, e em terra estranha, ficamos como que paralisados. Todos fomos atingidos, e minha mãe mais que o restante da família, pois se afeiçoara a Elias desde criança. A falta do companheiro constituía-lhe uma perda irreparável e, de outro modo, ela precisou também assumir a direção do lar. Em meio à tamanha tristeza, o bom senso se fez sentir. O primeiro ato consistiu em dar notícias ao irmão Júlio, residente em Lins. Em segundo lugar, levantou-se o problema dos créditos e dos débitos do falecido. Como decisão, a viúva chamou para o acerto os sócios de Elias, senhores Guímaro e Bortolan, que lhe entregaram o saldo de uma pequena quantia em dinheiro. A honestidade dos dois foi impressionante.

Além dos três serem amigos exemplares, pertenciam à loja maçônica. Pessoas de nossas relações também vieram nos ajudar a enfrentar as amarguras, até que as águas foram se acalmando, permitindo-nos, então, pensar e tomar as decisões necessárias.

VIIVIIVIIVII

SITUAÇÃO ANGUSTIOSA APÓS O FALECIMENTO DO CHEFE

Quando o chefe cai, geralmente segue-se uma situação de crise. De igual modo, quando falta o esteio ou pilar de um edifício o mesmo vem abaixo, sofrendo danos todo o conjunto. Tratando-se de família sucede especialmente o abalo psíquico. A angústia e a incerteza decorrentes afetam o organismo e perturbam a mente, deixando-nos, então, como que desatinados. Assim, pois, tal nos aconteceu.

Três alternativas agitaram prontamente o espírito de

nossa família. Como nos encontrávamos entre gente quase desconhecida e em terra estranha, começamos a pensar: devemos ficar em Barretos e encontrar aqui a solução adequada; regressar a Portugal onde temos bens valiosos, parentes e amigos; ou fixar-nos em Lins, na Noroeste, onde já residimos tantos anos?

Tio Júlio foi informado de tudo e prontamente nos

respondeu. Lamentou o falecimento do irmão e acrescentou que deveríamos mudar para Lins. Perto dele encontraríamos alguma ajuda, ou, quando menos, o estímulo naquela hora de amargura. Contudo, sabíamos que sua situação financeira não se mostrava igual à de outros tempos. A crise do café atingira os Estados Unidos, abalando inclusive a vida no Brasil. A firma Gonçalves Salvador precisou encerrar as atividades, recaindo sobre Júlio a abominável calúnia de que abrira falência para colher maiores vantagens, mas o futuro

mostrou a verdade. O ardoroso comerciante, a fim de manter-se e à sua gente, precisou abrir um escritório imobiliário para vender terras em regiões novas do estado.

Fomos para Lins, mas os nossos problemas

continuaram, embora sob outros matizes. Por exemplo, nossa nova condição social revelou-se constrangedora logo no início. Estávamos pobres e necessitávamos viver modestamente onde até há pouco desfrutáramos de posição invejável. Para começar, alugamos um casebre de chão batido no quintal do sr. José Lopes, nosso velho amigo, a fim de gozarmos maior liberdade e dá-la também à família do tio Júlio, que nos acolhera bondosamente.

Entrementes, minha mãe e minha avó combinaram

lavar as roupas de hóspedes da pensão Lusitana, pertencente ao sr. Manoel Valgrande, situada à rua Campos Sales, defronte ao Colégio Americano. Eu ia buscar as roupas na segunda-feira e as devolvia antes do sábado.

Quanto à nossa pobreza, é testemunha o meio litro de

leite que comprávamos às vezes, além do insignificante pãozinho adquirido na fábrica próxima. Usávamos a roupa do corpo enquanto limpa, porquanto uma das duas mulheres lhes ministrava a lavagem, durante a noite, e assim sucessivamente, dia após dia até se tornarem inaproveitadas. Não desejávamos causar espécie a quem quer que fosse, nem ser envergonhados. Nisto, minha mãe era bastante exigente.

Também não podíamos pagar os serviços do alfaiate

ou da costureira, incumbindo-se minha mãe dessa tarefa. Ela dava jeito no vestuário da família remendando ou

costurando as peças e copiando as novas pelas velhas. Podemos aplicar-lhe as expressões do livro de Provérbios quando se refere à mulher que não teme o inverno porque, à noite, conserva acesa a sua luz, cuidando dos agasalhos destinados aos familiares. “E não temerá, por causa da neve, porque toda sua casa anda forrada de roupa dobrada. A força e a glória são os seus vestidos, e ri-se do dia futuro” (Pv 31. 21-25).

Face a tais contingências, eu e Manoel fomos

obrigados a procurar emprego. Sabedor de nossas dificuldades domésticas, meu primo Augusto, residente em Promissão, chamou-me para trabalhar na Farmácia Central, dos senhores Hoepner e Silveira. Sua mulher, Patrocínia, responsabilizaria-se pela lavagem de minhas roupas. Eu teria que fazer a limpeza da botica, lavar vidros, ajudar no preparo de certos medicamentos, especialmente xaropes, além de atender no transcurso da noite a quem viesse à procura de algum remédio. Havia muitos fregueses japoneses, de sorte que me interessei pela linguagem que falavam e assim aprendi palavras do vocabulário nipônico. Ao fim de algum tempo, enjoei daquela atividade por reter-me preso dia e noite, inclusive aos domingos. Como adolescente, eu desejava ir ao cinema, pelo menos naquele dia; porém quando chegava a hora, o patrão se recusava a confirmar a licença.

Resolvi, por conseguinte, abalar-me para a minha

querida Albuquerque Lins e procurar nova ocupação. Fui, então, encaminhado ao Clube do Partido Republicano, localizado à avenida Sete de Setembro, na altura da atual Casa dos Três Machados. O horário de trabalho estendia-se das 12 às 21 horas, portanto, sem me permitir voltar aos estudos. Isso acontecia desde que eu saíra de Portugal. Tinha por obrigação agora, além das

exigências ordinárias, o atendimento às mesas de jogo, pois os sócios se reuniam ali com essa finalidade. De quando em quando, solicitavam-me ovos cozidos, cigarros ou alguma outra coisa. Sucedeu que, certo dia, já ao anoitecer, adentrou a sala lateral, onde se efetuava a jogatina, um respeitável cavalheiro conhecido pelo nome de Nicolau Zarvos, meu velho amigo noutra época. Eu o desconheci naquele momento, e ele também não se revelou. Contudo, dirigiu-se ao gerente e lhe perguntou quem era o menino garçom. Estranhou ver-me naquela atividade, lembrando-se pelo nome dado, que se tratava de pessoa ligada à antiga família de Elias Gonçalves Salvador. E não ficou nisso, porque no dia seguinte dirigiu-se ao escritório de tio Júlio e o aconselhou a retirar-me do clube e a pôr-me na escola. De fato, obedecendo ordens do patrão, o sr. Germano, seu auxiliar, levou-me ao Colégio Americano, matriculando-me. Todavia, tio Júlio mudou-se para Piracicaba, semanas depois, e eu fiquei desempregado outra vez. Valeu-me, no entanto, a amizade dos irmãos Craveiro (Antônio, Gumercindo e José), em cuja livraria passei a trabalhar, tendo servido ali no lapso de dois anos, período em que aprendi muito e granjeei bons amigos. O meu relacionamento com escolas, alunos e famílias ampliou-se consideravelmente. Jamais esquecerei os apetitosos nhoques que dona lolanda, esposa do primo Antônio, me oferecia aos domingos. Eu só não gostava de sair à tarde para entregar revistas aos assinantes espalhados na cidade, sobretudo quando havia alguma disputa de futebol. Lins crescera em habitantes e vida comercial.

Não passou muito tempo e fiquei novamente sem

emprego, desta vez porque o horário de trabalho na livraria conflitava com o do ginásio. Diante de tal situação, o comerciante Antônio Simões Matias permitiu-

me ajudá-lo em sua loja de secos e molhados no período da tarde, com o que ganhava alguns mil réis. Entretanto, o dinheiro mal chegava para amortizar as despesas do meu lar e da escola. Ficamos embaraçados; o recurso era abandonar os estudos, conforme todos propunham, exceto a querida avó Rosa, que anteviu outra solução e disse: “De forma alguma o rapaz vai largar a escola; vamos pegar mais uma dúzia de roupas para lavar”. E assim aconteceu.

Em consonância, resolvi, também, falar com mr.

Hubbard, diretor do Americano, e contar-lhe a minha odisséia certo de que entenderia tudo. Como eu supunha, não me enganei! Recebeu-me atenciosa e carinhosamente, e firmamos o seguinte acordo: eu pagaria dali em diante apenas metade das taxas que o governo federal, através do Ministério da Educação, cobrasse. E esclareceu: “Não poderemos fazer mais do que isso, em vista da nossa folha de despesas; além do aluguel do edifício escolar ao sr. Armínio, temos o zelador, a energia elétrica, a conservação do prédio, professores e outros gastos”. Concordei, pois era verdade. Só os distintos mestres somavam o total de cinco, e todos recebiam ordenados baixíssimos, havendo, inclusive, os que ensinavam gratuitamente, a exemplo do dr. Paulo Novak, responsável pelas aulas de biologia; Rodolfo Arditti, francês, e Belmiro Andrade, português. Com as exigências curriculares, foram admitidos Nicolau Hasthen Reither, Luís Gomes do Val, Francisco Pedutti e Maximiliano Rossetini. Todavia, a escola começara modestamente, trazendo de fora os primeiros professores: Rosa Romano, de Juiz de Fora; Antonieta de Campos Gonçalves, de Piracicaba; Pérsia Pupo e outros. A todos deixo aqui a minha gratidão e, de modo muito especial, ao querido missionário Clement Evans Hubbard, mestre, verdadeiro amigo e meu pai

adotivo, sem o qual não sei o que seria. Muita coisa poderia lembrar acerca de alunos, mestres e acontecimentos, mas sucede que não estou escrevendo um livro de memórias.

Um dos fatores que me levaram a admirar e a querer

bem a mr. Hubbard, revela-se no seguinte, que é uma prova de que os maus companheiros corrompem os bons costumes. Eu tive um desses, chamado Miguel Farah; sujeito endiabrado. Por sua causa, fui induzido a fazer o que não devia. Assim, resolvemos, após a chuva torrencial da noite anterior, demolir o muro que separava a escola e a propriedade vizinha. Tinha restado somente parte. Nós nos divertimos a valer com a queda, observando os tijolos virem a baixo quais soldadinhos de brinquedo. Contudo, mr. Hubbard descobriu quem eram os vândalos e nos chamou ao escritório da reitoria. Suas palavras calaram profundamente em mim por serem revestidas de tolerância e bondade: “Salvador”, disse ele, “você deve saber que o colégio luta com sérias dificuldades. Eu não esperava isso de sua parte”. E não disse mais nada. Em conseqüência, saí dali envergonhado e prometendo emendar-me. De fato, essa experiência e outras, contribuíram para que eu me tornasse uma nova criatura.

Também encontrei bons colegas no Americano,

moças e rapazes. Lembro-me da Geracina Menezes, filha de humilde carpinteiro, estudiosa e amiga sincera. Nós nos dávamos como irmãos. Sou-lhe grato por introduzir-me ao Evangelho e por me levar à Igreja. Outra no rol foi a Liane Pigeard, bela e sempre jovial, cujos pais, engenheiro Adolfo Pigeard e senhora, a adotaram como filha, e esta bem o sabia, jamais lamentando a situação e respondendo até com orgulho: “Eu só conheço os dois, pois têm-me tratado assim, e eu lhes sou

agradecida pelo amor que me devotam”. Não me esqueço do Pedro de Alcântara Worms, esbelto, educado e brincalhão. Gostava de poesia e declamava como poucos. Guilherme de Almeida figurava entre os seus favoritos. Um dia, emprestou-me o Messidor, que eu também apreciava. Mas o Pedro não se importava seriamente com os estudos e colava afoitamente nos exames, deixando-nos deveras atrapalhados, fosse o professor perspicaz como dona Áurea ou não. Incluo na lista desses bons companheiros o Nicola Haman e os irmãos Eid, Kalil e Chaim. Aquele jovem, após concluir o curso, ingressou no Banco do Brasil, mas faleceu ainda solteiro. O Kalil desfrutava de excelente amizade no meio escolar, razão porque minha prima Alice quis elegê-lo “rei dos estudantes”. Fizemos a campanha distribuindo boletins e fixando cartazes nos muros e postes, mas os jovens preferiram uma rainha por ser mais dócil e atraente.

Quero lembrar-me, outrossim, da figura inesquecível

de Ulísses Silveira Guimarães. Nossas residências ficavam próximas, embora em ruas diferentes. Tínhamos a mesma idade. Enquanto ele cursava a escola normal, com o objetivo de tornar-se professor, eu freqüentava o Instituto Americano, o IAL. Às vezes, nos encontrávamos quando se dirigia à aula de piano, ou à tarde, quando jogávamos futebol, pois era o dirigente da equipe e dono da bola. Cavalheiro e humilde. Tratava bem a todos. Veio depois para São Paulo e formou-se em Direito. Encontrei-o depois, já deputado. Ajudou-me, quando eu era presidente do IAL, a obter licença do governo para o funcionamento da Faculdade de Odontologia de Lins. Foi a Petrópolis, então, onde se achava o presidente Gaspar Dutra, e conseguiu a assinatura de S. Excia. Por isso, ao realizar-se a formatura da primeira turma, a escola o convidou como paraninfo. Por suas realizações, inclusive

em Lins, o povo o adotou como filho muito amado. Infelizmente, faleceu de modo trágico em desastre de helicóptero, nas alturas de Angra dos Reis.

O Instituto Americano foi uma bênção para muita

gente. Nunca fechou as portas para quem quisesse estudar e não tivesse recursos. Mr. Hubbard sempre encontrava meios para tanto, desde que o candidato mostrasse interesse e estivesse disposto a desempenhar algum trabalho. Tais possibilidades se alargaram no decorrer dos anos. Primeiro concentrava-se no trabalho do edifício de aulas, depois juntaram-se sucessivamente a Chácara lalense, na qual laboravam candidatos ao ministério pastoral, e os dois internatos — masculino e feminino. Eu servi de auxiliar ao professor de química, Francisco Pedutti, no laboratório. No último ano do curso ginasial, recebi a incumbência de criar e dirigir uma classe noturna de alfabetização para adultos. Funcionava das 19 às 21 horas e os alunos pagavam 10 mil réis por mês, sendo 5 mil réis para mim, e o restante para fazer frente às despesas. A quantia me foi útil deveras. Assim liguei-me cada vez mais ao educandário, ao ponto de exercer a presidência do seu conselho de administração anos depois. Entrementes, instituí a medalha “Gonçalves Salvador” em memória de Elias, distribuída anualmente ao aluno que atingisse o maior número de pontos, segundo determinado critério. Perdeu a existência quando o critério deixou de ser obedecido.

Havia muitas coisas interessantes no Instituto

Americano. A primeira consistia em permitir o ensino misto, isto é, para os dois sexos reunidos numa única classe, fato ainda estranho no Brasil, e que lhe custou calúnias e perseguições. Além disso, sabia-se que promovia o culto e as idéias protestantes. Na verdade, o diretor e as professoras realizavam pela manhã, de

quando em quando, uma prática religiosa no referido estilo. Eu mesmo participava dessas reuniões. O ano escolar não principiava e nem era encerrado sem o culto religioso, de modo que a presença de Deus estava sempre na mente de todos. Também o ensino era levado muito a sério. Igualmente sucedia com as letras. Quem não se lembra do Grêmio Sílvio Romero? Os sócios se congregavam semanalmente para ouvir poesias e discursos, além de uma tese sobre determinados assuntos. As reuniões eram, às vezes, calorosas, notando-se a presença de ilustres membros do povo. Eu pertenci à diretoria e foi ali que encontrei a minha futura esposa. Não me esqueço, outrossim, de nossos desfiles pelas ruas da cidade, ao som de tambores e de clarins, ostentando os garbosos uniformes brancos; à frente, o comando dos professores Belmiro Andrade e Rodolfo Arditti; com aquele fiz profissão de fé na Igreja Metodista. O Arditti, bom amigo, esteve presente na Academia Brasileira de Letras quando recebi o prêmio literário “Erudição”. Também compareceu o Pedro Worms. Grande satisfação me causou a presença de ambos. Juntos tiramos fotos do evento.

Entrementes, eu e minha família, curtimos amarguras

e necessidades no começo de nossa vida em Lins, porém, com o decorrer dos dias, o quadro foi se alterando para melhor. Eu e Manoel encontramos trabalho. O “pão nosso de cada dia” cresceu de tamanho. O leite deixou de restringir-se a meio litro apenas. Ganhamos dinheiro suficiente para ir à costureira e ao alfaiate e podíamos, conseqüentemente, apresentar-nos à sociedade trajando-nos melhor. A modesta casinha de madeira cedeu vez a uma de alvenaria. Celina e Judite também puderam estudar e vestir-se mais a gosto. Nossa avó Rosa tinha direito, agora, ao descanso que não desfrutara noutros tempos.

Contribuiu, igualmente, para a esplêndida mudança

acima, uma transação realizada por minha mãe. O bom senso nunca a abandonou, nem quando certo ricaço português lhe propôs casamento. Em sua resposta ao pretendente, disse: “Quero continuar vivendo com meus filhos, e para eles somente”. Seu amor ao Brasil induziu-a também a desligar-se de Portugal. Sentia-se bem aqui e por isso não pretendia regressar à mãe-pátria. Ademais, os bens que permaneciam lá só lhe causavam preocupações. Que fazer então? Informada de que nosso vizinho em Portugal, sr. Manoel Nogueira, viria visitar o irmão residente no Jabaquara, convidou-o para uma transação a interesse de ambos, assim alvitrando: ele lhe pagaria em moeda brasileira o equivalente às propriedades em Portugal, fariam o câmbio e passariam as escrituras em cartório oficial. E assim aconteceu. O total do dinheiro foi dividido com os quatro herdeiros. A mim couberam 7 contos de réis, que empreguei no acabamento de minha casa na rua Alfeu Tavares, em Rudge Ramos, bairro de São Bernardo do Campo. Não foi tudo quanto eu precisava, mas ajudou muito.

VIVIVIVIIIIIIIII

A REVOLUÇÃO PAULISTA EM 1932

De forma alguma poderia esquecer-me da Revolução

Paulista em 1932, tal a sua importância e mesmo porque recebi o seu impacto. Embora estourasse quase que inesperadamente, as causas já vinham de longe. É possível ligá-la à crise ocorrida com a lavoura em 1928 e com a ascensão de Getúlio Vargas em 1930, cujo governo se caracterizou por atitudes ditatoriais. O certo é que paulistas e gaúchos divergiram desde o início sobre os verdadeiros motivos do conflito. O estopim data de 23 de maio de 1932, quando estudantes saíram às ruas clamando contra o chefe da nação, considerado usurpador do poder, e do qual se exigia uma nova Constituição. Mas a partir de 9 de julho é que o movimento começou a tomar corpo, organizando-se para a luta armada. Os ânimos se acirraram então com a morte de quatro estudantes da Faculdade de Direito, do Largo de São Francisco, origem da sigla MMDC. A seguir, figuras proeminentes se colocaram à frente dos paulistas, chamadas também de “constitucionalistas”: o governador Pedro de Toledo, o general Bertholdo Klinger, Isidoro Dias Lopes, o coronel Eduardo de Figueiredo, o comandante da Força Pública, Marcondes Salgado, Palimércio de Rezende, além de outros militares. Oradores do naipe de Ibraim Nobre e de Guilherme de Andrade de Almeida inflamavam as turbas. O patriotismo se expandia contagiando a massa do povo. Pessoas de todas as classes aderiram prestes ao movimento. Havia

lugar para todos, fossem ricos ou pobres, profissionais, fazendeiros ou industriais, modestos trabalhadores, jovens e adultos, homens e mulheres, sem discriminação étnica ou de nacionalidade. Trabalhava-se nas vilas e nas cidades, com vistas a suprir as frentes de batalha com o imprescindível. Logo surgiram, evidentemente, as frentes de batalha, destacando-se Cunha, Eleutério, Itararé, o Túnel e Lindóia. Diariamente, chegavam comboios de combatentes a São Paulo, de onde prosseguiam para os locais que lhes eram designados.

Por sua vez, as forças do getulismo atacavam por

todos os lados. Puseram gente nas fronteiras e bloquearam o porto de Santos. Os paulistas ficaram inteiramente isolados. Enquanto isso, os jornais do Rio de Janeiro instigavam o país alegando que os adversários visavam criar um Estado independente, ou seja, uma nação à parte. A resposta, contudo, podia ser vista no selo impresso com a marca “Correio do Brasil”, além de um mapa com o lema da Constituição e os dizeres: “Pro Brasília Fiant Exímia”.

As notícias chegaram a Lins no dia 10 de julho e uma

semana depois já estava formado o seu batalhão, contando uns quinhentos combatentes, inexperientes quase todos quanto à matéria. Esta, porém, foi confiada a meu primo Álvaro Gonçalves Salvador e ao médico Péricles da Silva Pereira. Os milicianos recebiam, então, a farda, um cantil, um prato de ágate, faca e colher, um quepe, botas e um modesto cobertor. O prefeito, dr. Érico de Abreu Sodré, destacava-se no atendimento geral, em razão do alto cargo que exercia. Formou-se também uma Associação de Assistência aos Soldados, dirigida por senhoras da sociedade local. Eu me encontrava ali em tal ocasião e vi o que se passava, como, por exemplo, o desembarque de certo militar, tenente ou capitão, cujo

fim era o de convocar voluntários para a luta, verificar os arranjos na retaguarda e incentivar o povo.

Certo dia, fomos à estação para conhecer o general

Klinger que vinha de Mato Grosso em comboio especial da Noroeste, acompanhado por voluntários procedentes de vários lugares, rumo a São Paulo. Traziam consigo as armas possíveis, além de objetos pessoais, instrumentos de música e outros trastes. Até a sucata era aproveitada. O dinheiro teve igualmente a sua vez, graças aos apelos feitos à população. Criou-se, a propósito, o atrativo slogan sintetizado nas sugestivas palavras “Dei ouro para o bem de São Paulo”, o qual, na verdade, era trocado por um anel de ferro. Sabe-se, em conseqüência, que muita gente ofertou o melhor à sua disposição, jóias, objetos de arte e outros valores. Se bem que, conforme se disse depois, nem tudo chegou ao merecido destino.

