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1 DO INFERNO DE DANTE À COCANHA: FOMES E GULAS MEDIEVAIS CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro 1 Introdução Comer é uma necessidade fisiológica. Mas quando se reflete sobre a alimentação do ponto de vista antropológico, ou histórico, tal afirmação soa no mínimo incompleta. E quando se trata da Idade Média na Europa, falar de comida é como falar de qualquer outro assunto: uma questão de pecado e salvação. Ao mesmo tempo, é abordar uma era de extremos: de grandes períodos de fome e consequente redução demográfica, sempre associados ao castigo divino; até a concepção de lugares transcendentes: terras longínquas feitas de comida e bebida, mas também o Inferno e o Purgatório, para aqueles que idolatram a comida e a bebida desmedidas. A Idade Média é o tempo dos jejuns forçados e dos banquetes desregrados; de Quaresmas e Natais pontuando as dietas. O período medieval foi o tempo em que nobres, clero e camponeses lidaram de maneiras diferentes com os alimentos disponíveis, mas todos legaram suas dietas e conhecimentos culinários aos tempos posteriores. Este é o foco deste estudo: a alimentação medieval, em sua dimensão prática (ingredientes, preparo e consumo) e transcendente, ou seja, espiritual. Daí apresentar diversas representações, como as Regras de São Bento (Alta Idade Média), a visão de Dante (Divina Comédia) e a utopia dos gulosos, a Cocanha (estes da Baixa Idade Média). Dieta medieval A Alta Idade Média foi um período de fomes e privações. Os significativos progressos agrícolas vieram por volta do ano 1000, com novas técnicas que tornaram a 1 Universidade Estadual de Londrina.

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DO INFERNO DE DANTE À COCANHA: FOMES E GULAS

MEDIEVAIS

CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro1

Introdução

Comer é uma necessidade fisiológica. Mas quando se reflete sobre a alimentação do

ponto de vista antropológico, ou histórico, tal afirmação soa no mínimo incompleta. E

quando se trata da Idade Média na Europa, falar de comida é como falar de qualquer outro

assunto: uma questão de pecado e salvação. Ao mesmo tempo, é abordar uma era de

extremos: de grandes períodos de fome e consequente redução demográfica, sempre

associados ao castigo divino; até a concepção de lugares transcendentes: terras longínquas

feitas de comida e bebida, mas também o Inferno e o Purgatório, para aqueles que

idolatram a comida e a bebida desmedidas. A Idade Média é o tempo dos jejuns forçados e

dos banquetes desregrados; de Quaresmas e Natais pontuando as dietas.

O período medieval foi o tempo em que nobres, clero e camponeses lidaram de

maneiras diferentes com os alimentos disponíveis, mas todos legaram suas dietas e

conhecimentos culinários aos tempos posteriores. Este é o foco deste estudo: a alimentação

medieval, em sua dimensão prática (ingredientes, preparo e consumo) e transcendente, ou

seja, espiritual. Daí apresentar diversas representações, como as Regras de São Bento (Alta

Idade Média), a visão de Dante (Divina Comédia) e a utopia dos gulosos, a Cocanha (estes

da Baixa Idade Média).

Dieta medieval

A Alta Idade Média foi um período de fomes e privações. Os significativos

progressos agrícolas vieram por volta do ano 1000, com novas técnicas que tornaram a

1 Universidade Estadual de Londrina.

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produção de alimentos mais eficiente. BASCHET (2006, p. 102) cita o desmatamento e a

ampliação de área de cultivo (os essarts, ou clareiras) como sinais deste progresso. A

paisagem européia muda radicalmente: “estabelece-se a rede de aldeias, tal como ela irá

subsistir, no essencial, até o século XIX, e a relação quantitativa entre as zonas incultas ou

de matas (saltus) e o território humanizado (ager) mais ou menos inverteu-se”.

No decorrer do século XI, informa o autor, as aldeias aumentaram suas áreas

cutivadas. No século XII, foi a vez dos mosteiros e novos aldeões. Particularmente, os

monges cistercienses, por viverem mais isolados, aprimoraram suas técnicas agrícolas.

Citando Marc Bloch, Baschet diz que foi o maior aumento de terras cultivadas na Europa

desde a Pré-História.