O estado, naturalmente, sofreu em todos os sentidos

com essa guerra fratricida. É impossível descrever os prejuízos causados à lavoura, à indústria, ao comércio e à educação. Por exemplo, numerosas escolas cerraram as portas, visto que professores, funcionários e alunos aderiram ao abarcante movimento. Eu estava no 2º ano do curso ginasial quando perdi muitas aulas, assim como o geral dos meus condiscípulos. A situação foi-se agravando dia após dia, de modo que os paulistas acabaram ficando sozinhos, vendo as tropas se desgastarem cada vez mais. Só restava “pedirem água” ao lado contrário. E isto de fato aconteceu a 27 de setembro, quando se deram passos com vistas ao armistício, o qual, por fim, se concretizou a 2 de outubro, dando a luta por terminada. Entre as conseqüências, houve uma que me atingiu de perto, isentando-me, e a todos os estudantes, no caso, dos exames escolares, e permitindo que nos matriculássemos no ano seguinte do

curso. Ao mesmo tempo, prometia-se aquilo que os paulistas tanto queriam, ou seja, uma nova Constituição, que foi aprovada em 16/07/34.

Contudo, a minha turma do ginasial (1934) resolveu

promover alguns shows para levantamento de fundos, objetivando as solenidades da formatura. Feita a programação, cada colega ficou responsável por determinado papel. A mim coube o de embaixador de Portugal na comédia A Liga das Nações. Não me faltou um vistoso bigode, uma fictícia corrente de ouro, além de medalhas à base de tampinhas de cerveja. Entremeamos tudo com bailados, cânticos e poesias. As festividades realizaram-se no conhecido teatro São Salvador. Assim, igualmente me despedindo da minha terra natal, pois dias mais e eu seguiria para o Granbery, em Juiz de Fora.

A Revolução Paulista faz parte integrante de nossa

história e jamais será esquecida, porque cavou fundo no espírito das velhas gerações. Para se perpetuar sua memória, edificou-se no Ibirapuera o mausoléu destinado a receber os corpos dos que sucumbiram nos combates e os de quantos ainda sobrevivem. Tornou-se praxe, outrossim, comemorar o 9 de julho, esta significativa data, com desfile dos ex-combatentes. É encantador vê-los marchando uniformizados, ao som dos tambores e ostentando a bandeira que desfraldaram na gloriosa peleja. Sucede também que o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, na qualidade de salvaguarda de nossas tradições, sempre se preocupou em alimentá-las, não as deixando caírem no olvido. Assim, costuma promover reuniões todas as semanas, quando os eventos são relembrados.

Em dois desses encontros, tive o prazer de conversar

com os eminentes patriotas, Ibraim Nobre e Guilherme de

Andrade de Almeida, ambos avançados em idade e já combalidos, mas desfrutando ainda de boa memória. Gozavam de valiosa fama e mereciam elevado respeito. Não era para menos. Sobretudo Guilherme, que, além de advogado e jornalista dos mais profícuos, estivera em combate nos arredores de Cunha e havia sido exilado em Portugal por reclamar pela constitucionalização do Brasil. Por isso, quando faleceu anos depois, em 11 de Julho de 1969, pessoas de todas as classes lhe prestaram honrosa homenagem. Muita gente lembrava-se sentidamente dos sonetos e dos poemas de sua autoria enaltecendo São Paulo, como: “Bandeira Paulista”, “Moeda Paulista”, o “Credo”, e outros. Neste último, assim se expressa:

“Creio no pavilhão das treze listas, na santa união de todos os paulistas, na comunhão da raça adolescente, na remissão final de nossa gente, na ressureição de nosso bem, na vida eterna de São Paulo, amém”. E quem não se recorda da Canção dos

Expedicionários,1 na qual descreve o soldado brasileiro

1 De autoria do prof. Osmar Barbosa: “Você sabe de onde eu venho?/ É do livre desempenho/ Que cumpri por meu Brasil./ Venho da terra européia/ Trazendo escrita a odisséia/ Na altivez do meu fuzil./ Venho dos campos nevados/ Onde deixei sepultados/ Os meus irmãos tropicaes,/ Dormindo após a vitória/ O eterno sonho da glória/ Na glória imortal da paz/ Você sabe de onde eu venho?/ É de urna pátria que eu tenho/ No fundo da cicatriz./ Venho dos esternos ferinos,/ Do sopé dos Apeninos/ Onde lutei como quis./ Venho do pó calmo e belo/ Do alto do Monte Castelo/ De onde expulsei o alemão,/ Venho da frente mais forte,/ Trazendo, ao vencer a morte/ O Brasil no coração./ Por mais luta que eu passasse/ Permitiu Deus que eu voltasse/ Para o meu torrão natal./ Quero, enfim, a paz, paterna,/ Encontrar na unção materna/ A ternura divinal/ Volto, sereno e feliz/ Aos carinhos do meu lar/ Satisfeito do que fiz/ Do outro lado do mar/ Pois meu coração me diz/ Quanto devo me orgulhar./ Venho da terra estrangeira/ Onde a raça brasileira/ Deu lição de amor e fé./ Venho da fria montanha/ Do vasto sul da

nos campos da guerra européia? Muita coisa há a respeito de sua atuação no jornalismo. Quero mencionar apenas que o abnegado Guilherme tentou um dia criar o seu próprio diário. Deu-lhe o título de Jornal de São Paulo, organizou-o, e o pôs a circular. Eu fui convidado a representá-lo na qualidade de correspondente na Noroeste. Por alguns meses, apenas, porque logo encerrou a atividade. Creio que à falta de recurso financeiro.

Bolonha/ De Roma, da Santa Sé/ Comigo trago a saudade/ A esperança, a liberdade,/ A honra de minha nação./ Trago os troféus de batalha/ A eloquência da metralha/ Na minha ardente emoção./ Venho do chão libertado/ Do solo estranho lavado/ No sangue de meus irmãos./ Da bravura sertaneja/ Do coliseu da peleja,/ Do rubro altar dos cristãos/ Da cruzada americana/ Para o calor da choupana,/ Para os verdes estendaes/ Conquistado após a guerra/ O meu pedaço de terra/ Terra santa de meus pais”.

IIIIXXXX

A GRANDE DECISÃO TOMADA

FOR JOSÉ

O último ano no Ginásio Americano, em Lins (1935), caracterizou-se por importantes decisões, as quais diziam respeito ao futuro, sobretudo à profissão, ao trabalho e ao casamento, peculiares a muitos jovens. Dentre eles, a vocação me perturbava seriamente. Eu queria, por exemplo, prosseguir nos estudos, mas não dispunha de recursos. Inclinei-me, então, para o ministério evangélico por considerá-lo útil e honroso, em vista da atuação dos pastores meus conhecidos. Consegui, entrementes, por meio dos senhor Hubbard e do missionário Dawsey, uma bolsa de estudos no ginásio do Granbery, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Havia, porém, um forte embaraço: minha família era carecente de meus recursos, sobretudo agora quando seria possível obter emprego no comércio. Mas nada me demoveu daquele intento, nem mesmo as promessas que minha mãe fizera à Senhora Aparecida. Contudo, passados alguns dias, disse-me ela: “Se fores, não deves contar com o nosso auxílio, porque não temos e nem queremos”. E assim aconteceu, de fato, enquanto permaneci na cidade mineira.

Na véspera da viagem, botei o despertador nas cinco

horas da manhã, a tempo de pegar o trem da Noroeste. Não restava outro meio. Minha mãe também se levantou; lágrimas lhe corriam pela face. Eu mal podia imaginar a profundidade que o ato significava para nós dois. Fiz-me forte, mas senti o coração trespassado, e mais ainda quando se dirigiu a mim perguntando: “Filho, então vais

mesmo”? Abraçamo-nos a seguir. Ouvi-a exclamar por fim: “Deus te abençõe; ficarei orando por ti”. As palavras não me saiam da garganta, nem que eu quisesse. Permaneci inteiramente mudo. Então, apanhei as malas e sai correndo rumo à gare da estrada de ferro. Quantos já se manifestaram sobre este difícil momento?

Parti! O dia vinha clareando. Os pensamentos me

fervilhavam na mente. Lembrei, pois, da escola, dos amigos e de tanta gente que me era familiar. O receio da longa viagem até Juiz de Fora começou a abalar-me: e ao chegar à cidade, que desconhecia, como acertar o caminho? Felizmente, inúmeras distrações foram tirando-me das apreensões negativas. Eu descortinava, num relance de olhos, a correr para trás sítios e fazendas, pastagens, cursos de água, pessoas, gente que entrava ou saía dos vagões nos logradouros de embarque. Às vezes, surgiam garotos vendendo doces ou sorvetes e de quando em quando, em algum botequim nas estações, bebidas e guloseimas. Durante o percurso efetuavam-se trocas de trens, a primeira das quais em Bauru, a segunda em Itirapina, a maior de todas, depois, em São Paulo, e, então, em Barra do Piraí, na Central do Brasil, quando se baldeava para Juiz de Fora, tomando o ramal Rio-Belo Horizonte. Eram mudanças apreensivas e temerosas, sobretudo para quem nunca as havia feito sozinho. A maior confusão sucedia sempre no caso dos trens com horários e destino diferentes, deveras comuns em Piraí, onde se aguardava tempo considerável.

Em São Paulo, fui hóspede de meu primo José Maria,

no hotel próximo ao Jardim da Luz e estação de igual nome. Demorei ali uma semana, aproveitando para conhecer esta zona da cidade, assim como o quartel da polícia e o convento. Apreciei demoradamente o movimento dos bondes. Na ocasião, ele quis arranjar-me

colocação no escritório da Companhia Paulista, graças às amizades que desfrutava na mesma, ou na polícia, visto residir há anos na Capital e ser pessoa expansiva. Recusei a sugestão, evidentemente.

Na hora oportuna, embarquei no comboio da Central

do Brasil, rumo a Minas Gerais com baldeação em Barra do Piraí. Viajei a noite toda, chegando a Juiz de Fora às duas da tarde, bastante cansado. Felizmente, esperava-me na gare o dr. Derly Chaves, diretor da Faculdade de Teologia, acompanhado por um serviçal, de nome Eli, que eu veria depois na casa todos os dias, em razão de se achar empregado na mesma. O rapaz apanhou a minha mala, e nos encaminhamos ao internato. Atravessamos ruas, percorremos os campos de esporte e demais propriedades do Granbery, para, afinal, atingir o alojamento, em edifício de dois andares numa rua pacata e já no perímetro da cidade. Então, o diretor nos alcançou e deu as orientações necessárias. Indicou-me o quarto em que iria ficar dali em diante, tendo José Rui de Almeida, aluno do terceiro ano teológico como companheiro, aliás excelente colega. Dr. Derly ainda acrescentou: “O travesseiro é por sua conta”.

Visto precisar adquirir o travesseiro, informaram-me

que poderia encontrá-lo na rua Halfeld, centro da cidade. Todavia, eu dispunha apenas de 100 mil réis para enfrentar o resto do ano. Sobraram-me, então, 60 mil réis. Mas Deus é sábio e não abandona os seus. Lembrei-me, ato seguido, que não havia recebido os 5 mil réis mensais alusivos ao curso de alfabetização ministrado por mim no Americano, e retidos pelo tesoureiro Shotaro Shimoya, estudante, naquele momento, na Faculdade de Agronomia, em Viçosa. Escrevi-lhe, por conseguinte, e ele reconheceu o débito, mandando-me o pequeno saldo.

Alguns dias após a minha instalação tive uma

experiência inesperada e amarga, que jamais esquecerei, e nem sei como explicar. Eram duas horas da tarde, quando, repentinamente, senti profunda tristeza e uma voz que me dizia: “Aqui não é o teu lugar”. A expressão era bem perceptível. Como reagir? Apanhei a Bíblia e corri para uma sala de aula, no andar térreo. Abri o livro ao acaso, li e orei. E então tudo serenou, podendo desfrutar de grande gozo, como nunca tivera. Contei ao José Rui o que acontecera, e ele confessou-me que também lhe acontecera fato semelhante. Mas o curioso comigo foi que a experiência se repetiu de igual modo no dia seguinte. Graças a Deus passou e nunca mais voltou. Limitei-me a levantar conjecturas. O porque tem-me acompanhado desde então.

Outra experiência, digna de ser relembrada, diz

respeito ao meu último encontro com tio Júlio, em Lins, quase na véspera do embarque para Juiz de Fora. Fui me despedir, consoante minha obrigação de sobrinho e afilhado. Na ocasião, apresentou-me a seguinte proposta: “Se quiseres diplomar-te em Direito, eu assumirei todos os gastos”. Contudo, precisei recusar, explicando-lhe que já estava comprometido, porém nunca esqueci-me disso, pois mais tarde bacharelei-me pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Acrescento, ademais, que meu saudoso tio aceitara a doutrina espírita, enquanto eu me convertera ao protestantismo evangélico, mas sempre fomos bons amigos.

Estranhei que a minha igreja-mãe nunca houvesse

manifestado o desejo de ajudar-me, nem mesmo durante o tempo em que permaneci na Faculdade de Teologia, embora os seus pastores soubessem o tipo de vida reinante no seminário. Talvez ignorassem a verdadeira

situação financeira da minha família, pois eu também jamais lhes contei.

Apreciei os cursos desde o princípio. Estudava para

saber. Lia o que fosse possível. Aprendi a amar os professores e a desculpar-lhes as deficiências. Descobri, ao fim de algum tempo, que possuíam fraquezas, chegando quase a escandalizar-me, mas livrei-me disto graças a certo panfleto intitulado Regras para o Viver Cristão, a primeira das quais dizia: “Nunca modeles o teu cristianismo pelos outros; lembra-te que foi o Senhor Jesus que deu a vida por ti”. Tal lição valeu-me consideravelmente, de modo a nortear-me os passos dali em diante.

O que nós alunos mais ansiávamos era concluir o

bacharelado e ser nomeados para alguma paróquia. Queríamos dedicar-nos efetivamente ao pastoreio das ovelhas, onde quer que fôssemos mandados. Isso sentia no espírito dos colegas. A itinerância metodista andava consciente em cada um de nós, embora discutida às vezes. Então, nos últimos anos do curso teológico, tínhamos o privilégio de experimentar o que isso significava, visto que o bispo e os superintendentes distritais nos incumbiam de dirigir alguma igreja. Em 1938, fui encarregado de pastorear a de Três Rios, e em 1939, a de Marquês de Valença. Segundo a praxe, o titular ia apenas para ministrar os sacramentos e presidir as assembléias. Eu viajava nos fins de semana e retornava na segunda-feira. Pagavam-nos Cr$ 100.000 por mês, quantia que julgávamos bastante significativa, visto não dispormos de qualquer serviço.

Entre as obrigações a cumprir na época, figurava a

exigência militar. Os alunos do Granbery, ao atingirem a idade adequada, matriculavam-se no Tiro de Guerra, do

qual eram encarregados dois sargentos do Exército; aliás, grosseiros e poucos educados quanto à linguagem. Tínhamos aulas e exercícios durante a semana em dias pré determinados. Eu me divertia intímamente ao ouvi-los exclamar contra a rapaziada: “Seus moleques, vocês ainda não são batráquios e já querem ser cururus”. Que disparate!

Entretanto, quando o programa já ia bem adiantado,

certo militar do quartel local veio trazer-me uma notificação para ser submetido a exame médico, pois fora sorteado em São Paulo para o serviço obrigatório naquele órgão. Confesso que fiquei embasbacado ante a exigência, por uma série de razões. Comecei a pensar sobre a maneira de livrar-me. Que fazer? Lembrei-me, então, do sargento Aquilino, gaúcho, que freqüentava a Igreja Metodista Central, e lhe expus o problema, recebendo o seguinte conselho: “No dia da sua apresentação para o exame, eu estarei lá; o resto ficará por minha conta”. Realmente, isso aconteceu. Todavia algo de curioso se passou. Ao pesar-me, minha estatura revelou-se abaixo do normal e o médico viu-se obrigado a declarar-me dispensado”, com o que não concordou o cabo que o auxiliava, exclamando: “Eu sou menor que o candidato, mas aqui estou. Como pode ser isso?”. Contou-me depois o querido Aquilino, que havia chegado cedo ao local da inspeção e alterara a balança, sem o conhecimento de quem quer que fosse. Em todo o caso, eu nunca seria um bom soldado. Não estava em mim o serviço militar, como era previsto pelo menos. Talvez como capelão ou enfermeiro, sim.

Por esse tempo, em 1938, eu me encontrava em Juiz

de Fora quando se realizou ali o Concílio Geral da Igreja Metodista, hospedado pelo Granbery. Em vista das férias escolares, e por desconhecer a natureza do conclave,

resolvi assistir às sessões do plenário. O ambiente se caracterizava por apreensões e inquietudes. Havia no ar problemas sérios a decidir. Pretendia-se extinguir as faculdades de teologia de Juiz de Fora e de Porto Alegre unindo-as em uma só, com vigência em São Paulo. E quem seria o reitor? Sante Uberto Barbieri, ou Derly Chaves? As paixões se chocavam! O primeiro foi o eleito, porém renunciou logo depois, e o segundo aceitou o encargo. Outro caso deveras chocante referia-se ao empréstimo solicitado pelo Instituto Americano de Lins. Estranhamente, os missionários americanos, membros ou não do Concílio se opunham. As discussões tomaram vulto. Ouviu-se então, em dado momento, alguém declarar a alta voz: “A igreja não é casa bancária”; ao passo que o sr. Hubbard, ali presente, levantou-se e retrucou nervoso: “E eu, porventura, sou comerciante?”; e ato contínuo, retirou o pedido alusivo ao empréstimo. Meses depois, o prof. Artur de Campos Gonçalves, oficial do governo no ensino superior, visitou o colégio e ajudou a resolver a situação. Pouca gente, contudo, sabe disto.

Pouco antes de concluir o quarto ano teológico

(1939), quase ao término do curso, sofri de novo um chocante impacto. Agora provocado por minha namorada. Escreveu-me esta, cortando os laços que nos prendiam mútuamente. Alegava que não possuía condições de acompanhar-me no pastorado, coisa que eu mal podia entender, visto que Jamais demonstrara isso e até há pouco vivíamos concordes. Resolvi, conseqüentemente, escrever à sua mãe e ao meu amigo, Edmo de Moura, indagando sobre o que estava acontecendo. A resposta dos dois assemelhava-se tal como cópias de xérox, contando-me que aparecera em Lins certo parente dela residente em Bauru, e decidiram casar-se, mas os familiares se opuseram. Então nos reconciliamos, sendo que o nosso matrimônio teve lugar

no dia 16 de janeiro de 1940, após o Concílio Regional, estando já nomeado para dirigir as vastas paróquias de Pirajui e de Guarantã, no Noroeste do Estado. Foi ótimo ter sacudido a poeira e dado a volta por cima. Verifiquei no decorrer dos anos que as razões dadas por ela não passavam de meros subterfúgios, pois demonstrou, até a minha aposentadoria, em 1975, ser uma grande companheira.

Vivi quatro anos em Juiz de Fora, fato que deixou em

mim lembranças inesquecíveis. Posteriormente, visitei-a por diversas vezes. Aprendi a admirá-la e a querer-lhe bem. Sua paisagem, entre serras e vales, é encantadora. O clima revela-se agradável, no geral. O rio Paraibuna não lhe causa transtornos embora próximo à cidade. Duas estradas servem à população: a de rodagem e a via férrea. Sabe-se, outrossim, que em seus primórdios, o paulista Garcia Rodrigues Pais se estabeleceu na região com importante fazenda, contribuindo assim para desenvolver o povoamento graças à vinda de mineiros, de lavradores, de pecuaristas, de comerciantes e de industriais por último. Ali surgiu a primeira usina elétrica, cujos restos à margem do rio ainda chegueí a ver. Conta-se até, que alguém dissera na hora da festiva inauguração: “A obra foi construída segundo os melhores padrões de nossa época, de sorte que, nem Deus é capaz de demoli-la”. Tola vaidade e ciência tão precária, pois na manhã do dia seguinte quase tudo rolara água abaixo.

Além de população ordeira, trabalhadora e amável,

Juiz de Fora pode ser chamada de “Cidade Estudantil” em razão das boas escolas que abriga, desde as infantis à universidade. No meu tempo já eram famosos, por exemplo, o Granbery, em cujas classes se achavam alunos de quase todo o Brasil; a escola feminina Stela

Matutina, alvo de disputas com aquele; a Escola Normal, onde funcionou a cadeia pública e, por último, a Escola Técnica de Comércio. De modo que a mocidade dispunha de meios para educar-se.

Não admira o número de políticos ilustres que saíram

dessa “Manchester”, como, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, cuja residência no centro da cidade eu conheci. Juiz de Fora é, igualmente, a terra, por opção, do ex-presidente Itamar Franco e tantos mais. Quanto ao civilismo dos juiz-foranos, lembro-me do comício a favor de Armando de Sales Oliveira, candidato à alta magistratura da República. Tive o prazer de vê-lo e de ouvi-lo junto ao palanque oficial. A praça ficou repleta de gente, mostrando espírito elevado e grandeza patriótica.

Nos esportes imperava acendrado entusiasmo,

chegando mesmo à rivalidade, mas nunca às lutas ferinas. Tudo se resumia ao bate-boca e ao palavrão. Na escola, sobretudo, eram comuns os apelidos, melhor, a regra. Cito, por exemplo, o que se passou com o “Biquelo”, um dos bons atletas do Granbery, aliás conhecidíssimo no meio estudantil. Aconteceu certo dia que o pai, agricultor no Paraná, veio visitá-lo. Na portaria do colégio procurou o filho, por nome Itamar Serra, mas ficou desapontado pois ninguém o conhecia. Então lembraram-se de perguntar ao visitante se o rapaz tinha algum apelido. “Sim”, respondeu. Ouvi dizer que o tratam por “Biquelo”. De sorte que o mistério ficou, assim, resolvido. Até no Seminário Metodista os apelidos e pseudônimos pegaram. Quem não se lembra do “Zé Bigode”, do “Pinguim” e de outros? O que faltava era tempo para o esporte, pois os alunos cuidavam mais das coisas espirituais, assim como das lições e das leituras. Havia culto religioso quatro vezes na semana, reuniões no grêmio João Wesley, relações com o Granbery e

assim por diante. O lazer era muito restrito, limitando-se às idas ao cinema uma vez ou outra. Certa ocasião, fomos em grupo ao teatro, atraídos pela fama de Procópio Ferreira, excelente intérprete na peça “As Três Madalenas”. Eu, particularmente, apreciava as visitas ao parque Mariano Procópio, nos arrabaldes da cidade, atraído pela beleza do jardim e do museu histórico, neste, a curiosidade chamou minha atenção para a cama em que dormiu a princesa do Brasil, mas não a invejei, porque já pernoitei em coisa melhor. É que os tempos mudaram!

Aos domingos, gostávamos de tomar parte nos cultos

religiosos das igrejas metodistas em São Mateus e na Igreja Central, próxima ao jardim municipal, no centro. O pastor, rev. Isaías Sucasas, tinha boas mensagens, e era eloqüente, mas se alongava cansativamente. Anos depois, já eleito bispo, foi o iniciador do metodismo em Brasília, além de pregar o evangelho em diversos rincões de nossa pátria. Bom polemista, enfrentou algumas vezes o padre Júlio Maria. Dava prazer ouvi-lo contar suas experiências, vividas nos sertões de Minas.

Quero, ao final, recordar-me daqueles dias de

expectativas e de amarguras quando estourou a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1939. Eu me encontrava em Juiz de Fora e anotei o início dessa tragédia. À noite, após o jantar descia com outros colegas até à rua Halfeld para ler os acontecimentos do dia, fixados pelo diário local defronte à sua agência. A angústia diante de tantos horrores acompanhava-me no leito, roubando-me o sono. Pensava no futuro da humanidade e dizia para mim: “Deus não nos criou tão maus e nem para tanta maldade”. Todavia, o conflito armado prosseguiu depois que conclui o curso de teologia e fui mandado para Pirajuí. Então adquiri a

prestações um rádio Piloto, a fim de continuar a ouvir as notícias. Ademais, a embaixada inglesa mandava-me sempre as revistas alusivas à guerra, às quais ainda conservo. Imagine-se pois, a estrondosa alegria provocada pelo término da sanguinolenta hecatombe, destruidora de vidas preciosas e inclemências de toda sorte. Os nossos ex-combatentes na Itália foram recebidos sob aplausos, música, desfiles e demais aparatos. Entre os milicianos, estava um sobrinho, de nome Guaracy, filho de Samuel Pereira do Lago, o qual, teve a ventura de retornar ileso à pátria.

Por todo o território cantava-se: “Você sabe de onde

eu venho? É do livre desempenho que cumpri por meu Brasil. Venho da terra européia, trazendo escrita a Odisséia na altivez do meu fuzil. Venho dos campos nevados, onde deixei sepultados, os meus irmãos tropicais. Dormindo após a vitória, o eterno sonho da glória, na glória imortal da paz... Por mais luta que eu passasse, permitiu Deus que eu voltasse, para o meu torrão natal. Quero, enfim, a paz paterna, encontrar na unção materna, a ternura divinal. Volto, sereno e feliz, aos carinhos de meu lar. Satisfeito do que fiz, do outro lado do mar. Pois meu coração me diz, quanto devo me orgulhar...”

Era meu desejo ir aos EUA para aprofundar-me no

estudos de Hebraico e Antigo Testamento. Dei os passos necessários. Sofri embaraços pela burocracia metodista. Sem o apoio do dr. Ellis nada se alcançava. Por isso não fui.

XXXX

A ATIVIDADE PASTORAL

Nada havia no seio da família e nem mesmo na

parentela que me inclinasse a optar pelo ministério evangélico. A decisão foi inteiramente minha. Ignorava tudo quanto poderia acontecer no futuro, mas firmei-me na convicção de que Deus me faria vitorioso, de modo que ingressei na carreira para o que desse e viesse. Meu lema resumia-se a três palavras: viver para servir. O Reino do Senhor Jesus acima de tudo. Não aceitaria, dali em diante, ocupação alguma por amor ao dinheiro ou desejo de glória.

Eu já conhecia um pouco a Igreja Metodista, graças à

vivência com os professores e administração no Colégio Americano, além de que estava freqüentando os cultos no templo local e me inscrevera na classe de catecúmenos, dirigida pelo reverendo-professor Belmiro de Andrade. Depois, aconteceu abrirem-se para mim as portas de acesso à Faculdade de Teologia, onde permaneceria quatro anos proveitosos. Entretanto, antes de concluir o curso, as autoridades eclesiásticas pediram-me para assumir o pastorado da paróquia de Três Rios (1938), e no ano seguinte (1939), a de Marquês de Valença, ambas no Estado do Rio. Em linguagem clara, isto significava que eu viajava todas as semanas pelo trem da Central do Brasil, baldeando em Afonso Arinos, no caso de ir a Valença. Adquiri, assim, uma boa dose de experiência.

Uma vez concluídos os cursos de Teologia e de

Ciências e Letras, este pelo Instituto Granbery, fui bater

às portas do Concílio Regional do Centro, que era o terceiro da Igreja Metodista no Brasil. Isto se passou em janeiro de 1940, data muito relevante no meu calendário, pois fui admitido como membro do ministério eclesiástico, embora na classificação dos “em experiência”, por dois anos. Então, ouvi pela primeira vez os pastores cantarem em uníssono, antes das nomeações pelo bispo César Dacorso Filho, o impressionante hino: “Nem sempre será para onde eu quiser que o Mestre me há de mandar”, tornado cântico oficial daquela cerimônia sempre que o evento se repetisse. Comigo foram muitas, até à aposentadoria em 1975. O obreiro obedece às ordens dos seus mentores, embora sabendo que o critério possa causar, às vezes, choques ferinos.

Minha primeira nomeação aconteceu no início da

Segunda Guerra Mundial, precisamente em janeiro de 1940. Coube-me o pastorado dos municípios de Pirajuí, Presidente Alves, Guarantã e Cafelândia, englobando dezoito pontos de atendimento. Igrejas rurais, fracas, quase sem recursos e mal servidas por transportes. Havia falta de ônibus (chamados “jardineiras”) e de gasolina, sem contar que inexistiam estradas de asfalto, somente de chão batido. Mais tarde surgiram os vagarosos carros movidos a gasogênio, que usavam carvão de lenha retirado nas matas interioranas.

A sede do imenso campo pastoral localizava-se em

Pirajuí e era servida por um modesto ramal da Estrada de Ferro Noroeste. Para Guarantã e Cafelândia, teria que viajar de jardineira no horário estabelecido pela empresa, dona do veículo, e que vinha de Bauru, dependendo das circunstâncias.

Iniciei, prontamente, o trabalho pastoral visitando as

autoridades, acompanhado pelo sr. Aurélio Ribeiro,

pessoa bem relacionada na cidade e dono de um escritório, mas jamais consegui captar-lhes a amizade. Fazendeiros e sitiantes em número significativo, especialmente aqueles, viviam entretidos com as lavouras. E isto mesmo diria após os dois anos que laborei ali. Tratava-se, sem dúvida, de gente trabalhadora, porém dotada de espírito conservador e até orgulhosa. Raros os seus contatos com a cidade e com os meios de cultura.

Entrementes, no início da minha investidura recebi a

surpreendente visita do pastor presbiteriano Ludgero Braga, Lente, outrossim, no ginásio estadual local. Pretendia que lhe pagasse uma dívida de Cr$ 5.000 alusiva à contribuição de seus paroquianos para a construção do templo metodista, coisa que eu ignorava e que meu antecessor nada me informara. Consultei atas e registros e também escrevi ao bispo César, sem obter qualquer informação clara. Resolvi, por conseguinte, guardar silêncio acerca do caso. No entanto, foi-me dada a oportunidade, pouco depois, para ensinar religião na referida escola, possibilitando-me, assim, conhecer alunos e famílias, de modo a alargar meu círculo de amizades. Também descobri na cidade que os irmãos Miranda, com armazém de secos e molhados, eram meus parentes, ligados ao ramo dos Gonçalves Salvador. Visitei-os algumas vezes.

Uma experiência curiosa, embora amarga, aconteceu

com respeito ao sustento pastoral. Esclareceu-me a Tesouraria Regional de que o mesmo seria pago através de três fontes: Igreja de Pirajuí, Igreja de Guarantã e Tesouraria Regional. Era tudo quanto eu deveria receber. Contudo, nunca chegavam juntos, a tempo de poder sanar meus compromissos ou fazer as compras de manutenção. Valeu-me, porém, o sr. Feres Bechara,

dono de uma loja comercial, o qual permitiu que lhe pagasse em prestações. O pior sucederia tempos depois, pelos seguintes motivos.

Minha esposa adoeceu inesperadamente, obrigando-

nos a procurar um médico na cidade, que nos mandou fazer exames de laboratório e usar certos remédios. Tudo em vão. Além disso, ela estava grávida. Mas o casal Marinho (dr. Olímpio e esposa) ficou sabendo, visto que eu não poderia ministrar-lhes a Santa Ceia no domingo. No mesmo instante, aconselhou-me a viajar para Cafelândia, onde o dr. Olímpio exercia a profissão de dentista e auxiliava no hospital. Seguimos imediatamente para lá. Em sua residência, ele já nos aguardava com uma placa de vidro na mão para coletar o sangue da enferma e efetuar o exame. Ficou constatado que a doente estava com maleita, embora nunca houvesse saído de Pirajuí. E o medicamento apropriado logo nos causou embaraços. O excelente dr. Edgar Moss viu-se em palpos de aranha. Necessitamos procurar em diversas cidades um certo preparado à base de quinino artificial, alemão, mas era tempo de guerra. Fomos encontrá-lo numa botica longínqua de Promissão. Vencemos o mal!

O entrevero por causa do subsídio relativo a

Guarantã, deu-se com o tesoureiro e guia-leigo, sr. Esteves, visto ter deixado de pagar-me o compromisso dos últimos meses de 1940, relativos ao pastorado. Procurei-o, porquanto tinha cuidado do rebanho, e estava endividado em razão da enfermidade de minha senhora. Em vez de ouvir-me, respondeu: “Nós não lhe devemos nada, porque segundo as leis da Igreja, não passa dívida de um ano para o outro”. Como conseqüência tivemos que esperar mais dois meses até o Concílio Paroquial, quando discutimos o problema com o superintendente

distrital, reverendo Persson, que me deu ganho de causa. Ademais, pudemos contar com os bons irmãos Aurélio e Nair Ribeiro, Martiniano de Matos e sua senhora, dona Cecília, Alcides e Pérsides de Sousa, além de diversos outros membros. Contudo, fomos transferidos dali com o pesar deles.

Desta vez o local designado para o nosso pastoreio

foi nada menos que Pirassununga, cuja igreja se assemelhava a um vulcão em atividade. Três partidos se distinguiam, e cada qual se dizia senhor da verdade, motivados por insinuosa maledicência. Afinal, não sabíamos que lado tomar. Então conversei com a Alice, orientando-a de modo a conservar-se afastada de qualquer grupo. Resolvemos que visitaríamos indiscriminadamente a todos sem manifestar partidarismo. De fato, isto foi possível no primeiro ano, embora com as devidas cautelas e uso de bom senso. Conseguimos, todavia, o regresso ao aprisco das ovelhas, o que nos facultou novo programa.

Alguns dias após o Concílio Regional, que me havia

nomeado, recebi uma carta deveras esclarecedora das razões porque fôramos transferidos. Entre outras coisas dizia-me o Bispo César Dacorso: “Salvador, você é o mais jovem de nossos colegas, e, não obstante, nós lhe dedicamos plena confiança. Por esta razão é que lhe estamos entregando agora a paróquia de Pirassununga, a qual, porém, se acha em crise e dividida em facções rivais. Sucede, outrossim, que Limeira, ainda é congregação, devendo consagrar o templo quando saldar o ônus. Faça tudo que for possível a favor das duas igrejas, e Deus lhe dará a recompensa”. Por conseguinte, nos dedicamos ao apelo quase angustioso do querido bispo, de sorte que, passado cerca de um ano, em setembro de 1943, em solenidade presidida por aquele

episcopo, pudemos dedicar plenamente ao Senhor aquela casa de cultos.

Quero também, valendo-me desta oportunidade, dar

notícia sobre a casa mal-assombrada, sita em Pirassununga, e da qual tomamos conhecimento logo após nos fixarmos na mesma. Tratava-se de velha construção próxima ao templo e que servia de residência ao pastor e respectiva família. Em certa ocasião, o sr. Pedro Becker, mais por tagarelice do que por querer nos assustar, informou que os ex-pastores costumavam ouvir barulhos estarrecedores à noite, produzidos no sótão, incluindo o arrastar de correntes. Era, na realidade, coisa muito estranha. Por isso, acrescentou: “O rev. Escobar precisou retirar-se da casa”.

O aviso não poderia ser pior, porquanto a visitação

pastoral me obrigava a dar assistência a Santa Rita do Passa Quatro, Palmeiras, Limeira, além de Pirassununga, de modo a passar muitas noites fora de casa deixando minha esposa sozinha, com a nossa filha de dois anos. Que fazer então? Nenhuma jovem da igreja aceitava fazer-lhe companhia. Decidi, pois, enfrentar o problema e esclarecer o mistério.

Apanhei uma lanterna e fui subindo pela escada até o

sótão, bem devagarinho. De repente, liguei a luz e o que aconteceu? Uma chusma de urubus se projetou para fora através da janelinha desmantelada do cômodo. Consertei-a no dia seguinte, e tudo voltou ao normal, até sermos transferidos novamente. Recebi uma explicação do Bispo Dacorso: “Sabemos que nem você e nem sua esposa deveis estar satisfeitos, por justas razões, tanto mais porque falta apenas um ano para ela concluir o curso normal, e em Birigüi, para onde irão, não existe escola, de modo que precisará viajar diariamente até

Araçatuba, e isto caso a vossa filhinha possa facultar a solução”. E esclareceu mais: “O rev. Macedo, na qualidade de superintendente distrital, nos contou toda a sua problemática, mas, não obstante, só restou o recurso de substituir o atual colega por você. Além do que a cidade exige um pastor com certa cultura, pois é bom o relacionamento do povo-igreja. Ademais, o nosso educandário, Instituto Noroeste, necessita de alguém que auxilie na ministração das aulas”.

Pretendia-se, assim, matar dois coelhos com uma

cajadada só, segundo afirma o ditado popular. Havia, sem dúvida, maior interesse na obra do que no obreiro, na instituição do que na pessoa. Contudo, o indivíduo ficava enaltecido também. Não se diga, porém, que os mandatários da Igreja agiam ditatorialmente, apesar disso.

De fato, era tal a carência de professores no Instituto,

que logo fui chamado para dar aulas. Precisei lecionar sucessivamente geografia e sociologia, matérias a que já estava acostumado e de que gostava. Foi ótimo, pois me afeiçoei aos alunos e, por intermédio destes, às famílias locais. As minhas obrigações iam crescendo, então, ao lado das exigências pastorais na cidade e na zona rural, pois tinha sobre meus ombros os cuidados com Bilac e Coroados, que visitava semanalmente, e alguns pontos na roça, como a fazenda São João, do dr. Abdala, e outros lugares. Depois, o Gabinete Episcopal atribuiu-me a Superintendência da região Noroeste, cujo campo abrangia as paróquias desde Pirajuí a Três Lagoas, no Mato Grosso. Entrementes, fui eleito conselheiro do Instituto Americano de Lins e do Colégio Piracicabano, o que me tomava horas preciosas com viagens e reuniões. O motivo de semelhante disparidade baseou-se no consenso de que importava aproveitar a experiência dos

conselheiros em mais de um educandário. Cheguei a pertencer a três deles. E daí a origem mais tarde do chamado Cogeime (Conselho Geral das Instituições Metodistas de Ensino).

Certa vez, aconteceu em Birigüi, no Instituto

Noroeste, um caso inesperado e responsável por amarguras e sérias preocupações. Deveu-se isso ao fato de ter ido à escola um fiscal do Ministério da Fazenda, encarregado de verificar a situação com respeito ao dito órgão. Efetuado o levantamento, constatou-se a existência de um débito muito grande porque o diretor, Francisco Romano, deixara de recolher aos cofres públicos as quotas alusivas aos professores e aos funcionários; por ignorar a exigência, e por estar pagando, equivocadamente, a outro órgão. Em conseqüência, seguiu-se a penhora de bens móveis, sobretudo as máquinas de datilografia. Que fazer?

Designamos uma comissão para levantar o dinheiro,

constituída por pessoas respeitáveis na cidade, da qual eu participei juntamente com o Bispo Dawsey, iniciador do trabalho em Birigüi, dona Margarida Clarck Reis e Gregório Camargo.

Arrolamos, entre outras pessoas estimadas, o

banqueiro Amador Aguiar e seu cunhado, que nos deram boas ofertas. Eu e o rev. Afonso Romano, solicitamos, pessoalmente, a intermediação do governador Adhemar de Barros, amigo daquele. Enfim, o nosso labor obteve compensações. Todavia, outras dívidas surgiram com a Receita Federal e com o processo de professores, quando então recorremos aos serviços dos reverendos Guaracy Silveira e Afonso Romano, e dos deputados Camilo Aschcar e Osny Silveira.

Nos meus quatro anos de pastorado em Birigüi, precisei envolver-me com a situação, mesmo porque eu era presidente do Conselho. Como, também, a população enfrentasse dificuldades, resolvi criar uma cooperativa de consumo para minorar a crise decorrente da guerra. Aluguei um salão e o depósito onde se efetuaram as inscrições de sócios. Ao eleger-se a diretoria, escolheram-me como presidente. Faltava o capital, subscrito só em parte pelos recém-admitidos. Sucede, outrossim, que o governo resolveu congelar certos produtos, mas liberou-os para as cooperativas e prefeituras. entre eles, óleo comestível, soda cáustica, farinha de trigo, sabão, tecidos e outros, os quais tinham que ser retirados em São Paulo. Quando o nosso dinheiro faltava, recorríamos a empréstimos. Felizmente, contávamos com o sr. Gregório Ferreira Camargo, e este nunca falhou. Eu agia, então, como fiador. Na primeira vez que o procurei, respondeu-me: “Rev. Salvador, eu conheci bem o seu pai: se você não me pagar, ninguém mais o fará”. O mesmo fato aconteceu dez anos depois, quando quis construir minha casa em Rudge Ramos.

No caso da cooperativa temi a reação do comércio

local por lhe fazermos concorrência, porém nada sucedeu. Todavia, junto com o dr. Demóstenes Guanáis, polemizamos com o secretário da prefeitura por ocultar o óleo a que tínhamos direito. Devo, igualmente, ao ilustre médico as atenções que me dedicou visitando comigo os lares onde adentrava alguma enfermidade. A igreja só pagava o táxi. Nunca nos depreciamos, visto revelar-se comunista inveterado, e eu, evangélico convicto.

O jornal da terra, conhecido como Birigüiense,

colocou-se à minha disposição desde que lá cheguei. Escrevia quase todas as semanas um artigo sobre os mais diversos temas. De uma feita precisei enfrentar um

grupo de missionários católicos, pois iniciaram as pregações dizendo absurdos sobre Martinho Lutero. De outra feita, necessitei pedir licença ao dr. Sud Menucci, secretário estadual de Educação, para colocar a Bíblia em cada grupo escolar, visto que os nossos desafetos tinham entronizado o crucifixo nesses educandários e no fórum. Organizei programas especiais e escrevi boletins. O orador oficial foi o professor Nicolau Hastenreiter, de Lins. Por esse tempo, aceitei o convite para representar na cidade o Jornal de São Paulo fundado por Guilherme de Almeida. Institui, outrossim, a medalha “Elias Gonçalves Salvador” em homenagem a meu pai, a qual atribuí durante anos ao melhor aluno formado pelo Instituto Americano de Lins.

Desde cedo, manifestei espírito contencioso. Em

menino vivia brigando com os colegas da escola, de sorte a chegar em casa sempre com alguns arranhões. Cresci, mas continuei a medir forças com outros rapazes. No ginásio, do mesmo modo. Cheguei a apanhar, tal como sucedeu uma tarde quando nos dirigíamos à escola. Havia um nissei que eu provocava deveras, embora ele fosse mais vigoroso e mais alto. Tanto enchi esse colega que, impaciente, resolveu dar-me uma lição. Atirou-me ao chão e pulando em cima de mim ameaçou afogar-me; caso Manoel, meu primo, não me houvesse socorrido...

No curso ginasial, o meu pendor manifestou-se,

porém, na dedicação aos estudos, pois não tolerava que alguém na classe obtivesse média maior que a minha. Tanto assim que, a partir do terceiro ano, fui geralmente o primeiro da classe. O motivo da mudança encontra-se no fato de que, por esse tempo, resolvi pautar-me pelo evangelho de Cristo.

O mesmo sucedeu quando ingressei no ministério pastoral. Toda injustiça, desonestidade ou mentira me causava repulsa, constrangendo-me a sair a campo. O espírito contencioso vinha à tona, e eu não podia calar-me. Felizmente, ao lado das boas causas, empenhei a voz e a pena no combate ao mal, como passo a revelar, apenas enquanto morei em Birigüi. A entronização do crucifixo, por exemplo, motivou-me a reagir.

Recordo antes de tudo a polêmica alusiva à questão

do óleo comestível travada numa das ausências do prefeito, achando-se esse produto sob custódia do governo, que o liberava às cooperativas e aos negociantes em condições especiais. Sucede que o secretário, valendo-se do nosso descuido, retirou a cota e passou a distribuí-lo ocultamente aos amigos. Então junto com o dr. Guanáis contestamos tudo através de artigos no Biriguiense. De outra feita, saí a público para condenar a maneira pela qual se comemorava o “Sete de Setembro” na cidade, visto obrigar-se o Tiro de Guerra a desfilar com uma imagem da Virgem Maria e a assistir à uma missa campal. Já antes eu me havia arvorado contra as pregações dos padres capuchinhos por julgá-las afrontosas à verdade histórica. Lutero estava longe de ser o monstro que apregoavam. Contudo, por estranho que pareça, certa vez precisei combater uma indicação do eminente deputado federal, nosso irmão, dr. Rui Ramos, em que solicitava elevada quantia para a hospedagem do Concílio Geral metodista. Eu ignorava que o deputado agira assim porque autoridades católicas faziam isso e ele queria impedir tal abuso. Só descobri as causas bem mais tarde. Sei que a minha posição alcançou feliz repercussão. Em cidade pequena, as coisas se difundem larga e apressadamente.