É evidente que a “revolução agrícola” (conforme alguns autores defendem) não

ocorreu de forma imediata e universal. DUBY (1993, p. 107) cita Raul Glaber, que falou

de uma fome que “devastou a Borgonha” em 1033. O clima não ajudou e as hostilidades

entre grupos humanos pioravam tudo. O excesso de chuvas fez proliferar

incontrolavelmente as ervas e o joio. Duby diz que a Grécia, a Itália, a Gália e a Inglaterra

foram atingidias: “Como a falta de alimentos atingia a população toda, os grandes e os da

classe média tornaram-se parcos com os pobres, as pilhagens dos poderosos tiveram de

parar perante a miséria universal” (idem, p. 107-8).

A fome levou as pessoas a atitudes inumanas: “quando acabaram de comer os

animais selvagens e as aves, os homens, sob o domínio de uma fome devoradora,

começaram a apanhar para comer toda a espécie de cadáveres e de coisas horríveis de

contar”. E, logicamente, o fenômeno era espiritualizado: “o único recurso contra a

vingança de Deus era a meditação”. Mutilação, assassinato, canibalismo e até comércio de

carne humana fazem parte das narrativas da época. Muitos tentaram migrar, mas a inanição

os alcançou antes de chegarem ao seu destino.

DUBY (idem, p. 110) continua, apresentando a perspectiva espiritual dos fatos:

O mundo, para castigo dos pecados dos homens, foi vítima deste flagelo de penitência durante três anos. Retiraram-se então, para serem vendidos em proveito dos indigentes, os ornamentos das igrejas; dispersaram-se os tesouros que, como se vê nos decretos dos padres, tinham outrora sido constituídos para este efeito. (...) Quanta dor, quantas aflições, quantos soluços, queixas, lágrimas para os que viam tais coisas, sobretudo entre as pessoas da Igreja, bispos e abades, monges e monjas, e em geral, entre

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todos aqueles, homens e mulheres, clérigos e laicos, que tinham no coração o temor a Deus! As palavras escritas não podem dar uma idéia de tudo isto. (...) Então nosso tempo viu realizar-se a palavra de Isaías que dizia: ‘O povo não se voltou para aquele que o castigava’.

Por outro lado, é o próprio DUBY (1990, p. 577) que anota que no final da Idade

Média os corpos estavam muito melhor alimentados do que nos séculos anteriores. Ele diz

que os sobreviventes da Peste Negra (década de 40 do século XIV) e seus descendentes

conheceram condições materiais melhores, como uma maior produção cerealista, maior

consumo de carne, de vinho e de cerveja. Há registro de melhores soldos, alimentação de

doentes hospitalizados, regime calórico equilibrado estudado em Arles (meados do século

XV), atenção ao valor nutritivo dos alimentos. Um hábito era questionado: compartilhar

alimentos. Beber do mesmo jarro era sinal de polidez e até solidariedade, mas também

podia ser causa de transmissão de doenças.

MACDONALD (1995, p. 16) informa que “por seus livros de receitas sabemos que

os reis e os nobres da Idade Média gostavam de comida farta e bem temperada, que exigia

muitas horas de trabalho dos servos para ser preparada”. Segundo a autora, a dieta dos

ricos incluía muita carne e especiarias importadas, como açúcar, passas e vinho. Ao invés

de pratos, grandes pedaços de pão amanhecido. Eram os restos destes pães que eram dados

aos pobres, além de outras sobras, como ossos.

D’HAUCOURT (1994, p. 44-45) aponta que eram usadas tigelas, colheres, facas,

mas não garfos nem pratos ou guardanapos. As toalhas só eram postas à mesa em dias de

festas importantes ou em casas ricas. Só no século XIV o uso de toalhas começou a se

tornar comum, assim como os talheres foram vulgarizados no Renascimento. Quando

usadas, as toalhas eram bem maiores que as mesas e os convivas aproveitavam o fato para

limpar os dedos nelas. Por isso, nos grandes jantares, as toalhas eram trocadas após o

consumo dos pratos principais.

Já o povo comum tinha, obviamente, uma alimentação muito mais simples: pão

preto, algum queijo, ovos,e vegetais da própria horta, que podiam ser alho-poró, vagens,

cebolas e repolho. MACDONALD (1995, p. 17) diz que “costumavam fazer uma sopa

espessa de ervilhas secas, chamada pottage, que era muito bem vinda depois de um dia de

trabalho árduo no campo. Algumas famílias tinham um porco, que matavam no outono”.

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Esta carne era defumada para durar todo o inverno, já que não havia dinheiro para comprar

especiarias ou às vezes nem sal, para conservar a carne ou disfarçar o gosto.