Uma nota fulgurante em Birigüi era a vida política. O partidarismo a todo instante e em toda parte. O adhemarismo predominava. O prefeito e seus melhores amigos pertenciam ao PSP e por isso não se deve estranhar que eu aderisse ao mesmo. Tomei parte ativa em muitos comícios ao lado do dr. Gama, de Guanáis, de Pedro Sanches, e de tantos mais. Nossos companheiros regozijavam-se, dizendo: “O comício foi um triunfo, pois ouvimos o pastor discursar junto com o líder comunista”. Por semelhantes razões, ganhei a simpatia dos maçons, alguns dos quais participavam às vezes dos cultos dominicais, a exemplo do dr. Gama, o dr. Osório, dentista, Severo Xavier, ex-prefeito, e de outros. Pretendiam, inclusive, fazer-me vereador, mas adoeci gravemente naquela oportunidade.

Explica-se porque me tornei conhecido por grandes e

por pequenos, por ricos e por pobres, desempregados, operários, simples trabalhadores, intelectuais e políticos. Ajudei casais a se reconciliarem. Orientei a mocidade. Amparei enfermos e desalentados. Lembro-me, a propósito, do sapateiro José Badaró, residente na usina do dr. João José Abdala, a 8 quilômetros de distância, e cuja filha caiu no tacho em que faziam sabão. Imediatamente os pais se lembraram do pastor metodista, que providenciou a internação da menina na Santa Casa. Os anos se passaram. Eu estava morando noutra paróquia, mas um dia fui visitar minha mãe em Lins. Recebi, então, o seguinte recado: “Está aí um senhor e ele quer ver-te; é o sapateiro instalado na garagem em frente”. Apressei-me em atendê-lo. Tratava-se do sr. Badaró. A alegria com que nos abraçamos jamais será esquecida. Entrementes, realizei conferências religiosas em Presidente Prudente, Bernardes, Batatais, Morro Agudo, Marília e Penápolis.

Enfim, vêm à minha mente, após os quatro anos profícuos vividos em Birigüi, os dizeres da sra. Maria Camargo, quando assumi o pastorado: “O que vem fazer aqui esse menino”? Diria o mesmo agora? (1944-1946).

Entretanto, ao começar o quarto ano, fiquei deveras

doente. As enfermidades foram-se avolumando, de modo que o Gabinete Episcopal achou por bem transferir-me para Poços de Caldas e deu-me três meses de férias. Procurei médicos e fiz exames de laboratório, mas tudo estava normal, menos o doente. Afinal, o Antônio Serafani, membro de nossa igreja, levou-me ao dr. Mário Mourão, que concluiu: “Reverendo, o senhor está com stress (esgotamento); pegue uma vara de pescar e vá para à beira de algum rio; trate-se convenientemente e tome as vitaminas que vou receitar”. Assim procedi e comecei a melhorar.

A igreja local foi uma benção para mim e família. Eu,

porém, sentia-me envergonhado por não corresponder à bondade de meus paroquianos. Então as circunstâncias me compeliram a visitar quem estivesse doente. Caconde e Campestre muito tempo não recebiam pastor e por isso resolvi ir até lá. Em seguida, proferi uma conferência sobre o trabalho de assistência social, no salão da igreja, a pedido das senhoras.

Aguardamos o nascimento do José, nosso

primogênito, e, embora andássemos vazios de dinheiro, chamamos a parteira, conhecida pelas irmãs. Eu esperava assumir todos os deveres pastorais, visto achar-me cada vez melhor, mas surgiu um problema deveras preocupante, consubstanciado em uma carta do reitor Faculdade de Teologia, dr. Walter Harvey Moore. Estranhei-a pela selagem e carimbo do correio, e, por isso, abri-a imediatamente. Tratava-se de um apelo para

eu ir trabalhar na Faculdade na condição de professor e de tesoureiro. Num relance pensei; “Eu não sou o destinatário; deve haver engano; vou agradecer e recusar”. Todavia, perguntei-me de imediato: “Qual a vontade de Deus?”. E daí em diante não tive mais descanso.

Tendo comunicado o fato à minha esposa, ela me

responde: “Eu sei a vontade de Deus. Você veio para Poços a fim tratar-se; além do mais a igreja espera tudo que estiver ao seu alcance. Por isso não vou orar”. Reuni a congregação pedindo-lhes ajuda espiritual. Ao fim de uma semana, minha agonia tornara-se insuportável. Decidi que na próxima madrugada resolveria o problema.

Levantei-me, então, quando ainda reinava o escuro.

Entrei no escritório para orar e consultar as Escrituras. As respostas agora foram sempre no sentido de que deveria responder ao convite afirmativamente. Corri aos nossos aposentos e narrei à Alice o que havia acontecido. “Se foi assim, nós iremos. Podemos aprontar as malas.”

Aguardávamos, no entanto, uma decisão do

governador Adhemar de Barros, que prometera dar uma escola à Alice na fronteira entre os dois estados. As condições da Faculdade seriam bem inferiores, mas fomos.

Além de professor na Faculdade de Teologia,

encarreguei-me da classe de adultos da escola dominical em Rudge Ramos e exerci o cargo de tesoureiro daquele órgão. Preguei alguns domingos em igrejas metodistas do ABC e de São Paulo. Atendi a interesses dos conselhos educacionais de Lins, Birigüi e Piracicaba, ocupando às presidências em algumas ocasiões. Durante um ano, fui o pastor titular de Pinheiros, quando

iniciamos o levantamento de recursos para a construção do novo templo, e atendi também à congregação de Cotia. Vivi, então de mangas arregaçadas o tempo todo, simbolicamente.

Devo acrescentar que a situação no país abateu-se

igualmente sobre nós. Experimentamos a ditadura de Vargas e as conseqüências amargas do seu suicídio, já antes de 24 de agosto no ano fatídico de 1954. Assistimos à vitoriosa campanha de Fidel Castro em Cuba e a sua posse em janeiro de 1959. Depois sucederam-se as duas copas mundiais de futebol em 1958 e 1962. Em 1964, seguiu-se o governo militar no Brasil. Na mesma ocasião, estalou a crise em nossa Faculdade, que resultou para mim no regresso ao pastorado exclusivo, englobando 37 anos de ministério, até à aposentadoria. Eu fora nomeado ultimamente para Campo Belo, Cunha (e Cume), Santo Estevão e, por último, Rudge Ramos.

XIXIXIXI

INGRESSO NO MAGISTÉRIO DA FACULDADE DE TEOLOGIA E

OUTRAS FUNÇÕES Constituiu, evidentemente, uma chocante surpresa o

convite do reitor da Faculdade de Teologia para que eu fosse trabalhar na mesma. Daí porque, ainda na agência do correio, rasguei o envelope e li a carta. De imediato, voltei-me para mim dizendo: “O endereço está errado; deve ser outro o destinatário; e nem eu tenho condições para assumir tais encargos, a saber: lecionar e dirigir a tesouraria”. Ademais, não havia recuperado a saúde e quase nada fizera pela igreja de Poços de Caldas, a qual vinha me tratando com o máximo carinho. “Vou, então, responder negativamente”. Porém, no caminho para casa, assaltou-me o seguinte pensamento: “Qual é a vontade de Deus?”. Confesso que não mais tive paz dali em diante. Pedi à Alice que orasse e, de igual modo, o solicitei à congregação local. Minha esposa respondeu-me sem demora: “Eu não vou pedir nada a Deus, porque viemos para cá por vontade d’Ele; você está aqui por causa da saúde e ainda não se recuperou”. Isso era verdade, e precisei conformar-me. Quanto à igreja de Poços, sei que também ficou surpresa e descontente.

Diante da confusão que agitava o meu espírito, optei

por outro recurso. Talvez este me pusesse no caminho certo. Apanhei duas folhas de papel em branco e nelas escrevi as razões para ir (ou aceitar) e as razões para continuar em Poços de Caldas. Curiosamente, verifiquei que a folha destinada à aceitação do convite permaneceu em branco, ao contrário da outra, a qual foi preenchida

quase por inteiro. Mas eu continuava perturbado, inseguro e sem paz; queria ter certeza quanto à vontade de Deus; queria sentir gozo na mente e no coração. Por conseguinte, concluí que somente pela oração e consulta à Escritura o problema seria resolvido. E foi isto que fiz. Levantei-me de madrugada e desafiei o Senhor, dizendo: “Não te deixarei até que me respondas”. Afinal, isso aconteceu. Recebi a resposta que pedira. A tristeza foi-se embora, e eu fiquei plenamente convencido de que deveria ir para a Faculdade de Teologia. Então, corri para o quarto e contei à minha esposa a experiência acontecida, ao que ela respondeu: “Se foi isso, podemos arrumar as malas e seguir para lá”.

Assim que chegamos a São Paulo, partimos em

direção ao Bairro dos Meninos, designação já antiga, mudada há pouco para Rudge Ramos. Ali estava localizada a irrisória casa de ensino por nome de Faculdade de Teologia, formada apenas por um edifício assobradado de três residências em espaçoso terreno, entre a via Anchieta e o minúsculo bairro. Sua característica, por conseguinte, era a solidão, visto que as famílias dos professores, bem como os alunos, quase nenhum relacionamento tinham com os moradores da vila, aliás pequena e dispersa. Não mais que duas péssimas trilhas de caminho favoreciam tal contato. Os ônibus para São Paulo e São Bernardo corriam só através da via Anchieta, de hora em hora. Para São Caetano e Santo André tornava-se imprescindível ir até o Ipiranga; mesmo porque o Bairro dos Meninos não dispunha de farmácia, médico e dentista. Padaria apenas a dos irmãos Silvestrini, à entrada do aldeamento. O grupo escolar também ficava à distância. A loja de secos e molhados do sr. Alfeu Tavares constituía a exceção. Não tínhamos correio e nem telefone. E, no entanto,

vivia-se bem perto da Capital. Algumas povoações no interior eram mais afortunadas do que nós.

Eis, no entanto, o que desfrutava em Poços de

Caldas: escola para os filhos, professora de música, dentista, café em pó, leite a preço barato, lenha e frutas. Quanto aos meus honorários, eles se equivaliam, Cr$ 2.000, ao passo que no Bairro dos Meninos tudo devia ser pago à vista. Nossa vivência se assemelhava à de obreiros comuns. O dinheiro, contudo, não constituía o motivo dessa permuta e nem uma situação melhor, porque colocadas as coisas nos pratos da balança, a do prejuízo desceria imediatamente. Os filhos sobretudo, padeceriam os danos mais clamorosos. Mas o dr. Moore percebeu prontamente a que barafunda nos estava levando e se moveu, ele próprio, a tirar-nos do buraco. Sabendo que minha esposa concluíra o curso do magistério, procurou o prefeito dr. José Fornari e lhe solicitou uma classe para ela, sendo atendido sem demora, nomeando-a para o velho e único grupo escolar existente. Assim, três problemas foram resolvidos de uma só vez: entrou igual soma em dinheiro; as crianças receberam uma acompanhante para a escola; Alice ingressou provisoriamente na carreira tão almejada do ensino primário. O reitor providenciou-nos uma residência entre as duas já existentes, do Natanael e do Almir, ao passo que ele se instalou na ala inferior do internato. Contudo, o problema da água foi sempre muito preocupante. Ali não existia canalização e nem poço algum, pelo que se abriram duas cisternas: uma para o internato e cozinha, e outra para as casas dos professores, ambas exigindo bombas e depósitos. Sucede que, de quando em quando, eram necessários reparos no equipamento, senão a cisterna secava gerando embaraços para todos, incluindo as crianças e

os adultos. Às vezes, os transportes também falhavam, à noite especialmente.

Quando o Concílio Geral determinou transferir a

Faculdade para São Paulo, deu origem, igualmente, a graves questões; a começar com a localização da mesma: deveria ser fora da cidade, e, para isso, designou os revs. Guaracy Silveira e Paulo Eugene Buyers (novo reitor), que, entretanto, não chegaram a acordo algum, pois o primeiro opinava que se comprasse terreno no belíssimo bairro do Ipiranga e o segundo preferia o dos “Meninos” entre São Bernardo do Campo, em São Paulo, em espaço do ABC, como também no caminho de Santos. Afinal, achou-se um, cuja área preenchia as condições, sendo bem acolhida pelos conselheiros. De modo que tudo mais se adaptou à escolha.

Naturalmente, seguiu-se a necessária aproximação

com as autoridades municipais, para conveniência dos dois lados. De fato, a Faculdade muito contribuiu para o desenvolvimento do bairro e da região, ao passo que os prefeitos sempre viram com bons olhos a iniciativa dos metodistas. Na verdade, deve-se a estes a instalação do correio e dos telefones, a abertura de ruas e de caminhos, a melhoria nos transportes, e assim por diante. No presente, a Faculdade acha-se prestes a transformar-se em Universidade (Umesp). De fato, ela já projeta o nome do ABC em todo o mundo. Não seria por isso que a indústria automobilística também aqui se instalou?

Fomos obrigados, outrossim, a construir novos

edifícios para atender às exigências que iam surgindo, como residências para os novos professores, apartamentos para alunos casados, biblioteca, administração, salão nobre para festas, conferências e

outras reuniões, capela etc. Um dos baluartes destes imóveis, é justo que se diga, foi o rev. Natanael, o que, todavia, daria causa à crise que desabou depois sobre a instituição. Para o levantamento do dinheiro, fizeram-se campanhas nas três regiões eclesiásticas: do norte, do centro e do sul, lideradas por mim, Almir dos Santos e Natanael Nascimento. Nessa oportunidade, consegui encontrar um bom negócio para a Imprensa Metodista durante a visita que fiz em Pinheiros ao casal Aldemar Ferrero, dono de imobiliária, e sua senhora, minha ex-paroquiana. Em nossa conversa, eu me referi ao plano da Imprensa que pretendia mudar-se de São Paulo tendo em vista um terreno em Mogi das Cruzes, mas a terraplenagem custaria uma importância muito elevada. Então, o sr. Aldemar disse-me: “Por que vocês não compram o loteamento do meu sogro, localizado entre Rudge Ramos e São Bernardo, junto à estrada do Vergueiro? O meu sogro também é metodista, e estou certo de que ajudará na medida do possível. Falo assim porque tenho procuração para agir em seu nome”. E acrescentou: “Se o negócio se realizar à vista, faremos um desconto”. Deste modo, considerei bem o negócio e dei todas as informações ao conselho diretor da Imprensa, que, por fim, resolveu adquirir a propriedade. Ali foi construído um majestoso edifício e instalada a gráfica, que funcionou por muitos anos, até que o país entrou em crise. Graves acontecimentos repercutiram no Brasil e afetaram praticamente todas as instituições. Entrementes, aconteceu o suicídio do presidente Getúlio Vargas, perturbando ainda mais a nação.

Adentramos em nova fase na história do Brasil. Em

setembro de 1964, o jornal O Estado de São Paulo, denunciava a subversão na USP e na PUC. A Faculdade de Teologia da Igreja Metodista deixou-se envolver pelo espírito da época. Nossos alunos iam assistir às reuniões

da UNE e outras. Os governos se sucedem. O ano de 1968 se caracteriza por reformas e agitações. O acordo educacional MEC-Usaid elevou ainda mais os ânimos já exaltados. Os seminaristas de nossa Faculdade entraram inesperadamente em greve, perturbando o Conselho Diretor, além de numerosas igrejas e congregações. Eu me achava lá e posso testemunhar com segurança o que houve, embora licenciado para escrever meu livro História do Metodismo no Brasil.

Todos perguntavam acerca das causas. Respondo,

em resumo: o espírito da época era de descontentamento nas universidades e fora delas. Os governantes se alternavam. Após Castelo Branco, segue-se Costa e Silva, que em 1969 faz uso do AI-5 para atingir 33 professores da USP. Entre os cassados achava-se Fernando Henrique Cardoso. Catedráticos eram presos. Em 1970, houve cortes nos orçamentos da universidade. Ora, os alunos da Teologia acompanhavam os acontecimentos e, além do mais, havia causas internas capazes de atearem fogo, sem esquecer, também, que se cultivavam no seminário idéias sociais marxistas. Esclareça-se, outrossim, que as verbas levantadas nas igrejas, com destino às novas construções, eram gastas sem levar em conta as necessidades subsistentes no internato. Face a isso, os alunos se revoltaram. A alta direção da Igreja decidiu encerrar as aulas na Faculdade e convocar um Concílio Geral extraordinário, revelando desconhecer a nossa verdadeira situação. Os alunos tentaram dar explicações, mas as autoridades endureceram cada vez mais, manifestando verdadeiro autoritarismo. Alunos, professores e respectivas famílias designaram uma comissão para falar com os bispos e apresentar-lhes por escrito um detalhado relatório, que entreguei pessoalmente ao rev. Oswaldo Dias da Silva, então à frente do Colégio Episcopal. Mas, tanto quanto

eu saiba, nada se providenciou e logo se sucedeu a realização do tal Concílio Geral, convocado para tratar exclusivamente da questão relativa à Faculdade de Teologia. Parece-me que a coisa de maior importância tomada pelo conclave resumiu-se a eleger uma comissão com autoridade para exonerar professores, bem como mandar embora os alunos julgados indesejáveis. Como presidente da mesma atuaria o prof. José Gomes de Campos. Embora os conselheiros quisessem eleger-me como novo reitor por unanimidade, eu recusei, pois considerava-me incompatibilizado para o cargo. Chegaram a eleger depois o rev. Sady Machado da Silva, que também se negou a aceitá-lo. Então, José Campos demoveu o rev. Brose a aceitar a oferta, exigindo este, ao que suponho, o meu afastamento. Escolheu-se então para a minha cátedra o rev. Duncan A. Reily, pastor em Santos.

Em conseqüência, travei o seguinte diálogo com José

Campos: “Quando eu terminar de escrever o livro História do Metodismo no Brasil, vocês me devolverão ao meu posto de titular? Pois estou licenciado, e ao licenciado se respeitam os seus direitos. Por que vocês elegeram outro titular?” Resposta: “Podemos solicitar ao Bispo para que prorrogue a sua licença”. Mas eu retruquei: “Não é isto que estou pedindo e nem me interessam os favores; quero o que é meu; aqui me encontro há vinte anos, e nada consta contra mim”. Assim, em vista da injustiça contra mim praticada, voltei ao pastorado e nele fiquei até minha aposentadoria, em 1975.

Confesso que o meu relacionamento com os reitores

sempre foi bom. Poderiam substituir-me, se quisessem, mas nenhum deles precisou chamar-me a atenção por qualquer motivo. Enumero-lhes o nome com todo o respeito: dr. H. W. Moore, Paulo E. Buyers. Afonso

Romano Filho, Natanael Nascimento, Oto Gustavo Oto e lsnard Rocha. Igual respeito e amizade existiu com os professores e suas respectivas famílias: Almir dos Santos, Natanael, Ary B. Ferreira, Jalmar Bowden, James Terrel, Hinson, Zimmerman, Alfredo Simon e outros. Antes da crise formávamos uma expressiva comunidade, incluindo os estudantes considerados como parte de nossas famílias. Mas depois ocorreu o esfacelamento, perdendo o grupo o senso de conjunto.

Alguns professores-missionários, no intuito de

ajudarem financeiramente os estudantes, ofereciam-lhes trabalho. Eu e José Rui enceramos por diversas vezes no Granbery as residências dos revs. Bowden e Clay. Bowden costumava emprestar dinheiro, conforme o caso ao aluno, porém Buyers negava-se terminantemente a fazê-lo e por isso não era procurado, como, também sucedia com os brasileiros. Bons exemplos no magistério, embora nem todos satisfizessem por algum motivo.

Visto ser tesoureiro da Faculdade, andava a par da

situação econômica de cada colega, pois era eu que lhes repassava o pagamento enviado pelas regiões eclesiásticas a que estavam ligados. No geral, viviam em aperturas, salvo quando recebiam alguma oferta de igrejas que os convidavam para trabalhos especiais.

Às vezes, as circunstâncias permitiam tal ajuda, caso

realizassem campanhas evangelísticas ou comemorassem datas significativas. Na Semana Santa, quase todos, alunos e professores, ocupavam-se neste histórico evento. Certa feita, o pastor de Campinas convidou-me para discursar na solenidade comemorativa da Independência a realizar-se no Teatro Municipal da cidade. Em 1978, rumei até Lins para falar acerca do

cinqüentenário do Instituto Americano. Outros colegas tiveram semelhante desempenho em diversos lugares, de modo que, no conjunto, a nossa contribuição revelou-se de suma valia. Conforme disse, realizei conferências religiosas em mais de uma dezena de igrejas.

Como tesoureiro, pagava os débitos, recebia os

créditos, conferia tudo, prestava contas ao reitor e depois entregava os comprovantes à senhora Eunice Nascimento que, na qualidade de contabilista, preparava o balancete final para o conselho. Nunca tivemos embaraços, mesmo porque, minha atividade prioritária concentrava-se nas matérias ministradas, segundo o programa semestral elaborado pela congregação a cada ano: História do Cânon, História da Igreja Cristã, Patrística, História das Religiões, Filosofia da História, História das Doutrinas Cristãs, História da Reforma, anuais ou semestrais, conforme o caso. Eu fizera o propósito de aprofundar-me nelas nos cinco primeiros anos, de modo a ficar desembaraçado dali em diante, pois desejava ingressar na Universidade de São Paulo, a fim de melhorar meus conhecimentos. Sempre estudei as aulas visando o melhor ensinamento. Para facilitar o progresso cultural de leigos e pastores, surgiu o curso por correspondência, que eu também dirigia em consonância com os demais encargos. Entrementes, escrevi artigos para o Expositor Cristão e Cruz de Malta, biografias de certos missionários para a Enciclopédia Metodista, bem como as obras Didaquê, Vida e Obra de Clemente Romano, Arminianismo e Metodismo, História do Metodismo no Brasil. Além destas contam-se os estudos que escrevi para a Revista de História da Universidade e para o Suplemento Literário do Estado de São Paulo. Ingressei nas seguintes organizações culturais: Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, União Brasileira de Escritores, Academias de História de

São Paulo e Paulistana, Academia de Letras da Grande São Paulo, Instituto Genealógico Brasileiro e PEN Center de São Paulo. Proferi conferências sobre diversos temas de história do Brasil, a convite.

Tempos mais tarde comprei um terreno em

prestações. Em 1980, construí a minha residência na Vila América, próximo à Faculdade de Teologia, graças a economias de família, doação de minha mãe e empréstimos de Gregório Ferreira de Camargo, velho amigo de Birigüi. Paguei os empréstimos com os próprios aluguéis.

Sempre estive envolvido com a cultura, desde as

primeiras letras até o ensino superior. Cursei o primário e o ginásio. Granjeei títulos de nível superior e na mesma direção encaminhei meus três filhos. Minha esposa dedicou-se ao magistério durante anos, até alcançar a aposentadoria. Atuei nos conselhos do Instituto Americano de Lins, Piracicabano e Noroeste. Lecionei na Faculdade de Teologia pelo espaço de vinte anos contínuos, e mais oito no atual Instituto Metodista, em São Bernardo do Campo. Na época, fui convidado para dirigir o setor de história do Museu Paulista, bem como, para ensinar nas faculdades de São José dos Campos, mas recusei a todos, visto o antigo compromisso com a Faculdade Metodista. Meu objetivo jamais consistiu em ganhar dinheiro ou obter honras.

Para nossa satisfação, veio instalar-se próximo ao

campus da Faculdade de Teologia a benquista Rádio Record, detentora do Canal 7. Sua capela funcionava aos domingos, pela manhã, quando víamos multidões passarem para a missa. A inauguração efetuou-se em 1953, mas a freqüência começara bem antes. O comendador Siqueira, a quem encontramos certa ocasião

como assistente do governador Adhemar de Barros, figurava entre os seus baluartes.

Não obstante o caráter isolado da primitiva

comunidade metodista, a direção achou por bem cercá-la com arame farpado, visando protegê-la e também às residências domésticas. Por isso mesmo surgiram alguns fatos jocosos. Lembro-me, a propósito, de um vizinho cuja moradia ficava nos limites de nossas casas, o qual criava ovelhas além de um robusto carneiro. Aconteceu certa vez que o professor Jalmar Bowden, achando-se no quintal da Faculdade, aquele animal investiu inesperadamente contra ele, ferindo-o no “bumbum” e arremessando-o ao chão. O caso tornou-se hilariante.

De outra feita, aquele vizinho resolveu retirar às

ocultas um eucalipto de nossa propriedade. O reitor, rev. Romano, ouviu o corte das machadadas e resolveu averiguar; logo os dois encetaram violenta discussão. O homem era forte e de grande estatura, mas alunos e conhecidos acorreram céleres, evitando que os briguentos chegassem às vias de fato.

Lembro-me, outrossim, de um fato engraçado, ou

quase isso, acontecido com o José (Juca), meu filho, em certa manhã de verão. O dia estava lindo, achando-se o sol a tremeluzir e o vento a soprar intenso, convidando a soltar papagaios. O garoto aceitou o desafio e correu a chamar o Carlos Wesley (Casu), filho do rev. Almir, a acompanhá-lo no evento; tinham que fazê-lo olhando para o alto, mas virados de costas. Sucede que os pedreiros haviam aberto uma fossa no terreno, largando-a aberta quando se retiraram depois; o capim cresceu ao redor, tapando-lhe a visão, assim, o Juca, ignorando o perigo, caiu inteirinho no buraco, salvando-se a tempo, felizmente. Estava com oito anos de idade. Água e sabão

foram o suficiente para limpar a fétida sujeira. Restou a lembrança do acontecimento.

Acrescento, ademais, que certo domingo, enquanto

nos achávamos fora de casa, nossa residência foi assaltada por ladrões. Nenhum vizinho presenciou coisa alguma. Tratava-se de dois rapazes, que a polícia prendeu quando procuravam vender uma caneta-tinteiro, objeto de grande estimação.

XIIXIIXIIXII

A UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

(VIAGENS A PORTUGAL E À SUÍÇA)

Quando iniciei as atividades escolares na Faculdade de Teologia estabeleci que o primeiro qüinqüênio seria consagrado exclusivamente às matérias incluídas no meu programa. Visava, assim, estar em condições de ingressar na Universidade de São Paulo, de modo a servir melhor à nossa casa de ensino, pois considerava ainda pobre o meu preparo intelectual.

A USP, embora de criação recente, datada de 1934,

logo se impôs ao respeito das novas gerações, tanto de jovens como dos pais. Passo a passo, com esforço, dedicação e persistência, foram-se originando as faculdades que ora lhe caracterizam a estrutura.

Eram múltiplas as opções quanto aos cursos a

escolher. Além de Medicina e Ciências Humanas existiam outros. Optei por Geografia e História, considerados irmãos gêmeos, pelo que ambos exigiram instalações específicas, e às vezes, até à distância, por causa dos respectivos currículos. Lembro-me, por exemplo, que além das aulas de História, na rua Maria Antônia, tínhamos que freqüentar as ministradas no prédio da Geologia, na rua Helvétia, obrigando-nos, deste modo, a correr daqui para acolá. Mais tarde, uma reforma legislativa separou-as em definitivo, excetuando os alunos que quisessem seguir as duas. Foi o meu caso; contudo, nos sábados, devíamos locomover-nos até o

campus no Butantá, onde o professor Sokoupe orientava as aulas práticas de mapeação e cartografia.

Julguei, inicialmente, que poderia matricular-me nos

cursos matutinos da USP e lecionar à tarde na Faculdade Metodista, pois já havia precedente; tanto que o reverendo Natanael estudara assim na Faculdade de Ciências Sociais. Mas, qual não foi a minha decepção, quando o nosso secretário executivo informou-me que eu teria de ministrar as matérias no período da manhã: fato jamais acontecido antes. Reclamei, evidentemente, porém em vão. Corri, por conseguinte, à USP e solicitei ao dr. Odilon Nogueira de Matos a transferência para o período noturno, embora as aulas já estivessem em pleno andamento. Assim, permaneci ligado durante anos àquela escola, das 19 às 22 ou 23 horas, chegando em casa tarde da noite e levantando-me cedo no dia seguinte para trabalhar.

O local escolhido para a instalação da USP, foi a

antiga fazenda do Butantã. Estava quase erma, devido ao espaço que a envolvia, e achava-se nas imediações da histórica capital paulistana. Enfim, atenderia bem à estrutura que se tinha em vista, quanto às faculdades a criar. No começo, como é natural, necessitou contratar mestres estrangeiros. A Faculdade de Medicina data de 1913, seguindo-se então a de Filosofia, Ciências e Letras, e assim sucessivamente.

Vieram, pois, para cá, eminentes professores

franceses, portugueses, norte-americanos e outros. São lembrados com muita satisfação os nomes de Claude Levi-Strauss, de Paul Roger Bastide, Braudel, Monbeig e de tantos mais. Todos eles contribuíram para a nossa elevação cultural com suas magníficas aulas, livros, orientações e exemplos. Deixaram, inclusive, bons

sucessores brasileiros, diversos dos quais os substituíram depois nas cátedras, a exemplo de Eurípedes Simões de Paula, Eduardo de Oliveira França, Astrogildo Rodrigues de Meio, Azis Nacib Ab Saber, dos quais me tornei amigo. E isto, sem enumerar os que exerceram o magistério superior nas diversas faculdades. Tive, outrossim, cursos aos sábados, nos terrenos ainda virgens da USP, com o dr. Sokoupe, alemão, professor de cartografia, e com Ricardo Roman Blanco, espanhol, com o qual aprendi muito de paleografia antiga. Ao dr, Eurípedes devo, além das atenções, o acesso à Revista de História, que publicou algumas monografias minhas. Ao inesquecível mestre Sérgio Buarque de Holanda, devo a amizade e as apresentações que fez de mim aos editores conhecidos seus, além da colaboração na confecção da minha tese de doutoramento. Por seu intermédio tive acesso ao Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, cuja primeira publicação, intitulada “Os transportes de São Paulo no período colonial”, permitiu-me ganhar, em 1962, os prêmios da Academia Paulista de Letras e Câmara Municipal de São Paulo. Em 1958, diplomei-me em Geografia e História, mas ainda prossegui na USP cursando História Antiga, História Medieval, História da América e Paleografia.

Em 1963, concretizou-se o doutorado, após extensas

pesquisas em Portugal e no Brasil. Quero elucidar que a respectiva tese fora alvo de contestações desde o princípio, visto que eu desejava provar que a Capitania de São Paulo era o núcleo de numerosa população de cristãos-novos sefardins. Os opositores negavam isto, alegando que São Paulo estava nas mãos dos jesuítas e que estes detestavam aqueles, mas eu provei que se tratava de amigos. Alterei, pois, o velho conceito étnico e histórico quanto à sua gênese e atuação.

Entrementes, quiseram os mestres que eu ingressasse no corpo docente da USP. Resolvi então, preparar uma segunda tese. Neste caso, aproveitei o tempo deixado na Faculdade de Teologia por Almir dos Santos, em viagem aos EUA, para adiantar minha programação de aulas. No seu regresso, fui a Portugal com bolsas da Fundação Gulbenkian e Instituto de Cultura Portuguesa. Na oportunidade, participei do Colóquio Luso-Brasileiro onde me encontrei com os professores: Soares Amora, Spina, Eduardo França, Pedro Calmon, Tito Lívio Ferreira, Padre Serafim da Silva Leite e outros. Certa noite, fomos todos assistir à representação do auto de Gil Vicente, “Sumário da História de Deus”, pelos alunos da universidade Coimbra. Admirei, outrossim, as lavadeiras de saias meio levantadas, a exercerem a tarefa no rio Mondego. Dali me desloquei para a saudosa Figueira da Foz.

Eu saíra de Santos a 14 de julho de 1963, no navio

Giulio César, tendo já reservado hospedagem na Pensão Morais, em Lisboa. A viagem oceânica não me pareceu das mais agradáveis, conforme idealizara, porquanto enfrentamos o mau tempo desde Santos. O navio balançava muito, devido, também, à falta de estabilidade. Apenas na passagem da linha do equador tivemos mar calmo. Perdi o apetite, mas felizmente, havia a bordo frutas em abundância. O mal-estar prevaleceu até Lisboa obrigando-me a procurar um médico. Nesse transe, valeu-me deveras o casal Jaime Mourão que eu conhecera há tempos em Rudge Ramos. Também o pastor presbiteriano, Augusto Esperança, veio ver-me e depois o nosso colega brasileiro, Luiz Boaventura, missionário.

Estive a ponto de retornar ao Brasil porque estava

impedido de trabalhar. Entretanto, pus em dia a

correspondência e organizei um plano para as pesquisas nos arquivos de Lisboa. Assim, de manhã iria à Torre do Tombo; à tarde, ao Arquivo Histórico Ultramarino, ou à Biblioteca Nacional, ou ao Palácio da Ajuda, ou à Biblioteca Municipal. De fato eu me restabeleci dias depois, sendo possível realizar tal programa.

Comecei pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo,

localizado no largo de São Bento e anexo ao edifício da Assembléia Nacional. Ali procurei a sra. diretora, Emília Felix, então no exercício do cargo porque o titular se achava aposentado. Apresentei-lhe o passaporte bem como as cartas levadas do Brasil, mas ela acrescentou a exigência de uma recomendação do consulado do Brasil. Todavia, deu-me licença para trabalhar no seu próprio gabinete, a fim de que não perdesse tempo. No dia seguinte, cumprï aquela exigência. Compreendi então que em Portugal as leis existem para serem obedecidas.

Visitei o referido arquivo assiduamente, inclusive nos

sábados, até regressar ao Brasil. Entre os milhares de documentos, examinei os catalogados e os ainda fora dos catálogos; os processos da inquisição; os autos de fé alusivos a pessoas de meu interesse; a coleção Moreira referente ao Santo Ofício; as habilitações da Ordem de Cristo; os documentos alusivos à leitura dos bacharéis; as cartas e documentos avulsos. De todos colhi algum informe sobre judeus e cristãos-novos em Portugal, Europa, Brasil e alhures.

Encontrei lá um livro manuscrito, conhecido por Livro

Grande dos Homens da Inquisição, onde estão registrados nomes de alguns hebreus após 1605. Durante a semana, havendo folga, visitava livrarias e sebos na busca de documentos antigos. Aos domingos, ia com o amigo e cicerone, Mourão, conhecer os museus,

como os de Arte Antiga e Contemporânea, o Museu Militar e o dos Coxes.

Entrementes, fui à Suíça de avião, em viagem rápida

pela TAP. No aeroporto de Genebra aguardava-me o jovem Key Yuasa, natural de São Paulo, evangélico, com quem havia me correspondido e que providenciara, sem que eu soubesse, hospedagem junto à família Hans Bickel, pastor da Igreja Metodista local, e foi uma surpresa, pois pensara em ir para o hotel. Fato curioso sucedeu dali a pouco à hora da refeição: eu trouxera do Brasil uma carta da senhora Helza Scher para o sr. Bickel. Indaguei se sabiam de quem se tratava e o hospedeiro respondeu: “Eu sou o Hans Bickel”, de modo que assim fiquei mais à vontade. No dia seguinte, viajei para Leysin onde se reuniria a Assembléia das Igrejas Evangélicas Latinas na Europa, antes porém, em companhia do Key, almocei na Associação Cristã de Moços e visitamos lugares históricos.

Na gare de Cornavin, à hora do embarque, encontrei

os delegados de Portugal, Espanha e Inglaterra. Fomos apresentados uns aos outros travando animada conversação.

Eu achei a viagem muito agradável. O comboio

margeou o lago Leman, rodeado de jardins e de belas residências, por longo tempo; e beiramos o castelo de Chillon. Em Aigle, tivemos que pegar o trenzinho para Lesyn, o qual nos deixou no ponto final, defronte ao Grande Hotel, no alto da montanha. Deram-me um quarto individual, n° 408, muito aconchegante e com aquecedor. Já estávamos em outubro e fazia frio. Nuvens cobriam o espaço. As poucas lojas conservavam fechadas suas portas de vidro. Estive em uma para a compra de suvenires. Tirei retratos.

Seguiu-se a Assembléia reunida no salão de

conferências do hotel. Escolheu-se o presidente e demais dirigentes. Foram distribuídos boletins com os horários e os temas das conferências. Houve oportunidade para debates. Entre as teses, destaco: “La lglesia Minoritária — aspectos teológicos”, a cargo de M. Gutiérrez Marins, da Espanha, e “La Iglesia Minoritária — aspectos práticos”, por Giorgio Peyrot, da Igreja Valdense, da Itália. Depois, os delegados deram informes acerca do protestantismo em suas nações. Foi muito discutido o problema da emigração de país para país, as causas, e qual o papel da Igreja. Lucrei muito com tal encontro, assim como em Celigny, local onde se acha o Instituto Ecumênico de Bossey. Neste, convivi com alunos e verifiquei tudo. Tomei parte no culto religioso e tive entrevistas com os dois diretores: dr. Weber e dr. Wolf.

No dia seguinte, 6 de outubro, viajei de Genebra para

Lisboa, em avião, onde chegamos às 15 horas, mas, antes, estive na Biblioteca de Genebra, examinei o fichário e requisitei a correspondência de Villegagnon com Calvino, da França Antártica.

Como já disse, de Coimbra, segui para a cidade de

Figueira da Foz, deslumbrando-me com as belas paisagens ao longo da via férrea. No transcurso, fui despertado por imensa saudade, porquanto vivera há anos na região com os meus pais. Observei os extensos arrozais no vale do Mondego. Estive no mercado e na vila de Buarcos. Conversei por mais de uma hora com o pastor Mario Ferreira Neves, o qual me conduziu em seu veículo para visitar certos pontos da saudosa urbe. Então, parti de manhã para a Tocha, a fim de abraçar os parentes que ainda tinha ali: primos; o tio Antônio Neto, bastante idoso, e outros membros da família, além do

meu antigo professor, tio Júlio Gonçalves Salvador, e o hospital hanseneano Rovisco Pais. Também, o sr. Manoel Nogueira, dono de uma loja, e que fora meu patrão no Brasil, em Palmares, após o falecimento do meu progenitor. Este, levou-me em seu volkswagen a visitar a praia da Tocha, coisa que fazíamos a pé, há muitos anos. Boa estrada. Os casebres de madeira substituidos pelos de alvenaria. Então, tomei o ônibus para Aveiro e dali para a cidade do Porto, por meio de um rústico e vagaroso comboio.

Lá chegando encontrei hospedagem na Pensão dos

Aliados, localizada próximo à estação da estrada de ferro. Escrevi cartas para minha família. Telefonei para alguns conhecidos como os reverendos Albert Aspey, Francisco Abel Lopes e Paulo Alberto Nogueira, todos metodistas, e depois dirigi-me à Bibilioteca Municipal, apesar da chuva que caía. Encontrei-a fechada e em reformas; contudo, tendo falado com os principais funcionários, eles resolveram facílitar-me as consultas, demonstrando que boa vontade também existe lá. Na verdade, examinei velhos papéis relativos à Inquisição de Évora. Encontrei, também, o curioso Livro dos Pecados no qual a pessoa podia inscrever as faltas graves cometidas a cada dia. Adquiri algumas obras e slides. Fui, igualmente, ao Arquivo Distrital, na Praça República, cujos índices examinei, assim como livros dos notários, de 1958 em diante, porém de leitura dificílima.

Separei tempo bastante para visitar, com o pastor

Abel Lopes, locais especiais como: a Igreja do Lordelo com fachada caracteristicamente evangélica; passamos pela margem do rio Douro e vimos a bela ponte da Arrábida e também a que dá acesso a Vila Nova de Gaia. Chegamos pela beira-mar até Matozinhos. A paisagem era encantadora.

Por fim, tomei o comboio conhecido por “Foguete”,

com destino a Lisboa. Deixei para trás um povo bom, ordeiro, trabalhador e democrata.

Assim, ao cabo de quatro meses trabalhosos,

consegui recolher matéria suficiente para elaborar a tese a que me propusera: “Os Cristãos-Novos nas capitanias do Sul — Aspectos Religiosos”. Seria o resultado de minha teimosia porque eu defendia a presença dos cristãos-novos em São Paulo desde o início da colonização, ao passo que ilustres professores da USP negavam o fato. É que eles se apegavam ao pressuposto de que São Paulo se constituía em reduto dos jesuítas e que, por conseguinte, estes jamais tolerariam os judeus aqui. Seriam inimigos, pois.

A princípio, lutei incansavelmente à procura de

provas. Li tudo que me pudesse fornecer evidências. Recorri aos nossos antigos cronistas, examinei genealogias, consultei historiadores, falei com intelectuais, mas tudo resultou inútil. Cheguei ao ponto de quase desanimar, até que, por fim, encontrei a solução (por conselho de um sacerdote amigo) no primeiro volume das Cartas dos Jesuítas do Brasil, página 468, em que o padre Vicente Rodrigues escreve para Lisboa a um colega e diz: “Vitupiera mucho christianos nuevos en casa, y esto dize (eI Obispo) por el Padre Leonardo Nunes”. Ora! Pensei eu. Se havia cristãos-novos na Companhia, também existiriam noutros setores da sociedade. Li então as histórias dos jesuítas no Brasil, em Portugal, Espanha e Itália, encontrando claras evidências sobre o assunto em todas elas. Ao invés de inimigos eram simpatizantes. A descoberta servia, igualmente, para São Paulo. As leituras das habilitações ao sacerdócio também ajudaram muito.

Minha viagem a Portugal completou as expectativas.

Muitos frutos colhi daí: o caminho ficou aberto para futuras pesquisas; descobri a importância dos arquivos portugueses; travei importantes relações com os seus ilustres diretores e com uma plêiade de outras pessoas. Tive o prazer de ser recebido, em seus próprios lares, pelos drs. Moses Amzalac e Victorino Magalhães Godinho, em Lisboa; pelo sr. Luis Bivar Guerra, em Carcavelos; pela professora Virgínea Rau; além de outros.

Visitei, também, entre os mais íntimos, meus parentes

da Tocha e de Lisboa; os diletos amigos Jaime Mourão e sua senhora Maria Augusta; os reverendos Luis Boaventura e Augusto Esperança e, no Porto, o reverendo Abel Lopes e o professor Adriano Vasques. Recebi, entrementes, as visitas, embora apressadas, do cientista professor dr. Kerr e do professor Prócoro Velasques. Foi-me dada a oportunidade de, nesses mais de quatro meses, observar a vida do povo português, enfrentando dificuldades de toda sorte: as oscilações no custo de vida; a atuação firme do governo; a perda de entusiasmo de muita gente diante das guerrilhas nas colônias e o retorno de numerosos colonos à mãe-pátria. Portugal estava sofrendo profundas alterações, contudo, a ordem prevalecia. Ouvi o discurso de Salazar à nação, mas percebi que o povo não se entusiasmou.

Portugal passava, então, por esgotante sangria em

elemento humano e em recursos materiais. Na realidade “tinha que fazer das tripas coração”. Eu via com profunda tristeza, quase todos os dias, navios partirem para as colônias distantes pejados moços esbeltos; o melhor que havia no país.

Afinal, chegou a hora de regressar ao Brasil. Em 14

de novembro, embarquei para o Brasil, visto ter conseguido trocar a passagem marítima pela de avião. Aqui, também, se operaram alterações durante o tempo em que estive ausente do país. As editoras Edusp e Pioneira publicaram a minha tese sob o título de Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição. Em junho de 1968, os alunos da Faculdade de Teologia entraram em greve, fato que obrigou as autoridades eclesiásticas a adotarem medidas sérias. No país, a vida social e acadêmica também sofrera pertubações. Eu ainda alcançaria tal situação. Em conseqüência, fui transferido para a paróquia de Campo Belo.

Não ingressei no magistério da USP por ter sido ela

afetada (1964), pelo espírito contencioso do país, na época. Sucederam-se agitações, aulas perturbadas, professores sob observação da polícia, exílios. Ademais, eu queria servir à Igreja.

Continuei escrevendo. Além das teses, cujo objetivo

consistia em esclarecer certas questões da História do Brasil, desenvolvi o tema dos cristãos-novos, produzindo seis obras alentadas com base em documentos inéditos.