D’HAUCOURT (1994, p. 40) afirma que os produtos locais eram a base da

alimentação dos medievais, “daí a elaboração em cada região de preparos e de hábitos

culinários, dos quais muitos ainda sobrevivem”. Foi o crescimento urbano e comercial que

trouxe maior diversidade à dieta: “Os parisienses do século XIII comiam carne de bois

normandos e até da Savóia, peixes frescos pescados na Mancha e, nas mesas dos ricos,

havia tâmaras, figos secos, limões e laranjas” (idem).

A autora observa que alguns alimentos eram, porém, essenciais a todas as classes.

Melhor exemplo é o pão, que podia ser de trigo, centeio ou cevada. A carne era um regalo,

e sua privação uma penitência. Podia ser boi, vitelo, carneiro, porco, conforme as

condições familiares. Raramente, porém, os animais engordavam muito.

A caça era normalmente permitida só aos senhores das terras, a partir do século IX.

Quanto aos animais domésticos, havia coelhos, galinhas, pombos e gansos. Cisnes e

pavões eram apenas dos nobres. Segundo LE GOFF e TRUONG (2006, p. 136), “as aves

domésticas eram particularmente estimadas”.

Quanto aos legumes, eram consumidas as favas, ricas em proteínas, e as ervilhas,

comidas com toucinho. Havia ainda repolhos, cebolas, alfaces, agrião, e frutas, como

cerejas, morango, pêssegos, framboesas, figos, nêsperas, amêndoas, avelãs, nozes,

castanhas, ameixas, peras, maçãs e, depois das Cruzadas, damascos e melões.

LE GOFF e TRUONG (2006, p. 136) expõem que “ao trigo dos agricultores

romanos, a Idade Média dava preferência frequentemente ao centeio e à aveia, à cevada e à

espelta, ao milho miúdo e ao sorgo”.

De acordo com D’HAUCOURT (1994, p. 42), o preparo dos pratos era muito

semelhante ao atual: “O campo comia a sopa de toucinho e de repolho que cozinhava no

caldeirão. As cozinhas mais esmeradas alternavam churrascos no espeto, grelhados,

cozidos, guisados, frituras”. Usavam-se muitos recheios, e ligas com miolo de pão

molhado e peneirado. Ingredientes hoje moídos eram antes pilados. Entre os temperos,

havia a canela, açafrão, pimenta e gengibre. A autora lembra, entretanto, que as cozinhas

monásticas quase não utilizavam tais condimentos, e os pratos tinham a fama de serem

insípidos. Tudo porque se temia as propriedades afrodisíacas dos temperos.

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Os doces eram também muito simples: sonhos, tortas de frutas, de creme e de

queijo, além de pudins. Eram consumidas ainda balas de frutas, doces de mel e de uva.

Para beber, vinho, cerveja, sidra e, a partir do século XIV, aguardente de frutas.

DUBY (1990, p. 203) lembra que “da despensa à mesa, os alimentos,

evidentemente, têm de passar por uma preparação”. As cozinhas burguesas ficavam fora de

casa até o século XIII, quando então saíram dos pátios e foram transferidas para as casas.

Algumas foram para os andares superiores – sótãos. No século XV, as cozinhas já podiam

ser sinal de conforto e status nas casas de famílias ricas. Já as mesas podiam ser

retangulares (sobre cavaletes) ou redondas, e serviam exclusivamente para as refeições, a

ponto de serem inventariadas como “mesa redonda de comer” (idem, p. 206).

D’HAUCOURT (1994, p. 44) cita um acordo vitalício feito entre um casal e os

monges de Beaumont-le-Roger, fixado em 1268. O casal doou seus poucos bens aos

religiosos, em troca de terem suas necessidades supridas por toda a vida: “o convento

forneceria diariamente um pão de sua fabricação, dois pães médios, um galão de sidra, de

cerveja ou de bebida dos monges, um prato de carne três vezes por semana e, nos outros

dias, seis ovos, na Quaresma, quatro arenques”.

De acordo com LE GOFF e TRUONG (2006, p. 137), o desequilíbrio alimentar

medieval era mais social do que nutricional, mais quantitativo do que qualitativo – “a

distinção social passava pela alimentação”. A Cocanha surgiu no imaginário popular a

partir do que se falava dos banquetes e festins dos nobres e das Cortes.