Na oportunidade, colaborei com a Secretaria de

Educação de São Bernardo do Campo, e foi de minha iniciativa o nome dado à Escola Infantil Bernardo Pedroso.

XIIIXIIIXIIIXIII

O INTERSTÍCIO DE 1970 A 1977

Afastado, compulsivamente, de minha cátedra na

Faculdade de Teologia, e achando-me licenciado para escrever a História do Metodismo no Brasil, mas, visto que, também, as autoridades eclesiásticas não me deram condições a fim de prosseguir a obra, integrei-me no pastorado. Por decisão episcopal passei a dirigir a paróquia de Campo Belo nos arredores de São Paulo, a qual aliás, era freqüentada por bom número de ex-alunos da referida Faculdade, por elementos de cultura e posição social, e, inclusive, por aviadores da Varig, como Abel Flores, cujo avião fora sequestrado para Cuba; Elio Victal Ferreira e Juarez Sieburger, irmão de ex-aluno meu.

Irritado com o procedimento para comigo, no caso do

afastamento da cátedra, apelei à Comissão de justiça da Igreja e ao Conselho Diretor da Faculdade, mas todos responderam mais ou menos de igual modo, dizendo: “Não é de nossa competência”. Afinal, deixaram-me na mesma categoria de quantos padeceram por culpa da greve de 1968.

Naturalmente, fiquei entristecido e abalado com a

injustiça no momento que melhor poderia servir à instituição. Ninguém explicou-me até hoje a causa da mudança. Todavia, passados alguns meses, Clory de Oliveira, designado para estruturar a Faculdade de Ciências Humanas, a primeira do IMS, veio pedir- me para ajudá-lo, o que fiz imediatamente, aceitando, inclusive, as cadeiras de História e de Geografia, bem como, mais tarde, a de Antropologia Cultural. Assim,

continuei no Instituto Metodista por mais oito anos, sem, porém, afastar-me da USP, visto que os professores do departamento de História queriam o meu ingresso como adjunto, mas, para isso, eu deveria defender uma segunda tese. Sucede que, de permeio, o Instituto de Cultura Portuguesa se inteirou do assunto e me ofereceu uma bolsa de estudos através de sua embaixada, coisa que muito me agradou.

Face, agora, à situação, procurei o Bispo da Terceira

Região, ao qual expus o problema e pedi licença para viajar. À vista do documento oficial, respondeu imediatamente: “É da minha competência; pode aceitar”. Contudo, alguns dias depois, chamou-me para dizer: “Apresentei o seu pedido ao Conselho Regional e este é contrário a sua saida, alegando falta de pastores e carência de recursos financeiros; consentiremos porém, se você abrir mão dos seus direitos na Igreja”.

Eu jamais solicitei qualquer ajuda pecuniária,

ademais, a atribuição era exclusivamente do sr. Bispo, por isso achei revoltante a mudança no procedimento; tanto mais, porque dois colegas, superintendentes distritais, apoiaram a decisão, achando-se eles comprometidos, impunemente, com a aquisição de residências para si com as verbas de aluguel fornecidas pela tesouraria regional. As casas foram compradas. Ambos fixaram-se nelas e nas mesmas continuaram a residir, evitando assim o problema de sua itinerância na Igreja Metodista. Ao que eu me pergunto agora, após tantos anos: “Houve justiça e honestidade para comigo?”.

Na mesma oportunidade perguntei ao sr. Bispo: “Se a

competência é apenas de V. Revma., por que consultou outros? Além disso, já respondi à embaixada afirmativamente. Que lhes direi agora, e em que situação

ficará a autoridade eclesiástica?”. Tive, em conseqüência, que recorrer a evasivas e solicitar à representação portuguesa a transferência da bolsa para o ano seguinte, o que, felizmente, consegui.

Sendo assim, iniciei a tomar providências para viajar

em 1970. Resolvi, antes de tudo, que iria sem qualquer ônus para a Igreja. Solicitei o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Ministério da Cultura de Portugal, no que fui atendido. Abri mão dos meus direitos na Igreja, exceto o de pastor metodista, escolhido por mim há longos anos. A TAP (Transportes Aéreos Portugueses), concordou que eu pagasse a viagem em dez vezes.

Entrementes, defini o tema para as novas pesquisas.

Seria a participação dos cristãos-novos no povoamento e na conquista do Brasil. Procurei evidências em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. Escrevi a respeito para quem pudesse dar-me informações. Tratei minha saúde com o dr. Brickmann, médico homeopata, amigo. Instituí e entreguei a medalha “Elias Gonçalves Salvador” ao melhor aluno formado pelo Instituto Americano de Lins. Mantive correspondência com a Lineide, minha filha, enquanto esta se achava em estudos na França.

Tudo em ordem, parti em 28 de fevereiro com destino

a Recife, pela Vasp. Esperavam-me no aeroporto local, meu genro Domingos e a esposa Lineide, agora professora comissionada na Universidade Federal do Estado.

Aproveitei então para visitar as instituições culturais

nessa capital, efetuar algumas pesquisas e travar relações com determinadas pessoas, como os professores José Lourenço, diretor do Instituto de Letras,

José Tarbosa, dr. José Antônio Gonçalves de Melo, que me recebeu em seu lar, o poeta e crítico literário Cesar Leal e outros. Fui à Cidade Universitária, ao Hospital das Clínicas, à Igreja dos Guararapes, ao Arquivo Público e à Biblioteca. Findei as andanças com uma visita muito necessária à histórica e venerável cidade de Olinda, da qual tirei algumas fotos.

Ao fim da semana, ou seja, no dia 6 de março,

levantamos asas, pela Varig, com destino à Lisboa. Altura de 11.200 metros. Chegamos às 10h40 pelo horário local. Segui direto para a Pensão Morais, na av. Liberdade, onde me hospedara tantas vezes no passado. Ato contínuo, dirigi-me ao Instituto de Alta Cultura para noticiar a minha chegada e receber o primeiro cheque alusivo à bolsa de estudos, o qual importou em 5.000 escudos. À tarde, passei bons momentos com o querido casal Pedro Jaime Mourão, agora residente perto, na rua do Carrião. Eu os conhecera há dois ou três anos, em Rudge Ramos, no Brasil.

Na segunda-feira, 9 de março, “entrei de sola”, como

se diz, na execução do meu plano de trabalho; o tempo não espera. Teria muito que pesquisar e que andar, de arquivo para arquivo; uma dezena no mínimo. Na monumental Torre do Tombo, relicário dos valiosos processos individuais da Inquisição, li numerosos, destacando especialmente o de Miguel Cardoso, cabeça dos cristãos-novos no Rio de Janeiro; o de Duarte da Silva, capitalista, operoso mercador e influente homem de negócios no reino de Portugal, Brasil e nações da Europa; o de Maria da Costa, judia natural de Beja, que, após enviuvar, casou com Fernão Vieira Tavares, pai do conhecido sertanista Antonio Vieira Tavares, eminente bandeirante de São Paulo.

Igualmente importante para se saber muita coisa sobre o nosso país, são os chamados Cadernos do Promotor que tive a felicidade de ler e anotar. Seguiram-se o Livro dos Penitenciados pela Inquisição, o Corpo Cronológico e tantos mais.

A Biblioteca Nacional não fica atrás como fonte

histórica. Grande parte dos seus documentos já se acham impressos. Destaco os compulsados por mim nas visitas que lhe fiz: Regimentos Reais em seis volumes, por José Roberto M. de Campos Coelho; Leis extravagantes de Portugal; Constituições Sinodais; Prática da Arte de Navegar— Roteiro para o Brasil; Ordenação Manoelinas e as de Filipe; informes sobre a escravatura; o tráfico negreiro; A História do Direito Português, de autoria de Marcelo Caetano e centenas de outros livros.

A Biblioteca do Porto pôs à minha disposição História

da cidade do Porto; História das colônias; Portugal e os Holandeses; O Valor da Moeda Portuguesa; documentos sobre o Rio da Prata; Catálogo dos Manuscritos Ultramarinos; Rezão do Estado do Brasil; Colônia do Sacramento; Memória da guerra de Pernambuco etc.

Encontrei, outrossim, abundante documentação na

Biblioteca da Ajuda, na Biblioteca da Universidade de Coimbra e na Academia das Ciências de Lisboa. No Arquivo Histórico Ultramarino, documentos de suma importância sobre o estado do Espírito Santo, ou melhor, capitania do Espírito Santo.

Todo esse material foi mais do que suficiente para

preencher o tempo em Lisboa, Coimbra e Cidade do Porto. O que se relaciona acima é apenas um modesto exemplo do que compulsei nesta viagem de estudos.

Em Lisboa, costumava ir, às segundas-feiras pela

manhã, aos escritórios da Varig, para ler os jornais do Brasil que seus aviões traziam; ao passo que nos demais dias, visitava os sebos e as livrarias à procura de manuscritos antigos. De quando em quando, dirigia-me ao escritório do nosso patrício Álvaro Gonçalves Pereira, ou quando não, à sua loja, denominada “Livro Brasileiro”, para um bate-papo e inteirar-me das últimas publicações em nossa pátria, distribuídas para outros países. Por diversas vezes adquiri e despachei certas obras consideradas interessantes ao endereço de alguém da família em São Paulo, como exemplo: História dos Cristãos-Novos Portugueses, de Lúcio de Azevedo; A Inquisição de Gôa, de Antonio Baião, e diversos outros.

Gostava de conversar com as pessoas sobre

Portugal, fossem ilustres ou não. O dr. José Ignácio Gomes, médico aposentado, do Algarve, era um deles. Junto com a esposa vinha almoçar na Pensão Morais. De outra feita, à tarde, após o Arquivo do Tombo, resolvi assentar-me na Avenida Liberdade ao lado de certo cidadão, senhor de boa aparência. Notando que eu era brasileiro encetou conversa comigo dizendo: “Vocês nos condenam porque os EUA progrediram muito, ao passo que os portugueses vos deixaram no atraso”. Então, respondi que tal julgamento devia ser corrigido, visto haver razões que muito beneficiaram aquela nação e lhe apontei as principais, começando pela posição geográfica e a seguir o clima, o tipo de solo, o habitante indígena, a agricultura, a mineração, e assim por diante. Em conclusão, o referido cidadão acrescentou que não sabia disso. Mas eu percebo que inúmeros brasileiros endossam igual conceito.

Por coincidência, na manhã em que seguia de trem para a cidade do Porto, realizavam-se as exéquias do professor Antônio de Oliveira Salazar, o ilustre político que governou Portugal durante cinqüenta anos. Estivera doente nos últimos tempos. Nunca tive ocasião para visitá-lo, embora residisse próximo à Torre do Tombo e à Assembléia Nacional. Agora o que via mal-e-mal era o caixão mortuário metido num comboio especial a caminho de Santa Comba Dão, terra natal do extinto. Findas as cerimônias nos Jerônimos, o cortejo dirigiu-se à estação dos Caminhos Férreos. Multidões acompanhavam a passagem do féretro, enquanto aviões sobrevoavam nos céus. Mas o meu trem logo tomou a dianteira. Todavia, passamos pelas estações que o digno morto haveria de passar; em todas, havia grupos numerosos aguardando o féretro. Em Coimbra, onde Salazar exercera o magistério na universidade, foi, naturalmente, a paragem de maior destaque, segundo bem noticiou a imprensa.

Afinal, encerradas as pesquisas no Porto e em

Lisboa, regressei ao Brasil detendo-me primeiro em Recife para rever os filhos e os amigos; matei saudades. Outros me aguardavam em São Paulo. Tinha deveres a cumprir aqui, acrescentando a redação de nova obra, graças aos apontamentos colhidos até então e o atendimento às aulas que me fossem exigidas. Todavia, continuava no pastorado.

Logo que cheguei, quis saber qual a paróquia

destinada a mim pelo Gabinete Episcopal, pois me fora dito pelo bispo, antes da viagem, que eu já estava nomeado e que no regresso seria notificado oficialmente. Sucede que as designações foram alteradas em minha ausência, sem levar em conta meus direitos. Como proceder então? Admiti as explicações. Contudo, exigi o

meu lugar no pastorado, que vinha exercendo há dezenas de anos e no qual nada constava contra a minha atuação e pessoa. Afirmou-me o Revmo. Bispo que restavam duas igrejas à minha escolha, a saber: vila de São João Clímaco, já atendida por um estudante da Faculdade de Teologia, casado recentemente, e, cidade da Cunha, ainda vaga, onde teria que fixar residência, ou para lá viajar todas as semanas. Optei pela segunda alternativa, embora perdesse, sempre, muito tempo nas rodoviárias, pois era obrïgado a tomar duas conduções: uma em São Paulo e outra em Guaratinguetá. Preferi deixar em paz o seminarista-pastor de São João de Vila Conde.

Cunha é cidade antiga. Foi o caminho natural das

Minas Gerais para a vila de Parati, no litoral. Situou-se no planalto. Poucas ruas; lojas modestas. Seus moradores têm costumes simples; a vida rural predomina. Os metodistas procedem como os vizinhos, mas diferem destes por seguirem o Evangelho. Nos fins de semana, as pessoas que têm sítio ou fazenda, reúnem-se no templo que lhes é comum, o qual comporta, aproximadamente, quatrocentos fiéis. Existe muita consideração para com o pastor, por isso me senti bem entre eles, embora seja mais citadino. Permaneci como seu guia espiritual cerca de seis meses, pois, no começo do ano seguinte, fui nomeado para Rudge Ramos, e depois para Santo Estevão, no bairro de Tatuapé. Completei 37 anos de pastorado e resolvi, então, aposentar-me. Mas continuei no magistério, a serviço do Instituto Metodista de Ensino Superior.

O convite que me fez o diretor, rev. Clory, prolongou-

se pelo tempo adentro. No regresso de Portugal, passei a ministrar duas novas matérias: Problemas Brasileiros e Antropologia Cultural. Algumas vezes ajudei a preparar

os exames vestibulares, bem como a fiscalizar a execução dos mesmos.

Entrementes, minha atuação no setor cultural subiu

de nível; novas portas se abriram. Escrevi estudos para a Revista de História, da USP, e para o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo; a obra Os Cristãos-Novos: Povoamento e Colonização do Brasil; O Didaquê, em 2ª edição; a História do Metodismo no Brasil. Depois, em 1972, proferi uma conferência em Lins, comemorando o qüinquagésimo aniversário do Instituto Americano. Ingressei como titular em diversos institutos e academias culturais; recebi alguns prêmios literários e menções honrosas. Foi, portanto, uma fase de trabalhos e de vitórias.

Todavia, precisei voltar a Portugal, realizando então a

terceira viagem, a qual, aliás, é decorrente das obras já publicadas. Sucede que o professor José Honório Rodrigues, ao prefaciar Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional, em 1978, impôs-me a obrigação de escrever nova obra, abordando o tema “Os cristãos-novos ao tempo da mineração”, pois, segundo disse, eu teria condições para descobrir-lhes as atividades nas Gerais, desde o descobrimento das minas, exploração do ouro e demais minérios. Não pude atendê-lo prontamente e sim mais tarde, quando foi possível.

Durante muito tempo estive preocupado em deslindar

o problema dos judeus no tráfico de escravos, motivo da viagem que faria a Portugal em 1977, retardada até então por carência de recursos, razão esta, porque busquei, mais uma vez, o apoio do Instituto de Cultura Portuguesa, sediado em Lisboa. Enquanto aguardava, conclui Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico

Meridional, com a qual candidatei-me ao prêmio maior em história promovido pelo Instituto Nacional do Livro e, felizmente, obtive essa láurea. Logo chegou também a decisão do órgão lusitano, oferecendo-me 7.000 escudos. Assim, a 3 de agosto, embarquei em Viracopos para Lisboa; antes passei pela alfândega, na qual fui vistoriado a nú. A viagem em avião pela TAP não poderia ter sido melhor.

Desembarquei no dia seguinte, de modo que, após o

almoço no restaurante Águia de Ouro, fui apresentar-me ao Instituto de Cultura Portuguesa para receber a “quota” referente à bolsa de estudos. Hospedei-me novamente na Pensão Morais, a qual, não mais oferecia refeições como antes, mas tão somente um pequeno almoço ou desjeum, porque os preços haviam subido deveras. Aliás, aconteceram mudanças sensíveis desde a última vez que estive em Portugal, exceto no aspecto estrutural da cidade. A campanha política emporcalhara Lisboa. Eram numerosos os ‘retornados” das antigas colônias, e o governo dava-lhes uma ajuda, conforme o total de pessoas em cada família, de sorte que alguns até faziam economia.

Sempre que possível visitava os velhos amigos. À

noite assistia ao programa da RTP, na pensão. Nas segundas-feiras ia ler os jornais do Brasil na Varig. Quanto às pesquisas, repeti as buscas nos arquivos e bibliotecas já conhecidos, além de outros novos, a saber: Arquivo Histórico do Ministério das Finanças e Arquivo do Tribunal de Contas.

Deu-me grande satisfação a visita ao Museu da

Marinha, próximo ao mosteiro dos Jerônimos, pelo que vi e aprendi; além de tudo, gostava de assentar-me no parque Eduardo VII e contemplar, nas adjacências, o

busto de Pombal, ou ainda, passar por debaixo da ponte Salazar (ou 21 de Abril) nas viagens ao Instituto Ultramarino revivendo a amizade com os antigos funcionários e agora o novo diretor, Saul dos Santos. Estranhei ver um ex-colono, negro, à frente deste importante arquivo.

Lisboa é agora uma colcha de nacionalidades:

brancos, negros, com vários dialetos, turistas de várias partes, sobretudo do norte europeu. Vida caríssima, agitações. Simpatizantes de Salazar e de Marcelo Caetano e detratores.

XIVXIVXIVXIV

A RODA DO TEMPO

O tempo não pára. Uma geração passa, mas outra

vem. As estações se sucedem ano após ano, mudando apenas na aparência. O mundo é cenário de contínuas tranformações. Tudo muda. Nada permanece. E isto vem acontecendo desde antanho. Velhas tradições são relegadas ao esquecimento; os costumes sofrem alterações; novos inventos se sobrepõem aos existentes; as classes sociais passam por crises.

Já conhecemos diversas formas de governo. Por sua

vez, não ignoramos os grandes vultos que contribuíram para modelar a história. Nos lembramos, por exemplo, nestes anos, das figuras de Churchil, Roosevelt, Kennedy e Chiang Kai-shek, na esfera política; no terreno cultural, o incomparável Charles Chaplin, que divertia multidões, os papas, Livingstone, os cientistas do porte altaneiro de Pasteur, de Sabin e de tantos mais. No setor espiritual é notório o papel das religiões no Universo. Ainda há pouco assistimos também à guerra no Golfo Pérsico; à queda do muro separatista de Berlim; ao fracasso do marxismo materialista prevalescente na Rússia. E, de par com isso, a crise moral que afeta a humanidade, caracterizada nas violências perturbadoras das sociedades, na corrupção, na miséria, e na quebra dos laços familiares, registradas em todas as partes do globo. Vivemos, na realidade, em uma “pseudo” nova civilização, fruto da cultura subjacente nos séculos passados.

É justo, pois, encaixar o Brasil nesse todo, visto

estarmos inseridos no mesmo, tal como eu o vejo e me situo. Somos um misto das culturas vividas pelas

gerações passadas. Todavia, não podemos olvidar os acontecimentos ao nosso redor, porque, se aqueles nos atingem, estes exercem impactos ainda mais fortes sobre nós, por serem mais diretos. O Brasil, por exemplo, passou por inúmeras experiências desde o descobrimento. Houve mudanças, graças a muitos fatores, e outras haverão daqui em diante. São Paulo não ficou à margem da história, bastando mencionar as revoltas políticas em 1924 e 1930, quando fui apenas mero espectador, mas que, de certo modo, calaram em meu espírito juvenil. Fatos e nomes ficaram retidos em minha mente. Ouvira falar, sempre com elevado respeito, sobre o ex-presidente Washington Luis, e isto levou-me a admirá-lo também. Guardei a sua efígie transmitida pelos jornais ao tempo da respectiva deposição e exílio na Europa. Sucede que, anos mais tarde, encontrei-o por acaso em São Paulo, na Rua São Bento. Reconheci-o imediatamente. Caminhava sozinho. Levava uma bengala na mão. Bem vestido. Um tipo imponente, alto, barba esbranquiçada e cavanhaque digno do maior apreço. Era representante da cepa quatrocentona dos velhos paulistas embora fosse nascido na terra fluminense. Assim, tais razões levaram-me também a aproximar-me de seu filho, Dr. Caio, em Birigüi, quando, então, gerenciava interesses da Companhia Anderson Clayton.

As condições em nosso País, entretanto, não eram

das melhores. Ainda perduravam ressentimentos gerados pela Revolução Paulista de 1930, os quais foram alimentados por outros eventos. Os opositores de Getúlio Vargas reclamavam insistentemente a assinatura de uma nova Constituição (decretada por fim em Julho de 1934). A crise financeira, motivada em parte pela queda do café, atingira duramente o país. Em consequência, a agricultura decaíra; sítios e fazendas quase se

despovoaram, pois muitos trabalhadores mudaram de atividade, ou migraram, para as cidades ou para zonas novas. Eu presenciei, quando pastor, o esvaziamento daquelas propriedades, graças às transformações que se operavam. Muitos espaços cederam vez aos campos para criação de gado.

O pior, talvez, foi o ingresso do Brasil na guerra contra

o “eixo”, formado pela Alemanha, Itália e Japão (1939-1945). Nossas tropas tiveram que lutar na Europa, ao passo que aqui faltavam as coisas mais comezinhas. A inflação subia a cada instante. Pertubações sucediam-se aqui e ali. A insatisfação se generalizou. Getúlio Vargas, ante a ameaça de deposição, preferiu suicidar-se (24 de agosto de 1954). Outros governantes sucederam-se então, a saber: Juscelino Kubitschek (1956-1961), Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964).