Os autores afirmam ainda que esta preocupação com a distinção social através dos

prazeres à mesa levou a uma “forma de refinamento que transforma o alimento em cultura,

e a cozinha, em gastronomia” (idem, p. 138). Foi quando então surgiram os manuais de

receitas culinárias – entre os séculos XIII e XIV. Foram incrementados os sabores (com

temperos e condimentos como a pimenta, canela, gengibre, mel e limão), as cores (açafrão,

cerejas, amêndoas), os cozidos (assados), os molhos e os doces.

Fome x gula

LE GOFF e TRUONG (2006, p. 57-8) lembram que “gula” vem de “goela” em

latim, e que os “pecados da carne e pecados da boca” caminham de mãos dadas. Ou seja,

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glutonia e luxúria estão sempre por perto uma da outra, especialmente – na visão cristã

medieval – entre os bárbaros e pagãos. Acrescentam os autores: “A indigestão é

igualmente associada ao pecado. A abstinência e o jejum dão o ritmo, portanto, do ‘homem

medieval’. O domínio do corpo é acompanhado do domínio do tempo...”. Daí a Quaresma,

difundida desde o século IV.

Segundo os autores, “o jejum é relativamente respeitado mesmo entre os leigos,

como mostrou Jean-Louis Flandrin em seus trabalhos” (idem, p. 59). Havia, pois, uma

tensão entre o Carnaval dos excessos e a Quaresma do jejum. São estes dois medievalistas

que mencionam a Cocanha, “uma das raras utopias da Idade Média e que aparece muito

precisamente em um fabliau [fábula] de 1250, descreve um território imaginário onde não

se trabalha, onde tudo é luxo e volúpia” (idem, p. 60).

As Regras de São Bento, escritas pelo Pai do Monaquismo Ocidental no século VI,

dedicam três capítulos ao correto modo de se alimentar: do 39 ao 41. O primeiro dá a

“medida da comida” e define o que é suficiente para o consumo diário de um monge:

“Portanto dois pratos de cozidos bastem a todos os irmãos; e se houver frutas ou legumes

frescos, sejam acrescentados em terceiro lugar” (ENOUT).

O importante, segunda a Regra, é que fiquem “afastados antes de mais nada

excessos de comida, e de modo que nunca sobrevenha ao monge a indigestão, porque nada

é tão contrário a tudo o que é cristão como os excessos na comida, conforme diz Nosso

Senhor: ‘Cuidai que os vossos corações não se tornem pesados pela gula’" (idem). Além

disso, fica ainda estabelecido que os “meninos de pouca idade” devem comer menos, e que

haja completa abstenção de “carnes de quadrúpedes”, exceto para os doentes e fracos.

Igualmente importante, é a “medida da bebida”, estabelecida “com escrúpulo”. De

maneira geral, deve prevalecer a parcimônia. Mas mais festejada é a abstinência de álcool.

Estes “receberão recompensa especial”. O Abade decide, desde que se mostre necessário

um aumento de consumo (em função do trabalho, por exemplo), mas sempre evitando

“saciedade ou embriaguez”. Isto porque, de acordo com São Bento, "o vinho faz apostatar

mesmo os sábios", e isto deve ser evitado a todo custo.

Finalmente, o capítulo 41 estabelece “a que horas convém fazer as refeições”,

seguindo a Liturgia das Horas:

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Da Santa Páscoa até Pentecostes, façam os irmãos a refeição à hora sexta e ceiem à tarde. A partir de Pentecostes, entretanto, por todo o verão, se os monges não têm os trabalhos dos campos ou não os perturba o excesso do verão, jejuem quarta e sexta-feira até a hora nona; nos demais dias jantem à hora sexta. Se tiverem trabalho nos campos ou se o rigor do verão for excessivo, o jantar deve ser mantido à hora sexta: ao Abade caiba tomar a providência. (...) De 14 de setembro até o início da Quaresma façam a refeição sempre à hora nona. Durante a Quaresma, entretanto, até a Páscoa façam-na à hora de Vésperas. Sejam essas celebradas de tal modo, que os irmãos não precisem, à refeição, da luz de uma lâmpada, mas que tudo esteja terminado com a luz do dia. E mesmo em todas as épocas esteja tanto a hora da Ceia como a do jantar de tal modo disposta, que tudo se faça sob a luz do dia.

Claro que o regime monástico de alimentação tem seus momentos de concessão.

Quando a alimentação é terapêutica, por exemplo, ela deixa de se aproximar do pecado. A

Regra 36 diz: “Também a alimentação de carnes seja concedida aos enfermos por demais

fracos, para que se restabeleçam, mas logo que tiverem melhorado abstenham-se todos de

carnes, como de costume” (ENOUT). Semelhantemente, a Regra 37 dá tratamento

relativamente especial aos idosos e crianças: “Considere-se sempre a fraqueza que lhes é

própria, e não se mantenha para com eles o rigor da Regra no que diz respeito aos

alimentos” (idem).

DUBY (1990, p. 65) também anota que os monges enfermos, “tornados menos

puros pela doença, seguiam um regime alimentar diferente: já não lhes era proibido comer

carne, considerada reconstituidora do sangue, do fogo de seu corpo débil; mas tornar-se

por um tempo carnívoros os excluía mais, e os afastava especialmente da comunhão”.

Para os monges de maneira geral, porém, deve prevalecer o que ROBERTS (1980,

p. 36) define como “austeridade de vida”: jejum, noites de oração, trabalho, fadiga e

humilhação. E afirma:

Em particular, o levantar-se de noite para fazer oração e o abster-se de comer a fim de melhor guardar a atenção a Deus, são partes importantes da ascese monástica. O jejum e as vigílias, cada um a seu modo, cavam uma profundidade nova no coração do monge, atingindo-nos em dois dos ritmos mais vitais: o do alimento, que é sucessivamente necessidade e satisfação, e o do tempo, com sua sucessão de dias e noites, de luz e trevas.

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ROBERTS (idem, p. 37) afirma ainda que alguns atos vão contra o ato de

conversão. Entre eles, comer em excesso, especialmente entre as refeições; e não observar

o jejum da comunidade: “O monge normal pode comer menos de vez em quando e

levantar-se mais cedo. Precisa até fazê-lo para fortalecer sua resposta à graça e evitar

maiores fraquezas”.

LE GOFF e TRUONG (2006, p. 134) afirmam que, inicialmente, a carne foi

simplesmente proscrita dos mosteiros, e até era comum encontrar conventos com um açude

ao lado, para piscicultura de consumo. Mas, com o passar do tempo, os hábitos alimentares

do alto clero foram reintroduzindo a carne em toda a rede monástica européia.

D’HAUCOURT (1994, p. 42) lembra que os excessos cometidos no inverno,

iniciados com as Festas (Natal e Oitavas de Natal), e regados com muita carne, levavam

não raro a doenças – erupções que existem até hoje, e que eram tratadas com sangrias. A

Igreja, contudo, prescrevia um remédio ainda melhor: a abstinência, na Quaresma. A

autora acrescenta: “O peixe então substituía a carne nas mesas. Castelos e mosteiros

tinham seus viveiros. Os peixes de água salgada ou de água doce eram os que comemos

ainda (...). Os peixes eram vendidos frescos, salgados, defumados ou secos.”.

A autora também discorre sobre algumas regras de etiqueta (idem, p. 45). Havia o

hábito de lavar as mãos. Nos mosteiros, o abade poderia despejar água nas mãos dos

hóspedes. Nas casas dos senhores, este serviço era executado pelos escudeiros, e em

algumas famílias mais ricas a água poderia ser aromatizada, com pétalas de rosa ou menta.

Sobre este aspecto, LE GOFF e TRUONG (2006, p. 139) sentenciam: “a Idade

Média civiliza as práticas alimentares”: não se pode assoar o nariz, cuspir ou oferecer um

alimento já mordido a um conviva. E mais (idem):

Não se come mais estirado, como entre os romanos, mas sentado. Com os dedos, é verdade, mas de acordo com as regras estritas, à imagem dos comedores de carneiro assado em pedaços na esfera cultural islâmica. Uma distância conveniente entre os convidados também é algo a respeitar. O ápice material dessa ‘civilização dos costumes’ será a invenção do garfo, que, após a Idade Média, virá de Bizâncio, via Veneza.

DUBY (1990, p. 85), ao descrever as refeições nas casas aristocráticas, afirma que:

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comer era um ato solene, público. O senescal zelava pela parte mãos nobre da ração, pelo “companage” [tudo aquilo que se come com o pão], as “esques” (escae, comidas), compradas fora e preparadas na cozinha, principalmente a carne, que cabia ao primeiro servidor (e essa procedência de carne é esclarecedora) apresentar e cortar diante do senhor; (...) Quanto à bebida de qualidade, isto é, ao vinho, também estava sob o controle de um oficial maior, o copeiro.