A Inauguração de Brasília sucede em 21 de Abril de

1960. Acompanha-o no empreendimento o Bispo Isaias Fernandes Sucasas, que iniciou ali o trabalho metodista. Afinal, ao cabo de alguns anos, face à situação em que o país se debatia, os militares resolveram tomar o governo nas mãos (1964). Em decorrência, o Congresso elegeu como presidente o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967) como presidente. Medidas drásticas começaram dali em diante. Houve cassações, exílios e prisões. Todo esquerdismo foi perseguido. Os professores ficaram sujeitos à vigilância contínua das autoridades civis. Alguns mestres chegaram a ser detidos enquanto davam aula, razão porque resisti aos apelos para ingressar no magistério da USP e, de igual modo, na Faculdade de São José dos Campos, em vias de se estabelecer. Meu nome fora indicado pelo departamento de história.

O certo é que, embora as desavenças estivessem atenuadas, e muita coisa estivesse resolvida, questões graves prosseguiram ainda no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969). Exigiram-se novas eleições. Era imprescindível enfrentar os problemas do custo de vida, da saúde e da educação, além da violência e de outros. Temia-se igualmente pela Segurança Nacional. Então, foram-se organizando os partidos políticos, com tendências direitistas, centralistas e esquerdistas. Assim, surgiram o Partido dos Trabalhadores, liderado pelo operário Luiz Ignácio Lula da Silva, e o Partido da Reconstrução Nacional, de Fernando Collor de MeIo, no lado oposto; cada qual seguindo diretrizes próprias, conforme o interesse e as características pessoais dos chefes. Estilo, ousadia, arrogância, críticas, calúnias e falsas promessas; tudo era válido. Os fins justificavam os meios para atingir o “curul” governamental. Ambos os contendores se acusavam mutuamente. Feitas as eleições, o candidato do PT saiu derrotado; evidentemente, não se conformando com isso os petistas.

A partir de agora, o cenário político turbou-se ainda

mais, tendo a agitá-lo a ingerência contumaz de Lula e de seus partidários. Este, no dia seguinte à proclamação dos resultados, saiu a público para dizer que discordava do pleito e que suas diretrizes equivaleriam às de um governo paralelo ao de ColIor. É estranho, pois, em vista disso, que o chefe petista gozasse de plena liberdade, inclusive nos plenários do Congresso e insuflasse denúncias contra o mandatário eleito. O chamado impeachment apareceu de imediato nas vozes de Lula e do senador Suplicy. Proclamou-se esse evento ainda antes de se concretizar o necessário processo. Percebia-se que os asseclas queriam a todo custo a cabeça do “réu”. Os meios também apareceriam logo. Dizia-se que

o presidente era o detentor da corrupção. Negaram-lhe para tanto a inteira liberdade de defesa. A mocidade, descontente com o problema do ensino, foi chamada para as ruas atirando-se contra o chefe da nação, e o mesmo sucedeu com a OAB, sem que fossem ouvidas as seções regionais. Problemas que vinham de passado remoto foram atribuidos a Collor. Ninguém se lembrou dos fracassos do presidente Sarney, cujo governo recebeu a reprovação de 55% do povo brasileiro. Numerosos conciliares favoráveis ao impeachment também tinham culpas no cartório, segundo se verificou depois.

E então, Itamar Franco passou a exercer a

Presidência.

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OBSERVANDO O PÔR-DO-SOL

Eu me aposentei em 1975, há alguns anos portanto. Mas o evento não alterou radicalmente a minha vida. Recebi-a como prêmio, em vez de julgá-la um castigo. Agora, sinto-me ainda mais livre e com a possibilidade de realizar o que não foi possível no passado. O amanhã ainda é preocupante, sem me atemorizar, contudo. Sei que poderão advir enfermidades, além de amarguras e males causados pela terrível solidão. É natural que seja assim, caso me restem muitos ou poucos dias. Estou envelhecendo sem, todavia, considerar-me um pobre velho.

Às vezes, ponho-me a pensar: o que é a velhice,

senão mais um estágio na vida de cada ser? Constitui-se no prolongamento da meninice, da juventude e da fase adulta. Não se conta pelo número de meses e nem de anos, porque é um estado de espírito. As evidências mostram que existem moços velhos e velhos que se conservam jovens. Uns atingem a velhice aos 50 anos, ao passo que outros vão aos 80, 90 ou mais. Nem todos os indivíduos da mesma idade são iguais física e mentalmente. O que é ser jovem? Li há tempos estes significativos dizeres: “Enquanto seu coração receber mensagens de beleza, alegria, coragem, majestade e poder, da terra, do homem, e do infinito, enquanto isso, você é jovem..”; é custoso, mas não impossível. Lembro-me, também, destas expressões de Bastos Tigre no soneto Envelhecer: “Não te seja a velhice enfermidade! Alimenta no espírito a saúde. Luta contra as tibiezas da vontade! Que a neve caia! O teu ardor não mude!

Mantém-te jovem, pouco importa a idade! Tem cada idade a sua juventude...”. Ninguém sabe quando a velhice começa porque, na verdade, o dia de hoje é diferente daquele de ontem. O corpo se altera a cada momento e de diversas maneiras. Agora são os dentes, depois os olhos que reclamam óculos, o estômago que rejeita certos alimentos, os prazeres que mudam, a memória que se debilita, a resistência física que decai e assim por diante. No entanto, para alcançar a velhice, ou melhor, uma idade avançada, precisamos evitar vícios, manter em paz a mente, conservar-nos em permanente atividade e prosseguir diuturnamente buscando o auxílio divino. Só devemos nos aposentar quando não dispusermos de forças suficientes, pois o trabalho retarda a velhice e muito contribui a favor da saúde.

Por isso, eu coloco a religião entre os fatores que

mais ajudam a enriquecer a vida. Ela orienta, estimula, dá segurança e paz. O Evangelho de Jesus Cristo, fonte de sabedoria e de poder, é uma bênção para quantos o abraçam. É a minha experiência desde menino. Jamais teria feito melhor escolha. Em todos os momentos e circunstâncias, tenho-o sentido perto de mim, fortalecendo-me, esclarecendo-me, guiando-me, tornando-me vitorioso porque é real, vivo, abrangente, enleador. Assim, por seu intermédio, granjeei amigos em todo o mundo como evidenciam as viagens que já realizei. Por exemplo, quando adoeci na primeira ida a Portugal, um destes veio em meu auxílio, apenas porque tínhamos em comum a mesma fé cristã. Noutra ocasião, quando fui à Suíça, solicitei ao jovem estudante brasileiro Kay Yuasa, que só conhecia de nome, reservar-me hospedagem num hotel em Genebra. No aeroporto da cidade, revelei-me exibindo apenas determinada revista. Enquanto caminhávamos, perguntei: para onde vamos agora? Para minha surpresa, respondeu: “o senhor será

hospedado pelo pastor metodista, o qual faz questão de recebê-lo no próprio lar”. E para lá fomos nós. Seria desnecessário esclarecer que o reverendo e a família trataram-me magnificamente enquanto ali estive; como se fosse um dos seus. Fato semelhante repetiu-se noutros tempos e lugares. Nada existe na terra capaz de aproximar os homens, tanto quanto o Evangelho de Nosso Senhor.

O segundo fator de importância a ser considerado, no

sentido de engrandecer o homem, é a família, pois se enraíza na própria natureza humana. Obedece às leis que regem a vida no mundo, destacando-se a conservação e a multiplicação das espécies. Só pela estima mútua, dois seres de sexos diferentes são capazes de darem continuidade à raça e de, juntos, enfrentarem as vicissitudes e conduzirem bem os filhos. Estes, por seu turno, além de suscitarem obrigações e estímulos, contribuem para que os genitores se engrandeçam. É confortador quando ambos envelhecem sorrindo, unidos, e sem o temor do amanhã. É, porém, muito triste, quando os lares se desfazem, por culpa dos pais ou mesmo dos filhos; enfim, quando deixam de ser bênção mútua.

Sei qual é o sentido da vida conjugal e o que é ser

pai. Eu e Alice, minha ex-esposa, geramos três filhos: Lineide, nascida em Pirajuí; Marineide, em Birigüi; e José (de apelido Juca), em Poços de Caldas, todos enquanto exerci o pastorado. Confesso que sempre nos deram muita alegria, apesar das preocupações causadas. Foram objeto de esperanças nunca desvanecidas. Nós os acompanhamos com satisfação na escola primária, no curso ginasial e na universidade. Agora temos orgulho em dizer que Lineide exerce o magistério na USP, Marineide leciona em faculdades do ABC e o José

trabalha para a Cesp, na qualidade de biólogo. Eles, ademais, já nos presentearam com seis belos netos, todos estudiosos, além de idealistas.

Infelizmente, nós, genitores, é que precisamos nos

separar judicialmente por incompatibilidade de gênios. Como digo: entramos no mesmo barco, mas não soubemos usar bem os remos. Entretanto, continuamos amigos. Eu devo à Alice muitas das vitórias que alcancei, pelo que lhe sou profundamente agradecido. Depois o tempo foi correndo, e já faz oito anos desde que nos apartamos. Sofri deveras com o passo dado. Resolvi, por conseguinte, buscar o auxílio de Deus. Assim, como resposta às minhas orações, casei-me afinal com a senhora Anídia Marques Barreto, viúva já há dezessete anos e minha ex-colega na Faculdade de Teologia, em Juiz de Fora. Agora, pois, trilhamos juntos o mesmo caminho. Os nossos destinos se uniram. Não ignoramos o peso que recaiu sobre nós, duas pessoas mais que septuagenárias. Estamos satisfeitos, pois nos queremos bem. Somos compreensivos, pacientes, tolerantes e corajosos.

A cultura, por sua vez, tem alimentado meu espírito

incansavelmente. Jamais me alheei à leitura e ao estudo. Ao ingressar no ministério, adotei um critério permanente com vistas à maneira de usar o tempo; de manhã, após o café, o cultivo da vida espiritual tanto quanto da intelectual. Considerava imprescindível o aprofundamento em história, línguas e conhecimento das ciências. Lia o jornal diário e escrevia algo de importância. Nunca subi ao púlpito, ou dei aulas, sem o devido preparo. Às tardes, porém, dedicava-me ao serviço social, à visitação em geral, às reuniões e ao que se revelasse mais urgente. De sorte que, ao mudar-me

para São Paulo e ABC, prossegui nessa praxe, alterando as coisas conforme as situações.

Na Faculdade de Teologia, as aulas aconteciam no

período da manhã, mas à tarde, ocupava-me com a tesouraria ou o internato e reuniões administrativas, eclesiásticas e outras. Atendi por vezes a interesses dos Institutos Noroeste, Americano e Piracicabano.

Na capital paulista, tornei-me sócio titular do Instituto

Histórico e Geográfico, do Instituto Genealógico e das Academias de História e Ordem dos Bandeirantes. Fui integrante do Departamento de Cultura da Secretaria de Educação no governo municipal do dr. Tito Costa. Proferi algumas conferências sobre temas históricos na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, e no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP). Contudo, ainda achei tempo para estudos na USP e para o curso de Direito em São Bernardo do Campo. Por isso tenho orgulho em exibir os diplomas, prêmios e títulos que recebi. Em 1978, a Associação de Ex-Alunos do IAL agraciou-me com o de “Honra ao Mérito”; em 1979 recebi o de “Erudição” pela Academia Brasileira de Letras; Instituto Nacional do Livro; Academia Paulista de Letras; Câmara Municipal de São Paulo, e por outras entidades. Em agosto de 1980, foi a vez do Instituto Metodista de Ensino Superior, ao qual servi durante muitos anos, conceder-me o honroso diploma de Professor Emérito. Homenagem da Academia Paulista de História, na presidência do professor Tito Lívio Ferreira. Amigos e colegas têm insistido comigo para que me candidate a uma vaga na Academia Paulista de Letras. Respondo sempre que o honroso lugar não é ambicionado por mim, pois me julgo sem condições. Moro fora de São Paulo, já pertenço a diversos órgãos, sou aposentado e disponho

de poucos recursos. Além disso, minha saúde é preocupante.

A relação de obras literárias produzidas excede a uma

dúzia, sem contar os numerosos artigos e monografias que escrevi para jornais e revistas. Não se estranhe, pois, as viagens que fiz a Portugal. A última destas, em 1988, como resposta a um desafio do magnífico historiador José Honório Rodrigues, que ao prefaciar a obra Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional, escreveu: “O mesmo fica comprometido a nos oferecer uma relativa às atividades judaicas no comércio do ouro e dos diamantes...”. E, concluiu: “Ninguém como ele poderá nos oferecer essa visão nova”. Porém, sem recursos, que poderia fazer? Recorri, por último, ao CNPq, o qual doou-me um modesto auxílio, mas precisei juntar minhas parcas economias.

Assim, vencido o desânimo e os percalços, a 5 de

abril de 1988, embarquei para Lisboa em avião da TAP. Aliás, devo acrescentar a presença comigo da Anídia, sem cuja participação jamais teria ido, tal a amargura causada pela minha separação conjugal. Evidentemente, também trabalharíamos juntos, e assim ainda é.

Na capital portuguesa, hospedamo-nos na Albegaria

da Paz, à rua José Estevão, em apartamento que nos reservara o reverendo Augusto Esperança, agente da Sociedade Bíblica. Ficava próximo à estação do metrô de modo a favorecer-nos nas viagens aos arquivos e às bibliotecas, e até quanto aos passeios. As refeições tinham vez onde quer que estivéssemos. Só o frio e a chuva atrapalhavam.

Evidentemente, concentramos nossa pesquisa na

Casa da Moeda, a qual, pelas informações obtidas, tinha

os arquivos na avenida Antônio José de Almeida, número 1.078, no andar térreo. Fomos recebidos cordialmente pela diretora, graças aos documentos que lhe apresentamos, além do espírito agora vigente em Portugal, tratando-se pelo menos de brasileiros, fato bem diverso daquele que encontramos em 1963, em minha primeira viagem. O governo mudara, e, com a Revolução dos Cravos, o país enveredara por novos caminhos. Não nos foram proibidas anotações e nem microfilmar os documentos que quiséssemos. Podíamos trabalhar sem embaraços. Constatamos, todavia, que poucos foram os historiadores e economistas que ali estiveram, não obstante a riqueza de material informativo jazente em suas prateleiras. De fato, muita coisa útil nos foi dado conhecer, conforme se vislumbra na obra resultante, Os Cristãos-Novos em Minas Gerais durante o Ciclo do Ouro (1855-1875). Manuscritos deveras preciosos nos vieram às mãos. Uns sobre o ingresso do metal refulgente, outros acerca do transporte do mesmo entre Brasil e Portugal; das precauções adotadas; a atuação dos mercadores; o contrabando, e outros problemas correlatos. Pôde-se julgar o teor das relações com a Grã-Bretanha, que nos permitia esclarecer certos problemas.

Entretanto, não bastava a saga na Casa da Moeda.

Tivemos que colher informes suplementares numa série de fontes esparsas em arquivos e bibliotecas da monumental cidade lisbonense. Por isso, nos dirigimos primeiro à Alfândega Geral e, a seguir, à Contadoria da Fazenda (em quatro volumes), de 1726 a 1796, e depois ao Ministério das Finanças, seguindo-se o Arquivo Histórico Ultramarino, a Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional; todos de suma importância para o estudo em questão. Por exemplo, nesta última, tivemos o ensejo de examinar a valiosa Coleção Pombalina, guardíã de esclarecedores documentos do século XVII, relacionados

com Portugal, Brasil e nações da Velha Europa. Foi imprescindível, igualmente, correr à Secção dos Reservados, sem ignorar os livros destinados ao público em geral, como Instruções Inéditas, do sr. D. Luís da Cunha, ilustre diplomata, representante de Portugal em diversas nações, cuja obra escreveu a Azeredo Coutinho. Desse rnesmo Cunha é o apreciado Testamento Político. Lembro, outrossim, o excelente estudo do professor Jorge Borges de Macedo sobre A Situação Econômica ao Tempo de Pombal, que tivemos o prazer de manusear na grandiosa biblioteca, como também The Methueens and Portugal, de A. D. Francis, além de outros acerca das relações com a Inglaterra. Examinamos, de igual modo, os processos do Santo Ofício da Inquisição, nos quais são encontrados os nomes de pessoas no trato do ouro do Brasil. Pagamos uma taxa de inscrição na Biblioteca Pública Nacional, a única que nos foi exigida. O Arquivo Histórico Ultramarino exigiu pesquisas sobre Angola e demais possessões, especialmente no tocante ao território das Minas Gerais. Por sua vez, no Arquivo do Tombo vimos os livros impressos das Chancelarias Reais, de D. João IV a D. João V; os Manuscritos da Casa de Cadaval; os Manuscritos do Brasil, e quantos outros julgamos necessários ao nosso estudo.

Contudo, pouco tempo nos restou para conhecer

Lisboa e arredores melhor. Eu os visitara nas viagens anteriores, mas a Anídia ainda não. O clima frio e chuvoso nos estorvava, a exemplo do que aconteceu em nossa primeira tentativa de subir até o castelo de São Jorge, quase no centro da urbe lisbonense. Era domingo. Pretendíamos tomar o ônibus no largo da Figueira mas tivemos que retornar para o alojamento, pois o vento e a cerração nos impediram; parecia São Paulo em determinada época do ano. Fomos obrigados a transferir o passeio para o domingo seguinte, pois nenhum turista

deixa de ir ao famoso reduto, tal a sua história e a privilegiada localização na parte alta da capital, quase à margem do esplendoroso rio Tejo. O castelo esteve nas mãos do conquistador árabe durante séculos, até à retomada. A construção é sólida, toda de pedras, e rodeada de um fosso de difícil travessia. Percorremos então as dependências, quando, também, avistamos o Tejo, as vilas do outro lado e grande parte da cidade.

No domingo imediato apanhamos o comboio no cais

do Sodré, rumo à antiga cidade de Sintra. Queríamos, evidentemente, visitar o castelo real situado no cimo da serra. Uma vez ali, um guia oficial nos ajudou, e aos demais turistas, a conhecer o referido casarão, especialmente as salas dos brasões, dos cisnes, das pêgas e a das audiências, além da enorme cozinha e da rústica casa de banhos reservada para el-rei e a gente nobre. Vimos os aposentos onde esteve confinado d. Afonso VI, bem como o terraço no qual consta que Camões leu os Lusíadas para a Corte. Afinal, fomos almoçar no restaurante “O Brasileiro”, pouco convidativo. Seguimos depois para a hospedaria em Lisboa.

Alguns dias mais tarde, coube-nos a vez de visitar

Queluz, que eu já conhecia, e em cujos pomares me perdi naquela primeira ocasião com o amigo Jaime Mourão. O Palácio Real dista da estação uns três mil metros. Não é suntuoso mas já possui história. Gostamos de ver a bela sala das audiências e das solenidades, e nos detivemos também nos aposentos onde nasceu e faleceu el-rei d. Pedro IV e o ex-imperador do Brasil, d. Pedro I. Já era noite quando regressamos à Lisboa.

Num outro domingo, quase véspera de nosso

embarque para o Brasil, o reverendo Augusto Esperança e sua senhora, nos levaram a Setúbal, às margens do

Atlântico, após transpor o rio Tejo, através da ex-ponte Salazar. É que a Igreja Presbiteriana comemorava festivamente o seu primeiro centenário, tendo à frente o pastor José da Silveira Salvador, meu parente. Cumprimentei-o, e à esposa, e assistimos a programação constante de parte religiosa e folclórica. O almoço nos foi oferecido pelo casal Esperança em restaurante de Setúbal. Tiramos fotos numa das praças e junto ao cais.

Não nos foi possível ir à Universidade, embora

atravessássemos o seu “campus” quase todos os dias. Nem sequer fui abraçar os amigos ali. Soube que o Dario Carvalho, aparentado comigo, dentista brasileiro de Lins, pretendia criar uma Faculdade de Odontologia, coisa de que Portugal muito carece. Aliás, temos conhecimento de que diversos profissionais dessa especialidade foram para lá, dando origem a incompatibilidades. Mas, certamente, o bom senso prevalecerá entre os dois grupos.

Quero dizer, por último, que descortinamos agora

notável diferença entre o país de Salazar e o de Mário Soares. Desfruta-se de maior liberdade. Reina ordem e certa estabilidade nos preços. Ali vivem, presentemente, muitos retornados das ex-colônias portuguesas e, inclusive, africanos negros. Notamos numerosos casebres ao lado de edifícios majestosos; o antigo e o moderno. Aguarda-se o ingresso de Portugal no mercado comum europeu.

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NOSSA RESIDÊNCIA NO

CONJUNTO COSTA DO SOL

Sucedendo que os nossos recursos financeiros em Lisboa estavam decaindo dia-a-dia, achamos por bem limitar o tempo de que ainda dispúnhamos. O CNPq deixou de nos enviar parte da verba com que contávamos, embora o tivéssemos cobrado por mais de uma vez. E daí, outrossim, o nosso desejo de regressar ao Brasil o quanto antes, mesmo porque não pretendíamos ficar em Portugal. Por outro lado, a Pátria nos aguardava, pois tínhamos obrigações a cumprir.

Devíamos, antes de tudo, enfrentar a imperiosa

necessidade de organizar uma nova residência, porque a minha, tanto quanto a da Anídia, estavam desfeitas. Em vista disso, decidimos ir morar em Santos até que o inquilino em Rudge Ramos me devolvesse o apartamento que possuo ali.

Portanto, alugamos um imóvel no bairro da

Aclimação, na rua Topázio, próximo ao local onde moram meu genro Domingos, Lineide e filhos. Fomos, depois, para Rudge Ramos e ocupamos o apartamento no Conjunto do Sol, em que nos achamos até o presente.

Gostamos, naquela contingência, de ter vindo para cá

por uma série de razões. Estávamos obrigados a entregar o imóvel da Aclimação; ficaríamos, assim, livres do escorchante aluguel. Minha filha Marineide e família residem nas proximidades. Já conhecíamos numerosos

moradores no bairro, pois vivemos aqui no passado. Tínhamos telefone próprio. Bons profissionais atendem a população: dentistas, médicos, advogados, laboratórios e diversos outros. O fato de estarmos à pequena distância do centro de São Bernardo e de São Paulo, bem como de todo o ABC, foi, também, de muito significado. Não obstante, optamos por freqüentar a Igreja Metodista em Vila Mariana, onde possuímos amigos e parentes. Mas a minha assistência às academias e aos institutos tiveram que ressentir-se.