LE GOFF e TRUONG (2006, p. 134) falam de uma dupla perspectiva dietética

medieval. Uma, mais ascética, nasceu dos mosteiros. A outra, oriunda das classes

superiores, foi marcada pela busca de novos sabores – e prazeres. Eram dois modelos

alimentares opostos, que os autores chamaram de civilização do trigo e civilização da

carne: “A primeira, mais precisamente, composta da tríade trigo-vinho-óleo, e a da

Antiguidade mediterrânea dos gregos e dos romanos. A segunda pertence às populações

bárbaras, os germânicos em particular, com freqüência lançadas pelos autores antigos nas

trevas da bestialidade”.

Segundo eles, a oposição entre os dois modelos se acentuou nos séculos III e IV,

nos estertores do Império Romano Ocidental. Mais tarde, a oposição pareceu reeditada no

confronto cerveja pagã versus vinho cristão. Tanto assim que, no século XIII, franciscanos

faziam distinção entre “conventos de vinho” e “conventos de cervoise”, mas sem falar em

hierarquia.

Do Inferno à Cocanha

Em A Divina Comédia, Dante Alighieri reserva o terceiro círculo do Inferno aos

gulosos. Lá, eles ficam mergulhados na lama, sob uma chuva torrencial e gélida que nunca

cessa nem diminui, e são eternamente espancados por Cérbero, o cão mitológico de três

cabeças. Dante descreve um grosso granizo, neve, um ar tenebroso e uma terra fétida: eis o

destino dos gulosos. Neste cenário de horrores, o poeta identifica alguns espíritos,

conhecidos em vida pelos apetites insaciáveis. Com eles dialoga um pouco, ouve súplicas

por intercessão e, orientado por Virgílio, prossegue sua jornada.

Apesar de tudo, no esquema dantesco, o pecado da glutonia é um dos mais leves.

Tanto assim que fica em dos círculos superiores do Inferno (o terceiro círculo), entre os

pecados de incontinência – ao lado de luxuriosos, avaros/pródigos, iracundos/rancorosos e

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heréticos. São pecados derivados da fraqueza humana. Muito mais graves são os pecados

de violência e bestialidade, fraudes e traição.

Seguindo a mesma lógica da Cosmologia de Dante, o círculo dos gulosos no Monte

do Purgatório fica bem acima, quase no topo, abaixo apenas do círculo dos luxuriosos – o

último antes de alcançar o Paraíso Terrestre, o Éden.

Ao chegar ao círculo dos gulosos do Purgatório, Dante e Virgílio se depararam com

uma árvore, tão bela quanto alta, e uma nascente entre rochas, inalcançável. Um perfume

de fruta exalava da árvore, enquanto o barulho da água corrente parecia convidar a bebê-la.

Enquanto admirava a árvore e seu aroma, aproximou-se um grupo de almas

penitentes, todos com aspectos famélicos. Ou, nas palavras de Dante: “Tinham elas do

olhar a órbita cava, pálido o rosto e já tão descarnado que dos ossos a pele se enformava.

Não creio que já vi a tal extremo estado, pela fome que mais ele temia, Eresiton tivesse

então chegado” (Purgatório, Canto XXIII). Eresiton foi um homem condenado pela deusa

Ceres e ter uma fome inextinguível, até acabar comendo os próprios membros. A história é

contada por Ovídio em Metamorfoses.

As almas explicam então seu tormento: podem ver, ouvir e cheirar os alimentos e a

água, mas jamais alcançá-los ou consumi-los. Àqueles que em vida se entregaram ao

apetite, agora deveriam aprender a controlá-lo. Mas é uma penitência, não um castigo –

pois o tormento terá fim.

No outro extremo, a mentalidade medieval concebeu a utopia denominada Cocanha

– também conhecida como Cocagne, Cockaygne, Cuccagna, Cucaña, entre outras. Até no

Brasil surgiu uma versão local, em meados do século XX: São Saruê.

Consta que são várias as tradições que deram origem ao texto, originalmente dos

séculos XIII e XIV, dos quais são conhecidas oito representações. Dos séculos XVI e

XVII, existem 12 versões francesas, 22 alemãs, 33 italianas e 40 flamengas. Em 1559,

Bruegel pintou uma tela de Cocanha, e no final do século XVIII Goya também pintou um

quadro inspirado na terra utópica.

No período de transição entre a Medievalidade e a Modernidade, a concepção de

Cocanha foi vista de diferentes maneiras, conforme o estrato social. Para o poder estatal

incipiente, o país imaginário parecia inspirar uma sociedade sem autoridades – um perigo.

Para o clero, era a terra dos pecados da luxúria e da gula, e portanto a danação. Para a

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burguesia ascendente, era um país de vadios e preguiçosos contrários ao “progressso”. De

fato, Cocanha influenciou alguns movimentos revoltosos populares nos séculos XIV a

XVII, geralmente no Carnaval, período em que a subversão era, de certa forma, legitimada

há séculos.

Segue um trecho, da versão “Le fabliau de Cocagne” (FRANCO JR, 1998, p. 22-

26). Ele serve para ilustrar, mas vale assinalar que a obra em que este estudo se baseia traz

mais de uma dezena de variações, incluindo versões inglesa, alemã, holandesa e brasileira.

O nome do país é Cocanha;/ Lá quem mais dorme mais ganha:/Quem dorme até ao meio-dia/Ganha cinco soldos e meio. De barbos, salmões e sáveis/São os muros de todas as casas./Os caibros lá são esturjões,/Os telhados de toicinho,/As cercas são de salsichas. Existe muito mais naquela terra de delícias,/Pois de carne assada e presunto/São cercados os campos de trigo;/Pelas ruas vão se assando/Gordos gansos que giram. (...) Pelos caminhos e pelas ruas,/Encontram-se mesas postas/Com toalhas brancas/Onde se pode beber e comer/Tudo o que se quiser sem problema; (...) Basta pegar a seu bel-prazer;/Carne de cervo ou de ave,/Assada ou ensopada,/Sem pagar nada. (...) Corre um riacho de vinho./As canecas aproximam-se dali por si sós,/Assim como os copos/E as taças de ouro e prata. Este riacho do qual falo/É metade de vinho tinto,/Do melhor que se pode achar/Em Beaune ou no além-mar; A outra parte é de vinho branco,/Melhor e mais fino/Que o produzido em Auxerre,/La Rochelle ou Tonerre. (...) Quatro Páscoas tem o ano,/E quatro festas de São João./Há no ano quatro vindimas,/Feriado e domingo todo dia, Quatro Todos os Santos, quatro Natais,/Quatro Candelárias anuais,/Quatro Carnavais,/E Quaresma, uma a cada vinte anos,...

Considerações Finais

Na longa Idade Média européia, os atos de obter, preparar e consumir alimentos

eram especialmente revestidos de sentidos transcendentes, graças à influência da Igreja.

Quaresma, festas, vida monástica, entre outros elementos, moldaram a dieta do homem

medieval, ao lado do modo de produção, das relações sociais e das condições da Natureza.

Nobres, clero e camponeses conheceram a fome, os fracassos nas colheitas, os invernos

rigorosos. Provavelmente por isso surgiu a utopia chamada “Cocanha”, um lugar de gula,

de excessos, onde tudo é permitido, e pecado é não comer e beber.

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No outro extremo, a continência era elogiada, e a abstinência um sinal de santidade,

de controle dos impulsos pecaminosos. Aqueles que se entregavam à gula tinham um

destino totalmente oposto à Cocanha. Aguardava-lhes o Inferno, ou, na melhor das

hipóteses, um dos Círculos do Purgatório. Na visão de Dante, este era um lugar de privação

e sofrimento, mas também de esperança.

É entre estes dois extremos que viveu o homem medieval. E é entre estes mesmos

extremos que as sociedades dessacralizadas do século XXI vivem, com seus restaurantes

fast food, comida industrializada, apelos publicitários, e pesquisas científicas que

condenam e santificam os mesmos alimentos, semana sim, semana não.

A Cocanha moderna pode ser vislumbrada nos grandes supermercados, mas é

acessível apenas aos bolsos mais cheios. Neste aspecto, nada mudou. Quanto ao Inferno

dos gulosos, a secularização cuidou de escondê-lo, mantendo a preocupação humana

apenas na saúde corporal.

Mas ainda vivemos entre o Céu e o Inferno. Ainda somos medievais.

REFERÊNCIAS:

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NOLA, Roberto de. Livro do cozinheiro. (Edição bilíngüe catalão/português). São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2010.

ROBERTS, Agostinho. Vida monástica: elementos básicos. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1980.