Aos poucos vamos descobrindo as boas qualidades

de nossos vizinhos do Costa do Sol, alguns dos quais já conhecemos pessoalmente. A síndica atual é uma professora aposentada. Os idosos predominam entre os adultos. Contam-se algumas viúvas. Crianças e adolescentes em grande número espalham a sua graça. Como o espaço de lazer é largo, às vezes, soltam papagaios, batem bola ou andam de bicicleta. O bate-boca e as richinhas são comuns, exceto quando vão à escola. De resto, tudo vai bem. Se, porém, acontece algo de anormal, cada morador acode sem tardança. Vivemos, portanto, numa verdadeira comunidade, embora haja diferenças étnicas, sociais, religiosas e econômicas. Isto aqui é como um vilarejo em miniatura. Somente à noite é que o movimento se destaca porque regressam ao lar os que trabalham fora.

Entre as reminiscências que colhi nos arquivos de

Lisboa, figura uma inesquecível alergia ocular. Percebi que a tinha adquirido ao despertar certa manhã com os olhos ensangüentados e sem poder enxergar as coisas. Era mais um motivo para voltar ao Brasil o quanto antes. Também não convinha prosseguir nas pesquisas. Embarcamos prontamente, e, em aqui chegando, fui ao oculista. O mal foi sendo debelado aos poucos, de sorte

que apenas agora, após meses de tratamento e de contínuos exames, o médico considerou-me restabelecido. Tornei, por conseguinte, a sorrir satisfeito.

Precisei, no entanto, trabalhar sacrificialmente. É este

o preço dos dois últimos livros produzidos: Os Cristãos-Novos em Minas Gerais durante o Ciclo do Ouro e A Capitania do Espírito Santo e seus Engenhos de Açúcar. Acrescento, contudo, que o pior consistiu em procurar editor para os manuscritos, quase que em vão. Procurei livreiros, comerciantes, industriais, editores, além de outros, mas todos se escusavam de igual modo, dizendo: não podemos. Realmente, nosso país vivia uma crise terrível. Até que, por fim, a Livraria Pioneira, minha velha colaboradora e o Instituto Metodista de Ensino Superior, de São Bernardo do Campo, se prontificaram a publicar o primeiro, e a Universidade Federal do Espírito Santo, o último, após uma longa espera (1994). Todos com boa aceitação, graças ao conteúdo e à composição gráfica.

É bem verdade que um mal nunca vem só. Visando

atender a amigos que me solicitavam, resolvi escrever a minha autobiografia. Lancei, pois, mãos à obra. Todavia, assim que me pus a concretizar a idéia, eis que uma peça da máquina de datilografia se quebrou e não houve como consertá-la. O problema foi solucionado quando comprei uma Olivetti Colege, nas Casas Bahia, em duas prestações. O caminho ficou livre para escrever desembaraçadamente outra vez.

Redigi, ao todo, cerca de cem páginas. Resta-me

agora encontrar um novo publicista, salvo o caso de eu próprio assumir a obrigação. Costumo eu mesmo bater os meu escritos, porque o critério permite-me repensar à medida que vou datilografando o trabalho. Igualmente sucede quando respondo a correspondência que recebo;

aliás, desde há muito deixei de fazê-lo à mão por ser mais prático, embora menos diplomático. No momento, estou lembrado que devo resposta ao primo Alamiro Velludo Salvador, residente em Ribeirão Preto. Suponho-o doente, pois há meses não me escreve.

Em tudo procuro repartir as obrigações com a Anídia

e nos damos bem. Ela, inclusive, ajuda-me nas revisões da correspondência e nos demais escritos. Enfim, muitos são os compromissos a atender, tais como: visitas, reuniões, convites, contas a pagar e a receber, e assim por diante. Às vezes, aparecem coisas inesperadas, a exemplo da concessão do título honroso de “Cidadão São-Bernardense”, com que me brindou a Câmara do Município. A entrega efetuou-se no dia 13 de dezembro de 1993, às 20 horas, no salão oficial da mesma, achando-se presentes autoridades civis, escolares e religiosas. Os pastores evangélicos e suas congregações ali tiveram lugar, pois comemorava-se o Dia da Bíblia. Eu precisei falar também. Minhas filhas, a Anídia, e alguns familiares tomaram parte igualmente. O ambiente foi de festa. Ouviram-se hinos sacros e cívicos.

Dois outros eventos aconteceram no decorrer destes

anos, afetando os brasileiros. Refiro-me ao trágico acidente com o corredor de Fórmula-1, Ayrton Senna, em 1º de maio de 1994. Era um jovem muito querido no País, graças às vitórias que conquistara antes, alegrando a toda gente, crianças e adultos. Sua morte foi instantânea, causando as mais diversas conjecturas. Aguardou-se a palavra oficial por muito tempo. O corpo veio então para São Paulo, onde reside a família. Passou a noite na Assembléia Legislativa, sendo levado depois para o cemitério, acompanhado pelo maior cortejo que já se viu nesta Capital. Também, jamais se derramaram tantas

lágrimas. Nunca, certamente, aparecerá maior automobilista. Acompanhei tudo!

O segundo acontecimento refere-se às condições que

encontramos no país após nosso regresso de Portugal. A impressão colhida era a de que o caos se generalizara por toda parte. Notam-se desacertos na administração superior tanto quanto nas esferas subalternas. Fala-se na existência desbragada da corrupção nos diversos setores da vida pública. Diz-se que os maus políticos agem impunemente. Ninguém presta contas sobre o que faz ou deixa de fazer. Citam-se casos. A moral anda de gatinhas. A vida familiar tem muito a desejar. A educação decaiu sensivelmente. A mocidade parece desnorteada. A saúde baixou a nível sem precedentes. Quem precisar de hospital encontrará dificuldades para achar um em condições adequadas. Infelizmente, as igrejas católicas e protestantes pouco interesse revelam quanto à situação, e o mesmo se dá a respeito dos cultos orientais. Por isso, crescem rapidamente as religiões fetichistas.

Problemas vitais como o das drogas, o da Aids, da

exploração comercial, da violência e dos desmandos policiais jazem quase impunes. Admite-se, por conseguinte, que o remédio virá apenas com as novas eleições. Mas, pergunta-se: com políticos semelhantes aos que aí estão? É preciso o expurgo, cabendo a tarefa sobretudo aos tribunais eleitorais, pois sabe-se que “antigas raposas” não medem soluções a fim de se elegerem. E os partidos que temos? O PMDB, por exemplo, já foi governo e pretende sê-lo outra vez. O PT, chefiado por Luiz Ignácio Lula da Silva, esquerdista, e sem programa à altura das exigências do país, que poderá fazer? Daí a razão porque saiu a público o ardoroso jovem Fernando CoIlor. Todavia, os inconformados com seus modos e idéias, saíram a

campo a fim de alijá-lo da pretensão governista. Criaram-se desculpas. O PT se encarregou de pedir o impeachment, apoiado pelos estudantes, OAB e outros órgãos. Assim, mal começou o processo e já se efetuou a votação. Sabe-se agora que diversos elementos do Congresso tinham culpas no cartório. Então o vice-presidente passou a exercer o cargo, sendo obrigado a enfrentar os mais árduos problemas deixados pelos antecessores. E Itamar Franco fez o possível para corresponder às expectativas. Ao fim do seu mandato vieram novas eleições.

Assim que o dr. Itamar foi guindado à vice-

presidência, eu lhe escrevi, desejando-lhe felicidade no cargo e S. Excia., além de me responder, enviou-me dois trabalhos que apresentara ao tempo de senador, um dos quais sobre energia nuclear. Ambos estudamos no Instituto Granbery, em Juiz de Fora.

Diversos de meus confrades, sócios das Academias e

do Instituto Histórico, têm me abordado com uma pergunta que julgo impertinente, ou, pelo menos, extravagante. Querem saber porque ainda não ingressei na Academia Paulista de Letras. Reforçam eles a indagação, dizendo: “Você possui lastro cultural mais do que suficiente”. Ao que respondo de maneira pouco delicada e sem a devida cautela: “Ainda não me interessei por isso”.

A verdade, porém, é que me sinto embaraçado por

uma série de fatores, dentre os quais destaco: residir longe e precisar assistir às reuniões, por vezes à noite; já estar comprometido com diversas associações que me tomam muito tempo, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do Instituto Genealógico, das Academias de História, do PEN Centre e outros. Além

disto, como aposentado, meus vencimentos são baixos. Sou sócio, igualmente, de alguns órgãos, na qualidade de correspondente. Ademais, devo contribuir financeiramente para a minha Igreja. Afirmo também que meus direitos autorais são precários. De modo geral, o que recebo incluindo todas as fontes é uma insignificância e, como se diria, “mal dá para fazer um cego cantar”.

Seria enganoso afirmar agora, que tudo me vai bem,

ou que tenho dinheiro e saúde e, enfim, que vivo em mar de rosas. Sei que muita gente assim pensa, julgando-me pelas aparências. Se, todavia, possuo certos haveres, estes foram ganhos através de renúncias, dedicação, trabalho e economias. Não gasto à-toa e somente compro à vista, quando tenho dinheiro à mão. E de igual forma procedo com relação à saúde: não uso bebida alcoólica, tabaco ou drogas. Escolho o bom alimento. Defendo a saúde.

Infelizmente, já sofri dificuldades de toda sorte. Já

padeci alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, surpresas e desapontamentos. Mas, graças a Deus, tudo já se foi. Só ficou o essencial. Seria uma tremenda desventura se tivéssemos que reter o imenso caudal de coisas que nos sucederam no passado. A velhice nunca é plena e nem acontece num instante. Vem aos poucos, normalmente. O aprendizado vai-se tornando mais vagaroso, mas ainda subsiste; por exemplo, ainda posso dedilhar o meu bandolim. Também reluto quanto à presteza no atender à correspondência que me chega quase diariamente. Outrossim, em virtude de um tombo que levei há tempos na rua, já não creio tanto em mim. São sinais, evidentemente, de que somos limitados e de que o sol está declinando.

Por motivos especiais, quase nada disse sobre minha família e nossos parentes. Mas eles sempre estiveram comigo. Penso em todos. Eu os amo profundamente, sobretudo os filhos e os netos. Admito que nunca nos desapontaram. Sinto apenas que não se importem tanto com a religião, que julgo de suma importância para a vida de cada um.

No entanto, resta-me agora dar graças a Deus pelas

bênçãos que me concedeu e pelo que me ajudou a realizar. É tempo de repetir as palavras, inspiradas, do compositor sacro: “Graças dou por esta vida, pelo bem que revelou; graças dou pelo futuro e por tudo que passou; pelas bênçãos derramadas, pelo amor, pela aflição, pelas graças reveladas; graças dou pelo perdão”.

E, para concluir, vou contar um fato que aconteceu há

poucos dias quando apanhei o ônibus para ir a São Paulo. Como o governo subscreveu uma lei isentando os passageiros com mais de 65 anos de pagarem qualquer taxa, eu entrei afoitamente no veículo, mas, ao descer no ponto final, o motorista do veículo me advertiu, dizendo: “O senhor não se identificou”. Voltei-me para o mesmo e lhe respondi: muito obrigado, porque o senhor tirou-me mais de dez anos. “Nem os meus cabelos brancos lhe valeram para o cálculo, pois tenho acima de setenta”.

Meu casamento com a Anídia contribuiu para

enriquecer a nossa família, a qual, agora, é uma só. Além dos meus três filhos e dos seis maravilhosos netos, ela acrescentou as suas filhas, os genros e as belíssimas garotinhas. Constituem jóias valiosas, que prezamos muito, a prof. Elcy, casada com o reverendo Nelson Luiz Campos Leite; o prof. Ely Barreto César, que é um dos mentores da Universidade Metodista de Piracicaba, e seu irmão, o abalizado cardiologista, dr. Eliel Barreto César.

Todos são motivo de orgulho para nós. De sorte que registro aqui a minha homenagem para todos.

Não há nada tão belo quanto o pôr-do-sol, quando a

noite vem chegando! No entanto, o astro-rei não perde a eficácia pelo

simples fato de ocultar-se por detrás de algum acidente cósmico, pois a luminosidade e o calor continuam a exercer-se por mais tempo. As frutas, por exemplo, amadurecem mesmo à noite, vegetais crescem onde predominam as trevas. Muitas vezes colhemos o que foi semeado no inverno, ou na juventude, e até na maturidade. Aliás, é comum desfrutar na velhice segundo o que se plantou em tenros anos. Riqueza, cultura, fama são prova disto. Quando vou a uma Academia de Letras, noto que a grande maioria de titulares é constituída por representantes de “cabeça-branca”.

Tal experiência estou gozando agora, após decorridos

sessenta anos de minha formatura no curso ginasial. Eu nunca pensei que alcançaria semelhante privilégio. Os poucos colegas que chegaram até aqui resolveram comemorar o evento, reunindo-se na escola onde estudamos, marcando a festividade para 27 de agosto de 1995. Estarei lá, sem dúvida, porque também é o aniversário do Instituto. Ademais, aproveitarei para efetuar o lançamento desta autobiografia, oferecendo-a aos meus conterrâneos de Lins.

Meu Deus! Que infinitude de coisas sucederam desde

o amanhecer da minha existência! Obrigado por tudo, Senhor!

CURRICULUM VITAE, ABREVIADO, DO AUTOR

É natural de Lins, Estado de São Paulo, onde nasceu

aos 8 de setembro de 1916, filho do comerciante Elias dos Anjos Gonçalves Salvador, e de sua legítima consorte, Encarnação Gonçalves Cardoso. Nessa mesma cidade, cursou o primário e, dois anos após ter concluído o ginasial, diplomou-se em Ciências e Letras pelo Instituto Granbery, de Juíz de Fora, Minas Gerais; do curriculum constaram as seguintes matérias: sociologia, psicologia, literatura brasileira, grego, hebraico e teologia. Posteriormente, contraiu matrimônio com a professora Alice Pereira do Lago e deste enlace nasceram três filhos. Ingressou, então, nas carreiras de magistratura e jornalismo, colaborando com a imprensa da capital e do interior de São Paulo. Foi correspondente do Jornal de São Paulo, sob a direção de Guilherme de Almeida. Passou a residir em São Bernardo do Campo no ano de 1949, até o presente, dedicando-se às letras e ao ensino superior, sendo titular de diversas cadeiras. No ínterim, exerceu funções nos conselhos diretores do Instituto Noroeste de Birigüi, Instituto Americano de Lins e Instituto Piracicabano, agora Universidade. É licenciado em Geografia, História, e doutorado em Ciências Humanas, pela Universidade de São Paulo. Em 1963, participou do V Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, em Coimbra, Portugal. Retornou àquele país em 1970 e 1977, com bolsas de estudo da Fundação Gulbenkian e Instituto de Cultura Portuguesa. Na área cultural, escreveu numerosos artigos e monografias para jornais e revistas, dentre os quais para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. É autor de diversas obras, tendo recebido os seguintes prêmios literários: “Cláudio de Sousa”, da Academia Paulista de

Letras e Prefeitura Municipal de São Paulo; de Jornalismo, da Câmara Municipal de São Paulo; do PEN Centre, de São Paulo; do Instituto Nacional do Livro (MEC) e, por último, da Academia Brasileira de Letras (1979). É sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo; da União Brasileira de Escritores; do Instituto Genealógico Brasileiro; da Academia Paulista de História e de outras organizações culturais. Fez parte, também, do Conselho de Educação, Cultura e Esportes, de São Bernardo do Campo. É bacharel em Direito (1987), pela Faculdade de São Bernardo do Campo. Em 1980, recebeu o título de “professor emérito” do Instituto Metodista de Ensino Superior (IMS).

PRODUÇÃO LITERÁRIA DO AUTOR

1. O Didaquê ou Ensino do Senhor através das Apóstolos. Manual de catequese da igreja primitiva. Tradução, texto e comentários. 1ª ed. 1957; 2ª ed. 1993.

2. Filosofia e Guerra, e outros escritos. Jornal “ O Biriguiense”, de 1944 a 1948.

3. Arminianismo e Metodismo. Estudo histórico e dogmático. Imprensa Metodista, 1958.

4. Vida e Epístolas de Clemente Romano — Séc. I. Tradução e comentários. Imprensa Metodista, 1959.

5. “Wilberforce, João Wesley e a Independência do Brasil”. Expositor Cristão, nº 36, 1959.

6. “Transportes em São Paulo no Período Colonial”. Revista de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras da Universidade de São Paulo (USP), nº 39, 1959. Prêmio da Academia de Letras, São Paulo, 1962 Prêmio da Prefeitura Municipal de São Paulo, 1963.

7. “Descobertas no deserto da Judéia”. Revista de História, USP, 1960.

8. “A Lei de Imprensa e do Comércio de Livros, de Filipe II e seus Reflexos na América Luso-Espanhola”. Revista de História, USP, 1961, Prêmio de Jornalismo da Câmara Municipal de São Paulo, 1963.

9. “‘O Grande Navio de Amacon”. Síntese da obra The Great Ship of Amacon, de C. R. Boxer. Revista de História, USP, nº 50, 1962.

10. “Ênfases Fundamentais da Reforma Religiosa do Séc. XVI”. Simpósio Protestante— O Catolicismo Romano. Aste, São Paulo, 1962.

11. “A Reforma Protestante e os Problemas Sociais de sua Época”. Revista Cruz de Malta, nº 5, 1963; Revista de História, USP, 1964.

12. “Quatrocentos anos de Protestantismo no Brasil”. Revista Cruz de Malta, 1964.

13. “Os franceses na Guanabara - Correspondência da França Antártica”. Textos em Latim, tradução e comentários. Revista de História, USP, 1964.

14. Artigos: “Mocidade e ideal”; “O Rio de Janeiro visto por um americano em 1835”; “História da nossa bandeira”; “Verbas para o Concílio Geral Metodista” e diversos outros escritos. Expositor Cristão, da Igreja Metodista do Brasil.

15. No Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo: “O livro brasileiro em Portugal”; “O capitão-mor João Pereira de Sousa, cognominado Botafogo”; “O enigmático frei Manuel Calado do Salvador, autor da obra Valeroso Lucideno” (nº 698); “A emigração judaica para as capitanias do sul” (nº 615); “Bandeirantes, cristãos-novos e judeus” (nº 618, março 1969); “A população cristã-nova de São Paulo” (n° 649, novembro 1969).

16. Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição. Tese de Doutorado na USP. Edusp/ Pioneira, 1968. Mensão honrosa do Instituto Nacional do Livro em 1970.

17. Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro.Edusp/ Pioneira, 1976. Prêmio José Ermírio de Moraes, PEN Center, São Paulo. Prêmio Erudição, Academia Brasileira de Letras , 1979.

18. Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional. Mec/Pioneira, 1978. Grande Prêmio em História do Instituto Nacional do Livro.

19. Este Homem Confiou no Brasil. Biografia do educador Mr. Clement, fundador do Instituto Americano de Lins, 20 pgs., 1978.

20. Os Magnatas do Tráfico Negreiro. Edusp/ Pioneira, 1981.

21. História do Metodismo no Brasil. Vol. 1, Imprensa Metodista, 1982.

22. Os Cristãos-Novos em Minas Gerais durante o Ciclo do Ouro. Pioneira. Apoio do Instituto Metodista de Ensino Superior, 1992.

23. A Capitania do Espírito Santo e seus Engenhos de Açúcar. Direitos da 1ª edição cedidos à Univ. Federal do Espírito Santo. Apoio da Secretaria de Produção e Difusão Cultural, SPDC, 1994.

24. Verberes na Encyclopaedia of World Methodisme. Volumes I e II.

25. Artigos avulsos em jornais e revistas.

26. “Os Raposo Tavares e a Inquisição Portuguesa”. Revista do Instituto Genealógico Brasileiro (sec. de S. Paulo), 1995.

27. Do Amanhecer ao Pôr-do-Sol — Autobiografia resumida. Opus Libri, 1995.

28. Escritos ainda inéditos: • O valor do homem no conceito de Jesus. Tese de

Mestrado na Faculdade de Teologia do Instituto Granbery, Juiz de Fora, Minas Gerais, 1939.

• A religião em Pernambuco durante o domínio holandês. Apresentado no Simpósio de História Eclesiástica, São Paulo.

• Santo Inácio de Antioquia - Vida, obras, influência etc. Em conexão com o estudo de Patrística.

• O conceito de Progresso. Em conexão com o curso de Filosofia da História.

FOTOGRAFIAS E DOCUMENTOS

Certidão de nascimento de José Gonçalves Salvador

D. Encarnação Gonçalves Cardozo: em 1928, após a

chegada ao Brasil (à esq.), e em 1930, já viúva (à dir.)

Elias dos Anjos Gonçalves Salvador: em 1914, logo

que chegou ao Brasil (à esq) e em data ignorada (à dir)

Casa Gonçalves Salvador & Irmão, em Lins. À

esquerda, a casa em que nasceu José.

Cineteatro Salvador, em Lins.

Família de José Gonçalves Salvador, nos anos 30:

(em pé, da esquerda para a direita) a irmã Judite, José, o cunhado José Faneco, a irmã Celina e o irmão Manoel; (sentadas) a avó materna, dona Rosa, e a mãe, dona Encarnação.

1934: a Revolução Constitucionalista.

1979, em São Paulo: José, ao lado de Tito Lívio

Ferreira, é homenageado pela Academia Paulista de História.

Recebimento do título de Cidadão São-Bernardense,

em 19/12/93. Da esquerda para a direita, Lineide, José, Marineide, vereador Lenildo Freitas e dona Anídia.

Diploma do Prêmio Erudição, conferido pela

Academia Brasileira de Letras em concurso realizado no ano de 1979 (extraído de fotocópia).

José Gonçalves Salvador em 1945, durante o

pastorado em Birigui... e em 1983, quando concluiu o curso de Direito na Faculdade de S. Bernardo do Campo.

Copyright © Jose Gonçalves Salvador

Todos os direitos reservados.

Ilustração da capa:

Péricles Mosca

Ilustrações:

Ricardo Campos

Projeto gráfico e edição de arte:

Flavin Irala

Coordenação de edição:

Ida Sueza Figueirôa

Editoração eletrônica:

Tânia Sueza Figueirôa

Preparação de originais e revisão:

Ilda Sueza Figueirôa

João Francisco Esvael

Tânia Sueza Figueirôa

Produção gráfica:

João Francisco Esvael

Assessoria gráfica:

João Simonato

Gráfica:

Bartira Gráfica e Editora:

1991